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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
José Waldemar Thiesen Turna
Palavras em torno do copo sobre a clínica do alcoolismo
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2008
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II
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC SP
José Waldemar Thiesen Turna
Palavras em torno do copo sobre a clínica do alcoolismo
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Doutor Manoel Tosta
Berlinck.
SÃO PAULO
2008
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III
Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
IV
Sumário
Introdução 8
Sobre o método clínico 21
Premissas para internação e tratamento 28
O caso clínico: Transferência e contratransferência 51
Do sujeito ao botequim 88
Do botequim ao sujeito 136
Conclusão 161
Referências 167
V
Agradecimentos
Agradeço ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck pelo cuidado, atenção e carinho
que me dedicou durante toda jornada acadêmica.
À Patrícia e Luísa, pelo apoio e paciência.
À “Casa de Saúde de São João de Deus”, Irmãos, colaboradores e pacientes que
formam ambiência de inenarrável contribuição ao trabalho aqui apresentado.
A CAPES pelo apoio e crédito na pesquisa.
Ao “Grupo de estudos de sexta-feira”, Adriana Grosman, Daniella P. Castiglia,
Eliane Marracini, Julieta Jerusalinsky, Marciella Henckel e Regina Gromann, pelos
comentários, críticas e intervenções sem as quais este trabalho não tomaria o rumo e
cresceria como idéia e realização.
À querida Ana Cecília Magtaz Scazufca, pela paciência e carinho no incentivo e
auxílio desse percurso.
Aos queridos amigos pela paciência e coleguismo.
Aos colegas do “Laboratório de Psicopatologia Fundamental” pelas valiosas
discussões e comentários.
À minha mãe, Elsa Lopes Thiesen e meu pai Josef Turna (in memorian).
VI
TURNA, José Waldemar Thiesen. Palavras em torno do copo sobre a clínica do
alcoolismo. 2008. 166 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Resumo:
Os problemas em torno do alcoolismo questionam as ordenações de etiologia,
diagnóstico e tratamento deste grave sintoma clínico. O álcool, para além de seu entorno
histórico, mítico e prosaico, vem estabelecendo um conjunto de fenômenos evolutivos
de estado mórbido oferecendo ao sujeito condições de sustentação imaginária de suas
relações objetais circunscritas ao dever fálico ao mesmo tempo em que cobra seu preço
com a instalação de uma cronificação corporal e psíquica ante esse estado.
A partir do relato clínico de um paciente internado em um hospital psiquiátrico
para o tratamento de seu sintoma alcoólico encontramos uma série de elementos que nos
interrogam sobre as condições de transferência e contratransferência presentes nessa
clínica.
Também foram observadas e comentadas as ambiências criadas por essa clínica
dentro do espaço hospitalar e suas origens.
Este trabalho visa discutir as origens dessa relação interrogando as fundações e
funções mais arcaicas dos objetos parentais, as vicissitudes decorrentes dessas relações,
a impossibilidade do luto e a instalação de uma confusão diagnóstica entre o estado de
depressão e o sintoma melancólico, estados de afetação através de um pathos que
encontra nos distúrbios da oralidade alcoólica manifestações extremamente agressivas.
Palavras-chave: alcoolismo, clínica alcoólica, melancolia, depressão, distúrbios da
oralidade.
VII
TURNA, José Waldemar Thiesen. Talking about drinking - discussing clinical work in
alcoholism. 2008. 166 p. (Master's Dissertation in Clinical Psychology), Catholic
University of São Paulo, Brazil
Abstract
Problems related to alcoholism bring up questions as to the etiology, diagnosis and
treatment of this very serious clinical symptom. Beyond its historical, mythical and prosaic
aspects, alcohol causes a number of evolving phenomena related to the morbid state of
alcoholism that provide the subject with imaginary props for his object relations related to
phallic expectations. In the process, it results in serious chronic physical and mental
consequences.
Based on the clinical account of an in-patient at a psychiatric hospital undergoing
treatment for symptoms of alcoholism, we discuss a number of elements regarding the
conditions of transference and counter-transference present in this type of situation.
The environment established at a clinic which functions inside a hospital, and its
origins, are also treated.
The aim of the dissertation is to discuss the origins of this relationship by
questioning the earliest foundations and functions of the parental objects, problems
resulting from these relationships, the impossibility of mourning, and diagnostic confusion
between depression and melancholia. Both such states consist of affective pathos which
results in extremely aggressive manifestations in disorders of alcoholic orality.
Keywords: Alcoholism, alcoholic clinic, melancholia, depression, orality disorders
8
Introdução
O trabalho terapêutico com alcoolistas internados em hospitais psiquiátricos vem
acompanhado por uma proposta psiquiátrica e psicoterapêutica que visa eliminar do
horizonte do alcoolista o objeto álcool.
Processo complexo, pois pretende situar outro horizonte, outro modo de
existência, para além do já visto, vivido e sabido. Apesar de sempre bem
intencionadas, estas propostas encontram as mais firmes resistências quando se trata de
mudanças, pois observa-se todo um modo discursivo, medicamentoso e organizacional
(hospitalar) centrado no objeto alcoólico.
Esse objeto transita como um satélite em órbita ao redor de um planeta, sendo o
ego, em analogia, esse planeta. Ainda circundando a metáfora, essa órbita representada
pelo ego e sua narrativa constroem elipses, circunvoluções e atravessamentos dos mais
impressionantes, porém nunca abandonando o objeto polarizador de sua gravidade: o
álcool.
Este trabalho pretende analisar esses discursos e referências do sujeito capturado
por essa relação e focado em um especial e determinado momento de vida quando, em
alguns casos clínicos mais graves, se faz necessária uma intervenção hospitalar
psiquiátrica para restabelecer seu corpo e, quiçá, encontrar orientações psicológicas para
continuar seu tratamento.
Nesse intento, enquanto psicanalista em trabalho terapêutico com os pacientes
internados em um hospital psiquiátrico, buscamos uma posição.
Como sublinha Berlinck (2000) sobre o termo, posição “se origina no
vocabulário militar romano, quer dizer, inicialmente, lugar onde uma pessoa ou coisa
está colocada” (p.11).
9
Portanto, tentamos encontrar um lugar como espectador, não de modo
paralisado sobre o evento linguageiro a que me lanço, nem ortopédico, irrepreensível
(sentido da palavra orthos em grego), mas de uma posição onde meus atos clínicos
incluam a noção de posição enquanto “movimento corporal” (ibid, p.15).
“Ver, escutar, anotar e relatar constituíam uma prática, mas, também, um
movimento que ocorria de uma posição” (ibid, p.15), então é nesse encontro entre
corpos que se dá a prática clínica e a posterior narrativa escrita que resultou neste
trabalho; a encenação vivida através das fantasias narradas pelo paciente apresentado no
caso clínico não pretende postar o analista como detentor de uma verdade sobre o
sintoma e a doença do sujeito, nem como puro observador que nada possui em seu
corpo desde o lugar desse encontro; aliás, para além dessa quimera é visível o quanto o
terapeuta sofre em sua alma os efeitos do pathos transferencial em um tratamento.
A proposta clínica espera (caminha), tanto no sentido temporal quanto em sua
expectativa em encontrar a verdade sobre o pathos, verdade essa que não pertence nem
ao analista nem ao paciente, mas se posta entre esses dois para fazer falar os corpos que
compõem essa narrativa.
Forbes (1999) ao comentar uma coincidência de pontos de vista entre Lacan e
Diderot
1
sobre o acesso à verdade, escreve:
Não é o acesso ao bom entendimento e não é o acesso à verdade
daquele que faz o Outro aceder; não se trata do conhecimento da
verdade conquistada. À verdade a que o analisando chega não é
necessária a compreensão do analista; ao ator, não é necessário o
conhecimento do que uma pessoa na platéia está sentindo. Por
isso se buscam ordens de representação que permitam o
particular de cada um se pronunciar, nesse algo de profunda
particularidade. (p.56)
1
Denis Diderot. Escritor e filósofo francês (1713–1784) idealizou e colaborou na Enciclopédia
Francesa.[...] Também foi matemático e poliglota.Tomou parte no movimento político-literário, do qual
resultou a revolução francesa. Dicionário Enciclopédico Brasileiro. p. 753.
10
Portanto, a posição de um analista também se completa com o corpo do teatro
em que a narrativa do paciente e de seu analista se presentifica; ainda com Berlinck
(2000), “A palavra ‘teatro’ deriva do grego theatrom, que pode ser traduzida
literalmente como ‘um lugar para ver’” (p.16).
Minha experiência com o pathos clínico conduz a intervenção e orienta
uma posição teatral “que se opõe, assim, à do orthos porque aquele não pretende
convencer o interlocutor da irrepreensibilidade de sua posição e, sim, apresentar um
discurso mito-poiético epopéico que produza experiência” (ibid., p. 17).
É necessário que o analista crie um setting, que apesar de ser sempre virtual
(pois conduz à entrada das marcas da história, da comunidade, das crenças, dos corpos
ancestrais, de tudo que compõe o corpo dos sujeitos expostos a essa experiência clínica)
permite a geração de uma ambiência que promove o encontro e a constituição dessa
narrativa para que os interesses mais profundos e arraigados do paciente possam
encontrar lugar de manifestação. Manifestação essa sempre atual e atualizada nos
corpos envolvidos com esse trabalho.
Assim, seguem a transferência e a contratransferência se propondo a realização
de uma narrativa do sofrimento, realização essa oposta à proposta de orthos.
O capítulo 1 “Sobre o método clínico” se dedica a observar as premissas
que orientam o modo de agir e de ser afetado pela experiência psicanalítica, levando em
conta a vivência transferencial e contratransferencial da mesma e a tentativa de
transformação de uma narrativa de sofrimento em uma experiência.
O trabalho com alcoolistas internados em um hospital psiquiátrico apresenta
construções narrativas que nos orientam sobre os diversos âmbitos abarcados desde essa
forma de intervenção de cuidados.
11
O capítulo 2 “Premissas para internação e tratamento” faz um necessário
retorno histórico e social buscando compreender onde confluem essas determinações
referentes ao sintoma alcoólico; onde a história, a medicina e os contratos sociais se
encontram delimitando abordagens para a escuta e tratamento, e, ainda, as repercussões
do alcoolismo em seu contexto histórico. Como nos orienta Carneiro ( 2002):
O álcool constitui-se como um tipo de mercadoria muito
especial, pois ao mesmo tempo que responde a necessidades
psicológicas de evasão, consolo, anestesiamento, cumpre o
papel de via privilegiada de reprodução do capital na época da
acumulação primitiva. Um produto da cultura material, de
arcaicos usos religiosos, medicinais e lúdicos, torna-se o
principal instrumento de produção de consciência alterada, ou
seja, de produção de imaginários e de sentimentos
artificialmente estimulados. (p. 3)
Observamos como um vício é sustentado por uma indústria, por uma
mídia e por um discurso sobre o alcoolismo, o alcoólatra e o álcool; conjunto à oferta,
os mecanismos ambientais dessa sustentação e suas incidências sobre a arquitetura,
subjetividade e tratamento, direcionando no presente trabalho a incidência sobre o
ambiente hospitalar.
Todo o processo de urbanização que acompanhou o crescimento industrial no
Brasil foi seguido por uma série de contingências, que se mostraram complexas
revelando suas conseqüências psicopatológicas em sua proliferação no seio do país.
Logo se pode observar o modo de aparição do alcoolista. Para além do bebedor
social, ou mesmo do abstêmio, o alcoolista aparece no cenário social por sua violência,
que por sua vez pode gerar agressão, mas que não se confunde necessariamente com
isso, pois queda, sexo sem proteção, ausência do convívio familiar, laboral e, em
circunstâncias mais radicais, complicações na participação do trânsito civil ditado por
cada cultura, são sintomas mudos dessa relação de objeto.
12
Pesquisas constataram que o brasileiro apresenta características próprias e
importantes nesse cenário, como explica a psiquiatra Florence Kerr-Corrêa (apud
Zoretto, 2007), da Universidade Estadual Paulista: “Não bebemos mais do que os
canadenses, norte-americanos e os povos de outros países da Europa, mas consumimos
álcool de modo mais nocivo” (p. 44).
O brasileiro ingere níveis elevados de álcool por mais tempo ao longo da vida, o
que o diferencia de outros estudos realizados em diferentes países. Nos Estados Unidos,
por exemplo, a ingestão de bebidas alcoólicas diminui a partir da terceira década de
vida, mantendo o índice geral de que os jovens são os que mais bebem.
Em estudo conduzido pelo psiquiatra Raul Caetano, professor da Universidade
do Texas (EUA), e também autor do questionário e da estratégia utilizados, diz que
“Esses dados sugerem que provavelmente haverá mais problemas com consumo de
álcool por parte de pessoas em idade produtiva, numa fase da vida em que geralmente já
constituíram família” (apud Zoretto, 2007, p. 44).
Observa-se a configuração de um problema de ordem social que toma
proporções alarmantes:
Feitas as contas, conclui-se que esses bebedores ditos freqüentes
e também pesados, são nada menos do que 10% dos brasileiros
adultos ou 12 milhões de pessoas. É uma população equivalente
à de uma metrópole como São Paulo que uma vez na semana
lota dezenas de milhares de restaurantes, bares, botecos e
padarias do país e toma pelo menos cinco copos de cerveja ou
várias doses de pinga. (Zoretto, 2007, p. 45)
Histórica e estatisticamente o alcoolismo passa a configurar uma das mais
proeminentes sintomatologias que a humanidade vem sofrendo. Suas causas e
conseqüências se fazem presentes em todo estrato social, sua circulação é vivida em
qualquer faixa etária e sua potencialidade industrial financeira se eleva a cifras
gigantescas, bem como os meios de propaganda financiados por essa indústria.
13
Assim, se evidenciam ofertas e variados tipos de tratamentos sendo propostos
aos sujeitos que apresentam problemas com bebidas, suas famílias, e a sociedade em
geral. Uma destas ofertas é a internação psiquiátrica, sendo no âmbito hospitalar que se
desenvolve esse trabalho.
O presente estudo foi realizado no hospital psiquiátrico denominado “Casa de
Saúde de São João de Deus”, fundado em 1989, e situado na cidade de São Paulo.
O hospital recebe o nome de seu patrono “São João de Deus”, personalidade de
destaque na luta pelos direitos a um tratamento humanitário e profissional dos doentes,
necessitados e excluídos. A Casa de Saúde recebe pacientes do sexo masculino, em
regime fechado, para o tratamento de sintomas agudos de uma série de diagnósticos
psiquiátricos, entre eles o alcoolismo.
A grande maioria dos pacientes internados nesse hospital é proveniente de
convênios públicos, servidores do Estado e do município de São Paulo, e destes, a
maioria se destaca por problemas relacionados ao abuso etílico; são os chamados
alcoolistas.
O termo alcoólico/alcoolista é o preferido por médicos e entidades que tratam
dessa doença (ao invés do termo alcoólatra) por uma razão etimológica. O sufixo latino
“latria” significa adoração e, portanto, alcoólatra seria um idólatra do álcool, um
admirador, um apreciador. Entendemos que se tomássemos o termo popularmente mais
utilizado alcoólatra para designar o sujeito dependente do álcool, não só não
separaríamos modos distintos de uso de substâncias, como colocaríamos em seu
contexto uma parte significativa da humanidade, de forma pejorativa, provocando uma
impressão errônea sobre o uso, o caráter da doença e a dependência. Como observa
Perrier (1992) ao comentar essa situação:
14
Mas, no que diz respeito ao bebedor, o que acontece com o que
lhe concerne singularmente, uma vez que se objetivou e isolou,
nele e para ele, a doença alcoólica, incipiente ou já instalada? De
uma certa maneira, e ao menos na nossa área ocidental, o
diagnóstico faz do alcoólatra menos um ser a parte do que a
“tiragem especial”, o exemplar sempre reprodutível de um
clichê.
Ele é: ou uma causa de aflição para os bons corações, pois o
álcool, psicotrópico euforizante, continua a ser um presente a se
oferecer como sinal de hospitalidade entre amigos, mas também
a velha garrafa de reserva para beber (tanto pior, tanto melhor)
sozinho, nas horas de frio, de cansaço, de tédio; ou uma causa de
desprezo, de piedade ambivalente ou de difamação pelos
bebedores de água, os higienistas, os atletas da garrafa, ou os
inteligentes da moderação em qualquer coisa. (p. 334)
É na tentativa de compreender mais profundamente os modos de relação do
sujeito com o álcool que este trabalho se desenvolve. O “clichê” alcoólico nos interessa
do mesmo modo que a estereotipia, o lugar-comum e o chavão têm o que nos relatar
sobre essa experiência, mas o termo alcoolista se sobressai justamente enquanto um “a
mais” dessa relação do homem com o álcool. A opção pelo termo alcoolista serve para
designar o caráter essencialmente sintomático desta relação de objeto.
Um cálculo médio mostra que aproximadamente 60% da lotação da “Casa de
Saúde de São João de Deus” é composta por pacientes que foram encaminhados por
seus ambulatórios de referência após avaliação clínica, psiquiátrica e social, tendo sido
observados traços de embriaguez, prejuízo corpóreo, alterações de comportamento e de
situação sociofamiliar para que, após contemplarem prejuízos nestes campos, se efetue a
internação psiquiátrica.
A média de idade destes sujeitos é de 32 anos, e o tempo de internação dura
cerca de 30 dias. São 30 dias, ou o tempo necessário (pois esse período pode se ampliar
dependendo das exigências clínico-sociais do caso), durante o qual lhes é oferecido um
programa de propostas psicoterapêuticas, tais como: grupos de discussão e reflexão
sobre o alcoolismo; grupos de reflexão sobre temas do cotidiano; atendimentos
15
individuais (o hospital dispõe de um grupo de voluntários e estagiários da área de
psicologia e psicanálise bastante incorporada, que semanalmente participam de várias
atividades com os pacientes); atendimentos familiares, além de atividades propostas por
outros setores (psiquiatria, terapia ocupacional, serviço social e todo campo de
hotelaria) do hospital.
De modo geral, desde aí já se encontram pronunciadas as bases de intervenção e
defesa presentes na organização hospitalar em relação à transferência e à
contratransferência que tanto constatamos quanto estamos assujeitados. No âmbito
psicoterapêutico os ideais não se distinguem de outras intenções propostas pela
instituição de saúde:
De uma certa maneira, o que se preconiza como psicoterapia de
apoio, individual ou coletiva, para a reeducação dos alcoólatras
é feito para conservar, por recondicionamento, sob forma de
culpabilização/desculpabilização, apelo à vontade, compreensão
fraternizante etc., um modelo de organização neurótica, a ser
“recuperado”, na sua economia, para ser colocado a serviço dos
ideais de saúde dos terapeutas. (Perrier, 1992, p. 335)
Durante alguns anos observei, confrontei, pratiquei e conflitei com uma
tendência de trabalho terapêutico de cunho “matricial”, ou seja, os grupos de auto-ajuda,
“Alcoólicos Anônimos” (AAs) ou outras denominações que se queira dar a esses
agrupamentos.
São organizações cuja proposta é estancar o hábito compulsivo do beber, da
ingesta alcoólica, sem exigir daí um sentido, sem o intuito de instaurar, frente ao hábito
compulsivo da bebida, outra produção de sintoma.
É certo que esse tipo de agrupamento tem uma função social muito importante,
funcionando como interventor da ingesta alcoólica onde uma série de outras tentativas
naufraga, oferecendo um apoio a seus integrantes bem como à sua família, com grupos
especializados aos jovens filhos e filhas de pais alcoolistas.
16
No entanto, um discurso repetido à exaustão nos grupos em que participam
quando internados no hospital, expressa advertência pela queixa, pela desconsideração,
pela interessante irritação em relação à proposta desses centros matriciais. E o
argumento a que numerosas vezes se referem e que passa a chamar atenção é o de
que esses centros não entendem seus problemas, suas mazelas, que, sem dúvida, eles
reconhecem que devem parar de beber, mas, como me alertam: “o problema é mais
embaixo”.
Este trabalho não tem qualquer intenção de tecer crítica negativa sobre qualquer
forma de tratamento, principalmente os trabalhos vinculados às associações de cunho
matricial; aliás, não reconhecer o valor desses centros não denotaria outra coisa a não
ser arrogância e ignorância.
A distância tomada pela presente pesquisa a esse tipo de abordagem encontra
sua justificativa por entender seu interesse em outro modo de escuta e compreensão
sobre a constituição do sujeito, qual seja, a crença no sujeito do inconsciente e uma
desconfiança sempre aberta sobre os horizontes de liberdade nas relações de
objeto.
Para além ou aquém disso nenhuma forma de tratamento deve ser subestimada
ou desvalorizada, já que seu intento último ainda propõe salvaguardar o alcoolista de
sua degradada situação psíquica com sua conseqüente deterioração física.
Convém não interpretar esta última observação como uma
denúncia dos métodos e meios atuais da luta contra o
alcoolismo, e ainda menos como uma contestação de princípio.
Mais valem, sem dúvida, as neuroses de transferência
intermináveis sobre os terapeutas, a doutrinação eficaz que
permite as boas estatísticas a partir dos condicionamentos e
interditos, ou ainda a reunião sob uma direção comum nas ligas
de sobriedade; antes isso do que a triste adição das cirroses, das
polineurites e das deteriorizações psíquicas, tal como dão
testemunha os responsáveis pela higiene somatopsíquica ou os
interrogadores do estatuto eto-ecológico de uma sociedade.
(Perrier, 1992, p. 336)
17
Assim sendo, e seguindo a orientação dos próprios pacientes de que o problema
“é mais embaixo”, resolvemos descer para indagar as origens desse problema.
Na busca de características presentes nesses discursos grupais, encontramos uma
população identificada com o que podemos entender como “classe proletária”, “homem
de nível de vida relativamente baixo, e cujo sustento depende da remuneração recebida
pelo trabalho que exerce em ofício ou profissão manual ou mecânico” (Ferreira, 1986,
p. 1400).
É sabido que o alcoolismo, ou a ingesta compulsiva alcoólica, não se restringe à
classe, gênero, cor ou estrutura clínica, mas as internações que recebemos no hospital
encontram parceiros firmes e isto identificado numericamente na população de
um proletariado masculino.
Não é proposta deste trabalho desenvolver uma análise social que pretenda
explicar a sociogênese do alcoolismo, mas observando, escutando e debatendo com essa
classe (proletária) de sujeitos, assujeitados a este sintoma clínico, não podemos deixar
de notar que efetivamente representam um número substancial nessa patologia.
Quando observamos o resultado de estudos como o levantamento nacional de
como, quando e o que se bebe no país, pesquisa conduzida pelo psiquiatra Ronaldo
Laranjeira e sua equipe, constata-se (a partir dos resultados) que, “aqui bebe-se mais nas
regiões Nordeste e Centro-Oeste, onde 38% das pessoas não param antes do quinto
copo. No Sul e Sudeste o consumo é mais moderado, mas freqüente: metade da
população não passa da segunda dose” (Zoretto,, 2007, p. 45).
E mais, quando a discussão adentra o terreno do alcoolismo nas classes sociais,
os indicadores apontam na direção de uma relação privilegiada entre as classes menos
favorecidas e o alcoolismo.
18
Em todas as regiões a bebida mais consumida é a cerveja,
embora haja variações no Norte e no Nordeste, onde a cachaça
aparece em segundo lugar, à frente do vinho. Outra diferença é
que as pessoas de classes sociais mais elevadas (A e B)
consomem álcool de modo distinto das da classe E. As primeiras
bebem durante as refeições, em bares comendo algum petisco ou
sozinhas em casa (...) Já entre os mais pobres quem bebe são os
homens que se reúnem em um boteco e tomam cachaça em pé,
sem comer nada. (ibid., p.45)
Quando um sujeito ultrapassa o que seria suportável clínica (corporal) e
socialmente, poderá então adentrar o espaço hospitalar, quer seja psiquiátrico ou não,
para parar a ingesta alcoólica e encontrar suportes terapêuticos para dar continuidade ao
seu tratamento quando de alta.
A proposta de intervenção terapêutica será questionada nesse momento de
internação, comentando narrativas escutadas em atividades grupais e no caso clínico
apresentado.
O capítulo “O caso clínico: transferência e contratransferência” será dedicado
exclusivamente à análise através das formações sintomáticas envolvidas no processo
e da narrativa constituída sobre o caso clínico do manejo transferencial e as
conseqüentes atuações contratransferenciais que ocorreram nesse tratamento.
Esses aspectos observados e discutidos sobre a clínica do alcoolista internado
fundamentam as indagações sobre a constituição da subjetividade desse sujeito. Para
tanto, foi necessário estabelecer um percurso em que as relações objetais indicassem um
sentido sobre esse fenômeno sintomático. Esse capítulo foi nomeado “Do sujeito ao
botequim”, e procura determinar os limites estruturais que delineiam o modo
privilegiado na constituição das relações objetais onde posterior e clinicamente
encontramos as “recaídas”; eterno retorno ao objeto idealizado, saída sempre possível
para o alcoolista frente ao superego vociferador que o atormenta.
Saída sempre possível, porém sempre a mesma.
19
Perrier (1992) propõe uma aguda posição:
A recaída está no cerne de toda proposição sobre o alcoólatra.
Ela é a instância que vem se inscrever como uma ameaça
sempre presente, qualquer que seja a solidez de um pacto e de
uma organização terapêutica, enquanto empresa de longa
duração.
Ela está ligada ao que caracteriza a relação do alcoólatra à sua
bebida: a saber, o “não poder parar” como critério de
diagnóstico. Ele define, então, o homólogo de um processo que
continuaria a evoluir se necessário ao estado latente até o dia
em que tal agente intercorrente, tal acontecimento, tal acidente
viesse reativar um desequilíbrio e reatualizar o recurso ao
álcool.
(...) E todo o longo trabalho empreendido teria que ser
recomeçado!
Isso justifica todas as medidas empregadas no plano médico-
psicológico para edificar as defesas à prova de qualquer
surpresa. Mas na medida em que a recaída está sempre na
filigrana do discurso terapêutico, ela celebra o inimigo, o
“mitologiza”, por fazer dele um objeto de superinvestimento.
Em outros termos, o alcoólatra não tem nenhuma possibilidade
de esquecer o álcool, como um amante faria o luto de um amor
em proveito de outro, pois lembram a ele constantemente sua
existência, sua imagem imperecível. (p. 341)
De suma relevância para este trabalho foi observar como, durante o período de
internação desses pacientes, vai se organizando uma ambiência de cunho pitoresco no
espaço mesmo do hospital: uma recriação do ambiente do botequim. Só que agora sem
o componente alcoólico. O hospital se transforma em um grande “bar sem bebidas” e os
aspectos envolvidos nessa recriação ambiental nos interessam por sugerir que há, aí,
uma recriação da subjetividade envolvida no processo e fantasia do sujeito e sua relação
de objeto e imagem de si.
Desde a demanda de um espaço hospitalar que possa sustentar um “tempo” de
recuperação articulando uma distância desse objeto impossível de esquecer, até as
primeiras imagens de uma melancolia (pois um luto se mostra impraticável), passamos a
direcionar nossa pesquisa sobre a doença e seu sintoma.
20
A partir da origem do sintoma, situado nas relações objetais arcaicas e suas
recriações ambientais fantasmáticas e fantasísticas, desenvolvemos uma busca sobre a
doença pela qual sofre o alcoolista.
No capítulo intitulado “Do botequim ao sujeito” traçamos o percurso em que as
neuroses narcísicas evidenciam sua estrutura clínica e a “mania-melancolia” refina seu
traço sobre esse sujeito. Esperamos, assim, orientar nosso estudo desde a formação da
doença até a constituição do sintoma pelo qual sofre o alcoolista.
É a partir da dúvida que se impõe frente à escuta desses pacientes que se articula
a proposta deste trabalho. Explorando o discurso clínico, observando os afetos
apresentados e daí confrontando-os com as construções conceituais psicanalíticas e
psicopatológicas para tentar compreender qual a questão psicopatológica implicada
nessa clínica. Clínica essa que merece consideração, já que o número de sujeitos, bem
como suas saídas psicopatológicas para conseguir sustentar as condições subjetivas que
vivem, vem aumentando constantemente.
E é esse mesmo socius que trará as condições (ou não) para que os chamados
distúrbios da oralidade dos quais o alcoolismo faz parte se manifestem enquanto
problemas sociais, articulando os modos proibitivos para tal hábito, bem como se
apropriará dessa dinâmica para daí conseguir seus lucros.
Todo este trabalho não seria possível sem o incômodo e perturbação corporal
que foi vivenciado pelo pesquisador em sua tarefa terapêutica de sustentar a
transferência dos sujeitos alcoolistas em questão e poder, a partir daí, gerar uma
contribuição psicopatológica a esta clínica que, por mais que se aprofunde a cada caso,
sempre mantém uma natureza enigmática a nos enlaçar.
E este é o motivo pelo qual lhes sou grato.
21
Sobre o método clínico
O método clínico utilizado neste trabalho de pesquisa foi vivenciado e
estabelecido a partir de uma análise com um paciente que esteve internado para
tratamento de alcoolismo, bem como a utilização de uma série de falas provenientes de
grupos terapêuticos (denominados “grupos de reflexão”) realizadas com pacientes
internados pelo mesmo sintoma.
A posição do analista, em seu limite, aproxima-se da angústia de um vazio.
Posto que trabalha com seu inconsciente e traduzindo para a relação analítica a vivência
desse encontro, em seu limite se encontra com uma posição dita feminina, pois trata-se
de encontrar uma posição que permita ao paciente encontrar um “buraco” no analista
para projetar seu desejo, projetar seu gozo.
Isso só ocorrerá se o analista se apresentar com um “véu” que, cobrindo seu
desejo orienta o desejo, do paciente para si, suportando daí a posição
contratransferencial que entrará em jogo.
Este trabalho é orientado por uma dinâmica ativa, o que faz uma contraposição à
caricatura passiva em relação a uma imagem comumente alardeada sobre o método
clínico psicanalítico.
Mas este trabalho não se constitui sem um paradoxo, como orienta Berlinck
(2000) em seu texto sobre “O que é Psicopatologia Fundamental”: “Ocorre, decerto, que
deve mover-se para agir sobre o paciente, mas como agente” (p. 19).
O pathos a que padece o paciente também afeta o analista, e assim um
tratamento pode desdobrar-se e tornar-se uma experiência.
22
“Psicopatologia” literalmente quer dizer: um sofrimento, uma
paixão, uma passividade que porta em si mesmo a possibilidade
de um ensinamento interno que não ocorre a não ser pela
presença de um médico (pois a razão é insuficiente para
proporcionar a experiência). Como pathos torna-se uma prova e,
como tal, sob a condição de que seja ouvida por um médico, traz
em si mesma o poder de cura. Isso coloca imediatamente a
posição do terapeuta. Pathos não pode ensinar nada, ao
contrário, conduz à morte se não for ouvido por aquele que está
fora, por aquele que, na condição de espectador no teatro grego
do tempo de Péricles, se inclina sobre o paciente e escuta essa
voz única se dispondo a ter, assim, junto com o paciente, uma
experiência que pertence aos dois. (ibid., p. 21)
Mas essa experiência não é natural, não prescinde de uma direção, como Lacan
observa em seu texto sobre “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”,
onde entendemos que a posição política vivida no tratamento não poderá ser vinculada a
nenhum partido. Uma posição política sem governo, mas com uma ética específica
sobre o tratamento, ética essa que propõe a escuta da verdade justamente do lugar que
não se espera encontrá-la, ou seja, do lado de lá, do ato-falho, do sonho, do detalhe que
o “eu” aqui em seu pronome oblíquo “mim”, sujeito da referência identificatória,
para diferenciar do Eu do sujeito em sua concepção estrutural trará em sua fala.
Como nos relata Lacan (1993) respondendo à J.-A. Miller em Televisão:
Titile, pois, a verdade que Boileau assim versifica: “O que
bem se concebe, claramente se enuncia”. O estilo do senhor,
etc... [...] Restabeleço que o que bem se enuncia claramente se
concebe – claramente quer dizer que consegue. É inclusive
desesperadora essa promessa de sucesso, pelo menos sucesso de
venda, para o rigor de uma ética. (p. 79)
É a partir daí que se espera a direção de um tratamento. A verdade não se
anuncia como puro saber sobre a técnica; está para além dela. Em uma verdade que não
traz promessas (não promete o sucesso) só é possível esperá-la de uma enunciação em
que a clareza conduz à concepção (concepção na dupla acepção semântica: tanto um
ponto de vista quanto a geração de uma idéia ou ato).
23
Orientado pela condição de que a verdade expressa no tratamento sempre o
conduz em conjunto com a verdade vivida pelo analista no seio do mesmo, entendemos
o método clínico como uma tentativa de transformar, junto com o paciente em uma
vivência transferencial, a narrativa de seu sofrimento em uma experiência, experiência
que não está livre de alguns problemas que se revelam no percurso terapêutico.
Um dos problemas do método clínico, problema sempre presente em toda
consideração transferencial,
é supor um observador ausente do observado.
O que garante o método clínico é a crença de que existe uma singularidade, ou
seja, cada sujeito proposto ao método clínico psicanalítico é “UM”, distinto, singular,
estranho e estrangeiro a toda estrutura já proposta na doutrina psicanalítica.
Frente a essa necessidade o terapeuta deverá se postar atento às nuanças dessa
singularidade e procurar seu lugar (que dificilmente se fixa) nesse encontro, lugar que
não deixa de des-situá-lo da posição que confortavelmente pensou ocupar, passando
com isso, a ocupar uma posição em relação à fantasia do paciente.
Buscar a constituição da fantasia, sempre singular, que movimenta cada corpo
proposto à análise é a função do psicanalista e o mesmo só poderá tecer uma teoria
metapsicológica se compreender o como e o porquê dessa fantasia e suas conseqüências
durante o processo.
Assim nos indagam Abraham e Törok (1995) a respeito da fantasia e da posição
fixada do analista em um tratamento: “Toda a teoria metapsicológica não seria feita, em
última análise, para explicar o como e o porquê da fantasia e de seus frutos?” (p. 244)
E isso significa que a fantasia não sustenta toda a metodologia psicanalítica, mas
devemos procurar compreender a que resistências ela se engaja quando das tentativas de
modificação dos sintomas existentes, forças em ação que atravessam toda análise.
24
Procurar, ao contrário, saber, atravessando uma fantasia, a que
modificação processual ela vem se opor, é passar da descrição
do fenômeno à sua competência transfenomenal, é manter-se
nesse ponto geométrico a partir do qual poderia ser lida a origem
metapsicológica de cada fantasia até a “origem” do próprio
originário. (ibid., p. 244)
O método clínico se inicia quando passa a revelar a singularidade do caso. E um
caso clínico é o evento fortuito, acidental, que ocorre na clínica e que vem desacomodar
a teoria. É justamente aí que se insere uma de suas principais funções: fazer avançar a
prática clínica esclarecendo a estrutura psicopatológica subjacente.
De modo sucinto, para a psicopatologia fundamental, bem como para a
psicanálise, a nosologia é esclarecida por um funcionamento psíquico de suas leis, e
responde ao critério de universalidade organizando assim a constituição das concepções
estruturais.
O método clínico utilizado neste trabalho pretende atender às concepções
propostas tanto pela psicanálise quanto pela Psicopatologia Fundamental em sua
experiência de produção metapsicológica, aqui entendida como “discurso mito-poiético
epopéico que é uma experiência e que, como tal, é terapêutica” (Berlinck, 2000, p. 24).
O porquê da escolha de utilizar duas posições que compartilham espaços na
orientação do método clínico se responde em um enunciado de Berlinck (2000):
A descoberta do inconsciente freudiano como manifestação do
pathos e como algo que surge da violência primordial, bem
como a conseqüente metapsicologia que é conhecida por
psicanálise é a casa mais confortável existente na
contemporaneidade para a Psicopatologia Fundamental. (p. 24)
E ainda delimitando as características propostas no método clínico utilizado,
destacamos que, enquanto a observação clínica repousa sua atenção sobre a vivência
perceptiva consciente, o caso clínico se insere em uma clínica da escuta levando em
25
conta fenômenos para além dos observáveis pela consciência. Nesse sentido, o caso
clínico provoca a verdade de uma construção.
O caso clínico, portanto, é uma ficção do analista que, abstraindo a história
individual do paciente, se dirige a uma vivência clínica “pática”, e solicita uma
construção.
A construção de um caso clínico é a narrativa de um acontecimento e para dar-
mos condições de que essa experiência aconteça, como nos propõe Nasio (1999),
devemos “montar o cenário para que a verdade apareça” (p. 9). Isso diz respeito à
ambiência que, revelando a singularidade, inaugura, oferecendo espaço, a possibilidade
de uma narrativa.
Assim podemos nos manter o mais exposto aos efeitos do inconsciente.
O clínico está entre o sujeito e o objeto vivido na clínica, do mesmo modo que o
sujeito está entre o clinicante e este objeto. Portanto, nosso método clínico precisa
sustentar seu lugar no “entre”, desde sua transferência e sua contratransfência.
Como orienta Perrier (1992), “Porque a transferência existe convém estar
sempre em outro lugar que não no seu próprio” (p. 367).
E isso sem esquecer que o lugar do “objeto”, situado entre esses sujeitos nada
será a não ser o objeto “pequeno a”, designação de Lacan para dizer do objeto causa de
desejo.
Enlaçando as três instâncias (Simbólico, Real e Imaginário), o “a” designa o
sintoma pelo qual o sujeito se faz refém, retornando incessantemente à busca em sua
compulsão à repetição.
Temos então uma tarefa terapêutica aliada a uma tarefa diagnóstica: buscar o
que é singular na manifestação da estrutura, oferecendo uma ambiência possível de
26
situar esse singular, a partir de onde deverá brotar, nessa relação, uma construção
metapsicológica.
Essa manifestação da estrutura é sintomática, ou seja, ela sempre possui uma
parte que se revela consciente e outra que é inconsciente, não sendo, porém, a estrutura
que revela o sujeito.
Quando buscamos o singular do sujeito na clínica buscamos o que se refere
irredutivelmente àquele sujeito.
