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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fátima Modesto de Oliveira
Patriarcalismo e jeitinho brasileiro:
Algumas manifestações na contemporaneidade
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fátima Modesto de Oliveira
Patriarcalismo e jeitinho brasileiro:
Algumas manifestações na contemporaneidade
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências Sociais sob a orientação da
Profª Doutora Dorothea V. Passetti.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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Dedico este trabalho a todos que almejam um
mundo melhor, especialmente a todos aqueles no
Brasil e no mundo que, possuem a coragem de
lutar pelos direitos humanos e por uma vida
menos excludente e mais tolerante as diferenças.
Agradecimentos ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
pela formação e constante aprendizado. Desejo expressar um agradecimento especial a
minha orientadora: Profª Drª Dorothea Voegeli Passetti por ter me auxiliado em relação
ao tema desenvolvido e pela contribuição, apoio e cooperação ao debater os problemas
do estudo em questão, aconselhando, sanando dúvidas e auxiliando na execução da tese.
Agradecimentos à banca de qualificação, que contou com a presença da Profª Drª
Márcia Merlo e da Profª Drª Mônica Carvalho cujos questionamentos enriqueceram o
trabalho. Meus sinceros agradecimentos aos membros da banca examinadora por sua
presença significativa. Gostaria de expressar profunda gratidão aos meus pais e aos
meus irmãos sempre presentes nos momentos mais necessários e continuamente
compreensivos em relação as minhas ausências nos momentos de elaboração deste
trabalho. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, CNPq pela bolsa concedida que possibilitou a realização deste trabalho.
Um agradecimento especial aos amigos: João Francisco Ferreira Nascimento, uma
grande pessoa que conheci nesses anos de mestrado, agradeço sua atuação nos períodos
de construção deste trabalho e, meus agradecimentos ao amigo da Escola de Sociologia
e Política: Fábio Costa Julião pela presença voluntariosa e essencial em vários
momentos. Agradeço também aos amigos e colegas da PUC-SP pelas discussões e
sugestões ao longo da elaboração da tese. Por fim agradeço a todos que de algum modo
contribuíram para a realização desta dissertação e que não foram nominados aqui.
“Aos amigos tudo, aos outros a lei...”
Benedito Valadares
RESUMO
Esta dissertação procura recuperar algumas características da família patriarcal
descritas por Gilberto Freyre e os diálogos que Sérgio Buarque de Holanda e Roberto
Da Matta desenvolvem com estas categorias. Busca-se apontar como certas formas de
sociabilidade percebidas por estes autores podem ser encontradas atualmente, como
expressões do imaginário social, através de abordagens do cinema dos primeiros anos
do século XXI.
Palavras-Chave: jeitinho brasileiro; patriarcalismo; imaginário social; práticas sociais;
ABSTRACT
This dissertation aims at recovering some characteristics of the patriarchal
family described by Gilberto Freyre and dialogues that Sérgio Buarque de Holanda and
Roberto Da Matta have developed with these categories. One tries to point out as certain
forms of sociability perceived by those authors which can be found today in terms of the
social imaginary, through approaches of the early years cinema of the twenty-first
century.
Keywords: Jeitinho brasileiro; patriarchal; social imaginary; social practices
SUMÁRIO
Apresentação
9
Capítulo I
Dirigir o olhar para a família patriarcal .........................................................
14
I.1 A temporalidade na visão de José de Souza Martins................................
23
I.2 O recurso à História ..................................................................................
27
I.3 O jeitinho ..................................................................................................
36
Capítulo II
A colonização brasileira nas visões de Sérgio Buarque de Holanda e
Gilberto Freyre ..............................................................................................
45
II. 1 Situando a perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto
Freyre............................................................................................................
45
II. 2 A forma de convívio do homem cordial e seus desdobramentos...........
59
II. 3 Gilberto Freyre na visão de Benzaquen .................................................
78
Capítulo III
Três filmes e algumas inquietações ..............................................................
93
Considerações finais ...................................................................................
120
Referências bibliográficas.......................................................................... 128
9
Apresentação
A relação entre a família patriarcal no Brasil e as condutas do apadrinhamento,
pessoalismo e o chamado “jeitinho brasileiro” presentes na contemporaneidade é o tema geral
deste trabalho. Trata-se de analisar manifestações de uma herança que desponta do imaginário
em situações bem específicas, manifestando-se em certos padrões de comportamentos.
Ao pensarmos na família patriarcal brasileira percebe-se que ela pode ser um ponto
inicial para dirigir o olhar para dilemas atuais como a rede de favores, ainda presente em
alguns momentos e o jeitinho brasileiro que pode aparecer em seu lado positivo, implicando
em uma criatividade e flexibilidade em situações específicas, mas que também pode aparecer
em seu lado negativo que se manifesta no burlar as normas e obter vantagens e na obtenção de
vantagens nas situações. O ponto de vista deste trabalho dirige o olhar para as descrições
feitas por Gilberto Freyre, como sendo um ponto inicial para a pesquisa, pois a adoção deste
ponto de partida coloca em evidência a convivência entre idéias modernas e arcaicas presentes
em um só momento.
No Capítulo I aborda-se tais questões acentuando o porque da escolha deste ponto de
partida de acordo com as contribuições de autores como Angela Mendes de Almeida (1987),
Roberto Da Matta (1983, 1985, 1987, 1991), Gilberto Velho (1987) e Florestan Fernandes
(1975). Angela Mendes de Almeida e Gilberto Velho defendem que os modelos como é o
caso do modelo descrito por Gilberto Freyre, não se propõem a retratar a realidade como ela
é, mas sim como é pensada e vivida, ou seja, trata-se analisar as idéias que por algum motivo
permanecem e se manifestam mesmo na contemporaneidade em determinadas situações.
Analisar a realidade como esta é pensada e vivida é a proposta da “nova história”, praticada
na França a partir da década de 1960. Segundo Peter Burke (1997) e Angela Mendes de
Almeida (2006), existe um paralelo entre a chamada “nova história” e o trabalho de Freyre a
partir da década de 30. Sendo importante ressaltar que o paralelo a que Burke se refere não
recebeu a devida atenção e vale a pena enfatizar aqui, já que tanto os adeptos da Nouvelle
Historie, quanto Freyre possuíam interesses na cultura material, isto é o estudo da
alimentação, habitação, vestuário e vida íntima e privada, sendo importante ressaltar aqui, que
Freyre se interessou por essas questões na década de 30.
Florestan Fernandes (1975), contribui esclarecendo sobre o papel do senhor de
engenho em seu específico contexto histórico e sobre como a burguesia adotou símbolos da
própria aristocracia agrária mantendo-se sob uma dominação patrimonialista, não assumindo
10
seu papel enquanto instrumento de modernidade, resultando em um ideário liberal meio
truncado mantendo a oligarquia com sua base de poder. Ainda no Capítulo I temos as
observações de José de Souza Martins (1999) alertando sobre um passado que se esconde por
trás das aparências de moderno e como isto pode diluir o poder da sociedade civil. Martins
também chama a atenção para distinção entre o público e o privado que não ganhou contornos
nítidos em diversos momentos analisados.
Roberto Da Matta (1983, 1985, 1987, 1991), percebe uma oscilação entre leis
universais e relações pessoais, assim como uma divisão entre indivíduo que é o sujeito das
leis universais e a pessoa que é o sujeito das relações sociais, tal argumentação auxilia-nos no
entendimento de situações que podem se manifestar em nossa atualidade em momentos
peculiares. Neste mesmo capítulo, aborda-se a questão do chamado jeitinho brasileiro, com
base em leituras das análises de Roberto Da Matta (1983, 1987,1991), Gilberto Freyre
(1961,2005), e também, um artigo de Tânia Casado e Siegrid Guillaumon Dechandt (2005),
que aborda a questão de expatriados provenientes de diversos países que chegam ao Brasil e
se deparam com valores muito particulares, que nem sempre são compatíveis com seus
próprios.
O interessante no jeitinho é que como ele é uma saída para situações “sem saída” ou
para situações que não se quer enfrentar, é possível ver nitidamente a sua relação com o
conceito de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Tânia Casado e Siegrid
Guillaumon Dechandt (2005) trabalham aspectos relativos ao universo do trabalho, e citam
exemplos em que existe o jeitinho brasileiro em sua forma de senso comum. Elas apontam
para a existência de uma maneira sui generis de lidar com problemas burocráticos por meio de
uma abordagem antropológica, analisando características comportamentais e simbólicas em
situações específicas, através da visão dos expatriados.
No capítulo II, existe a definição do conceito de família patriarcal estabelecido por
Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala e as descrições do autor sobre o despotismo do
senhor de engenho que se amplia em alguns momentos para a vida social e política. Ainda no
capítulo II, temos a questão política para Sérgio Buarque de Holanda que é algo construído e
que pressupõe a negação da família e da ordem privada. Um sentido do político ativamente
construído está presente nas idéias do autor, rompendo com a definição política presente nas
idéias de Gilberto Freyre. Para Holanda a questão política passa pela construção de um
aparato estatal divorciado das relações e valores familiares, construindo deste modo, uma
discussão sobre a oposição entre Estado e família. Também no capítulo II, busca-se entender
11
a obra de Gilberto Freyre, que realiza um percurso memorial pela família patriarcal
brasileira, fornecendo apontamentos expressivos em relação à cultura material que perpassa a
família colonial, abrindo-nos um caminho para a compreensão sobre as idéias que permearam
tal universo.
Tais aspectos, descritos por Freyre fornecem elementos significativos para que
possamos entender as diferentes culturas e suas significações simbólicas presentes no
universo da família colonial.
Também no capítulo II, existe um diálogo com o conceito de homem cordial de Sérgio
Buarque de Holanda e as descrições feitas por Gilberto Freyre em relação à família patriarcal,
e também as descrições sobre o surgimento dos sobrados e a diferenciação entre universo da
casa e da rua. Para explicar o conceito de homem cordial é importante abordar toda a obra
“Raízes do Brasil”, pois o homem cordial é o resultado de outros conceitos desenvolvidos
pelo autor, como é o caso do personalismo e da ética de fidalguia. Por isso, o capítulo II é em
sua maior parte, um debate teórico entre Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
A ênfase na harmonia social, crítica freqüentemente dirigida a obra de Gilberto Freyre
é bastante enfatizada na contribuição dos estudos realizados por Ricardo Benzaquen de
Araújo (1994) que esclarece a abordagem de Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala que
a primeira vista dá a impressão de ter sido escrito apenas para ressaltar uma heterogeneidade
que caracterizaria a colonização portuguesa, ao acentuar a contribuição de diversos e
antagônicos grupos sociais na montagem da sociedade brasileira.
No Capítulo III, há uma abordagem sobre quais seriam as condições possíveis de
aproximação entre a família patriarcal descrita por Gilberto Freyre e o cinema.
É possível observar que esta é uma oportunidade para o cientista social de participação
em uma investigação dos elementos sociais ao mesmo tempo, motivadores e constitutivos do
enredo ficcional. Propõe-se entender a produção cinematográfica como um convite para a
reflexão sobre o passado e suas aparições no presente em determinados momentos. Busca-se
retraçar o trajeto de produções cinematográficas, verificando as possibilidades históricas,
sociológicas e documentais de alguns temas apresentados.
O filme Saneamento básico (2007) de Jorge Furtado narra a história de um grupo de
moradores de uma cidade que precisa de uma fossa para impedir a poluição de um rio, e
descobrem que não há dinheiro previsto para o saneamento básico no orçamento municipal,
há apenas uma verba federal que só pode ser usada para fazer cinema, a partir desta narrativa
cinematográfica é possível observar em vários momentos a presença de atitudes que denotam
12
o jeitinho brasileiro. Neste caso, o conceito de homem cordial desenvolvido por Sérgio
Buarque de Holanda é visto na contemporaneidade através da existência do conflito entre o
mundo dos relacionamentos pessoais e o universo frio das leis universais, como destaca Da
Matta (1991).
Outro filme analisado é Ó Pai, ó (2007) que tem como diretora e roteirista Monique
Gardenberg. O filme tem como foco o cotidiano de um cortiço que se localiza em Salvador e
aborda entre outras coisas, a postura despótica da proprietária do cortiço, o machismo
presente em um dos personagens e a violência e o arbítrio que se manifestam em situações
contemporâneas, principalmente no que diz respeito à violência contra a criança pobre.
Sujeição, despotismo e banalização da violência são os elementos sociais sugeridos
pelo filme O cheiro do ralo de Heitor Dhalia. Todos os personagens se sujeitam ao
despotismo de Lourenço, o protagonista do filme. O sadismo do personagem se manifesta ao
longo do filme sugerindo várias questões que se manifestam em nossa atualidade, sendo uma
delas, o que Giorgio Agamben (2002) conceituou como vida nua, referindo-se a vida matável
do homo sacer.
Será justamente, a partir desta reflexão sobre o passado, que poderemos observar suas
atualizações em nossa contemporaneidade que acabam se manifestando no imaginário por
meio dos filmes mencionados e também será, nestes termos que será possível traçar um
paralelo entre o conceito de homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda e as condutas do
“jeitinho brasileiro”.
O que se entende por contemporaneidade é o momento em que foram produzidos os
três filmes analisados no que diz respeito as suas inquietações. Inquietações que podem ser
pensadas pelas ciências sociais como uma descrição de algo que se vê em uma sociedade, no
caso, a brasileira, no início do século XXI, o tempo em que vivemos agora. As observações
das inquietações promovidas pelo cinema atual demonstram suprir a exigência metodológica
do distanciamento frente ao objeto de pesquisa. Observar tais inquietações promovidas por
diretores brasileiros atuais sobre a sua própria sociedade acabou sendo a melhor forma
encontrada para um intercâmbio entre o histórico, sociológico, antropológico e as narrativas
ficcionais do cinema. A proposta é interdisciplinar.
Deste modo, Antropologia, História, Sociologia e cinema, cada uma a seu modo,
reconfiguram um determinado passado que permite ver as “formas do mesmo” presentes na
contemporaneidade em situações bem específicas.
