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Jean Luiz Davino dos Santos
Processos de transculturação narrativa e interconexão cultural em
Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUISTICA
Maceió
2004
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Jean Luiz Davino dos Santos
Processos de transculturação narrativa e interconexão cultural em
Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras (Literatura Brasileira)
Orientadora: Profª Drª Belmira Magalhães
Maceió, abril de 2004
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AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Alagoas, FAPEAL, por financiar este
trabalho.
Ao meu filho, Pedro Davino, fonte de
constante inspiração.
Aos inigualáveis incentivos de Belmira,
admirável professora e maravilhosa amiga.
Aos professores Vera Romariz e
Roberto Sarmento, pessoas que prezo e admiro.
RESUMO
Este estudo analisa processos de transculturação narrativa e entrecruzamento cultural
no romance Relato de um certo oriente (1989), de Milton Hatoum. Na obra, é traçada a
trajetória de uma família de imigrantes libaneses em Manaus. O sistema de relações sociais
estabelecido entre imigrantes árabes e nativos da região amazonense é configurado em
relações de classe e poder. Este expediente é verificado no romance pela opressão social
exercida por integrantes do núcleo identitário libanês sobre autóctones da região. Na
fundamentação teórica da pesquisa, servimo-nos da teoria cultural e da contribuição basilar da
corrente de orientação sociológica, sobretudo buscando o auxílio da teoria dos princípios
estruturais que regem o plano narrativo da representação literária, formulada por Antonio
Candido. A análise demonstra que o sistema de relações sociais apresentado no romance
obtém funcionalidade na estruturação narrativa da obra, determinando sua configuração
formal, a concepção e o percurso traçado pelos caracteres que compõem a narrativa, bem
como a materialidade lingüística desta, que é apresentada sob o signo da fragmentação.
Através da representação literária, Milton Hatoum discute o difícil processo de negociações
identitárias que ainda prevalece na sociedade moderna. Ao articular sua literatura com os reais
problemas de seu meio social, utilizando conscientemente os recursos expressivos de
concepção estética, o autor se aproxima dos grandes escritores que transformaram o cenário
literário latino-americano.
RÉSUMÉ
Cette étude analyse le processus de la transculturalisation narrative et l'entrecroisement
culturel dans le roman Relato de um certo oriente, de l'écrivain Milton Hatoum. Cette oeuvre
présente la trajectoire d'une famille d'immigrants libanais à Manaus. Le système de relations
sociales établi entre les immigrants Arabes et les natifs de la région amazonienne se configure
comme des relations de classe et de pouvoir. Cet expédient est vérifié dans le roman à cause
de l'oppression sociale exercée par les integrants du noyau identitaire libanais sur les
autochtones de la région. Le fondement théorique de cette étude s'appuie sur la théorie
culturel et l'orientation sociologique, principalment, sur la théorie des principes structuraux
qui conduisent le plan narratif de la représentation littéraire formulée par Antonio Candido.
Cette analyse démontre que le système des relations sociales présenté dans le roman obtient
de la fonctionnalitée dans la structuration narrative tout en determinant sa configuration
formel, la conception et le parcous tracé par les caractères qui composent la narrative, bien
comme la materialité linguistique qui est presentée sur le signe de la fragmentation. À travers
la representation littéraire, Milton Hatoum discute le difficile processus de négotiations
identitaires qui prédomine encore dans la société moderne. Il assemble son écriture et les
problèmes réels de son milieu social et utilise consciemment les ressources expressifs de la
conception esthétique, ce qui l'aproche des grands écrivains qui on changé la scène litteraire
de la Amérique Latine.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 7
1. SUBDESENVOLVIMENTO E IMIGRAÇÃO: TRANSCULTURAÇÃO E
HETEROGENEIDADE E TRÂNSITO PARA O UNIVERSAL ............................................ 13
1.1 Subdesenvolvimento e mudança de perspectiva na literatura latino-americana ................... 13
1.2 Imigração: transculturação e heterogeneidade cultural ......................................................... 20
2. FUNCIONALIDADE DO SISTEMA DE RELAÇÕES DE CLASSES E INTERVENÇÃO
SOBRE AS RELAÇÕES CULTURAIS .................................................................................. 32
2.1 Articulação com a sociedade e gênese de construção ........................................................... 32
2.2 O espaço do caos e da fragmentação ..................................................................................... 36
2.3 Um princípio estrutural .......................................................................................................... 41
2.3.1 Um espaço familiar autodestrutivo: transgressões ............................................................. 41
2.3.2 A relação com o Outro cultural .......................................................................................... 44
3. CONCEPÇÃO SOCIAL DOS CARACTERES .................................................................... 50
3.1 A narradora ............................................................................................................................ 51
3.2 Soraya Ângela ....................................................................................................................... 57
3.3 Dorner e o patriarca: o vinculo com a natureza e a subversão determinada pelo sistema de
relações humanas ................................................................................................................... 62
3.3.1 O patriarca .......................................................................................................................... 64
3.3.2 Dorner ................................................................................................................................. 67
CONCLUSÃO ............................................................................................................................. 72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 75
7
INTRODUÇÃO
A obra Relato de um certo Oriente (1989)
1
, de Milton Hatoum, escritor amazonense
nascido em 1952, parece inscrever-se na tendência verificada em alguns escritores da América
Latina: a de construir uma estética literária que represente a narrativa latino-americana,
configurada historicamente num espaço cultural heterogêneo, no qual é verificada uma síntese
tensa de culturas, indiciando os conflitos resultantes dos contatos e entrecruzamentos culturais
constatados em solo americano ao longo de sua história.
Na obra, que narra a trajetória de uma família de imigrantes libaneses no Amazonas, a
cidade de Manaus se transforma, simbolicamente, em porto para onde converge uma malha
variada de representações culturais. Além da representação árabe, predominante na obra,
observamos a coexistência de outras correntes migratórias, como a colônia lusitana, a
francesa, a alemã, dentre outras. A interconexão ou o entrecruzamento de diferentes estratos
culturais confere o caráter compósito do romance R.C.O.
O termo compósito foi empregado por dois estudiosos da literatura para qualificar a
condição ou o estatuto da ficção latino-americana. No terreno da crítica cultural, Zilá Bernd
(1999:12), em Identidade e estéticas compósitas, assinala que o adjetivo compósito qualifica
as identidades e estéticas do continente latino-americano, que abarca um conjunto “[...] de
mesclas, hibridações, justaposições, aglutinações e telescopagens que ocorrem na geografia
ficcional americana.” Já o crítico de orientação sociológica Antonio Candido (1989:199), no
ensaio A nova narrativa, confere à produção literária latino-americana, a partir de autores
1
Neste trabalho, as citações referentes à obra em análise terão como fonte sua 2
a
edição: HATOUM, Milton.
R.C.O.. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Para efeito de praticidade na remissão à fonte da pesquisa, as
referências serão realizadas pela conversão R.C.O., seguida do número da página em que surgir a citação.
8
como Juan Rulfo, Garcia Marques, José Arguedas e Guimarães Rosa, no caso do Brasil, “[...]
uma unidade compósita, maciça e poderosa [...].”
Acreditamos que, no tratamento das questões concernentes às transformações da
ficção latino-americana, há vinculações ou correlações entre as duas tendências teóricas
citadas. As transformações do discurso latino-americano sob o signo do heterogêneo e do
diverso são alvo de teorias tanto da área cultural quanto da área da teoria social. Conceitos
como o da heterogeneidade, de Conejo-Polar, transculturação narrativa, de Angel Rama,
entre-lugar, de Silviano Santiago, nacional popular, de Carlos Nelson Coutinho, ou o supra-
regionalismo, de Antonio Candido, possuem pontos de convergência na determinação da
especificidade e da autonomia do discurso literário latino-americano.
Através desses conceitos teóricos, percebemos que a produção literária da América
Latina, ao longo de sua história, atravessa diversas etapas: superação do localismo e do
exotismo; aceitação e absorção dos modelos estrangeiros de concepção estética; reflexão e
reelaboração do material próprio.
Esse processo de transformação de nossa literatura é, em parte, demonstrado por
Angel Rama (1975), no texto Transculturação narrativa na América Latina. O vocábulo
transculturação melhor ilustraria o processo transitivo de uma cultura para outra, havendo
destruições, afirmações e absorções entre duas forças culturais em confronto.
O escritor não mais se enclausura nos temas locais, como forma de afirmar as
pretensas raízes culturais, não mais simplesmente copia modelos estéticos importados,
alienando-se de sua própria realidade. Há agora uma reelaboração criadora do objeto estético,
e um processo de conscientização, por parte dos escritores, em articular sua produção com os
reais problemas de seu meio.
No estudo dos processos de transculturação narrativa e de interconexão cultural na
obra R.C.O., colhemos contribuição tanto da crítica cultural como da corrente de orientação
9
sociológica. O estudo da literatura latino-americana, sobretudo através do ponto de vista da
analise social e histórica, é imprescindível, uma vez que, de acordo com Candido (1989:180),
“Nos países da América Latina a literatura sempre foi algo profundamente empenhado na
construção e na aquisição de uma consciência nacional [...].”
A partir da teoria social, procuramos penetrar mais a fundo na obra, mostrando que o
entrecruzamento das culturas amazonense e árabe é permeado e construído sobre um sistema
hostilizante de relação de classes, que, a nosso ver, subverte as relações humanas e fragiliza
um civilizado processo de intercâmbio cultural entre as duas representações em contato.
No romance, o sistema de relações humanas aparece configurado por intermédio de
uma relação de dominantes e explorados, evidenciada pelo poder e opressão social exercidos
por integrantes do núcleo árabe sobre indivíduos da região amazonense. Esse sistema, que
denota o difícil processo de negociações identitárias, incorpora-se na tessitura narrativa da
obra, funcionando como um elemento estruturador da narrativa.
Aqui nos serve de auxílio a teoria dos princípios estruturais que regem o subsolo
narrativo, no qual o elemento externo se transforma em princípio compositivo do objeto
estético. De acordo com Candido (1976:04), em Literatura e sociedade, “[...] o externo (no
caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que
desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornado-se, portanto, interno.”
A obra de arte se constitui de materiais não literários, manipulados pelo escritor para
construir um objeto que obedeça a leis próprias, não às que regem a realidade exterior. Esta
noção redefine a relação entre verossimilhança e verdade e ajuda na determinação da
especificidade do objeto literário.
A impressão de verossimilhança proporcionada pelo texto será resultado dos recursos
empregados pelo escritor no tratamento dos elementos provenientes da realidade e de sua
organização no objeto estético. Candido salienta que um dos objetivos do crítico é revelar
10
como o escritor cria um universo artístico cujos processos nos permitem compreender de
forma mais completa a realidade a nossa volta. O que importa é o estudo dos processos
existentes no interior do texto, resultantes de uma realidade exterior, não o condicionamento
ou possíveis influências desta.
Dessa forma, não se trata de mera influência da realidade, mas de uma articulação
coerente com esta, com os mecanismos e contradições que espelham a vida social. Essa
articulação que o escritor estabelece com a realidade não vem por meio da cópia servil ou do
mero documentário, mas através da sensibilidade em relação aos problemas de seu próprio
tempo e meio social.
O sistema desigual de relações humanas em R.C.O., que surge do conflituoso
entrecruzamento das culturas árabe e amazonense, pode ser contemplado através de alguns
procedimentos da construção autoral, obtendo uma funcionalidade na estruturação da tessitura
narrativa: um princípio estrutural que organiza o plano narrativo do romance pode ser
vislumbrado através de um ritmo cíclico de fechamentos e aberturas do espaço familiar árabe
em relação a habitantes da região amazonense. O fechamento do núcleo árabe em seus rígidos
padrões morais se abre apenas por intermédio de transgressões, processo que conduz o
desenvolvimento da narrativa; a conformação fragmentária da obra, “despedaçada” em várias
narrativas, resultante de depoimentos colhidos por uma narradora-personagem em busca da
própria identidade, no anseio de reconstituir o passado vivido entre a família de imigrantes
que a adotara; o conturbado perfil social e o percurso traçado pelos caracteres envolvidos na
trama romanesca e, por fim, a própria materialidade lingüística da obra, que dissemina termos
indicadores de diluição e fragmentação.
Entendemos que as questões abordadas pela obra de Milton Hatoum dialogam com a
problemática da categoria da identidade, por intermédio de conflitos estreitamente ligados e
resultantes do processo de globalização que se alastra pelo mundo, processo este estudado por
11
Stuart Hall (2002), no texto A identidade cultural na pós-modernidade, no qual o estudioso
afirma haver, na modernidade tardia, uma crise de identidades.
A forma como o autor aborda essas questões é indiciada no romance não apenas pela
mera abordagem e discussão de temas, restrita à superfície do discurso romanesco mas,
sobretudo, através de uma composição narrativa que as formaliza e expõe.
Compartilhando a idéia de alguns críticos de orientação estético-sociológica,
compreendemos que a discursividade, a construção formal do objeto estético, representa um
momento importante do fazer literário. Forma compreendida aqui como modo de expressão
que o artista adota na criação ou na composição de sua obra, usando os elementos adequados
à sua arte.
A organização artística do mundo não deve guiar-se pela simples exposição de um
conteúdo explícito. Bakhtin (1998:35), em Questões de literatura e de estética: a teoria do
romance, salienta que “[...] o conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do
objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não
tem nenhum significado.” A relação entre os elementos de conteúdo e forma se apresenta,
então, indissociada.
A partir das considerações acima, depreendemos que o estudo, auxiliado pela teoria
cultural, dos processos de hibridação e transculturação no romance de Milton Hatoum,
fenômenos que, para alguns teóricos determinam a especificidade do discurso ficcional latino-
americano, é iluminado através da contribuição basilar da teoria sociológica, sedimentada no
estudo das relações mantidas entre literatura e sociedade.
Essas relações não são aquelas formuladas por tendências que buscam ver na obra um
mero espelho do real, o que subverte a autonomia da representação literária, mas de uma
orientação sociológica que tem por pressuposto o fato de que “[...] só é possível entender
plenamente os fenômenos artísticos e ideogicos quando estes aparecem relacionados
12
dialeticamente com a totalidade social, da qual são, simultaneamente, expressões e momentos
constitutivos.” (COUTINHO, 1990:09)
Nossa pesquisa é aqui registrada em três momentos consecutivos: no primeiro capítulo
discutimos o afastamento de R.C.O. da estética regionalista, fazendo com que Milton Hatoum
mantenha um diálogo com grandes escritores da América Latina que foram de encontro ao
confinamento temático e refletiram sobre as condições de subdesenvolvimento do continente
latino-americano; abordamos posteriormente questões relacionadas à imigração e aos
processos de hibridação, transculturação narrativa e heterogeneidade cultural, trazidos na
construção de personagens da obra e através da configuração do espaço amazonense.
Observamos que no romance esse espaço é apresentado como um locus fragmentário e
caótico, representativo da geografia cultural latino-americana, com seus constantes
entrecruzamentos de culturas diversas num cenário onde o subdesenvolvimento impera.
No segundo capítulo analisamos como o sistema de relações de classes enraizado na
obra funciona como elemento que estrutura e conduz a própria narrativa e sua construção
formal. O terceiro capítulo procura desenvolver e dar continuidade a esta afirmação, expondo
mais uma vez a relação entre conteúdo e forma artística na obra, através do exame do perfil
social de caracteres constituintes do universo ficcional, cuja concepção e percurso
empreendido na narrativa convergem para o dispositivo estrutural que a determina.