Mas o sujeito não habita no universo uma posição de mônada solipsística; de
modo geral habita sempre uma comunidade, e a ambiência clínica é uma ambiência
comunitária. Sempre que recebemos um paciente o recebemos em uma comunidade;
talvez recebamos uma comunidade em conjunto com sua singularidade, constituindo, a
partir daí, as estruturas clínicas que nos auxiliam a pensar o lugar do sujeito em nosso
universo metapsicológico.
Pode-se sustentar, a partir dos trabalhos dos grandes mestres do
estruturalismo, (...) que apesar da diversidade dos protagonistas
envolvidos e da lógica singular a cada uma das disciplinas, a
busca do rigor científico e de um método eficaz, consagrou um
programa voltado para o desvendamento de estruturas
subjacentes às aparências mutáveis dos fenômenos sociais.
(Debert, 2007, p. 94)
Então, se existe uma categoria que pode ser chamada de estrutura, enquanto
clínicos da psicanálise estamos fundados na crença básica de que toda espécie é
composta por singulares que habitam um socius.
27
Admitir que habitamos uma comunidade faz reconhecer que nosso setting é
sempre virtual, por mais que nos ofereçamos a organizar esse ambiente propício ao
outro. E o clínico, em sua fantasia, regida por seu fantasma, organizará esse espaço e
organizará também a possibilidade da surpresa que nos envia para longe, revelando
assim a transferência clínica.
A constituição do setting é contemporânea à comunidade, portanto não há como
criar ambiência sem a comunidade que habita esses corpos tanto do paciente quanto
do analista. Isso diz respeito à nossa comunidade ancestral, às nossas marcas corporais,
subjetivas, históricas e que temporal e espacialmente são sempre atuais como o sintoma.
Essa comunidade se articula sobre uma série de crenças, como poderemos
observar a respeito do ambiente clínico vivenciado tanto no hospital quanto no caso
clínico em questão.
O método clínico se propõe a constituir, na direção do analista a seu paciente,
qual sua posição sem querer reduzi-lo a si, estabelecendo um método que relacione o
singular com o geral; das formações do inconsciente à estrutura.
Se a estrutura traz a questão do invariante padrões, comportamentos
repetitivos e padronizados o singular traz a questão do indefinido, do que se oferece
enquanto resistência até a possibilidade de mudança; traz a esperança na espera.
28
Premissas para internação e tratamento.
A complexidade apresentada no campo clínico do alcoolismo propõe âmbitos
dos mais diversos, mas que tendenciosamente se encontram.
Desde os sintomas mais expressivos e que conduzem um sujeito para uma
internação (os efeitos agressivos dessa sintomatologia na vida civil, corporal e
subjetiva), até os fenômenos (sujeitos) mais silenciosos, escondidos, trancados em suas
casas, vivendo nas ruas.
Desde que o alcoolismo passou a ser identificado como doença social, passa a
ser incluído no campo das moléstias derivadas do convívio social, como a sífilis, a
tuberculose e a loucura, sendo, a partir daí, vinculado ao desenvolvimento urbano-
industrial e identificado com as populações pobres e a miséria urbana.
No âmbito médico o conceito de alcoolismo data de meados do séc. XVIII,
como sintetizam Gigliotti e Bessa (2004):
O conceito de alcoolismo só surgiu no séc. XVIII, logo após a
crescente produção e comercialização do álcool destilado,
conseqüente à revolução industrial. Deste período, destacam-se
dois autores: Benjamin Rush e Thomas Trotter. O primeiro, um
psiquiatra americano, foi responsável pela célebre frase: “beber
inicia num ato de liberdade, caminha para o hábito e, finalmente,
afunda na necessidade”. O segundo foi quem, pela primeira vez,
referiu-se ao alcoolismo como “doença”. Outro autor de
relevância foi o sueco Magnus Huss (1849), que introduziu o
conceito de “alcoolismo crônico”, estado de intoxicação pelo
álcool que se apresentava com sintomas físicos, psiquiátricos ou
mistos. (p. 11-12)
O discurso abstencionista e erradicatório do álcool, discurso
proibicionista em relação ao álcool, tem suas raízes na moral e na economia vigentes à
29
época histórica da humanidade e, também encontra relação frente a outras substâncias
psicoativas. Citando Carneiro (2004):
O uso do álcool pela força de trabalho sempre foi uma prática
comum, pois garantia a manutenção dos níveis de produtividade.
No mundo antigo, o vinho era dado até mesmo aos escravos,
pois além de fazer parte da dieta alimentar servia como agente
antiséptico misturado com a água. Na Idade Média, o vinho
fazia parte da ração diária dos monges e os maiores vinhedos da
Europa pertenceram às abadias cistercienses. Na maior
concentração de mão-de-obra do início da época moderna, o
Arsenal de Veneza, o segundo item do orçamento, após a
madeira, era o vinho.
No final do século XIX, a atitude institucional dos Estados
diante do álcool mudou, a influência de um forte movimento
puritano de temperança foi capaz de impor uma emenda à
constituição norte americana, proibindo o comércio de álcool.
Antonio Gramsci, em “Americanismo e Fordismo”, analisou a
Lei Seca nos Estados Unidos como uma das manifestações dos
mecanismos tayloristas de aumento da produtividade através de
um controle estrito não só da linha de produção como também
da vida cotidiana operária, especialmente de sua vida sexual e
das formas de diversão, onde o álcool passou a ser visto como o
pior risco para a perda do auto-controle. As atitudes
antialcoólicas, apesar de seu triunfo momentâneo no início do
século XX, perderam influência no mundo ocidental, onde
outras drogas ilícitas (maconha, cocaína e opiáceos), a partir
especialmente do fim da Lei Seca, nos anos 30, tomaram o seu
lugar como bodes expiatórios farmacológicos e produtos de um
rendoso e hipertrofiado comércio clandestino. (p. 6-7)
Para além dos discursos perpetrados pelo álcool e suas interconexões com os
mais variados ramos de contrato social, encontramos o corpo enquanto objeto central na
organização das relações entre essas interconexões. Em seu comportamento, suas
atitudes e desejos, estão descritos os modos de subjetivação, economia e
comportamento próprios aos sujeitos de cada época, e, mais particularmente, o modo
como cada sujeito arca com o preço adaptativo de seu lugar na história.
A bebida alcoólica, sendo apropriada pelo sistema produtivo, sustenta a
possibilidade do alcoolismo se desenvolver. O vício como qualquer outro só é
possível se manter se o seu objeto estiver disponível; em relação ao alcoolismo,
30
encontramos esse objeto ofertado abundantemente e a baixo custo, em qualquer
mercado mundial (no Brasil, essas condições são particularmente expressivas).
Como podemos observar nas recentes cifras desse mercado:
As bebidas alcoólicas e o tabaco consolidaram-se como
mercadorias de primeira importância na economia mundial. O
vinho, assim como diversos outros produtos alimentares, teve
uma superprodução mundial nos anos 60 de 280 milhões de
hectolitros (28 bilhões de litros), caindo para 154 milhões de
hectolitros nos anos 90. Mas a cerveja continua sendo a bebida
alcoólica mais consumida. O Brasil com 70 milhões de hl/ano
está em quinto lugar na produção mundial (após, EUA,
Alemanha, China e Japão), mas tem a segunda maior produtora
mundial, a AMBEV, com 60 milhões de hl/ano (a primeira é a
Anheusen Bush, dos EUA, com 113 milhões de hl/ano). Mas em
aguardente de cana, o Brasil é o primeiro produtor mundial, com
cerca de um bilhão de litros/ano e, em relação ao tabaco e ao
açúcar, também continuamos a manter a recordista posição de
primeiro exportador mundial. (ibid., p. 7)
A intensificação do processo de urbanização, com uma tendência de criar
espaços cada vez mais sofisticados, fizeram necessária uma série de delimitações quanto
às suas funções, usos e abusos, e coube às instituições (Estado, Igreja, família,
medicina) ordenar e ocupar estes espaços segundo a moral vigente, estabelecendo as
áreas possíveis para a ocupação de suas organizações correspondentes.
Matos (2001), em seu relato conjuntural, nos orienta que:
A intensa urbanização, o processo de imigração, o final da
escravidão e do império e a industrialização exigiam novas
formas de comportamento ditas “civilizadas” (...) assim, as
ações da Igreja, do Estado e particularmente da medicina foram
convergentes e decisivas para disciplinar mulheres e homens. (p.
25)
Neste sentido a medicina se apropriou de um papel decisivo na constituição de
um olhar sobre o alcoolismo. Sustentada pela crescente evolução da ciência médica,
com argumentações fundamentalmente racionais, amplia seu poder de intervenção e
31
suas orientações sobre o hábito alcoólico que, a partir de então, deverão ser seguidas
com constância escrupulosa.
O poder médico se amplia principalmente onde a constituição de seu saber se
sustenta amparada na materialização de seus instrumentos de detecção, gerando assim
as bases necessárias à consolidação de um saber que se esforça em divulgar sua crença.
Matos (2001) nos auxilia a pensar por este prisma quando propõe:
O papel do médico também mudava, no sentido de
afirmar-se a medicina enquanto saber. Graças às teorias
de Pasteur e de Koch expandiu-se o paradigma
microbiano e bacteriológico, que possibilitou uma outra
compreensão das causas das doenças, suas formas de
transmissão e cura, e a idéia de contágio transformou
hábitos e atitudes. (p.25-26)
Mas a principal contribuição deste enfoque se amplia e refina:
Com o aperfeiçoamento do microscópio, o olhar médico
sobre os corpos doentes foi redimensionado, já que foi
possível a visibilidade do até então oculto, dando a
conhecer uma variedade de microorganismos
patogênicos e iniciando a valorização da profilaxia, da
assepsia e da higiene como sinônimos de saúde. Assim, o
indivíduo passou a ser visto como principal veículo de
propagação, e gradativamente as políticas de saúde
pública passaram a ser direcionadas para a educação e
conscientização sanitárias, centradas na proposta
higienista, valorizando cada vez mais o papel dos
médicos como responsáveis por resolver os problemas do
país. (p.26, n.11)
Em conjunto com o fundamento moral e religioso que delimitará as normas de
organização civil, novos fundamentos científicos de ordem médica passam a ditar os
padrões de comportamento.
Um “olhar” se propõe a organizar este que passa a se mostrar como um dos
piores flagelos que já se abateu sobre os homens. Assim, a luta contra o alcoolismo será
instituída em todos os fronts onde se fizer necessário.
32
Uma verdadeira “cruzada antialcoólica” em que a proposta, chefiada pela
medicina, mas apoiada por todos os segmentos sociais vigentes, apresentar-se-á
doutrinária, produzindo um conjunto de princípios que virão a servir de base para um
sistema científico e propedêutico sobre o tratamento desta doença.
Em artigo recente de Zoretto (2007) observa-se que estudos realizados no Brasil
mostram que “cerca de metade da população adulta, mais especificamente 48% das
pessoas com mais de 18 anos, é abstêmia: não consome bebidas alcoólicas ou o faz, em
média, menos de uma vez por ano” (p.42) (dado auferido e sobre o qual o grupo de
pesquisadores não encontrou explicação, algumas hipóteses levantam razões religiosas
para isso). Entretanto, outros dados dessa pesquisa
2
apontam para situações mais
preocupantes encontradas, ou seja, o que acontece com os outros 52% dos brasileiros
apontados por esse estudo:
Desses, aproximadamente metade aprecia uma cerveja gelada ou
uma taça de vinho com pouca freqüência, entre uma a três vezes
por mês. O problema está na outra metade, correspondente a
25% da população adulta ou cerca de 30 milhões de brasileiros,
que consome bebidas alcoólicas mais de uma vez na semana.
Um em cada seis desses consumidores, classificados como
freqüentes, ingere níveis de álcool considerados nocivos para a
saúde porque aumentam o risco de se envolver em brigas, de
sofrer quedas ou fazer sexo sem proteção. (ibid., p. 44)
O consumo abusivo de álcool não é motivo de preocupação somente em relação
aos seus usuários freqüentes. Seus familiares, assim como toda a sociedade e seus
ordenadores legislativos e administrativos (o governo), também são vítimas desse hábito
e seus recorrentes prejuízos.
2
Essa pesquisa foi realizada pela Universidade Federal de São Paulo, coordenada pelo psiquiatra Ronaldo
Laranjeira, onde, “de novembro de 2005 a abril de 2006, pesquisadores treinados por ele e sua equipe
entrevistaram 3.007 pessoas com mais de 13 anos de idade em áreas urbanas e rurais de 147 municípios
das cinco regiões brasileiras”. Fonte: Revista Pesquisa Fapesp, Ciência e tecnologia. Pesquisa Fapesp
setembro 2007, n. 139, p. 42.
33
Outra pesquisa nos adverte sobre esses efeitos: “Os índices de problemas na
população variam conforme a cultura, as camadas sociais e dentro de cada cultura ao
longo do tempo. Ademais, o peso de problemas sociais e de saúde recai não apenas
sobre aqueles que bebem excessivamente, fato bem ilustrado em publicações clássicas e
recentes”. (Meloni e Laranjeira, 2004, p.7-8)
Do Brasil para o mundo podemos observar algumas características importantes
sobre o consumo alcoólico e suas conseqüências.
Os padrões de consumo alcoólico no mundo apresentam variações conforme “a
cultura, o país, o gênero, a faixa etária, as normas sociais vigentes e o subgrupo social
considerado” (ibid., p.8), e as relações entre consumo alcoólico, pobreza e violência
nem sempre são tão claras quanto podemos inferir precipitadamente. Esta mesma
problemática ocorre entre a produção de bebidas alcoólicas e o consumo global, sendo
importante mencionar dados coligidos pela própria indústria do álcool sobre fabricação
e venda de destilados no mundo a cada ano:
Tais informações dão conta de que a China é o maior produtor e
consumidor de destilados do planeta (725 milhões de litros de
baijiu
3
produzidos e comercializados), seguida pela Rússia, que
ostenta um consumo estimado em 350 milhões de litros de
vodka por ano. Essas mesmas fontes encontraram que o Brasil
ocupa, com sua cachaça, uma preocupante quarta colocação na
ordem dos maiores produtores mundiais de destilados, com algo
em torno de 200 milhões de litros comercializados ao ano, sendo
195 milhões consumidos no mercado interno. Produzimos e
consumimos o mesmo volume de pinga de que whisky. A
diferença é que o whisky é consumido mundialmente e a pinga
somente no Brasil”. (ibid., p. 8)
Ainda assim, quando avaliamos os indicadores de mercado de bebidas alcoólicas
no Brasil, não é a cachaça sua representante de prevalência; em uma estatística sobre o
3
Baijiu ou Shaojiu é uma potente bebida alcoólica destilada chinesa. O nome Baijiu literalmente significa
“licor branco”, “álcool branco” ou “espírito branco”. É uma bebida transparente, destilada do Sorgo,
sendo que outros grãos podem ser utilizados. Na aparência o Baijiu é parecido à vodka russa, ao shochu
japonês ou ao soju koreano, mas seu sabor é distinto e único. O baijiu tem, geralmente, entre 40% - 60%
de etanol, o que o torna uma bebida potencialmente perigosa. (Fonte Wikipedia).
34
consumo per capita em nosso país “a cerveja aparece em primeiro lugar, com 54 litros
per capita/ano; depois a cachaça, com 12 litros per capita/ano, seguida pelo vinho, com
1,8 litros per capita/ano”. (Galduróz e Caetano, 2004, p. 4) E isso sem contar com a
produção ilegal de bebidas alcoólicas, que a Associação Brasileira de Bebidas
(ABRABE), em 1984, “estimava que quase metade do consumo de destilados no Brasil
era produzida ilegalmente. Hoje em dia esses números não são conhecidos”. (ibid., p. 5)
Mas o que esses indicadores de mercado de bebidas alcoólicas não cessam de
apontar, é que:
Nota-se um crescente e imperturbável aumento do consumo de
cervejas no país, da ordem de 3 a 5% ao ano com uma produção
anual, estimada para 2005, de 9.884 milhões de litros. A cachaça
teve, em 2002, uma produção nacional de 1,3 bilhões de litros,
dos quais 14,8 milhões de litros foram exportados. Já o consumo
de vinho teve, em 2000, uma produção de 2,3 milhões de litros.
(ibid., p. 4)
Meloni e Laranjeira (2004) apontam para a mensuração do impacto à saúde
relacionado ao consumo do álcool:
Em uma escala coletiva, deve-se explorar duas dimensões
correlatas. Uma é a dimensão de exposição, que inclui volume
médio de consumo per capita e padrões de consumo. A outra
comporta as medidas das conseqüências, incluindo um extenso
conjunto de dados de morbi-mortalidade geral e as frações de
risco atribuíveis ao álcool. (ibid., p. 8)
E avançando ainda nesse artigo, apontam na direção de índices em que:
O volume médio de consumo é um dos elementos fundamentais
para avaliação do risco atribuível ao álcool como fator
implicado nas taxas de morbi-mortalidade geral, [...]. De
maneira geral, tanto maior o volume médio consumido, mais
problemas de saúde ocorrem. (p. 8)
E quando esse cálculo demonstra proporções globais:
Para o cálculo do peso global dos danos relacionados ao
consumo do álcool, a OMS caracterizou o padrão de consumo
em cada nação do globo terrestre, classificando-as em quatro
níveis de risco com variação crescente de 1 a 4, conforme o
padrão encontrado. (p. 8)
35
Observando as escalas mundiais, as conclusões apresentadas são as seguintes:
Os resultados podem ser considerados estratégicos em razão das
conclusões as quais é possível se chegar a partir dos mesmos.
De uma forma geral, a Europa ocidental possui padrões de
consumo de menor risco, evidenciando-se o contrário para a
Europa central e o bloco da antiga União Soviética. Grã-
Bretanha, China, Austrália, América do Norte e Oriente Médio
compõem, juntamente com a Argentina representante única da
América Latina , um grupo cujo padrão situa-se numa faixa
intermediária ou de baixo risco. Para a grande maioria de países
remanescentes, entre estes o Brasil, verificou-se a vigência de
padrões de consumo com elevado grau de risco (nível 4). Os
dados mostram que o padrão de consumo reflete-se nas taxas de
morbi-mortalidade atribuível ao consumo do álcool, numa razão
diretamente proporcional ao grau de risco associado ao mesmo.
( p. 8)
Sendo a epidemiologia “o estudo da distribuição dos estados ou acontecimentos
relacionados à saúde de uma dada população” (Galduroz e Caetano, 2004, p. 3), quando
traçada a fração de risco atribuível ao álcool em uma escala mundial temos que:
Os resultados do estudo reportado pela OMS mostram que, para
a população masculina, 5,6% de todas as mortes que ocorrem no
planeta são atribuíveis ao consumo de álcool, e 0,6% das mortes
ocorridas entre as mulheres, concluindo-se que o álcool
determina 3,2% da mortalidade global. Em 1990, a estimativa
foi de 1,5%, tendo havido uma majoração que ultrapassou
aquela cifra em mais que o dobro no período de dez anos,
indicando, portanto, uma tendência nada auspiciosa. (Meloni e
Laranjeira, 2004, p. 9)
E em se tratando de Brasil, estudos recentes traçam um panorama onde os
indicadores estatísticos sugerem que “o álcool, certamente, contribui fortemente na
etiologia e manutenção de vários problemas sociais, econômicos e de saúde enfrentados
em nosso país”. (Galduroz e Caetano, 2004, p. 3) Uma amostra disso relata que:
Os estudos epidemiológicos mais abrangentes do uso de álcool
na população geral foram os realizados pelo CEBRID Centro
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. Galduróz
et al. (2000) pesquisaram as 24 maiores cidades do Estado de
São Paulo, num total de 2.411 entrevistas, estimando que 6,6%
da população estava dependente do álcool. Dois anos depois, a
36
mesma população foi pesquisada novamente e constatou-se um
aumento estatisticamente significativo para 9,4% de
dependentes. (ibid., p. 3)
Conclusão: o alcoolismo é responsável por uma parcela significativa dos
problemas sociais, econômicos e de saúde, e sua tendência vem demonstrando
crescimento acentuado em curtos espaços temporais. Além disso, os lucros financeiros
auferidos pela acentuada avidez fazem com que essa demanda seja sempre crescente,
com a mídia tendo um papel relevante nesse sentido.
Para compreendermos os signos responsáveis pelas internações de pacientes por
motivo de abuso e/ou dependência alcoólica, devemos circunscrever de modo mais
minucioso e particular sua interferência no corpo dos sujeitos e os meios propostos para
o tratamento do alcoolismo.
O corpo e o álcool mantêm uma história secular, porém, “O alcoolismo não é
nem o álcool nem o alcoólatra” (Perrier, 1992, p. 333).
Como nos faz ver esse autor:
O álcool é um significante que tem sua história e suas estórias
através dos mitos, das lendas, das tradições, das particularidades
etnoculturais, das religiões, dos climas, etc. Ele é suporte de
interditos religiosos, bebida sagrada das celebrações ou agente
das catarses coletivas. Ele é, além disso, valor econômico
internacional, e, da mesma forma, como produto de consumação
corrente, um parâmetro de referência em sociologia, em
ecologia; tudo isto encoberto por ideologias manifestas ou
latentes.
Quanto ao alcoólatra, ele é, sabendo-o ou não, mas sempre para
aquele que o observa, o escuta, o procura ou o reconhece, o
amanuense de plantão, o representante de um impossível
comércio, o figurante desfigurável de tudo o que precede. (ibid.,
p. 333)
É assim que encontramos a “economia” do alcoolista enquanto uma economia
corporal seriamente abalada, desfigurada frente à demanda social que o sustenta e exige,
e quando essa desfiguração atinge níveis de atenção, devido à precariedade da condição
37
do sujeito ante o objeto álcool, faz-se presente a possibilidade da internação
psiquiátrica.
Para um sujeito adentrar um hospital psiquiátrico na condição de paciente a
partir de um diagnóstico de alcoolismo, é necessário que preencha uma série de
requisitos atestando que está comprometido, de modo acentuado, com transtornos de
humor, prejuízo corpóreo e carência social.
O projeto de organizar meios de tratamento e combate ao alcoolismo não é
contemporâneo, e a proposta de internação de pacientes alcoolistas em hospitais
psiquiátricos não é algo que tenha sido sempre usual.
Uma série de tentativas de ordenar o que poderiam vir a compor modos
terapêuticos para o tratamento e prevenção do alcoolismo em veiculação civil no Brasil
já foi material de ampla divulgação, como nos mostra Matos (2001):
As estratégias de ação nas campanhas eram diversificadas:
palestras e conferências, propaganda (cartazes, folhetos etc.),
semana antialcoólica, voltadas primordialmente às classes
populares, as “mais atingidas pelo mal”, já que os hábitos, o
meio e a educação poderiam evitar o aparecimento e a difusão
do alcoolismo. (ibid., p. 29)
Igualmente foram tentados os meios econômicos para supressão da ingesta
alcoólica:
Para combater o alcoolismo no Brasil, cuja característica é a
predominância nas classes pobres, deve-se encarecer
progressivamente, mas firmemente, o custo das bebidas e
colocá-las dentro em pouco fora das possibilidades de aquisição
dos modelos consumidores de parcos recursos. Eis o caminho a
seguir. (ibid., p. 31)
38
Também uma importante e interessante criação de “Ligas” (associações de
indivíduos com interesses comuns no intuito de alcançar determinado fim)
antialcoólicas:
A luta antialcoólica teve inicialmente como um dos seus
centros difusores a Liga Brasileira de Higiene Mental, que em
diferentes momentos desencadeou a campanha. Ela se propunha
a desempenhar um papel de amparo aos poderes públicos,
orientando-os e sugerindo ações e medidas. [...] Tem-se
conhecimento da ação empreendida pela Liga Paulista de
Higiene Mental (fundada em 1926), Sociedade Paulista de
Higiene, Liga Paulista de Profilaxia Moral e Sanitária, Liga
Antialcoólica Dr. Belisário Penna, Sociedade Antialcoólica
feminina Dr. Erwin Wolffenbruttel, Liga Militar Antialcoólica,
Liga Antialcoólica Operária, Liga Antialcoólica Infantil, Liga
Antialcoólica Pelotense, Ligas Antialcoólicas Católicas. O
gradativo desaparecimento das Ligas nos anos 30, não deve ser
visto como superação de suas propostas, mas evidenciam a
concretização de seus objetivos, o que pode ser atestado pela
institucionalização de políticas públicas. (ibid., p. 31, n. 21)
Além disso, em conjunto com as questões de comércio, as conexões associativas
entre o consumo alcoólico e as mazelas sociais como pobreza, loucura, criminalidade,
desemprego e estados da família (problemáticas conjugais e familiares decorrentes do
abuso etílico), sempre estiveram entre os fatores desencadeantes das propostas
higienistas e disciplinares para o tratamento do alcoolismo.
As estatísticas coincidiam com os fatores álcool x criminalidade x transtornos
mentais e clínicos, estando a problemática situada em como propor o melhor lugar para
esses doentes. Hermeto Lima, médico do início do século XX, apresenta os dados
estatísticos para a cidade do Rio de Janeiro em 1912: “Eram alcoólatras 83% dos
indivíduos presos, 80% dos condenados, 67% dos mortos por tuberculose, 62% dos
suicidas e 73% dos entrados em hospícios”. (ibid., p. 29)
Sob o prisma de pesquisas recentes, o fenômeno do alcoolismo apenas amplia
sua área de atuação, evidenciando as características já marcantes em seu trajeto social:
39
Distinguidas dos problemas de saúde, as categorias de
problemas sociais relacionadas ao álcool incluem: vandalismo;
desordem pública; problemas familiares, como conflitos
conjugais e divórcio; abuso de menores; problemas
interpessoais; problemas financeiros; problemas ocupacionais,
que não os de saúde ocupacional; dificuldades educacionais; e
custos sociais. Ainda que uma causalidade direta não possa ser
estabelecida, o estudo dessas categorias de danos [...]
demonstrou que as conseqüências sociais do uso do álcool
colocam esse produto, no mínimo, como um fator adicional ou
mediador entre outros que contribuem para a ocorrência de
determinado problema, conclusão similar aquela válida para
problemas de saúde. (Meloni e Laranjeira, 2004, p. 8)
Interessante observar um estudo recente dos técnicos em Saúde e Segurança
Pública que analisaram, no ano de 2006, amostras de sangue de 1073 pessoas que foram
assassinadas na cidade de São Paulo. O resultado indicou que em 41% delas foi
constatada a presença de álcool no organismo. Túlio Khan, sociólogo responsável pela
pesquisa, acredita que o álcool tenha sido ingerido na mesma proporção pelos
agressores, “é comprovado cientificamente que bebida e crime andam juntos”
(Dimenstein, 2007).
A queda no número de homicídios dolosos no Estado de São Paulo, a partir de
1999, encontra forte referência de critério em que: “parte dessa queda se deve à região
metropolitana, onde, em alguns municípios e bairros, antecipou-se o horário de
fechamento dos bares” (ibid.).
Frente às estatísticas e constatações dos danos sociais diversos causados pelos
sujeitos em estado de embriaguês alcoólica, são adotados desde o fim do século XIX e
início do século XX, medidas profiláticas, terapêuticas ou de reclusão com o intuito de
debelar a sanha alcoólica. As propostas terapêuticas eram diversas, desde a utilização de
soros, acompanhamento psicoterapêutico, isolamento ou todas elas reunidas.
40
Também a identificação do álcool como droga se fez gerador de campo de
infração civil, produzindo assim uma pressão para a elaboração de leis que pudessem
dispor sobre o comércio e utilização da substância, além de causa para reclusão do
indivíduo em estabelecimento correcional. A aprovação do Decreto nº. 4.294 de 6/7/
1921, estabelecia:
Artigo Apresentar-se publicamente em estado de
embriaguez que cause escândalo, desordem ou ponha em risco a
segurança própria ou alheia: Pena: multa de 20$ a 200$000. O
dobro em cada reincidência.
Artigo Embriagar-se por hábito, de tal modo que por atos
inequívocos se torne nocivo ou perigoso a si próprio, a outrem,
ou à ordem pública: Pena: internação por três meses a um ano
em estabelecimento correcional adequado. (Matos, 2001, p. 32)
Havia também a punição para o cidadão responsável pelo fornecimento da
substância “inebriante”, e a pena sofria um acréscimo se o referido fosse dono de casa
comercial. O tratamento seria composto de medidas médico-correcionais com regimes
de trabalho e intervenção médica adequada.
Todo esse trabalho de ordenação social em relação ao álcool e seus dependentes
gerou uma série de polêmicas sobre quais poderiam ser os lugares adequados para o
tratamento dessa afecção.
A solução encontrada foi manter o envio dos alcoolistas para locais onde
pudessem dispor de acomodações e tratamento em uma ampla gama de significações
à palavra “tratamento” , pois os centros de atendimento a toxicômanos, em que se
incluem alcoolistas, podem sustentar características de cunho ideal terapêutico pelas
vias mais diversas: laborais, punitivas, religiosas, psicanalíticas etc.
Enfim, locais para tratamento foram criados, a problemática se mantém no que
fazer e como pensar esses sujeitos e sua doença. As internações têm a função de
oferecer um tempo ao corpo, para que novamente ele possa se sensibilizar; a tentativa
via internação é a sustentação de uma abstinência da substância.
41
A primeira operação lógica e estratégica consiste, então, para o
interlocutor, em postular metodologicamente uma possível
supressão do uso do álcool: tomado como agente duplo
favorecendo uma guerra interminável entre o alcoólatra e ele
mesmo, isto a fim de que se depreendam as leis de
funcionamento de um conflito, referido à sua economia, sua
história e suas predeterminações, sob condição prévia de uma
exclusão do terceiro. É preciso então a bandeira branca de uma
trégua, que equivale metaforicamente à neutralização do
alquimista, para que se negocie, entre dois aliados ocasionais,
uma questão sempre inoportuna, porque entediante enquanto
interminável (aborrecedora como uma Justine sadiana, sempre
alerta e vítima do vício, na sua virtude). É, no nosso entender, a
partir deste modelo que nos serve de hipótese de trabalho, que se
pode decifrar de outro modo as tradicionais condutas
terapêuticas que definem a luta anti-alcoolismo. (Perrier, 1992,
p. 338)
O grande equívoco que é o alcoolismo e que interroga incessantemente todo
tratamento terapêutico se dá quando o sujeito, supondo apaziguar o que o oprime dando
se o que beber, com essa atitude faz com que o ego caia junto nesse entorpecimento,
pagando, portanto, um preço gigantesco com o próprio corpo, pois quando se
embebeda, fatalmente perde o controle corporal.
Nesta perspectiva, o recurso à bebida, uma vez que ele é
enunciado e assumido, pode ser interpretado, de início, como
uma determinação corajosa para tomar o partido de si mesmo; a
ser aquele que encontraria a arma-instrumento apta a abrir uma
brecha num sistema fechado como um huis clos solipsista ou
kafkiano.
Mas sabe-se que a absorção do filtro de potência e de liberdade
não interioriza, de fato, senão um agente de dissolução do Eu.
(ibid., p. 336)
Outra característica comum às entidades que se propõem a cuidar desses sujeitos
quanto ao desafio da abstinência é a proposta de que a privação do objeto alcoólico
deve ser associada a uma sustentação narcísica valorizada, grupalmente valorizada,
preenchida por uma vaidade ou presunção de que a vitória ante o objeto se constitui em
afastá-lo de seu ambiente.
42
Para tanto, o preço será sustentar uma comunidade de semelhantes, como
propõe Charles Melman (1991):
Encontra-se nesse lugar dos ALCOÒLATRAS ANÔNIMOS
uma espécie de duplo efeito produzido, por um lado, pela
sustentação do narcisismo – reconforta-se por se encontrar numa
comunidade com seus semelhantes. Por outro lado, há o aspecto
“challenge”, há o aspecto desafio: a partir de agora transforma-
se num homem de palavra, há uma mudança de valores que se
opera então; o que se torna viril é segurar a barra, é a
sobriedade. (p. 115)
Esse sistema foi criado e desenvolvido em meados do século passado nos
Estados Unidos da América do Norte e vem arrebanhando seguidores como psicólogos,
religiosos, médicos etc., em praticamente todos os continentes. Ao longo de sua
existência seus seguidores vêm contribuindo para a expansão e desenvolvimento de
“atitudes” que, ou bem seguem à risca os “passos” a serem percorridos por um
dependente ou inovam seu sistema (mas sem perder as características originais dos
“passos”), adaptando-o ao que supõe terapêutico, sendo praticado nos mais diversos
locais: hospitais, escolas, igrejas, estabelecimentos públicos e privados servindo à
função social de saúde pública.
Mas o surpreendente é que as tentativas de entrada dos AA’s no hospital,
enquanto grupo de suporte, ou mesmo enquanto propaganda de continuidade de
manutenção desse “tempo de não-beber”, não se configura como uma ferramenta
plenamente eficaz.
A contínua recusa dos pacientes internos em aceitar participar desses grupos nos
fez reordenar a proposta de entrada do AA. Hoje, palestrantes designados pelo grupo
realizam apresentações sobre o trabalho por eles desenvolvido e fornecem material de
divulgação no intuito de proporcionar, aos que assim desejarem, um apoio e direção
quando da alta médica do hospital. Interessante notar que os pacientes convidados a
43
participar desses encontros só o fazem em grupos muito pequenos, muitas vezes se
recusando absolutamente à participação.
Qualquer que seja a forma utilizada no intuito de estabelecer algum outro tempo
e espaço para o alcoolista que sinta necessidade de se internar devido à sua relação com
o álcool, o fato é que estaremos propondo um tempo de descanso e restabelecimento ao
corpo, aliado a algum modo contratual de que ele deverá se abster desse vínculo para
que o espaço faça algum sentido outro. Porém, o que não deve ficar de fora dessa
proposta de contrato é a dúvida eterna em que se encontra esse outro (médico,
psicanalista ou a função que tiver quem quiser ajudá-lo – sempre um problema com as
boas intenções) sobre a presença do objeto álcool nesse jogo, ou seja, de que esse objeto
estará sempre assombrando essa relação e isto o obrigará (esse interlocutor) a repensar
incessantemente a posição que, fatalmente, sentirá como agressão no contrato
estabelecido.
Como nos questiona Perrier (1992):
Enfim, todo interlocutor, por acaso, por eleição ou por profissão,
não seria posto em posição de agredido pelo que, no
procedimento do alcoólatra é ao mesmo tempo busca do outro,
apelo a ele e à sua alteridade, e também denegação desta em
proveito deste outro desconhecido, “o alquimista” do etanol? (p.
337)
Efetivamente, não estaremos mais inadvertidos perante a armadilha que nos
ronda, o que não significa, em hipótese alguma, que não poderemos, e talvez até
devamos, nos sujeitar a nela cair.
Voltando às condições necessárias para que um sujeito adentre um hospital
psiquiátrico para o tratamento de seu alcoolismo, é fundamental que preencha requisitos
de ordem médica-psiquiátrica. Esses requisitos encontram-se atualmente classificados
nos dois grandes manuais de transtornos mentais e de comportamento utilizados: o
DSM-IV ( Diagnostic and Statistical Manual, em sua quarta revisão), criado e utilizado
44
de modo mais estrito nos EUA, e o CID-10 (Classificação Internacional de Doenças,
em sua décima revisão).
Tendo o programa de saúde mental da Organização Mundial de Saúde criado e
referenciado globalmente o CID-10, este também se tornou o sistema classificatório
adotado oficialmente no Brasil que, como signatário da carta da ONU, tem esse sistema
classificatório regendo todas as organizações de saúde mental no país. É a partir de suas
diretrizes que observaremos as condições de entrada do alcoolista no hospital
psiquiátrico brasileiro.
O CID-10 apresenta em seu capítulo destinado a “Transtornos mentais e de
comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas” a classificação F10. para
os “Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de álcool”, seguido de
uma especificidade sobre as condições clínicas apresentadas pelo paciente quando da
entrada em ambulatório para avaliação.
“A substância envolvida é indicada por meio do segundo e terceiro caracteres
(isto é, os primeiros dois dígitos depois da letra F) e o quarto e quinto caracteres
especificam os estados clínicos” (CID. 10, 1993, p. 71).
Para que se observem as Diretrizes diagnósticas a identificação da substância
psicoativa utilizada pode ser feita “com base em dados fornecidos pelo próprio paciente,
análise objetiva de amostras de urina, sangue, etc. ou outra evidência (presença de
amostras de drogas em posse do paciente, sinais e sintomas clínicos ou relatos de
terceiros)”. (ibid., p. 71) O relato do transtorno deve ser classificado, preferencialmente,
de acordo com a substância mais importante (causadora do transtorno) utilizada.
O reconhecimento do estado do paciente se dará após observação de algumas
diretrizes diagnósticas:
F1x.0 Intoxicação aguda – A intoxicação aguda está usual e
intimamente relacionada aos níveis de doses (ver CID-10,
45
capítulo XX). Exceções a isto podem ocorrer em indivíduos
portadores de certas condições orgânicas subjacentes (p.ex.
insuficiência renal ou hepática), nos quais pequenas doses de
uma substância podem produzir um efeito intoxicante
desproporcionalmente grave. Desinibição decorrente do
contexto social deve ser também levada em consideração (p.ex.
desinibição do comportamento em festas ou carnavais). A
intoxicação aguda é um fenômeno transitório. A intensidade da
intoxicação diminui com o tempo e os efeitos finalmente
desaparecem na ausência de uso posterior da substância. A
recuperação é completa, portanto, exceto quando surgirem lesão
tecidual ou complicações. (ibid., p. 72)
Há também, ainda no terreno das intoxicações agudas, “complicações
associadas” tais como traumatismo ou outra lesão corporal, delirium, distorções
perceptivas, coma, convulsões, e especialmente para o uso do álcool:
F1x.07 Intoxicação patológica
Usada somente para álcool. Início abrupto de agressão e
freqüentemente comportamento violento que não é típico de
indivíduo quando sóbrio, logo após ter ingerido quantidades de
álcool que não produziriam intoxicação na maioria das pessoas.
(ibid., p. 73)
F1x.1 Uso nocivo Um padrão de uso de substância
psicoativa que está causando dano à saúde. O dano pode ser
físico (como nos casos de hepatite decorrente da auto-
administração de drogas injetáveis) ou mental (p.ex. episódios
de transtorno depressivo secundários devidos a um grande
consumo de álcool).