13
A idéia aqui é utilizar o filme não apenas como recurso ilustrativo nem apenas como
objeto em si da investigação sociológica, mas sim utilizar o filme como um ponto de vista
inicial para a reflexão sociológica, capaz de propiciar, deste modo, um campo de experiência
critica voltado para o conhecimento social. Neste caso, busca-se dialogar com elementos
sociológicos sugeridos pelo filme. O filme reflete e pode-se dizer que representa uma situação
social concreta. Ele compõe um conjunto complexo de sugestões temáticas que podem ser
apropriadas para a reflexão sociológica.
14
CAPÍTULO I
Dirigir o olhar para a família patriarcal
Ao pensarmos na herança que recebemos da família patriarcal brasileira, dirigindo o
olhar para algumas condutas (como é o caso do apadrinhamento, da rede de favores e do
jeitinho brasileiro, e em alguns momentos específicos a conduta do levar vantagem nas
situações), este trabalho leva em consideração as descrições feitas por Gilberto Freyre, como
sendo um ponto inicial para a pesquisa. Neste caso, aborda-se a família patriarcal descrita por
Gilberto Freyre enquanto uma ética que envolve o conjunto das relações. São estudiosos
desta questão Angela Mendes de Almeida (1987), Roberto Da Matta (1983, 1985, 1987,
1991), e o antropólogo Gilberto Velho (1987). Para Angela Mendes de Almeida (1987),
existem dois tipos de bibliografias na área de história da família: uma delas é aquela que se
preocupa mais com a história da estrutura e da organização familiares, e, suas inquietações
estão concentradas no tamanho da família, sendo este reduzido ou não, enquanto que o outro
ponto de vista busca a história dos valores éticos, dos padrões morais dominantes e as
mentalidades. A autora aponta para a existência de uma vertente mais voltada a “realidade da
família” e a outra a “família enquanto idéia”, sendo que esta última não interpreta a
mentalidade descrita por Freyre enquanto uma realidade demonstrável a partir da organização
familiar, mas enquanto ética que envolve o conjunto das relações. Neste caso, Gilberto Velho
argumenta que a “família patriarcal de Gilberto Freyre, construída como modelo, não é
encontrada, contemporaneamente, andando na rua, não é localizada; contudo, existe uma
‘memória’ algo semelhante à família patriarcal” (VELHO, 1987: 83). Ele argumenta que os
modelos, como é o caso do modelo descrito por Gilberto Freyre, não se propõem a retratar a
realidade como ela é, mas sim como é pensada e vivida. Um aspecto relevante para este
assunto é esclarecido por Angela Mendes de Almeida (2006), que diz respeito à abordagem
histórica do tema família no Brasil. Mesmo levando em conta a análise desenvolvida por
Ricardo Araújo Benzaquen, que é uma tentativa de tornar claro o significado da expressão
“antagonismos em equilíbrio”, tomados como uma espécie de símbolo da argumentação de
Freyre em Casa-Grande e Senzala e também lembrando que tal expressão remete-nos para
uma situação na qual as divergências estabelecidas na casa-grande aproximam-se, mas não
chegam a se romper, representando, portanto, uma visão sincrética do todo, acredita-se aqui
15
que podemos levar em conta o modo pelo qual Angela Mendes de Almeida trabalha a
questão das mentalidades em Freyre.
Almeida enfrenta esta questão, inicialmente, percebendo, como também percebe Peter
Burke, como veremos adiante, que o modo de pensar e agir descrito por Freyre em relação ao
universo da casa-grande está bem próximo do conceito de mentalidade. Neste caso, não se
trata apenas dos comportamentos diferenciados do senhor de engenho e escravos. Em outras
palavras, entende-se a família patriarcal descrita por Freyre enquanto um tipo de poder
exercido. Neste sentido, a família patriarcal não está necessariamente ligada a uma família
extensa, mas a um tipo de domínio exercido relacionado ao escravismo, despotismo e, em
certo sentido, em alguns momentos as tradições culturais ibéricas. Freyre não pretende apenas
descrever um modelo de família. Ele descreve uma ordem social da qual o poder patriarcal e a
família são elementos centrais. O patriarcalismo inclui um modo de relacionamento social
hierárquico, tanto entre as etnias, quanto os grupos sociais e os gêneros, tudo isto nuançado
em alguns momentos, por condutas que envolvem favoritismo e intimidade.
Trata-se de uma arquitetura mental em que a dominação e a
submissão aparecem como ‘doce’ intimidade, a colorização de
algumas qualidades dos dominados pelos dominantes aparece e é
sentida como confraternização, tudo isso contribuindo
significativamente para que não apareça nem de longe uma
equivalência entre seres humanos diversos que, neste caso, poderiam
contrapor-se, mas se forje uma estrutura de componentes
hierarquicamente tipificados (ALMEIDA, 2006:5).
O que é importante esclarecer é que a abordagem histórica de Angela Mendes de
Almeida consegue incorporar os clássicos da interpretação da formação da sociedade
brasileira (Freyre, Holanda, Cândido) e a produção da École des Annales (Ariès, Badinter),
que são produções que trabalham a questão das mentalidades. A História das Mentalidades
coloca uma ênfase ao que as pessoas pensam, ou seja, uma ênfase nas idéias, analisando o
cotidiano. Ela se definiu na década de 1960, mas suas raízes remetem à primeira metade do
mesmo século com historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre. A “História Nova” é
conhecida por buscar uma nova abordagem histórica, analisando as pessoas comuns,
anônimas, as grandes massas populares de cada período histórico e os vários tipos de
indivíduos que nelas se inseriam.
Dentre as inovações da “História Nova” estão os estudos de temas até então
reservados à antropologia, como a alimentação, corpo, mito, morte, etc. Isto inclui pesquisas
16
que trabalham com documentos como fotos, diários, músicas. A história das mentalidades
é, portanto, uma tendência que surgiu a partir da “História Nova”, elucidando diferentes
visões de mundo. Exemplos de autores que se situam nesta vertente são Philippe Ariès que
refletiu sobre a história social da criança e da família e Elisabeth Badinter que analisou o
amor materno.
Burke enfatiza que é característica da Nouvelle Histoire francesa ter como foco novos
objetos de estudo, como por exemplo, a história da cultura material estudada por Fernand
Braudel na década de 60. Segundo Burke, os seguidores de Braudel continuaram suas
investigações sobre habitação, alimentação e vestuário e com o trabalho de Phillippe Ariès
inclui-se na história da família a história da vida privada, amor, sexualidade, corpo e gênero.
Burke enfatiza que todos esses tópicos foram estudados não apenas do ponto de vista
econômico e social, mas tamm do ponto de vista da cultura (no sentido amplo do termo),
neste caso a história da infância de Phillippe Ariès é um exemplo dessa nova abordagem do
passado. “Pode-se dizer que Ariès inventou a história da infância ao proclamar que a idéia de
infância não existia na idade média, mas foi inventada no início da França moderna”
(BURKE, 1997:2). Neste caso, o livro de Phillippe Ariès contribui com este tipo de
abordagem por utilizar a iconografia e pela preocupação com a cultura material (trajes e
brinquedos) enquanto expressões de mudanças nas atitudes dos adultos para com as crianças.
Todas essas questões estão sendo colocadas aqui para enfatizar que todos esses tópicos foram
discutidos anteriormente por Gilberto Freyre, especialmente em seus estudos sobre o Brasil
colonial.
Burke ressalta que a principal razão de Freyre para seu interesse na arquitetura foi
explicada por ele em alguns artigos de jornal da década de 1920 “há casas cujas fachadas
indicam todo um gênero de vida nos seus mais íntimos pormenores [...] os homens e os livros
muitas vezes mentem. A arquitetura quase sempre diz a verdade através de seus sinais de
dedos de pedra” (BURKE, 1997:2), escreve Burke citando Freyre. Neste caso, Burke chama a
atenção para o fato de que a importância da habitação em Casa-Grande e Senzala e em
Sobrados e Mucambos é indicada não só pelos títulos desses livros, assim como pelos seus
conteúdos. “Também em estudos posteriores, Freyre escreveu sobre as variações na
edificação como sendo expressões de variações na cultura: Ordem e Progresso, por exemplo,
inclui páginas sobre o chalé” (BURKE, 1997:2). Burke ainda enfatiza que os conteúdos das
casas não foram negligenciados na década de 60, lembrando que Braudel escreveu passagens
sobre a história social das cadeiras e mesas, mas que Freyre na década de 30 já havia refletido
17
sobre a história cultural da rede e da cadeira de balanço, símbolo do que o autor denominou
em Casa-Grande e Senzala como uma “voluptuosa ociosidade”.
Neste caso, é importante esclarecer que o que Burke está enfatizando é que tópicos
como esses, que haviam sido considerados superficiais ou triviais, foram vistos por Freyre
como uma chave para as estruturas subjacentes às diferentes culturas.
A história da alimentação é um tema recorrente nos trabalhos de Freyre, descrevendo
as tradições culinárias, especialmente os doces. Em Casa-Grande e Senzala, por exemplo, ele
faz uma comparação entre a alimentação do senhor de engenho e do escravo. Burke ainda
acrescenta sobre isto, que enquanto historiador social, Freyre examinou a alimentação a partir
de dois ângulos principais. O primeiro foi o da dieta, especialmente de suas insuficiências, o
segundo aspecto analisado por ele foi o da significação simbólica dos vários tipos de comidas
enquanto expressão de valores como hospitalidade, masculinidade e feminilidade, tais como
definidos pela cultura colonial.
Como se vê todos esses aspectos são levados em conta em uma análise que tem como
ponto de partida a história das mentalidades e para entendermos melhor como se deu a
convivência entre idéias dispares em um determinado momento histórico Almeida toca em
um outro ponto importante em nossa análise, que é o fato de não ter havido uma revolução
burguesa no Brasil, como ocorreu na Europa e América do Norte e, além disso, ela argumenta
que seria preciso imaginar ter se constituído no Brasil uma forte classe burguesa nas cidades,
que tivesse imposto seu poder na condução dos negócios do Estado à classe dos senhores
rurais. Ainda assim, teríamos que ver essa suposta poderosa classe burguesa, predominando
nas idéias como aconteceu na Europa.
Mas a história no Brasil, como de resto a história de todos os países
hoje eufemisticamente chamados de ‘em desenvolvimento’, ou seja,
que cresceram perifericamente ao capitalismo, não conheceu a
emergência dessa classe. Se não houve uma poderosa classe
burguesa que tivesse gestado, junto com os novos parâmetros de
pensamento, uma nova forma de encarar a família, no entanto essa
nova mentalidade chegou ao Brasil. Desembarcou pelos navios, tal
como chegaram o liberalismo, o positivismo, o higienismo, o
clientelismo e todos os ismos que caracterizaram, durante o século
XIX, aquela ‘civilização’ burguesa e moderna que se gestou sob a
égide do pensamento burguês. E ao desembarcar, não encontrou uma
tábula rasa. (ALMEIDA, 2006:7).
O que Angela Mendes de Almeida quer advertir é que quando essas idéias chegam ao
Brasil há um encontro entre as duas mentalidades, a moderna que chegou da Europa com
18
toda uma história diferenciada da história do Brasil e a mentalidade que vigorava no país
naquele período, predominando o catolicismo e o escravismo em meio a hábitos peculiares
de uma cultura diferente da européia.
Esse ‘desembarque’ deu lugar ao confronto e à acomodação entre o
‘moderno’ que chegava da Europa e a mentalidade típica do país. A
história do século XIX no Brasil é riquíssima em exemplos de como
se deu esse entrelaçamento, de como a classe dominante rural
assumiu aspectos dessa nova mentalidade mais como signo de
modernidade e marca de prestígio, como um ‘adorno’ mais formal
do que real, nunca levando às últimas conseqüências a radicalidade
burguesa (ALMEIDA, 2006:7).
Além disso, ela argumenta que isto permite perceber na contemporaneidade a
existência de idiossincrasias que ao se manifestarem mudam a roupagem. Ou seja, permite
perceber que modernidade e idéias não possuem o mesmo tempo cronológico que as
mudanças tecnológicas e materiais, ao contrário disso, as idéias possuem uma raiz na cultura
que por sua vez tem na memória a estrutura de classes que formou a nação, ou seja, os
senhores de engenho, os escravos e os homens livres pobres, todos submetidos
despoticamente ao senhor de engenho. Assim, a família difundia com seus valores a esfera
pública, norteando a política que era feita de lealdades entre o senhor de engenho, que em um
momento posterior tornou-se coronel, e seus capangas e protegidos. O que importa destacar
aqui é que esta família que esta sendo descrita por Almeida não tem nenhuma proximidade
com a família nuclear burguesa, opostamente a isso, refere-se à noção de família patriarcal
rural, onde se incluem os agregados e os escravos. Em oposição à racionalidade burguesa em
que os partidos guiam-se por princípios assentados em interesses materiais de classe, o que
existia era um sistema político forjado para assegurar a manutenção das hierarquias sociais,
garantir a continuidade da escravidão e do virtual monopólio da propriedade fundiária.
A política do clientelismo assegurou o predomínio social e político do chefe local
sobre seus parentes e amigos, e foi a base através da qual se construiu a centralização política
de um Estado “moderno” e familiar ao mesmo tempo, já que se manifestou em diversos
momentos a existência de disputas entre clãs de coronéis, com seus capangas e apadrinhados,
movidos por sentimentos de paixão, e não de razão, daí a “cordialidade”, sentimentos de ódio
ao “outro” e de afeto e favorecimento aos “nossos”. Almeida chama a atenção para uma série
de valores e idéias herdadas pela família patriarcal cuja origem é a unidade rural escravista,
que perpassam não apenas a nossa história, mas inúmeras características de nossa mentalidade
19
atual. Isto significa dizer que a família patriarcal se ramifica, em alguns momentos,
enquanto idéia nas esferas do social, e isto se dá, por exemplo, nas relações cotidianas em
que, em algumas situações, o favor e a prática do “presentinho” podem prevalecer, assim
como, em situações em que a conduta do brasileiro enquanto “cordial” que reivindica a
intimidade e soluciona os conflitos na base do jeitinho, também pode se manifestar.