13
SUBDESENVOLVIMENTO E IMIGRAÇÃO: TRANSCULTURAÇÃO,
HETEROGENEIDADE E TRÂNSITO PARA O UNIVERSAL
1.1 Subdesenvolvimento e mudança de perspectiva na literatura latino-
americana
Narrativa sem as típicas cores regionalistas, o romance R.C.O. elabora e traz consigo
uma nova abordagem sobre a Amazônia e seu espaço, se distanciando das ilusões românticas
e do exotismo cultural. A obra focaliza a Amazônia dos imigrantes, localizando espacialmente
a ação romanesca em Manaus.
O que poderia parecer exótico, como os nomes Mentaha, Hindié Conceição, Soraya
Ângela, Hakim, Yasmine; o sacrifício de carneiros, em reuniões sediadas na habitação dos
imigrantes libaneses; a sensorialidade existente na casa de Emilie, matriarca da família, nas
frutas de forte aroma como os genipapos, os figos da Índia, a graviola, as Tâmaras, ou a
presença na obra de um curandeiro, Lobato Naturidade, que “Trazia nas costas uma sacola de
couro, surrada e sem cor, onde guardava ervas e plantas medicinais. [...] um mestre na cura de
dores reumáticas, inchações, gripes, cólicas e um leque de doenças benignas [...]
2
, não
tenciona exotizar ou apresentar regionalismos. O que se pretende é trazer à tona a imensa
riqueza e heterogeneidade cultural que se faz presente no espaço amazonense, território
formado pelo trânsito de representações culturais diversas.
2
R.C.O., p. 93
14
No romance, a cidade de Manaus simbolicamente representa a constituição do espaço
latino-americano, território de sociedades fragmentadas, formado historicamente por uma
mescla variada de culturas num processo de entrecruzamentos e conflitos culturais.
A idéia de que existe uma estreita relação entre expressão literária e realidade
americana é compartilhada por muitos críticos e estudiosos da literatura. Sobre esse aspecto,
Ana Pizarro (1994:127-128), no texto De ostras y caníbales, assinala a seguinte observação:
La literatura en nuestro continente da cuenta de una cultura
heterogénea y fragmentada que no podría tener otra forma de
comportamiento que el de la heterogeneidad (la expresión es de Cornejo
Polar) Y la fragmentación de la sociedad que la produce.
3
À pluralidade social e cultural de nosso continente é correspondente a marca
heterogênea de nossa representação literária contemporânea. Em R.C.O., nos deparamos com
a possibilidade de ler a obra através da interconexão de variadas culturas, de diferentes
sociedades e o produto desta interação, a qual não se dá de forma harmônica e igualitária.
Esse diálogo tenso de culturas, como veremos posteriormente, é formalizado pelo autor no
processo de enunciação da obra, conduzindo o andamento da narrativa.
Milton Hatoum concebe um universo em que diferentes culturas coexistem e tentam se
adaptar a um novo território, o território da diversidade. R.C.O. traz consigo a reflexão sobre
as conseqüências da estratificação social num contexto de subdesenvolvimento econômico e
de não alteridade cultural.
No romance, que focaliza a trajetória de imigrantes libaneses em Manaus e o contato
desse grupo social com a cultura amazonense, Hatoum ultrapassa o nível temático e inova no
plano da composição romanesca. Ao elaborar sua arte num processo de reflexão sobre seu
próprio meio cultural, o autor amazonense se aproxima e dialoga com grandes escritores
3
"A literatura, em nosso continente, dá conta de uma cultura heterogênea e fragmentada que não poderia ter
outra forma de comportamento que a da heterogeneidade (a expressão é de Cornejo Polar) e a fragmentação da
sociedade que a produz". (Tradução nossa)
15
latino-americanos, artistas que transformaram o panorama literário do continente. Sobre as
produções estéticas desses escritores, se debruçaram, ao longo do tempo, grandes pensadores
da crítica literária, na busca da especificação da América Latina.
Nas propostas sugeridas em relação a literatura desse continente, conjunto de países
inserido em um contexto singular, culturalmente heterogêneo, e de passado histórico marcado
pela colonização e intervenção de modelos estéticos estrangeiros, encontramos algumas
semelhanças.
Tanto os discursos de teóricos como Antonio Candido e Carlos Nelson Coutinho como
os de Angel Rama e Cornejo Polar, em essência, possuem pontos de convergências e mesmo
se complementam. O atraso, o subdesenvolvimento e as transformações do romance latino-
americano, desenvolvidos num cenário histórico de dependência cultural, em relação às
nações européias e aos países imperialistas, são preocupações comuns em seus textos. A
consciência do subdesenvolvimento contribuiu para a consciência de nossa heterogeneidade
cultural e, conseqüentemente, para a fragmentariedade de nossa representação literária,
configurada sob o signo do heterogêneo.
Autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manoel A. de Almeida, do Brasil,
José Maria Arguedas, do Peru, Jorge Luis Borges, da Argentina, dentre outros, são, por vezes,
mencionados nos textos desses teóricos. Além de esses autores terem em comum o fato de
fazerem parte do cânone literário em seus países, eles também representam uma categoria de
escritores que contribuíram para a elevação estética da produção literária latino-americana.
A busca pelo estatuto da nacionalidade pura, livre da influência dos modelos de
concepção estética europeus, com a ânsia por uma literatura verdadeiramente nacional, esteve
sempre entre as aspirações de intelectuais e escritores latino-americanos. Esse desejo por uma
literatura não contaminada pelas imposições externas, expresso pelos diferentes exotismos, às
vezes levava a atitudes ingênuas e contraditórias.
16
Machado de Assis, em meio ao quadro de insegurança cultural e de afirmação das
potencialidades de um país recém-saído do colonialismo, combatia a superficialidade
pitoresca e patriótica, elementos que são encontrados na concepção das obras do período
romântico. Machado (1873:32-33), em Instinto de nacionalidade, irá dizer que “O que se
deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”
Considerar que o espírito nacional se dava através da criação de obras que tratavam
apenas de temas nacionais ou de um localismo fechado em si mesmo era, para o autor
fluminense, um pensamento retrógrado e simplista, como as obras concebidas de acordo com
essa concepção.
Roberto Schwarz (1999:151), no ensaio A nota específica, assinala que
[...] os românticos haviam operado a fusão de colorido local e patriotismo
com sucesso avassalador. Convencido do lado convencional e
congratulatório desta combinação, em que o pitoresco tem algo de carta
marcada, a que responde o aplauso fácil dos compatriotas, Machado
aspirava a uma solução superior. Começara a busca de uma feição nacional
que não significasse confinamento temático e superficialidade artística.
Contra o confinamento temático e o nacionalismo exacerbado, foi também o escritor
Jorge Luis Borges, como mostra, no mesmo texto, Schwarz (1999:152), ao traçar um paralelo
entre as reflexões de Machado e as do autor Argentino:
[...] os nacionalistas simulam venerar as capacidades da mente argentina,
mas querem limitar-lhe o exercício poético a alguns pobres temas locais,
como se os argentinos só pudéssemos falar de subúrbios e de fazendas, não
do universo. [...] Creio que os argentinos e em geral os sul-americanos
estamos numa situação análoga [à de judeus e irlandeses]; podemos manejar
todos os temas europeus, manejá-los sem supertições, com uma irreverência
que pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas. (Citado por Schwarz)
17
A convergência de idéias de ambos os escritores em relação ao fazer literário se reflete
na concepção de suas obras. Estas inovam o plano dos recursos expressivos, aprimorando-os e
retirando, do meio social próprio, suas situações e contradições, material que servirá para a
universalização da arte produzida. A partir desses procedimentos, a literatura latino-americana
pode se tornar unidade dentro do patrimônio cultural universal.
Sobre essa unidade na diversidade, é importante mencionarmos aqui as considerações
feitas por Antonio Candido em Literatura e subdesenvolvimento (1989), em relação à
consciência dos escritores latino-americanos, que vão de encontro ao localismo e ao pitoresco
da fase denominada de “consciência amena de atraso”.
Neste período, havia, na literatura produzida na América Latina, um acentuado
destaque dos aspectos regionais. A utilização do exotismo era razão de otimismo social. Estes
procedimentos encobriam o atraso e a fragilidade das instituições latino-americanas.
A saída para este impasse começaria a partir do decênio de 1930, num período
intitulado de “consciência do subdesenvolvimento”, por intermédio do movimento
regionalista, que abandonava o pitoresco vazio e folclórico das visões que antes se fazia do
homem do campo.
A consciência da trágica realidade, conseqüência do quadro de atraso e
subdesenvolvimento, serve agora de impulso aos intelectuais latino-americanos que, neste
momento, modificam suas concepções em diferentes procedimentos: procuram rejeitar as
imposições político-econômicas disseminadas pelos países desenvolvidos; promovem uma
transformação das estruturas internas que concorriam para a manutenção da situação de
atraso; reconhecem nossa natural condição de dependência no que concerne aos mecanismos
de expressão artística; no lugar de se refugiarem no estéril discurso nacionalista de exotismo
alienante, buscam aceitar e absorver as influências externas e, a partir de uma reelaboração
original, contribuírem para o universo cultural e universal do qual fazem parte.
18
Nossa condição histórica de povo colonizado, com a ocorrência certas vezes de um
transplante não civilizado de culturas, ocasionaria, nos diz Candido (1989:151), uma “[...]
influência inevitável, sociologicamente vinculada à nossa dependência [...].” Nossos recursos
expressivo-formais não são originais e estes não foram nem poderiam ser questionados ou
renegados pelo nativismo:
[...] O simples fato de a questão nunca ter sido proposta revela que, nas
camadas profundas da elaboração criadora (as que envolvem a escolha dos
instrumentos expressivos), sempre reconhecemos como natural a nossa
inevitável influência. Aliás, vista assim ela deixa de o ser, para tornar-se
forma de participação e contribuição a um universo a que pertencemos, que
transborda as nações e os continentes, permitindo a reverssibilidade das
experiências e a circulação dos valores. (CANDIDO, 1989:152)
Esta “penetração” no discurso hegemônico do patrimônio cultural universal propõe
uma contribuição, de forma original, para o que Candido chama de “integração
transnacional”, participando, nós, latino-americanos, como variedade cultural, variedade
madura, sem remorsos ou traumas.
Esse processo de contribuição e participação num universo cultural, a partir do
reconhecimento de nossa natural dependência de paises colonizados e através do
aprimoramento dos recursos expressivos tomados de empréstimo das metrópoles européias,
passa pela manifestação de um discurso aberto às questões e contradições organicamente
vinculadas ao nosso meio social.
Nesta perspectiva, e tratando-se da fase denominada por Candido de “pré-consciência
do subdesenvolvimento”, percebe-se o abandono da “[...] amenidade e curiosidade,
pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no
cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico.” (CANDIDO,
1989:142)
19
Há uma paulatina evolução, desde o apelo regionalista de autores como Graciliano
Ramos, que em Vidas secas, através de um aprimoramento da linguagem formal, não por
sugestões meramente temáticas, irá influenciar o Neo-Realismo português, até Guimarães
Rosa, escritor que faz parte, segundo Candido (1989:161), de “uma florada novelística
marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus
contornos humanos se subvertem, levando seus traços antes pitorescos a se descarnarem e
adquirirem universalidade.”
Antonio Candido chama de supra-regionalismo essa nova forma de concepção
narrativa, que abandona a retórica exótica e pitoresca, aproveitando-se de elementos não-
realistas e de técnicas antinaturalistas.
Sob a luz do entendimento da concepção transcultural, Rama (1975:76) constata que,
no terreno da composição literária, com o recolhimento no manancial da cultura tradicional,
Guimarães Rosa consegue renovar o monólogo interior:
[...] em vez do fragmentário monólogo interior na linha do tream of
conciousness que salpicou imitativamente muita narrativa modernizada,
conseguiu-se reconstruir um gênero tão antigo quanto o monólogo
discursivo (Grande sertão: veredas), cujas fontes não estão apenas na
literatura clássica, mas também nas do narrar espontâneo.
Obras como as de Guimarães e Juan Rulfo, estão inseridas, ainda de acordo com
Candido, numa “universalidade da região”. Por seu intermédio, alguns escritores contribuem e
participam, através da dimensão regional, de um patrimônio cultural universal, sem os
equívocos praticados em nome de uma deturpada consciência de nacionalidade.
Embora se apresentem através da restrita temática regionalista, essas obras são
legitimadas por serem concebidas num contexto de subdesenvolvimento, correspondendo,
agora, à fase denominada por Candido de “consciência dilacerada do subdesenvolvimento”.
Neste momento, através dos elementos regionais, essas produções atualizam as condições
20
dramáticas particulares e, influenciadas pelo subdesenvolvimento, selecionam temas, assuntos
e elaboram a linguagem.
Na determinação da especificidade e autonomia de nossa literatura, os teóricos de
orientação sociológica e os da teoria cultural estudam a intricada problemática social, gerada
num meio pluricultural, rico em tradições, exposto às diferenças e configurada sobre um
processo de relações de classes antagônicas.
Os estudiosos de ambas as correntes teóricas entendem que a autonomia da
representação literária da América Latina deve vir não através da superficialidade de um
discurso nacionalista, fechado em si mesmo, mas por intermédio de uma reflexão consciente
sobre a inevitável dependência histórica e da capacidade de um “fecundamento” criativo
dessa dependência.
Acreditamos que Milton Hatoum, na obra objeto deste estudo, ao se afastar da estética
regionalista, embora não queiramos negar aqui a importância desta corrente literária, ao
abandonar floreios que poderiam tipificar a região amazônica, ao contemplar o conceito de
cultura “como complexo de identidades múltiplas” e ao propor uma reflexão sobre o
emblemático processo de negociações identitárias, indiciado nas relações sócio-culturais
representadas na obra, caminha nessa direção.
1.2 Imigração: transculturação e heterogeneidade cultural
Na obra romanesca publicada por Milton Hatoum a temática da imigração na
Amazônia é recorrente. Podemos contempla-la nos dois livros até então escritos pelo autor:
em R.C.O. (1989), seu livro de estréia, e em Dois irmãos (2000), sua obra mais recente.
21
Famílias de imigrantes libaneses empreendem uma trajetória na capital do Amazonas,
território constituído por uma malha variada de culturas.
A imigração, junto a outros aportes culturais (índios, negros, conquistadores
europeus), contribuiu para formação plural histórica da nação brasileira e das Américas como
um todo. O Brasil compartilha um passado colonial brutal e discriminatório, promovido pelas
conquistas européias no Novo Mundo e pelo processo de colonização iniciado no século XVI.
A partir da segunda metade desse século (XVI), os jesuítas, nas representações teatrais
realizadas nas tabas indígenas, impunham sua doutrina religiosa e a língua européia aos
autóctones brasileiros. "[...] na nova terra descoberta, o código lingüístico e o código religioso
se encontram intimamente ligados, graças à intransigência, à astúcia e à força dos brancos.
Pela mesma moeda, os índios perdem sua língua e seu sistema do sagrado e recebem em troca
o substituto europeu." (SANTIAGO, 1978:16)
4
Para os conquistadores, não havia espaço para o bilingüismo e a pluralidade religiosa
ou cultural. O sentido de unidade era o único que importava: "Um só Deus, um só Rei, uma só
Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua." (Ibidem, p.16)
No entanto, a noção de unidade é subvertida com o surgimento de uma nova
sociedade, a dos mestiços. Paulatinamente, a mesclagem cultural, as conseqüências advindas
desse fenômeno, comprometem os preconceitos propagados pela visão européia:
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental
vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes
dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado, perdem seu
peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o
trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e
mais eficaz. (SANTIAGO, 1978:18)
4
SANTIAGO, Silviano. O entre-ligar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São
Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
22
Silviano Santiago diz que o escritor latino-americano está em um espaço intervalar,
em um entre-lugar, entre a Europa e a América, entre a visão européia que folcloriza e exotiza
a América e as potencialidades do país que é por ele vivenciada. Deste choque, surge um
produto não puro, mas positivo de nacionalidade.