A diretriz diagnóstica para avaliação de “uso nocivo” proporá:
O diagnóstico requer que um dano real deva ter sido causado à
saúde física e mental do usuário.
Padrões nocivos de uso são freqüentemente criticados por outras
pessoas e estão com freqüência associados a conseqüências
sociais diversas de vários tipos. O fato de que um padrão de uso
ou uma substância em particular não seja aprovado por outra
pessoa, pela cultura ou possa ter levado a conseqüências
socialmente negativas, tais como prisão ou brigas conjugais, não
é por si mesmo evidência de uso nocivo.
A intoxicação aguda (ver F1x.0) ou a “ressaca” não é por si
mesma evidência suficiente do dano à saúde requerido para
codificar uso nocivo. (ibid., p. 74)
46
F1x.2 Síndrome de dependência Um conjunto de
fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, no qual
o uso de uma substância ou uma classe de substâncias alcança
uma prioridade muito maior para um determinado indivíduo
que outros comportamentos que antes tinham maior valor. Uma
característica descritiva central da síndrome de dependência é o
desejo (freqüentemente forte, algumas vezes irresistível) de
consumir drogas psicoativas (as quais podem ou não terem sido
medicamente prescritas), álcool ou tabaco. Pode haver evidência
que o retorno ao uso da substância após um período de
abstinência leva a um reaparecimento mais rápido de outros
aspectos de síndrome do que o que ocorre com indivíduos não
dependentes. (ibid., p. 74)
As diretrizes diagnósticas que evidenciam a síndrome de abstinência são as
seguintes:
Um diagnóstico definitivo de dependência deve usualmente ser feito somente se
três ou mais dos seguintes requisitos tenham sido experienciados ou exibidos em algum
momento durante o ano anterior:
(a) um forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância;
(b) dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos
de seu início, término ou níveis de consumo;
(c) um estado de abstinência fisiológico (ver F1x.3 e F1x.4) quando o uso da
substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por: a síndrome de
abstinência característica para a substância ou o uso da mesma substância (ou de
uma intimamente relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de
abstinência;
(d) evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância
psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por
doses mais baixas (exemplos claros disto são encontrados em indivíduos
dependentes de álcool e opiáceos, que podem tomar doses diárias suficientes
para incapacitar ou matar usuários não tolerantes);
(e) abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da
substância psicoativa, aumento da quantidade de tempo necessária para obter ou
tomar a substância ou para se recuperar de seus efeitos;
(f) persistência no uso da substância, a despeito de evidências claras de
conseqüências manifestamente nocivas, tais como dano ao fígado por consumo
excessivo de bebidas alcoólicas, estados de humor depressivos conseqüentes a
períodos de consumo excessivo da substância ou comprometimento do
funcionamento cognitivo relacionado à droga; deve-se fazer esforços para
determinar se o usuário estava realmente (ou se poderia esperar que estivesse)
consciente da natureza e extensão do dano.
47
Estreitamento do repertório pessoal de padrões de uso de
substância psicoativa também tem sido descrito como um
aspecto característico (p.ex. uma tendência a tomar bebidas
alcoólicas da mesma forma em dias úteis e fins de semana, a
despeito de restrições sociais que determinam o comportamento
adequado de beber). (ibid., p. 75)
Uma característica essencial da síndrome de dependência é que tanto a ingestão
da substância quanto o desejo de ingeri-la devem estar presentes, sendo que a
consciência subjetiva dessa compulsão é mais claramente observada na tentativa de
estancar ou controlar o uso da mesma.
Além desses requisitos, a síndrome de dependência ainda pode ser especificada
pelas seguintes precisões: abstinente, abstinente porém em ambiente protegido (hospital,
comunidade terapêutica, prisão etc.), atualmente usando a substância, uso contínuo, uso
episódico (dipsomania).
F1x.3 Estado de abstinência Um conjunto de sintomas, de
agrupamento e gravidade variáveis, ocorrendo em abstinência
absoluta ou relativa de uma substância, após uso repetido e
usualmente prolongado e/ou uso de altas doses daquela
substância. (ibid., p. 76)
A diretriz diagnóstica do estado de abstinência é também um dos indicadores da
síndrome de dependência, em que esse diagnóstico deve também ser considerado,
porém, o “estado de abstinência deve ser codificado como diagnóstico principal, se é a
razão para o encaminhamento e grave o suficiente para requerer atenção médica por si
só” (ibid., p. 77).
É possível observar uma variação entre os sintomas físicos de acordo com cada
substância que vinha sendo utilizada, mas devem ser observados também os aspectos
comuns da abstinência, ou seja, perturbações psicológicas como ansiedade, depressão e
transtornos de sono, bem como a referência dada pelos pacientes de que esses sintomas
são atenuados pelo uso posterior da substância.
48
F1x.4 Estado de abstinência com delirium Uma condição
na qual o estado de abstinência é complicado por delirium.
Delirium Tremens induzido por álcool deve ser codificado aqui.
Delirium tremens é um estado toxiconfusional breve, mas
ocasionalmente com risco de vida, que se acompanha de
perturbações somáticas. É usualmente uma conseqüência de
abstinência absoluta ou relativa de álcool em usuários
gravemente dependentes, com uma longa história de uso. O
início usualmente ocorre após abstinência de álcool. Em alguns
casos, o transtorno aparece durante um episódio de consumo
excessivo de bebidas alcoólicas, em cujo caso ele deve ser
codificado aqui.
Os sintomas prodrômicos tipicamente incluem insônia, tremores
e medo. O início pode também ser precedido por convulsões por
abstinência. A clássica tríade de sintomas inclui obnubilação de
consciência e confusão, alucinações e ilusões vívidas afetando
qualquer modalidade sensorial e tremor marcante. Delírios,
agitação, insônia ou inversão do ciclo do sono e hiperatividade
autonômica estão também usualmente presentes. (ibid., p. 77-
78)
F1x.5 Transtorno psicótico Um conjunto de fenômenos
psicóticos que ocorrem durante ou imediatamente após o uso de
substâncias psicoativas e que são caracterizados por alucinações
vívidas (tipicamente auditivas, porém freqüentemente em mais
uma modalidade sensorial), falsos reconhecimentos, delírios
e/ou idéias de referência (freqüentemente de natureza paranóide
ou persecutória), transtornos psicomotores (excitação ou
estupor) e afeto anormal, o qual pode variar de medo intenso à
êxtase. O sensório está usualmente claro, mas algum grau de
obnubilação de consciência, ainda que não confusão grave, pode
estar presente. O transtorno tipicamente se resolve, pelo menos
parcialmente, dentro de 1 mês e completamente dentro de 6
meses. (ibid., p. 78)
Junto às diretrizes diagnósticas deve-se incluir: alucinose alcoólica, ciúme
alcoólico, paranóia alcoólica e psicose alcoólica.
F1x.6 Síndrome amnéstica Uma síndrome associada a um
comprometimento crônico e proeminente da memória recente; a
memória remota está às vezes comprometida, enquanto que a
imediata está preservada. Perturbações da orientação temporal e
cronológica de eventos são usualmente evidentes, assim como
dificuldades em aprender material novo. Confabulação pode ser
marcante, mas não está invariavelmente presente. Outras
funções cognitivas estão em geral relativamente bem
preservadas e os defeitos amnésicos são desproporcionais em
relação a outras perturbações. (ibid., p. 80)
49
As observações para compreensão das diretrizes diagnósticas são:
a) comprometimento de memória como exibido em comprometimento de memória
recente (aprendizagem de material novo); perturbações do sentido de tempo
(rearranjos da seqüência cronológica, superposição de eventos repetidos em um
só etc.);
b) ausência de defeito da memória imediata, de comprometimento de consciência e
de comprometimento cognitivo generalizado;
c) história ou evidência objetiva de uso crônico (e particularmente altas doses) de
álcool ou drogas. (ibid., p. 80)
Inclui-se aqui as diretrizes diagnósticas “psicose” ou “síndrome de Korsakov”
induzida por álcool ou outra substância.
F1x.7 Transtorno psicótico residual de início tardio Um
transtorno no qual alterações de cognição, afeto, personalidade
ou comportamento induzidas por álcool ou outra substância
psicoativa persistem além do período durante o qual um efeito
direto da substância psicoativa pode ser razoavelmente
considerado como operante. (ibid., p. 81)
As diretrizes diagnósticas para esse transtorno exigem que o mesmo esteja
relacionado diretamente ao uso do álcool ou substância psicoativa, e que para ser
codificado aqui somente quando houver “evidência clara e forte de que o estado é
atribuível ao efeito residual da substância”. (ibid., p. 81)
Também é necessário observar o período de tempo em que os efeitos da
substância possam ser considerados operantes, para demarcar uma diferença entre esse
transtorno e a “intoxicação aguda” (F1x.0), pois “demência induzida por álcool ou
substância psicoativa não é sempre irreversível; depois de um período longo de
abstinência total, funções intelectuais e memória podem melhorar” (ibid., p. 81).
Além disso, o transtorno deve ser distinguido de condições relacionadas à
abstinência. Haverá também a possibilidade de subdivisão diagnóstica utilizando-se os
seguintes descritivos complementares: Flashbacks (revivescências), transtorno de
personalidade ou de comportamento, transtorno afetivo residual, demência, outro
comprometimento cognitivo persistente ou transtorno psicótico de início tardio.
50
F1x.8 Outros transtornos mentais e de comportamento
Codifique aqui qualquer outro transtorno no qual o uso de uma
substância pode ser identificado como contribuindo diretamente
para a condição, porém o qual não preenche os critérios para
inclusão em qualquer um dos transtornos acima. (ibid., p. 82)
F1x.9 Transtorno mental e de comportamento não
especificado. (ibid., p. 82)
Como descrito nesse “bloco” do CID–10, os transtornos aqui descritos vão de
uma intoxicação não-complicada até transtornos psicóticos e demências relacionadas ao
álcool e outras substâncias. Para que uma internação psiquiátrica se efetive, é necessária
a contemplação de algum desses itens, bem como um pedido do paciente ou, quando
impossibilitado dessa anuência, que alguém se responsabilize (geralmente algum
familiar) pela internação.
W. Chega ao Hospital contemplando os critérios de “uso nocivo” e “síndrome de
dependência” nos “Transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas” em
relação à “dependência alcoólica”.
51
O caso clínico Transferência e contratransferência
Primeira sessão
W. tem 43 anos e está internado há três meses no hospital. Chamo-o para
conversar sobre sua situação, como se sente, o que pensa do tempo em que já está
internado e o que propõe para a continuidade de nossas direções terapêuticas para seu
caso.
— Minhas internações começaram no ano de 2000, tive muitas, não lembro
quantas, em períodos muito curtos, e que foram se encurtando. Sinto como se os
tratamentos fossem paliativos. Fui tendo convulsões, e acredito que elas estavam se
vinculando com a bebida.
W. apresenta um histórico de convulsões desde os seis anos, mas que manteve
sob breve tratamento medicamentoso com rápida supressão dos sintomas convulsivos.
A história da bebida
— Eu era um toxicômano, usava maconha constantemente, mas também bebia,
não era como agora, como o ponto em que cheguei, a maconha eu consegui largar, mas
acho que tudo isto tinha uma relação com a relação que tive com meu padrasto.
Comecei a andar com maus elementos, fugi de casa, voltei... Minha frustração
maior é isso, eu luto, luto, luto, e por causa de coisas banais acabo voltando. Ando em
estado de alerta, com medo de ter convulsão, acordar e não lembrar de nada e ter
outro ataque.
52
Meu padrasto era alcoólatra, me vinguei de muita coisa sendo um alcoólatra.
Fiquei obcecado por isso, a tal ponto que estudei como é o procedimento, o ambiente,
tudo, estudei como ser um viciado!
Trabalhei como livreiro, dava para ler muito, tinha acesso a muitos livros, e no
conceito de vício aprendi tudo.
Eu queria me desvencilhar dele, me desvencilhar do meu padrasto, ele só me
dava bronca, o único diálogo era sobre as coisas que eu tinha que fazer para ele, e
tomar bronca quando não fazia. Eu era o homem da casa, a casa era em um declive,
tive que aterrar a casa, tinha até o apelido de popó, pois eu vivia empurrando carrinho-
de-mão cheio de terra para aterrar a casa, para compensar o declive.
Meu pai sofria de nefrite,
4
chegou a fazer hemodiálise, mas, infelizmente, a
medicina não tinha recursos para ele. Ele morreu na mesa de operações, eu tinha
quatro anos, mas minha mãe nunca me explicou melhor do que isso a morte dele, nunca
entendi o porquê ele morreu.
Minha mãe era batalhadora, criou dez filhos, mas eu dei errado. Estive preso,
foi uma injustiça, por causa da maconha fiquei uns meses preso, era pra uso próprio,
mas como carregava muita quantidade quando me flagraram, me taxaram como
traficante. Uma injustiça.
A bebida mesmo só começou a influenciar depois, acho que depois de muitas
frustrações, frustrações no trabalho. Eu lecionava pelo Estado, e também pela
prefeitura, mas isto significava um acúmulo de cargos, eu precisava preencher uma
burocracia chamada CPAC, uma papelada que me permitiria manter esse duplo
vínculo, mas eles não permitiram. Eu trabalhava na maior favela de São Paulo,
4
Inflamação dos rins.
53
trabalhava na periferia, em Mauá, meu ideal era ser uma pessoa normal, mas, mais
ainda, eu queria levar as pessoas que estavam no mal caminho para algo melhor.
Tive tudo para ser um marginal e me tornei um alcoólatra.
Quando vou ao bar saio com o título de professor, a gente só é reconhecido
como o que se é quando se está na pior. Minhas qualificações só são reconhecidas no
bar. Sabe, a impressão que tenho é que têm umas duzentas pessoas torcendo para eu
encher a cara. Mesmo quando me internava aqui no hospital eu mal passava pelos
grupos, eu ficava com muita vergonha. Eu procuro me recuperar, mas sempre sofro
com a recuperação, sinto como se estivesse sendo vigiado, jogado no fundo do poço.
Tem um negócio que chamam ego e o ego deles não permite que andem comigo.
Minha leitura é taxada de subversiva, então virei um grande solitário, mas é uma
solidão imposta, eu não escolhi. Gosto de lecionar, interpretar os livros, mas com um
copo na mão não adianta. Fico envergonhado quando venho aqui, há alguns anos não
me considerava mais gente.
Mesmo sendo um bêbado tento conservar minha vida, só isso, não posso ficar
em silêncio o resto da vida.
54
Segunda sessão
Tô na luta apesar dos entraves. É assim que W. inicia sua sessão. Os entraves
– me explica são os problemas familiares. Peço que amplie o que quer dizer a partir
disso.
— “Não me dou bem com nenhuma das duas famílias. Em relação à primeira, a
história é assim: eu optei em casar, era jovem, trabalhava em pesquisa, gostava de
conhecer as trilhas, os terrenos; os lugares onde viajava eram explorados por mim,
então, na década de noventa, fim dos anos oitenta, fiz uma viagem para o Vale do
Ribeira; tem uma cidadezinha lá chamada Iporanga, lá eu conheci um rapaz com o
qual fiz amizade, e foi ele que me apresentou a mulher. Ela era doméstica, tivemos um
relacionamento e ela ficou grávida, eu resolvi assumir a criança. A pobreza era geral
no Vale do Ribeira, e eu não possuía defeitos profissionais, podia dar uma vida boa
para nós, e foi em 1991 que minha filha nasceu em 19 de dezembro. Acho que nas
cidades do interior tem esse conceito de que quem é de São Paulo é um partidão, mas
eu nunca fui um partidão.
Chamou minha atenção o desvio abrupto e confuso que toma, a partir daí, para
continuar explicando sua primeira família, mas depois observo que sua narrativa
mantém, simbolicamente, uma conexão sintomática importante.
Ele continua: — O gatilho do álcool estava dentro de casa, meu padrasto sempre
chegava bêbado. As minhas palavras ela não entendia (a esposa) eu tinha a faca e o
queijo na mão para estar rico, mas havia interferência. Aí construí uma casinha em São
Paulo, para que ficássemos juntos, construí no terreno de minha mãe, construí lá
porque eu era primogênito e herdeiro do primeiro casamento de minha mãe.
55
No meu trabalho na prefeitura eu não aceitava as falcatruas que se faziam, e me
sentia reprimido em casa; queria falar com alguém sobre como as coisas que
aconteciam no trabalho me afetavam, mas ela não conseguia me ouvir, só sei que ia
ficando deprimido por estar tão sozinho. Claro que aí eu já tinha começado a beber,
era muito deprimido sabe, cresci num contexto familiar onde não havia diálogo, só
tarefas, que se não fossem feitas eu era agredido por meu padrasto. Mas tudo bem, são
coisas que não relevo, por que eu aprontava mesmo.
Peço uma pausa e pergunto se percebeu o que havia dito, ou seja, na intenção
narrativa de dizer que releva, desculpa, o que lhe foi feito desde sua infância por seu
padrasto, diz justamente o contrário.
— Eu me embalo nas conversas, fico constrangido de falar tanto e nós não
chegar-mos em conclusão nenhuma... não criticando, pois o tratamento aqui é ótimo,
aliás, vocês estão de parabéns, mas o problema é que quando eu volto pra cá eu volto
pior.
Insisto para que pense em seu ato de fala, e como poderia nos explicar por que
diz que não releva, que não perdoa o que lhe aconteceu, bem como quais seriam as
conseqüências para si de tal conduta.
— Tem formas de magoar e a aversão é pior do que cometer um ato. Consegui
sair das drogas e o álcool me pegou, engraçado, estudei muito sobre o álcool e os
vícios, achei que isso me daria controle sobre as drogas. Mas ainda lhe respondendo,
eu optei pela honestidade, está na minha índole, tentaram me pegar, não conseguiram,
pois quando trabalhava na prefeitura meu almoxarifado sempre esteve certo, o
percentual de erro estava dentro do aceitável, nunca tive problemas, mas eles queriam
me pegar, acho que para abafar outros almoxarifados, não sei, mas sempre estive com
tudo certo. O problema sempre foi a falta de conversa, se eu tivesse com quem
56
conversar não acho que teria recaído, não acho que teria voltado para cá desta vez,
mas sei que não estou bem ainda, não estou preparado para sair. Tenho crises de
depressão.
— Me explique como entende isso que chama de depressão.
— Depressão é ter alguns sonhos para realizar e você não conseguir iniciar,
pelo contrário, quanto mais passa o tempo mais o sonho fica distante, isso vai dando
uma frustração que me leva à bebida, começo a fazer julgamentos, começo a analisar a
situação, mas quando percebo já está tudo errado, pois já estou bêbado. Tenho que
saber cuidar das minhas coisas, ainda tenho posições de adolescente, como se os outros
tivessem que resolver minhas coisas; fico pensando em tudo isso e fico deprimido, tomo
chocolatada, chibatada, e minha mãe nem liga para mim, aliás ela ligou, não veio me
visitar, mas ligou para dizer que umas camisas que eu havia deixado de molho
apodreceram.
Ela conseguiu sobreviver, casou com meu padrasto que me obriga a chamar de
pai, ele tinha muitos problemas, era muambeiro, briguento, beberrão. Ele não entende
que eu passo maus bocados, eles estão me cobrando a perfeição que eu não tenho.
Fico surpreso com o relato, a agitação mental é evidente; estes são os ecos que
reverberam incessantemente durante seu período abstinente no hospital. Também me
surpreende escutar a queixa de dívida para com esses outros que lhe cobram perfeição,
uma perfeição que não possui, um Ideal de Eu prejudicado. Faço um comentário sobre o
quanto ele é duro consigo...
Eu agora tenho com quem falar, antes não havia ninguém.
Mas o que o impedia de procurar outros serviços que pudessem auxiliá-lo
justamente nesse sentido, ou seja, o que o impedia de procurar pessoas que pudessem
escutá-lo?
57
Eu fui à dianética,
5
freqüentei a acupuntura, fiz aulas de desenho, mas nunca
consegui conversar com as pessoas, acho que é o modo delas levarem a conversa, aqui
parece que tem algo diferente, não tenho vontade de beber, vou até o ateliê e faço
minhas obras, passo o tempo assim, vocês me ajudam muito com nossas conversas, tem
também a psiquiatra... Não tenho vontade de beber quando estou aqui. Mas sei que
assim que sair tenho que voltar à escola, ocupar meu tempo, utilizar meu tempo, ter
outros diplomas. Não estou produzindo nada. Na prefeitura não consigo fazer nada,
vejo as coisas erradas vou falar e não posso. Pensei que na verdade o que eu quero é
consertar o mundo e não tenho força para isso. Quero consertar minha família, mas
não tenho jeito; já cheguei a fugir de casa duas vezes, fugi pelos conflitos que tinha
com o meu padrasto, ele jogava dominó e ia bebendo, quando chegava em casa
escolhia um pra loco e esse que era eu apanhava. Ele era muito rígido, tinha que
cortar o cabelo à moda dos EUA, corte de réco.
6
Nesta internação não participo do clubinho
7
, eu não consigo consertar o outro
e nem consigo consertar eu mesmo. Minha fortuna não é a do dinheiro, é a do intelecto,
e eu não tenho medo de nenhum desafio de intelecto.
Então eu proponho um desafio. Será? Será que você encara qualquer um?
Veremos onde poderá encontrar esse desafio.
Doutor, isto aqui é um privilégio de Deus!
5
W. já me havia explicado anteriormente que a “dianética” é um grupo de estudiosos que se reúne e
oferece seus conhecimentos para reuniões e diálogos entre seus participantes. A proposta é de uma terapia
calcada na conscientização dos erros do sujeito e, a partir daí, uma mudança efetiva em suas vidas.
A “Dianética” se auto-intitula uma igreja e uma religião; em 1950, Lafayette Ronald Hubbard publicou
Dianetics: The modern science of mental health. Esse livro é a bíblia da Cientologia, e nessa obra
Hubbard diz ao leitor que a Dianética “contém uma técnica terapêutica com que podemos tratar todas as
doenças mentais inorgânicas e orgânicas psicossomáticas, com garantia de completa cura”. (fonte Gogle).
6
Corte de cabelo feito com máquina, utilizado pelo exército quando da admissão do sujeito a recruta.
7
O “clubinho” é uma prática já conhecida no hospital (e que imagino presente em outros centros de
tratamento) onde muitos pacientes ficam conversando em roda, de modo às vezes furtivo – ao menos dos
funcionários do hospital sobre como e de que modo continuarão a utilizar as substâncias que
invariavelmente os trouxeram para cá.
58
E de modo intrigante me vejo irritado, como se toda nossa conversa houvesse
caído por terra. Ante esse comentário, digo-lhe que isto aqui não é um privilégio divino,
ao menos que não é só, e que desse âmbito nada tenho a dizer, mas que precisava então
lhe contar como foi que ele, paciente, conseguiu um privilégio comigo.
Durante muitos grupos realizados percebia a presença pouco dedicada de W.
nos encontros. Imaginava achar que ele estivesse atento, escutando, mas sem se
manifestar, não dizendo uma palavra, não tecendo qualquer comentário. Certo dia, em
um grupo, ele começou a falar e a relatar suas experiências familiares, falando também
de seu desejo de encontrar interlocutores; senti-me atraído por sua fala, pensei o quanto
ele poderia se beneficiar de um atendimento individual.
Digo-lhe que espero que saiba que escolho poucos para este atendimento, pois
sou muito ocupado com outras tarefas e este tempo é dedicado aos que realmente me
tocam de modo especial.
Durante o tempo que falei, me escutou com um olhar surpreso e um misto de
alegria e vergonha. Ao término de minha fala fico observando sua reação e me sinto
estranho. W. fica parado, como que aturdido, em alguns segundos acorda desse estado
de torpor e agradece minha sinceridade. Não sei o que pensar.
8
Encerro esse encontro
ali e proponho que pense sobre tudo isso.
8
Mais tarde, escrevendo sobre essa sessão, percebo que esse momento me fez refletir sobre uma
passagem em que Freud (1930), em “O mal-estar na civilização” escreve: “O destino é encarado como um
substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa que não é mais amado por
esse poder supremo, e, ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno
em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava pronto a desprezar” (p. 130).
Minha aposta é de que eu conseguisse uma aliança com seu ego, reduzindo a influência da instância
superegóica na fuga pela idéia de uma intervenção divina e conduzindo a mim essa aliança, mas o que
entendo na observação de Freud é justamente o risco de que isso não ocorra, o desprezo podendo mais
uma vez se manifestar quando proposto à boa sorte do terapeuta ter lhe escolhido, o que parece se
manifestar em sua frase final: “Desculpe por qualquer coisa”. Por enquanto só posso observar a
continuidade disto nos próximos atendimentos.
59
Ao acompanhá-lo até a porta me despeço e novamente sou pego de surpresa por
minha irritação; ele me estende a mão em cumprimento, num gesto rápido, um obrigado
e um “desculpe por qualquer coisa.
A sensação foi de que o sintoma de se sentir cobrado à perfeição está
completamente presente, em seus atos e em seus encontros; a transferência fica marcada
por esta letra.
Terceira sessão
Começo a sessão decidido a retomar o “desculpe por qualquer coisa”. Pergunto-
lhe, portanto, como foi que sentiu nossa última sessão.
Foi uma sessão muito boa porque fomos espontâneos! Uma palavra errada
pode transtornar a conversa.
— E por que, então, você me pediu desculpas quando o deixei na porta da ala
para subir?
— É meu modo de falar, se eu acho que ocupei demais do seu tempo, isso é
devido à falta de diálogo com as pessoas.
— Estou lhe perguntando sobre o pedido de desculpas, o que foi que
aconteceu? Por que você teve de me pedir desculpas?
— Ficou parecendo que eu tinha que me agitar mais, movimentar mais, deixar
fora o álcool e pegar outra coisa, ficou nítido que eu agarro o infrutífero e viro – de
novo – o coitadinho, aquilo que eu disse (o pedido de desculpas) não passa do meu
modo adolescente que não consegue virar adulto.
— E por que você me pediu desculpas?
Porque achei que tomei seu tempo.
60
— E quem te disse isso?
Eu imaginei.
— Então é por isso que você não dialoga?
— O problema é que faço questão de frisar que eu sempre estou embriagado,
daí não entendo porque é que eu tenho ataques epilépticos quando não bebo.
— Porque você está sempre embriagado.
Nesse instante W. me olha com estranheza, com um sorriso de canto de boca –
como quem não entendeu muito bem – e silencioso.
Em seguida retoma a conversa:
Eu não sou uma pessoa maldosa nem vingativa.
— É sim, especialmente com você.
(Firmando a voz, com elevação de seu tom): — Eu não quero viver em um
mundo de conflitos, eu sou um conflito!
— É justamente isto que estou lhe dizendo, é assim que você se vinga e
prejudica a si mesmo.
(Mais alterado em sua voz e postura): — Você não percebe que já mudei minhas
atitudes? Eu estou mais falante!
(De modo questionador, quase inquisidor continuo): — Isso é aqui dentro, e lá
fora, como será?
(Já retomando o tom de voz calmo, com o olhar de submissão que lhe é
característico): — Gosto de pintar, quando aparecer o conflito vou pintar.
— Me diga, quanto você ganha por mês?
Eu deveria ganhar...
— Perguntei quanto você ganha não quanto deveria, líquido, quanto?
Esse mês veio uns R$500, 00, no mês passado foram R$700,00.
61
— E o que você acha disto?
Ridículo (e ri).
— Sou formado em hotelaria, deveria poder ganhar mais, uns R$2.500,00, aí
estaria melhor, poderia viver de modo mais digno. Eu sei que agora eu já estou melhor,
nossas conversas têm me ajudado muito.
— E qual é sua opinião sobre minha pessoa?
— Em relação a você, eu escutava muito do que o pessoal dizia a seu respeito,
que você fala muito, dá ordens, não dá atenção individual para todos, mas eu não vejo
assim, sempre entendi sua situação, você é coordenador aqui, tem suas obrigações,
apresenta as psicólogas e o tratamento para nós, o pessoal dos estágios...
— E você nunca me viu de forma ruim
Não.
(Não entendo bem, mas fiquei decepcionado, como se esperasse que ele pudesse dizer
sobre meu lado ruim, meu lado que não o agradaria, o que incomodaria em minha
pessoa).
— Gostaria de voltar à desculpa. Então, por que será que você me pediu
desculpas naquele momento?
O senhor sabe sobre o meu problema, o senhor estudou para isso...
— Como você acha que eu posso saber mais do seu problema do que você
mesmo? Acho que você, com esse pedido de desculpas, me jogou em uma vala comum.
— Não, eu gostei da conversa. Eu é que estou ressuscitando, eu é que estou
saindo de uma vala comum; para mim, Maquiavel é o pai da geopolítica, meus livros
são subversivos, Paulo Freire, Antônio Calado, Gabriel García Marques, Fernando de
Morais, esses não são subversivos.
— Qual é a sua subversão?
62
— Procurar me atualizar, não me distanciar da cultura, me apresentar melhor
aos que não tem acesso a ela. Senão caímos na lei de Newton, “todo corpo tende a ficar
parado até que uma força aja sobre ele”. Estou tentando me expressar, estou pintando,
desenhei Freud, vou mostrar para o senhor, tenho uma guerra para travar, mas quero
fazer isso em paz.
Lembro de um ditado de um imperador Romano que dizia: “Se quer a paz,
prepare-se para a guerra”. (Ditado creditado tanto a Cícero quanto a Ápio Cláudio, o
cego).
— “Duco, non duco”, conduzo, não sou conduzido. Essa é uma forma de ganhar
a guerra, mas tenho que tomar cuidado, pois não posso fazer fontes imaginárias. A
guerrilha no Brasil foi um sonho, pois ela não estava preparada nem técnica nem
eticamente, além de que foi ludibriada pelos falsos guerrilheiros, espiões infiltrados, os
X-9.
— Como você espera que sua guerrilha, seu ato subversivo possa chegar ao
poder?
— Já andei pensando nisso... Será que não podemos continuar nos encontrando
quando eu sair de alta? O senhor marca na sua agenda, eu penso no meu tempo e
consigo uma dispensa da prefeitura para me tratar nesse período, uma vez por semana
talvez?
(Não posso dizer que não fiquei surpreso, não esperava que esse tipo de proposta
pudesse partir dele, ao contrário, sempre imaginei que isso seria oferecido por mim,
com poucas chances de acordo... acho que devo também parar de imaginar).
— Ela não será uma subversão bélica, mas intelectual, mudar a linha de
raciocínio através do intelecto, estou me lembrando de Graciliano Ramos, “Memórias
63
do cárcere”. A solidão, ela é triste, assim como me tornei um alcoólatra poderia ter me
tornado outra coisa, será que posso me tornar outra coisa?
Quarta sessão
Estou ansioso por saber qual a posição da psiquiatria em relação ao pedido de
licença para W. Chamo-o pela manhã e ele me conta que a médica ainda não conversou
com ele, mas seu irmão o visitou no fim de semana e concorda em levá-lo de licença. A
partir daí iniciamos este encontro.
— Eu evitava conversar com algumas pessoas da família e ele (o irmão que o
visitou no hospital no fim de semana) era um deles. Minha mãe é uma rainha para mim,
no modo psicológico, como ela conseguiu me tratar... Ela me trata como você me trata,
quando precisa dialogar, dialoga, quando precisa de uma coerção, desculpa,
correção...
— Por favor, volte à palavra que você arrumou.
Sabe o que é, são todos descendentes de nordestinos, e por isso são assim
meio marrudos; quando era necessário, minha mãe também sabia dar uma dura.
— Conte mais sobre sua ascendência.
— Meus pais são filhos de portugueses, da parte de meu pai da Ilha da Madeira,
de parte de minha mãe, de Lisboa, tanto que o Aleluia em meu sobrenome significa uma
árvore que cresce muito na região da Madeira.
Filho de meu pai só eu, que sou o primogênito, e mais uma irmã e um irmão
esse que veio me visitar , os outros são filhos do meu padrasto são mais sete
filhos , quando penso em família penso em como é que se pode pensar em ter uma
64
família pura, acho que não tem jeito, as famílias são miscigenadas mesmo, mas minha
irmã acha que dentro da nossa família é como se já nascêssemos com a vida pré-
determinada.
Não sei o que pensar sobre isso, foi minha irmã que me conduziu à dianética, foi
num bate-papo, ela quis meu bem e na dianética explicaram que por meio de algumas
técnicas eu poderia me curar do alcoolismo. Meu interesse era a cura. Foi uma época
difícil, eu estava me desquitando, mas a dianética não pôde me ajudar, eu sabia dos
erros, mas não mudava, e aí voltei à bebida.
Digo-lhe que pensei sobre a condição financeira em que se encontra e será muito
importante voltar a trabalhar no ramo hoteleiro, pois isso pode significar um acréscimo
financeiro às suas [parcas] rendas.
— Eu penso em voltar a trabalhar, quando trabalhei no hotel R. foi muito bom,
era um período eclético, eu tinha contato com médicos, engenheiros, doutores, eu podia
conversar com eles; o que nos diferenciava era o dinheiro.
— Acredito que não só o modo como você se coloca como um pobre da aldeia
(em referência às aldeias portuguesas) o deixa muito diferente dos outros; acho
interessante como com os inferiores você se sente superior [quer dar aulas para os mais
necessitados] e com os superiores você se rebaixa.
Minha região é pobre, muito pobre, a marginalidade é muito alta.
— A região pobre é seu corpo; já a marginalidade é a bebida.
Quinta sessão
A equipe terapêutica que acompanha W. e que se compõe de uma psiquiatra,
uma terapeuta ocupacional e por mim, a partir de uma demanda do próprio paciente
65
acredita que uma “licença”
9
pode ser importante para ele. Mas isto se mostrou mais
complicado do que aparentava. Seus familiares não conseguiram se organizar;
marcaram alguns dias para virem conversar comigo, mas sempre desmarcavam na
última hora. Cheguei a ir ao hospital nesse sábado, dia possível para que sua irmã e
irmão me encontrassem para conversarmos, mas eles não compareceram. É assim que
W. começa seu atendimento:
Conversei com meus familiares ontem por telefone, mas eles acham que eu
estou manipulando vocês, estou forçando vocês a me concederem esta licença.
— Mas que poder você tem, hem?
— Poder que eu não quero, não funciono assim, até por que não vou aceitar ser
vigiado como uma criança. Ontem também falei com a F., ela trabalha na prefeitura e
me incentiva a ir para um CAPS
10
, eu fui durante um tempo, mas depois recaí, ela quis
saber o que foi que aconteceu antes de eu vir para cá. Eu já estou forte, não é qualquer
um que assimila a força que vocês estão me dando.
— E o que é isso?
— Isso é você colaborar com aquilo que estão te oferecendo, ter credibilidade,
acreditar que vai ser possível sobreviver lá fora; eu acho isso, mas só posso comprovar
lá fora. Eu sinto hoje que estava fazendo castelos de areia aqui, castelos que eram
levados facilmente, tô me sentindo valorizado; por incrível que pareça, vocês
conseguem resgatar alguém que estava fora da sociedade.
— Então estar aqui é estar fora da sociedade?
9
A “licença” é concedida nos fins de semana, geralmente de sexta-feira a domingo, e tem a intenção de
servir como bússola ao tratamento medicamentoso, comportamental e familiar do paciente desde sua
internação. Devem ser observados o comportamento, a ingesta medicamentosa e o relacionamento com
seus familiares. Além de servir para “arejar” o sujeito do ambiente hospitalar, muitos pacientes se servem
dela para resolver pendências das mais diversas que, com sua internação, ficaram em aberto. Há algum
tempo o hospital permite as licenças somente para psicóticos e neuróticos graves; alcoolistas e
toxicômanos são proibidos, visto os transtornos que causam nas mesmas e em seqüência, transtornos com
seus convênios de origem. Mas, como toda regra possui exceções, uma foi aberta para W.
10
CAPS – Centro de Atendimento Psicosocial, quando associado à sigla AD faz referência ao tratamento
especializado em álcool e drogas.
66
— Não, aqui é parte, parte dela, mas o problema maior é que quando estou aqui
eu me rebaixo, me menosprezo, não tenho valor. Quem vai falar do W. que desenha?
Quem vai falar do W. que produziu todo um sistema de controle de almoxarifado e que
com isso conseguiram entender o “escândalo das arruelas” na prefeitura? Sou um
anônimo, eu sempre quis ser tratado como sou.
— E o que significa isso?
— Ser tratado como uma pessoa boa, tratado com dignidade, o W. pai de
família, que a pinga destruiu, mas mesmo assim eu tive família, eu tenho uma filha. Eu
sou tudo isso, mas sou um bêbado também, tudo bem, eu aceito, é uma verdade. Meu
problema é que sou um F.10, não dá para correr dele, o F.10 é o que atrapalha minha
vida, toda vez que alguém comete um erro, ou mesmo quando vou orientar alguém
sobre algo, todo momento em que devo ficar em evidência, o F.10 vem à tona.
— E esta evidência surge a partir de quem?
— Das pessoas, dos outros, de quem trabalha comigo. Um exemplo: me deram
um setor para trabalhar, sabe o nome dele? Elefante branco, eu nunca vi um elefante
branco, nada funcionava lá... Eu fiz funcionar, fiz o elefante branco funcionar,
recuperei compressores, o armazenamento e distribuição do óleo; havia um desvio de
material constante, falcatruas absurdas, eu organizei isso. E ainda assim eles davam
risada de mim. Eu não quero falar que eu sou o Rei, nunca quis entrar na panelinha
deles...
— Sabe W., eu fico intrigado, não sei como é que você me escuta. Como você
acha que estou escutando toda esta conversa?
— Eu escuto o senhor, até falo com a Dra. G. sobre sua pessoa, como o senhor é
legal...
67
(Fico realmente irritado com estas palavras, tenho a impressão de que sou posto
de lado, não consigo ser escutado, não faço parte, minha impressão é de que por mais
que tente sou excluído nesse discurso).
— A questão não é se você me ouve ou não, eu acredito que sim, mas acho que
você não me escuta, aí existe uma diferença, você entende? Como é que você me
imagina te escutando?