A intenção da dissertação não é dizer que há uma totalidade nestas condutas, ou seja,
não se pretende afirmar que todo brasileiro, o tempo todo utiliza o jeitinho e vive, também, o
tempo todo embasado nas relações de favor. Ao contrário disto, pretende-se, apenas entender
como em alguns momentos tais condutas se manifestam e para onde podemos dirigir o olhar
para tentar saber como elas se nutriram, de onde vieram e de que forma se manifestam em
nossa atualidade.
Nesta perspectiva, Angela Mendes de Almeida e Roberto Da Matta, argumentam que
Gilberto Freyre conseguiu articular aquilo que seria o “arquétipo” de um modo de pensar
tipicamente brasileiro. Para esses autores, o modelo de família patriarcal descrito por Gilberto
Freyre é um importante instrumento, que deve ser levado em conta para a interpretação da
sociedade brasileira contemporânea, não somente no que diz respeito ao imaginário, mas,
sobretudo na constituição da ética social e política abrangente.
A mentalidade que se estruturou no patriarcalismo continuou a ser predominante,
mesmo em período posterior ao da casa-grande, por isto, a importância de dirigir o olhar para
a questão dos valores presentes no imaginário social. Angela Mendes de Almeida (1987),
observa que, mesmo com a modernização da sociedade, as mudanças acontecem em meio a
noções e valores já enraizados no imaginário, havendo, neste caso, uma convivência entre o
“moderno” e o “arcaico”. Deste modo, ela nos diz que há um momento situado no século
dezenove que muitas idéias chegam ao Brasil, como por exemplo, o liberalismo enquanto
fenômenos gerados em outra realidade social, pois como é sabido, tanto o liberalismo quanto
à revolução industrial surgem na Inglaterra. Assim, “a chegada do moderno através da
importação de idéias gera então um processo de assimilação dele pelo tradicional, até que o
moderno se transforme em algo de sentido bastante diferente da idéia original” (ALMEIDA,
1987:63). Isto acabou de certo modo afetando o modelo de família nuclear (marido, esposa e
filhos, sem a presença de agregados e escravos como na família patriarcal) que foi
estabelecido em um contexto de autoridade patriarcal, por isso, também a autora se refere a
uma convivência entre o “moderno” e o “arcaico”.
20
A reeuropeização descrita por Freyre em Sobrados e Mucambos, que foi a
tentativa de resgatar o padrão de comportamento Europeu, deixando de lado as tendências
orientais (africana, indígena e asiática) e o aburguesamento, era um movimento impulsionado
por idéias que haviam tido origem em uma realidade social diferente da nossa e, por isso,
esses movimentos não encontram uma maneira de adquirir uma forma concreta, em uma
sociedade que está no início de uma urbanização e a ainda marcada pelo regime escravo.
Dessa forma, existe uma convivência entre valores antagônicos como é o caso dos ideais
liberais dos séculos XVIII e XIX e o escravismo.
Aqui estas idéias confrontavam-se com uma realidade em que não havia uma
urbanização densa, e muito menos um setor social qualquer de peso que pudesse ser
denominado por burguesia, de acordo com os padrões das sociedades em que esta classe
surgiu, como bem explicou Florestan Fernandes (1975). O padrão de mentalidade da família
nuclear burguesa será reapropriado e adaptado pela mentalidade da família patriarcal. O
aburguesamento das famílias constituiu, inicialmente, mais um verniz superficial atingindo
parte dos hábitos das elites urbanas, mas sempre coexistindo com o substrato da nossa
formação engendrado antes do século XIX. Contudo, é importante esclarecer que Florestan
Fernandes (1975) explica que não se pode associar o senhor de engenho ao “burguês”, nem a
aristocracia agrária à burguesia. Ele argumenta que o senhor de engenho ocupava uma
posição marginal no processo de mercantilização da produção agrária e, por isto, ele não era e
nem poderia ser o antecessor do empresário moderno. Portanto, na visão de Florestan
Fernandes o “burguês” e a “burguesia” não surgiram com a implantação e expansão da grande
lavoura exportadora. Ele esclarece que, ao contrário disto, o senhor de engenho se singulariza
historicamente como um “agente econômico especializado, cujas funções construtivas diziam
respeito à organização de uma produção de tipo colonial, ou seja, uma produção
estruturalmente heteronômica, destinada a gerar riquezas para a apropriação colonial”
(FERNANDES, 1975:16), como veremos adiante nas observações de José de Souza Martins
ao argumentar sobre as relações entre o senhor de engenho e a coroa.
Florestan Fernandes, ainda explica que, uma das conseqüências dessa condição
consistia em que o próprio senhor de engenhos, apesar de seus privilégios sociais, entrava no
circuito da apropriação colonial, como parte dependente e sujeita a modalidades inflexíveis de
expropriação. Deste modo, o que o senhor de engenho realizava como excedente econômico,
não tinha uma relação com o “lucro” propriamente dito. Isto apenas constituía a parte que lhe
cabia no circuito global da apropriação colonial, sendo que isto expressava sua participação
21
através da expropriação de terras e do trabalho escravo. Florestan Fernandes nos diz que,
tendo em vista todo esse conjunto, nada justifica assimilar o senhor de engenho ao “burguês”,
sendo uma contradição pretender que a história da burguesia se manifeste com a colonização.
Poder-se-ia dizer, no máximo, que se trata de entidades que aqui
aparecem tardiamente, segundo um curso marcadamente distinto do
que foi seguido na evolução da Europa, mas dentro de tendências
que prefiguram funções e destinos sociais análogos tanto para o tipo
de personalidade quanto para o tipo de formação social
(FERNANDES, 1975:17).
O burguês, já surge no Brasil como uma entidade especializada, na figura do agente
artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna ou como negociante.
Todavia, essas duas florações do burguês permaneceram sufocadas, enquanto houve uma
ligação entre o escravismo, a grande lavoura exportadora e o estatuto colonial. Com a
independência houve uma ruptura com o estatuto colonial, e isto proporcionou certas
condições de expansão para a burguesia. Contudo, Florestan Fernandes, elucida que o que
havia, de fato, era uma “congérie social” e não uma classe propriamente dita, ou seja, havia
uma acumulação, um acervo de várias coisas juntas, mas que não tinham força suficiente para
se configurar em classe social. O que unia os vários setores dessa “congérie” não eram
interesses fundados em situações comuns de natureza estamental ou de classes. “[...] O
principal fator da estagnação econômica da Colônia não provinha dos empreendimentos
econômicos desenvolvidos, mas do contexto sócio-econômico e político que os absorvia,
sufocando-os e subordinando-os às dimensões de uma sociedade colonial” (FERNANDES,
1975:26).
Florestan Fernandes demonstra que “um vendeiro, por exemplo, podia galgar dura
mais rapidamente os degraus da fortuna, em seguida fazia por lograr respeitabilidade e
influência, através dos símbolos da própria aristocracia agrária, convertendo-se em
“comendador” e em pessoa de bem” (FERNANDES, 1975:28). Mas, apesar disto, esses tipos
de homens que encarnaram o “espírito burguês” da época, impulsionaram a revolução que
colocou em xeque os hábitos e instituições persistentes da sociedade colonial, voltando-se
contra “o que havia de arcaico e de colonial tanto na superfície quanto no âmago da ordem
social patrimonialista” (FERNANDES, 1975:29).
O autor argumenta que não era uma sociedade nacional nascida da independência,
mas uma sociedade nacional que, apesar da independência, manteve-se, por conta da
22
escravidão e da dominação patrimonialista, esclerosada pelos componentes do mundo
colonial que subsistiam, indefinidamente, com renovada vitalidade.
Para Florestan Fernandes, a situação brasileira do fim do Império e do começo da
República possui somente os germes do poder da dominação burguesa, não havendo um
colapso no poder oligárquico, mas “o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a
hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas de poder...” (FERNANDES,
1975:203).
Desta debilidade, existe uma burguesia que converge para o Estado e faz sua
unificação no plano político e, neste caso, as próprias “associações de classes” visavam
exercer “pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a
aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares” (FERNANDES,
1975:204).
A tese de Florestan Fernandes é a de que existe uma burguesia no Brasil, mas ela
realiza a transformação econômica no sentido burguês sem realizar a revolução burguesa, com
um ideário liberal meio truncado, ou seja, a nossa revolução burguesa teve uma “frouxidão”,
sem profundas mudanças, exprimindo-se na figura do “senhor-cidadão” - elite que não
abandonava princípios que vinham da época da escravidão - que até hoje aparece revestido de
outras formas. Ele chama a atenção para a existência de uma “modernização conservadora”,
explicando que “a oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, como e enquanto
aristocracia agrária; e encontrou condições ideais para enfrentar a transição modernizando-se,
onde isso fosse inevitável, e irradiando-se pelo desdobramento das oportunidades novas, onde
isso fosse possível” (FERNANDES, 1975:204).
Florestan chama a atenção para o fato de que a burguesia era oriunda de um mundo
provinciano, com essência rural, desta maneira, estando ela, na cidade ou no campo, sofria
forte influência e atração pela oligarquia, ou seja, a burguesia podia até se opor à oligarquia
em algumas questões, mas isto acontecia dentro de um horizonte cultural que era em essência
o mesmo, permanecendo em um universo de preocupações particularistas. Além disso, o
mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia. A aristocracia rural importou a
ideologia impessoal do liberalismo e tratou de acomoda-la aos seus privilégios, existindo
assim, uma sobrevivência oligárquica, este assunto não só é destacado por Florestan
Fernandes (1975), assim como por Sérgio Buarque de Holanda (1995), e Antonio Candido
(1995) ao realçar que um dos traços fundamentais da mentalidade e do comportamento
23
político no Brasil é a persistência das posições conservadoras, que formam uma barreira
quase instransponível.
I. 1 A temporalidade na visão de José de Souza Martins
José de Souza Martins enfrenta o intricado assunto da temporalidade apontando para a
existência de uma persistência do passado. Demonstrando que é necessário pensarmos sobre
um passado que “se esconde, e às vezes se esconde mal, por trás das aparências do moderno,
fazendo da sociedade brasileira uma sociedade em que essa peculiaridade pesa mais do que à
primeira vista se vê” (MARTINS, 1999:11). Sobre isto, ele observa que a sociedade brasileira
é uma sociedade de difícil comparação com as demais sociedades. O que é difícil de
comparar, na visão de Martins, são os modelos de vida social, pois, para ele a peculiaridade
da sociedade brasileira, assim como de outras sociedades, está em sua história. E acrescenta
que: “Menos, obviamente, por suas ocorrências características e factuais. E mais pelas
determinações que dela fazem mediação viva do presente” (Ibidem, 1999: 11).
O autor explica que a história contemporânea do Brasil tem sido “a história da espera
do progresso e como o progresso não veio, senão de um modo insuficientemente lento, essa
história se transformou na história da espera da revolução”. (Ibidem, 1999: 11).
Contudo, a revolução ou as revoluções, também não aconteceu e a pergunta lançada a
nós por Martins é: “[...] afinal, devia ser esperada ou devia ser feita?” (Ibidem, 1999: 11).
Martins nos responde esta questão explicando que a história da sociedade brasileira
tem sido uma história inacabada, uma história que não se conclui, uma história que não chega
ao fim de períodos, de transformações concluídas. Não é uma história que se faz. Ela é uma
história sempre por fazer.
Para Martins a cidadania no Brasil é fruto de conflitos que afetaram a sociedade na
origem; “além disso, muito mais profundos e significativos que os conflitos de classes”
(Ibidem, 1999: 12). Ele chama a atenção para a importância de se observar as tradições e os
dilemas históricos não resolvidos, lançando-nos mais algumas questões e uma resposta:
“Porque entre nós, o discurso sobre cidadania é mais forte do que a pseudocidadania
que temos? Porque o já lugar-comum dos clamores da sociedade civil é tão mais visível do
que a própria sociedade civil? Na verdade, estamos muito longe de uma sociedade de
cidadãos” (Ibidem, 1999:12).
24
Martins continua os argumentos sobre as questões lançadas acima, demonstrando
por que tem como ponto de partida em sua análise a problemática da propriedade agrária, que
para ele, é algo que atua como uma orientação social e política que freia as possibilidades de
transformação social e de democratização do país. Neste caso, a questão agrária acaba sendo o
empecilho para que o país se modernize e se democratize. E mais ainda, para ele, a questão
agrária, ou melhor, dizendo, a propriedade de terra é “o centro histórico de um sistema
político persistente” (Ibidem, 1999:13).
Neste caso, afirma que é um erro supor que a questão fundiária deva ser isolada do
conjunto dos processos sociais e históricos, do mesmo que também é um erro analisar tal
questão somente como um mero problema social, circunscrito a algumas regiões ou a alguns
grupos sociais. Tal questão tem uma importância maior para o autor: “Na verdade a questão
agrária engole a todos e a tudo, quem sabe e quem não sabe, quem vê e quem não vê, quem
quer e quem não quer” (Ibidem, 12 e 13).
Por isso, ele diz que a propriedade da terra é núcleo histórico de um sistema político
que continua com uma mesma forma, que associada ao capital moderno, deu a esse sistema
político uma força renovada, que bloqueia tanto a constituição de uma real sociedade civil,
quanto à cidadania de seus membros. Ele argumenta que a sociedade civil não é senão esboço
num sistema político em que, de muitos modos, a sociedade está dominada pelo Estado e foi
transformada em instrumento do Estado. O que é levado em conta pelo autor é perceber que o
Estado em questão é um Estado que tem como base, relações políticas extremamente
atrasadas, como as do clientelismo e da dominação tradicional de base patrimonial, do
oligarquismo. Deste modo, “no Brasil, o atraso é um instrumento de poder” (Ibidem, 1999:
13).
Chega-se assim a uma questão complexa e importante, que Martins enfrenta para abrir
o caminho para o entendimento de tal complexidade, que é o porque e como se reveste o uso
deste instrumento de poder. Ele aponta para um domínio da sociedade pelo Estado, fazendo
com que a sociedade atue segundo a sua lógica, esclarecendo que este movimento leva a uma
diluição do poder da sociedade civil.
Fortes pressões sociais dotadas de um potencial transformador foram dissolvidas no
Brasil, em alternativas que se opõem aos propósitos das lutas sociais. Isto significa dizer que
“o sistema político tem demonstrado uma capacidade de captura dessas pressões e propósitos,
assimilando e integrando o que é disruptivo e o que em outras sociedades foi fator essencial
de transformações sociais e políticas profundas” (Ibidem, 1999: 13).