O processo de colonização europeu facilitou enorme contato heterogêneo de povos e
culturas diversas, repercutindo na conformação de nossa literatura. Em R.C.O., como já
salientamos, contemplamos a cidade de Manaus através de uma pluralidade cultural e
religiosa, formada pelas levas de correntes migratórias que desembarcam na região portuária.
Milton Hatoum evidencia a força simbólica da comunidade mulçumana na Amazônia, sua
expressividade cultural e dimensão religiosa.
Em reuniões sediadas na casa dos imigrantes libaneses aconteciam rituais religiosos
regados por “baforadas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão”. Hakim, filho
primogênito da matriarca da família de imigrantes, e que na obra é uma das vozes que relatam
confidencias à narradora-personagem, presenciava assustado a esses rituais que às vezes
varavam a noite:
Eu acordava com berros dilacerantes, gemidos terríveis, gemidos de trote e
uma algazarra de alimárias, que assistiam à agonia dos carneiros que
possuíam nomes e eram alimentados pelas mãos de Emilie. [...] através das
fretas dos janelões, via o sangue esguichar do pescoço do animal, cobrir-lhe
os olhos também abertos, penetrar-lhe nos pêlos alvos e cacheados. [...]
esperava-se o sangue escorrer até a última gota, para então cortar,
esquartejar e destrinchar o animal. Com as mão, Emilie arrancava-lhe as
víceras, arrumando sobre uma placa de cedro o que seria aproveitado [...]
5
Na narrativa romanesca em análise, Hakim e a matriarca Emilie, são seres que
transitam entre duas culturas. Hakim, nascido e criado em Manaus, aceita sua condição de
híbrido, procurando assimilar, ainda quando criança, elementos da identidade cultural dos pais
e de seu país. O descendente de libanês se sentia como se estivesse vivendo entre duas
5
R.C.O., p. 57
23
fronteiras, entre dois mundos diferentes, pois convivia com um idioma na escola e na cidade e
um outro no seio familiar.
Progressivamente, cria-se em Hakim o fascínio e o desejo de aprender a língua árabe,
que para ele representava um mistério. Ora nos rituais religiosos, praticados em casa na voz
grave e melodiosa do pai, ora na comunicação entre o casal libanês, a língua árabe estava
sempre presente, transportando Hakim para um outro universo, uma outra fronteira.
Ante a curiosidade e interesse do filho, que procurava depreender o significado das
palavras entoadas em árabe, Emilie decide ensinar a Hakim os segredos do “alifebata”, o
idioma árabe. Nos termos trazidos pelo enunciados podemos também perceber o que ocorre
no nível da enunciação romanesca, constituída de forma não linear, através da confluência
desordenada de relatos, rememorados e confidenciados à narradora personagem:
Ela ensinava sem qualquer método, ordem ou seqüência. Ao longo dessa
aprendizagem abalroada eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo
do "alifebata", até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras
lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em
cada objeto exposto nas vitrinas ou fisgado da penumbra dos quartos.
6
(grifo nosso)
O contato com a língua estrangeira se inicia através dos espaços mal-iluminados e
desabitados da casa, chamada de Parisiense, pois era, ao mesmo tempo, residência e
estabelecimento comercial. Hakim depreendia palavras disseminadas em aposentos, móveis,
objetos, fotografias e livros. Num jogo de sombra e luz, de fragmentação e transitoriedade,
sem ordem ou seqüência, através de palavras que metaforizam a desintegração e a diluição de
fronteiras culturais, a aprendizagem se tecia:
As primeiras lições foram passeios para desvendar os recantos desabitados
da Parisiense, os quartos e cubículos iluminados parcialmente por
clarabóias: o corpo morto da arquitetura. Sentia medo ao entrar naqueles
6
R.C.O., p.51
24
lugares, e não entendia por que o contato com aquele idioma inaugurava-se
com a visita a espaços recônditos.
7
(grifo nosso)
A matriarca libanesa, como Hakim, também empreendia sua travessia cultural. No
processo de adaptação ao novo espaço identitário, Emilie se esforçava na assimilação do
idioma português e nas barreiras a serem superadas entre o novo idioma e a língua árabe,
como novamente nos informa Hakim: "[...] os olhos saltando de uma bíblia à outra. "[...]
embora ela contraísse o rosto quando a travessia de um idioma ao outro soava estranha e
infiel, como se alguns salmos e parábolas esbarrassem em pedras, tornando-se prolixos ou
sem sentido."
8
A necessidade de aquisição e a aprendizagem de um novo código lingüistico,
manifestada por Hakim e Emilie, o primeiro para se comunicar com os pais de origem
estrangeira, penetrar no mundo deles e entendê-los na sua língua, e a segunda para adaptar-se
ao meio para o qual foi transplantada, os transformam em seres híbridos culturalmente,
elementos móveis que deslizam entre duas fronteiras culturais.
Os contatos interculturais trazidos pela representação romanesca em foco são
configurados e construídos sob a ótica de uma mobilidade cultural, de um constante trânsito e
transposição de fronteiras. R.C.O. se inscreve, assim, como um lugar de representação de um
espaço heterogêneo, fragmentado e culturalmente fronteiriço, como o espaço que se faz
presente no continente latino-americano.
Afastando-se da temática local, orquestrando o diálogo da cultura brasileira com
outras culturas, suas complexidades e conflitos, Milton Hatoum se aproxima de um cenário
mais universal, característica de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Juan
Rulfo, Garcia Marques, escritores que atuam como transculturadores da literatura latino-
americana.
7
R.C.O., p.51
8
R.C.O., p.56
25
A transculturação na literatura aponta para uma mobilidade e transformação cultural,
por intermédio dos entrecruzamentos que se fazem presente em solo americano, mobilidade e
transformação essas que não são contempladas pelo conceito denominado de aculturação.
O que ocorre no cenário latino-americano, formado ao longo de sua história por
processos de transplantes e migrações culturais, não pode ser indicado apenas como um
processo de aculturação, ou seja, a simples acumulação de uma cultura em detrimento de
outra.
O cubano Fernando Ortiz, em 1940, lança pela primeira vez o termo Transculturação
como forma de substituir, na terminologia sociológica, o vocábulo aculturação, palavra anglo-
americana que apenas indicaria o processo de adquirir uma cultura diversa. O vocábulo
transculturação, de acordo com Ortiz (1983:19), seria mais adequado na compreensão da
evolução histórico-social de Cuba, país formado por complexas e variadas transmutações de
culturas ao longo de sua história:
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor o
processo de transição de uma cultura para outra, por que esse processo não
consiste somente em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor, significa
o vocábulo anglo-saxão acculturation, porém o processo implica também,
necessariamente, na perda, no desenraizamento de uma cultura anterior, o
que se poderia chamar de desculturação parcial, e, além do mais, significa a
criação conseqüente de novos fenômenos culturais, que se poderiam
denominar de neo-culturação.
Sintetizando o pensamento de Ortiz, o vocábulo “transculturação” melhor ilustraria o
processo transitivo de uma cultura para outra, havendo “destruições”, “reafirmações’ e
“absorções” entre duas forças culturais em oposição. O termo “aculturação”, antes utilizado
para expressar esse processo, se mostra inadequado, pois indica apenas a mera acumulação de
determinada cultura por outra. Através da transculturação, há o surgimento de novos
fenômenos culturais, a denominada neo-culturação, mencionada por Ortiz.
26
Posteriormente, Angel Rama traz o conceito de transculturação para o âmbito da
criação literária. No texto Transculturação na narrativa latino-americana (1975), Rama
aborda inicialmente o conflito surgido na década de 30 entre o movimento narrativo
regionalista e as tendências vanguardistas, provenientes dos grandes conglomerados urbanos
da América Latina.
Estas correntes de vanguarda tinham por objetivo o cancelamento do regionalismo,
com o intuito de ampliar suas estruturas artísticas, influenciadas por modelos estéticos
europeus. O movimento regionalista, entretanto, incorporou novas articulações literárias, no
sentido de fortalecer a conservação dos valores locais, das tradições e dos elementos que
determinavam sua singularidade cultural.
A resistência dos regionalistas à aculturação, imposta pelas tendências estéticas de
influência estrangeira, se deu através do processo transcultural narrativo. A transculturação
propõe uma renovação de determinada tradição, havendo uma reflexão e reavaliação dos
valores locais próprios, reafirmações e absorções entre duas forças culturais em confronto. O
resultado desse processo é a criação ou surgimento de novos fenômenos culturais, indicadores
de uma mobilidade cultural.
Em R.C.O., essa mobilidade, que é indicadora da realidade latino-americana, é
indiciada através da constituição de vários elementos trazidos pela obra. Um deles se mostra
através da construção da personagem Emilie, possuidora de um caráter pluricultural e móvel.
No trajeto percorrido por Emilie, que antes de aportar em Manaus, sai do Líbano, passa pela
França e depois por Recife, a personagem se transforma, sua cultura se mistura a outras,
configurando-se, a personagem, num ser híbrido, rico e mutável. A matriarca, para se
comunicar, faz uso do idioma árabe, do francês e do português, conhece remédios e elementos
da tradição indígena.
27
Nas conversas com a empregada índia Anastácia, Emilie assimilara algumas crendices
e costumes da região amazônica. Hákim relata para a narradora-personagem que sua mãe
havia plantado no jardim plantas milagrosas, como as trepadeiras, descritas por Anastácia
como capazes de espantar a inveja, e as folhas malhadas de um tajá, que reproduziria a
fortuna de um homem:
No jardim tu ainda encontras os tajás e as trepadeiras separadas das plantas
ornamentais. Emilie plantou as mudas naquele tempo e, aconselhada por
Anastácia, preparou um adubo com esterco de galinha e carvão em pó para
ser misturada à terra, de sete em sete dias durante sete meses.
9
A libanesa, embora seja católica praticante, sabe respeitar os ritos da tradição
mulçumana, religião professada por seu marido. Em sua casa há oratórios, estátuas de santos e
também símbolos da religião maometana, como “[...] os quatro anjos da glorificação e as
vinte e oito casas lunares onde habitam o alfabeto e o homem na sua plenitude.”
10
A personagem híbrida Emilie também pode ser interpretada como uma representação
literário-simbólica dos intercâmbios e entrecruzamentos culturais que se presentificam na
conformação histórica do conjunto de países que formam a América Latina.
É importante assinalarmos que à singularidade e às especificidades artísticas e
culturais desse continente, deve corresponder e adequar-se os métodos de análise literária
utilizados. Este pensamento é externado por Cornejo Polar (2000), no ensaio O indigenismo e
as literaturas heterogêneas: seu duplo estatuto sociocultural. Esta idéia surge como proposta
crucial para o desenvolvimento dos métodos de análise que se propõem a estudar o discurso
latino-americano.
Tal constatação advém da necessidade de uma auto-interpretação de nossa cultura. O
caminho para chegar a este objetivo é aquele que, de acordo com Cornejo (2000:157), se
9
R.C.O., p.91
10
R.C.O., p.48
28
ajusta ao "tratamento crítico das literaturas sujeitas a um duplo estatuto sociocultural" ou seja,
as literaturas heterogêneas.
Se a homogeneidade literária se diferencia da heterogeneidade por apresentar todas as
categorias inseridas no seu processo de produção dentro de uma idêntica ordem sóciocultural,
o que caracteriza as literaturas heterogêneas é a presença de, no mínimo, um elemento
sóciocultural divergente dos demais, que se estabelece em determinado cenário cultural.
Constatar-se-ia uma "duplicidade ou pluralidade de signos socioculturais", da qual resultaria
uma zona de tensão entre as conformações postas em contato:
As literaturas heterogêneas [...] se caracterizariam pela duplicidade ou
pluralidade dos signos socioculturais do seu processo produtivo: trata-se,
em síntese, de um processo que tem pelo menos um elemento não
coincidente com a filiação dos outros, e que cria necessariamente uma zona
de ambigüidade e conflito. (CORNEJO, 2000:162)
As crônicas do Novo Mundo, segundo Cornejo, proporcionam um exemplo ímpar de
como se dá o processo de heterogeneidade na literatura. Nelas, o sistema de produção
artística, seu texto e o consumo irão diferir sobremaneira do referente que se deseja transmitir.
O cronista se depararia com a necessidade de refletir fielmente a realidade diante de si e ao
mesmo tempo teria que fazer com que seu trabalho se tornasse compreensível dentro de seu
universo cultural.
Esse conflituoso contraste de forças socioculturalmente divergentes, apresentado pela
forma cronística, marcaria, segundo Mariátegui, citado por Cornejo, o começo das "literaturas
organicamente nacionais".
A heterogeneidade presente na crônica gera uma acentuada desigualdade entre seu
meio de produção e consumo e o referente latino-americano. Esse problema apontaria para o
fato de o referente ainda não ser capaz de articular seus próprios modos de produção.
29
Se por um lado, as crônicas representam para as literaturas heterogêneas o processo de
dominação do referente por fatores externos, por outro podem mostrar a possibilidade de o
mesmo referente agir sobre a ordem formal destas. Cornejo salienta que ambos os processos
são verificados na literatura produzida na América Latina e a forma artística assim se
revelaria em um elemento bastante valioso na compreensão crítica das literaturas
pluriculturais.
Em algumas crônicas heterodoxas de cronistas índios e de mestiços ocorreriam,
"desvios formais", que indicariam uma supremacia do referente sobre os meios de produção
cronísticos, a sua forma. Cornejo nos mostra o exemplo dos desenhos de Guamán Poma de
Ayala, que subvertem a estrutura cronística e interpretam mais fielmente a realidade andina
do que a "Nueva Crônica", escrita em espanhol rudimentar.
Assim, adverte-se que a forma das crônicas não é uma categoria neutra,
mas, ao contrário, fator diretamente comprometido no curso e significação
das literaturas heterogêneas. (CORNEJO, 2000:166)
O comprometimento da forma com a heterogeneidade cultural, a indissociação entre
forma e conteúdo, enunciado e enunciação, são processos que, por intermédio da reelaboração
dos elementos de construção estética, ao lado das operações transculturais, participam da
conformação do romance R.C.O.
Esses mecanismos são verificados nas obras de grandes escritores da América Latina,
concorrendo para que a produção literária de nosso continente se distancie cada vez mais de
um discurso alienante e não comprometido com as reais contradições de sua sociedade.
A reelaboração original dos recursos de expressão artísticas e a articulação entre
objeto estético e a realidade latino-americana proporciona, de acordo com Candido
(1989:208), no ensaio A nova narrativa, o trânsito do “[...] particular, como justificativa e
30
como identificação”, uma das “obsessões constitutivas de nossa ficção [...]”, a valores
universais.
A postura alienada de intelectuais brasileiros e escritores na passagem do século XIX
para o século XX, descrita por Antonio Candido em Literatura e subdesenvolvimento, se
mostrava estreitamente ligada à não articulação entre elite intelectual e as condições
específicas da sociedade de então, com suas contradições internas.
Diante da incultura quase geral da sociedade, esses intelectuais se refugiavam num
discurso alienante, representado pela cópia aos padrões metropolitanos e europeus,
desvinculados das verdadeiras contradições de seu meio. Lamentando as condições de atraso,
penúria cultural e ignorância do povo, não se achavam enquadrados no contexto de
subdesenvolvimento, nem achavam que esse contexto interferisse na qualidade de suas obras.
No entanto,
[...] a incultura geral produzia e produz uma debilidade muito mais
penetrante, que interfere em toda cultura e na própria qualidade das obras.