(A postura e a voz tomam uma firmeza inédita, mas com uma característica
defensiva nesta explicação).
— Para mim, o que interessa é sua participação dentro dos direitos e deveres
que possuímos, é uma posição política, sou adepto de Maquiavel e sua geopolítica,
minha esposa não conseguiu me escutar; caí numa depressão, mas não a culpo, é meu
jeito de ser.
— É justamente disso que estou falando, e acho que você não consegue me
escutar; por que será que as pessoas não conseguem te escutar? Só por que não tem o
conhecimento político que você tem? Será que isso não implica que você faça um
esforço para escutá-las? Você diz que sua esposa não conseguiu escutá-lo e o
abandonou; será que você prestou atenção nela? Será que você presta atenção em mim?
Talvez seja por isso que nós achamos que você não fala conosco. Talvez por isso alguns
achem que você tem uma certa deficiência.
— Eu tento transmitir o que posso, seria parte do meu Id, eu nunca transmito
tudo o que posso.
— Você lembra que algumas sessões atrás me disse que gostaria de um desafio
intelectual?
Sim.
68
— Pois esse desafio intelectual já começou, comigo. Eu não sou um burocrata,
um técnico, eu estou te desafiando intelectualmente, mas você está jogando de um jeito
que me perturba, você faz de todo nosso encontro um encontro intelectual, e eu acredito
que devemos observar outro aspecto disso, porque fica tão difícil um outro modo de
transmissão, não sei direito como lhe dizer isso.
De recepção, nosso desafio deve ser menos intelectual e mais de recepção, eu
vejo os erros e não falo, aliás, é sempre assim, eu vejo os erros e não consigo me
posicionar.
Eu tenho medo de ficar viciado em psicotrópicos.
— Pode ser, mas eu aposto que você tem medo de ficar viciado no psicoativo de
uma relação.
Pode ser, eu nunca pensei nisso antes.
(Neste momento me atravessa uma cena do filme “Blade Runner”, de Ridley
Scott, onde um dos replicantes – um sintozóide relata ao investigador policial sobre as
maravilhas que havia presenciado nas missões que fez em outros planetas, e em
condições completamente inóspitas aos humanos. Entendi isso como a fala
desconcertante de alguém, pois os replicantes reclamavam seus direitos de conviver em
sociedade de modo livre, onde sua queixa era a injustiça de, por ser um robô poder ser
descartado. Justo ele que havia presenciado maravilhas que nenhum olho humano
poderia presenciar, seria sacrificado, perdendo todo esse conteúdo, e mais, um
desperdício de tudo que viveu decretado por um outro que o condena. Falo para W.
sobre essa cena, e me vejo com lágrimas nos olhos, disfarço, pois estou envergonhado
de estar tão emotivo).
Pode ser, pode ser que se eu pudesse falar sobre o erro dos outros isso me
ajudasse, mas eu seria massacrado.
69
— O álcool está fazendo algo diferente disso?
Claro que não, ele está me matando, mas também foi o álcool que me tirou
disso, foi onde ele me ajudou. Olha só, nós estamos conversando no nível de paciente e
profissional, mas estamos conversando normalmente porque geralmente o paciente se
põe como coitadinho.
— E eu fico pensando em como seu rosto faz esta expressão continuamente,
uma expressão de coitado.
Eu só quero que me dêem solidariedade.
(E mais uma vez me vejo irritado. Este é, sem dúvida, um dos efeitos mais
marcantes nesse atendimento, o modo como sou suprimido da relação, posto como resto
que se arrasta para chegar até o sujeito, porém sou persistente e um pouco abusado, o
que me permite encontrar forças e não desistir).
—Acho que você considera nossa relação um lugar onde você deve falar sobre
as verdades, não é?
— Sim, é isso mesmo, aqui eu posso falar sobre as verdades que sustentam o que
sou, todas as formações intelectuais e que me fizeram assim, as verdades...
— Pois acho que você confunde saber e verdade; todo seu conhecimento
intelectual não faz parte de sua verdade, mas de seu saber sobre as verdades do mundo,
você mal fala de sua verdade comigo, até fala para mim, mas comigo... E eu gostaria de
ouvir sua verdade, quando erro, quando o incomodo, enfim quando o perturbo... Eu o
perturbo?
(Começa a gaguejar, e esboça algo, ainda perdido entre palavras desconexas,
sobre o F.10).
— Vamos parar por aqui hoje.
70
Sexta sessão
Tô sabendo que preciso dar um destino para minha vida; tenho que
solucionar meus problemas paliativamente.
— Paliativamente? (automaticamente pensei que gostaria de ter dito
“paulatinamente”).
— É, aos poucos, devagar, com metas. Mas algo resolvido paliativamente
só traz uma eficácia momentânea. Tenho uma meta, sou um cidadão e quero viver como
um. A alta só será segura se os profissionais, que sabem mais do que eu, me proporem
(sic) que eu estou bem para isso. Aí eu vou ter confiança.
— E você não acha que deve nos ajudar a pensar sobre isso?
[Silêncio]. Ontem encontrei outra psicóloga que trabalha aqui, e eu,
conversando com ela, acho que devo fazer no mínimo uma consulta mensal.
— E como é que você está pensando sobre a viabilidade disso, desse encontro
mensal?
Como já estou fazendo, falando.
— Sim, isso é importante, mas como pensa em organizar isso praticamente?
— O senhor está pensando em como vou organizar a forma de pagar
mensalmente uma consulta?
— Por que você pensa em fazer uma consulta por mês?
— Porque aí vem o problema financeiro.
— É o que você quer?
— Teoricamente não seria o ideal, o melhor seria alguém que me acompanhasse
mais freqüentemente, mas não tenho ninguém, tanto faz...
71
— Como assim tanto faz? Então não há nenhum ideal em sua proposta, se é
tanto faz é também qualquer coisa, qualquer um. Estou perguntando se lhe interessa
esse encontro, se você pensa em viabilizar esta parte do seu tratamento.
— Claro que quero, quero continuar a me tratar, pode ser com o senhor, pode
ser com a P. [outra psicóloga do hospital].
— Vou te explicar uma coisa: você tem de escolher, se quer e com quem quer
continuar seu tratamento.
— Eu sei que o senhor tem vários encargos...
— Você sabe?
— Desculpa, é que eu gostaria de continuar este tratamento com você, é uma
vontade.
— E por quê?
Porque você já me conhece, o senhor sabe relevo que você é sincero comigo e
eu com você. Sem omissão. Eu tenho é ambição. Tenho que retornar a trabalhar, tenho
que agitar meu mundo.
Sétima sessão
— O que acontece no primeiro gole?
— É um rancor grande de um fato que ocorreu na própria residência, então eu
penso “vou beber moderadamente”, mas isso não existe, e aí não adianta, meu
primeiro gole é um litro. Para o alcoolista não existe esse primeiro gole, ele vai beber
até chegar o limite dele, e o limite é a hora que não fala coisa com coisa ou então
desmaia. Comigo ocorrem as convulsões, e eu já tive convulsões abstinentes.
— E o que impele ao primeiro gole?
72
— Por exemplo, ser acusado de alguma coisa que você não cometeu, a família
falando “W. você trouxe gente pra casa, bêbados!”, o fato de um alcoolista me
procurar em casa, revela para eles que eu já estou em recaída, daí eu fico magoado,
chateado, aí eu saio, não tem ninguém para conversar, para desabafar, aí eu vou para
o bar e bebo.
— E como é o efeito dela em você nesse momento?
— Ela chega como um anestésico, como se você sofresse um trauma, uma
batida, e isso ameniza a dor. Quando me desquitei aquilo foi doloroso, fui obrigado a
falar que aceitava o desquite, eu, por mim, adoro minha filha, estou aqui todo esse
tempo e não me deixam vê-la. Tiraram o elo entre eu e ela, na frente dela eu não bebia,
eu passeava com ela, fazia campismo, íamos pescar... (com os olhos marejados) aí vem
um pessoal de fora e se intromete.
Minha ex-esposa ficou comigo pelo meu poder aquisitivo, eu estava com dois
empregos, ela só ficou comigo pela questão financeira e por que estava grávida.
— Mas você acha que nunca houve amor entre vocês?
— De minha parte sim, da parte dela... Acho que não, eu não conseguia
conversar com ela.
— Você se apaixonou?
— Não dela, eu cheguei a ficar noivo, mas em uma época em que eu não era
muito certo; me viram andando com maus elementos e minha sogra fez com que ela
terminasse comigo o noivado. Daí pra frente meu mundo foi esse, caiu, fiquei chateado,
não deu para arrumar a situação. Eu não sou mentiroso. Então não tinha como mentir
para ela. Daí pra frente comecei a beber muito mais. Ninguém na minha casa me deu
força para nada, meu padrasto continuava bebendo, aquilo me atormentava, eu via
73
como ele tratava minha mãe e meus irmãos e como me tratava, aquilo não podia
segurar ninguém. Eu tinha que reagir.
— Mas aí você desenvolve uma forma de reação que é se identificar com ele?
— Foi, minha reação é se vingar dele, mostrar para ele o que é que ele me fez, o
quanto ele me fez mal.
— Mas esse tipo de vingança não recai continuamente sobre você? Você não
fica relembrando incessantemente a destruição de sua infância?
[W. fica mudo me olha perplexo e muda de assunto]. Retomo.
— Você entendeu o que lhe perguntei? (novamente muda de assunto de modo
impressionante).
Insisto com minha construção: — Você ficar embriagado como seu padrasto não
te relembra incessantemente a infância de um modo rancoroso?
(Pára por um instante e responde): — Montei um castelo sobre nuvens, e nuvens
não sustentam um castelo.
*
W. me encontrou uma vez mais alguns dias após esta conversa para acertarmos
os trâmites de sua saída, após organizarmos sua alta hospitalar mantive a proposta que
surgiu dele sobre a continuidade de tratamento em meu consultório. W. nunca apareceu.
74
Transferência e contra-transferência
Aprender e não pensar no que a
p
rendeu é perfeitamente inútil.
Pensar sem antes ter aprendido é perigoso.
(GoreVidal,Criação).
Foi necessário um tempo, uma distância razoável para conseguir escutar os ecos
desse tratamento. Enfatizo a necessidade do tempo para uma compreensão; meu
envolvimento transferencial e contratransferencial foi intenso e profundo, e estão em
íntima relação com a minha longa permanência nessa organização hospitalar. Entendo
assim a necessidade de um distanciamento temporal e físico do caso clínico no intuito
de proporcionar um “ar”, um “respiro”, gerar clareza para a compreensão dos reflexos
dessa relação analítica.
W. faz parte de uma classe singular de alcoolistas: ele se encontra internado.
Este é um viés importante, pois não se chega a essa condição sem que alguns requisitos
estejam completos; e são requisitos sociais pejorativa e corporalmente negativos.
O hospital, sendo um ambiente de acolhimento terapêutico para esse momento,
retrata a incompatibilidade desses sujeitos consigo mesmos e para com seu meio; se não
fosse assim, ainda estariam fora do hospital. Nesse momento encontram-se afastados de
casa, do lar (quando ainda se tem um), ou mesmo em condições chamadas de
“albergantes” onde passam a residir temporariamente em locais como pensões (a
maioria cortiços), albergues, hospitais, enfermarias, ou na própria rua (constituindo
assim uma via sacra de residências). Também poderão estar afastados de seu ambiente
de trabalho, do trânsito público. Tudo que poderia atestar a condição de convívio civil
desses sujeitos se acha comprometido.
75
Não respondendo mais por seus atos em seus ambientes de convívio, será
convocado a os abandonar, convocação muitas vezes tramitada sem a anuência do
sujeito. Ambulância ou carro-patrulha, a direção é a mesma: uma enfermaria clínica que
atestará sua condição crítica, e daí a internação.
Esse trajeto merece destaque, pois testemunha o fracasso, a vergonha, a queda
desse sujeito. Em seu retorno, a estada hospitalar é completamente marcada por uma
configuração prévia ou inédita em referência ao hospital, configuração esta que destaca
um modo de convívio que se manterá na dinâmica das relações terapêuticas propostas.
Reverenciado como um local abençoado, pois o recebe, acolhe e cuida, sendo
também marcado pelo ódio. “Atesta o retorno do fracassado”, fazendo disso um
trocadilho ao mote psicanalítico para o alcoolista: um retorno do (recalque) fracassado.
Essas atuações contra o local que o acolhe são várias, mas observamos algumas
que se pronunciam de modo geral. Tomando como exemplo as que se manifestam na
ordem da sujeira, da delinqüência, da queixa externada pelo mínimo; não importa o
quanto se busque atender à demanda solicitada, ainda assim é pouco, sempre pouco, a
organização hospitalar ainda (e sempre) estará em falta.
A utilização de “espaços próprios” para o tratamento do alcoolismo sempre
apresentou complicadores em seu intuito terapêutico, já que os alcoolistas eram (e ainda
são) internados em conjunto com patologias que compõe outros quadros psiquiátricos,
sendo desse modo questionada a eficácia dessa internação, visto que os alcoolistas
demonstram baixa tolerância às interferências de outras patologias em seu território,
além de conturbarem a ordem e gerarem uma superpopulação de internos.
Mas as instituições de saúde mental e suas organizações clínicas que pretendem
tratar desse mal não imputam dúvidas quanto ao caráter confinatório que esse ambiente
deve conservar.
76
Confinatório, pois devem manter à distância seu objeto de consumo, além de
propiciar de modo intensivo vias terapêuticas para lidar com seu problema.
11
A “Casa de Saúde de São João de Deus” mantém uma proposta de liberdade de
escolha ao alcoolista ou toxicômano que lá se interna. Ele deve escolher se aceita ou não
o tratamento nos moldes que lhe é apresentado o local, e condições para tanto. Mas
entendemos que a questão do ambiente confinatório abrange uma problemática maior,
como as formas instituídas de organização social, seus direitos e deveres como cidadãos
etc., assunto que não abordaremos no presente trabalho.
Não é difícil perceber o quanto toda essa disposição afetiva se transfere ao corpo
do hospital; esse é o pathos desse sujeito que, atravessado nesse momento por essa
força, impinge com virulência essa carga ao outro e ao Outro.
Funcionários, técnicos, psiquiatras, espaço concreto de residência (seus quartos,
áreas comuns, salões, corredores, pátios etc.) todos passam a apresentar em suas falas as
queixas contra esses sujeitos, e a história atesta esse tipo de perturbação na ordem das
coisas dentro do espaço manicomial desde sua intenção de restringir o alcoolista no
hospital para tratamento.
Matos (2001) relata o quanto:
11
Que as instituições e suas organizações respectivas não têm dúvidas quanto ao caráter confinatório do
tratamento, essa não é a opinião de autores como Foucault ou Szasz, que não só a criticam quanto
apontam para o surgimento de incapacitados e inválidos criados por esse modo de tratamento, cito trecho
de Szasz (1994):
“Concentro-me aqui na distinção entre o que podemos chamar de trabalho de mercado e serviço
público. Uso o primeiro termo para designar o desempenho de um trabalhado pelo qual o outro se
predisponha a pagar ao trabalhador; e o último termo para me referir às interferências ou aos serviços
burocráticos, eufemisticamente chamados de trabalho com pessoas, pago pelo governo.
Independentemente de ser o serviço público moralmente nobre ou ignóbil, é uma falácia tratar o serviço
burocrático como semelhante ao trabalho que satisfaz as necessidades do consumidor pagante. Não
obstante, os economistas calculam o PIB (Produto Interno Bruto) como a soma dos bens e serviços
produzidos a cada ano, independentemente dos tipos de serviço ou de quem paga por eles. Se produzimos
e vendemos mais carros e milho, ou se criamos e servimos mais pacientes mentais (esquizofrênicos) e
prisioneiros (delinqüentes de drogas), o PIB cresce de qualquer modo. Esta é uma das razões porque a
sociedade americana contemporânea é insuperável na criação de profissões de ajuda que, com a desculpa
de capacitar pessoas habilitadas, as invalida” (p. 208).
77
Era freqüente a defesa da criação de asilos para ébrios mediante
as rendas advindas dos impostos cobrados sobre as bebidas
alcoólicas. Estes asilos teriam um duplo sentido: garantia para a
sociedade, isolando os ébrios, correção e restabelecimento
destes, não apenas como medida de repressão ao vício, mas
também para lhes propiciar o ensinamento de um ofício, já que a
disciplina e o trabalho eram vistos como elementos
reintegradores dos ébrios na sociedade. (p. 34)
É uma vivência perturbadora que encontra como resposta do corpo hospitalar
aos atos praticados por esses pacientes contra o Outro, esse corpo simbólico hospitalar
que o abriga e procura atendê-lo escárnio, sarcasmo, um gozo maledicente,
permitindo assim apaziguar a incidência, o atravessamento desse penoso processo de
manutenção desse sujeito internado.
Do outro lado, mas não menos incisivo, se vive o torpor. O hospital é um
ambiente de parada para esses corpos, de cuidado, de tentativa implícita de gerar uma
depressão para que possam encontrar um refúgio para se recuperar do estrago neles
produzido pelo excesso de bebida. Ansiolíticos, hipnóticos, relaxantes musculares,
vitaminas, comida e tempo ocioso passam a regular uma modorrenta existência que
assim se compõe para recompor o que antecedeu corporalmente à vinda desses
pacientes.
São freqüentes os momentos que atestam o quanto a “atitude” terapêutica,
visando oferecer um tratamento em que se possa pensar sobre esse momento atuado
antes e durante a internação, é rechaçada, evitada, impelida a uma irritação pela atitude
de desprezo ante os esforços terapêuticos de retirá-los desse sintoma.
Podemos inserir aí a tentativa de aproximação e rechaço encontrada pelos
Alcoólicos Anônimos ao convidarem os pacientes para as palestras e estes recusarem
com veemência, ou mesmo o esforço e também rechaço dos auxiliares que orientam os
pacientes para os “grupos terapêuticos” que o próprio hospital oferece, ou seja,
78
enquanto estiverem no ambiente hospitalar não querem ouvir falar do “modo como lidar
com a (não) bebedeira”.
Isso não se mantém sempre como uma atitude negativa ou de rechaço, como
observamos e como também observa Perrier (1992):
O tempo de desintoxicação, pedido pessoalmente ou exigido
pelas circunstâncias, pode ser dramático no começo (tanto para
o doente quanto para o médico); mas, freqüentemente, ele se
torna rapidamente idílico. Há alegria no ar, pelo oitavo ou
décimo quinto dia, uma vez que um velho ou jovem embebido
se reconcilia com ele mesmo e a humanidade, graças à boa
tutela paterno-maternante do “doutor”. (p. 339)
É aí, no intervalo dessa miríade de afetos e desconexões que se situa minha
tentativa de intervenção terapêutica, e é justamente aí que sou capturado.
Contratransferencialmente me encontro cansado, frustrado, irritado; encontro o
ar necessário entre colegas ou mesmo em atendimentos com psicóticos... Momentos de
parada ou humor para reencontrar a possibilidade de espera. A espera que restaura
esperança, mas que também conduz ao pior: ao reler com certo distanciamento o relato
do caso clínico trabalhado, enxergo os traços que preferiria não ver, já que a vergonha
chega a perturbar, mas também sei que se não os visse, nada mais poderia enxergar.
O caso explicita os modos transferenciais mais freqüentes com os quais um
analista precisa lidar ao tratar com esses sujeitos: o descrédito e o autoritarismo.
O descrédito frente à situação problemática vivida pelo alcoolista surge quando
o analista acredita que, com seu saber, é poderoso o suficiente para modificar uma
estrutura subjetiva que assim se formou justamente para se defender de um descrédito
anterior.
A história de W. é freqüentemente situada nesse tipo de relação; ele é um resto,
o que apanha, o sofredor, o sujeito que, apesar do meio intelectual que dispõe só pode
utilizá-los no bar, único lugar em que o título honroso de professor é lembrado enquanto
79
referência de altivez. O bar é o lugar onde – afinal e ainda embriagados ouvintes são
as únicas testemunhas desse título.
Nesse jogo constituinte da posição contratransferencial frente a esse tipo de
sintoma, rapidamente se estabelecem tentativas de ordenamento de um saber sobre o
corpo, os hábitos e o sintoma alcoólico desse sujeito.
Estas tentativas de ordenação, por seu caráter imperativo, facilmente escorregam
para o mandato, para uma prescrição imperativa do que deveria ser a ordem correta das
coisas, ou seja: não beber, valorizar o que se possui, se arrepender sobre o que se perdeu
etc.
Perrier (1992) comenta de modo excepcional essa situação:
Inconsciente ou não, todo especialista do alcoolismo sabe disto.
Encontrar-se-á a prova estudando o estilo e a tonalidade dos
discursos sobre o álcool cada vez que um homem de ciência,
clínico ou não, trouxer a sua contribuição ao estudo deste
problema. Isto vai, a partir de um princípio de objetividade, da
severidade do estatístico à indulgência desabusada do velho
médico, passando pelo austero relatório missionário da
sobriedade e a neutra tolerância, fixada como um sorriso de
Gioconda, do freudiano de profissão. Em todos esses casos,
pode-se detectar modos de defesa do Eu contra uma agressão.
(p. 340)
O surpreendente é que justamente uma proposta terapêutica se organizará pelos
dois lados, porém de modos distintos, ou seja, tanto para o corpo hospitalar quanto para
os alcoolistas essa proposta de tratamento será vivida e atuada.
O corpo hospitalar, tentando imperativamente construir, incutir, um saber (no
outro alcoolista) sobre os malefícios do álcool, seus prejuízos corpóreos e sua
degradação familiar e social, e os alcoolistas, confrontados com esse imperativo,
resistirão pacientemente (porém de forma contundente) a introjetar esse saber fazendo,
quando muito, uma repetição desse discurso de modo assentido, gerando uma saída
frente à intervenção hospitalar: que essa se cale.
80
Quando se consegue ir além dessas respostas defrontamo-nos com uma
construção crítica ante o sintoma e sua doença, gerando bons prognósticos de
tratamento. Porém, temos de admitir, essa não é a conseqüência mais freqüente de um
tratamento.
Uma tentativa de ordenamento terapêutico, analítico, demanda uma espera, um
sacrifício temporal que permita que a constelação significante das relações de objeto se
apresente aos dois paciente e corpo hospitalar enquanto letra, cifra para um
deciframento. A prescrição comportamental, decorrência apressada de um descrédito
ante a pressuposta e antecipada impotência do alcoolista em sua relação com o outro,
encontra como barreira uma surdez. Aspecto psicopatológico de relevância, pois denota
uma alienação específica desse sintoma: o que o analista sabe sobre esse corpo pode ser
rechaçado, não dizendo nada a esse sujeito, nada sobre esse sujeito. Tão surda quanto a
defesa do paciente, se transforma em muda a fala do analista.
O alcoólatra fala por dois. Ele bebe nele a intuição de uma
inteligência de seu discurso que ele não empresta ao outro senão
para privá-lo de sua própria parte. É assim que o interlocutor se
sente agredido e opõe uma defesa de surdez relativa ao que se
lhe conta sem contar com ele. Além disso, ele aprende depressa
que ao tentar colocar uma palavra, ela será talvez ouvida, mas
não considerada. A verve do momento presente deixa a memória
no vestiário. Enfim, a interpretação psicanalítica não se gravará
na orelha do beberrão. O verdadeiro problema do alcoolismo em
psicanálise está, na nossa opinião, essencialmente, aí. (ibid., p.
348)
As diversas passagens durante as sessões com W., em que o analista sente-se
terrivelmente irritado, dão mostras da potência desse modo de comunicação que se
estabelece entre o paciente e seu analista. A irritação do analista quando se percebe
“mudo”, “excluído” em sua fala alienante e alienada, demarcam a linha divisória entre
sua “posição” proposta e sua “posição” imposta. Sua aposta só pode encontrar escuta se
compreender como propor um crédito ao paciente e a sua “posição”.
81
Isso quer dizer que dar crédito propõe um movimento contrário a esse; dar
crédito enquanto esperança que o sujeito o escute propõe uma modificação, uma brecha
nesse sintoma surdo. O crédito necessário é um tempo em comum. Uma espera para
ambos.
Crédito ou descrédito oriundo de um tempo determinado somente pelo analista
gerará a defesa surda desse sujeito.
Tanto crédito ou descrédito estão situados na atuação angustiada, vivência
contra-transferencial resultante dessa pretensa captura do sintoma alcoólico, da
intervenção analítica que, baseada no pressuposto fracasso, pressuposta impotência
desse sujeito ante a demanda do analista em sua direção de cura, recriam as condições
de defesa primitivas da alienação. E mais, não contar com a defesa de um sintoma
como se observa no discurso do alcoolista é não relembrar o que foi proposto acima
sobre a defesa da anormalidade do alcoolista em sê-lo: “uma determinação corajosa para
tomar o partido de si mesmo” (ibid., p. 336)
O alcoolista internado em um hospital recebe assim uma manifestação contra-
transferencial ambígua; o discurso analítico lhe oferece um saber que supostamente, em
seu ideal, poderia auxiliá-lo a compreender e superar sua tormenta, mas é manifesto de
tal modo que esse saber é anulado, inaudito, alimento alienante.
O analista (de modo geral ou específico como operado no caso clínico) ao
provocar o paciente propondo-lhe um desafio maior em prol de um saber pleno sobre si,
faz com que o paciente entre em um estado defensivo alienado, desatando um discurso
intelectual completamente alheio à situação e efetivamente ensurdece passando ao largo
com suas respostas deixando, em seguida, o analista irritado e estupefato.
82
O discurso é imperativo. Superegoicamente imperativo. Tanto o do analista
quanto o de W. As configurações transferenciais inconscientes e pré-conscientes assim
se defendem de um excesso vivido em relação a um corpo oprimido.
E a opressão é vivida em ambos, porém, com respostas diversas. Se o paciente
se aliena, ensurdece e se põe como devedor a esse tratamento (obviamente pedindo
desculpas por achar que o analista perde seu tempo com ele), do lado do analista a
resposta não poderia ser muito melhor: identificado com essa opressão, transforma seu
discurso em uma fala ditatorial, autoritária, reflexo da repetição sem sentido de uma fala
que insiste em não conseguir sair de seu eixo poliqueixoso, fracassado e empobrecido
(como vivida na fantasia do analista com W. sobre o filme “Blade Runner”, nada mais
opressivo, autoritário e impotente do que a situação vivida pelos sintozóides analista
do filme).
É o Gozo do Outro retomando o comando dessa relação.
O que pode retornar sob o comando desse Gozo encobrindo a relação analista-
paciente é o que Perrier (1992) anuncia como a política de dois corpos marcados, desde
sempre, por uma posição singular de forças:
Assim, se desenhará e se reproduzirá o retrato psicológico de
um “alcoólatra”: aquele que demonstra a aliança mortífera entre
uma máquina, inicialmente mais frágil que uma outra, ou
secundariamente deteriorada, e a política do pior de seu
condutor precavido. (p. 332)
É esse o excesso que resiste em escoar, em desaguar, que incita o discurso para
um “bom” funcionamento terapêutico transformando-se em uma tirânica proposta de
mudança de posição. O bom, andando próximo ao ruim.
Se no trato dinâmico transferencial isso não cessa de se desenvolver é porque
esse excesso responde a um afeto, ou seja, aquilo que afeta uma relação; a forma que
83
estabelece uma ligação e que precisa, no sentido de defesa, se manter evidente. A
submissão vivida de modo triste enquanto modo de uma melancolia se expressar.
W. expressou por diversas vezes o sentimento de frustração sobre sua vida, a
posição de estranhamento e tristeza sobre a morte do pai biológico, o inequívoco
sarcasmo de ser “reconhecido” como professor no botequim, a sensação de ser “jogado
no fundo do poço”, a posição de “coitadinho”, enfim, modos melancólicos de expressão
de sua existência.
Tentando atravessar, ou talvez mais precisamente circundar esse sentimento de
submissão e tristeza, o analista apostou em um “direcionamento honroso”, ou seja,
sustentou desde o início do tratamento uma fantasia sobre a ocupação do paciente nessa
relação analítica em um lugar de destaque. Quando o escuta, antes mesmo de iniciar os
encontros individuais, falando sobre sua participação em um grupo terapêutico, foi
tomado por essa idéia de que seria importante salientar alguma diferença ante o que W.
relatou sobre o ambiente da infância, o despótico lugar do padrasto, e a geração de um
ambiente adequado e propício à palavra dentro do ambiente hospitalar.
O intento não foi malogrado; é possível observar que as palavras nunca tiveram
um espaço tão propício a se manifestarem como, de fato, ocorreu. Refere, em passagens
esparsas durante o tratamento que nunca se sentiu tão bem-assistido, porém isso está
longe de ser o suficiente, até mesmo porque, para além dessa oferta, o analista responde
com agressão ao objeto apresentado por W., gerando assim uma espécie de caos mental
no paciente, uma impossibilidade de metaforizar a construção analítica oferecida.
Necessário sim criar uma ambiência propícia à palavra, mas crer que esse
ambiente oferecido por si só garante a suficiência exigida, nunca.
84
O ambiente oferecido retoma a perturbação fantasmática desse sujeito, não
permitindo que se fale sobre isso sem repetir sempre o mesmo. O necessário proposto
retoma o asfixiante já vivido.
É essa característica presente na discursividade do paciente que se torna
característica da discursividade do analista, quando este não responde a partir do amor
em relação ao objeto apresentado como objeto do luto impossível no momento, mas,
como proposto abaixo, já contém em germe a possibilidade de uma saída da própria
contratransferência.
Esse é o modo constituinte contratransferencial. Uma intoxicação oriunda da
relação linguageira desse sintoma.
Como nos faz ver Abraham e Törok (1995):
Ora, o objeto-fantasma habita também a contratransferência. No
esforço de objetalizar a agressão, ele é tomado freqüentemente
por alvo, sem saber, esquecendo que o único interlocutor
presente é precisamente o fantasma (o objeto incorporado), e
que, assim procedendo, pronunciamo-nos contra o que é mais
caro, mais ciumentamente recalcado e que, sob todas essas
camuflagens de ódio e de agressão, éramos chamados a
reconhecer. Reconhecer o prazer de um em ver o outro enlutado
por ele; reconhecer, não o ódio, mas o amor do objeto pelo
sujeito; reconhecer, enfim, a exaltação narcísica de ter recebido
ao preço de perigosas transgressões o amor pelo objeto: eis
o que o melancólico espera do analista. Quando ele tiver obtido
esse reconhecimento, a inclusão poderá aos poucos dar lugar a
um verdadeiro luto, as fantasias de incorporação poderão se
transformar em introjeções. (p. 256)
Faz-se fundamental considerar que os chamados “distúrbios da oralidade”
produzem efeitos intoxicantes dos mais diversos, e o efeito gerado pela toxicidade
linguageira presente na relação analítica com o alcoolista não deixa nada a dever aos
efeitos mais intoxicantes das relações do paciente a seu objeto droga, nem aos aspectos
transferenciais mais contundentes entre analista e paciente em outros distúrbios
psicopatológicos.
85
Essa situação problemática, enunciadora de um mal-estar difuso entre ambos,
não é localizável a não ser entre; entre a direção transferencial do paciente e a recepção
contratransferencial do analista.
A causa dos fenômenos de irritabilidade durante o tratamento (importante
ressaltar que esse afeto irritadiço não permanece após a sessão; sua manifestação é
pontual) diz respeito à impermeabilização, à surdez da alienação manifesta do paciente
frente às demandas do analista. Isso recai sobre a questão da verdade em análise: de
quem ela é? A quem pertence? Aos dois e a nenhum deles. A psicanálise retoma aí seu
campo de enunciação sobre a Ética. Em uma análise a ética é condição radical de
suportar a verdade do Outro.
Como nos propõe Perrier (1992):
Será que isto reconcilia com a função da verdade, aquela que
não é de ninguém, uma vez que dois analisandos não devem
unir-se nem reunir-se entre o divã e a poltrona?
Esta questão poderia desembocar na teoria a ser feita de uma
ética da pós-transferência e da pós-contratransferência. (p. 367)
E o que se encontra proposto nestas demandas? O que poderia gerar, a partir da
demanda expressa pelo analista, esse estado de alienação no sujeito?
Hipoteticamente, podemos pensar que foi devido à contratransferência vivida
pelo paciente com o analista durante o tratamento prometido, mas não cumprido: a
continuidade de tratamento em seu consultório.
A causa dessa manifestação parece estar contida tanto no conteúdo quanto em
sua forma; a partir de seu conteúdo, o que se pede é que reconheça o lugar que ocupa e
que valorize esse lugar otimizando sua participação no mesmo. Já em relação à forma, a
proposta para tanto é lançada enquanto uma aposta e não um desafio.
Aposta é um “ajuste entre pessoas de opiniões diversas, no qual a que não aceita
deve pagar à outra algo de antemão combinado” (Ferreira, 1986, p. 146). Um desafio é
86
o que se propõe a ambos. Ainda que a palavra em jogo no contexto clínico tenha sido
“desafio”, o sentido, seu significado e sua direção, alcançaram a toxicidade estrutural da
palavra, abalando as instâncias comprometidas entre o interlocutor-analista e o paciente,
tornando-os parceiros e convertendo esse sentido em intoxicação vincular,
transformando um desafio em uma aposta.
Aqui, a palavra tóxica nos contaminou inteiramente, irritando o analista e
alienando o paciente. O que retorna como prêmio pré-concebido frente à aposta é a
posição submissa do paciente ante um superego obsceno, uma entrega submetida à
relação em que apenas o Outro, tem lugar. Para o analista, o que retorna é o premio
ilusório de acreditar que um bom saber sobre a doença poderá modificá-la. A irritação,
afeto marcante nesse tratamento sobre o analista diz da frustração ante um saber
inoperante. Esse fenômeno é freqüentemente vivenciado apesar de raramente
reconhecido pelo meio clínico, incluindo o ambiente hospitalar, que se dispõe a tratar
desses pacientes. Essa vivência se traduz no discurso desses pacientes enquanto às
queixas de isolamento, de estigmatização injusta, do quanto são pouco ou nada
compreendidos, como não os escutam, enfim, a geração de um queixume a partir do
efeito originado pela distância produzida entre diferentes demandas e suas
possibilidades de resposta, gerando, sobre o próprio tratamento hospitalar, uma
dissolução da transferência “saudável” impelindo o sujeito à recaída:
É seguramente doutrinação... Basta, freqüentemente, que o
médico creia nisto “realmente”, por um tempo de sua vocação,
para que o alcoólatra sele o pacto de aliança que condicionará a
seqüência, ou seja, a saúde, como melhor do pior; até que a
morte natural aconteça.
Somente... o médico não crê nisto, realmente por muito tempo.
Ele tanto viu (bebeu) e ouviu, dez meses ou vinte anos depois do
primeiro “diga-me” do solilóquio etílico!
Cedo ou tarde, professor, instrutor, reformador, informante ou
alter ego de plantão; enfim, qualquer que seja seu querer em sua
missão, ele descobre ter guardado nele seu próprio fantasma de
alquimista.
87
O outro, quer dizer, o doente, o sentirá bem, em um momento
ou em outro. É por isso que, com ou sem Esperal
12
, ele
“liqüidará” um dia sua transferência sobre o médico, e isto para
reinterrogar o alquimista, com seu coração reencontrado de
velha criança decepcionada e solitária. (Perrier, 1992, p. 340)
Então, por mais que essas manifestações se apresentem nesse momento, sua
origem data de contexto mais arcaico.
O que se apresenta no atual é a reverberação de uma construção de corpo em que
a palavra, para ser encadeada em um processo simbólico e poder operar simbolicamente
enquanto sentido de si, necessita de um fundamento outro para poder se constituir como
tal, ou mais, é justamente sobre os fundamentos de um Outro primordial – e aqui o lugar
da função parental é preponderante – que podemos inferir que as palavras têm poder de
constituir um corpo e que podem, durante a existência de um sujeito, estar a serviço das
pulsões, encadeando significações que testemunhem seu reflexo nas incidências
sintomáticas corporais/egóicas.
De algum modo a queixa desses sujeitos aponta para um momento prisco onde a
ausência de sentido, originada a partir de um obstáculo proibitivo, marcou um traço
constituinte nesse corpo. Reclamam a permanência e pertinência a um lugar que, sem
saber, não possuem.
Como podemos propor a construção a respeito da surdez constituinte desse
modo psicopatológico dos alcoolistas de ocupar um lugar no mundo?
Uma possibilidade se inscreve ao aprofundarmos o que está por trás das
demandas mais primitivas, dos vagidos mais misteriosos, enfim, do que se pede a um
objeto e que lhe será recusado.Assim, a negação mais freqüente vivida por esses sujeitos
se encontra justamente no objeto por eles mais apreciado, o álcool. O que se pretende
evitar ao manter-se tão próximo do objeto alcoólico?
12
Medicação utilizada para o tratamento de alcoolistas.
88
Do sujeito ao botequim
O jogo constituinte do morto no corpo
O jogo é o “buraco”, metáfora sobre a possibilidade de constituição de um “a
mais” enquanto sobra, resto, um “corpo” (morto) possível de ser convocado quando as
cartas da mão se foram e são exigidas outras “saídas” para a situação que se apresenta.
Porém, para que esse “morto” exista é necessário nos questionarmos sobre as
fundações desse jogo e, seguindo essa analogia, das fundações do corpo e sua
constituição.
Devemos retomar, lembrando como se dão as inscrições da possibilidade do
gozo fálico, que possibilita ao corpo “ser” no mundo. A partir de suas atribuições,
sobreviver, ou mais, viver, com um a mais de significações quando o Outro, o Real
(mundo linguageiro), o próprio corpo, força sua entrada.
Na verdade, o Outro não está fora dessa constituição, mas, ao contrário, é um
dos formadores desse corpo. Esse Outro tem sua intervenção no que podemos chamar
de “modo transitivista de interação”. Significa a possibilidade de uma mãe chorar a falta
desse filho. Falta essa com o filho presente, presença in absentia para ambos, choro que
marca uma falta em ambos, sem lugar ou tempo antecipados, vivência instantânea em
que a mãe oferece seu corpo enquanto vaso para essa experiência na e para a criança. O
Gozo Outro marca sua presença entre corpos por ser uma vicissitude potencial (mas
nem sempre manifesta) do Gozo fálico.