25
Martins esclarece que, neste caso, os grupos sociais ao atuarem no limite desses
entraves, no marco de uma sociedade cujos movimentos sociais e cujas pretensões se
consomem primariamente na propagação de uma “máquina incivilista de poder”, (Ibidem,
1999: 13), acabam sendo, antes de tudo, de um modo involuntário, mas independentemente,
agentes da história lenta. Ele alerta que as mesmas ações envolvendo os mesmos
protagonistas (os camponeses, os operários, os jovens, os negros), em outras sociedades,
atuando pelos mesmos objetivos, conseguiram mudanças sociais e políticas notáveis, que
redefiniram o modo de ser de sociedades inteiras. No Brasil não ocorreu isto.
Quando se reconhece que a sociedade brasileira, como outras
sociedades de origem colonial, com problemas similares, é uma
sociedade de história lenta e se toma essa constatação como
perspectiva de interpretação da realidade social, os resultados são
diferentes dos que se consegue por outro meio. A perspectiva do que
possa chamar de uma sociologia da história lenta permite fazer
uma leitura dos fatos e acontecimentos orientada pela necessidade de
distinguir no contemporâneo a presença viva de estruturas
fundamentais do passado. De modo que os fatos de hoje acabam se
mostrando como fatos densamente constituídos pela persistência de
limitações e constrangimentos históricos que definem o alcance
restrito das condutas transformadoras. (Ibidem, 1999: 14).
Para Martins, uma sociologia da história lenta permite descobrir, e integrar na
interpretação, estruturas, instituições, concepções, e valores enraizados em relações sociais
que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, e só de certo modo, ganharam
vida própria. É uma mediação que freia o processo histórico e o torna lento. Não só porque
reduz o âmbito da tomada de consciência das verdadeiras dificuldades à transformação social,
mas também porque atenua ou reorienta o sentido das ações de propósito transformador.
Ele ressalta que o engano de sociólogos e cientistas políticos está em pressupor que
essas mediações são apenas obstáculos ao progresso, ao desenvolvimento e à modernização,
e também é um engano supor que o progresso domina inexoravelmente a história.
A questão, aliás, nem sempre é saber se domina ou não, a questão é saber quais são as
condições históricas que estabelecem o ritmo do progresso em diferentes sociedades.
É justamente esta peculiaridade histórica da sociedade brasileira que faz com que
certas ações e orientações políticas em favor de transformações sociais, e a própria
consciência do que vem a ser transformação social, abram um campo de possibilidades de
ação transformadora aos característicos representantes do que os clássicos definiram como
pensamento conservador.
26
Conforme Martins,
O pensamento conservador não é um pensamento imobilista, como
vulgarmente se supõe. Ao contrário, o pensamento conservador se
tornou ativo e transformador, na própria Europa, quando a sociedade
tradicional foi posta em confronto com os efeitos socialmente
desagregadores do progresso e da modernização. Não nos
esqueçamos de que o próprio pensamento de Marx tem suas raízes
na lógica da tradição conservadora e ele próprio é a mais importante
indicação da vitalidade radical dessa origem (MARTINS, 1999:15).
Numa situação limite, como a brasileira, e de outros países em situação histórica
idêntica, a própria intenção conservadora se radicaliza e se transforma em arma de pressões
por mudanças até profundas. É por esta via que se pode entender o papel singular da Igreja
Católica no País, no seu envolvimento e identificação com as potencialidades transformadoras
das lutas populares no campo e na cidade. Segundo Martins, as lutas que se travam neste
contexto não possuem um significado considerável, pois possuem como referência esse
mesmo sistema político que acaba suavizando o impacto e as conseqüências das pressões
sociais.
O uso de esquemas pré-fabricados e chavões gestados em outros
confrontos e outras sociedades não tem aqui senão o aspecto de
conduta imitativa, não criativa, própria do colonizado quando ainda
pensa com a cabeça do colonizador. A ação política neles baseada
não leva senão a uma prática política reduzida a frases vazias e
palavras de ordem inconseqüentes (MARTINS, 1999:15).
Martins chama a atenção para a convivência entre dois extremos – o revolucionário e o
conservador, gerando a posição que defende o sistema político e o da ruptura.
“O difícil tem sido, claramente, fazer com que na práxis política dos que se motivam
pelo afã de mudar e transformar se assuma que seu partido é o partido da ruptura e não o
partido do poder. Equivoco, aliás, que faz do revolucionário um conservador” (MARTINS,
1999:16).
Martins afirma que o aspecto mais importante nos episódios de denuncias de
corrupção que tiveram visibilidade, como aconteceu com o caso do presidente da República
Collor de Mello, está no fato de que os acontecimentos que culminaram com o afastamento do
presidente tenham sido definidos como corrupção e assim aceitos pela opinião pública.
Ele argumenta que não é para a corrupção em si, que devemos dirigir nosso olhar, mas
sim para esta indefinição entre o que é público e o que é privado.
27
É evidente que, nesse transito de riqueza por canais que passam
pelo exercício de funções públicas, fica difícil distinguir o que é
dinheiro público e o que é dinheiro particular. No comportamento
político do povo, mesmo dos eleitores, ao longo da história política
brasileira, essa distinção parece ter sido irrelevante. A política do
favor, base e fundamento do Estado brasileiro, não permite nem
comporta a distinção entre o público e o privado (MARTINS,
1999:20).
Por outro lado, qualquer tentativa de interpretar a dinâmica do processo político
brasileiro, e seus episódios singulares, passa pelo reconhecimento de que as mudanças só
ganham sentido nas crises e descontinuidades do clientelismo político de fundo oligárquico
que domina o país ainda hoje. Passa também pelo reconhecimento de que a tradição do mando
pessoal e da política do favor desde há muito se utiliza de uma máscara exterior que tem uma
aparência moderna e contratual. Segundo Martins o patrimonialismo utiliza uma roupagem
moderna que lhe permite se revestir de uma fachada burocrático-racional-legal, não havendo
um antagonismo entre esses dois domínios, ao contrário disso, a dominação patrimonial se
nutre da dominação racional-legal.
As oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da moderna
dominação política, submetendo a seu controle todo aparelho de Estado. Em conseqüência,
nenhum grupo ou partido político tem hoje condições de governar o Brasil senão através de
alianças com esses grupos tradicionais. E, portanto, sem amplas concessões às necessidades
do clientelismo político. “Nem mesmo os militares, secularmente envolvidos num
antagonismo histórico com as tradições oligárquicas, conseguiram nos vinte anos de sua
recente ditadura destruir as bases do poder local das oligarquias” (MARTINS, 1999:20).
Tiveram que governar com elas, até mesmo ampliando-lhes o poder. No fim, o poder
pessoal e oligárquico e a prática do clientelismo são ainda fortes suportes da legitimidade
política no Brasil.
I. 2 O recurso à história
Para Martins é importante explicar os acontecimentos recentes fazendo uso do recurso
à história e ao mesmo tempo, observando a relação entre o público e o privado na formação
do Estado brasileiro. Ele explica que isto é importante porque no Brasil a distinção entre o
público e o privado nunca chegou a se constituir, na consciência popular, como distinção de
direitos relativos à pessoa, ao cidadão. Ao contrário, foi distinção que permaneceu
circunscrita ao patrimônio público e ao patrimônio privado. Portanto, uma distinção relativa
28
ao direito de propriedade e não relativa aos direitos da pessoa. Mesmo aí, distinção que
nunca ganhou clareza e contornos nítidos. “Durante todo o período colonial, os direitos se
superpuseram, o público e o privado” (MARTINS, 1999:22).
A grande distinção era de outra natureza e se sobrepunha a todas as outras: o que era
patrimônio do rei e da coroa e o que era patrimônio dos municípios, isto é do povo.
E aí a própria concepção de pessoa, como sabemos, estava limitada aos brancos e
católicos, “puros de sangue e puros de fé [...], os impuros, isto é os mestiços, os escravos
indígenas, os escravos negros, mas também os mouros e judeus, estavam sujeitos a uma
gradação de exclusão que ia da condição de senhor de patrimônio à condição de patrimônio de
senhor” (MARTINS, 1999:22).
O rei, constantemente, utilizava o patrimônio dos súditos para lograr os fins da coroa,
isto é, do Estado, como salientou Florestan Fernandes, Martins tamm chama a atenção para
este fato. Não era coroa que subsidiava expedições de guerras e construções de pontes ou
aberturas de caminhos, isto era realizado por particulares. Eles também eram os responsáveis
pela administração das vilas e sua organização, não havendo uma distinção entre bens do
cidadão e do Estado.
Não havia, por isso, medida para que o rei reclamasse dos súditos
serviços custosos, inteiramente cobertos pelos recursos pessoais de
quem era convocado para faze-los. Não havia outra regra que não
fosse a vontade do rei (MARTINS, 1999:22).
No momento em que o rei precisasse de alguma coisa do ponto de vista econômico
para o auxílio em guerras, por exemplo, ele simplesmente requeria os serviços dos súditos.
Não havia nada que pudesse ser incluído na idéia do cálculo racional e predeterminado e nem
tampouco contratual.
O povo, com base no mesmo princípio, também desfrutava do patrimônio do rei, assim
considerado as terras devolutas, as árvores, os frutos e os animais que, por sua qualidade,
haviam sido previamente classificados como reais.
Para Martins a questão da terra é o centro e a base do poder da colonização até os dias
de hoje. No caso do período colonial, Martins explica que o rei matinha uma relação de
arrendamento em relação ao uso das terras e do que havia nelas (os animais, as árvores), que
pressupõe a preservação do direito do rei no sentido de recuperar a posse das terras se não
resultassem em pagamentos de tributos. Assim, tudo era “disponível para o uso mediante
pagamento de tributo” e “a concessão territorial era o beneficio da vassalagem, do ato de
29
servir. Não era um direito, mas uma retribuição. Portanto, as relações entre vassalo e o rei
ocorriam como troca de favor”. (MARTINS, 1999:23).
Neste caso, a lealdade política recebia como compensação retribuições materiais, mais
também honrarias, como títulos e privilégios, que, no fim, resultava em poder político e,
conseqüentemente, em poder econômico. O que Martins pretende ressaltar é o porque de
alguns acontecimentos serem percebidos somente como corrupção, não tendo a ênfase
necessária em sua relação com as definições de público e privado. Para explicar essa questão
ele dirige o olhar para a história da constituição de mecanismos de poder e da constituição de
instituições em que o público e o privado ficam indiscerníveis.
Penso que é necessário recorrer à história daquilo que permanece
[...] trata-se de entender público e privado não como práticas
definidoras de condutas subjetivas, mas como concepções
submetidas ao arbítrio de quem personifica o público e de quem
personifica o privado (MARTINS, 1999:24).
As vilas, os municípios eram constituídos pela casta dos “homens bons” homens “sem
mácula de oficio mecânico” (MARTINS, 1999:24), por não trabalhar com as próprias mãos.
Martins explica que, quando se cobrava o tributo chamado de donativo real, nos
séculos XVI e XVII, no modo como era feito o arrolamento do contribuinte, já estavam
indicados a natureza e o formato da estrutura de poder do Brasil colônia, mas também do
Brasil independente: o responsável pela tributação estabelecia como unidade fiscal o fogo,
isto é, a casa e a família extensa- o chefe de família, a mulher, os filhos, as noras e os genros
se fosse o caso, os agregados e os escravos.
“Como eram listados todos nominalmente, inclusive os escravos, homens e mulheres,
adultos e crianças, é provável que o fisco nessa classificação já indicasse uma concepção
patrimonial do súdito” (MARTINS, 1999:24, 25).
Neste caso, o arrolamento nominal tinha por objetivo controlar a constituição de novas
famílias e, portanto, novas unidades patrimoniais e fiscais sujeitas a tributo.
O fato de que essas mesmas unidades fiscais, através do cabeça-da-família fossem
convocadas pelas câmaras e, portanto, pelos próprios chefes de família, para realização dos
chamados serviços do bem comum, como abrir e conservar caminhos, construir e manter
pontes, é indicativo de que a unidade familiar, além de ser uma unidade fiscal era também
uma unidade política de primeira instância. O que mostra que a unidade política da colônia já
era, desde o princípio, uma unidade patrimonial.
30
Segundo Martins, o patriarcalismo político da época colonial não se expressava no
poder derivado de relações contratuais e de qualquer concepção de representação política.
“Derivava, antes, de uma concepção patriarcal de autoridade e de uma certa
sacralidade no exercício da função pública” (MARTINS, 1999: 25).
O que faz sentido no caráter estamental da sociedade da época e nas concepções de
exclusão social baseadas em pressupostos de fidalguia, isto é, de nobreza.
[...] um Estado não-igualitário e patrimonial, mutilado por uma
categoria povo bem distinta da do Estado moderno, porque povo
estamentalmente dividido entre grupos sociais com direitos
desiguais, além daqueles que não tinham nenhum direito, que eram
os escravos, de modo algum incluídos na categoria povo
(MARTINS, 1999: 27).
No próprio Império, parte do povo estava privado do direito de voto e de expressão
política: obviamente, não só não votavam os escravos, como não votavam os mendigos e
mulheres (que permaneceram excluídos do direito de voto ainda nas primeiras décadas da
República). Nem todos votavam em todas as eleições: a amplitude do voto era regulada pelo
patrimônio de cada um, pois só os mais ricos votavam em todas as eleições (municipais,
provinciais e nacionais).
Os não tão ricos votavam nas eleições municipais e provinciais, mas não votavam nas
nacionais, e os senhores de posses modestas votavam apenas nas eleições municipais. Essa
escala fazia do município, o lugar de mais completa participação política da minoria a quem
se reconheciam direitos políticos, pois era onde estava o mais completo colégio eleitoral, dos
eleitores mais ricos aos com reduzido patrimônio.
“De certo modo, era uma escala de delegação de direitos políticos e ação política
indireta: os excluídos do direito de voto estavam incluídos na tutela dos potentados rurais,
como clientes e protegidos, inclusive no que se refere às questões propriamente políticas”
(MARTINS, 1999: 28).