[...] pela falta de pontos locais de referência, podiam não passar de
exercícios de mera alienação cultural, não justificada pela excelência da
realização. [...] O requinte dos decadentes e nefelibatas ficou provinciano,
mostrando a perspectiva errada predominar quando a elite, sem bases num
povo inculto, não tem meios de encarar criticamente a si mesma e supõe
que a distância relativa que os separa traduz para si uma posição de altitude
absoluta. (CANDIDO, 1989:148-149)
Dessa forma, embora o objeto literário não se obrigue a ser cópia fiel de dada
realidade, sob pena de empobrecimento estético e aviltamento da própria essência do literário,
que passa pela liberdade e imaginação do escritor na construção de um mundo próprio, não se
pode, por outro lado, considerar que a representação estética não sofra determinações da
realidade exterior.
Magalhães (1999:182) salienta que “As condições de produção artísticas são parte das
condições de produção na sociedade e estão relacionadas a elas; o fazer estético é parte do
31
fazer social, isto é, a forma por excelência encontrada pela humanidade para refletir sobre as
possibilidades de elevação da sociabilidade a patamares superiores.”
Ao abordar a questão da relação de classes entre culturas em oposição, entre nativos
amazonenses e imigrantes libaneses, formalizando esse processo na concepção estética do
romance, Milton Hatoum faz sua obra transitar, como já assinalamos, para campos mais
universais, articulando sua literatura com as verdadeiras contradições que se mostram
presentes na sociedade.
32
FUNCIONALIDADE DO SISTEMA DE RELAÇÕES DE CLASSES E
INTERVENÇÃO SOBRE AS RELAÇÕES CULTURAIS
2.1 Articulação com a sociedade e gênese de construção
Lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte não decorre apenas da
posse de riquezas.
- Aqui reina uma forma estranha de escravidão – opinava Dorner – A
humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à
família do senhor são as correntes e golilhas (R.C.O, 1989:88)
Em R.C.O., Milton Hatoum concebe um universo em que diferentes culturas
coexistem e tentam se adaptar a um novo território, o território da diversidade. Manaus abriga
uma pluralidade de correntes migratórias em constante tensão. A obra traz consigo a reflexão
sobre as conseqüências da estrutura de classes num contexto desleal de subdesenvolvimento
econômico.
Observamos que por trás do cenário de confluência e coexistência cultural se
configura um cenário de opressão e desigualdade, no qual se define a conformação de dois
núcleos determinantes: explorador e explorado. O romance não se restringe apenas em
mostrar um processo de interconexão cultural entre duas culturas tão díspares, como o são a
brasileira e a árabe. Milton Hatoum procura revelar mais a fundo a complexidade das relações
sociais trazidas em um contexto de subdesenvolvimento econômico e em que o processo de
negociações identitárias, segundo estudiosos como Stuart Hall (2002), se encontra em crise,
transformando o ser social e as estruturas criadas pela sociedade ao longo da história da
humanidade.
33
Em R.C.O., como já assinalamos, Milton Hatoum se afasta de uma perspectiva
meramente regionalista e exotizada sobre a região amazônica e, utilizando-se da liberdade de
criação artística, consciente ou inconscientemente, parte de uma abordagem do particular, o
contato de culturas num cenário regional, para a reflexão de problemas universais.
Num estudo em que discute as relações entre cultura e sociedade no Brasil, Carlos
Nelson Coutinho (1990) analisa o vínculo histórico e estrutural mantido entre a cultura
brasileira e a cultura universal, representado quase sempre pela cópia ou modelo, no intuito de
uma integração ou incorporação à cultura ocidental. O processo de modernização econômico-
social brasileiro, nos diz Coutinho, se deu através de conciliações entre classes que
dominavam economicamente o país, por intermédio de políticas reformistas, excluindo-se a
participação das camadas sociais de “baixo”. O objetivo era manter essas camadas sociais
excluídas e marginalizadas do centro das importantes decisões.
[...] as transformações ocorridas em nossa história não resultaram de
autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima,
envolvendo o conjunto da população, mas se processaram sempre através de
uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores
economicamente dominantes, conciliação que se expressa sob a figura
política de reformas “pelo alto”. (COUTINHO, 1990:42-43)
Machado de Assis, no ensaio Instinto de nacionalidade, de acordo com Coutinho, foi o
pioneiro em explicitamente indicar a determinação básica da tendência artística denominada
de nacional-popular. Esta corrente tem por finalidade quebrar o distanciamento entre o
intelectual e o povo, comportamento expresso por correntes elitistas, as quais manifestam uma
espécie de cultura “ornamental”, alienada dos reais problemas da sociedade.
Não se trata de opor a cultura nacional às influências da cultura estrangeira, em
particular a européia, mas filtrar do patrimônio cultural universal os elementos organicamente
vinculados à nossa própria cultura. Sobre esta, e do papel exercido pela tendência nacional-
popular, Coutinho (1990:51) faz a seguinte observação:
34
[...] A cultura brasileira vincula-se organicamente – tanto em sua face
reacionária quanto em sua face democrática e progressista – ao patrimônio
cultural universal, que lhe serviu e lhe serve de inspiração e alimento
permanente. Assim, o nacional popular é essencialmente um modo de
articulação entre os intelectuais e o povo (que faz desses intelectuais – na
expressão de Gramsci, “intelectuais orgânicos” das correntes populares), ele
não pode ser entendido, no que se refere às suas figuras concretas e ao seu
conteúdo, como algo oposto ao universal, como a simples afirmação de
nossas pretensas raízes culturais “autônomas” contra a penetração do
“cosmopolitismo alienado”, etc.
Não se alienando dos reais problemas trazidos pelo cenário de subdesenvolvimento
econômico e social que atinge a sociedade brasileira, e a latino-americana como um todo,
Milton Hatoum focaliza, em R.C.O., a complexidade das relações sociais resultantes dos
processos de interconexão cultural.
O sistema de relações humanas que se inscreve nas páginas do romance em foco
obtém uma funcionalidade na estrutura do livro, determinando o andamento da narrativa e a
própria concepção formal da obra. Esta é formada sob o signo da fragmentação, como que por
colagens de várias narrativas, indiciando a incapacidade de apreensão da totalidade do real de
uma narradora-personagem em busca da própria identidade.
No retorno à Manaus, após uma ausência que passa pelo internamento numa clínica
para tratamento psiquiátrico, a narradora-personagem colhe testemunhos e registros de
pessoas que conviveram junto à família de imigrantes que a adotara. A composição narrativa é
formada pelas informações de Hindié Conceição, amiga e confidente de Emilie, as
declarações de Dorner, o fotógrafo alemão, as conversas com a tia, Samara Delia, os cadernos
de anotações do patriarca libanês, marido de Emilie, e os relatos de tio Hakim. Essas
passagens são relatadas através de cartas, enviadas a um irmão, que se encontra na Europa.
A composição fragmentária textual é uma característica do estilo concebido como pós-
modernista, na arte literária. Proença Filho (1988:43) assinala que, “Ao universo
35
multifragmentado do mundo contemporâneo, corresponde também, em certa medida, uma
literatura em que se presentifica mais fortemente o fragmentarismo textual.”
O espírito do fragmento, do qual se investe a estruturação da obra e, como veremos
posteriormente, a própria concepção das personagens, é representado no recorte abaixo, em
que, durante sua permanência na clinica para tratamento psicológico, a personagem-narradora
questiona sua própria escrita, fornecendo também as coordenadas estruturais seguidas pela
composição romanesca:
[...] escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela ou fábula, apenas
palavras e frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária. [...]
Pensei em te enviar uma cópia, mas sem saber por que rasguei o original, e
fiz do papel picado uma colagem; [...] O desenho acabado não representa
nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um
rosto informe. Sim, um rosto informe e estilhaçado [...]
11
Não se pretende aqui apenas constatar, no nível superficial da tessitura narrativa,
traços da realidade trazidos na concepção da obra de Milton Hatoum. A literatura não se
obriga a representar fielmente o real. O valor e significado de uma obra não dependem de ela
expressar ou não traços da realidade. O objeto estético cria um mundo próprio e, embora o
escritor sempre parta do real, tem a liberdade artística para a concepção do universo ficcional.
Importa examinar a funcionalidade adquirida pelos traços da realidade no interior da
narrativa, como esta é regida e formada, através de uma articulação coerente com a sociedade,
a ponto de se tornar verossímil ao receptor do discurso. De acordo com Antonio Candido
(1993:10-11), em O discurso e a cidade,
[...] uma das ambições do crítico é mostrar como o recado do escritor se
constrói a partir do mundo, mas gera um mundo novo, cujas leis fazem
sentir melhor a realidade originária [...] O alvo é analisar o comportamento
ou o modo de ser que se manifestam dentro do texto, porque, foram criados
a partir dos dados da realidade exterior. [...] a capacidade que os textos
11
RCO, p.163
36
possuem de convencer dependem muito mais da sua organização própria
que da referência ao mundo exterior, pois este só ganha vida na obra
literária se for devidamente reordenado pela fatura.
De acordo com este pensamento, o objeto estético provoca a impressão de verdade, é
literariamente convincente ou literariamente eficaz, em decorrência da articulação coerente
realizada pelo escritor. Esta articulação independe de como o objeto estético está ancorado em
dada realidade histórica.
Corroborando com este argumento, Magalhães (1999:183) salienta que “A essência da
arte será obtida [...] pela organização artística do mundo, que será realizada a partir do
movimento que carrega todas as tenções e contrastes. Os elementos indispensáveis à
concepção e ao momento histórico fixado estão em recíprocas relações com as condições
histórico-sociais do gênero e com as artístico-pessoais.”
2.2 O espaço do caos e da fragmentação
O romance R.C.O. traz certas dimensões sociais na camada superficial de sua tessitura
narrativa, como o choque cultural mantido entre culturas diferentes, num espaço para onde
converge múltiplas representações identitárias, e a referência ao espaço amazonense,
apresentado como um mundo caótico e subdesenvolvido em que a pobreza e a miséria
imperam, e onde são configurados os limites entre espoliados e espoliadores.
Após uma ausência de anos, que passa pelo confinamento em uma clínica de
tratamento psicológico, a narradora, sem nome na obra, retorna a Manaus e mune-se de um
caderno-diário, um gravador, cartas e depoimentos de pessoas conhecidas, para confidenciar
as impressões de seu regresso ao irmão que se encontra na Europa.
37
Sob a ótica dessa personagem, a cidade de Manaus é vista como um espaço da
desordem e do caos. A capital do Amazonas é um mundo que se confunde com a solidão e o
desconcerto mental de um indivíduo em busca da reconstrução do passado e da própria
identidade, elementos perdidos no desencontro com uma mãe desconhecida e na convivência
turbulenta entre a família de imigrantes que a adotara:
Da janela do quarto via o emaranhado de torres cinzentas que sumiam e
reapareciam, pensando que lá também (onde a multidão se espreme em
apartamentos ou em moradias construídas com tábuas e pedaços de cartão)
era o outro lugar da solidão e da loucura. [...] mundo da desordem, ofuscado
pela atmosfera suja do movimento vertiginoso da cidade que se expande a
cada minuto [...]
12
.
No regresso à cidade da infância, a narradora perambula por uma Manaus de geografia
desordenada e incerta, tentando também exorcizar as impressões enraizadas de um mundo
perigoso e desconhecido, lugar que lhe fora vedado quando criança, no convívio com a
família de imigrantes:
[...] não havia ruas paralelas, o traçado era uma geometria confusa, e o rio,
sempre o rio, era o ponto de referência, era a praça e a torre da igreja que ali
inexistiam. Passei toda a manhã naquele mundo desconhecido, a cidade
proibida na nossa infância [...] Crescendo e ouvindo histórias macabras e
sórdidas daquele bairro infanticida, povoado de seres de outro mundo, o
triste hospício que abriga os monstros, Foi preciso distanciar-me de tudo e
de todos para exorcizar essas quimeras, atravessar a ponte e alcançar o
espaço que nos era vedado
13
Neste espaço impreciso, a narradora descreve as condições de vida de uma cidade
atingida pelo descaso e pelo subdesenvolvimento econômico, subproduto de um regime
capitalista e desumano, em que os indivíduos, em precárias habitações, são obrigados a
sobreviver:
12
R.C.O., p. 160-162
13
R.C.O., p. 123
38
[...] lodo e água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco-
íris e recortadas por rasgos verticais e horizontais, que nos permitem
observar os recintos: enxames de crianças nuas e sujas, agachadas sob um
céu sinuoso de redes coloridas, onde entre nuvens de moscas as mulheres
amamentavam os filhos ou abanavam a brasa do carvão, e sempre o odor
das frituras, do peixe, do alimento fisgado à beira da casa.
Como nos informa a narradora, a miséria e o desespero levam os desfavorecidos da
região a encontrar suporte na religião, na providência divina que tudo consola e conserta. A
religião se torna um meio passivo de fuga da realidade para os indivíduos: “[...] estes
molambos escondidos do mundo, destinados a sofrer entre santos e oráculos, testemunhas de
uma agonia surda que não ameaça nada, nem ninguém: a miséria que é só espera, o triunfo da
passividade e do desespero mudo.”
14
A cidade de Manaus é também o lugar das partidas e chegadas, da miséria e da
ascensão econômica, dos sonhos realizados e das decepções. Tudo ostenta marcas de
provisoriedade numa cidade que se expande num movimento caótico, gerido pelas marcas do
subdesenvolvimento urbano e social.
Como espaço ficcional, a cidade fragmentária de Manaus é apresentada como um caos
urbano em metamorfose, a realidade é transfigurada através de coisas indistintas e intangíveis.
O espaço é contaminado por uma atmosfera inquietante e caótica, que traz em seu bojo
imagens disformes e absurdas. Ao percorrer um bairro de Manaus a narradora se depara com
uma cena que metaforiza a configuração desordenada e caótica da cidade portuária:
O homem surgiu não sei de onde. Ao observa-lo de longe, tinha a aparência
de um fauno. Era algo tão estranho naquele mar de mormaço que decidi dar
alguns passos em sua direção. Nos braços esticados horizontalmente, no
pescoço e no tórax enroscava-se uma jibóia; em cada ombro uma arara, e no
resto do corpo, atazanados com a presença da cobra, pululavam cachos de
sagüis atados por cordas enlaçadas nos punhos, nos tornozelos e pescoço do
homem. Quando ele deu o primeiro passo, parecia que o arbusto ia
desfolhar-se: os símios multiplicaram os saltos, a jibóia passou a ondular
nos braços, e as araras abriam e fechavam as asas.
15
14
RCO, p. 134
15
RCO, p. 125-126
39
A multidão, espectador agressivo, que lança gargalhadas, blasfêmias e monturos
contra a figura estranha, que ainda se mantinha firme, passa ela própria por uma
transformação que a equipara a figura absurda, ganhado, a partir de agora, o foco das lentes de
turistas curiosos que transitavam pelo local:
[...] as lentes das câmeras volteavam, faziam piruetas, ciclopes circulando
reluzentes, por que agora a multidão era quase tão estranha quanto o arbusto
humano; de contemplado passara a perseguido, e depois, agredido,
castigado, a ponto de me amedrontar, não o homem, os animais, os saltos e
serpenteios, mas a multidão insana, inflamada de ódio, sob o sol.
16
O espírito de fragmentação e desordem apresentado no lócus ficcional e nos elementos
constitutivos da narrativa de R.C.O. nos lembra a concepção das obras do autor alemão Kafka,
que através do processo de construção estética fragmentário procurava descrever a
irracionalidade e o absurdo das ações humanas.
Para Candido (1993:105), o uso do fragmento, por Kafka, equivalia a uma visão da
natureza humana e de sua debilidade. O “absurdo [nas obras de Kafka] seria então um modo
de penetrar na falta de sentido da vida, da ação, do projeto humano.” Em R.C.O., o espírito da
fragmentação é tributário da perversão das relações humanas contidas na obra, que funciona
como regra estruturante da narrativa e de seus elementos.