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Esse choro por um filho (mas que a bem da verdade pode ser qualquer marca
que tome a mãe no mais íntimo, e portanto fora da consciência, do seu ser) significa a
forma de marcar uma falta que, preconcebida idealizada e temida na e desde a mãe,
permitiria a esse corpo se observar faltante e faltoso, angustiado e cuidado, com seu
morto “vivo” e, portanto, possível.
Por que morto? Por que para que essa operação se dê, é necessário que um
“crime” aconteça. Para entendermos essa operação devemos recuar um momento sobre
as funções que a articulam.
As funções desenvolvidas pelo casal parental na constituição da criança servem
de base apesar do impossível deciframento antecipado de um destino final desse
sujeito para a hipótese de relação objetal resultante dessa equação.
Sobre a função do Pai, devemos nos orientar para além dos papéis representados
pelos seres que ocupam esse lugar (como pais). Não há dúvida de que o posicionamento
de sujeitos que cumpram com esses papéis é da maior importância, mas o que
observamos é que esses sujeitos (pais) constituirão em si as vicissitudes dessa função
como o “paterno” e o “materno”. A perspectiva que queremos salientar é sobre a função
mesma e não sobre seus “encarnantes”.
Leclaire (1992) propõe que observemos do seguinte modo essa questão:
Ao renunciarmos à perspectiva teatral, resta algo que participa
da violência, de uma ruptura radical, de uma organização que
não é apenas vital, mas libidinal, ruptura decisiva ou
irreversível; e resta também a dimensão do gozo, com seu
correlato de culpabilidade, de sanção, de castigo. (p.38)
E completa essa sentença pouco abaixo: “Do modo mais abstrato,
estruturalmente, a função paterna se situa entre a singularidade do corpo erógeno e a
universalidade da lei” (ibid., p.38). Ou seja, é na função mesma dessa ordem que se
orientarão os objetos que comporão a trilha de sentido em que se sustenta o desejo de
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um sujeito. Corpo e lei que o circunscreverão e, a partir daí, vão encontrando modos de
sustentar e delimitar os encontros que se darão entre corpos.
E a instância organizadora dessa orientação dos objetos e que administrará, entre
a lei e o corpo, a inscrição do sujeito enquanto ser da e na linguagem é o Ego. Nas
palavras de Freud (1923) encontramos a função tópica dessa instância: “O ego é,
primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de
superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”. (p. 39)
Claro está que esse percurso seria impossível se não suportado, se não amparado
por função corporal primeira e insubstituível para composição e suporte da função do
Pai: a função da Mãe.
Também nas palavras de Leclaire (1992):
Para que o corpo da criança se torne corpo erógeno é preciso,
por exemplo, que sua boca não seja entupida pela fartura
orgânica, é preciso que haja um duplo aspecto na alimentação,
quer dizer, que não seja fornecida nem como falo oral exclusivo,
nem exclusivamente como farta relação. A mãe é que consegue
assegurar no cotidiano esta justa dosagem, este duplo aspecto.
A função Mãe nada mais é que um corpo (nem continente, nem
esférico) ao mesmo tempo orgânico e erógeno. É ela quem
“assegura” concretamente essa justaposição de funções
contraditórias: é preciso que seja plenamente esta superfície em
que consiste o corpo. Em outras palavras, é preciso, em suma,
que a Mãe seja muito mais a terra que suporta sem desfalecer,
que o Mar que engloba e absorve (espaço marinho). (p. 69)
O corpo da criança é assim um terceiro apoiado em duas funções que precisam
uma da outra para organizar de modo corporal esse ego. Jerusalinsky (2007) entrelaça
essas duas funções:
Assim, a ligação entre o que chamamos de função paterna, de
modo abreviado, é decisiva para o modo com que o objeto
primordial faz sua apresentação na cena da vida infantil. A
entrada desse objeto primordial aparece classicamente
governada pelo desejo materno e supostamente limitada,
barrada, já no sentido da divisão, pela incidência paterna. (p. 72-
73)
91
Ao nos referirmos à compreensão que Marta Gerez Ambertín (2006) propõe do
esquema R de Lacan, encontramos o Pai em sua função inscrito do seguinte modo:
O Pai, como operador, possibilita a instauração da metáfora do
sujeito, ou seja, de um nome e de uma legalidade; a Mãe, a
instauração de um desejo (oco no real encoberto pela realidade);
o falo instaura um efeito de significação; e o Ideal o efeito do
nome que propõe um ponto de estabilização do sujeito. (p. 62)
É justamente a partir do lugar dessa Mãe que se pode instaurar o desejo. A
ordenação da entrada da Função do Pai atrelada à Função da Mãe constituirá a relação
possível entre o corpo do infans e o objeto, relação que ordena não só a organização
simbólica do mesmo, mas também e por essa mesma operação, a possibilidade de ela se
esgotar e se renovar a cada encontro, permitindo ao sujeito a condição de se constituir
imaginária e representacionalmente.
É assim que entra em ação no corpo a dinâmica do Gozo do Outro, onde, para
ordenar sua entrada, a psicanálise concebeu uma operação própria a uma função, a
função do Pai: “Do modo mais abstrato, estruturalmente, a função paterna se situa entre
a singularidade do corpo erógeno e a universalidade da lei” (Leclaire, 1992, p. 38).
Cabe notar que esse modo de entrada no corpo se dá por uma operação nomeada
como “assassinato da função do Pai”.
Essa operação articula as primeiras e duradouras relações entre o eu de um
sujeito e seu sempre ordenado em outro lugar corpo. Operação que paradoxalmente
separa o que estará sempre tentando se reagrupar. Encontro marcado por um ganho que
permitirá a partir de um estranhamento que garante ao eu uma sensação de controle
um sentimento de poder sobre isso que o conduz. É a partir daí que o falo passa a
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ordenar as aberturas do gozo, balizando sua trajetória até se perder... e novamente
retomar sua função. Temos assim a ilusão, sempre razoavelmente satisfatória, de poder
“comandar” nosso corpo. Não fosse assim, esse corpo tenderia a sofrer pressões que
estariam muito além de sua fantasia de arbítrio. Gozos que não poderiam se submeter a
nenhuma ordenação posterior. A psicose clínica nos orienta em demasia sobre esses
excessos.
É a função paterna que assegura de uma maneira concreta a
articulação entre este universal e este singular, que assegura a
clivagem entre o corpo erógeno e o corpo biológico a
clivagem, ou seja, determinado modo de articulação a partir de
uma mesma superfície, de um mesmo conjunto contínuo de
pontos, todos os pontos desta superfície entrando
simultaneamente em um sistema biológico ou em um sistema
erógeno (aliás, é ao mesmo tempo e não alternativamente)
sendo que é preciso que haja, de alguma forma, uma clivagem,
isto é, que o sistema erógeno esteja de um lado, e o sistema
biológico de outro. Quando não há clivagem, ocorre algo da
ordem da loucura. (ibid., p. 39-40)
O Outro, o Real, o universo da linguagem, tem a característica de invadir o
sujeito, invadir seu corpo e daí manifestar sua intervenção. A saída para esse sujeito es
em inscrever a palavra, um modo de defesa ante essa intromissão, poder contar com
esse balizador do gozo, em que o Outro possa ser interceptado pelo balizamento fálico
para circunscrever uma defesa significativa ao que se apresenta enquanto força
disruptiva do Real no corpo.
Observamos então a força dessa defesa constituída pela linguagem; poder contar
com a palavra é poder ordenar, de algum modo, o universo linguageiro que nos
circunda.
Se efetivamente não é possível controlá-lo (como nos mostrou Freud justamente
onde a verdade se esconde, quando a palavra se apresenta “falando” para além do desejo
de falar desse falante: o Ato Falho) tem-se uma ilusão importante sobre essa construção.
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Mas essa operação não nos coloca unicamente enquanto agentes, mas, mais comumente,
como pacientes frente à linguagem e às palavras que nos cercam.
A palavra que pode deter, circunscrever, delimitar a intromissão do real,
endereçando essa força em alguma direção onde o eu do sujeito possa tomá-la para si,
necessita estar amparada pelo campo organizador simbólico; caso isso não ocorra, a
palavra só será vivida enquanto um disruptor, um atravessamento agressivo, sem
controle, um gozo que convoca ao eterno retorno, como se constata na dimensão da
recaída no alcoolista.
Talvez por isso Perrier nos convoque a pensar uma condição de extrema
relevância quando trabalhamos clinicamente com pacientes alcoólicos: em que
momento podemos datar a entrada de um sujeito no diagnóstico de “alcoolista”? É da
maior importância a questão da datação histórica de um sintoma no desenrolar de um
caso clínico.
13
O que convém sublinhar nestas observações liminares é que,
também, menos ou não mais impregnado de álcool que qualquer
outro “bebedor habitual”, tal sujeito não será alcoólatra senão a
partir do momento em que um discurso sobre o alcoolismo
venha concerni-lo singularmente. (Perrier, 1992, p. 333)
Assim, algo que concerne à força presente em um discurso será o agente
constituinte desse que será um corpo carregado com uma série de significações para o
resto de sua vida.
Se isso assim se constitui e os relatos clínicos parecem convergir para essa
posição devemos investigar quais as condições para que esse corpo se entregue para
essa “marca”, tatuagem significante, inapelável depois de inscrita.
14
13
Até por que os debates infindáveis sobre a origem do alcoolismo não parecem próximos de um fim, e
nem mesmo de um encontro melhor acordado entre as partes. Hereditariedade? Genes alcoólicos?
Ambiente propiciador? Cultura de época?
14
W. nos cita em diversas passagens sobre o modo de incidência desse discurso em sua história, do como
ser um “bêbado”, um F10., um alcoólatra marcam definitivamente sua trajetória e organização de laços.
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Será que podemos antever, desde essa constituição discursiva apresentada pelo
paciente alcoolista, e que então irá inscrevê-lo nesse universo sintomático, que algo
singularmente marcante se deu no que chamamos de “operação de assassinato do Pai?”.
Propondo que essa operação se dá a partir de um crime, onde podemos encontrar
as evidências desse ato? E mais: para que o morto se constitua no corpo é preciso que
esse corpo tenha sido inscrito com um corpo morto? Ou como um corpo morto? Como
seria pensar a constituição do morto no corpo? O que significaria isso?
Abibon (2007) em seu texto refere assim a função do assassinato do Pai:
A questão da identidade, sujeito, mulher, mãe, pai, filho repousa
logicamente sobre o que se aceita colocar no interior. Freud
imaginava este ato como fundador da humanidade, ou seja, de
cada ser humano: o assassinato do pai, pontuado pela refeição
totêmica na qual se devora o corpo assassinado para assimilar as
suas virtudes. Só há pai no fundamento da humanidade a partir
do momento em que há morte e em que essa conjunção do pai e
da morte é incorporada, abrindo o sujeito ao conhecimento
desse veículo corporal que ele inaugura devorando o de um
outro. (p. 14)
Então podemos propor que tanto o corpo morto deverá estar presente no corpo,
quanto a presença mesma desse morto só se dá por uma operação, por uma manobra
fruto de um assassinato. Isto é o que permite que a subjetividade possa contar com
aberturas e conseqüentes fechamentos balizadas por um gozo dito fálico.
“A operação assassinato do Pai consiste em uma determinada forma de assunção
desta função de abertura” (Leclaire, 1992, p. 41).
Ainda não temos a resposta à pergunta acima formulada , ou seja, que o morto
fará parte desse corpo, como nos atesta Freud; a questão de como esse corpo se
apropriará pela operação de assassinato do Pai merece mais cuidado em sua
elaboração.
Faltou questionar, procurando uma pontuação mais clara, se ele saberia nos dizer quando pela primeira
vez se “ouviu” alcoolista.
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A função dessa operação é causa de um sujeito, ordenando um esquema
relacional de objeto que podemos traçar como um roteiro, fora de qualquer narrativa
prévia, porém possível de apreensão depois de atuado em sua fantasia. O sujeito
teatraliza seu fantasma originado pelo corpo da mãe e atravessado pelo assassinato do
Pai.
O corpo do morto, assassinado e devorado, contém a angústia necessária para a
organização dessa dinâmica teatral do jogo da vida inserindo o sujeito em causa e desejo
de si. Como precisa Lacan (2005): “(...) que não há causa senão depois da emergência
do desejo, e que a causa do desejo não poderia ser sustentada de forma alguma por um
equivalente da concepção antinômica da causa de si” (p. 65).
A operação de assassinato do Pai é a construção de um morto que a partir daí
está vivo, se faz presente em si.
A causa do desejo é causa de si, razão, motivo, interesse sobre o objeto que
desde ali se ordena em sua relação com o mundo, buscando para sempre seus
sucedâneos, em equivalências simbólicas que exprimem a possibilidade ou não de
abertura e fechamento dessa pulsão, ou gozo. O falo terá sua potência balizadora guiada
por esse fantasma.
Temos então o nascimento da subjetividade, como propõe Leclaire (1992):
Tudo isto é habitualmente tematizado enquanto nascimento da
subjetividade, entrada no mundo do desejo, realização ou
assunção da castração, termos que tendem a descrever o que
ocorre no momento da instauração de uma subjetividade ou,
mais exatamente, da especificação de uma organização libidinal,
ou seja, de um fantasma. (p.42)
O Outro, assim, seria o responsável pela barragem, pela significação balizada e
não mais pela queda em um precipício objetal idealizado, pois sem o morto presente no
corpo o jogo da vida é idealizado, como se fosse sempre ganhador. Ou pior, se houver a
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perda no jogo, não haverá mais crédito na possibilidade de voltar a apostar; seria um
jogo com um fim sempre mortífero, como o encontro entre a demanda materna e o
objeto filho que se proporia a completá-la como se assim se completasse o Eu Ideal.
É, portanto, na dinâmica envolvida entre o Ideal do Eu e a constituição do Eu
Ideal que observamos as conseqüentes formações do Eu e suas possibilidades
administrativa e econômica objetal.
Para respondermos a isso devemos nos ater aos modos relacionais presentes na
constituição do fantasma infantil, sua fantasia sobre a realidade que o cerca e a
possibilidade que terá para lidar com as forças que o atravessarão enquanto superego,
Ideal do eu e Isso.
O caráter infantil que organiza a posição do alcoolista frente às injunções que o
impelem a beber, tem origem em suas relações mais arcaicas de evolução.
Calligaris (1990) assim propõe a compreensão da operação da formação do Eu
Ideal (e conseqüentemente do fantasma):
O Eu ideal se constitui então [...] como uma verdadeira miragem
[...], pois se trata de um efeito ótico, da impossível adequação
entre [...] a demanda materna e o objeto que a essa demanda
poderia ser proposto. Se existisse uma adequação entre demanda
materna e o objeto que a essa demanda poderia ser proposto,
objeto que poderia satisfazê-la, o Eu ideal seria realizado. Desse
ponto de vista vocês imaginam tudo o que implica essa
realização, uma realização se fosse possível duma certa forma
nunca é devidamente [...] seria certamente uma realização
mortífera, porque se fosse possível dar uma resposta adequada à
demanda materna o destino do sujeito seria fundamentalmente
desaparecer. Até porque [...] o primeiro objeto que qualquer um
propõe como eventualmente adequado à demanda materna é
sempre si mesmo, como objeto possível dessa demanda. Está de
fato que esta resposta à demanda materna é inadequada, mas ao
mesmo tempo continua sendo geralmente o horizonte da nossa
perspectiva de gozo. O horizonte do que poderia ser para nós um
gozo ao qual não temos acesso, mas um gozo que nós
perseguimos, é esse tipo de horizonte aí, ou seja, a idéia de
poder ser, o objeto adequado à demanda materna, de poder
realizar o nosso Eu ideal. (p. 7-8)
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Considerando a operação de constituição do Eu ideal como essa instância que se
forma a partir do modo como se orienta a sujeição e lugar do sujeito ante a demanda do
Outro primordial, a posição que ocupará o Pai em sua função legislante (ou não),
virulenta e radical na operação de separação desse corpo do corpo da Mãe, dirá do lugar
que essa operação de constituição do humano formará como base de suas primitivas
relações que poderão ou não responder de modo mais ou menos autônomo às
demandas do Outro, que em sua direção de constituição dos objetos no mundo é o modo
como o sujeito poderá ou não responder ao desejo do outro.
A partir daí podemos, então, nos perguntar como se forma isso que Lacan nos
enuncia enquanto presente no nível da castração onde, ratificado pela lei simbólica
presença do Pai simbólico por essa Mãe organiza, a partir de um suporte e seu
inverso, o que se coloca enquanto função de punição (a dimensão do gozo e seu
correspondente em culpabilidade, sanção e castigo, retomando Leclaire), e que não pode
ser um objeto real.
Observando a função que a bebida produz justamente enquanto objeto real que
pode apaziguar a falta do objeto presente, não na relação de castração, mas sobre a
relação de frustração, devemos então nos perguntar de que modo se constituem o
suporte e seu inverso (isso que o endereça e enlaça na Coisa), bem como o papel da
punição para o alcoolista.
O suporte de toda relação objetal se faz representar pelo lugar que o Ideal do eu
presentifica na mesma.
Anterior ao caráter do eu: “O caráter do ego é um precipitado de catexias
objetais abandonadas e [...] contém a história dessas escolhas de objeto” (Freud, 1923,
p. 42).
O Ideal do eu está presente nas primeiras identificações como orienta Freud:
98
Entretanto, seja o que for que a capacidade posterior do caráter
para resistir às influências das catexias objetais abandonadas
possa tornar-se, os efeitos das primeiras identificações efetuadas
na mais primitiva infância serão gerais e duradouros. Isso nos
conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele jaz
oculta a primeira e mais importante identificação de um
indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria pré-
história pessoal. (ibid., p. 43-44)
O Pai será vivido em sua potencialidade manifesta e articulante desde o lugar de
devir situado a partir da operação edípica, ou seja:
O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo
de Édipo pode, portanto, ser tomado como sendo a formação de
um precipitado no ego, consistente dessas duas identificações
unidas uma com a outra de alguma maneira. Esta modificação
do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os
outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego.
(ibid., p. 46-47)
Como explica Ambertín (2003): “A intrusão paterna se faz ouvir desde as duas
margens: Édipo e isso” (p. 124).
E observamos que o ideal do ego compõe com alguns dos objetos que lhe
cercam relações de natureza “mais alta”, como escreve Freud (1923) (ainda que com
certa vacilação ao propor uma distinção mais forte entre o ideal do ego e o superego):
E aqui temos essa natureza mais alta, neste ideal do ego ou
superego, o representante de nossas relações com nossas
relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas,
conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e
tememo-las e, posteriormente colocamo-las em nós mesmos. (p.
48)
Não podemos deixar de notar que o mesmo Freud propõe que se observe quando
essa “natureza mais alta” não consegue ser vivenciada senão sob crueldade e culpa: “O
superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do
id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas”. (ibid.,
p.47)
99
O superego surge, como sabemos, de uma identificação com o
pai tomado como modelo. Toda identificação desse tipo tem a
natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação.
Parece então que, quando uma transformação desse tipo se
efetua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão instintual. Após a
sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir
a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada,
e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à
destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de
severidade e crueldade apresentado pelo ideal o seu ditatorial
“farás”. (Freud, 1923, p. 67)
Para concluir, sobre a função do ego e a formação do superego em sua dinâmica
mais devastadora:
Dissemos que a função do ego é unir e conciliar as
reivindicações das três instâncias a que serve, e podemos
acrescentar que, assim procedendo, ele também tem no superego
um modelo que pode esforçar-se por seguir, pois esse superego é
tanto um representante do id quanto do mundo externo. Surgiu
através da introjeção no ego dos primeiros objetos dos impulsos
libidinais do id – ou seja, os dois genitores. Nesse processo, a
relação com esses objetos foi dessexualizada; foi desviada de
seus objetivos sexuais diretos. Apenas assim foi possível
superar-se o complexo de Édipo. O superego reteve
características essenciais das pessoas introjetadas – a sua força,
sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já
disse noutro lugar, é facilmente concebível que, graças à
desfusão de instinto que ocorre juntamente com essa introdução
no ego, a severidade fosse aumentada. O superego – a
consciência em ação no ego – pode então tornar-se dura, cruel e
inexorável contra o ego que está a seu cargo. O imperativo
Categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de
Édipo. (Freud, 1924, p. 184-185)
Essa passagem do texto freudiano sobre a distinção nas metas sexuais e o desvio
ocorrido, e que se dirigirão tanto para o Ideal do eu quanto para o superego, distinguem-
se nas seguintes características:
Ao passo que a dessexualização e o desvio das metas sexuais
para objetos não parentais adquirem no Ideal do eu um aspecto
amável que promove a proteção narcisista do eu, a
dessexualização no supereu desata o vínculo pulsional – vida e
morte – e, no campo aniquilante da pulsão de morte, encontra a
crueldade mais potencializada que, devastando o amável das
100
identificações, hostiliza brutalmente o eu. (Ambertín, 2003, p.
124)
O Pai, no sintoma alcoólico acaba incorporado (como veremos no próximo
capítulo) como objeto vil, abjeto, desprezível. O Ideal do Eu, agora vociferação
superegóica, nos orienta que em sua formação devastada pelas identificações reiteradas
sobre catástrofes indizíveis (pois fora da comunicação) em seu corpo, compõe os
sintomas vivenciados pelos alcoolistas em seu trato sobre o desejo e sobre as
responsabilidades com os objetos do mundo.
Através dos sintomas da incorporação, é o ideal do ego vil que
reclama direito de cidadania. Pode-se sustentar, desde então, que
toda fantasística oriunda da incorporação busca reparar no
imaginário uma ferida real que afetou o objeto ideal. A
fantasística da incorporação não faz senão trair o voto utópico:
pudesse a lembrança do que foi um abalo nunca ter existido, ou,
mais profundamente, não ter tido o que abalar. (Abrahan e
Törok, 1995, p.253)
Mais do que um Pai fraco, o desejo utópico, mas sempre presente, é que o Pai
pudesse nunca ter existido.
Este breve desvio se fez necessário para que a compreensão sobre essas três
instâncias possa demarcar suas formas de intervenção no, e a partir do Ego.
O Eu Ideal, em sua função de fantasma, função que se propõe a compor a
fantasia imaginária do sujeito, sua demanda e desejo; o Ideal do Eu, instância que dirá
do horizonte possível a ser vislumbrado, promessa de futuro possível para o sujeito,
esperança centrada na espera (ou seja, o quanto poderá entrever de um futuro através de
sua subjetividade) e o superego, instância que inscreve a “virulência” em ação no ego
enquanto resto do crime primordial do assassinato do Pai, podendo atingir níveis de
ferocidade e brutalidade indescritíveis.
A partir daí observamos em sua constituição e funções a instância egóica.
101
Aulagnier (1979) compreende o Eu enquanto resultado dessa operação na qual a
união, reconciliação e reivindicação do eu ideal se articulará com as três instâncias que
serve: superego, id e mundo externo (realidade), propondo:
Esta identidade estrutural é assegurada pela imutabilidade do
esquema relacional próprio a cada sistema, e tem como primeiro
resultado que toda representação é indissociavelmente
representação do objeto e representação da instância que o
representa, e toda representação na qual a instância se
reconhece, representação de seu modo de perceber o objeto. Se
transpusermos o que dissemos para a esfera do processo
secundário e do Eu, que é sua instância, podemos fazer uma
analogia entre atividade de representação e atividade cognitiva.
A finalidade do trabalho do Eu é a de forjar uma imagem da
realidade do mundo que o cerca e da existência do qual ele é
informado, que seja coerente com sua própria estrutura.
Conhecer o mundo equivale para o EU representá-lo de maneira
que a relação entre os elementos que ocupam a cena lhe seja
inteligível, isto é, que o Eu possa inseri-los num esquema
relacional, que é o seu próprio. [...] O Eu não é senão o saber do
Eu sobre o Eu. (p.29)
Instância administrante e submetida às outras instâncias enquanto tópica de
reconhecimento de si, determinante em nosso trabalho, pois justamente aí no alcoolismo
encontramos razão para crer que o ego se encontra profunda e agressivamente
submetido, quando se trata de sua relação com o supereu.
As nossas idéias sobre o ego estão começando a clarear e os
seus diversos relacionamentos ganham nitidez. Vemos agora o
ego em sua força e em suas fraquezas. Está encarregado de
importantes funções. Em virtude do sistema perceptivo, ele dá
aos processos mentais uma ordem temporal e submete-os ao
“teste da realidade”. (Freud, 1923ª, p. 67)
Se o ego organiza a partir de suas relações com o id e o superego a
temporalidade a que está e estará submetido, ou seja, desde sua percepção corporal até
os destinos inscritos no fantasma e que ordenarão as fantasias, encontramos sua
condição psicopatológica inscrita nesse mesmo tempo.
102
O ego é responsável pela representação imaginária que o sujeito comporta em
si. Berlinck (2000), de maneira sistemática nos apresenta esta parte do aparelho psíquico
que, nesta articulação será responsável:
a) por uma imagem sintética de si;
b) pela administração de uma organização interna: o eu cuida
para que o aparelho psíquico não seja assolado nem pelas
exigências do chamado supereu nem pelas pulsões, pelos
impulsos vindos do inconsciente, ou isso. Nesse sentido, o eu
desempenha função semelhante à desempenhada por um
administrador de empresas;
c)finalmente, o eu desempenha também uma função de
economista. Ele é responsável pelos investimentos que são feitos
pelo aparelho psíquico, ou melhor, pela quantidade desses
investimentos bem como protege o aparelho psíquico de forças
externas que atingem com menos ou mais violência a sua
superfície.
Quando o eu adoece, ele se torna despersonalizado e sujeito a
paixões. Tornamo-nos sujeitos a impulsos que não controlamos
e apresentamos uma incapacidade de nos proteger dos estímulos
do mundo externo. O eu se enfraquece também quando nos
deixamos enamorar e ficamos muito identificados com um
objeto. (p. 172)
Eu, superego e Ideal do Eu, instâncias que se ordenarão em delicada dinâmica e
se apresentarão na forma de sintoma no sujeito.
Podemos agora estabelecer onde encontraremos as evidências do assassinato do
Pai desde suas primeiras incidências.
Convocaremos Abraham e Törok (1995) para nos auxiliar nessa empreitada:
Se, como eu defendo aqui, a fantasia, seja ela qual for, é da
ordem da linguagem, parece-me certo que os interlocutores a
que ela visa, por mais imaginários que pareçam ser nas
exigências e atributos que lhes conferimos, se revelam de uma
outra ordem de realidade, precisamente da ordem dessa
realidade graças à qual a linguagem e a fantasia são possíveis.
Poder-se-á sempre sustentar que a fantasia de culpa diz respeito
ao discurso imaginal, mas onde situar, então, a culpa ligada a
certas fantasias, e, em particular, às fantasias de punição?
(p.120)
103
Não haverá possibilidade de pertencimento ao corpo fora da esfera culposa desse
crime. Poderá até haver corpo, mas o pertencimento a ele depende dessa condição. A
“outra ordem de realidade” não se encontra nos caracteres imaginários dos pais (apesar
de as fantasias assim se presentificarem), mas sim nas funções que esses sujeitos
orquestrarão e oferecerão a esse corpo quando de sua chegada no campo do Outro, da
cultura, do espaço público. Para que um corpo possa iniciar sua possibilidade de
assujeitamento ele deverá passar por uma culpa. Oury e Depussé assim propõem essa
chegada:
Numa primeira relação com o mundo ocorrem as primeiras
inscrições, correlativas a uma frágil afirmação do estar vivo.
Caracteres se depositam que permitirão a estruturação de
edifício e autorizarão o corpo, leib, a se construir. Encontramos
isso no Entwurf (projeto), em que Freud imagina, nas duas
primeiras colunas, nesse depósito de caracteres ao qual ele
atribui uma idade razoavelmente fantasística (antes de um ano
etc.). É uma inscrição anterior à letra. No nascimento o Real não
está nos esperando. “O corpo goza do Real”, diz Lacan, “através
da linguagem”. Nós somos ordenados ao Real unicamente pelos
significantes. É preciso realizar um nicho no que teu amigo
Jean-Claude Milner chama de “o indistinto e o disperso como
tal”. A linguagem faz buraco no Real. Fazer um nicho, uma
espécie de concavidade, supõe que, para existir, é necessário
uma rejeição primordial do que está em volta, ligada à afirmação
de estar vivo. Furar o Real não significa ser engolido por ele.
(p.76-77; tradução livre)
Furar o real significa inscrever uma rejeição nesse campo, rejeição primordial
que revela as primeiras inscrições da culpa sobre esse crime tão necessário à vida. E se a
afirmação de “estar vivo” revela e orienta a causa do desejo enquanto “causa de si”,
como disse Lacan, não há como não se curvar ante o peso de um crime que desde
sempre e para garantia desse corpo, deverá ser lembrado, falado, vivido e atuado, pois
do corpo se tornou seu núcleo.
Retornando a Abrahan e Törok (1995):
104
Por detrás dos crimes, dos cadáveres, dos assassinatos,
reencontrar-se-á a lembrança de uma volúpia que se enquistou
de tal modo, aguardando sua ressurreição. O assunto morrerá,
talvez, mas sua esperança é eterna. (p.120)
Essa “esperança” aguarda justamente o momento, o ato, o enlace significante
que possa reiterar sua marca, retomar seu traço no corpo. Quer anterior ou como letra
cifrada no corpo, é aí que retorna o “discurso” que envolve o sujeito enquanto alcoolista
e que, a partir daí o insere em um campo de significações que não mais poderá retornar
à ingênua ingesta de bebidas em que o porre era vivido como momentâneo e apto a
deixar o corpo após a desintoxicação.
O porre agora é marca subjetiva de um corpo e comanda suas relações com o
mundo. Isso para termos idéia da força desse retorno esperançoso, pois paciente, da
culpa sobre o índice discursivo que chancela um corpo. Índice doravante culposo.
E por que o crime imaginário? Por que culpa?
Ora, o que diz o mito? Que pena, o pecado aconteceu,
experimentamos o fruto proibido, ganhamos a ciência, mas
perdemos o bom pai. Ou a outra variante: que pena, o pecado
aconteceu, ganhamos o castigo de viver e perdemos o ventre
providencial. O que, tanto num caso quanto no outro, se
escamoteou é a alegria de viver fora dessa morna felicidade
paradisíaca, fora desse aquário climatizado, é a volúpia de
morder essa maça da ciência, é o prazer propriamente orgástico
de se despertar a si e ao mundo, prazer que todos nós
vivenciamos enquanto crianças, e que vivenciamos inclusive a
respeito de experiências ditas más, já que elas permitiam nos
encontrar. (ibid., p. 121)
O ser passa da condição de ingênuo à condição de culpado. Passa agora a se
servir da linguagem, ele agora tem “duas caras”; deverá entrar no jogo tanto para jogar
pois não fazem mais isso por ele satisfatoriamente quanto para obter prazer.
“O inocente é aquele que só tem uma cara, que é rude, franco e direto, que
ignora a duplicidade e até mesmo a própria linguagem. Culpado será, portanto, aquele
que não escapou à duplicidade, que se serve da linguagem”. (ibid., p.121)
105
Podemos pensar se o alcoolista, em sua arrogância, franqueza e ingenuidade,
quando alcoolizado e proferindo os discursos que tanto envergonha, irrita e perturba o
outro não estaria a não ser revivendo, reatualizando essa conjuntura econômica da
relação primordial com o Outro, numa tentativa agonizante de retorno à inocência
alienante à demanda desse Outro, pois até mesmo estará fora do lugar de sujeito já que
não ciente de seus atos sob a embriaguez alcoólica.
O fato mesmo dessa constituição de duplicidade, de perda da inocência nada
mais é que um resultado natural de um processo de abandono e introjeção da mãe, “isto
é, de interiorização da relação inicialmente inocente na mãe” (ibid., p.122).
Será a partir desse momento, inscrição primordial do ser no tempo, que a culpa
primeira se instala, na “etapa mais arcaica da constituição do Ego” (ibid., p. 122).
Culpa primeira que conduz à separação pela duplicidade pertencente à dualidade
sujeito-objeto e que se revela sem juiz nem crime, pois os mesmos “abandonaram a
cena no momento mesmo da introjeção” (ibid., p.122). Porém, o que realmente se
manterá fixado, é o registro que a representação inconsciente fará de si por não poder
mais ignorar o “pecado indizível de que ela é, ao mesmo tempo, vítima e acusadora
anônima: justamente o de ter sido submetida à introjeção” (ibid., p.122).
Poderíamos então nos perguntar: de onde surgiriam as recriminações
“criminosas”, que nos alvejam constantemente? A resposta não poderia ser outra: de
nossa “duplicidade”. Como explicam Abraham e Törok (1995): “A fantasia do ‘crime’
não seria, então, nada mais do que uma racionalização retrospectiva da culpa inerente ao
ato mesmo da introjeção”. (ibid., p.122)
Aulagnier (1990) assim expõem a dinâmica da introjeção:
O que se passa neste primeiro estádio é de uma ordem
completamente diferente: é o domínio da alucinação do
significante. Sempre me surpreendi pelo fato desse termo tão
patognômico da psicose ter sido, por Freud, empregado para
106
descrever a primeira reação do sujeito face à ausência do objeto
desejado. O que vemos quando da alucinação do objeto-seio, é o
acionamento daquilo que poderíamos chamar “receptores desse
primeiro objeto”: é pela reprodução, ao nível da boca, de
movimentos de sucção, que a criança alucina o seio. E essa
alucinação (como se dará na psicose clínica) já tem aqui seu
mecanismo específico: a introjeção, que pertence a um registro
completamente diferente do registro da identificação. (p.25)
Portanto, longe de ser algo constatado unicamente na clínica das psicoses
enquanto fenômeno, a introjeção “interioriza uma relação, instala em si mesmo um
objeto que serve de referência para a apreensão do objeto externo, supõe, com efeito,
que nós temos a faculdade inata de ser sujeito e objeto para nós mesmos”. (Abrahan e
Törok, 1995, p.123)
A confusão conceitual entre identificação e introjeção é freqüente. A
identificação entra no processo da introjeção, mas devemos estar alerta: “O resultado da
introjeção é uma relação com um objeto interno, enquanto o resultado da identificação é
designação do lugar em que o sujeito se fixou momentaneamente” (ibid., p.125).
A introjeção é a instalação de um objeto. Desde o corpo alienado e ingênuo até o
objeto da realidade, esse é o processo pelo qual passa o sujeito em sua constituição de
percepção da realidade seja qual for a ordem que daí se estabelecerá (o que não
significa que essa “ordem” não estabelecerá diferenças nesses contornos marcantes
entre as estruturas clínicas). Como explicam os autores:
Vê-se por aí o ponto de articulação próprio da coisa introjetada:
ele deriva de uma relação inocente, efetua o desdobramento do
objeto, depois, na duplicidade, ele se torna o instrumento de
antecipação de uma relação não inocente. É precisamente aí que
intervém a prova da realidade. (ibid., p.124)
A partir daí reajustes de “força” econômica deverão estabelecer os limites de
comporta ao estabelecimento dos objetos que comporão a realidade subjetiva de um
corpo. Quando a realidade erigida representacionalmente não corresponder à prova da
107
realidade exigida, quando ela for “negativa”, o conflito deverá provocar reajustes do
objeto interno. “O processo de introjeção por si mesmo prazeroso se acha então
modificado pelo elemento de sofrimento. O que reforça a culpa essencial, inscrita na
relação com a Imago” (ibid., p. 124).
A origem da introjeção é Eros; propõe ligação entre corpos, ligação para o corpo
onde os objetos se presentificarão e esse corpo, então, terá condições de realizá-los
antecipadamente para se submeter às suas demandas de prazer. Mas se sua origem é
erótica não devemos esquecer que seu destino de “desembocar na culpa não poderá
ignorar o verdadeiro sentido do prazer no qual ela se realizou”. (ibid., p. 124)
“Penso que fundamentalmente existem apenas duas Imagos
15
introjetadas, uma
masculina, outra feminina” (Abrahan e Törok, 1995, p. 124). O pensamento dos autores
é eminentemente clínico, se uma das Imagos estiver oculta, devemos observar sua
dinâmica na esfera econômica e sintomática de suas conseqüências, para lhe dar ou
tornar a dar “direito de cidadania”. (ibid., p. 124)
Portanto, está em jogo a relação das Imagos com a linguagem. Jogo que se
traduz entre o que elas informam e o que o sujeito lhes diz sobre a possibilidade de
reconhecer que existem mutuamente. Posições entre as Imagos que não permitam uma
circulação dialética apresentarão uma ordem defensiva frente à ausência de uma das
Imagos, e quando isso se torna um sintoma sem esquecer que “o sintoma traduz um
discurso da Imago” ( ibid., p. 125) doente, significará “a realização de um julgamento,
de uma maldição, de um voto mau da Imago”. (ibid., p. 125). Aqui, o sintoma se
transforma, para o sujeito, em doença.
15
“Protótipo inconsciente de personagens que orienta seletivamente a forma como o sujeito apreende o
outro; é elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasísticas com o meio familiar.
O conceito de imago deve-se a Jung [...] que descreve a imago materna, paterna e fraterna. [...] A imago
designa uma sobrevivência imaginária deste ou daquele participante dessa situação. Define-se muitas
vezes a imago como “representação inconsciente”; mas deve-se ver nela, em vez de uma imagem, um
esquema imaginário adquirido, um clichê estático através do qual o sujeito visa o outro”. (Laplanche e
Pontalis, 1992, p. 235).
108
As condições para o surgimento de tal aspecto da relação do sujeito com sua
Imago se articularão de modo especial nesses casos:
Quando uma tal identificação é aplicada a um sujeito exterior
que realiza o Ideal emprestado à Imago, temos que proceder a
uma identificação dita narcísica. Esta não é da ordem da
introjeção, mas, antes, da projeção. É uma maneira de aliança
das mesmas com relação à Imago visada, ou comportando com
muita freqüência uma partilha dos papéis com relação à Imago.
Cada vez que a identificação não serve à introjeção de uma
relação, ela deve ser considerada como uma defesa e, em
particular, como a identificação com a Imago. Ora, identificar-se
à Imago ou ao seu complemento ideal opõe-se seguramente a
uma exigência da evolução imaginal, ser nós-mesmos. (ibid., p.