A concessão gradativa do direito de voto, até muito recentemente, quando se
reconheceu o direito de voto aos analfabetos, obedeceu, na verdade, a critérios de ampliação
do poder dessas oligarquias mediadoras entre os excluídos e o Estado. Ressalta-se, todavia
que, o clientelismo político tem tido um sentido no Brasil de uma simples “forma branda de
corrupção, meramente política, mediante o qual os políticos ricos comprovam os votos dos
eleitores pobres” (MARTINS, 1999:29). O que é importante assinalar é que Martins explica
que há uma suposição de que o sistema político teria se modernizado, por isto, a pouca
31
atenção dada a este assunto, pois, acredita-se que tais mecanismos arcaicos se atenuaram
com uma suposta modernização. O que importa, porém, é salientar que segundo Martins, é
um erro interpretar o clientelismo somente como um relacionamento entre o poder e o povo,
relacionamento este, já atenuado pela modernização do sistema. O que importa destacar é que
o clientelismo não desapareceu. O que existe é uma outra geração de políticos que possui uma
roupagem moderna, ou seja, houve uma mudança na forma, que se apresenta como moderna,
mas a prática social, ainda existe. Segundo Martins, porém, o clientelismo não está
relacionado à ligação existente entre políticos ricos e eleitores pobres, ele tem um alcance
mais amplo, e, mais do que isto, ele “se apóia na instituição da representação política como
uma espécie de gargalo na relação entre a sociedade e o Estado” (MARTINS, 1999:29).
Para Martins, todos os que de alguma maneira dependem do Estado, acabam tendo
uma relação de troca de favores com os políticos, por isto, é um erro supor que esta relação é
privilégio das classes mais desfavorecidas.
De fato, as indicações sugerem que o clientelismo político sempre
foi e é, antes de tudo, preferencialmente uma relação de troca de
favores políticos por benefícios econômicos, não importa em que
escala. Portanto, é essencialmente uma relação entre poderosos e
os ricos e não principalmente uma relação entre os ricos e os
pobres (MARTINS, 1999:29).
É precisamente por isso, inclusive, que Martins explica que esta relação de troca de
favores entre o Estado e a classe mais favorecida (os ricos) advém da época colonial,
momento em que os senhores de terras e de escravos já possuíam esta prática com a Coroa
portuguesa, situação em que esta última solicitava o patrimônio dos senhores de terras para
ser utilizado no uso de serviços públicos, os senhores de terras por sua vez, recebiam em troca
o poder local e honrarias. O interessante, porém, é que esta forma de pagamento (poder local e
honrarias) era convertida em riqueza e assim “[...] esses mecanismos não eram apenas os
complicados mecanismos de poder numa sociedade sem representação política. Eram também
os complicados e tortuosos mecanismos da acumulação da riqueza” (MARTINS, 1999:30).
Portanto, com a urbanização ao longo do século XIX, não houve ações que
transformassem ou, para usar uma expressão de Martins, que “revolucionassem” a relação
entre riqueza e poder, como foi o caso da burguesia em outros países com uma história
diferente da nossa.
Ao contrário, na sociedade brasileira, a modernização se dá no
marco da tradição, o progresso ocorre no marco da ordem.
32
Portanto, as transformações sociais e políticas são lentas, não se
baseiam em acentuadas e súbitas rupturas sociais, culturais,
econômicas e institucionais. O novo surge sempre como um
desdobramento do velho [...] (MARTINS, 1999:30).
Assim, não é de se estranhar ter sido o “príncipe herdeiro da Coroa portuguesa que
proclamou a independência do Brasil; foram os senhores de escravos que aboliram a
escravidão [...]” (MARTINS, 1999:30).
Nota-se, inclusive, que Martins já havia chamado a atenção para fato de estarmos
lidando com uma sociedade estruturalmente peculiar, cuja dinâmica é diferenciada dos
processos políticos e históricos dos modelos clássicos que constam em manuais, por isso,
Martins aprofunda a questão dizendo que ao observar toda esta dinâmica, pode-se encontrar a
explicação para “o fato de que são os setores modernos e de ponta, na economia e na
sociedade, que recriam ou, mesmo, criam, relações sociais arcaicas ou atrasadas, como a
peonagem, a escravidão por dívida, nos anos recentes” (MARTINS, 1999:30).
Entretanto, “as novas classes prontamente se ajustaram aos mecanismos do
clientelismo, tanto a burguesia quanto à classe operária. A história da moderna burguesia
brasileira é, desde o começo, uma história de transações com o Estado, de troca de favores”
(MARTINS, 1999:30, 31).
Para Martins tanto a classe operária quanto à burguesia no Brasil atuam através dos
mecanismos do clientelismo político. A questão que Martins levanta, portanto, é a de que foi
isto que apareceu como corrupção no caso Collor, por exemplo. E no que diz respeito ao
espanto que deve causar ao argumentar que a classe operária também atua através do
mecanismo de clientelismo, ele explica que embora, tenha havido minorias esclarecidas, que
agiram no sentido de defesa dos interesses da classe operária, imbuídas por concepções
anarquistas ou socialistas, a “verdade nua e crua é que a única grande expressão política e
ideológica da classe operária brasileira foi o populismo [...]” (MARTINS, 1999:30, 31).
Martins chama a atenção para a relação entre as oligarquias e os militares, ilustrando e ao
mesmo tempo, esclarecendo um equivoco, que é o de supor que as oligarquias e os militares
estão em antagonismo, questionando assim, as idéias de Victor Nunes Leal, quando este
sugere que o coronelismo se enfraquece com a ditadura, porque esta proíbe o voto, e sem o
voto, portanto, perde-se a fonte que nutre o sistema oligárquico.
A revolução de 30, nos seus primeiros meses, apenas iniciou uma guerra contra os
potentados locais, especialmente no Nordeste, abandonando-a em seguida. “Colocou militares
33
no lugar dos velhos chefes políticos regionais, alguns deles, investidos de grande poder
pessoal, miniditadores, como o general Juarez Távora, que chegou a ser conhecido como o
vice-rei do Nordeste” (MARTINS, 1999: 31). Por esta maneira as oligarquias sustentavam
suas relações de clientelismo, especialmente, sua dominação tradicional em relação ao povo.
“Mas, passaram a prestar obediência aos novos donos do poder, os militares e burocratas do
Estado centralizado. No fim, mesmo onde a revolução renovou lideranças políticas, recorreu
ao mesmo sistema de compromissos com facções locais em que o coronelismo sempre se
baseou” (MARTINS, 1999: 32).
Ele ressalta que Vargas tinha um acordo implícito com os coronéis sertanejos, e não é
de estranhar, portanto, que não houve uma interferência por parte do governo nas relações de
trabalho rural como houve em relação aos trabalhadores urbanos com as regulamentações.
Com isso, manteve nas zonas rurais uma força eleitoral conservadora que se
realimenta constantemente do clientelismo político e de relações institucionais corruptoras.
[...] O mandato é sempre um mandato em favor de quem esta no
poder, pois é daí que vêm as retribuições materiais e políticas que
sustentam o clientelismo, não importa a orientação ideológica de
quem está no poder. Tratava-se, portanto, de reorientar a força do
oligarquismo em favor de um Estado conservador (MARTINS,
1999: 33).
Como se vê, os mecanismos tradicionais do favor político sempre foram considerados
legítimos na sociedade brasileira. Não só o favor das classes mais favorecidas em relação às
desfavorecidas, o que em principio já era compreendido pela ética católica. Mas o favor como
obrigação moral entre as pessoas que não mantêm entre si vínculos contratuais ou, se os
mantêm, são eles subsumidos pelos deveres envolvidos em relacionamentos que se baseiam
antes de tudo na reciprocidade.
“Imensas contabilidades de obrigações morais decorrentes de favores recebidos
sempre pesaram muito no histórico das famílias brasileiras, ricas ou pobres [...] sendo que tais
débitos e créditos envolvem não só o favor recebido ou favor concedido, mas também a
ofensa recebida ou cometida” (MARTINS, 1999: 35).
Martins lembra do recente caso do homem que mandou matar o líder sindical Chico
Mendes em ação concebida inteiramente dentro da lógica da tradição oligárquica, com
envolvimento de representantes da oligarquia regional do Acre.
34
“Esses fatos envolviam e envolvem não só os ricos e poderosos, mas também a
população pobre que gravita em torno deles, dependentes do favor político e das práticas
clientelistas da dominação patrimonial (MARTINS, 1999: 37).
Ele argumenta que mesmo onde o patrimônio já não tem presença visível na política,
como ocorre nas grandes cidades, a população, sobretudo migrante de áreas tradicionais e
rurais, continua, de algum modo, se relacionando com a política e com os políticos em termos
de concepções tradicionais que não separavam o político do protetor e do provedor.
Martins se refere a uma prática que “associa patrimônio e poder [...] responsável pela
difusão e contínua renovação do que pode ser chamado de cultura da apropriação do público
pelo privado” (MARTINS, 1999: 38).
Muito do que aparece aos olhos da classe média letrada como arbítrio e roubo, não
aparece com a mesma conotação aos olhos da grande massa pobre, rural e urbana.
“Até porque essa massa, de um modo ou de outro, está inteiramente integrada na
política do favor: praticamente tudo passa pela proteção e pelo favorecimento dos desvalidos”
(Ibidem, 1999: 38).
Além disso, logo após o golpe de Estado de 1964, quando muitos
intelectuais de esquerda estavam sendo presos, cassados ou
perseguidos, viu-se um súbito revelar de relacionamentos pessoais
entre muitos deles e membros do grupo vencedor, de direita, a quem
recorriam para escapar da prisão, para libertar um filho, tentar
destruir uma ficha policial ou obter informações sobre algum deles
já encarcerado. Tudo perfeitamente integrado na lógica das
concepções oligárquicas relativas à troca de favores (Ibidem, 1999:
39).
O autor fala sobre sua própria experiência quando docente da Universidade de São
Paulo, no momento em que fora preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e
Social)- a polícia política e social – em 1966.
“De minha cela vi também quando um sujeito que eu conhecia, mas que não sabia ser
informante do DOPS, compareceu na mesma carceragem, exibindo o distintivo da polícia na
lapela do paletó, para, a pedido de um deputado que eu também conhecia, libertar o filho de
um amigo do político que lhe pedira esse favor” (Ibidem, 1999: 39, nota 14).
Deste modo, ele acentua que não é necessário realizar uma pesquisa sistemática de
dados para ter uma idéia, ainda que fragmentária, a respeito do que se poderia chamar de
história da corrupção no Brasil. A tradição de um sistema político baseado na confusa relação
35
do patrimônio público e do patrimônio privado tem sido a base a partir da qual essa relação
foi dando lugar a procedimentos que começam a ser classificados como corruptos.
A insidiosa presença desses componentes patrimoniais na vida
política brasileira confunde-se com os vários âmbitos de atividade
do homem comum [...] e ainda, “a política do ‘presentinho’ vai
desde a universidade que se rebela contra a corrupção, até a vida
paroquial e até os mais inesperados recantos da vida social (Ibidem,
1999: 43).
Tais palavras, ditas por Martins, remetem a Max Weber quando diz em Ciência e
Política -duas vocações que a política existe até mesmo na habilidade de se tratar às coisas
por parte de uma dona de casa, ou seja, da mesma forma que a política está em todas as
relações, também há o tipo de política que predomina em uma dada sociedade em suas
relações políticas e sociais, porque afinal, o viver social é um viver político no sentido
relacional.
Aparentemente, é insuportável para amplas parcelas da população
brasileira estabelecer relações sociais de qualquer natureza, políticas
ou não, com base unicamente nos pressupostos racionais do contrato
social e com base no pressuposto da igualdade e da reciprocidade
como princípios que regulam e sustentam as relações sociais. Sem a
mediação do ‘presentinho’, de alguma forma de retribuição extra-
econômica, a relação fica ininteligível e cria um sentimento de
ingratidão e culpa que torna a vida insuportável (Ibidem, 1999: 43-
44).
É necessário lembrar que a população brasileira relutou significativamente em se
manifestar a favor da cassação do mandato e dos direitos políticos do então presidente da
República, Collor de Mello, mesmo quando as investigações já estavam adiantadas e eram do
conhecimento público. Relutância provavelmente decorrente de que o conceito de corrupção
foi difundido e interpretado como sinônimo de “roubo, de apropriação indébita de coisa
pública” (Ibidem, 1999: 45).
Ele explica que os fatos revelados indicavam era o recebimento de doações materiais
vinculadas a prováveis retribuições e favorecimentos políticos aos doadores. Portanto, o
tradicional mecanismo de troca de favor. A relutância da população em ir as ruas para apoiar
as investigações parlamentares contra o presidente da República explica-se, “ porque ela não
podia ver a ilegalidade no que lhe era, aparentemente, legitimo. Legitimado, além do mais,
pela tradição da política de troca de favores” (Ibidem, 1999: 45).
36
“[...] favorecimento da própria familia do presidente aparecia aos olhos de muitas
pessoas como sagrado cumprimento do dever do parente poderoso em relação ao parente sem
poder” (Ibidem, 1999: 45).
Certamente foi decisivo para o desencadeamento do processo o fato de que a denúncia
tenha sido formulada pelo próprio irmão do presidente.
Portanto, a credibilidade da denúncia, para uma parte da população,
não decorria simplesmente de uma avaliação racional da conduta
precisa e cuidadosa da comissão de inquérito, mas se apoiava na
crença de que o vínculo de sangue entre acusador e acusado revestia
a denúncia de uma gravidade certamente superior ao que os fatos
indicavam, pois decorria da ruptura de um vínculo sagrado (Ibidem,
1999: 45-46).
I. 3 O jeitinho
Para Roberto Da Matta (1985), as noções de indivíduo e de pessoa marcam a vida
social brasileira, que é dividida entre dois espaços: casa e rua. Gilberto Freyre também
mencionou em suas descrições que por um longo tempo, o sobrado (sucessor da casa-grande)
e a rua foram inimigos. As diferenciações entre casa e rua foram mencionadas por Gilberto
Freyre em Sobrados e Mucambos, até mesmo na hierarquia entre os escravos, pois, havia uma
profunda diferenciação entre o escravo da casa e o escravo da rua.