A cidade flutuante é o espaço destinado às transações comerciais e à indústria, com
suas ruas de pensões baratas, “[...] os grandes armazéns, a visão dos mastros, das quilhas e das
altas chaminés, o apito grave do Hildebrand, que trazia passageiros de Liverpool, Leixões e
das ilhas da Madeira [...]”
17
.
Dentro desse cosmo comercial, se instala o microcosmo comercial do espaço familiar
libanês, lócus que apresenta no romance uma dupla função. Denominada de parisiense, a casa
libanesa é, ao mesmo tempo, habitação familiar e estabelecimento comercial.
16
RCO, p. 127-128
17
RCO, p. 62
40
Carregando esse estatuto de ambigüidade, a casa, tal como o espaço amazonense,
converge e participa do estatuto da fragmentação apresentado pela concepção estética da obra.
A descrição do espaço familiar é informada à narradora pelo descendente de libanês Hakim
que, descrevendo a habitação, revela novamente a atmosfera de contrastes entre luz e sobra,
que envolve o ambiente estilhaçado:
[...] a luminosidade embaçada envolvendo os enormes cubos de cristal e os
mesmos objetos (tecidos, leques, frascos de perfume) arrumados nas
prateleiras: um ambiente que te faz recordar fragmentos de imagens que
surgem e se dissipam quase ao mesmo tempo, numa tarde desfeita em
pedaços [...]
18
Nesse espaço fragmentário, as coisas, e as pessoas, passam a ter valor de mercadoria.
Valores humanos passam a ser deformados mediante as relações de poder e opressão para
com os desfavorecidos economicamente. À duplicidade e fragmentação do espaço ficcional,
como veremos posteriormente, é correlativa a fragmentação das personagens, as quais trazem
consigo o signo da contradição e ambigüidade.
O estatuto da fragmentação, determinado pelo brutal sistema de relações humanas
apresentado entre imigrantes e nativos da região amazonense, reflete sobre os contatos e
entrecruzamentos culturais que se dão num território subdesenvolvido e fragmentário, como o
que se faz presente na América Latina.
A reflexão por meio da elaboração estética dos problemas desse território, une o autor
amazonense à categoria de escritores que refletiram em suas obras sobre as condições de
atraso e subdesenvolvimento do Novo Mundo. A consciência do subdesenvolvimento
contribuiu para a consciência de nossa heterogeneidade cultural e, conseqüentemente, para a
fragmentariedade de nossa representação literária, configurada sob o signo do heterogêneo.
18
RCO, p. 115
41
2.3 Um princípio estrutural
2.3.1 Um espaço familiar autodestrutivo: transgressões
O complexo processo de negociações identitárias estabelecido na modernidade, que
leva Hall (2002:08) a afirmar que “[...] as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” é uma questão posta em discussão em R.C.O.. Na obra, a
abordagem desses conflitos, resultantes do entrecruzamento de diferentes aportes culturais,
configura-se através de uma conformação de classes.
Esse sistema de relações humanas incrusta-se na tessitura narrativa, orquestrando-a e
funcionando como elemento estruturante desta. No romance, este processo também representa
a subversão, no terreno cultural representado, do intercâmbio entre os elementos heterogêneos
postos em relação. No dizer de Candido, como já tivemos a oportunidade de citar
anteriormente, há uma formalização ou redução estrutural dos dados externos. O escritor
dissolve as informações colhidas em seu meio social e as incorpora na dinâmica narrativa.
Roncari (1995:555) explicita esse processo numa análise realizada sobre a obra
Memórias de um sargento de Milícias. Tecendo considerações à obra de Manuel Antônio de
Almeida, Roncari focaliza o sincretismo cultural, a mistura de tradições e raças do Brasil “no
tempo do rei”, um mundo impuro, que “[...] reúne práticas e crenças de origens muito
diversas: de fontes cristãs européias, da cultura popular portuguesa, das culturas negras e
índias.” O contato de culturas diversas e os produtos resultantes desses entrecruzamentos
fazem parte do princípio compositivo do romance, que tende a mostrar o traço característico
da sociedade brasileira, sociedade de formação social híbrida, com a interconexão de várias
42
raças e tradições, desvinculada da visão cristalizada e exótica, propagada pelos escritores
românticos, influenciados por elementos e costumes europeus.
Os dados da realidade são dissolvidos nas ações, devendo ser analisados como
elementos de composição, não parecendo que o autor esteja meramente nos informando certos
aspectos da sociedade retratada. Isto faz com que a obra nos comunique a impressão de
verdade.
Um dos princípios estruturais que organiza o plano narrativo de R.C.O pode ser
vislumbrado num ritmo cíclico de fechamentos e aberturas do grupo familiar libanês. Este
somente poderia ser profanado e aberto por intermédio de atos transgressivos, os quais
afetavam os padrões morais e abalavam a unidade da família. Aberto momentaneamente pelas
transgressões, o universo familiar se fechava novamente.
A função dos atos transgressores em R.C.O., referenciada a partir do sistema de
relações de classes incrustado na obra, representa um processo paulatino de corrosão da
unidade familiar árabe. Embora as transgressões fossem acolhidas no interior do grupo
libanês, que se fechava novamente em nome do conservadorismo e da preservação de seus
membros, representavam um poder destruidor, impossibilitando mudanças ou recomeços.
A aniquilação da unidade familiar é determinada no momento da destruição da
matriarca Emilie. A matriarca, uma das figuras centrais no romance, é apresentada como um
pilar fundamental do núcleo árabe, espaço fechado em suas tradições e preceitos morais.
Hakim, o filho mais velho, rememorando fatos para a narradora-personagem, salienta: "Todos
os nossos fracassos e as nossas fraquezas, quando não podiam ser evitados ou premeditados,
ficavam restritos ao espaço fechado da Parisiense ou da casa nova."
19
Emilie exerce uma força de atração sobre os que estão próximo de si, “Ninguém podia
viver longe de Emilie, nem refutar suas manias.”
20
Entretanto, no desenvolvimento da trama
19
R.C.O., p.83.
20
R.C.O, p. 21
43
romanesca, da matriarca libanesa e do lar quase todos se afastam. O pervertido sistema de
relações humanas que concorre para a destruição do núcleo árabe vai aos poucos afastando
seus membros para longe de Emilie, fragmentando a família libanesa.
Ao final da obra, a matriarca morre solitária, angustiada e quase louca. Seu processo
de aniquilamento tem início a partir da descoberta da gravidez da filha, Samara Delia, com
um desconhecido de Manaus.
A transgressão da filha, ao contaminar o lócus familiar através da junção carnal com
um provável amazonense, com o Outro cultural, desencadeia uma série de conseqüências,
intensificadas por um sistema brutal de relações de classes. A gravidez provoca o
confinamento, por cinco meses, de Samara Délia em seu quarto. É também o momento em
que se inicia a busca furiosa de seus dois irmãos caçulas pela identidade do usurpador da
honra da irmã e da família:
Eles vasculharam todos os lupanares do centro da cidade, indo de porta em
porta, mostrando a fotografia de Samara às velhas cafetinas que mantinham
bordéis no baixo meretrício, querendo saber se conheciam a novata, a
tresloucada, a irmã erradia que tinha escapulido da casa paterna, [...] Muitas
vezes saiam à noitinha e só voltavam na manhã do dia seguinte, e entravam
no sobrado trançando as pernas, gritando com Emilie e com a empregada,
esquadrinhado o quarto de Samara Delia, pensando encontrar algum
vestígio de uma noite suspeita.
21
No romance, se a não nominalização dos dois irmãos caçulas prefigura os atos
violentos e as transgressões que exercerão no interior da narrativa, ao não conferir nome à
narradora-personagem, o autor indicia a construção de um ser em busca de sua identidade,
identidade fragmentada e atormentada, que de mostra incapaz de apreender e resgatar o
conturbado passado vivido no ambiente árabe.
21
R.C.O, p. 114-115
44
É preciso recorrer a outras vozes, como a de Hakim, seu tio, a de seu avô, o
comerciante árabe e marido de Emilie, a do fotógrafo alemão, Dorner, de pessoas que, como a
narradora, participaram da turbulenta trajetória dos imigrantes em Manaus e testemunharam
sua destruição.
A confluência de vozes, que quebra a centralidade narrativa da narradora, serve de
instrumento para que a ex-menina adotiva possa resgatar o passado vivido no espaço familiar,
um espaço autodestrutivo e marcado pela opressão e degradação de nativos amazonenses que
dele se aproximavam.
2.3.2 A relação com o Outro cultural
O quarto era o lugar privilegiado da solidão. [...] Retalhei um lençol
esfarrapado para fazer alguns lenços, onde bordei as iniciais dos nomes e
apelidos, e teci formas abstratas nos pedaços de pano que desejava
presentear às que não tinham nome ou não eram conhecidas através dos
nomes: pessoas que nunca me olhavam, nunca se olhavam: corpos sem fala,
excluídos do diálogo [...] (R.C.O, p.162-163)
Milton Hatoum também aborda, no choque de culturas entre libaneses e amazonenses,
o problema da não aceitação do Outro cultural. De acordo com Graciela Ortiz (1999:130), "O
pensamento hegemônico do Ocidente se enraiza numa raiz única: a da identidade e a do
Mesmo, que vê o Outro como aquilo que é diferente e por isso mesmo perigoso, Outro que
tem que ser assimilado à transparência tranqüilizadora da generalização ou bem ser
suprimido”
.
Hakim, lamentava o tratamento degradante destinado aos subalternos. No entanto,
apesar de questionar esse sistema de relações, é uma personagem que não se contrapõe ao
sistema, se mostrando incapaz de mudar a situação:
45
Eu presenciava tudo calado, moído de dor na consciência, ao perceber que
os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas
edículas ao lado do galinheiro, nas horas da refeição. A humilhação os
transtornava até quando levavam a colher de latão à boca.
22
Os dois irmãos caçulas de Hakim, embora tivessem perseguido a irmã, em razão da
transgressão cometida, eles próprios podiam “desonrar” o lócus familiar, ao se envolverem
com as mulheres da região. Esse envolvimento não é concebido por amor ou sentimento de
alteridade. É movido pelo desejo de devassidão e luxúria e, principalmente, pelo poder sobre
o outro, considerado inferior.
[...] meus irmãos abusavam como podiam das empregadas, que às vezes
entravam num dia e saíam no outro, marcadas pela violência física e moral.
A única que durou foi Anastácia, porque suportava tudo e fisicamente era
pouco atraente. Quantas vezes ela ouvia, resignada, as agressões de uns e de
outros, só pelo fato de reclamar, entre murmúrios, que não tinha paciência
para preparar o café da manhã cada vez que alguém acordava, já no meio do
dia. Vozes ríspidas, injúrias e bofetadas também participavam deste teatro
cruel no interior do sobrado.
23
Obedecendo ao ritmo cíclico de fechamentos e aberturas do núcleo árabe, esses atos
transgressores penetravam o espaço libanês, que logo se vedava novamente, sobretudo por
intermédio do acobertamento da mãe, que ocultava e impedia a punição de seus filhos.
Algumas caboclas apareciam grávidas, sendo posteriormente rechaçadas violentamente pelos
filhos da matriarca, e também por esta, que protegia os filhos auferindo toda culpa às nativas,
consideradas maliciosas e famintas.
Em retaliação ao marido, numa discussão em que este se indignava com o
comportamento dos filhos e a conivência da mãe, Emilie responde: "[...] Tu achas que as
22
R..C..O., p. 86
23
R..C..O., p. 85-86
46
caboclas olham para o céu e pensam em Deus? São umas sirigaitas, umas espevitadas que se
esfregam no mato com qualquer um e correm aqui para mendigar leite e uns trocados.
24
"
Emilie, na condição de transplantada para um território estranho, manifesta um
movimento antípoda dentro da narrativa. À assimilação dos hábitos e costumes do novo
território, contrapõe-se a recusa do “Outro cultural”. A ambigüidade de Emilie é manifestada
no interior da narrativa a partir de ações contraditórias. A matriarca era capaz de realizar atos
de filantropia, distribuindo alimentos aos moradores de Manaus durante muitos anos, no dia
do aniversário da morte de um de seus irmãos, Emir:
Ao voltar da Matriz e do porto, lá pelo meio dia, uma fila indiana,
que ia da porta do sobrado e terminava quase dentro do coreto da praça,
esperava-a sob o sol escaldante. A cada ano que passava, os curumins e
mendigos engrossavam essa fila, e os doentes que lhe mostravam as chagas
e os membros carcomidos ela encaminhava a Hector Dorado. Muitos desses
agraciados lhe ofereciam presentes que eles preferiam chamar de
‘lembrancinhas para a mãe de todos’.
25
Entretanto, como nos informa Hakim, a vida atormentada de Emilie, como nas
ocasiões de reverência à morte do irmão, era também uma vida dissimulada. “[...] Emilie se
embelezava para reverenciar um defunto, mas o fato é que, naquele dia do ano, o negro que
lhe cobria o corpo era, mais que luto, luxo.”
26
O sentimento, enraizado a partir da estratificação social, através do sistema desigual de
relações de classes apresentado no romance, é logo desvelado pelas ações manifestadas nas
relações mantidas com a classe dominada, como Hakim relata, de forma clara e dura:
Muito antes de eu viajar (e dizem que antes da morte de Emir) ela já
distribuía alimentos aos filhos da lavadeira Anastácia Socorro. Eu
procurava ver nesse gesto uma atitude generosa e espontânea da parte de
Emilie; talvez existisse alguma espontaneidade, mas quanto à
generosidade... devo dizer que as lavadeiras e empregadas da casa não
24
R..C..O.., p. 87.
25
R..C..O.., p. 100
26
R..C..O.., p. 100
47
recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro aqui no norte.
Mas a generosidade se revela ou se esconde no trato com o Outro, na
aceitação ou recusa do Outro.
27
Os subalternos que conviviam com os imigrantes se viam presos a um regime de
escravidão. Emilie se incomodava com a maneira desregrada que a empregada índia,
Anastácia, comia, e também com o fato de esta trazer os afilhados e sobrinhos para ser
alimentados na sua casa. Embora a matriarca desse alimentos aos filhos de Anastácia, pedia
sempre algo em troca: "Aos mais encorpados, com mais de seis anos, Emilie arranjava uma
ocupação qualquer: limpar as janelas, os lustres e espelhos venezianos e catar as folhas que
cobriam o quintal."
28
A presença, na obra de Milton Hatoum, desse comportamento do imigrante em relação
ao autóctone também dialoga com a afirmação de George Coulthard (1972:57), quando diz
que essa categoria sócio-humana apareceria na ficção romanesca sob duas principais formas:
Primeiro em oposição e até mesmo em choques violentos com o modo de
ser, os costumes e os preconceitos dos crioulos; [...] A segunda [...] pode
incluir elementos da primeira – atritos, choques, luta com a própria anturexa
– mas ao mesmo tempo coloca o problema do crioulo, em certos casos
inferior ao recém-chegado.
Em certo momento da narrativa, o ritmo circular manifestado no locus familiar,
somente penetrado pelas transgressões de seus membros, parece alterar-se pela função dos
atos na narrativa. No desenvolvimento desta, a empregada índia também transgride o espaço
árabe, chegando a sentar-se à mesa com os libaneses e parecendo ser aceita por Emilie na
família.
A descoberta do parentesco de Anastácia com Lobato Naturidade, curandeiro que se
tornara amigo e consultor de Emilie, modificara as relações entre a índia e a matriarca:
27
R..C.O., p.85
28
R..C.O., p. 85-86
48
Anastácia ficou mais íntima dos freqüentadores da casa, e logrou a proteção
de Emilie; as tardes de ócio multiplicaram-se e as tarefas domésticas
passaram a ser mais amenas. A lavadeira começou a viver como uma
serviçal que impõe respeito, e não mais como escrava .