125)
Essa condição de identificação que não serve à introjeção com a Imago
poderá gerar um tal grau de conflito entre o sujeito e a prova de realidade, que o mesmo
se encontrará impossibilitado de encontrar uma resposta à exigência que a prova da
realidade lhe impõe. Assim, não lhe resta outra saída a não ser viver uma alienação do
ego.
As condições para que um sujeito tenha de se haver frente à exigência de se fixar
ante a própria Imago, se dão não pelo fato “de ter sido introjetada uma vez, mas muito
mais por não ter resistido à prova da realidade” (ibid., p.126). Observamos assim a
constituição da posição “maníaco-melancólica”.
Com efeito, na mania, tanto quanto na melancolia, o Ego parece
totalmente eclipsado. Não subsiste mais nada além de uma das
Imagos, a da mãe arcaica e onipotente. O sujeito, conforme seja
ele maníaco ou melancólico, fixa-se seja na própria Imago
como na identificação maníaca seja no complemento ideal da
Imago como na auto-acusação melancólica. [...] A morte, a
maldade, a inconstância de seu homólogo externo determinaram
a reintrojeção da Imago, isto é, sua reconstituição idealizada a
partir do próprio sujeito. Ora, a mania-depressiva se
desencadeia, não com a perda do objeto externo, mas com a
ameaça de perder o objeto interno indispensável. (ibid., p. 126)
109
Em nosso caso clínico, pensamos que W. nos indica em seu relato que desde a
morte de seu pai, e sob as constantes ameaças vividas sob o jugo de seu padrasto, vai
constituindo um modo específico de relação com a realidade que o cerca.
Ele não é realmente jamais chamado o suficiente, interpelado,
denunciado pelo indicador da lei como desejo do pai (e também
não suficientemente protegido pela amorosa indulgência de uma
verdadeira mãe), para sentir-se designado como portador virtual
de um título de homem a assumir mais tarde nas horas das
provas e nos minutos da verdade da vida. (Perrier, 1992, p. 354)
Podemos inferir que seu trânsito pela vida vai se ordenando até o momento em
que se vê obrigado a responder a algumas exigências do mundo que o cerca (trabalho,
mulher, a filha etc.) e encontra de modo privilegiado a bebida e o discurso alcoólico.
A partir daí observamos em seu relato que encontra, em seu modo maníaco-
melancólico aliado ao álcool, maneiras de lidar ciclicamente com suas Imagos: ou
responde às exigências das provas de realidade a partir da própria Imago, sem conseguir
acessar seu ego em auxílio dessa mediação vivendo assim episódios maníacos de
resposta (como as recaídas ao objeto maníaco por excelência em sua vida, ou seja, o
álcool) às demandas do Outro, ou responde a partir da Imago de sua mãe arcaica e
onipotente vivendo assim o torpor melancólico auto-acusativo, não tendo, também aí,
possibilidade de acessar a si mesmo como mediador dessas exigências entre o mundo
externo e o mundo interno, não estabelecendo uma representação viril dessa exigência.
Esse modo de defesa se instala a partir do momento em que as experiências de
sofrimento e morte o alertam sobre um risco catastrófico ao ter de se haver com seu
pacto criminoso frente à introjeção em seus primórdios de constituição. Um modo de
não poder reconhecer o prazer de introjeção de seus objetos.
“Nos dois casos, trata-se de negar o ‘crime’ que é, em última análise, o de ter
introjetado o objeto. A supervalorização da culpa não engana ninguém a não ser a
110
Imago. Trata-se de esconder dela que ela foi introjetada no prazer”. (Abrahan e Törok,
1995, p. 126)
As relações interpessoais vividas entre os alcoolistas e os “outros” não
alcoolistas encontram, na expressão de um modo estereotipado de discurso, a
condição de contratransferência que provoca nesses outros uma incredulidade quanto ao
saber desse sujeito sobre si, quanto ao real desejo de parar de beber, de se comprometer
realmente com um tratamento, da irresponsabilidade em seu caráter. Afinal, as
acusações de mau-caráter, vagabundo, egoísta etc. se conformando, sob esse modo de
responder à imago, um modo de proceder “que não engana ninguém”.
Esse modo de relação endereça o alcoolista à sua sina de ter de se esconder de
sua condição representativa imaginária. Ter de se esconder de si já que a culpa
acusadora anônima sobrevirá cada vez que confrontado a ter de comparecer quando o
outro o chama.
Toda análise dirá de uma atenção detalhada sobre a culpa mais arcaica (culpa
que escapará à sua detecção pelo motivo de origem, ou seja, ter de se fazer culposa e ao
mesmo tempo ter de se esquecer, fazer o luto de si). Enquanto analistas não fazemos
outra coisa com ela a não ser “reconstituí-la por uma especulação sobre os limites”
(ibid., p. 122) aí alcançados.
Perrier (1992) comentando as relações entre o álcool e a melancolia dirá:
Acreditamos “que regar” um trabalho de luto pode criar o
homólogo de uma melancolia se a perda do objeto amado
concerne o perdedor, no seu ser e não no seu ter. Envenenando-
se iterativamente e passionalmente até que a morte aconteça
mais tarde, é dele mesmo e não do outro que o alcoólatra faz seu
interminável luto. (p. 349)
111
“A tríade maníaca de negação, de desprezo triunfante e do domínio onipotente
já que ela diz respeito a uma identificação com a própria Imago oferece uma excelente
garantia de que o ‘crime’ da introjeção nunca será conhecido” (Abrahan e Törok, 1995,
p.126).
E o álcool, enquanto elixir que produz o efeito do encanto alquímico, enquanto
transmutador, estará sempre presente garantindo que essa morte criminosa o
assassinato do Pai não se efetive.
Com os tratamentos oferecidos ao alcoolista percebem-se esse movimento
insidioso de intervenção do elixir alquímico e as sentinelas de plantão do Ego,
vislumbrando uma possibilidade de afastamento dessa armadilha; constituiu-se o que
chamamos de “Tabu do primeiro gole”.
Escuto uma frase que acompanha o trajeto de quem se aventura com insistência
no tratamento com alcoolistas: “Há que se evitar o primeiro gole”. Esta frase sempre me
intrigou: o que pode conter de tão perigoso, de tão incontrolável neste aviso? Com que
forças o sujeito se depara ao ter de afastar esse gole, sempre primeiro, e sempre
derradeiro? E ainda, com que forças se deparam ante a atração e queda nesse ato?
Essa frase está presente nas propostas terapêuticas das organizações matriciais
que tratam desse sintoma, mas também a ética médica se apóia nesse preceito; todo
esforço deverá ser endereçado no intuito de se evitar que o sujeito recaia na bebida.
Tanto pelo modo reiterado
16
com que se impunha em muitos dos grupos
terapêuticos ou nas sessões individuais com os pacientes internados, essa frase faz
alusão a um tabu, e a desobediência a ela conduz à trágica recaída no álcool.
Freud (1913-1914), em seu texto “Totem e tabu”, nos orienta, a partir de extratos
e resumos do artigo “tabu” da Encyclopaedia Britannica (1910-1911) de autoria do
16
Por vezes irônico ou debochado, em frases prontas, ou em forma de ditado popular, esta referência
aparece sempre como, por exemplo, dito por um paciente em trabalho de grupo: “Do primeiro (gole) para
o mil, só depende do barril”.
112
antropólogo Northcote W. Thomas, que ao situarmos o termo a partir de algumas
abrangências, e em seu trato objetivo, podemos precisar que o tabu serve (para além de
outros objetivos), “à precaução contra os perigos decorrentes do manuseio ou entrada
em contato com cadáveres, ingestão de certos alimentos etc.” (p. 38). Pouco mais à
frente, Freud propõe que a fonte, o poder de um tabu “é atribuída a um poder mágico
peculiar que é inerente a pessoas e espíritos e pode ser por eles transmitido por
intermédio de objetos inanimados” (p. 39).
São admiráveis em sua força e conseqüência as referências propostas à
manifestação do não cumprimento dos avisos concernentes aos objetos e âmbitos que
dizem respeito ao tabu. Tanto o reino dos mortos, quanto objetos específicos – e no
presente estudo o álcool é o objeto tabu – têm aqui posição privilegiada como esse
objeto ao qual deve se manter distância, objeto que deve se manter guardado do
manuseio.
Perrier (1992) também aponta nessa direção quando escreve:
Beber não é incorporar, com ou apesar do consentimento, os
poderes, saberes, riquezas e prazeres secretos de quem não se é
Amores, mortes e corpos? A partir desta primeira evocação
(em preto e branco e mudo, como na cinemateca), pode-se
passar do tragedismo alcoólico ao lúdico de um jogo de cabra-
cega solitário; aquele do bêbado que se entrega e brinca às cegas
na sua relação com o outro. (p.337)
É justamente frente a isso, a esse poder, que o alcoólatra deve se guardar. Ou
seja, a proximidade com esse objeto pode desencadear uma série de aproximações com
o reino de seus mortos que não mais o deixaria seguro quanto a uma possível ameaça à
sua integridade egóica.
A clínica nos responde que a proximidade com o objeto álcool acarretaria o
momento e movimento suficientes de brecha a toda uma avalanche de intromissões por
113
parte de outras instâncias “interessadas” em justamente surgir pelo buraco que essa
guarda baixa propicia.
Superego e Ideal do Eu tomam as rédeas segundo sua orientação fantasmática e
passam a ditar, em um modo de gozo desregrado, o devir do sujeito.
O tabu do primeiro gole seria a defesa necessária, o portão defensivo à entrada
em cena não mais do fantasma de sua história, mas sim da fantasmagoria de sua
existência, gerando assim não uma recusa dessa existência, mas, mais do que isso, o
retorno à cena fantasmática de lembranças carregadas de afetos intoxicantes,
angustiados ou ansiosos.
Manifestação melancólica do objeto sobre o qual não se consegue desprender
sem se perder aqui os efeitos de apagamento do sujeito em embriaguez alcoólica são
exemplos desse momento em que não responde absolutamente por seus atos e que,
posteriormente, acusa esse mesmo momento como justificativa ao “não saber” já que
fora de registro da consciência no ato mesmo do desprendimento, uma tristeza
profunda e irascível lembrando ao sujeito a sua irredutível condição de desamparo.
Ainda citando trecho do artigo consultado por Freud (1913-1914) da
Encyclopaedia Britannica:
Pessoas ou coisas consideradas como tabu podem ser
comparadas a objetos carregados de eletricidade; são a sede de
um imenso poder transmissível por contato e que pode ser
liberado com efeito destrutivo se os organismos que provocam
sua descarga são fracos demais para resistir a ele”. (p. 39)
Pois é justamente este o argumento proposto à distância necessária do “primeiro
gole”: “somos [os alcoolistas] fracos perante a bebida”.
114
W. me lança uma fala enigmática, porém prenhe de direções. Quando, ao
responder o que entende sobre depressão relata o quanto o sonho esperança em um
futuro se transforma em um julgamento e análise crítica de uma situação, e não lhe
permite chegar a qualquer conclusão, e quando “cai em si”, quando consegue encontrar
algum centramento em seu pensamento que o orienta sobre sua condição – e aqui há um
modo notório de apagamento no alcoolismo, pois que sujeito se enuncia neste momento
de embriaguez? – já está alcoolizado.
“Depressão é ter alguns sonhos para realizar e você não conseguir iniciar,
pelo contrário, quanto mais passa o tempo mais o sonho fica distante, isso vai dando
uma frustração que me leva à bebida, começo a fazer julgamentos, começo a analisar
a situação, mas quando percebo já está tudo errado, pois já estou bêbado”.
Essa frase compõe direções das mais importantes para esta pesquisa: o lugar do
objeto, seu tempo de ingesta, as condições para que essa equação da ingesta assim
proceda e a conseqüência dessa ingestão.
O problema do primeiro gole é sua conseqüência imediata; o sujeito tem aí sua
recaída, seu reinício na compulsão oral marcada pelo objeto álcool. O que se demarca
nesse momento é que não se trata de um início qualquer, mas sim do início. Início
constituinte fantasmático de sua relação de objeto, ou mais, da relação da falta de
objeto, do objeto que vem complementar o que falta. Nas palavras de Lacan (1956-
1957) “Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo”.
(ibid., p. 35)
Lacan propõe três formas de pensar a falta do objeto na constituição da relação
objetal para o humano: a privação, a frustração e a castração, enfatizando esta dialética
como “um dos pontos mais essenciais da experiência analítica”. (p. 35)
115
Creio importante situarmos, na brevidade exigida pelo contexto, esses três
modos para, em seguida, nos atermos ao específico dessa relação de objeto do alcoolista
e sua falta.
É claro que a privação, se temos que nos referir a ela, é na
medida em que o falicismo, a saber, a exigência do falo, é, como
diz Freud, o ponto principal de todo jogo imaginário no
progresso conflitual que é o descrito pela análise do sujeito. Ora,
é somente a propósito deste real, como uma coisa inteiramente
distinta do imaginário, que se pode falar em privação. Não é por
aí que a exigência fálica se exerce. Parece mais problemático,
com efeito, que um ser apresentado como uma totalidade possa
sentir-se privado de algo que, por definição, ele não tem.
Portanto, diremos que a privação em sua natureza de falta, é
essencialmente uma falta real. É um furo. (ibid., p. 36)
Mas não é ante uma falta real que o alcoolista se vê angustiado frente ao
primeiro gole; que não consiga se referir ao objeto que deseja não significa que não
deseja algo; o problema é que em sua cadeia significante não se orienta qualquer traço
simbólico que lhe responda sobre o que poderia compor essa injunção, e é justamente aí
que a bebida se impõe enquanto lenitivo.
Com sua angústia amainada se oferecerá como objeto que o lembrará do que tem
de esquecer. A força que faltava para completar o que lhe falta ante a tarefa que lhe é
imposta; a coragem para enfrentar o trabalho que lhe exauriu mais do que deveria.
A força exercida pelo desejo do primeiro gole se traduz como um ato absoluto,
sem apelação, como um ato desferido por punhal pois um corte se faz , mas não se
trata do corte neurótico, não se trata da castração enquanto momento de um corte
simbólico no sujeito e que tem justamente a função de dar um limite, uma borda ao
corpo por orientar “Outro” corpo em sua existência.
O corte aqui é vivido como Imaginário, é sobre a angústia de ter um pedaço de si
amputado que o objeto álcool se impõe enquanto objeto privilegiado para esse encontro,
116
justamente por uma parte do Outro não comparecer simbolicamente; é no contexto
imaginário que se supõe o encontro dessa falta:
A noção que temos da frustração, referindo-nos simplesmente
ao uso que é feito dela quando dela falamos, é a de um dano. É
uma lesão, um prejuízo que, tal como temos o hábito de vê-lo se
exercer, para seguir a maneira com que o fazemos entrar em
jogo na nossa dialética, é sempre um dano imaginário. A
frustração é, por essência, o domínio da reivindicação. Ela diz
respeito a algo que é desejado e não obtido, mas que é desejado
sem nenhuma referência a qualquer possibilidade de satisfação
nem de aquisição. A frustração é por si mesma o domínio das
exigências desenfreadas e sem lei. O centro da noção de
frustração, na medida em que esta é uma das categorias da falta,
é um dano imaginário. É no plano imaginário que ela se situa.
(ibid., p. 36)
Este corte não consegue arrefecer o ânimo, inebriar a alma. A frustração sendo
vivida de modo isolado, ou seja, sem referência à continuidade da castração, que
ordenaria sua condição de espera ante o objeto que frustra, não tem o efeito de prazer,
satisfação e posse incessantemente exibido como exemplo as apelações de marketing
nas imagens da propaganda de bebidas alcoólicas. Seu efeito se parece mais como um
trespassamento, um atravessamento do limiar, um desejo que em sua constituição nunca
chega a se concretizar e sobre o incessante de uma requisição que não se esgota na
ingesta. É por essa senda que transita o alcoolista em sua entrada em cena a partir do
primeiro gole. A partir desse ponto cavalga embriagado no inferno, tendo como
companheira a morte (e seus mortos que lá deveriam ficar).
Fora da operação de castração ante o poder desse objeto tabu, perde-se em uma
oferta imaginária deliróide. Se estivesse sob o jugo da castração estaria sobre outra
égide:
A castração foi introduzida por Freud de uma maneira
absolutamente coordenada à noção de lei primordial, do que há
de lei fundamental na interdição do incesto e na estrutura do
Édipo. Aí está, se pensarmos nisso agora, o sentido do que foi
inicialmente enunciado por Freud. Foi por uma espécie de salto
mortal na experiência que Freud pôs uma noção tão paradoxal
117
como a da castração no centro da crise decisiva, formadora,
principal, que é o Édipo. Podemos, no só - depois, nos
maravilhar com isso, pois é certamente, maravilhoso que só
queiramos não falar disso. A castração só pode se classificar na
categoria da dívida simbólica. (ibid., p. 36)
Percebemos que algo falta, o alcoolista percebe que algo falta, mas mesmo
assim esse algo não consegue se circunscrever, não chega até onde deveria (se onde se
deve chegar é até o simbólico dessa operação) para se apresentar como isso que deixaria
o primeiro gole com um início marcado por um fim, como uma comemoração legislada
pelo encontro do ego com seu objeto simbólico que de modo óbvio diríamos, não é um
objeto real, mas que complementaria o sujeito em seu estatuto imaginário.
O primeiro gole para o alcoolista alude ao escorregão, ao tombo, ao ato em que
o sujeito é digerido junto com o líquido; o sujeito é então literalmente tragado. Não há a
sensação de “porre” nesse corpo, não há uma corporeidade que estabeleça um limite
pela intervenção do simbólico nesse corpo. Quando o alcoolista cai já levanta para o
próximo copo; a ressaca é de outra ordem, até porque não reclama parada da ingesta,
mas sim continuidade.
Ato sempre relatado como de impossível parada, impossível estanque, as
imagens suscitadas pelos pacientes mostram dramaticidade inesperada; o sujeito se
esvai nessa “hemorragia” alcoólica.
A bebida complementaria algo que, enquanto real, se propõe a tamponar o
insuportável da frustração imaginária que, nesse momento, não encontra apelação
possível à ordem simbólica. Resumidamente, podemos dizer que o objeto álcool se
revela real para o alcoolista e imaginário para o bebedor social. Essa distinção é
proposta pela constituição em pensar as formas da falta do objeto e sua relação com o
sujeito, pois o objeto imaginário é sempre o objeto de que trata a castração, mas não é
esse o estatuto do objeto álcool para o alcoolista.
118
Quando Lacan (1956-1957) comenta as diferenças entre as três formas de falta e
suas relações com o objeto, põe em xeque o que se supunha análogo:
É essa comunidade que existe entre o caráter imaginário da falta
na frustração e o caráter imaginário do objeto da castração, o
fato da castração ser uma falta imaginária do objeto, que nos
facilitou crer que a frustração nos permitiria alcançar bem mais
facilmente ao centro dos problemas. Ora, não é absolutamente
obrigatório que a falta e o objeto, e mesmo um terceiro termo a
que vamos chamar o agente, sejam do mesmo nível nessas
categorias. (ibid., p. 37)
Daí observamos que o problema suscitado pela frustração no cerne do problema
alcoólico em sua relação de objeto, nos conduz a outras problemáticas. Se o caráter
desse objeto é real, a que devemos supor essa medida?
Lacan (1956-1957) nos incita, a partir da organização da falta orientada pela
castração, e portanto pela via simbólica, a seguir por um caminho de suma importância:
O que falta no nível da castração, na medida em que esta é
constituída pela dívida simbólica, a alguma coisa que sanciona a
lei e que lhe dá seu suporte e seu inverso, o que é a punição, fica
absolutamente claro que não é, em nossa experiência analítica,
um objeto real. (ibid., p. 37)
Então essa falta imaginária tem como suporte a incidência de um agente, que em
sua relação com a punição e seu inverso organizou a experiência do alcoolista e seu
objeto no âmbito do real. Retornando ao tabu pensado em sua natureza de risco, de
perigo por sua proximidade com o mundo dos mortos e seus objetos específicos que
devem se manter à distância, se na operação da castração é da crise decisiva do Édipo
que não queiramos falar disso, na operação da frustração é justamente dessa crise que o
sujeito não consegue falar, entretanto também não consegue se livrar dela a partir de um
esquecimento; um mundo dos mortos que não cessa de não se enterrar.
Assim se estabelece o sujeito alcoólico que reclama, que reivindica, que é chato
e abusado em seu pedido do que lhe falta. Seu objeto o corta imaginariamente em sua
demanda mais infantil.
119
O objeto da frustração, em contrapartida, é realmente, em sua
natureza, um objeto real, por mais imaginária que seja a
frustração. É sempre de um objeto real que sente falta a criança,
por exemplo, o sujeito preferencial da nossa dialética da
frustração. (ibid., p. 37)
Lacan (1956-1957) propõe ainda que “tratando-se da frustração, temos a noção
proeminente de que é a mãe quem faz o papel do agente”. (ibid., p. 38)
O caráter infantil com o qual o alcoolista masculino se posiciona frente às
injunções fálicas que lhe são cobradas atestam esse modo de relação com o agente, mas
não sustentam ou explicam outras condições presentes nesse sintoma e que Lacan nos
dá a ver como orientação de caminho neste trabalho: sobre que condições se encontra o
Pai enquanto função nessa operação, e o que significam as condições de punição e seu
inverso, responsáveis pelo sancionamento da lei simbólica em jogo na relação de objeto
vivida na castração, e quais os rumos dessas condições perante o alcoolista?
A experiência da relação objetal que sustenta a posição do alcoolista, posição
situada na frustração, articula uma temporalidade circunscrita especificamente a essa
relação, ou seja, a partir daí podemos propor que o lugar ocupado pela incidência da
função do Pai na constituição egóica do sujeito se encontra em determinado momento
temporal: o Pai frustrante.
E como se inscreve essa incidência do Pai que limitará seu acesso à castração
simbólica propriamente dita ao corpo da criança, sob uma condição em que a relação
de objeto se inscreverá como suportada pela operação de frustração? E quais as origens
desse encontro entre o corpo da mãe e seu rebento?
Jerusalinsky (2007) oferece preciosa explicação sobre essa operação:
Quando um discípulo de Freud lhe pergunta se o charuto que ele
está fumando não representaria uma fixação em relação ao peito
materno, ele lhe responde que às vezes fumar um charuto é
somente fumar um charuto. Com isso ele quer dizer que os
objetos (minha interpretação) nem sempre são outra coisa. Às
120
vezes são somente o que são e para nós, humanos, isso constitui
um problema, já que enquanto sujeitos, ficamos restritos ao gozo
desses objetos, isto é, nada podemos fazer a respeito, a não ser
gozar deles, não temos como transformá-los em traços
significantes, não temos como imaginarizá-los, não podemos
incluí-los em nenhuma fantasia, nem simbolizá-los, e não
podemos decidir, escolher o lugar que eles ocupam em nossas
vidas. Por isso, quando o objeto aparece tal como ele é, impede
de falar dele. E, se tivermos a habilidade, a inventividade de
representar esse objeto no outro, o outro, como portador desse
objeto, é meramente um suporte, cabide, em que esse objeto está
pendurado. Então ficamos restritos a demandar ao outro
repetidamente, insistentemente, de modo insuportável para o
outro, esse objeto. Por isso digo que quando o objeto aparece
somente como ele é, quando o charuto é somente um charuto,
temos um problema. [...]
O objeto das relações primordiais, ou seja, as fezes, a voz, o
peito, o olhar, como todos sabem, intermedia as negociações
entre mãe e filho no início da vida. Esse objeto primordial, com
toda variedade que pode ter, na posição em que o corpo material
de seu filho é tomado pela mãe, passa a ser objeto na medida em
que lhe falta, quer dizer, se recorta desse contínuo e é
diferenciado do real, e é esse recorte operado pela mãe que, por
retirá-lo como se retira um pedaço de algo, como um recorte que
faz um buraco numa superfície, é aí que ele passa a ser o objeto
que falta nesse buraco. Por isso é a retirada das fezes, que por si
só não são o objeto, por que se o fossem bastaria recolocá-las
em seu lugar, nenhuma mãe guarda na geladeira as fezes de seu
filho para reintegrá-las quando ele o pedir, então esse objeto
desaparece e onde ficou o buraco é que o objeto, pela ausência,
se constitui.
É assim que acontece com o olhar, e o objeto primordial é o
olhar faltante do outro, o objeto não é o peito em si, mas o peito
que falta na boca, e a voz é aquela que falta aos ouvidos. É ali
que o sujeito se pulsionaliza, o que quer dizer que ele passa a
chamar, em seu discurso pulsional, esse objeto que daí saiu.
Passa a chamar a voz, pulsão invocante, passa a chamar pelo
olhar, pulsão escópica, passa a chamar o peito, pulsão oral,
passa a chamar as fezes, pulsão anal, passa a chamar a presença
do outro, pulsão motriz, passa a chamar o saber que aí falta,
enquanto objeto extraído daí, o que Melanie Klein chama de
pulsão epistemofílica. O grande problema no enunciado de M.
Klein é que, para ela, o peito que falta na boca não se constitui
como objeto pela falta dele, mas pela positivação dele no
próprio peito. Isso faz uma diferença importante, já que se o
objeto é aquilo que ali falta o que se registra nesse circuito que
a pulsão desenha para chamar esse objeto inevitavelmente
constitui-se nesse movimento a instância desse outro que é quem
deveria escutar esse chamado para trazer o objeto que dali se
ausentou. Imediatamente, na medida em que esse objeto se
121
constitui como faltante, ele provoca uma chamada que tem que
ser ouvida por alguém. Deve-se contar com a presença de
alguém para que esse objeto seja trazido.
Então aí a relação não é com o peito, é com o outro (minúsculo),
geralmente a mãe. Poderíamos dizer com todo rigor que
enquanto a relação primordial, em Melanie Klein, é com o peito,
a relação primordial em Lacan e em Freud não é com o peito,
mas com a mãe. E vocês sabem que se relacionar com um peito
e com uma mãe tem conseqüências muito diferentes. Claro, não
que não existam crianças que se relacionem com o peito, e não
com a mãe, ou seja, que se relacionem com o objeto primordial
tal como ele é. E só. Isso constitui o problema. Quando o
charuto é só um charuto, dá a impressão de que aí não há
problema, mas essa simplificação é justamente o que complica
as coisas, complica a possibilidade de que esse pequeno ou
grande sujeito se relacione com o Outro, já que esse obstáculo, o
do objeto pequeno, que é como é, se constitui como
impedimento, como barreira na relação com o Outro. (ibid.,
p.67-70)
Portanto, para que o objeto possa se constituir enquanto faltante,
enquanto objeto que poderá significar outra coisa, é necessário que uma intervenção
tenha se operado entre a mãe, que aninha esse corpo a partir de seu corpo, e desse corpo
que demanda a mãe por uma falta.
O momento inscrito por esse Pai frustrante parece conduzir a modos de relação
de objeto (e posteriormente com o objeto alcoólico, por excelência), onde a cronificação
nessa operação passa a sujeitar o ego a alienações de forma cada vez mais grave e
problemática.
Esta questão relacionada ao tempo, ou melhor, ao tempo de resolução em
resposta a uma injunção, toma força e se circunstancia e, sendo assim, se faz possível
pensarmos em tempos distintos:
Um tempo que sugere, pelos relatos propostos, um alinhamento temático em
que haveria um tipo de injunção ao sujeito com possibilidade de narrativa sobre o
mesmo, mas pela impossibilidade de resolução “a seco”, a bebida entraria para sustentar
uma queda desencadeada por essa injunção.
122
Um outro tempo, mais comprometido clinicamente, mais empobrecido, se dá
quando não há mais qualquer injunção possível de ser relatada; sua fala propõe um
esvaziamento no pensar, na lembrança ou imaginação (o que daria no mesmo): o sujeito
simplesmente se diz impelido ao ato de beber.
Dois momentos importantes, e de não tão esquemática resolução como
apresento, mas desta maneira exemplifico dois lugares corporais diversos: um onde a
intervenção terapêutica parece poder incluir algum interlocutor sobre o ato, e outro
onde absolutamente não há interlocutor algum, apesar de ainda restar uma boca (resta aí
um sujeito?) que fala sobre seu “problema alcoólico”.
Estarão em jogo situações clínicas que tendem a constituir um limite ao
tratamento psicoterapêutico? A cronificação da doença apresenta assim seu espectro de
manifestação? À falência do corpo corresponde uma falência do eu?
Os pacientes situados neste segundo modo acabam por constituir uma classe
complicada, ou até, no paradoxo desta situação, não demandam mais complicador
algum.
As complexas composições que se ordenam a partir do imperativo superegóico
podem nos levar a pensar algumas posições em que a culpa estabelece um modo
bastante radical de incidência corporal.
Ambertín (2003) propõe que: “Na complexa constelação do supereu pode-se
detectar três diferentes registros da culpa: culpa consciente ou sentimento de culpa;
culpa inconsciente e culpa muda” (ibid., p. 114).
Na situação que descrevo a respeito desses pacientes, a autora nos esclarece:
O verdadeiro novo gira em torno da culpa muda que não tem
expressão no eu nem na angústia da Consciência Moral, que
tenta escapar à submissão pela via das formações do
inconsciente. Na culpa muda, em compensação, há apenas uma
busca compulsiva e silenciosa da satisfação do castigo de
padecer (ibid., p.115)
123
A cronificação alcoólica leva o etilista a uma espécie de esgotamento de sua
possibilidade de diferença entre desejo e demanda, tornando-se puro objeto de uma
compulsão insensata de demanda clínica e alcoólica, ambas ciclicamente organizadas e
sem outra condição de oferta terapêutica a não ser o trato clínico, no sentido mais
imediato de acolher e cuidar do soma em um ambiente hospitalar.
Estes são os pacientes que requerem uma internação, e não se interessam, pela
falta de capacidade adquirida (o abuso etílico enquanto manifestação dessa culpa muda
gerando graves deficiências na volição), em encontrar motivos para um tratamento.
Situados em um grau de compromisso com a coerência a seu eu praticamente
colados a seu corpo, demandam as noções mais básicas de sustentação: nada mais, nada
menos do que alimento, moradia e cuidados básicos.
Como propõe Berlinck (2000):
Hoje sabemos que o que se denomina de vontade nada mais é,
na maioria das vezes, do que a expressão de uma compulsão, de
um constrangimento que nos impulsiona à ação. A liberdade à
qual nos referimos não implica, portanto, a idéia de um
exercício da vontade, mas a noção de que o homem, no mais
íntimo do seu ser, é um ser da liberdade já que é constituído por
todas as possibilidades que lhe são oferecidas pela cultura, ainda
que esteja sempre empenhado em sustentar uma determinada
narrativa que supõe coerente com seu eu. (ibid., p. 304)
A vontade, aqui, encontra-se subordinada em posição análoga a essa oferta
cultural, um discurso absoluto sobre o apanágio vinculado à bebida, à abundância desse
objeto, em que a narrativa não encontra outra saída a não ser manter o discurso da
coerência, de um saber discursivo vinculado à destrutividade dessa condição.
Paralelamente, mantém-se o ato alcoolista compulsivo como sintoma de uma
expressão de constrangimento cronificado vivido por esse sujeito, constrangimento que
não encontra mais interlocutores para debate, apenas cuidadores frente ao terrível abate
no corpo.
124
Então podemos nos perguntar: em que momento de sua condição
psicopatológica temporal se encontra W.?
Sua narrativa nos leva a considerar que está situado em condições de articular
uma proposta de tratamento em conjunto com um interlocutor, ou seja, um sujeito que
faz demanda e consegue assim orquestrar a transferência com seu analista. Seu tempo
narrativo psicopatológico compõe a possibilidade de um contrato terapêutico, qual seja:
um re-olhar sobre a constituição de seu desejo.
O escutado, a respeito do efeito do “primeiro gole”, merece uma investigação
detalhada, investigação que amplie as indagações referentes às instâncias envolvidas
nesse processo que articula três registros fundamentais para escuta e observação do
manejo transferencial clínico: o Ego, o Ideal do Ego e o Supereu.
A hipótese é a seguinte: a recaída articula uma injunção fálica a um determinado
ponto, fixação histórica do sujeito que se encontra em modo de defesa foraclusivo.
Nasio (1996) retoma a idéia do desencadeamento de um modo foracluído de
resposta da seguinte maneira:
Pois bem, a foraclusão consiste precisamente na suspensão de
qualquer resposta à solicitação, dirigida a um sujeito, de ter que
fornecer uma mensagem, praticar um ato ou instituir um limite.
Por isso a foraclusão é a não-vinda do significante do Nome do
Pai no lugar e no momento em que ele é chamado a advir.
Compreendemos assim porque não pode haver ação foraclusiva
sem a condição de um apelo que a desencadeie. Em suma, para
que a operação de foraclusão se verifique, isto é, para que haja
carência de um significante ali onde deveria haver a emergência
dele, é necessária a incitação prévia de um apelo. (ibid., p. 158-
159)
Este modo defensivo, denominado de ação foraclusiva, corresponderia, então, a
um modo de resposta a um apelo histórico que responderia defensivamente pelo modo
específico dessa ação, ou seja, a falta de outro significante, a falta de uma representação
que pudesse responder ao sujeito de outro lugar que não de um buraco no âmbito da
125
significação. Buscando orientação a partir de um significante que viesse a gerar o
engendramento necessário para que essa injunção se completasse, o alcoolista encontra
o álcool de modo absoluto e resoluto, não mais como resposta significante, mas como
apaziguador da angústia vivida pela injunção fálica.
Seu Ideal encontra única via de apaziguamento através da ingesta tóxica
ordenada pelo superego.
Pierre Fedida (1991) nos propõe em seu texto “A doença sexual” que a
sexualidade humana na descoberta freudiana não corresponde a um ideal de felicidade,
mas principalmente a uma função tóxica.
Do ponto de vista teórico, o quadro cronificado, transtornado e compulsivo de
consumo alcoólico se inscreveria aí como um tipo de auto-erotismo, em última
instância, uma posição deformada desse auto-erotismo gerando um autismo ante o
consumo alcoólico.
A sexualidade é justamente o contato interno com um objeto que não é mais um
objeto, ou seja, esse contato não faz mais contato com qualquer substância, mas produz
“um contato com o contato, um contato que se encontra no interior mesmo da relação da
boca com ela própria, onde se descobre a fonte do prazer, e onde, precisamente, aqui,
acha-se engajado o desenvolvimento da sexualidade” (Fedida, 1991, p.100).
Ainda em outra passagem, em uma carta a Abraham em 1908, Freud (1950
[1892-1899]) afirmava em relação ao “Soma”
17
, que o filtro dessa substância contém
certamente a intuição mais importante, isto é, “que todas as beberagens inebriantes e
17
“A substância sagrada soma, citada nos livros do Rig Veda, da Índia de 1300 a.C., nunca foi
identificado com precisão. Diversas teorias foram apresentadas nesse sentido, Richard Gordon Wasson
supôs que deveria ter sido o cogumelo Amanita muscaria. Outros autores lembraram a Cannabis, a
efedra, a arruda síria, os cogumelos Psylocybe, mas nenhuma hipótese foi ainda comprovada de forma
completa. Sabe-se que a soma deve corresponder a outra droga sagrada análoga, o haoma, presente na
literatura persa do Zend avesta”. Carneiro, 2005, p. 182.
126
todos os nossos alcalóides excitantes são somente o substituto da toxina única da libido
ainda a ser pesquisada que a embriaguez do amor produz” (ibid., p.323).
Então, é no afastamento desse objeto-substância que se enuncia o que
entendemos como auto-erótico: um segundo momento em que o objeto a ser
reencontrado não é o objeto perdido.
É aí, precisamente, que se constitui a sexualidade humana. A
sexualidade humana intervém, portanto, em um momento de
desvio, em um adiamento interno, no qual justamente abandona-
se o que é da ordem da autoconservação, enquanto a ação sexual
apóia-se sobre os gestos de autoconservação. (Fédida, 1991, p.
100)
A constituição do sujeito avança na tentativa de encontrar, por meio de sua
sexualidade, aquilo que se distingue da ação sexual, desde as manifestações mais
primitivas como o “chupetear”, até sua evolução nos modos alimentares para utilizar
como exemplo aqueles relacionados à boca e oralidade. Os gestos então conservariam o
desejo de reencontrar esse outro objeto só que agora em seus substitutos marcadamente
sexuais e não mais o da alimentação em sua condição oral específica.
Quando não mais encontramos essa distinção se efetuar em construções
simbólicas, achamos os exemplos clínicos nas relações objeto-boca onde os objetos
tomam proporções absolutas e se inserem numa equivalência entre os vários distúrbios
da oralidade como a anorexia, a bulimia, a obesidade, o alcoolismo, as práticas sexuais
orais e, de modo mais geral, os usos tóxicos das palavras, como nos faz observar
Jerusalinsky quando remonta a constituição objetal onde “um charuto é só um charuto”,
ou Abrahan e Törok a respeito do estado mania/melancolia e suas relações com o Eu e a
Imago, sem esquecer o comentário do analista, citado no caso clínico, quando questiona
W. sobre seu “medo de ficar viciado no psicoativo de uma relação”.
É isso que coloca certas práticas sexuais numa equivalência simbólica que
chamamos de distúrbios da oralidade.
127
O auto-erotismo se constituiria, então como sendo uma:
Apropriação físico-psíquica de formas que vão se engendrar a si
mesmas, pois, precisamente, é o sentido da palavra auto-
erotismo que Freud instintivamente conservou na íntegra nos
sentidos de autos e eros; ou seja, em um sentido que significa
não somente que o auto-erotismo é um processo que se produz a
partir de si mesmo – autos Eros mas um processo que, ele
mesmo, se engendra, um processo capaz, ele mesmo, de
engendrar sua capacidade de se engendrar”. (ibid., p. 101)
Portanto, Eros é movimento, ligação. Há, assim, “um movimento que é
engendrado por si mesmo e que faz com que autos torne necessária a criação de Eros
(ibid., p. 101).
