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partir deste gesto, o desabafo de um ser fustigado e angustiado pela rotina a que se vê
obrigada a levar no claustro:
[...] ao tentar aproximar-me dela, um grito repentino, quase um descuido,
imobilizou-me. Não era um grito de advertência, proibição e hostilidade;
parecia antes um desabafo, o que dilacera, um rugido de vergonha. Afastei-
me da criança e notei que ela não tirava os olhos de mim, estranhado talvez
meu receio, minha covardia por não lhe ter tocado o rosto; e aquele par de
olhos, enormes, negros, bem juntos, que diminuíam mais seu rosto pequeno,
aquele olhar queria atrair, tatear o outro, ampliar o contato com o mundo.
Parecia um olhar fustigado pela repetição, pelo círculo fechado de
monotonias: o quarto, as duas mulheres os fundos da casa.
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Ao sair do “quarto-prisão”, ela tem de enfrentar duas novas clausuras: a clausura do
espaço da casa e seus arredores, de onde era proibida de se afastar, e a clausura da sua própria
deficiência, que não lhe permitia ser uma criança como as outras, que podiam se expressar e
ser ouvida pelos outros. Como rememora Hakim à narradora,
Na mesa, à hora das refeições, tu e Soraya eram servidos pelas
mãos de Emilie, [...] tu já podias negar ou aceitar a comida com poucas
palavras, com monossílabos, enquanto Soraya resignava-se a afastar o
prato, negacear com a cabeça ou curvá-la em direção ao prato, às vezes
olhando para ti, para a tua boca, talvez pensando: ‘Quando me faltou a
palavra?’ [..] talvez vexada porque tu, com tua pouca idade, já eras capaz de
construir frases mal acabadas [...] mas com um movimento dos teus lábios,
alguém reagia, alguém movia os lábios, o mundo ao teu redor existia.
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Soraya tenta compensar a ausência da fala através de gestos e contorções da face. Nas
estripulias e macaquices que espantam os animais do pátio, nos arredores da casa, afugentam
as galinhas, no galinheiro, Soraya busca “caotizar” o espaço do silêncio e da indiferença,
tentando se fazer percebida e ganhar a atenção dos habitantes da casa:
[...] essa encenação matinal, presenciada com espanto e comiseração por
todos nós, talvez fosse uma festa para Soraya, uma maneira de ser escutada
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R.C.O., p.108
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R.C.O., p. 12-17