29
Porém, se o novo comportamento dos imigrantes diverge no plano dos significados, irá
convergir novamente no plano da estrutura romanesca, que obedece ao princípio circular
estruturante que afirmamos organizar a narrativa de R.C.O..
De fato, a acolhida da empregada é apenas momentânea e a integração à família dos
senhores ilusória. Anastácia é pressionada pelo desconforto e pelo ódio dos dois irmãos
caçulas, que não poderiam conceber sentar-se à mesa com a criada índia:
Uma espécie de asco e repulsa tingia-lhes o rosto, já não comiam com a
mesma saciedade [...] Aquela mulher, sentada e muda, com o rosto
rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e o odor dos alimentos e de
suprimir a voz e o gesto como se o seu silêncio ou a sua presença que era só
silêncio impedisse o outro de viver.
30
Anastácia se afasta, sentindo-se repelida daquele espaço e da ilusória convivência
igualitária no grupo libanês:
Sem que alguém lhe dissesse algo, Anastácia se esquivou dessa intimidade
que causava repugnância nos meus irmãos, aflição em Emilie e uma
discórdia generalizada na hora das refeições, um dos raros momentos em
que a família hasteava a bandeira da paz.
31
Hakim já havia percebido, da parte de sua mãe, um esforço no sentido de tornar as
relações com a empregada Anastácia mais cordial. As duas bordavam, costuravam juntas e
conversavam sobre um passado distante, suas histórias de vida. Contudo, a aparente aceitação
e harmonia eram logo quebradas e a realidade emergia em diversos momentos: as frutas e
29
R.C.O., p.96-97
30
R.C.O., p.97
31
R.C.O, p. 97
49
guloseimas da casa eram proibidas às empregadas. Hakim se via obrigado a intervir junto à
Emilie quando esta surpreendia Anastácia desfrutando da comida exclusiva à família, sob
pena de acontecer um escândalo ou uma forte reprimenda contra a índia.
Anastácia encontrava repouso e descansava da sua labuta diária por ocasião das longas
horas de conversa, em que, levada pela imaginação, narrava suas histórias para a matriarca:
Ao contar histórias, sua vida parava para respirar; e aquela voz trazia para
dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo
misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma
mulher que falava para se poupar, que inventava para tentar escapar ao
esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do
martírio.
32
O recorte acima traz a reflexão sobre a linguagem e a capacidade de, através desta,
escapar da opressão e submissão, na invenção de um novo mundo nas raias do imaginário.
Como é verificado na literatura, Anastácia cria uma realidade que poderia ser verdadeira. A
autoria, através da personagem Hakim, que percebe as criações da nativa, mostra um discurso
que discute a função da arte, da capacidade desta, tomando de partida o real, criar
possibilidades, embora imaginárias, de suplantação de obstáculos.
O quadro de relações desiguais entre estrangeiros árabes e autóctones amazonenses,
narrado à narradora-personagem por Hakim, referencia o sistema de relações humanas que
impera na construção ficcional de Milton Hatoun. Formalizado pelo autor na tessitura
narrativa, é um princípio estrutural que rege a formação do texto ficcional.
32
R.C.O., p. 91-92.
50
CONCEPÇÃO SOCIAL DOS CARACTERES
Nesta etapa da análise, procuramos desenvolver argumentos que nos levem a uma
interpretação social de alguns caracteres que compõem o romance R.C.O.. Ao lado dessa
investigação, tentamos novamente discorrer sobre os procedimentos manifestados pela
materialidade lingüística na obra.
A destruição física ou espiritual de alguns caracteres apresentados em R.C.O. é
prerrogativa determinante do andamento da narrativa. Os acontecimentos de ordem social e de
classe em que se impregna o núcleo árabe gera esse dispositivo literário.
Podemos contemplar suas coordenadas no percurso de personagens como o imigrante
alemão Dorner, símbolo do hibridismo e da adaptação cultural, que, ao final da obra, se dilui
espiritualmente; em Soraya Ângela, vitimada por uma tragédia que lhe provoca a morte física;
com Emir, que impossibilitado de amar, comete suicídio; com a matriarca libanesa e seu
marido, corrompidos pelo desgosto e crueldade dos filhos; como Samara Delia, vitima
impotente e angustiada das crueldades dos irmãos e do desprezo paterno; e como também se
dá com a própria narradora-personagem, ser social espiritualmente fragmentado e
desnorteado.
Depreendemos, assim, que em R.C.O., os caracteres envolvidos no universo
romanesco participam da conformação geral da narrativa, configurada pelo signo da
fragmentação. A construção das personagens, sua enunciação discursiva, a escolha dos
termos, a seleção da linguagem, são elementos que na obra se interpenetram, se amalgamam
na estruturação da narrativa, revelando e evidenciando a complexidade das relações humanas
desenvolvidas no livro.
51
Estas relações, postas em regime de oposição e conflito, têm por função a acusação de
um difícil processo de negociações identitárias, quando este é entremeado e alicerçado por
perversões sociais e relações desiguais de classe e poder.
Esse expediente é trabalhado não através de informações “conteudescas” mas,
reflexiva e artisticamente concebido por intermédio da junção entre forma de concepção
estética e conteúdo apresentado.
Tomando de empréstimo as palavras de Roberto Schwarz (1990:83), aplicadas na
investigação da obra Memórias póstuma de Brás Cubas, de Machado de Assis, reiteramos a
idéia de que, em R.C.O., “Forma literária e relação social injusta respondem uma à outra com
rigor, de sorte que o exame de um pólo implica na fixação de dimensões do outro.”
3.1 A narradora
Por intermédio da narrativa em primeira pessoa, adentramos no universo ficcional de
R.C.O. Nesse universo, são reveladas as impressões trazidas por um ser que não se preocupa
em nos informar seu nome ou sua função. Cabe ao leitor decodificar, através da malha verbal,
lançada abruptamente nas páginas do romance, o rumo que se está tentando tomar, que
matéria se está tentando explicitar.
O quebra-cabeças é proposital e perceberemos, com o passar da leitura, que o convite
à sua dissolução se estende por cada página e a cada palavra. As pistas não são apenas
fornecidas por intermédio de acontecimentos restritos à superfície do plano narrativo,
distribuídos aleatoriamente em seu bojo, mas a própria materialidade lingüística que o
52
constitui é campo rico em termos e combinações que podem fornecer a chave para a
compreensão do enigma.
A narradora de R.C.O. é um ser que tenta, desesperadamente, resgatar o passado
vivido entre a família de imigrantes que a adotara. A perda da centralidade narrativa, que é
quebrada pelo coro de vozes distribuídas caoticamente ao longo do romance, tem por função
ajudar a narradora em seu resgate do passado. Nos oito capítulos de R.C.O., a sucessão de
relatos que remontam ao passado une-se à fala da narradora na composição da narrativa, que
se apresenta a partir desses relatos em fragmentos.
Arte estruturada como espelho das contradições da sociedade, o romance de Milton
Hatoum traz em seu bojo as pautas da realidade nacional e latino-americana. O dispositivo
literário colhe do real e dramatiza, na estruturação romanesca, a estrutura social do continente
latino-americano.
Há, como já assinalamos, correspondência entre o estilo da obra e as especificidades
da sociedade brasileira e latino-americana, com seus conflitos de identidades e a
desintegração do sujeito moderno. O estudo de questões relacionadas à identidade é objeto de
estudo amplamente debatido na teoria social.
De acordo com Hall (2002:07), a identidade cultural na modernidade tardia se
encontra em crise, transformando o ser social e as estruturas criadas pela sociedade. É
verificado um constante deslizar de fronteiras, em vista do permanente entrecruzamento de
culturas e identidades, que vivem sob o signo da fragmentação:
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim
chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais
amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais
das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam
aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
53
O complexo processo de negociações identitárias estabelecido na modernidade, que
leva Hall (2002:08) a afirmar que “[...] as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” é uma questão posta em discussão em R.C.O..
A perda da centralidade narrativa da narradora, a busca da própria identidade num
retorno à cidade da infância, em que rememora, com o auxilio de terceiros, momentos
perturbadores vividos entre a família de imigrantes que a acolhera, e na qual fora abandonada
pela mãe biológica, configura a representação de um ser socialmente fragmentado, incapaz de
apreender a totalidade do real.
Esta condição da narradora é representada no romance através da criação de imagens
que metaforizam seu desnorteamento, sua desorientação frente ao destino. Podemos perceber
este procedimento em vários momentos da narrativa, como no recorte abaixo, retirado do
primeiro capítulo do romance, em que a narradora descreve um desenho fixado à parede da
casa materna:
[...] uma figura franzina, compostas de poucos traços, remava numa canoa
que bem podia estar dentro ou fora d’água. Incerto também parecia o seu
rumo, por que nada no desenho dava sentido ao movimento da canoa. E o
continente ou o horizonte pareciam estar fora do quadrado do papel.
33
Num segundo momento, no capítulo que finda a obra, perdida em anotações e relatos
de pessoas encontradas no retorno à cidade da infância, a narradora se compara a um
navegante, perdido entre as águas que se estendem pela floresta amazônica e no próprio
movimento de navegar, em busca de um porto:
Pensava (ao olhar para a imensidão do rio que traga a floresta) num
navegante perdido em seus meandros, remando em busca de um afluente
que o conduzisse ao leito maior, ou ao vislumbre de algum porto. Sentindo-
me como esse remador, sempre em movimento, mas perdido no movimento,
33
R.C.O., p. 10
54
aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que conduz a
outras águas ainda mais confusas, correndo por rumos incertos.
34
Estas linhas refletem a gênese social da narradora, que também pode ser contemplada
através de imagens que simbolizam a incapacidade e a imobilidade da narradora frente às
determinações do tempo e do destino. Ao perambular por Manaus, a narradora atravessa um
igarapé dentro de uma canoa e tem a impressão de que: “[...] remar era um gesto inútil: era
permanecer indefinidamente no meio do rio. Durante a travessia estes dois verbos no
infinitivo [remar e permanecer] anulavam a oposição entre movimento e imobilidade.”
35
A gênese social da narradora também é discutida em relação à sua perda de identidade.
Em seu regresso a Manaus, ao ir à casa da mãe biológica, a narradora encontra a porta fechada
e decide dormir no jardim que contorna a habitação materna. Ao despertar, a narradora
enuncia as seguintes palavras: “Sem perceber, tinha me afastado do lugar escolhido para
dormir e ingressado numa espécie de gruta vegetal, entre o globo de luz e o caramanchão que
dá acesso aos fundos da casa.”
36
Nesse trecho, entendemos que “o lugar escolhido para dormir” é nada mais do que o
desejo de se ter uma identidade completa e não fragmentária, condição por pouco tempo
desfrutada no período em que a narradora estava no interior do útero materno. Pelas
determinações do destino, este lugar, aconchegante e protegido, se transformara num lócus
dividido, fragmentado, “[...] uma gruta vegetal, entre o globo de luz e o caramanchão que dá
acesso aos fundos da casa.”
É, portanto, verificada uma reflexão sobre a perda da identidade da narradora,
personagem fragmentária, criada num lar estilhaçado, corrompido pelas transgressões de seus
membros e pervertido pelo tipo de relações humanas que abrigava em seu seio.
34
R.C.O., p. 165
35
R.C.O., p. 124
36
R.C.O., p.09
55
As teias de significantes formadoras do enunciado referenciam o que ocorre no nível
da enunciação do romance e seus componentes. À identidade fragmentária da narradora-
personagem são correspondentes os termos proferidos pelo seu enunciado, que veicula a idéia
de estilhaçamento e diluição.
Ao ver o desenho de criança fixado à parede da casa materna, episódio a que já
aludimos anteriormente, a narradora observa que, no seu contorno, “[...] as duas manchas de
cores eram formadas por mil estrias, como minúsculos afluentes de duas faixas de água de
distintos matizes.”
37
(grifo nosso)
Ao atravessar o igarapé dentro de uma canoa, a narradora queria “[...] ver de longe
Manaus emergir do Negro, lentamente a cidade desprender-se do sol, dilatar-se a cada
remada, revelando os primeiros contornos de uma massa de pedra ainda flácida, embaçada.”
38
(grifo nosso)
Na descrição da casa materna, através de termos que disseminam a idéia de um jogo
de luz e sombras, desordem e caoticidade, também percebemos esse processo de
entrelaçamento entre enunciado e enunciação, que aponta para o estilhaçamento da identidade
da narradora. Este expediente funciona também como um dispositivo que metaforiza a
fragmentação do lar materno e da própria casa libanesa, lócus de relações sociais conturbadas
e subvertidas:
A única parede que não havia reprodução de pagodes aquarelados estava
coberta por um espelho que reproduzia todos os objetos, criando uma
perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os dias [...] A
fachada de janelões de vidro vermelho; apenas um feixe de luz brotava de
um pequeno retângulo de vidro mal vedado, que permitia a incidência da
claridade.
39
37
R.C.O. p.10
38
R.C.O.,p. 124
39
R.C.O.,p.10
56
Em R.C.O., matéria narrada e formalização estrutural não se dissociam. Como alguns
estudiosos afirmam, é o processo por meio do qual deve ser concebida a literatura, exercício
de reflexão constante, no qual os elementos de composição devem ser trabalhados e
adequados à matéria narrada. De acordo com Sarmento (1998:08-09),
[...] a obra literária é, acima de tudo, um trabalho com a linguagem, e não
precipuamente sobre temas [...] os grandes textos são aqueles que – ao lado
de querer comunicar de forma eficiente uma experiência humana que se
inscreve na generalidade do patos existencial – comunicam também que
concepção de arte conduz a escrita e a própria gestação do universo
narrado, que não é da ordem unicamente do enunciado, mas sobretudo, da
ordem da enunciação. (grifos do autor)
Para acentuar essa proposição, vejamos uma formulação de Terry Eagleton (s.d.:182-
183), citada por Sarmento (1998:192) para qualificar a obra Vidas secas como um romance
moderno: “[...] muitas obras literárias modernistas fazem do ‘ato da enunciação’ o processo
de sua produção, parte do seu ‘conteúdo’ concreto. Elas não tentam se fazer passar por
inquestionáveis, pelo signo natural de Barthes, como diriam os formalistas, ‘desnudam’ o
processo de sua composição.”
Essa formulação de Eagleton, usada na diferenciação da escrita realista da escrita
moderna, também pode ser aplicada aos processos que ocorrem na construção do romance de
Milton Hatoum. Em R.C.O., o conteúdo pode ser contemplado na forma que o veicula, pois
enunciado e enunciação se interpenetram. Esta é uma regra compositiva que prevalece na
concepção do romance. As dimensões sociais apresentadas são desenvolvidas e articuladas na
própria construção autoral, são a própria estrutura desta. R.C.O. é uma obra moderna, que
eleva Milton Hatoum à categoria dos escritores que têm ciência de seu fazer estético.
57
3.2 Soraya Ângela
Verificamos não ser aleatória a aparição, logo no início da obra, de Soraya Ângela,
companheira de infância da narradora. Milton Hatoum, através das rememorações da
narradora de R.C.O., apresenta um ser que traz as marcas da impossibilidade de comunicação.
Na caracterização de Soraya Ângela, fruto bastardo, concebido fora do casamento, através da
união entre Samara Delia com um desconhecido de Manaus, é possível identificamos as
coordenadas sociais que se estabelecerão no universo ficcional de R.C.O.
A personagem é desprovida dos sentidos da audição e da fala, vivendo a angústia de
não poder se comunicar. É também um ser reprimido socialmente, impedido de coabitar com
a família de imigrantes. Ao nascer, a criança é obrigada a isolar-se, junto com a mãe, entre as
paredes do quarto da habitação libanesa.