Se o auto-erotismo é a possibilidade de criar a partir de um auto-engendramento,
quais as conseqüências para a constituição desse corpo quando não são fornecidos os
meios de criar ligações na tentativa de fazer correr uma cadeia simbólica de objetos
sucedâneos?
Quando encontrarmos esse processo obstaculizado encontraremos uma situação
em que a partir do Outro, as injunções que deveriam servir como suporte não se
estabelecem nesse intento.
Invadindo essa criança em um excesso de excitação (em alguns relatos clínicos
encontramos as mães de alcoolistas bem como suas esposas narrarem suas
experiências com seus filhos e maridos desse modo, ou seja, a partir de um excesso
imaginário de solicitação e resposta) não se constitui a relação objetal através da falta,
mas sim pela eleição de objetos que deverão inundar o órgão receptor não permitindo
que se dê o que seria fundante da condição erógena mais essencial no auto-erotismo: o
acesso a uma castração simbólica do objeto, um luto do objeto.
Como esclarece Fédida (1991):
O luto do seio materno, o abandono do objeto nutridor, não
significa uma reprodução que no fundo seria uma satisfação
128
imediata, uma satisfação não unificada, ou ainda uma satisfação
que excluiria qualquer outra possibilidade, ou seja, o que
chamaríamos de um prazer de órgão. (ibid., p. 102)
E aqui se encontra justamente essa marca de um excesso, pois onde esse excesso
se demarca, se demarca também uma impotência.
A sexualidade humana não é viciosa, o vício é da ordem da defesa contra ela, é
uma defesa da sexualidade. A sexualidade humana é eminentemente erótica, ou seja, ela
faz ligações, e fazendo ligações ela sai dessa ordem imutável que é a ordem do vício.
Os sujeitos que apresentam um distúrbio da oralidade apresentam uma
impotência sexual, da ordem da sexualidade e não do sexo, até por que o que se ordena
muitas vezes é justamente a procura por tais relações de objeto (viciosas) para que
consigam ter relações sexuais. Ora, não é justamente isto que escutamos nos relatos dos
alcoolistas, ou seja, de que a ingesta alcoólica apazigua o que viria como uma “sede
imensurável”, o primeiro gole como um reencontro com esse objeto que
supostamente deveria estar perdido?
Poderíamos então considerar que o alcoolista se situa em problemática autística
com relação a algumas futuras posições objetais desde o início de realização desse lugar
de inscrição de si, considerando que a relação com o outro não pode contemplar o
movimento necessário de Eros para produzir o afastamento do objeto.
Não se constituiria um luto que, em sua função primordial, viria encobrir a
relação objetal para sempre marcada pela impossibilidade de reencontrar o objeto
substância. Assim, essa busca visará o objeto desde sempre enquistado organizando um
delineamento de borda entre o corpo, sua saciedade e esse objeto.
Desse modo, o apelo ao objeto se transforma em demanda necessária para
(tentar) obstaculizar o desprazer vivido entre corpo e memória.
129
Citando Oury e Depussé:
No nascimento, é preciso ser recolhido num receptáculo ou,
porque não, numa pia batismal. O receptáculo é o que introduz
na existência a primeira concavidade. O nascimento é preciso
que ele faça um buraco no real, o que supõe aquilo que
denomino “função foraclusiva”, que delimita a unidade de um
existente pela rejeição de um resto [...]. É a rejeição que permite
o depósito de uma inscrição, de uma atribuição, ela faz buraco e
significantes podem se depositar sobre as bordas. (ibid., p.77-78,
tradução livre)
Haveria então, no funcionamento subjetivo do alcoolista uma “falha”, falha
circunscrita às primeiras relações objetais e que se constituiria como uma falha na
rejeição primordial, o que seria a foraclusão necessária a toda constituição de relação
objetal “a inscrição supõe previamente a função foraclusiva, é o funcionamento da
rejeição que permitirá a inscrição” (ibid., p. 78). Posteriormente essa falha se constituirá
em um apelo a uma injunção fálica que estará referida ao objeto alcoólico como
suplente dessa falha.
Quando um assunto, não qualquer assunto, mas um que gere um pedido de
significação específico ou não fizer referência a uma resposta sobre o fantasma
fundamental do sujeito, que foi situado em posição traumática na posição de frustração,
e essa demanda não encontrar respaldo no âmbito referencial próprio desse sujeito, algo
da ordem de uma foraclusão com um respectivo objeto real se oferecerá como resposta.
Ou seja, quando é imprescindível a resposta a uma demanda e que poderia ser
respondida a partir da operação de castração sofrida pelo sujeito, não encontra outra
coisa a não ser um vazio/repúdio de resposta, encontraremos um tipo de foraclusão
específico que não seria a foraclusão do Nome-do-Pai (desse organizador central e que
comumente observamos manifestar-se nas respostas psicóticas), mas de outro modo de
resposta foraclusivo que se pretende a responder às injunções fálicas propostas nas
demandas das relações objetais oferecendo um objeto real como complemento.
130
Observaríamos aí a vinda de um proposto ideal que lançaria o sujeito na
construção imaginária de que esse objeto o faria capaz de responder a esta injunção.
Ideal da Imago do sujeito vinculado ao álcool, ao efeito psicoativo desse já
conhecido gerador ilusório fálico (com todas as suas características de
insustentabilidade e fracasso), com o conseqüente preço da foraclusão do sujeito.
Temos assim um ego frágil, massacrado pela vociferação superegóica em que
impelido à ingesta alcoólica, imagina idealmente que ali, no objeto, haverá um ponto de
ancoragem para sua angústia desenfreada. Preço da impossibilidade de o sujeito, nesse
estado, não só vir a saber de si, mas, além disso, não responder por si. Preço que se
estabelece como defesa, já que além de impagável também inapelável. Esta foraclusão
está situada em um âmbito autístico, um buraco na significação.
Aqui o auto-erotismo estaria vinculado não mais a Eros, mas ao autos, esse
outro que cobraria um apelo de significação e que não encontra no alcoolista a resposta
em associação possível. Autístico, pois não encontra resposta alguma, e ainda, ao sentir
que pela impossibilidade de responder será tragado por esse outro, esquiva-se para fora
da condição de sujeito. Esse auto faria o empuxo necessário à autoconservação.
Só assim para que um alcoolista internado, ao ser questionado a respeito do que
viria antes da vontade de beber, pudesse responder após um breve pensar: “a vontade!”,
ou seja, o impulso, a impossibilidade de articular algum traço simbólico que pudesse vir
a dar conta desse momento antecipado ao ato.
Nas palavras de Fédida (1991), “este outro é o outro do auto, do autismo, ou
como foi chamado, autismo sensual, ou autismo sensorial” (ibid., p. 105).
Portanto, para o alcoolista o ato de beber se refere justamente a esse caráter
autístico da relação com o objeto. Fédida ainda refere de modo mais contundente a
problemática vivida na clínica das intoxicações a partir do paradigma do autismo:
131
Tanto as pesquisas pré-psicanalíticas [...] quanto as pesquisas,
digamos, pós-freudianas, gradativamente tenderam a considerar
que o autismo seria, na realidade, um paradigma. Um paradigma
psicopatológico que pode ser encontrado, independentemente do
autismo infantil, em patologias neuróticas ou em patologias
limites, particularmente em toda a psicopatologia das
toxicomanias, da anorexia e da drogadição. Aqui se coloca a
questão de um auto-erotismo que estaria novamente justaposta à
autoconservação, ou seja, de um auto-erotismo que retornaria à
fonte alimentar. É isto realmente o que ocorre na problemática
da anorexia ou da bulimia (já que consideramos ser a mesma
problemática), mas, mais do que isto, trata-se de saber, na
realidade, como o corpo do anoréxico ou do toxicômano tenta
criar, a partir de uma condição endógena, a capacidade de uma
substância psíquica suscetível de constituir uma forma de auto-
alimentação por si mesmo, levando até o limite a capacidade
psíquica de constituir uma formação de fantasia que permita
anular o máximo possível tanto a função do corpo quanto a
dependência do outro. (ibid., p. 104-105)
A problemática alcoólica se situa em um nível arcaico de relação objetal, onde
denunciaria que algo dessa relação não encontra saída no outro, ou mesmo pelo outro
enquanto objeto transicional entre sua demanda e seu desejo. Não ocorrendo a
possibilidade de diferença entre sua demanda e o corpo do outro, responderia
diretamente com o objeto, com a tentativa de “auto-alimentação”. No presente caso
clínico isso ocorre tanto com a ingesta alcoólica quanto na situação transferencial vivida
onde W., em uma série de momentos com o analista, “derrapa”, enlouquece em seu
discurso.
A oferta imaginária que surge no primeiro gole trata justamente dessa tentativa
de fazer cumprir o Eu Ideal, imaginário fantasístico que busca um impossível ponto de
estabilização no horizonte de sua angústia ou ansiedade.
Estagnado no Pai Imaginário em sua função privatória, não encontrará esperança
a não ser na ingesta do elixir mágico que operará na burla dessa vociferação de um “não
conseguirás” superegóico. Sua única saída será o reencontro com o objeto que pode
132
anular essa vociferação: o álcool. Vociferação que se traduz (em comentário de paciente
internado): “Já que não consegue, beba”.
No alcoolista encontramos o processo do desejo fadado ao fracasso em sua
relação objetal sobre determinados vínculos que venham a expressar ou impor uma
condição fálica para que possam se articular. Encontramos, em sua fala, a condição de
dependente, de aprisionado no discurso da Imago da Mãe arcaica, no discurso da
demanda e nunca do desejo em sua posição sexuada com a Mulher.
Então, como apreender o objeto reclamado?
Melman (1991) responde a esta questão do seguinte modo:
É importante que o paciente esteja numa possessão real
do objeto extorquido – real, pois aqui trata-se de uma
consumação real e não simbólica; é preciso em geral uma
possessão real do objeto para que o endereçamento a
uma mulher possa se fazer a partir de uma posição
sexualmente afirmada. (p. 110)
Não estamos distantes das considerações de Fédida e de Oury sobre a condição
de apreensão objetal. Aprisionado no discurso da Mãe, sem interpelação do Pai
simbólico nestas injunções, submetido ao Pai Imaginário privador e vociferante, o
sujeito será, assim, consumido no Real de seu corpo.
Sob o ângulo da função do Pai, como esperança em sua função integral de vir a
ser um operador de um nome e legalidade ao sujeito, o alcoolista se volta para o objeto
álcool a fim de buscar um resgate dessa ligação com o Pai, função de força e amparo
que poderia sustentar a junção com o apelo que o faz vacilar, um pedido de auxílio
endereçado ao representante Ideal desse operador. E esse Ideal, entretanto, é marcado
por um selo que, além de privador e odioso, comporta também sua marca de
impotência.
Sob jugo da demanda dessa relação, o alcoolista utiliza sua boca seu corpo
enquanto apelo à Mãe, e a bebida enquanto resto do Pai. Revivendo um encontro
133
primitivo, conluio mortífero com a Imago da Mãe, tenta nessa dinâmica produzir uma
separação entre boca e objeto de insatisfação, e introduzir insistentemente (pois é nessa
compulsão repetitiva que está anolado) um prazer a esse campo. Essa dinâmica se
constitui justamente pela função de rejeição (lembrando Oury e Depussé) que não se
operou, ou seja, um objeto será aí sempre um objeto de impossível substituição
simbólica.
Freud (1923) escreve:
Entretanto, seja o que for que a capacidade posterior do
caráter para resistir às influências das catexias objetais
abandonadas possa tornar-se, os efeitos das primeiras
identificações efetuadas na mais primitiva infância serão
gerais e duradouros. Isto nos conduz de volta à origem
do ideal do ego; por trás dele jaz oculta a primeira e mais
importante identificação de um indivíduo, a sua
identificação com o pai em sua própria pré-história
pessoal. ( p.43-44)
As forças em ação neste jogo nos orientam para a compreensão de que as linhas
de força atuantes são demasiado tensas, conflitivas. Na tentativa de apaziguamento pela
ingesta alcoólica o ego acredita encontrar sua possibilidade de escape dessas linhas de
tensão, sem se dar conta de que esse processo o inclui enquanto objeto a ser apagado e
não apaziguado como gostaria.
Freud (1923) diz claramente sobre este ponto: “Este aspecto duplo do Ideal do
ego
18
deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de
Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve sua existência”. (ibid.,
p. 47).
O aspecto revolucionário do Ideal do ego é a possibilidade de ele reprimir o
complexo de Édipo propondo uma jornada para além da submissão ao complexo; porém
18
Aspecto que se refere aos preceitos: “você deveria ser assim (como o seu pai)”, ou, “você não pode ser
assim (como o seu pai)”.
134
esta tarefa está longe de ser considerada fácil, ainda mais se o ego estiver submerso,
embebido, sem sustentação da consciência.
A aposta em qualquer trabalho psicanalítico com alcoolistas (ou mais, sujeitos
que possuam graves distúrbios da oralidade) é construir a possibilidade desse encontro,
em um desafio postado no lado do outro e do Outro. Uma construção a ser feita com o
sujeito, a partir dele, onde se articule um encontro com a alteridade.
Para que o psicanalista sustente a sua posição, porque um caso
lhe parece curável, e isto pelo fato de que algo da ordem de uma
verdadeira demanda foi percebida em um dizer, ainda é preciso
que ele postule o alcoolismo de seu paciente como um sintoma
ou como a tela de uma outra organização estrutural mais antiga.
O que se trata de saber, então, é o que é ou permanece
analisável. (Perrier, 1992, p. 347)
Complexo aberto, demasiadamente aberto e perigoso, pois conduz o sujeito
alcoólico a transitar entre a mania, como já referido, uma identificação com sua Imago
Ideal, e a melancolia, uma identificação com a Imago materna. Sobrevém a angústia que
pedirá o licor alquímico, verdadeiro condutor à fantasia plena de absorção e retorno ao
objeto supostamente perdido. Dá-se o momento mágico da “incorporação”:
A “cura” mágica por incorporação dispensa do trabalho
doloroso da recomposição. Absorver o que vem a faltar sob
forma de alimento, imaginário ou real, no momento em que o
psiquismo está enlutado, é recusar o luto e suas conseqüências,
é recusar introduzir em si a parte de si mesmo depositada no que
está perdido, é recusar saber o verdadeiro sentido da perda,
aquele que faria com que, sabendo, fôssemos outro, em síntese,
é recusar sua introjeção. A fantasia de incorporação denuncia
uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em que
uma introjeção deveria ter ocorrido. (Abrahan e Törok, 1995,
p.245)
A incorporação vem a sobressair como condição de relação objetal onde as falas
da introjeção deveriam se instalar. O esclarecimento dessa situação:
pode se tratar da perda súbita de um objeto narcisicamente
indispensável, enquanto que essa perda é de natureza a proibir
135
sua comunicação. Em qualquer outro caso, a incorporação não
teria razão de ser. (ibid., p. 247)
Para tanto, o alcoolista busca o lugar por excelência consagrado ao objeto de
preferência desse sujeito que necessitará encher sua boca de outra coisa que não
palavras: o botequim.
136
Do botequim ao sujeito (uma ambiência necessária).
Amigo, acabou-se o meu dinheiro
Amigo, se és amigo verdadeiro
Paga um copo, eu preciso beber mais
Só um trago, é bem que você me faz
Não censures o pedido deste amigo
A bebida para mim é um lenitivo
Se eu não beber, fico louco
Se eu não beber desespero
Só bebendo eu esqueço a mulher
A mulher que eu quero.
Lupicínio Rodrigues, Mais um trago
Acompanhando a idiossincrasia do alcoolista não podemos nos afastar da
característica arquitetônica delineada especificamente para acompanhá-lo em seu
périplo, o ambiente privilegiado de seu encontro com o Outro e com a bebida: o
botequim.
Ambiente de homens, ambiente de machos, em conjunto com as bebidas também
circulam as mulheres, ambas com funções específicas: agradar aos homens. Lugar de
incitamento ao grito recolhido no íntimo, grito que sem seu combustível não se atreve,
sob hipótese alguma, a se manifestar. Local sombrio e de luz, de festa e de tristeza,
reclama para si o espaço que dentro do alcoolista não ganha terreno para se expressar.
Espaço para a solidariedade masculina, os “irmãos” de bar sabem que podem, em
último caso, no “bico do corvo”, contar com seu irmão de infortúnio para lhe pagar um
trago se o seu dinheiro acabou. E assim continuar chorando a mágoa do objeto que o
abandonou, pois esse objeto chorado segue o rumo imposto a todo objeto: se uma vez já
o teve, hoje não há como possuí-lo.
137
O botequim apresenta sua faceta histórica na urbanização da pólis, faceta que
articula o espaço da masculinidade, do pior e do melhor que essa masculinidade pode
apresentar. Chalhoub (apud Matos, 2001), relata a vigilância sobre esses espaços:
O processo de urbanização e industrialização criava a
necessidade de diferenciar espaços, cristalizando divisões cada
vez mais claras no urbano. O controle social passou a atingir
diferentes esferas do cotidiano, em particular das camadas
populares, tendia-se a ordenar as situações de trabalho e de
lazer, crescendo a vigilância sobre os espaços de lazer popular
como o botequim, território majoritariamente masculino, no
qual, em momentos de descanso, a conversa informal brotava
em torno do balcão ou da mesa, tomando alguma bebida, café,
cachaça ou cerveja. (p. 75)
Injusto seria deixar de fora desse espaço, desse ambiente, aquela que é sua
representante oficial: a cachaça.
Henrique Carneiro (2005) nos traz preciosa síntese de sua história:
As bebidas de cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), planta
originária do sudeste asiático e/ou melanésia, inicialmente eram
apenas caldos de cana, garapas, fermentados ou não. Na Índia,
aprendeu-se a cristalizar o seu sumo, que tomou o nome
sânscrito de sarkara (hindi atual sharkará), de onde derivaram
todas as denominações indo-européias para açúcar. Na África
fazia-se “vinhos de cana”, como o tembo da etnia bantu.
O termo português cachaça (e o castelhano cachaza) servia para
denominar a espuma do caldo de cana, em geral usada para
alimentação de animais. Câmara Cascudo identifica seu uso em
uma carta do poeta português quinhentista Sá de Miranda,
supondo ter sido produzida já em Portugal da destilação das
borras e do caldo do bagaço da cana, em processo análogo ao da
bagaceira de uvas. No Brasil, com a abertura dos primeiros
engenhos de açúcar em São Vicente por volta de 1540, também
se teria começado a destilar aguardente das borras da cana, da
cachaça. Em torno do final do século XVIII essa palavra passou
a ser um denominativo geral para os destilados de cana feitos no
Brasil. A primeira dicionarização com esse sentido ocorreu em
1813 no Diccionario da Língua Portugueza, de Antônio Moraes
e Silva, onde a “cachaça brasileira” é definida como “vinho de
borras, a aguardente de mel, das borras”.
A atual legislação brasileira define a aguardente de cana em
geral como “bebida com graduação alcoólica de trinta e oito a
cinqüenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius”
(Art. 91 da Lei n 8.918, de 14/7/1994), distinguindo-a da
138
cachaça, “denominação típica e exclusiva da aguardente de cana
produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a
quarenta e oito por cento em volume, a vinte graus Celsius”
(Art. 92 da Lei n 8.918 de 14/7/1994). Além da água e do etanol,
que compõem mais de 98% da cachaça, existem centenas de
compostos químicos secundários em pequena quantidade,
incluindo os aldeídos, hidrocarbonetos aromáticos, ésteres,
fenóis etc.
Os termos populares empregados como sinônimos de cachaça
são numerosos (Marcelo Câmara relacionou mais de 500
vocábulos), mas no período colonial o termo paraty, da cidade
de mesmo nome, tornou-se um dos mais conhecidos devido a
este porto ser o término do caminho do ouro vindo das Minas
Gerais no século XVIII, de quando são encontrados os primeiros
registros escritos do termo cachaça.
A destilação do fermentado da cana, a aguardente, tornou-se um
produto abundante após a instalação do sistema moderno de
grandes plantações e engenhos americanos, para onde
transplantou-se a planta asiática e a mão-de-obra africana.A
administração colonial portuguesa buscou, entretanto, coibir a
produção da aguardente da terra, chamada “vinho de mel” dos
engenhos, através de uma Carta Real, em 1649, proibindo seu
comércio. Essa medida, embora revogada em 1661, visava
proteger os interesses metropolitanos dos produtores de vinho e
da bagaceira, para que esses não sofressem a concorrência de
um produto local da colônia. O “vinho de mel”, que passou a ser
conhecido como jeribita (de onde derivaram outros termos
populares tal como birita), não só continuou a ser produzido e
vendido na América portuguesa como se tornou um de seus
mais importantes produtos de exportação. O principal uso da
cachaça passou a ser a sua exportação para Luanda para trocá-la
por escravos, especialmente após 1650, em seguida à retomada
de Angola dos holandeses por expedições luso-brasileiras a
partir do Rio de Janeiro. (p. 53-56)
Mas a proibição não impediu o tráfico, muito pelo contrário, tornou-o mais
lucrativo, e acredita-se que uma média de 310 mil litros de cachaça tenha sido enviada
para Angola anualmente.
Cerca de 25% dos escravos trazidos da África para o Brasil
entre 1710 e 1830 foram trocados por cachaça, e se
acrescentarmos também o tabaco da Bahia, chega-se à cifra de
quase a metade dos cerca de dois milhões de escravos trazidos
no século XVIII tendo sido trocados por estes dois produtos
(cachaça e tabaco). (ibid., p. 55)
139
A cachaça tornou-se a bebida nacional por excelência “brindada como símbolo
nacionalista por diversos movimentos nativistas, como os revolucionários
pernambucanos de 1817, de 1824 e de 1848, assim como pelos republicanos de 1889”
(ibid., p. 55).
Ainda sobre os usos e costumes que integrou sob sua influência, escreve
Carneiro (2005):
Seu uso assumiu significados mais amplos do que simples
remédio, alimento, conforto para a miséria ou celebração da
alegria de viver, e tornou-se sagrado em diversos contextos da
religiosidade popular, sendo indispensável nos cultos afro-
brasileiros, como o candomblé e a umbanda, ou nos ritos afro-
indo-brasileiros, como o catimbó, a pajelança e em diversas
práticas da magia popular. (ibid., p. 56)
Com tal força histórica e subjetiva, não é de estranhar que esse ambiente
acompanhe subjetivamente os alcoolistas onde quer que estejam. O hospital não seria
uma exceção.
Curiosa por seu modo de expressão, durante o período de internação desses
pacientes esta ambiência vai organizando espaços que derivam e complementam o
sintoma e o tratamento para esses sujeitos. O hospital passa a se transformar em um
grande “bar sem bebidas”. Mas isto não significa que elas estejam esquecidas, muito
pelo contrário, são lembradas em demasia e em alvoroço, são imaginadas as saídas
(quando do momento de alta hospitalar) e retorno às grandes festas.
Com o corpo agora restituído, é possível novo mergulho (no copo), mas esse
mergulho nunca seria possível sem a constituição do que seria a “piscina” própria para
essa imersão: esse espaço é o botequim.
Segundo o dicionário Aurélio, botequim vem como um diminutivo de “botica”,
quando esta ainda significava “loja em geral” (mais tarde especializou-se e se tornou
comércio exclusivo de produtos farmacêuticos), mas ainda assim há uma transformação
140
e o botequim se organiza como comércio pequeno para a venda e consumo de
bebidas alcoólicas, refrigerantes, café e pequenos lanches.
Mas o botequim é bem mais do que isso. Ele é um “antro de perdição”, um “fim
de carreira” ou o início para esse fim. Local de falidos, de “pés-inchados”
19
, de
jogadores e malditos. Espaço de jogos: carteado, lúdicos, com fim de distração para a
correria do dia-a-dia, dos afazeres e responsabilidades. A sinuca tem no botequim
espaço privilegiado. João Antônio (2004) narra esse espaço:
Corria no Joana dÁrc a roda do jogo da vida, o joguinho mais
ladrão de quantos há na sinuca.Cada um tem sua bola, que é
uma numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende
a sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro.
Assim, assim, vão os homens nas bolas. Forma-se a roda com
cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada homem tem
uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma
vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da
casada. Mas ganha uma vida só...
Fervia no Joana dÁrc o jogo triste de vida.
Um bolo de vida vai a muito porque cresce. Seis, sete ou oito
homens dão bolos de bom tamanho. Quatro, cinco, até seis mil,
começando por baixo, baixo cem cruzeiros por cabeça. O
joguinho vai correndo como coisinha encrencada, pequenina e
demorada. Gente sai e entra gente. O bolo crescendo, o jogo
ficando safado, Fica porco, fica sujo como pau de galinheiro.
Um homem quebra o outro comendo-o pela perna, correndo por
dentro dele. (p.164)
Ele (o botequim) nos chama quando estamos financeiramente arruinados”,
relata um paciente sobre o poder de atração desse espaço.
Outro comenta: “Sabe doutor, o problema é que se passa em frente ao boteco e
elas estão lá, nos olhando, nos chamando... É assim que as bebidas nos atraem para
dentro”. Que poder de atração é esse que irrompe desse espaço? Atração identificada à
demanda de um lugar que ofereça ao sujeito o que ele precisa e pode escutar sob efeito
alcoólico: ele mesmo.
19
“Pés-inchados” fazem referência a um sintoma razoavelmente grave de pacientes alcoolistas crônicos, a
falta de proteína, decorrente da péssima alimentação e condição geral dos sujeitos, gerando um edema de
membros inferiores onde a água, como não consegue permanecer nos vasos migra para o tecido, criando
nessa diferença osmótica um inchaço nas pernas e pés.
141
Comentário pertinente pelo apelo à força, contida tanto no ambiente quanto no
objeto, não se faz necessário a ingesta alcoólica para que a transmutação no sujeito se
dê, a alquimia, a mágica funciona à distância de um olhar:
Caso extremo: Fouquet descreve a alcoolepsia e a apsicognosia.
Justo antes o alcooléptico está normal. Basta um copo, qualquer
que seja a dose, para que se instale e se demonstre um estado de
cegueira e surdez psíquicas, próprio a alguns alcoólatras. Este
tipo de paciente não é mais o mesmo de um segundo ao outro.
Opera-se nele uma espécie de mutação, de mudança radical de
personalidade que, pela ingestão do etil, transforma um
abstinente lúcido e livre em um doente vacilante. É preciso
aproximar ou não os documentos clínicos de Fouquet das
observações de Ferenczi o qual descreveu a embriaguez de
alguns só ao ver (e não beber) um copo de álcool? (Perrier,
1992, p. 342)
Semblante não mais reconhecido por seu destinatário como próprio em seu jogo
especular, justo agora se faz semblante de um outro que não oferecerá resistência ao
tema a ser abordado: mais uma vez ele mesmo.
Melman (1991) nos oferece uma construção sobre a demanda deste sujeito:
Ora, o que percebemos nessa sintomatologia do alcoólatra é, por
um lado, a recusa do semblante, a recusa da imago; e a esse
propósito aliás podemos nos espantar diante do fato de que essa
imago seja, no caso, facilmente negligenciada, quero dizer,
indiferente. É como se o alcoólatra não a visse, não visse os
estigmas que aí se encontram marcados, daí a recusa da imago, a
recusa do semblante, e sua tentativa, então, de obter esse objeto
que dá o primeiro preço, mas pela via da demanda. Dito de outra
forma, a tentativa, de resto sedutora, de tentar resolver pelo
caminho da demanda aquilo que de outra forma só se obtém por
manobras absolutamente arbitrárias, as da castração, e que tem
como preço condenar o semblante. (p. 110)
A Imago recusada representa o que deveria insistir enquanto representação fálica
do sujeito, aspectos de sua vida que anolados ao preço do “crime” e culpa inicial o
fariam devedor destes mesmos aspectos; valores morais, de cidadão, de esposo,
trabalhador etc., ou seja, valores que sustentariam uma sexualidade, um orgulho de si
orquestrado pelo sujeito.
142
São desses aspectos fálicos da vida que o alcoolista, por não conseguir
responder, sai em busca do elixir alcoólico que o sustentaria imaginariamente nessa
posição.
O sujeito fica abolido, reduzido à condição de desfeito, @. A
droga não é um objeto sexual substitutivo, carece de valor
fálico; é, pelo contrário, um substituto da sexualidade mesma,
um modo de afastar-se das coações relacionais impostas pelo
falo. É assim que a droga se assemelha ao auto-erotismo da
proibição originária: o sujeito administra em si mesmo uma
substância que o conecta diretamente com um gozo que não
passa pelo filtro da aquiescência ou pelo forçamento do corpo de
outro; consegue-se deste modo a substituição da sexualidade.
(Braunstein, 2007, p. 281)
A bebida atrai a ruína. Na literatura, na música e nos relatos clínicos (existiria
alguma diferença?)
20
a narrativa é sobre a força imposta ao ego a respeito de um
fracasso que se estabelece nessa atração.
A mulher, seguramente um dos objetos privilegiados dessa atração, mantém seu
status de impossível alcance, tanto fora quanto dentro do corpo e de sua relação com a
Imago. Como escutado nas narrativas, o valor do alcoolista é baixo, objeto que se
entrega ao alheio: a todos e a ninguém.
A função fálica cumprida pelos homens através da investidura
fálica de uma mulher que alcança assim valor de gozo (e de
sintoma) é algo que o alcoolista, paradigma do grupo, não
realiza. Ele se coloca fora, aquém do desejo. (Braunstein, 2007,
p. 282)
20
Não nos estenderemos a investigar a vida mundana ou mesmo as obras artísticas que podem coexistir
junto ao álcool ou outros psicoativos, mas citamos um trecho que consideramos importante sobre essa
idéia a partir de Braunstein (2007) (reiterando nossa idéia inicial de diferenciar o alcoólatra do alcoolista):
“É assim que o álcool e as demais drogas rompem o diafragma da palavra e abrem as comportas dos
paraísos artificiais. [...] Chegando nesse ponto creio que posso assinalar outra forma da adicção à qual não
me deterei a considerar: refiro-me à escritura, não a qualquer uma: a de quem a utiliza como modo de
separação (contrária à alienação) em relação ao Outro e suas exigências. Penso em diversas figuras do
século passado: Kafka, Joyce e Beckett, Plath, Woolf e Pizarnik, Camus, Céline e Sebald, Roth, Musil e
Broch. Penso no magnífico ensaio de Serge André: A escritura começa onde termina a psicanálise, no
qual se analisam a fundo as relações entre psicanálise e literatura e a presença do gozo e o desejo do
escritor na obra acabada. Mas penso ainda que não apenas a escritura, mas também a música e as artes
plásticas são mostruários da criatividade que se desencadeia em certos criados que se separam do laço
social e optam pelas dores do gozo à custa dos prazeres do reconhecimento. Penso, finalmente, na
multidão de criadores anônimos que fazem uma arte bruta (art brut), obras de tolos e ingênuos fora dos
editoriais e das galerias, não dirigidas a nenhum outro nem Outro”. ( p.287)
143
Tais condições não poderiam se pronunciar sem um espaço elegido para
comportá-las. Mesmo a residência nunca é o suficiente para abarcá-los; os outros
rondam, perseguem e ameaçam sua saída da ordem fálica.
O botequim oferece espaço fraterno e protegido onde essa demanda encontra
companheiros e o objeto que os une. Não estarão sozinhos nem desabastecidos de seu
“maná”, de seu alimento consolador da alma.
O EU, comprometido a ponto de estar capturado por este ambiente, é justamente
o referente que cobra um preço às representações que se quer proprietário, mas que
submetido a esta injunção com o álcool não poderá mais se comprometer em saldar
dívida alguma com sua imago que, se as reteve por algum momento, agora, mergulhado
no crédito do elixir, não mais o atormenta.
É o desejo que se encontra comprometido com o sintoma não podendo mais
produzir borda, distância e força de intervenção no objeto que se quer alcançar.
“O gozo não foi recusado, a castração não foi simbolizada, o gozo se fez
inalcançável, a lei do desejo, a que ordena desejar, não opera” (ibid., p. 282).
Submissão muda e surda ao imperativo superegóico: Beba!
O que podemos apreender a partir daí é que o botequim é a construção de uma
ambiência propícia à nivelação recíproca, inter-relação necessária que o ego do
alcoólatra necessita. Como esclarece a fala de um paciente: “No bar todo sujeito se
nivela, todos ficam doutores, é tudo conversa de piloto de avião”.
É a chamada “filosofia botecânea”, filosofia de uma alcova muito especial. Já
que o “homem” precisa de um lugar para conversar e, “em casa não vai dar certo já que
a mulher está presente”, “Em casa, junto à mulher você não vai escutar o que quer”,
então, fez-se necessária a constituição de um espaço exclusivo para isso.
144
O botequim é o local perfeito para um distanciamento desses estigmas, sinais
que representam a responsabilidade fálica que cada um dos sujeitos teria de ter (e aqui
se configura o imperativo fálico de ter de se haver com os objetos, em sua relação
demanda/desejo a partir da operação de castração) em relação aos seus objetos de
circulação. Porém, sob o efeito desse psicoativo, e embalado no ambiente do botequim,
as idéias são trocadas, proferidas de boca a boca e o problema é lembrado sempre fora
do lugar de pertinência e resolução; todo espaço que poderia constituir uma função de
resolução da demanda fálica é proposto negado pela ingesta da bebida.
Frente à marca imposta sobre ele por um Ideal. I (A) que aspira
o que procede do sujeito (vector $ I [A(barrado)]) no gráfico
do desejo, ele entrega sua vontade sob a forma de um corpo
privado de reações vitais, pura máquina metabólica sem desejo,
negação fantástica e fantasmática da castração por meio da
negação do falo. (ibid., p. 282)
É [...] a partir da conjugação da urgência com a impossibilidade
vivenciada de realizar uma obra de boca falar com outrem
sobre o que vem a faltar que se vai preconizar uma outra obra
de boca imaginária, apta a opor sua denegação à própria
existência do problema em seu conjunto. (Abrahan e Törok,
1995, p. 247)
De boca a boca o alcoolista se faz escutar por ouvidos surdos, mas não é outra
coisa que pretende, pois sua enunciação também não poderia atingir ouvidos fálicos, a
resposta seria ensurdecedora para sua frágil capa protetora auditiva.
Desse modo o botequim se estabelece como um dos ambientes mais propícios
para o enunciamento desse Ideal pelo e para o alcoolista. Lugar por excelência do
encontro e do ombro amigo, da possibilidade e da violência do ser desse homem se
manifestar.
Em certo grupo terapêutico um dos pacientes, freqüentador de longa data de
bares e botequins, se dá conta de que o nome “boteco” não existe, que é uma invenção
do bêbado; “A razão social de um estabelecimento comercial que vende bebida é
sempre bar, nunca vi um bar chamado boteco”, ao que propus: “É que a razão social
145
deve ser diferente da necessidade social. O boteco é uma necessidade do alcoólatra, tão
importante quanto a bebida”.
21
Concordaram.
O botequim é uma construção, uma invenção tardia a um hábito que se inicia em
momento primitivo: “Ninguém conhece a doença do alcoolismo no boteco, temos os
primeiros contatos em lugares respeitáveis, no restaurante, em casa, nos bailinhos; o
boteco nós criamos depois”.
Há uma relação de amor entre o bebedor e o botequim. Essa relação se articula
tanto com a mulher quanto com o amigo, mas sempre com ambos, de modo específico.
Se a mulher não pode marcar sua presença é porque o alcoólatra não agüentaria
saber o quanto a mulher pode ser desobediente a esse Ideal.
Magno (1985) observa essa situação do seguinte modo:
Ele vive perseguindo, na sua mulher, por exemplo, uma
incessante confissão. O que ele quer saber? Quer saber A
verdade, mas nenhuma verdade que dizem para ele é verdadeira.
Talvez ele queira saber outra coisa. Talvez queira aprender, com
essa mulher, como ela não é obediente ao Pai Ideal. Ela sempre
deve estar dando golpe naquele Ideal que está acima dele. A
suspeita dele é: se ele é requisitado, talvez, por esse Outro, esse
Outro certamente não obedece ao Pai Ideal. É como se
procurasse nessa outra uma garantia de que a legiferação do Pai
Ideal, sobretudo para ela que pode dizer NÃO à função paterna,
não é um absoluto. No esquema da sexuação, na medida em que
o feminino pode suspender essa função paterna, a legiferação
não é absoluta, muito menos num Pai ideal. Como diz Lacan, on
les dit femme as mulheres, nós as dizemos mulher. Ou, por
sonoridade, on la difame – nós a difamamos. Ela está sempre
pronta a chifrar, porque justamente faz suspensão do Nome do
Pai. (p.12)
A narrativa clínica de um paciente retrata essa incidência da Mulher em sua
configuração alcoólica no botequim:
21
A ponto de alguns usuários de programas de “Alcoólicos anônimos” me relatarem que dentro dos
grupos são diferenciados os bebedores que, realmente preocupados com o ambiente dos bares na
incidência da recaída alcoólica se distanciam dos mesmos. Mas também relatam a existência dos
“bebedores secos”, sujeitos que adoram freqüentar os bares, mesmo sob o risco de caírem na tentação de
voltar à bebida, não conseguem se manter afastados desse ambiente para jogar, conversar e passar o
tempo.
146
“Do boteco eu vou lhes dizer o que sei: sabem aquela mulher que quando você
se apaixona ela te diz um ‘tchau nego’! Aí você sabe que ela não te quer, mas não tem
jeito, é só você passar perto dela que teu olho encomprida! O boteco é isso, é essa
mulher, você sabe que ela não te quer, mas passou perto ela te encomprida o olho, aí
você entra”.
Como uma sereia que pelo canto encanta e faz afogar, o boteco gera uma
nostalgia, como um amor antigo que, mesmo não sendo mais o que poderia satisfazer no
momento, é nele que se fantasia um outro tempo de satisfação que deveria transmutar a
realidade trágica desse momento. Trágico engano.
As relações mais próximas tornam-se marcadas pelas circunstâncias que moldam
os encontros. O álcool, seu espaço no botequim e a condição alcoólica oriunda de seu
distúrbio da oralidade passam a configurar o que observamos como “relações
atalhadas”, termo cunhado por um paciente.