Freyre observa que o escravo de casa ficava na casa por ser considerado pessoa da
família, enquanto que o escravo da rua era tratado com distância, longe de ser pessoa da casa,
pois eram indivíduos expostos aos contatos degradantes da rua.
O tema do “jeitinho brasileiro” associado à obsessão de levar vantagem assume
aspectos extraordinários se o considerarmos à luz de uma estrutura social com características
patriarcais em seu imaginário, e neste caso, a necessidade de enganar é induzida
estruturalmente, funcionando como reivindicação à máxima que argumenta “aos amigos tudo,
aos inimigos, a lei”.
O jeitinho é uma solução encontrada que contorna as normas e tira vantagem das
situações. Tal característica presente em nosso imaginário teve um destaque especial por meio
de um famoso comercial de cigarros da década de 1970, em que o jogador de futebol Gerson
aparecia dizendo que era preciso levar vantagem em tudo, dando início a popular “Lei de
Gerson”.
Da Matta (1991), concebe o “jeitinho” como uma forma de navegação social, onde o
indivíduo utiliza recursos e laços emocionais obtendo favores pessoais, mas sempre de um
37
modo cordial, nunca partindo para o conflito aberto. Neste ambiente, o mais comum é
simplesmente dizer: “... mas isso é só uma mera formalidade, passe por cima e quebra essa,
que eu pago a cervejinha...”.
Esta conduta relaciona-se com o espírito de aventura ou é ter a prioridade nisto ou
naquilo por ser relacionado a fulano de tal, é a plasticidade e flexibilidade que se manifestam
em nosso cotidiano, dando um jeitinho em tudo, criando também, a exceção e a exclusão. O
interessante é que o jeitinho pode ser questionado, mas também reconhecido, admitido e até
elogiado e exaltado.
Contudo, Da Matta chama a atenção para o que acontece com o brasileiro diante da
norma geral, já que em nossa sociabilidade “aprendemos que há sempre um modo de
satisfazer nossas vontades e desejos...” (DA MATTA, 1991:95).
Questiona-se, portanto, a atitude que se tem quando se está diante da lei universal,
aquela que vale para todos, e desta maneira, segundo Da Matta, existe uma oscilação entre
leis universais e relações pessoais. Assim, aparecem aquelas situações em que “cada um se
salva como pode utilizando para isso, o sistema de relações pessoais” (DA MATTA,
1991:95). Da Matta, argumenta que há um conflito entre leis (que valem para todos) e
relações que funciona para quem as tem, e conseqüentemente, existe uma divisão entre
indivíduo que é o sujeito das leis universais e a pessoa que é o sujeito das relações sociais.
Portanto, na visão de Da Matta, indivíduo e pessoa são os dois pólos do conflito.
Nesta análise, o sujeito fica dividido entre estas duas unidades sociais básicas, e no
meio destas duas unidades, existe a malandragem, o jeitinho e o “você sabe com quem esta
falando?”. Da Matta, chama a atenção para a reação do brasileiro quando, por exemplo, está
diante de uma placa de um “proibido estacionar” ou de um “proibido fumar”, e ainda, diante
de uma fila enorme de pessoas, e também em situações como a de um prazo que já se esgotou
e pode resultar em uma multa.
Todas essas são situações em que são inevitáveis as comparações com outras
sociedades, como a sociedade norte americana, a inglesa ou a francesa, países onde há uma
adequação entre prática social e universo constitucional; deste modo, nestas sociedades, existe
uma “aplicação segura da lei, que por ser uma norma universal, não pode pactuar com o
privilégio ou com a lei privada” (DA MATTA, 1991:98).
Ele chama a atenção para algo cotidiano no Brasil, que é o tratamento diferenciado que
se tem diante da lei (universal) um bacharel, por exemplo, e qualquer outro indivíduo, que não
possua nenhum título ou relação de apadrinhamento. Para Da Matta, os crimes no Brasil
38
admitem graus de execução, estando de acordo, com o princípio hierárquico que governa a
sociedade, e será essa possibilidade de gradação que permitirá a interferência das relações
pessoais, neste ponto, em cada caso, existe uma espécie de curvatura que impede a
aplicabilidade da lei universal.
Da Matta cita uma situação em que um funcionário, de um órgão público, diz que
algo não pode ser feito, e o cidadão deseja resolver seu caso, neste momento, a solução
encontrada para o dilema da relação impessoal é a navegação social.
Assim, é ressaltado por ele, que em outros países, ou “se pode fazer” ou “não se
pode”, ou seja, não há uma terceira via, entretanto, no caso do Brasil, entre o pode e o não
pode, encontra-se o jeitinho. Deste modo, reivindica -se um “jeitinho que possa conciliar
todos os interesses, criando uma relação aceitável entre o solicitante, o funcionário-autoridade
e a lei universal” (DA MATTA, 1991:100). Conseqüentemente, a invocação da relação
pessoal provoca a solução satisfatória. O que é interessante e destacado por Da Matta, é que
isto se dá, quando ambos descobrem um elo comum, sendo que “tal elo pode ser banal (torcer
pelo mesmo time) ou especial (um amigo em comum, ou uma instituição pela qual ambos
passaram ou, ainda, o fato de se ter nascido na mesma cidade...)” (DA MATTA, 1991:100).
De acordo com Da Matta, essa é uma forma típica do jeitinho.
O que também é interessante nesta relação é que uma das regras do jeitinho é não usar
um argumento autoritário, pois isto leva ao reforço da má vontade do funcionário, ou seja, a
cordialidade sempre estará atrelada ao jeitinho. Todavia, quando se utiliza o argumento
autoritário contra o funcionário, o jeitinho passa a ser um ato de força, transformando-se no
rito do “você sabe com quem esta falando?” Já demonstrado por Da Matta (1983).
Portanto, ao invocar o “você sabe com quem está falando?”, não há uma busca por
uma igualdade cordial, como no caso do jeitinho, neste caso, busca-se uma hierarquização.
Desta maneira, diante do “não pode” do funcionário, depara-se com um “não pode do
não pode” feito pela invocação do “você sabe com quem está falando?”, sou filho de fulano
de tal, ou filho de fulano que possui o cargo tal. De qualquer modo, por meio do jeitinho ou
do “você sabe com quem está falando?”, foi encontrada uma forma de solucionar o problema,
utilizando-se da atitude cordial do jeitinho ou do modo autoritário do “você sabe com quem
está falando?”. Portanto, jeitinho e “você sabe com quem está falando?”, são os dois pólos de
uma mesma situação, sendo o primeiro um modo cordial de resolver a situação e o outro é um
modo conflituoso de realizar a mesma coisa.
39
De acordo com Da Matta, o jeitinho se manifesta muito em forma de cantada, de
harmonização de interesses aparentemente opostos. Já o “você sabe com quem está falando?”,
tem sua afirmação em um outro estilo, “onde a autoridade, é reafirmada, mas com a indicação
de que o sistema é escalonado e não tem uma finalidade muito certa ou precisa” e, neste caso,
“há sempre outra autoridade, ainda mais alta, a quem se poderá recorrer” e desse modo, “as
cartas são lançadas” (DA MATTA, 1991:101).
A malandragem é uma outra forma de navegação social, apontada por Da Matta, que
segue o mesmo percurso. Ao lado do malandro, Da Matta nos chama a atenção para a figura
do despachante, “esse especialista em entrar em contato com as repartições oficiais para a
obtenção de documentos” (DA MATTA, 1991:102).
As situações percorridas pelo despachante são situações que normalmente, podem,
implicar em confusões que levam ao jeitinho ou ao “você sabe com quem está falando?”.
O despachante passa a ser uma figura importante diante da dificuldade de unir lei com
realidade social.
Neste caso o despachante atua como um padrinho, um intermediário entre lei e
indivíduo, só que, o despachante é um padrinho para baixo, tendo a função de “guiar seus
clientes pelos estreitos e perigosos meandros das repartições oficiais, fazendo com que sigam
o caminho certo” (DA MATTA, 1991:103). Da Matta, argumenta que para evitar rejeições e
desencontros com autoridades e também, movido pela aversão em se sentir pessoa comum, ou
quando não se tem uma relação com alguém que possa prontamente facultar o jeitinho, a
solução é contratar um despachante, que realizara tal tarefa com maestria.
No que diz respeito à aversão em se sentir pessoa comum, é importante lembrar aqui,
as observações de Sérgio Buarque de Holanda sobre o homem cordial e a cultura da
personalidade, relacionada à relevância atribuída ao valor da pessoa humana, existindo uma
necessidade de autonomia de cada um dos homens em relação aos seus semelhantes,
indicando a idéia de superação.
As leis são aplicadas contra quem não utiliza uma relação de apadrinhamento, e
como diz Da Matta, as leis são duras demais para serem seguidas pelos amigos e, por outro
lado, as relações sociais com os amigos são boas demais para serem conduzidas pela crueza
das leis. Deste modo, quando existe o apadrinhamento, realiza-se a passagem de indivíduo a
pessoa e nesta perspectiva, “as leis só devem servir para os outros, jamais para nós” (DA
MATTA, 1987:122).
40
Mariza Corrêa (1983), ao analisar alguns “crimes de paixão” em sua pesquisa
realizada em Campinas em 1974, utilizando como fonte arquivos e varas criminais do Palácio
da Justiça da cidade, nos diz que, “o mito de que todos são iguais perante a lei confronta-se
consigo mesmo ao permitir a entrada da realidade concreta, feita de desigualdades
(CORRÊA, 1983:27).
Da Matta, lembra que Max Weber, ao retratar o estado de espírito que deveria
predominar na dominação burocrática, um espírito de impessoalidade, aquele que afirma a
“lógica do sine ira et studio, ou seja, sem favor ou raiva” (Da Matta 1987: 123), no caso
brasileiro tal princípio lógico é impossível, pois ele contraria as lealdades e considerações aos
amigos e compadres.
Em outras palavras, como afirma Da Matta, Weber tremeria ao ver a impossibilidade
brasileira de se colocar sob o princípio do sine ira et studio, ou seja, eliminar da conduta os
elementos pessoais, sem ressentimento nem preconceito.
Para Da Matta, o nepotismo no Brasil não é apenas um abuso do poder, mas,
sobretudo um modo de proteger alguém das leis que não podem prever as linhas mestras de
nossas necessidades sociais. Desta maneira, o jeitinho ou o nepotismo revestido de “você sabe
com quem está falando?” associam práticas com realidades jurídicas e políticas.
Com isto, ao pensarmos na instituição família no Brasil, percebemos que, no
imaginário ela não representa, apenas uma instituição social capaz de ser individualizada, ela
representa, antes de tudo, um valor. Deste modo, “há uma escolha por parte da sociedade
brasileira, que valoriza e institucionaliza a família como uma instituição fundamental à
própria vida social” (DA Matta, 1987:125).
Nesta perspectiva, a família é um grupo social, bem como uma rede de relações.
Da Matta, questiona por que a família não se descolou da sociedade a ponto de ficar
confinada ao reino do amor individual, da atividade sexual e reprodutiva e dos ciclos de
solidariedade mínimos, como parece ter acontecido na Europa ocidental e Estados Unidos,
onde esse grupo se encontra definitivamente ligado ao espontâneo, ao psicológico e ao não-
cultural.
Para ele, a resposta pode ser encontrada nas relações circulares existentes entre o
mundo constitucional e burocrático (da rua) com suas leis impessoais e sua individualização e
o nosso lado famílistico, tutelar, “patriarcal” e “relacional” de viver; o nosso universo da casa
e os amigos, onde as leis que valem para todos não devem penetrar.
41
Ele afirma que houve uma “escolha” por parte da sociedade brasileira em
permanecer no meio dos universos da “casa” e da “rua”, e com isto, até hoje não
conseguimos ser aquilo que a família é em uma sociedade como a norte americana, por
exemplo, apenas mais um grupo dentre outro.
Opostamente a isto, a família para nós é:
“Tudo e vale por tudo, aqui ela “embebe” a própria sociedade com suas regras, a tal
ponto que todo político populista sabe que a melhor imagem de tranqüilidade para o país é o
grande paradigma da nação como uma família, onde o povo é a prole e o pais são os
governantes” (DA MATTA,1987:135).
Da Matta ainda lembra que entre nós a família é também, “banco, escola, agência de
serviço social e igreja, consultório médico e partido político máquina de controlar o tempo e
lugar onde temos cidadania perpétua, restaurante de luxo e local onde sabemos ser amados
incondicionalmente” (Da Matta 1987: 136).
Desta maneira, tudo aquilo que em outras sociedades foi separado e individualizado,
ainda mantemos entrelaçado em nossa família enquanto um valor.
Um outro modo de dirigir o olhar para o “jeitinho” se expressa no estudo de Casado e
Dechandt (2005), que levantam e analisam características comportamentais e simbólicas
próprias da cultura brasileira, através da visão de expatriados (executivos trabalhando em
diferentes países) que chegam ao Brasil, e se deparam com valores desconhecidos para eles.
As autoras conceituam “jeitinho” relacionando-o ao padrão comportamental do senso
comum, percebendo a existência de uma maneira sui generis de lidar com problemas,
burocráticos ou não, percebendo também, uma forma singular de contornar as situações, que
se manifesta em “deixar tudo para mais tarde, aguardar que fatores conjunturais mudem,
enfim uma série de atitudes que confundem o expatriado trazendo impressão de
desorganização, injustiça, ineficiência e descontrole” (CASADO e DECHANDT, 2005:04).
Elas observam, com base na percepção dos expatriados, a presença de quatro
características: a pessoalidade, a receptividade, a criatividade e a flexibilidade, todas
presentes no cotidiano do universo do trabalho. Ao observar como os expatriados percebem
as diferenças culturais, por meio desses constructos estabelecidos no estudo, as autoras
argumentam, que existe uma espécie de choque cultural nesta relação entre expatriados e
colegas de trabalho no Brasil.