Na apresentação de Soraya Ângela, o autor nos concede a chave para a compreensão
de sua representação estética, o percurso a ser seguido por esta e pelos caracteres humanos
que a constitui. A incomunicabilidade da criança surda-muda, vinda ao mundo pela
transgressão cometida por Sâmara Delia, simboliza a incapacidade de expressão do outro
cultural, a impossibilidade de um civilizado intercâmbio entre imigrantes e autóctones, num
cenário onde as relações humanas são determinadas por relações desiguais de classe e poder.
A semente gerada por Sâmara Delia afeta e abala ainda mais a estrutura fragmentária
da família de imigrantes, sendo motivo de discórdia entre os irmãos e a mãe matriarca, se
tornando o motivo gerador da perseguição violenta, pelos imãos, de Sâmara Delia.
Já ciente das terríveis conseqüências de sua gravidez, Sâmara tenta negar até o fim sua
condição de grávida, como se o simples fato de desejar impedisse o progressivo processo
natural que fazia seu ventre crescer:
58
Negou durante três ou quatro meses, sem acreditar no outro corpo a
expandir-se no seu corpo, até o dia em que não pôde mais sair de casa, até a
manhã em que acordou sem poder sair do quarto. Viveu cinco meses
confinada, solitária, próxima demais daquele alguém invisível, a outra vida
ainda flácida, duplamente escondida.
40
O “quarto-prisão” em que Samara se vê confinada é o espaço da transgressão, do
contágio e da desonra familiar, “Só Emilie entrava no quarto para visitá-la, como se aquele
espaço vedado fosse um lugar perigoso, o antro do contágio, e da proliferação da peste.”
41
O quarto, lugar de descanso e da reconstituição do corpo e do espírito, transforma-se
em claustro de seres desintegrados, símbolos estilhaçados de uma família desestruturada. Mãe
e filha, num espaço obscuro, são excluídas e se excluem, se anulam, em condição de renúncia
à vida da casa.
A própria materialidade discursiva, através de termos como “lúgubre”, “aquário opaco
e sem luz”, na descrição do ambiente de confinamento, apontam para a condição de nulidade
e renúncia dos dois seres no interior da casa dos imigrantes:
Durante semanas e meses, ninguém passou diante da porta do quarto, e o
pequeno mundo da reclusão continuou a existir, vigiado, lúgubre, a vida
crescendo em segredo, em surdina: um aquário opaco e sem luz dentro da
casa, onde nenhum ruído ou gemido, nenhuma extravagância de sons
denunciasse a presença dos dois corpos, como se mãe e filha tivessem
renunciado a tudo, à espera da absolvição e do reconhecimento.
42
Ao nascer, a figura lânguida, taciturna e muda, vê-se sobre a proteção da mãe, receosa
da maldade dos irmãos, e sobre os cuidados de Emilie, que espera pelo dia em que a neta seja
aceita pelos membros da família.
Hakim, que, desde os primeiros momentos, se solidariza com a irmã e vê com
complacência a condição da sobrinha, ao tentar aproximar-se de Soraya Ângela, provoca, a
40
R.C.O., p.106
41
R.C.O. p. 106
42
R.C.O., p.106
59
partir deste gesto, o desabafo de um ser fustigado e angustiado pela rotina a que se vê
obrigada a levar no claustro:
[...] ao tentar aproximar-me dela, um grito repentino, quase um descuido,
imobilizou-me. Não era um grito de advertência, proibição e hostilidade;
parecia antes um desabafo, o que dilacera, um rugido de vergonha. Afastei-
me da criança e notei que ela não tirava os olhos de mim, estranhado talvez
meu receio, minha covardia por não lhe ter tocado o rosto; e aquele par de
olhos, enormes, negros, bem juntos, que diminuíam mais seu rosto pequeno,
aquele olhar queria atrair, tatear o outro, ampliar o contato com o mundo.
Parecia um olhar fustigado pela repetição, pelo círculo fechado de
monotonias: o quarto, as duas mulheres os fundos da casa.
43
Ao sair do “quarto-prisão”, ela tem de enfrentar duas novas clausuras: a clausura do
espaço da casa e seus arredores, de onde era proibida de se afastar, e a clausura da sua própria
deficiência, que não lhe permitia ser uma criança como as outras, que podiam se expressar e
ser ouvida pelos outros. Como rememora Hakim à narradora,
Na mesa, à hora das refeições, tu e Soraya eram servidos pelas
mãos de Emilie, [...] tu já podias negar ou aceitar a comida com poucas
palavras, com monossílabos, enquanto Soraya resignava-se a afastar o
prato, negacear com a cabeça ou curvá-la em direção ao prato, às vezes
olhando para ti, para a tua boca, talvez pensando: ‘Quando me faltou a
palavra?’ [..] talvez vexada porque tu, com tua pouca idade, já eras capaz de
construir frases mal acabadas [...] mas com um movimento dos teus lábios,
alguém reagia, alguém movia os lábios, o mundo ao teu redor existia.
44
Soraya tenta compensar a ausência da fala através de gestos e contorções da face. Nas
estripulias e macaquices que espantam os animais do pátio, nos arredores da casa, afugentam
as galinhas, no galinheiro, Soraya busca “caotizar” o espaço do silêncio e da indiferença,
tentando se fazer percebida e ganhar a atenção dos habitantes da casa:
[...] essa encenação matinal, presenciada com espanto e comiseração por
todos nós, talvez fosse uma festa para Soraya, uma maneira de ser escutada
43
R.C.O., p.108
44
R.C.O., p. 12-17
60
ou percebida sem ter acesso à palavra, um parêntese no seu cotidiano (o
galinheiro, o quintal, os animais) para escapar aos olhares, aos sussurros de
constatação: ela não fala, não ouve, o seu corpo se reduz a um turbilhão de
gestos no centro de um espetáculo visto com olhos complacentes.
45
No desenvolvimento da narrativa, Soraya, como acontece com a empregada Anastácia
Socorro, parece ser aceita no núcleo árabe. A criança acaba por conseguir a afeição do
patriarca e, por insistência deste, passa, como ocorrera com Anastácia, a ser aceita nas horas
das refeições, juntando-se à mesa com a família.
Logo que Soraya Ângela veio ao mundo, ele afastou-se dela e
desprezou-a como se fosse um espectro ou um brinquedo maldito. Com a
presença cada vez mais assídua da criança, o espectro tomou forma, e o
brinquedo, mesmo maldito, passou a atrair, a cativar. [...] Com o passar do
tempo permitiu, e até exigiu, que mãe e filha sentassem à mesa para
almoçar [...]
Nessas ocasiões, Soraya, numa confusão de gestos e contorções, procurando
compensar a ausência da fala, descreve o cotidiano da cidade, cenas observadas nos passeios
feitos às escondidas com tio Hakim:
[...] as caretas de Soraya imitando o bicho preguiça a escalar uma árvore; o
corpo estático imitando a imobilidade das sentinelas de bronze plantadas
diante do quartel, os gestos que ela fazia com as mãos e os braços evocando
os irmãos sicilianos a dialogar com um cachorro, nada parecia escapar às
suas andanças, como se o olhar fosse suficiente para interpretar ou
reproduzir o mundo.
46
Entretanto, como também ocorrera à empregada índia, o fruto da transgressão
cometida pela irmã não pode viver em harmonia dentro do núcleo familiar. Sua presença é
indesejada e prejudicial à honra familiar: “Essa complacência de meu pai encolerizava ainda
mais meus irmãos, que eram obrigados a engolir a raiva e a dissimular o riso com aquela
45
R.C.O., p.16
46
R.C.O., p.18
61
expressão apalermada e doentia dos que não conseguem extravasar nem a cólera nem o
cômico.”
47
Ao perceber o desconforto provocado por sua presença, diferentemente de Anastácia,
que se afasta humilhada, a criança tenta se impor, não pela palavra, privilégio ausente, mas
usando suas próprias deficiências para atrair a atenção da casa e ocupar aos poucos o espaço
que lhe era hostil:
[...] percebia que era uma presença indesejável, e esta era a sua arma, seu
triunfo. Pouco a pouco ela foi ocupando o espaço da casa, atraindo os
olhares, não pelo movimento e sim pelo imobilismo do corpo: plantava-se
diante de um objeto (a estátua da fonte, o relógio da sala) e esquecia tudo,
todos, esquecida talvez de si mesma. [...] ninguém conseguia ficar
indiferente a isso. Às vezes, tinha a impressão de que ele se fixava em algo
para que fosse observada com insistência. Em algumas pessoas ela
despertava rancor; em outras, impaciência.
48
Contudo, a vitória, na luta contra a indiferença familiar e contra a deficiência, que a
impedia de comunicar-se, expressar seus pensamentos e medos, é apenas provisória, um
suspiro de liberdade em meio ao caos que a constrangia e a angustiava. Para o adequado
prosseguimento das coordenadas sociais estabelecidas na obra, refletidas na sua estruturação
caótica, o movimento desenvolvido por Soraya, na economia do romance, precisa ser
interrompido. Esta interrupção é estabelecida por intermédio da trágica morte da menina surda
e muda, que tem a cabeça esfacelada num atropelamento.
[...] só havia enxergado Emilie debruçada sobre um volume coberto por um
lençol manchado de vermelho. Sob a luz intensa do sol todos pareciam de
bronze, apenas destoavam o florido da saia de Emilie e a mancha vermelha
que ainda se alastrava ao longo do lençol transformado em casulo, a cabeça
tal um gorro grená, ou um vermelho mais intenso, mais concentrado, como
se a cor tivesse explodido ali, numa das extremidades do corpo.
49
47
R.C.O., p.113
48
R.C.O., p.113-114
49
R.C.O., p.21
62
Se na obra, a caracterização e o percurso desenvolvido por Soraya Ângela simbolizam
a impossibilidade de expressão do Outro cultural, a impossibilidade de um intercâmbio entre
as tradições postas em contato na obra, a condição social humana estilhaçada, mediante as
relações de poder e classe estabelecidas no romance, a cena trazida no recorte acima,
testemunhada por Hakim, também faz homologias à acontecimentos apresentados na
narrativa, interligando cenas, gestos e situações.
Na tragédia de Soraya Ângela, o sangue que se alastra na rua é o sangue que
posteriormente aparece na morte de Emilie, cobrindo o chão da casa da matriarca; o vermelho
do sangue da criança corresponde ao vermelho da orquídea, segurada pelas mãos de Emir,
irmão caçula de Emilie, no percurso em direção ao rio, onde comete suicídio; o gesto de
Emilie ao debruçar-se sobre o corpo da neta também corresponde ao gesto repetido pelo
médico da família, Hector Dorado, sobre o cadáver da matriarca.
3.3. Dorner e o patriarca: o vinculo com a natureza e a subversão determinada
pelo sistema de relações humanas
Em R..C.O., se a cidade é o local das transações comerciais e onde se desenvolvem,
sendo a casa libanesa o foco, as relações de classe e poder, o espaço natural, compreendido
pela floresta amazônica e seus mistérios, é o espaço que atrai e fascina. Esses dois espaços
desempenham uma funcionalidade dentro da narrativa, determinando, momentaneamente, as
ações e o percurso desenvolvido por algumas personagens do romance.
O vínculo com a natureza é fator determinante para a aceitação, a assimilação e o
respeito pelo Outro cultural. É como se os que mantivessem esse vínculo com a natureza
63
sentissem mais respeito pelo próximo, ficando desatrelados das amarras da cidade, da
civilização, dos mecanismos de acumulação de riqueza e separação de classes, gerados pelo
sistema capitalista.
A personagem Hakim sente, ao mesmo tempo, fascínio e impotência diante da
natureza. Seu medo de penetrar e fazer vínculo com o espaço natural corresponde na obra à
sua incapacidade de lutar contra o sistema de relações humanas que se dão no espaço do lar
libanês:
Para mim, que nasci e cresci aqui, a natureza sempre foi impenetrável e
hostil. Tentava compensar essa impotência diante dela contemplando-a
horas a fio, esperando que o olhar decifrasse enigmas, ou que, sem transpor
a muralha verde, ela se mostrasse mais indulgente, como uma miragem
perpétua e inalcançável. Mais do que o rio, uma impossibilidade que vinha
não sei de onde detinha-me ao pensar na travessia, na outra margem.
50
Emilie faz parte do mundo da cidade, da civilização e de suas determinações. Embora
a natureza também fosse objeto de fascínio para a matriarca, isso não influi em seu percurso
na economia do livro, cuja trajetória é marcada por atitudes desiguais de classe.
De acordo com as palavras de Hakim, confidenciadas à narradora, “Emilie, ao contário
de meu pai, de Dorner e dos nossos vizinhos, não tinha vivido no interior do Amazonas. Ela,
como eu, jamais atravessara o rio. Manaus era seu mundo visível. O outro, latejava na sua
memória.”
51
Na representação romanesca de Milton Hatoum, Dorner e o patriarca libanês são
caracteres que mantêm vínculos com a natureza e são influenciados por ela. Na obra, essas
personagens encerram um pólo de assimilação e compartilhamento da cultura amazonense.
Como ocorre no movimento transcultural, essas duas personagens refletem suas tradições,
50
R.C.O., p. 82
51
R.C.O., p. 90
64
sem deixar de assimilar e compreender a do próximo, se tornando seres abertos à relação e à
diferença.
Entretanto, no desenvolvimento da trama romanesca, a cidade, a casa libanesa, e o
sistema de relações humanas que se dá entre imigrantes e autóctones, força determinante e
inalterável na economia do livro, acaba influenciando o percurso traçado por esses dois
personagens.
No encaminhamento da narrativa, o subvertido sistema de relações humanas que a
orquestra é um fator de atração, é um principio que além de desestruturar as relações e os
intercâmbios, fragmenta e destrói os elementos que dela participam.
Dorner, após o suicídio do amigo Emir, sai de Manaus, retornando, anos depois,
modificado e diferente do aventureiro resoluto que fora antes; o Patriarca libanês, que na vida
possui uma história de imigrante decidido e corajoso, acaba seus dias corroído de desgosto
com os filhos.
3.3.1 O patriarca
O patriarca libanês é um ser integrado e adaptado ao espaço cultural a que fora
transplantado. Em sua trajetória de vida, havia enfrentado os perigos e conhecido os mistérios
da floresta. Seu espaço se estendia para além dos limites da casa: “Todos se reuniam na copa
do casarão rosado, com a exceção de meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade
Flutuante, onde entrava nas palafitas para conversar com os compadres conhecidos, os
65
caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhava até o porto para os armazéns e
navios.”
52
O marido de Emilie viajara para o Brasil seguindo os passos de seu tio Hanna,
imigrante que no inicio do século desbravara as terras da região amazonense. Segundo as
anotações de Dorner, colhidas no convívio com o amigo libanês, Hanna também chegara a
combater “[...] pelo Brasão da República Brasileira” [...] alcançando a patente de coronel das
Forças Armadas, “[...] embora no Líbano se dedicasse à criação de carneiros e ao comércio de
frutas nas cidades litorâneas do sul.”
53
Nas cartas enviadas para a família no Líbano, era comum Hanna misturar realidade e
fantasia, mesclando os perigos enfrentados na Amazônia com imagens oníricas e paradisíacas:
[...] epidemias devastadoras, crueldades executadas com requinte por
homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tingidas com as cores do
crepúsculo, homens que degustavam a carne de seus semelhantes como se
saboreassem rabo de carneiro, palácio com jardins esplêndidos, dotados de
paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogivais que apontavam para o
poente, onde repousa a lua de ramadã.