Não distante desse amor da mulher está o amor do amigo, também marcado por
uma proximidade difícil de ser categorizada. O amor de um amigo não pode supor
poder; uma relação entre amigos é uma relação marcada pelo tempo, demora-se em se
saber amigo de alguém, e de saber-se amigo desse alguém, também.
É pela via do atalho que esse ambiente oferece o que se espera de uma amizade.
O atalho, oferecido pela bebida que, relaxando a censura, permitindo os excessos,
recebendo o carinho como se essa intimidade existisse há mais tempo, muito anterior
desse encontro momentâneo.
Circunda-se, engana-se, embriaga-se a castração que não se apresenta mais
presente nesse encontro. Salta-se de um sujeito ao outro com uma rapidez que, sem o
atalho ofertado pela bebida e sem o ambiente oferecido pelo boteco, esse encontro de
amor jamais seria possível.
Talvez assim se expliquem as críticas e desculpas dirigidas aos “falsos amigos”
que, verdadeiramente, de falsos não têm nada, já que estão todos no mesmo barco, mas
147
propor que aí resida uma amizade... seria exigir demais da camaradagem, da necessária
e conveniente camaradagem entre iguais.
Voltemos, num movimento, até a mulher “cantada” para nos determos sobre a
noção da realidade, já que essa imago compõe um dos traços primordiais para a
constituição da mesma.
Lupicínio Rodrigues, na canção: “Minha história” traz a mágoa e a tristeza que
desviou do caminho reto o homem justamente pelo mau proceder da mulher:
Eles dizem que eu bebo demais
E que sou um vagabundo
Todos falam que sou um perdido
Um perdido pro mundo
Quando eu passo os falsos amigos,
De mim acham graça
E murmuram: ali vai
Um ébrio cheirando a cachaça
Eles falam
Porque não conhecem o meu drama real,
Esta vida que eu levo, bem sei
Não é vida normal
Vou contar a vocês minha história
Este drama que me destruiu
Tive alguém que amei com loucura
E este alguém me traiu.
Sob a ingesta alcoólica e no ambiente do botequim, opera-se uma mudança de
realidade. Que realidade subjetiva é atingida nesse ambiente? Para responder, devemos
antes precisar o que entendemos pelo termo “realidade” quando no âmbito psicanalítico.
Nos auxiliam Abrahan e Törok (1995):
Assim como o desejo nasce com o interdito, a Realidade,
também, no sentido metapsicológico pelo menos, nasce pela
exigência de permanecer escondida, vergonhosa. Equivale a
148
dizer que a realidade, quando nasceu, é assimilável a um delito,
até mesmo a um crime. (p. 238)
Relembrando o proposto no capítulo anterior, se a “fantasia do crime”
inscrição primordial instalada na etapa mais arcaica da constituição do Ego se dá por
uma culpa inerente ao ato mesmo da introjeção que conduz à duplicidade (ordem que
pertence à dualidade), e sendo a introjeção a instalação pela qual passa o corpo do
sujeito desde seu estado mais alienado e ingênuo até a percepção da realidade
temos então que o segredo foi compartilhado com terceiros:
Ora, não segredo que não seja, na origem, partilhado. Da
mesma forma, o “crime” em questão, por mais que constitua o
objeto do segredo, não poderia ser um crime solitário. Ele se
refere necessariamente a um terceiro cúmplice como lugar de
um gozo indevido e a outros terceiros excluídos e, portanto
pelo mesmo gozo suprimidos. Na falta da noção de lesa-
direitos, o “crime’ não conteria praticamente nenhum segredo.
(ibid., p. 238)
A constituição do sujeito em sua percepção da “Realidade”
22
que o cerca e o
conduz ao ato da violação de um direito (direito ao prazer na relação dual) que deverá
já que constituinte dessa instância e sustentáculo dessa formação manter-se em
segredo sustentando assim essa condição.
Portanto:
Falar de “realidade” só se torna possível pela própria recusa que,
no paciente, a designa como tal. Mas, nesse sentido, e apenas
nesse sentido, a “realidade” pode pretender o título de conceito
metapsicológico. Ela se define, portanto, como o que é recusado,
mascarado, denegado enquanto precisamente “realidade”,
como o que é, já que ele não deve ser conhecido; numa palavra,
ela se define como um segredo. O conceito metapsicológico de
Realidade remete, no aparelho psíquico, ao lugar em que o
segredo está escondido. (ibid., p. 237)
22
“A palavra ‘realidade’, enquanto conceito metapsicológico, requer a maiúscula. Toda realidade, aliás,
pressupõe esse conceito e dele decorre. A Realidade metapsicológica do segredo é simétrica à realidade
do mundo exterior: a negação de uma caminha lado a lado com a recusa da outra” (Ibid, n.d.r, p. 238).
149
O alcoolista nos leva a pensar que algo desse segredo se pronunciou
demasiadamente em sua história, afetando-o de modo a não lhe permitir restringir esse
afeto ao dispositivo oculto de um segredo histérico e sua direção (busca) de encontros.
“Na histeria, um desejo nascido do interdito busca, em desvios, seu caminho e o
encontra em realizações simbólicas”. (ibid., p. 240)
Esse afeto no seio do corpo do alcoolista, afeto enquanto “linguagem
intrapsíquica” (ibid., p. 327), ou mesmo “comunicação pelo próprio corpo”(ibid.,p.
327), nos orienta na direção de que o crime ocorrido entre o sujeito e o outro em sua
dimensão terceira, e portanto simbólica, foi marcado pela impossibilidade de
substituição enganosa dos objetos oriundos de fora. Sua realidade ficará marcada por
esses afetos que não conseguem se dissipar sem revelar que em cada encontro se
anunciam os mesmos objetos.
Abrahan e Törok (1995) nomeiam esse segredo, situado em posição tópica
enquanto “cripta” do sujeito, e esse sujeito impedido de comunicação desse segredo
pela via simbólica das palavras enquanto “criptóforo”:
No criptóforo, é um desejo realizado e sem desvios que se
encontra enterrado, incapaz que é de renascer, tanto quanto de se
tornar pó. Nada poderia ter impedido a sua realização nem
poderia fazer com que a lembrança dela se apague. Esse passado
está, portanto, presente no sujeito, como um bloco de realidade,
ele é visado como tal nas denegações e condenações. (ibid.,
p.240)
W. nos relata, de modo contundente em sua trajetória, suas imprecações e
críticas cristalizadas sobre si. A Realidade parece não possuir qualquer meio de
constituir diferença sobre seu bloco de realidade desde o início de sua história até os
dias atuais. No trabalho analítico transferencial e contratransferencialmente, a
ausência da possibilidade de comunicação pelo afeto linguageiro confere a sofrida
realidade imutável vivida por esse sujeito.
150
O fato realitário consiste nessas palavras cuja existência oculta
se atesta em sua ausência manifesta. O que lhes confere
realidade é serem desafetadas de sua função costumeira de
comunicação. Por quê? Provavelmente por que, em oposição às
palavras do histérico, que designam o desejo pelo interdito,
aquelas adquiriram, de algum modo, um valor de positividade.
Dessa maneira, elas se tornaram um perigo mortal para o
recalcamento histérico constitutivo subjacente. (ibid., p. 240)
O alcoolista é alvo de uma reviravolta desde muito cedo em sua história. A
reincidência de intervenções brutais atuadas pelo(s) terceiro(s) que o cerca(m) torna
inevitável a eterna condenação pelo crime que, ao se apresentar enquanto divisor frente
à unidade fundante com a Mãe na constituição da Realidade e principalmente quando
momentos precisos o informam de sua posição referenciada enquanto única na assunção
e responsabilidade dessa tarefa refere esse sujeito ao peso insustentável de sua
palavra em sua história, condenando assim o objeto de prazer que o diferenciaria
(diferença que se constataria nas relações objetais onde encontraria lugar para ambos,
sujeito e objeto, no universo simbólico do trato objetal), à armadilha de retornar à
função da palavra, à sombra de uma impotência. Sombra permanente do abuso da
função Mãe em sua onipotência.
Em outras palavras, o recalcamento constitutivo tinha sido
colocado em perigo pelo que está enterrado. De que maneira?
[...] Com as palavras do interdito perdendo seu efeito de
interdito. As palavras do sujeito foram atingidas por uma
catástrofe que as pôs fora de circuito. E isso aconteceu de
verdade. O que prova que o desejo foi realmente realizado antes
de ser enterrado é precisamente que as palavras que o
designam adquiriram seu sentido positivo o que não exclui
que essa mutação tenha ocorrido mais tarde e, assim, essas
palavras foram postas na penumbra. A existência da furna é a
prova suficiente de um acontecimento real, implicando os
representantes das instâncias interditoras como cúmplices da
realização de um desejo, indevidamente levada a termo, o
prazer. Sem o quê, compreende-se, ele poderia ser denunciado
(ver as acusações histéricas). (ibid., p. 240-241)
151
O alcoolismo, bem como outras formas de distúrbios da oralidade, tem assim seu
sintoma formatado pela falha na função do interdito a partir das instâncias interditoras.
“Mas que se entenda bem aqui que o horror não se refere à fantasia de
penetração da mãe pelo filho, e tampouco à criança imaginária (e simbólica) que
poderia nascer desta transgressão”. (Perrier, 1992, p. 365)
O alcoolista bebe pelo impossível de uma regressão que seria angustiante demais
para ele, as implicações de um desejo, forçado à condição de prazer, estabelece o horror
de um luto impossível. O Pai desertor, que em sua escapatória abandona a criança, gera
nesse ser mais do que um abandono à própria sorte, produz aí um desamparo absoluto,
deixando um impossível gozo de sua mãe em seus braços.
É desse horror que o alcoolista foge; o horror de não conseguir ser o
responsável pelo próprio desejo, e o álcool permite justamente que essa máxima se
efetue:
O álcool é o filtro alquímico que permite não ser si próprio. Por
falta de poder reinventar ou perfazer sua própria constelação
edipiana, através dos mortos e vivos do presente e do passado,
pede-se ao álcool para ser a bebida que não dá o troco a
ninguém, a não ser ao anti-si-mesmo que é necessário ser para
respeitar o que, do horror do incesto, conota a impossibilidade
de ser o pai de seu próprio desejo. (ibid., p. 366)
Também aí o impossível da mulher enquanto objeto de usufruto de prazer: se
não pelo gozo imediato e fugaz no trato “botecâneo”, como suportar, afinal, esse ser que
comporta as insígnias do impossível mais de gozar do Pai?
A formulação do alcoolismo como uma das vertentes sintomáticas possíveis
dessa constituição defensiva do sujeito ante o prazer e o gozo, assim orquestrado desde
sua constituição edípica, nos faz observar que a partir da ingesta alcoólica o mesmo
estaria temporariamente a salvo de seus mortos mal enterrados, e nos orienta à
152
compreensão da doença pela qual sofre o sujeito e que assim encontra seu tempo de
alento no alcoolismo.
“O alcoolismo é uma questão de pelica (peau de chagrin); uma tristeza
inconsolável e sempre reengolida, em ar líquido, como se engole um soluço sufocante”.
(ibid., p. 366)
Desatei o paletó, acendi um cigarro, escolhi taco, peguei num
giz.
— Seu Neves, me dá cachaça grande.
— Em cima do café?
— Ahn?
— Puxa, não ouviu? Disse três vezes.
— Ahn... sim.
Chateado, escorando-me ao taco, esperando a vez. Um gole.
Esperei que ardesse na garganta. O modelo do cartaz tinha
dentes tão brancos, teria pernas mornas, brancas. Talvez, nesta
vida besta jamais estarei com uma mulher como aquela. É.
Nunca conhecerei.
O mundo para mim não tem dado voltas, rolado como dizem
alguns. Sempre as mesmas tiradas. Meus sapatos furam-se, os
ternos estragam-se, continuo o mesmo sujeito.
Escritório, taxa de colégio, irmã galinha. Vida xepe, porcaria!
(Antônio, 2004, p. 119)
Está inserida, dentro de toda problemática alcoolista, a identificação com esse
objeto idealizado, objeto pelo qual o alcoolista se enamora e aliena, tornando-se incapaz
de se proteger dos estímulos externos. Mas este objeto dificilmente poderia ser
concebido como o álcool. Se o que entendemos enquanto objeto em psicanálise é
justamente aquilo que falta, que organiza a falta para que possa, a partir daí, ir em busca
do outro objeto (este sim o álcool) que dê conta deste buraco. O objeto primeiro sobre o
qual o alcoolista se ressente da falta é o objeto incorporado.
Introduzir no corpo, nele deter ou dele expulsar um objeto
todo ou em parte ou uma coisa, adquirir, guardar, perder,
tantas variantes fantasísticas, que carregam em si, sob a forma
exemplar da apropriação (ou da desapropriação fingida), a
marca de uma situação intrapsíquica fundamental: aquela que a
realidade criou a partir de uma perda sofrida pelo psiquismo.
Essa perda, se ela fosse ratificada, imporia uma recomposição
profunda. A fantasia de incorporação pretende realizar isso de
153
modo mágico, cumprindo no próprio o que só tem sentido no
figurado. É para não “engolir” a perda que se imagina engolir,
ter engolido, o que está perdido, sob a forma de um objeto.
(Abrahan e Törok, 1995, p. 245)
A fantasia de incorporação atesta a condição sofredora, fracassada no lugar
onde uma introjeção deveria ter ocorrido. Justificativa mais que suficiente para se
entregar ao objeto de sua paixão, obedecendo assim, em sua constituição egóica, à sina
de péssimo administrador, precário protetor e mal-fadado economista (investidor) de
sua vida psíquica.
Ainda neste conto João Antônio (2004) nos conduz sobre as condições do
protagonista:
Caiu a branca. Minha vez. O álcool rondava-me a cabeça.
Terceiro, quarto copo, nem sei. Uns quarenta minutos ali de pé,
repetição de cigarros, pegando no taco de longe em longe.
Angústia me vem, cada vez que penso em coisas sérias, quando
bebo. Começos de desmaio, muita vez, quando bêbado, penso
em coisas sérias; com um estremecimento empurro a idéia de tê-
los agora. Lassidão, o amargo começando na boca, a canseira
nas coxas e na barriga das pernas. Pedra dez é fácil, fácil. Deus
do céu! Estava ali a deixa. Bola cinco meio difícil, é certo,
porém a seis... a um palmo da caçapa. Era só empurrar.
Derrubava a rosa, colocava a azul, fechava o jogo. Pagava meu
tempo, meia-noite e tanto, ia dormir. Não me agüentava nas
pernas. (ibid., p. 121)
Já em parcas condições de conduzir seu próprio corpo, está a ponto de desmaiar,
consciência turva, que não alinha mais com clareza o que Berlinck (2000)
23
chama de
“memória do presente” (p. 173), a distinção dos objetos deixa brecha para outra
instância psíquica invadir o espaço. As coisas sérias invadem como imperativo
superegóico não mais idealizadas como tarefas a cumprir, mas sim como faltas que
23
“O eu não se confunde com a consciência que é um sentido humano que tem a capacidade de iluminar
um objeto ou conjunto circunscrito de objetos – um campo restrito. A consciência é a memória do
presente”.
154
incomodam, que fustigam, angustiam, vociferando a necessidade de um trago que as
apague.
A angústia, companheira do álcool, se manifesta nesse momento enquanto culpa
muda por não possuir comunicação , fazendo o corpo perder o prumo, perder a
linha. E o eu, mais uma vez, vai naufragando enquanto o navio faz água (ou álcool).
Atenazado, mergulho a cabeça na bacia. Faço a ablução aos
poucos, fazendo a água escorrer aos poucos... Os olhos pesam.
As mãos ásperas de giz, os olhos estão miúdos. Muito sono,
muito urgente é dormir, luz apagada, travesseiro solidão, nada...
Amanhã curtir bebedeira. Cara inchada, olhos inchados, beiços
duros. Amanhã, saia sol ou não, os óculos escuros, ninguém
perceberá os olhos inchados. (Antônio, 2004, p. 122)
Navio à deriva; corpo inchado. Resta pouco a não ser cuidar desse corpo. Sem
culpa, encobrindo o resquício do passado; o que os olhos condenam se esconde por trás
dos óculos.
O sujeito do botequim sustenta assim seu semblante, e sua permanência na
compulsão alcoólica é tão maior quanto for seu buraco, sua incapacidade de articular o
pensamento e as palavras para dar conta de suas faltas para com a comunidade falante.
É porque a boca não pode articular certas palavras, enunciar
certas frases [...] que se tomará, em fantasia, o inominável, a
própria coisa. [...] O artifício desesperado que consiste em
encher a boca de um alimento ilusório terá por efeito
suplementar ilusório também suprimir a idéia de uma
lacuna a ser preenchida com a ajuda de palavras, a idéia mesma
da necessidade de introjeção. (Abrahan e Törok, p. 247)
O alcoolismo nos diz do sintoma conseqüente desse sujeito que traz em seu
interior a fantasia (fixação) de um objeto tabu com o qual não conseguiu fazer o luto
necessário para dele do objeto e sua relação com a imago comunicar do simbólico
de uma fala.
155
Se o próprio do narcisismo mais arcaico diz respeito à possibilidade da criança
de se fazer objeto de amor em si, antes mesmo de se dirigir para os objetos externos,
encontramos no alcoolista este objeto incorporado, onde nada suporta as demandas
oriundas desses específicos objetos externos falicizados e que não poderão ser ouvidas
por seus ouvidos surdos.
O obstáculo proibitivo, que por sua natureza cumpre o papel de impedir a
comunicação, faz com que além de surdo e mudo, nada saibamos dessa cripta. Da
incorporação mesma, nada se sabe.
Este é o caso apenas para as perdas que não podem por
alguma razão se confessar enquanto perdas. [...] O luto
indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta. Na
furna repousa, vivo, reconstruído a partir de lembranças de
palavras, de imagens e de afetos, o correlato objetal da perda,
enquanto pessoa completa, com sua própria tópica, bem como os
momentos traumáticos efetivos ou supostos que haviam
tornado a introjeção impraticável. (ibid., p.248-249)
A fantasia de incorporação perpetua um prazer clandestino (que é subversivo,
mas não transgressor); o apelo ao álcool tem aí sua demanda orquestrada no primeiro
gole, um segredo intrapsíquico que se propõe a encobrir, anular o segredo vergonhoso
de sua cripta.
Para salvaguardar o objeto ideal, o criptóforo passa a rasteira em
todo aquele que queira lhe causar vergonha: ele neutraliza,
afinal de contas, os instrumentos, por assim dizer, materiais, da
infâmia, as metáforas originadas de dejeção, do excremento,
tomando-os como comestíveis, e até apetitosos. (ibid., p. 250)
Narcisismo composto pela imagem especular envergonhada de si pelo crime
sempre culposo que produz vítimas.
O fenômeno da incorporação e suas manifestações não se diagnosticam com
facilidade. Suas fácies sintomáticas que transitam pela histeria, pela neurose obsessiva,
na controversa postura perversa e mesmo psicótica em expressões pontuais, esconde,
156
por trás de banal “normalidade”, o que Freud cunhou como neurose narcísica e, em sua
expressão manifesta, a “mania-melancolia”.
É essa ferida que o melancólico procura dissimular, cercar com
muros, encriptar, e pensamos nós não no sistema ICS, mas
no sistema em que ela se encontra, no PCS-CS. É aí, de qualquer
maneira, que um processo intratópico deve ocorrer, processo
que consiste, então, em criar, no seio de uma única região,
sistema ou instância, um análogo da tópica inteira, operando,
com grandes reforços de contra-investimentos, a isolação
rigorosa da “ferida” de todo o resto do psiquismo e, sobretudo,
da lembrança daquilo que foi arrancado. (ibid., p. 254)
O alcoólico nos orienta sobre a formação de compromisso entre seu semblante e
o objeto primitivo que assume uma condição de “corpo invasor” (Berlinck, 2000, p. 79)
manifestando sua dor de ferida quando se contorce sobre os espinhos que a Realidade
lhe impõe enquanto fatos da vida.
Distancia-se da depressão enquanto estado sujeito a se manifestar em qualquer
estrutura clínica, mas não nega a possibilidade de o estado depressivo se configurar
muitas vezes concomitante com a sintomatologia maníaco-melancólica. Acreditamos
que isso possa resultar em confusão diagnóstica pela precipitação em relegar uma
investigação de modo mais detalhado e observar o que de efetivamente depressivo
contém o discurso e manifestação psicopatológica quando enunciada pelo alcoolista.
Uma tristeza que vem com um pedido, uma demanda para que, via medicação,
possa ser ingerido algum remédio que retire esse sintoma do horizonte existencial do
sujeito.
Berlinck (2000) elucida:
Muitas vezes, o clínico é conduzido à confusão diagnóstica
porque na depressividade também se observa angústia e medo
provocados não pela culpa, mas pelo intenso contato com a vida,
157
por meio da mesma sensorialidade que se encontrava num
estado de letargia. (ibid., p. 84)
À guisa de compreensão:
A depressão se manifesta por apatia, tristeza e sensações de
impotência e desesperança. O fenômeno-alvo psicopatológico
visado na letargia e, portanto, na depressão, é mesmo a condição
vegetativo-vital, nosologicamente inespecífica. Nela, a
intensidade das cores esmaece, assim como o claro-escuro,
dando lugar a uma tonalidade cinza, sem contraste. Os cheiros
param de ser percebidos, as texturas param de ser registradas, os
sons ficam amortecidos e podem até desaparecer. O processo
digestivo fica prejudicado e o corpo passa a ficar pesado. Os
movimentos corporais ficam lentos, os pés se arrastam. Em
suma, o corpo penetra um estado de insensibilização da
sensorialidade. (ibid., p. 76-77)
O alcoolista nos remete à tristeza, ao desamparo de sua condição frustrante, ao
vazio que não lhe oferece um leito “para suportar a dor e a angústia causadas pela
ausência do objeto de satisfação e a insuficiência gerada pelo vazio provocado pela
ausência do mesmo objeto” (ibid., p. 78). Ao alcoolista falta, de modo contundente, o
luto desse objeto primitivo de prazer.
Donde o vazio que se instala no ego do melancólico. Se durante
o trabalho do luto, é o mundo que se esvazia; na melancolia
quem se esvazia é o próprio ego do melancólico. Sem esperança,
o mundo do melancólico é um mundo sem horizontes, é um
mundo sem ideais. Seu ideal do ego é substituído por um
superego tirânico e sádico que o leva a transformar em ódio toda
sua capacidade de amar e a retornar este ódio contra sua própria
pessoa. Donde a tendência suicida tão freqüente no quadro
clínico da melancolia”. (Rocha, 2007, p. 269)
A palavra “depressão”, seguidamente pronunciada enquanto causa de sua
compulsão alcoólica, vem acompanhada de uma longa e exaustiva narrativa de tristeza e
miséria, de um ódio velado, porém expresso em ato sobre esse corpo e suas idéias. Uma
tristeza que se manifesta enquanto afeto ligado ao fracasso da própria existência.
158
A incorporação a que foi sujeito, o destaca da depressão e do luto sem abrir mão
de suas nuança; mais ainda, as acentua justamente para manter o segredo de sua cripta
inalcançável. “O luto impossível do objeto primitivo de satisfação produz a depressão
interminável em que o corpo se empresta ao que foi embora, pratica em si seus gestos,
encarna-o” (Berlinck, 2000, p. 79).
Retomando o percurso até aqui proposto:
Para nós, o que importará considerar inicialmente é a existência
de um amor anterior sem ambivalência; em seguida, o caráter
inconfesso desse amor; finalmente, é preciso que uma causa
real, portanto traumática, tenha vindo interrompê-lo. É sob o
efeito do abalo e na ausência de toda possibilidade de luto que
se instalará um sistema de contra-investimento utilizando os
motivos de ódio, de decepções e de maus-tratos sofridos por
parte do objeto. (Abrahan e Törok, 1995, p. 255)
Observando as propostas psiquiátricas à recomendação medicamentosa,
observamos que para além dos polivitamínicos e dieta balanceada, no intuito de
propiciar ao corpo uma recuperação da violência corporal por esses sujeitos perpetrados
pois os efeitos do álcool no organismo são desastrosos e muito agressivos: corpos
inchados, lesões, algumas internas, outras externas sem dúvida fruto de “acidentes”
conseqüentes do abuso , há também uma proposta terapêutica psiquiátrica que se
apóia na escuta médica do que se pronuncia enquanto “depressão”.
O alcoolista fará de seu discurso uma estereotipia funcional que funcionará para
os dois lados paciente e médico no processo terapêutico, um modo de comunicação
característico de sua defesa, pois não poderá denunciar sua vergonha já que tolhido pelo
ambiente estranho ofertado por um mundo que parece insistir em fazê-lo ter de
responder responsavelmente.
Seu idílio vergonhoso, mas puro de toda agressão cessou, não
por infidelidade, mas por constrangimento; é por isso que ele
pôs cuidadosamente a lembrança em conserva como seu bem
mais precioso e isso ao preço de lhe construir uma cripta com as
pedras do ódio e da agressão. Aliás, enquanto a cripta resiste,
159
não há melancolia. Ela se declara no momento em que as
paredes se abalam, muitas vezes em conseqüência do
desaparecimento de algum objeto acessório que lhe servia de
esteio. Então, diante da ameaça de desmoronamento da cripta, o
ego inteiro se torna cripta, dissimulando em seus próprios
vestígios o objeto do amor oculto. (ibid., p. 255)
Como um apelo vaidoso à condição sofrida pela vergonha da impotência de
poder se livrar da mesma , o melancólico alcoolista sustenta seus brasões com
distinção e honra: “sou um alcoólatra em recuperação” diz um paciente com voz
empolada, deixando resignados os terapeutas que o escutam pela suposta falta de senso
de realidade, prostração moral, ou fraqueza imaginária que expõe quando assim se
anuncia ao adentrar internação psiquiátrica pela mais uma vez dependência
alcoólica. Mas o que resigna os terapeutas é a forma de defesa maníaca que assim
se anuncia em prol de uma causa fundamental: uma reintegração narcísica.
Compreende-se agora: quanto mais o objeto é apresentado como
presa do sofrimento, da degradação (subentendido: por força de
languescer pelo que perdeu), mais o sujeito possui títulos de que
se orgulha: “Tudo isso ele sente por causa de minha perda!”
Quando estou melancólico, ponho em cena, para que se
reconheça sua amplidão, o luto do objeto por me ter perdido.
[...] Triunfo, desprezo, furor, desafio à vergonha, tantos títulos
em seu repertório. O progresso da análise certamente não se
favorece com isso, mas os dias do paciente permanecem salvos.
Infelizmente, com muita freqüência, o “luto” melancólico terá
sido a última cartada do sujeito para obter um restabelecimento
narcísico. (ibid., p. 256)
O alcoolista e sua tristeza, sua melancolia repleta de atuações maníacas, nos
conduz precipitadamente e modo descuidado e com os efeitos desse “passo errado”
dado pelo analista claramente verificáveis na transferência a escuta clínica de um
suicídio lento como resposta ao sacrifício ao Pai que não o reconhece como filho
legítimo em sua potência; ao suicídio covarde em resposta ao sacrifício ao objeto que
insiste em não se retirar de cena enterrado e esquecido pelo luto; enfim, à clínica da
desesperança que, se assim vivenciada pelo analista, melhor fará se retirando,
160
permitindo que as associações matriciais cuidem de seu fraterno como irmão de
infortúnio.
Por outro lado, se o analista pode escutar o necessário modo de defesa
constituído pela ferida aberta e dolorosa constituída pelo alcoolista desde os primórdios
de suas relações, sua dinâmica e escopo maníaco-melancólico, poderá abrigar em sua
escuta a ambiência necessária se suficiente só o tempo dirá para o tratamento. Nas
palavras de Rocha (2007):
Habitualmente se diz que a psicanálise se preocupa apenas com
o passado do indivíduo, porque Freud mostrou que as vivências
dos primeiros anos são decisivas para selar o destino de nossas
doenças ou de nossa saúde psíquica. O que somos hoje começou
a ser construído por aquilo que fomos ontem e o que seremos
amanhã dependerá de nossa capacidade de sonhar, hoje. Pois
bem, como vimos, a esperança sustenta esta capacidade de
sonhar, alimenta as fantasias de desejo e cria nossos projetos de
amanhã. Assim sendo, não seria difícil mostrar que todo
trabalho clínico é sustentado e impulsionado pela esperança.
Por isso, são desastrosas as conseqüências terapêuticas, quando
se lida com a desesperança, sobretudo quando o que está em
questão não é apenas o sentimento de esperança, mas a
esperança como princípio, porque quando esta falta, instala-se o
que Winnicott chamou de “desesperança congênita”, aquela que
surge na ausência de um ambiente favorável quando da relação
com os objetos primários e, sem este ambiente favorável,
nenhuma estruturação de nossa vida psíquica é possível. (p. 269-
270)
Feita a aposta clínica, se a ética do alcoolista é “ter como lei para si não ser si
mesmo para o outro” [...] “que cada freudiano teste, então, este esquema estrutural e
teórico-clínico em relação à exigência da prática para a qual ele está destinado”.
(Perrier, 1992, p. 367)
161
Conclusão
O alcoolismo é um tema interdisciplinar, e como tal, articula uma série de
indagações nos diversos ramos de conhecimento que o abordam. O presente trabalho
busca, a partir de um caso clínico, dar sentido ao discurso do alcoolista, em especial ao
sujeito que se encontra internado em um hospital psiquiátrico em virtude de seu
sintoma.
O problema do alcoolismo não é o objeto etílico, que encontra na história da
humanidade seu lugar de destaque entre os objetos de significação desde a ordem mítica
mais arraigada e simbólica, até os momentos mais prosaicos de satisfação pelo encontro
entre seres.
Também não há um problema no bebedor, visto o empenho de pesquisadores em
demonstrar que o percentual de bebedores no mundo é gigantesco, que a indústria do
álcool nunca lucrou tanto financeiramente, e que sua posição privilegiada de licitude,
entre tantos outros psicoativos e tantos manifestos prós e contra liberações, faz do
bebedor e do álcool bons amigos e, em momentos especiais, até mesmo cúmplices de
obras maiores do acervo cultural e artístico do homem.
O problema do alcoolismo é a inserção desse discurso em uma ética corporal.
Dar um sentido a esse discurso significa buscar, para além do discurso
abstencionista e abdicatório à prática alcoólica, quais as matrizes dessa relação e como
podem se conjugar sintoma e doença resultando o que concebemos enquanto o pathos
proveniente de um “distúrbio da oralidade”.
Daí derivam as manifestações de cuidado e apoio ao tratamento dos alcoolistas;
ligas antialcoólicas, internações voluntárias e involuntárias em hospitais psiquiátricos
162
ou não, associações matriciais, analistas, terapeutas, enfim, uma gama de preocupados e
preocupações com esse incapacitado, prejudicado, doente pelo vício do álcool e que
impõe, desde sua demanda, um comprometimento do outro em seu discurso
embriagado. Se optamos por privilegiar a problemática do alcoolista no discurso, é
porque a partir da boca, de seus objetos orais e suas relações de oralidade, propomos
pensar a etiologia e o tratamento do alcoolismo. Dar voz, palavra e escuta a esse
distúrbio da oralidade.
Propor um tratamento ao alcoolista é tarefa difícil. As manifestações
transferenciais e contratransferenciais que habitam esse universo sintomático dão
mostras firmes de sua resistência, seja na impotência do alcoolista em se manter distante
de seu elixir, ou nos analistas de suportarem o lugar de “resto” a que são posicionados,
apesar da educação e aquiescência do bebedor em louvar seus préstimos ante a tarefa de
fazê-lo parar de beber. O hospital psiquiátrico se apresenta enquanto recurso de parada à
ingesta alcoólica, mas constitui ambiência específica.
Ambiência que relatamos enquanto continuum de ambientes antecessores, entre
eles, um de especial relevância: o botequim. Situar sua inclusão histórica e sua
ambiência ofertada e construída pelo alcoolista refere sua influência inevitável no
hospital em sua constituição ambiente: o “boteco sem bebida”.
Haverá uma força que impele esse “outro” a não ceder ante o álcool, quer esteja
presentificado no hospital, no corpo médico, técnico ou social?
Seu pedido (de modo ativo ou passivo) de auxílio na criação de mecanismos de
defesa que afastem o significante álcool do campo de atração desse encontro, reforçam
uma fantasia de poder (fixação contratransferencial) de intervenção na força das
imagens e constatações clínicas não só incidentes sobre as relações sociais e familiares
(em completo prejuízo frente o sintoma alcoólico), mas de modo inegável, projetada
163
nesse corpo, que depois de submerso nesse discurso parece não encontrar outro caminho
que não a deterioração psíquica e somática enquanto resto à vida: vivida ou a viver.
O apelo é grave, e ao mesmo tempo escorregadio e insidioso. O praticante da
psicanálise que não comporta necessariamente sinal de pouca prática força o que
espera enquanto correção desse discurso, apelo ao bom senso e saúde do corpo psíquico.
Em sua compulsão neurótica se descuida e cai ante a posição despótica desse poder
pedido, mas nunca aceito, já que vivido incorporado, mas nunca processado,
introjetado.
Tomar o lugar do Pai deve ser, antes de tudo, avaliar de que Pai afinal se trata
de destronar, e mais, ao pretender sentar nesse trono, o que oferecer.
Cair nesse pedido é retomar os ideais de saúde postados contra a ordenação
subjetiva desse sujeito que insiste em não se fazer reconhecer, não por má-fé ou
descaso, mas por constituição específica, ou seja, mais pela incorporação exclusiva de
um objeto que poderá, a partir de agora, situado indelével pelo discurso, auxiliar essa
boca a proferir uma verdade de si, uma apresentação de sujeito que se não pode
realmente se responsabilizar pelo ou com o outro, ainda pode se manifestar em sua ética
inconfundível: não ser si mesmo para o outro.
Os mecanismos constituintes das relações objetais, relações que comportam,
orientam e elevam o humano em sua enigmática condição de sujeito, têm sua origem na
“Coisa” hegeliana e seguem seu curso à posição de “objeto” para Lacan.
As formações representadas pelas funções coordenantes dessa tarefa: função do
Pai, função da Mãe e prova de Realidade, articulam-se para formatar os modos de
apreensão das coisas do mundo a partir do universo da linguagem e das palavras em sua
possibilidade de apreensão do sempre enigmático Real que nos cerca, e constitui as
164
bases, a estrutura que sustenta o que oferecerá de novo, de singular, de irredutível a essa
apreensão.
Essas formações seguem padrões míticos de funcionamento: a saída do Éden
materno e corporizante, o assassinato e devoramento introjetivo do Pai, a constituição
do totem, seus tabus e sua força oriunda desse mesmo ato, dirigem esse corpo à
formação dos Ideais, do horizonte possível ao gozo destrutivo superegóico, ao impulso
do isso, e à condição administrativa do Ego.
Todo esse percurso nos permite pensar, a partir da construção narrativa mito-
poiética do caso clínico apresentado, sua aventura sobre o viver. Mesmo quando essa
narrativa dificilmente permite que constatemos qualquer triunfo, ainda assim escutamos
um heroísmo existencial.
A partir de um Pai situado na posição fixa da frustração em seu ordenamento
objetal, não encontra aí a posição de castração necessária para fazê-lo herdeiro do falo.
Ou seja, franqueado desde aí um impossível ideal do eu fálico correspondente ao desejo
do Pai, sobra-lhe situar-se na condição nuclear (pois é de um núcleo que atesta a relação
objetal) de apelo ao gozo de uma mãe que pudesse livrá-lo de um fardo do qual
paradoxo absoluto , afinal, gostaria de poder carregar.
O alcoolista carrega em si uma tristeza espectral. Na fácies revela o apelo ao
Outro que o sustente e mantenha como no trânsito pela internação hospitalar. Sua
impotência o revela um falastrão; a arrogância que demonstra ao esquivar-se do apelo
clínico ao tratamento só encontra eco maior em sua queda envergonhada quando de seu
retorno pela recaída.
O primeiro gole nos conduz à força de uma relação objetal só alcançável pelo
esclarecimento da força e razões do tabu se organizar como o que deve ser evitado sob
risco, de que se assim não se conjugar, assombrar o sujeito com mortos impossíveis de
165
enterrar. O peso dessa abertura, desse acesso só se compara em horror, ao fardo de
carregar um corpo morto junto ao próprio.
Daí entendemos que o corpo morto deve ocupar um lugar simbólico no sujeito.
Através das incorporações chegar às introjeções e, por fim, aos lutos desses
mortos, conferindo ao crime primordial do assassinato do Pai seu traço específico de
Nome-do-Pai. Sacrifício do ato em prol do Nome próprio. O sintoma alcoólico encontra
seu amparo e ancoragem no discurso do alcoolismo em que o mesmo revela que seu
Deus não está morto, mas sim observando, contando e registrando o ato de seu filho.
Talvez por isso as estatísticas revelem sem poder explicar, por que tantos se
mantenham abstêmios. “Os olhos de Deus estão em todos os lugares”, já nos lembra o
bordão popular, e se essa manifestação tão prosaica, onde Freud nos revela que se
exprime o lugar do Pai idealizado e temido, organizador das massas e normas sociais,
agora o encontramos sustentando as organizações matriciais onde, em última instância,
é ao poder superior que se deve o temor e a manutenção da abstinência. Infelizmente, a
partir daí também se desdobra outro bordão clínico: “sou um alcoolista, e devo evitar o
primeiro gole”. O problema é que ao constatar ser um alcoolista não mais poderá pensar
em não ser... Um alcoolista.
Respeitamos essa posição, e ainda assim não a prescrevemos por acreditar que
essa condição na qual se encontra o alcoolista em sua subjetividade ainda possui a
possibilidade do pensar, elaborar e transcender esse sintoma. Furor curandis?
Demagogia analítica? Presunção de uma psicanálise apoiada em sua metapsicologia e
que não aceita as condições da clínica?
Esperança. O método clínico não poderia se propor enquanto tal se em suas
bases epistemológicas mais profundas não reconhecesse que a relação transferencial
sempre fará surgir a estrutura em suas dimensões mais cristalizadas e paradigmáticas
166
um cotejamento do novo em sua singularidade nos obrigando, se desejamos manter o
ofício terapêutico psicanalítico, a sustentar uma caminhada corajosa por infernos sem
Deus a nos guiar.
167
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