O estudo realizou entrevistas em profundidade com expatriados de diferentes
organizações, níveis hierárquicos e países, e neste caso, Dechandt e Casado explicam que o
42
objetivo dessas entrevistas foi o de verificar se os traços culturais levantados, realmente
seriam percebidos pelos estrangeiros. O resultado foi à unanimidade dos entrevistados, em
afirmar que a pessoalidade é um dos traços mais evidentes nos primeiros contatos, e assim,
“como os acordos são estabelecidos em bases pessoais, é exigido do expatriado que tenha uma
percepção aguçada para lidar com indivíduos de personalidades diferentes” (CASADO e
DECHANDT, 2005:4).
As autoras ressaltam que algo fundamental para o brasileiro é que em qualquer tipo de
negociação ocorra uma compatibilidade de personalidades, uma empatia, sendo neste caso,
uma tarefa adicional necessária para a consolidação de confiança na relação.
As autoras argumentam que os expatriados percebem a dissolução de barreiras
hierárquicas nas relações de trabalho, devido a esta ênfase na pessoalidade, sendo importante
ressaltar que a pessoalidade é percebida atrelada à falta de assertividade e a presença do
contato físico.
No que diz respeito à falta de assertividade, elas afirmam que isto acaba causando um
certo desconforto para os estrangeiros, fazendo com que eles temam serem considerados rudes
e grosseiros por possuírem uma evidente objetividade nas relações.
Da mesma maneira, o contato físico que se manifesta em tapinhas nas costas, beijinhos
no rosto e abraços, acaba sendo uma outra situação desconfortável para o estrangeiro, nesta
mesma perspectiva, “o fato de o brasileiro contar assuntos da vida pessoal a estranhos na
tentativa de criar cumplicidade e estreitar relações, às vezes causa incômodo para os
estrangeiros, não habituados a estas formas de manifestação de pessoalidade” (CASADO e
DECHANDT, 2005:5).
Uma outra característica estreitamente ligada à pessoalidade é a receptividade e neste
caso, elas afirmam que quando o estrangeiro chega ao Brasil, há todo um empenho em
facilitar a sua ambientação, mas ao mesmo tempo, percebe-se que esta também é uma
oportunidade para coletar mais informações sobre o indivíduo, deste modo, conclui-se que a
receptividade acaba atuando como um facilitador da pessoalidade.
Já a criatividade manifesta-se na retórica, na busca de soluções não óbvias, nas
negociações e no contorno de situações burocráticas, consistindo em um reflexo do ambiente
cultural externo que se insere o brasileiro.
No que diz respeito à flexibilidade as autoras acrescentam, que ela acaba se
manifestando em situações cotidianas como, por exemplo, pequenos mal entendidos em
grupos organizacionais que são facilmente esquecidos, e, também, não se tem o hábito de
43
carregar eternamente desavenças, e neste caso, parece que não há um esforço em criar-se
uma memória para más atitudes.
Em relação à falta de pontualidade nos compromissos, percebeu-se que “existe uma
relação diferente com o tempo, que não está marcado pelo relógio”, desta maneira, “parece ter
mais importância o que vai acontecer, e não quando”, e “isto irrita profundamente os
expatriados...” (Ibidem, 2005:7)
As autoras concluem com base em seu estudo, que os expatriados percebem as
diferenças culturais, mesmo que em alguns momentos, não tenham conseguido descrever
exatamente, o que era diferente nas relações, com exceção da pessoalidade, que foi
identificado pela maior parte dos entrevistados, como uma das primeiras impressões.
Isto fica claro na fala dos entrevistados, como por exemplo, o da Colômbia ao dizer:
“não entendi porque me convidaram pra jantar no primeiro dia...” ou na fala do francês ao
dizer que “trata-se constantemente de assuntos que não se referem ao negócio” e ainda o
francês, acrescenta que “há muita comunicação informal no trabalho” (Ibidem, 2005:9).
Eles percebem também, a falta de barreiras de comunicação entre os níveis
hierárquicos e a ausência de formalidade, assim como a inserção de assuntos pessoais nas
rotinas de trabalho.Isto fica claro, na fala do entrevistado da Suécia, ao dizer que “algumas
questões envolvem a opinião informal de várias pessoas” (Ibidem, 2005:9).
Já a falta de assertividade causou confusão, segundo as autoras, pois, os entrevistados
acrescentaram que a comunicação permite muita ambigüidade, e as informações são pouco
objetivas, gerando uma angústia de acordo com o aumento do grau de importância e
complexidade do assunto.As autoras acrescentam que este aspecto foi mais percebido pelos
entrevistados europeus, mas, entretanto, isto também, transparece na fala do entrevistado de
Israel, ao dizer que muitas vezes obteve “respostas pouco claras, sobre dados pontuais”
(Ibidem, 2005:9).
Contudo, as autoras acrescentam que outros elementos não antecipados que surgiram a
partir das entrevistas, e que caracterizam o ambiente cultural brasileiro, são inicialmente a
presença da alegria no ambiente de trabalho, e, também, fora dele.
Segundo as autoras, os entrevistados ainda observaram, espontâneamente a presença
da cultura do corpo, e a falta de segurança nas cidades, e ainda, a ineficiência dos serviços
públicos, além de certo complexo de inferioridade quanto aos conceitos de nacionalidade e
pátria.
44
Todavia, elas explicam que as quatro características propostas no estudo,
mostraram-se úteis para a identificação de raízes culturais históricas, percebidas pelos
expatriados, e que a partir dessas características, pode-se acessar o “jeitinho brasileiro” como
um dos componentes de um sistema cultural definido, e relevante para a percepção da cultura
brasileira.
Deste modo, em um primeiro momento, elas estabeleceram a divisão do jeitinho
nesses quatro aspectos gerais, porém, foi observada a dificuldade de manter estes elementos
separadamente, uma vez que a flexibilidade se mistura com a criatividade, e a falta de
assertividade é elemento comum à receptividade e a pessoalidade.
45
CAPÍTULO II
A colonização brasileira nas visões de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto
Freyre
II. 1 Situando as perspectivas de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, foi publicado originalmente em
1936. Antonio Cândido ressalta, no prefácio de 1967, que este livro colaborou com indicações
importantes para o entendimento de algumas posições políticas daquele período, uma vez que
em tal momento predominava a descrença no liberalismo tradicional e a busca de soluções
novas seja à direita no integralismo, seja à esquerda no socialismo e comunismo. Para tal
entendimento, Sérgio Buarque de Holanda oferece uma análise do passado, que pode ser útil
para entender não só tal contexto específico, mas também algumas manifestações em nossa
contemporaneidade. Maria Odila Leite da Silva Dias (1998) acentua que o importante para
Sérgio Buarque de Holanda era analisar as especificidades da formação da sociedade
brasileira criticando as elites dirigentes do país por aceitarem modelos políticos europeus,
principalmente no que diz respeito às tentativas de embutir tais modelos nas leis, percebendo
que estas não podem atuar indiferentes aos costumes políticos da sociedade. A autora
argumenta que Sérgio Buarque de Holanda percebia que em uma sociedade escravocrata o
processo de formação das classes era muito diferente do modelo dos países europeus.
Tanto em Sérgio Buarque de Holanda, como em seus contemporâneos, havia uma
necessidade de encontrar na herança colonial a origem de nossos problemas. A proposta de
tais autores, como explica Antonio Cândido no prefácio de Raízes do Brasil, era a de observar
hábitos de origem colonial nos problemas do presente, revisitar a história do Brasil.
O que importa a este trabalho são suas considerações sobre as raízes que se expressam
nas formas de convívio, contribuindo para uma maior compreensão sobre o imaginário que se
manifesta em situações específicas e pode possuir alguma relação com a formação patriarcal.
Conforme Antonio Cândido, no prefácio de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de
Holanda aplica o critério tipológico de Max Weber: no entanto, sugere que ele não utiliza
somente uma metodologia weberiana, mas um tempero metodológico, na medida em que
enfoca:
46
Pares e não pluralidades de tipos, o que lhe permite, deixar de
lado modo descritivo, para tratá-los de maneira dinâmica observando
especialmente a sua interação no processo histórico. O que haveria
de esquemático na proposição de pares mutuamente exclusivos se
tempera, desta forma, por uma visão mais compreensiva, tomada em
parte a posições de tipo hegeliano [...] (CANDIDO, 1967:13).
Deste modo, trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e
caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são, na visão de Antonio Candido, os pares
que Sergio Buarque de Holanda destaca no modo de ser ou na estrutura social e política para
analisar o Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre têm em comum o fato de atribuírem aos
efeitos da herança patrimonial-patriarcal sobre o Brasil contemporâneo a razão das
configurações de nossa sociabilidade moderna. Gilberto Freyre conceitua família patriarcal
enquanto uma família que está sob o domínio de um patriarca que detém o poder sobre todos
que o cercam (filhos, esposas, agregados e escravos). Esta é uma imagem hegemônica quanto
a caracterização de família no período colonial, sendo importante levar em conta que para
Freyre esta família também é uma unidade política, econômica e social.
A diferença é que Sérgio Buarque não parte de uma mesma perspectiva que Freyre,
que prefere ressaltar a importância de uma mestiçagem étnica cultural em nossa formação.
Para Sergio Buarque de Holanda, a relevância está em nossa raiz ibérica. Mesmo em meio a
uma miscigenação, o que predomina é a plasticidade do português que se adapta a tudo.
Ambos os autores contribuem para pensarmos se certos padrões de comportamentos, típicos
da família patriarcal e do pater familias teriam permanecido ativos na dinâmica social do
Brasil contemporâneo, manifestando-se em momentos específicos.
Ao se estabelecer como autoridade da ordem social, o pater familias e família
patriarcal, houve uma disseminação de valores desta classe dominante para a sociedade mais
ampla que aparecem em situações em que estes valores vêem a tona de uma maneira
atualizada. Na análise de Sérgio Buarque de Holanda, é possível perceber a ênfase na questão
do domínio do privado sobre o público e, conseqüentemente, a invasão do Estado por códigos
sociais característicos do ambiente familiar para além da situação específica do período em
que foi escrito Raízes do Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda investiga o caráter anômico brasileiro, representado pelo
conceito de homem cordial, e como salientou Yi Liu (2006), é importante perceber que para
conhecer o homem cordial, é obrigatório saber que é na família patriarcal que ele nasce e se
47
nutre. Sérgio Buarque de Holanda (1995) explica que este era o tipo de família que
predominava nos domínios rurais: uma família organizada segundo as normas clássicas do
velho direito romano, que foi mantido na península ibérica através de inúmeras gerações e
acabou prevalecendo como base e centro de toda a organização. Freyre (2005) descreve a
casa-grande e seu complemento, a senzala, como representando todo um sistema econômico,
social e político:
De produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a
escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo);
de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao
pater familias, culto aos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o
patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”, a
touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de
assento, o lava-pés); da política (o compadrismo) (FREYRE,
2005:36).
Assim, “esse núcleo característico em tudo se comporta como seu modelo da
Antigüidade, em que a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente
vinculada a idéia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do
vasto corpo inteiramente subordinado ao patriarca...” (HOLANDA, 1995: 81). Este é o reino
do pater familias e neste ponto, vale lembrar que a palavra Pater, observando-a sob vários
pontos de vista, sempre representa poder.
Em Sobrados e Mucambos, Freyre afirma que até mesmo no período de transição em
que o patriarcalismo começa a urbanizar-se com a figura do sobrado, o patriarca continua
absoluto na administração da justiça de família mandando matar não só os negros, como os
meninos e as moças brancas, seus filhos. Freyre (1961) menciona a situação em que o senhor
de engenho, ao descobrir um caso de bigamia, ele próprio, parte ao meio o rapaz, dividindo-o
entre as duas esposas.
É importante esclarecer que em relação a este mando exacerbado, que é realmente uma
relação despótica, Benzaquen acertadamente acrescenta que Freyre não possuía uma visão
crítica em relação a este despotismo, pois ele o tempo todo ressalta em Casa-Grande e
Senzala, e também em Sobrados e mucambos, a existência de traços orientais presentes na
cultura, contudo, deixando escapar em sua análise uma forte tendência dessa posição, a noção
de despotismo oriental.
Esta noção, cujos principais formuladores foram provavelmente
Aristóteles e Montesquieu, vai indicar o Oriente como o lugar
natural para o desenvolvimento dessa forma absoluta, imoderada de
poder, fazendo com que ele se torne uma espécie de alternativa
48
patológica, de duplo invertido do ocidente, visto que este parece
permanentemente obcecado pela busca da liberdade
(BENZAQUEN, 1994:44).
Benzaquen argumenta que o despotismo esteve sempre associado à escravidão, e
nesta relação sempre existe uma ausência de qualquer direito dos súditos em relação ao
príncipe, ou melhor, do dominado em relação ao dominador. Neste caso, a omissão de Freyre
dá realmente a impressão de que ele imaginava existir no Brasil o que poderíamos chamar de
uma escravidão não-despótica, docemente embalada pela miscigenação e pela plasticidade
que normalmente identificavam o português em suas argumentações.
Benzaquen ressalta a dimensão opressiva da escravidão portuguesa no Brasil a partir
da definição de despotismo presente em Aristóteles:
“[...] despotismo não apenas pela extensão do poder nele embutido, maior ou menor,
absoluto ou relativo, mas também e principalmente em função da sua qualidade específica,
isto é, desta total primazia das conveniências do senhor em relação às dos escravos”
(BENZAQUEN, 1994: 47).
Além disso, como veremos mais adiante, o senhor de engenho não vacila em matar
seus próprios filhos e esposa. Esta disposição para a violência e o mando começa na meninice
do senhor de engenho. A literatura pode ilustrar essas relações, como é o caso de Machado de
Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, neste romance, que tem como narrador o
personagem que escreve suas memórias, o autor descreve as práticas ou relações de poder na
infância de Brás Cubas da seguinte forma:
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias;
punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de
freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o,
dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes
gemendo- mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – ai
nhonhô!- ao que eu retorquia: - Cala a boca, besta! (Machado de
Assis, 1977:26).
Nesse ambiente, mesmo o escravo alforriado, para se qualificar, tinha que ter a posse
de outro escravo e junto desta posse, o exercício da violência. Isto fica claro, quando
Machado de Assis descreve, o momento em que a personagem do escravo Prudêncio
conquista sua alforria e passa a bater furiosamente em seu escravo e, neste sentido, ele afirma
que este “era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas,
transmitindo-as a outro” (Machado de Assis, 1977:84). Mas, não era só isto, era também uma
forma do escravo livre parecer com o branco senhoril em tudo, nas roupas, nos gestos e
49
valores. Como veremos adiante, as manifestações de idéias senhoriais presentes em
algumas situações podem envolver outros segmentos sociais.