54
É de Hanna que o patriarca herda o espírito aventureiro e imaginativo. Nas horas de
ócio do trabalho, em conversas com o amigo Dorner, na loja da família, o libanês costumava
relatar histórias do livro As mil e uma noites. Nessas ocasiões, o fotógrafo alemão percebia
que o velho libanês tinha o hábito relacionar e misturar episódios reais de sua vida, da família
e do cotidiano da cidade, com as histórias lidas na obra oriental:
Os fatos e incidentes ocorridos na família de Emilie e na vida da cidade
também participavam das versões confidenciadas por teu pai aos visitantes
solitários da Parisiense. O que me fez pensar nisso foi a coincidência entre
certas passagens da vida de outras pessoas, que mescladas a textos orientais
ele incorporava à sua própria vida. Era como se inventasse uma verdade
duvidosa que pertencia a ele e a outros.
55
52
R.C.O., p. 35
53
R.C.O., p. 71
54
R.C.O., p. 71
55
R.C.O., p. 79-80
66
A mistura de fatos reais com a fantasia proporcionava ao libanês uma fuga do
cotidiano amargo vivido entre a família, amenizando os desgostos provocados pelos filhos,
fazendo com que o patriarca esquecesse também a complacência de Emilie, que sempre os
protegia.
Tal qual a empregada índia Anastácia, que encontrava refúgio e descanso da labuta
diária nas histórias e lendas da tradição amazônica, o patriarca libanês também buscava
repouso e paz num mundo imaginário.:
Anfitrião mudo, asceta mesmo cercado por pessoas, ele teria preferido se
evadir no quarto, compactuar com o silêncio das paredes brancas, e, com o
livro em punho, acompanhar a deposição de um sultão que reinava numa
cidade andaluz, seguir seus passos através dos sete aposentos de um castelo
indevassável, até tocar na parede do último aposento, onde estava lavrado o
destino sinistro do invasor.
56
Por fim, o marido de Emilie acaba seus dias tentando, em vão, proteger a filha Samara
Delia da perseguição e brutalidade dos filhos, almejando uma reconciliação dos filhos antes
de morrer:
[...] não atenderam ao pedido do pai, que muitos anos antes de morrer
reuniu os homens da casa e pediu ao único filho letrado para traduzir em
voz alta um versículo da surata das Mulheres, afim de que todos
entendessem que na palavra de Deus, o misericordiosíssimo, sempre havia
perdão e clemência. Mas nem isso os tornou sequer tolerantes com a irmã.
Na verdade passaram a desprezar o pai por ter recorrido a um texto sagrado
para perdoar o imperdoável [...]
57
O imigrante corajoso e irresoluto tem sua trajetória modificada por esses conturbados
acontecimentos, se transformando, ele também, em ser fragmentado, corroído pelas
determinações do destino. Isso ocorre em razão da necessidade de se adequar todos os
elementos constitutivos do universo romanesco à regra estético-compositiva que o organiza.
56
R.C.O., p. 69
57
R.C.O., p. 144
67
3.3.2 Dorner
As passagens da vida de Dorner, imigrante alemão há muito tempo radicado em
Manaus, são transmitidas por Hakim à narradora. Através dessas informações é traçado o
perfil social do fotógrafo germânico. Dorner, além de exercer a fotografia, é um intelectual
amante da literatura, que escreve poemas nas horas livres.
Através do imigrante germânico, espécie de tutor de Hakim, o descendente de
libaneses conhece a primeira biblioteca de sua vida: “Era formada por oito paredes de livros,
que felizmente só conheci anos mais tarde, pois caso contrário teria me inibido para sempre o
hábito da leitura que então adquiria.”
58
No percurso inicial traçado por Dorner no interior da narrativa, percebemos que a
personagem se investe de uma opção romântica, revelada através do horizonte ideológico do
fotógrafo alemão. O imigrante, além do amor pela literatura, admirava a natureza amazônica,
sendo capaz de permanecer meses em longas incursões à floresta e mantendo em casa uma
coleção de orquídeas raras:
Para mim, a Cattleya Eldorado era apenas duas palavras que encerravam
um certo mistério; para Dorner era uma orquídea preciosa que originou
outras de um colorido variadíssimo como a Splendens, a Ornata, a Crocata
e a Glebelands. Ao mencionar essas clatéias, ele precisava o tamanho de
sépalas e pétalas, e me enveredava a uma nomenclatura excêntrica citando
bulbos claviformes, folhas crassocoriáceas e flores aromáticas cujas cores
oscilavam entre o rosa-pálido e o rosa-violáceo.
59
No romance, Dorner se adapta e se integra ao espaço amazonense, se transformando
em símbolo da hibridação cultural. O imigrante germânico “[...] falava um português
58
R.C.O., p. 59
59
R.C.O., p. 82
68
rebuscado, quase sem sotaque e que deixava um nativo desconcertado, a ponto de só não o
confundirem com um amazonense por causa do aspecto físico.”
60
Entusiasta da vida amazônica e de seus habitantes, o fotógrafo alemão buscava, nas
lentes de sua câmera, captar instantes reveladores do território amazonense e dos nativos da
região:
Atada num cinturão de couro, pendia de sua cintura uma caixa preta; os que
a viam de longe pensavam tratar-se de um coldre ou cantil, e ficavam
impressionados com a sua destreza ao sacar da caixa a Hasselblad e correr
atrás de uma cena nas ruas, dentro das casas e igrejas, no porto, nas praças e
no meio do rio. [...] ele se dizia um perseguidor implacável de ‘instantes
fulgurantes da natureza humana e de paisagens singulares da natureza
amazônica’.
61
O imigrante germânico também mantinha registros sobre o cotidiano e o
comportamento dos habitantes da região. De acordo com os relatos de Hakim, Dorner “[...]
passou a vida anotando suas impressões acerca da vida amazônica. O comportamento étnico
de seus habitantes e tudo o que diz respeito à identidade e ao convívio entre brancos e tudo o
que diz respeito à identidade e ao convívio entre brancos, caboclos e índios eram seus temas
prediletos.”
62
As coordenadas do conflito social estabelecido no romance, no entanto, determinam
uma mudança no trajeto percorrido pela personagem. Dorner decide abandonar a fotografia e
deixar Manaus após registrar, nas lentes de sua câmera, a angústia do amigo, Emir,
testemunhando os momentos que antecederam ao suicídio do árabe: “Dorner fotografou Emir
no coreto da praça da polícia. Foi a última foto de Emir, um pouco antes de sua caminhada
solitária que terminaria no cais do porto e no fundo do rio.”
63
60
R.C.O., p. 59
61
R.C.O., p. 59
62
R.C.O., p. 83
63
R.C.O., p. 60
69
Impedido por Emilie de se entregar a um amor, encontrado no trajeto percorrido entre
o Líbano e o Brasil, Emir busca a própria destruição. O amor, a rede de significados que, na
obra, envolve esse sentimento, está impregnada de conteúdo social. Como argumenta
Schwarzs (1990:82), o amor significa a superação de “[...] prevenções de família e classe, e a
reconhecer o direito igual das pessoas.” De acordo com Ataíde, (1999:100), “O amor [...] dá
a dimensão maior do ser humano em sua humanidade, coisa que o modelo burguês destrói ou
não considera.”
Acrescentemos que o amor abriria as portas da individualidade e da subjetividade,
elementos necessários à composição da inteireza social, característica, portanto, desvinculada
do conjunto da narrativa de R.C.O., composta sob o signo do estilhaçamento e fragmentação.
A descrição, realizada por Hakim, da imagem de Emir, fotografada por Dorner pouco
antes do suicídio do libanês, revela, nas teias do enunciado, as coordenadas de seu percurso
trágico: “A foto contava-me o que Dorner não me podia dizer: o rosto tenso de um corpo que
caminhava em círculo ou sem rumo; uma das mãos de Emir desaparecia no bolso da calça, e a
outra acariciava uma orquídea tão rara que Dorner nem atinou ao desespero do amigo.”
64
Emir, na obra, não possuía vínculos com a natureza, não possuía a força dos que a
enfrentavam e tentavam revelar seus segredos, “[...] Emir não era como os outros imigrantes,
não se embrenhava no interior enfrentando as feras e padecendo as febres, não se entregava ao
vaivém incessante entre Manaus e a teia de rios, não havia nele a sanha e a determinação dos
que desembarcam jovens e pobres para no fim de uma vida atormentada ostentarem um
império.”
65
Outro fator determinante para a partida de Dorner de Manaus é a suspeita, alimentada
pelos irmãos de Hakim, de ter sido, Dorner, o sedutor de Manaus que maculara a honra de
Samara Délia: “Chegaram a até insinuar que os cabelos clareados da menina podiam ser fruto
64
R.C.O., p. 60
65
R.C.O., p. 62
70
das freqüentes visitas que eu e Samara Delia fazíamos a Dorner. Ao tomar conhecimento
disso, ele se afastou da vida do sobrado.”
66
Os dois últimos acontecimentos relatados, a tragédia do amigo árabe e a desconfiança
sobre Dorner em relação à paternidade de Soraya Ângela, filha bastarda de Samara Delia,
contribuem para a destruição e o desconcerto de Dorner ao final da trama romanesca.
O aventureiro aparentemente invencível, um caractere representativo da personagem
híbrida, estrangeiro “[...] que vivia no mato entre os índios, que nunca entrara numa igreja, e
no entanto podia rezar uma Ave Maria em nhengatu.”
67
, precisa também perecer, para estar
em conformidade com estruturação narrativa.
No encontro mantido com o fotógrafo alemão, na ocasião de seu regresso a Manaus, a
narradora relata a mudança operada em Dorner, depois dos longos anos de ausência de
Manaus:
[...] manuseava a pasta de couro, mais parecida com um surrão onde se acumulam
relíquias e as diversidades de toda uma vida.” [...]
68
No enunciado que dá continuidade a esta citação, constatamos um pouco da
genialidade autoral, que se utiliza do próprio instrumento de criação para, a partir dele, revelar
sua gênese de construção:
Do amontoado de cadernos e livros retirou uma folha branca e um lápis
Faber. [...] transcrevia os versos que eu recitara a pouco. Depois, passou a
rabiscar palavras esparsas, em português, e pareceu-me um tanto aleatória a
posição dessas palavras na superfície branca. [...] era curioso observaras
ranhuras e os riscos concentrados numa região delimitada do papel, a
metade do retângulo branco sendo devastado por manchas, como se uma
figura caótica formasse um limite dentro dos limites do retângulo.
69
Os versos que a personagem começa a traçar podem ser compreendidos como o trajeto
possível, sem percalços da vida de cada personagem dentro do universo ficcional. Logo em
66
R.C.O., p. 114
67
R.C.O., p. 69
68
R.C.O., p. 131
69
R.C.O., p. 131-132
71
seguida, através das palavras esparsas e de sua posição aleatória sobre o papel, as ranhuras e
os riscos em determinado local do papel, as manchas que devastam a metade do papel,
formando uma imagem caótica sobre a superfície, percebemos a impossibilidade desse
percurso, certo e orientado.
Diante do sistema de relações de classe e poder mantido entre as tradições postas em
contato, só é possível haver caos e desorientação, fragmentação e destruição. Primando pela
indissociação entre forma estética e conteúdo apresentado, a estruturação romanesca de
R.C.O. se guia por esta regra.
Podemos dizer que a leitura da obra nos passa a impressão de verdade justamente em
razão dessa conformação estética. Se Milton Hatoum se restringisse a meras informações
“conteudescas” a eficácia de sua arte estaria comprometida e logo seria absorvida pelo
esquecimento.
A distancia mantida do localismo, a articulação com os reais problemas enfrentados no
meio sociocultural amazonense, a reflexão sobre os fenômenos e problemas surgidos na
modernidade, e, por fim, a utilização adequada e coerente dos recursos expressivos de
concepção estética, revela um escritor consciente da arte que faz, elevando R.C.O. à categoria
das grandes obras da literatura brasileira e, porque não dizer, das grandes obras universais.
72
CONCLUSÃO
Este estudo, que examina processos de transculturação narrativa e interconexão
cultural na obra Relato de um certo Oriente, do autor amazonense Milton Hatoum, buscou
argumentos que validassem a seguinte afirmação teórica: O sistema de relações sociais
apresentado na obra em questão, tendo por foco o contato mantido entre imigrantes libaneses
e autóctones da região amazônica, adquire funcionalidade no plano narrativo do romance.
Transformando-se em componente estrutural narrativo, o citado sistema de relações
humanas, configurado em termos de relações de classe e poder, conduz e determina o
desenvolvimento da narrativa, interferindo na própria concepção formal, na configuração dos
caracteres e no nível enunciativo da obra.
Na apreciação do dispositivo literário que rege a estruturação narrativa de Relato de
um certo Oriente, servimo-nos da teoria formulada por Antonio Candido, que versa sobre os
princípios estruturais que obtêm funcionalidade estrutural no interior da representação
literária.
De acordo com o conceito formulado pelo crítico brasileiro, os elementos externos, ou
seja, os dados provenientes da realidade, se incorporam na narrativa literária, funcionando
como componente estrutural do objeto estético. A realidade histórica não desempenha papel
condicionante ou de mero reflexo, mas é elemento que participa estruturalmente e ativamente
do processo de construção artístico-literário.
Como procurou demonstrar a presente análise, em Relato de um certo Oriente, é
percebido a existência de um principio estrutural, determinado pelas relações de classe e
poder verificadas na obra, mantidas entre imigrantes árabes e nativos amazonenses.
73
Observamos que este princípio estrutural narrativo vinha, na representação literária em
estudo, configurado através de um ritmo cíclico de fechamentos e aberturas do núcleo familiar
árabe. Penetrada apenas pelas transgressões de seus membros, a esfera familiar novamente se
fechava, procurando em vão preservar sua unidade e preceitos morais.
Através desse dispositivo literário, Milton Hatoum procurou discutir questões
relativas ao difícil processo de negociações identitárias que ainda vemos prevalecer na
modernidade.
Constatamos que, no romance, conteúdo e forma artística são elementos estritamente
interligados e indissociáveis. Os caracteres que participam do universo romanesco são
concebidos pelo signo da fragmentação. A ausência de inteireza do ser social é tributária da
regra de composição narrativa que se estabelece no romance de Milton Hatoum.
Relato de um certo Oriente traz um narrador impossibilitado de apreender a
integralidade do real. A personagem-narradora é um ser fragmentado que na obra busca
recuperar e reconstituir a própria identidade, subvertida nos anos em que vivera entre a
família de imigrantes que a adotara e pelo abandono da mãe biológica.
A centralidade narrativa é quebrada pela intervenção de diversas vozes, confidencias e
relatos trazidos pelas rememorações de pessoas que ajudam a narradora a reconstituir o
passado e a trajetória dos libaneses em Manaus.
Mostramos também que a gênese de construção dos demais caracteres apresentados no
romance também se configura sob o signo da fragmentação. São seres que não conseguem
fugir da influência dos acontecimentos desenvolvidos no núcleo árabe. O percurso
empreendido na obra por essas personagens, no desenvolvimento da narrativa, irá convergir
para a regra de composição narrativa da obra, composição feita aos “pedaços” e gerida por um
brutal sistema de relações humanas.
74
No estudo da fragmentação da identidade do ser social, apelamos para a teorização de
Stuart Hall, que observa haver, na modernidade tardia, uma crise de identidades, fazendo com
que estas se tornem estilhaçadas e deslocadas.
Constatamos ainda, que, ao lado da fragmentação das personagens, os termos
participantes do nível do enunciado, no plano narrativo, também revelam a fragmentação e a
diluição de fronteiras culturais.
Defendemos, no decorrer deste trabalho que Milton Hatoum se enquadra no hall dos
escritores transculturais, tal qual Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, autores que souberam
refletir o meio social próprio através da reelaboração consciente dos mecanismos de
construção estética.
Denominados de transculturadores literários, esses escritores, através da reflexão e
desenvolvimento dos materiais constitutivos do processo de criação literária, inovaram em sua
arte, sendo protagonistas no movimento de transformação da literatura do continente latino-
americano.
75
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