Contudo, é marcante a relação de superioridade estabelecida desde os primeiros
contatos do menino de engenho com o moleque. Ainda nesta obra ficcional, Machado de
Assis, descreve um pouco sobre o menino de engenho em seu status de menino diabo:
(...) um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma
colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício; deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara o
doce por pirraça; e eu tinha apenas seis anos (Ibidem, 1977:26).
Esta era uma das maneiras de se exercer o poder e a violência, mesmo quando criança,
sendo possível ver como o menino pode ser “o pai do homem” (Machado de Assis, 1977:26).
Em Quincas Borba, ele escreve a verdade que está ao lado de quem tem o cabo do chicote.
Demonstrando desta maneira, como a literatura pode contribuir com a descrição das
transformações por que passou a família e a sociedade brasileira neste contexto histórico.
Freyre acentua, que no cotidiano da família nas casas-grandes coloniais, logo que a
criança deixava o berço, já ganhava como brinquedo um escravo do seu sexo e mais ou menos
de sua idade, observando como a “ridícula ternura dos pais anima o insuportável despotismo
dos filhos” (FREYRE, 2005:419). Existe um predomínio de um ambiente violento e despótico
circunscrevendo tais vínculos transparecendo na fala de Brás Cubas:
(...) entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai,
passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir:
Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro! (Machado de Assis, 1977:26).
Freyre menciona que em toda casa existiam moleques destinados aos caprichos do
menino de engenho, e neste caso, eles eram nas brincadeiras, o cavalo, o leva-pancadas, mas
também eram os amigos, os companheiros, os criados, sendo ainda, “o melhor brinquedo dos
meninos de engenho, que era montar a cavalo em carneiros, mas na falta de carneiros,
moleques (...)” (FREYRE, 2005:419). Ao realçar e detalhar tal ambiente, em que o moleque
pode ser ao mesmo tempo o leva-pancadas e o amigo, não podemos deixar de nos perguntar
sobre o efetivo significado de uma sociedade descrita por Freyre assim dividida entre o
despotismo e a confraternização, entre a exploração e a violência atrelada à intimidade. Tal
50
universo é consolidado em torturas, estupros, mutilações e especialmente na cotidiana
redução da vontade do escravo à do senhor, além da existência de um certo sadismo na
postura do menino da casa-grande através da prática de uma truculência infantil como, por
exemplo, a de lascar-se o pião ou de comer o papagaio do outro, “papagaio alheio é destruído
por meio da lasca, isto é, lâmina de vidro ou caco de garrafa, oculto nas tiras de pano do rabo
[...]” (Ibidem, 2005: 452).
É possível observar nas descrições de Freyre as primeiras relações de poder praticadas
pelas crianças nas brincadeiras infantis, que ele chamou de “sadismo”. Tal movimento se dá
principalmente na relação acentuada de mando do menino de engenho sobre o moleque.
Assim, podemos ver o funcionamento do poder em tais relações, logo na infância.
O que é importante entender aqui é que a relação entre escravo e senhor é embasada
em uma forma de tratamento que era “permanentemente submetido àquele reificante
‘interesse do senhor’, traço de união entre o despotismo e a escravidão [...]” (BENZAQUEN,
1994:47).
Freyre sugere que na sociedade patriarcal o menino e o homem não são iguais, isto é,
existe uma distância social entre os dois, que pode acrescentar, até certa idade alguma coisa
idealizada, identificada com os próprios anjos do céu: “criado como anjo: andando nu em casa
como um meninozinho de Deus” (FREYRE, 1961:68).
Neste ponto vale lembrar que o conflito predominava na relação entre senhor e
escravo. Contudo, tal conflito também alcançava outras relações, como é o caso da relação
entre pais e filhos.
Apesar disto, a meninice no sistema patriarcal era curta, e já entre os 6 e 10 anos, o
garoto passava para o status de menino diabo mencionado por Gilberto Freyre, sendo
castigado por toda uma hierarquia de pessoas: “pelo pai, pela mãe, pelo avô, pelo padrinho,
pela madrinha, pelo tio-padre, pela tinha solteirona, pelo padre-mestre, pelo mestre-régio,
pelo professor de gramática” (Ibidem, 1961:68). Contudo, as sinhás-moças também não
ficavam de fora na prática da banalização da violência, como aquela citada por Freyre que
mandou arrancar os olhos de mucamas bonitas e traze-los a presença do marido, à hora da
sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco.
Esse gosto pelo mando violento está impregnado no restante da vida social da casa-
grande, informando as relações do senhor com a sua sinhá, desta com suas mucamas, dos pais
com os filhos, com as filhas e assim por diante.
51
“Cria-se, desta forma, uma atmosfera de verdadeiro e generalizado terror,
ancorado, sobretudo, na própria orientação despótica do sistema escravocrata em vigor”
(BENZAQUEN, 1994:50).
Freyre sugere diversas vezes que o poder do senhor de engenho era tão predominante
que chegava a ser maior que o poder da igreja - um poder que apadrinhava.
Ele comenta que “criminoso ou escravo fugido que se apadrinhasse com senhor de
engenho livrava-se na certa de iras da justiça ou da polícia. Mesmo que passasse preso diante
da casa-grande bastava gritar: –Valha-me, seu coronel fulano. E agarrar-se a porteira ou a um
dos moirões da cerca” (FREYRE, 2001: 260).
Uma das observações bem acentuadas de Freyre é a de que a casa-grande venceu no
Brasil a igreja, nos impulsos que esta manifestou a princípio para ser a dona da terra. Deste
modo, “vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou dominando a colônia quase sozinho”,
assim o senhor de engenho era “o verdadeiro dono do Brasil” (Ibidem, 2005:38).
Aqui é importante esclarecer que, mais uma vez, Freyre parece não ter tido uma visão
critica sobre o papel do senhor de engenho, embora este exercesse plenamente seu despotismo
em relação a tudo e a todos. Jose de Souza Martins e Florestan Fernandes apontam qual era
exatamente este papel: o de um poder local, porém submetido a Coroa, embora exercendo um
poder absoluto e de iniciativa particular, como é o caso de construção de estradas e pontes.
Mas tudo isto era uma relação de troca com a Coroa, como visto em capítulo anterior.
A família colonial – instituição da formação social brasileira, reuniu uma variedade de
funções sociais e econômicas, inclusive a do “mando político: oligarquismo ou nepotismo
(...)” (Ibidem, 2005:85); mas, no que diz respeito ao apadrinhamento, Freyre observa que
inúmeros escravos do sistema patriarcal brasileiro gozaram da situação de afilhados de
senhores de casas-grandes e de sobrados, e por este status especial foram beneficiados e
particularmente protegidos.
O autor acaba sugerindo a existência de uma dominação de senhores sobre escravos
que carrega em seu interior uma base familiar e pessoal, abrindo possibilidade para a
coexistência entre doçura e dureza, ou seja, havia uma organização da vida social voltada para
o favoritismo, mesmo em meio à dureza da dominação.
Todavia, a conduta do apadrinhamento representa não só a afirmação do poder
patriarcal, mas representa também uma ostentação de força econômica, pois ter um grande
número de apadrinhados passa a ser um distintivo de status social. Nesta perspectiva, foi na
figura do padrinho ou da madrinha que se expandiu o patriarcalismo em afirmações de poder.
52
Vale ressaltar que Freyre interpreta a mestiçagem enquanto algo que gera uma visão
essencialmente harmoniosa entre senhores e escravos, chegando a existir até uma
incorporação do escravo ao ambiente familiar do senhor de engenho. O ponto de vista desta
dissertação é outro: mesmo analisando criticamente o que há por trás da visão de Freyre sobre
este aspecto, acredita-se que não podemos colocar as duas coisas em um mesmo patamar.
A própria interpretação de Freyre, que realça a heterogeneidade constitutiva da casa-
grande, fornece explicações sobre os motivos que permitem a manutenção, apesar dessa
heterogeneidade, daquela enorme proximidade e confraternização. Esta proximidade não pode
ser debitada à ausência de despotismo. Por que seria, então, que antagonismos em equilíbrio
presentes na obra de Freyre nunca chegam a se romper?
A análise desenvolvida por Benzaquen traduz o significado da expressão
“antagonismos em equilíbrio”, um dos pontos argumentativos de Freyre em Casa-grande e
Senzala. Tal expressão envia-nos para uma situação na qual as diferenças estabelecidas no
universo da casa-grande aproximam-se, mas não se dissolvem, denotando, portanto, uma
visão sincrética deste universo por parte de Freyre. Por outro lado, suas observações sobre os
modos de vida no colonialismo também nos levam a entender que a doçura nas relações
também pode significar uma estruturação da vida social embasada no favor, como já foi
explicado no capítulo I, iniciando-se pela relação entre o próprio senhor e a Coroa.
Portanto, até que ponto já não houve, desde o início um desacreditar na força que
poderia romper com todos os antagonismos, justamente porque já houve todo um modo de
vida que se habituou a valorizar o relacionamento com alguém acima da hierarquia?
Embasando-se nas observações de Rugendas, Freyre (1961) discute se os escravos
tinham um melhor tratamento em pequenas ou grandes fazendas, afirmando que, em alguns
momentos, nas pequenas propriedades, o escravo recebia um melhor tratamento, na medida
em que todos (senhores e escravos) possuíam, um mesmo tipo de alimentação, os mesmos
divertimentos, diminuindo assim, as diferenças entre senhores e escravos.
Mas, Freyre acrescenta que isto pode ser discutível, porque o senhor de engenho com
menor poder aquisitivo, quando ambicioso ou ávido por ascensão social, procurava explorar o
máximo dos poucos escravos a seu serviço. Por isso, aconteciam:
Fugas de escravos de senhores pobres que vinham apadrinhar-se
com senhores ricos conhecidos pela generosidade ou liberalidade no
tratamento dos escravos das senzalas de casas-grandes ou sobrados
[...] O pequeno escravo está quase assegurando da aquisição da
liberdade pelo padrinho..., diz, ainda, Rugendas, referindo-se ao
mulequinho, quando afilhado de senhor rico. Senhor que, em geral,
53
considerava-se obrigado a ser quase um pai do afilhado, numa
afirmação de poder patriarcal que era também uma ostentação de
força econômica (Ibidem, 1961:287).
Ser escravo implicava em estar sujeito a tudo, além de usurpado e violado em sua
liberdade, inclui-se uma variedade de tratos com o escravo, que poderia ser bem alimentado
ou não, bem vestido ou não. Por isto Freyre faz esta referência ao senhor rico que, talvez, em
alguns momentos, daria um melhor tratamento ao escravo vestindo-o com roupas caras e
alimentando-o bem. Contudo, se isto acontecia, era mais para exibir seu próprio poder por
meio do número de escravos e pelo trato dado a eles.
Diferenças que poderiam aparecer desde a alimentação até nas roupas ou cabelos, o
uso de jóias ou não, ser um “escravo de ganho” (negro que trabalhava na rua vendendo todo
tipo de mercadorias e às vezes até se prostituindo revertendo todos os ganhos para o seu
senhor), ou não, escravo de rua e de casa, por exemplo, “as mucamas bem vestidas e cheias de
jóias, estas representavam um prolongamento das suas iaiás brancas quando se exibiam em
festas de igreja ou de rua” (FREYRE, 1961:101).
Apesar de ficar claro, ao lermos Casa-Grande e Senzala, que Freyre parecia não ver
os conflitos e a exploração e tampouco a discriminação que envolvia a escravidão, o autor
não foi tão ingênuo assim no que diz respeito à exibição de poder do senhor de engenho.
Também Benzaquen que aborda essa questão da visão paradisíaca apresentada em Casa-
Grande e Senzala em relação à miscigenação acrescenta que: “apesar de todas as evidências
apresentadas [...], ainda tenho, contudo, alguma dificuldade de concordar que a visão que
Gilberto possuía da nossa sociedade colonial envolvesse, de fato, a afirmação de um paraíso
tropical” (BENZAQUEN, 1994:45).
Observando que da mesma forma que encontramos em Casa-grande e Senzala aquele
forte elogio à confraternização entre negros e brancos, também há várias referências que
evidenciam o grau de violência que faz parte do sistema escravocrata, referindo-se, também,
a uma violência silenciosa que foi a sifilização no Brasil, realizada segundo Freyre,
primordialmente pelo português.
Contudo, em relação ao apadrinhamento, Freyre assinala que embora muitos escravos
tivessem sido apadrinhados por senhores de casas-grandes e sobrados, tais escravos não
devem ser considerados típicos, pois o que era característico do escravo era ser mãos e pés
cativos totalmente submetidos à conveniência do senhor de engenho.
A hierarquização, uma das características do patriarcalismo de acordo com a definição
de Manuel Castells nas casas-grandes, era algo tão presente no cotidiano que se estendia até
54
aos papagaios e macacos, pois era um costume, um hábito os macacos tomarem a “benção
aos moleques do mesmo modo que estes aos negros velhos e os negros velhos aos senhores
brancos” (FREYRE, 2005:43).
Todos são desiguais, mas simultaneamente aparecem como iguais e, neste caso,
existem relações de simpatia e intimidade, na forma que Freyre chamou de “doçura nas
relações” entre senhores e escravos domésticos, e que acaba adquirindo outras roupagens em
tempos atuais nos momentos e situações específicas que se manifestam.
Assim, na família patriarcal segundo as descrições de Freyre, uma série de indivíduos
subia da senzala para a casa grande onde havia um serviço mais íntimo e delicado, - “amas de
criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos” (FREYRE, 2005:435) havendo,
nestas situações, uma troca de status, de escravo para o de pessoa da casa, na figura do
escravo doméstico que, em alguns casos, possuía familiaridade, passando a ser considerado
pessoa da casa.
Havia também a figura da mãe-preta, que tinha um lugar de honra no interior da
família patriarcal, “a quem se faziam todas as vontades: os meninos tomavam-lhe a bênção; os
escravos tratavam-nas de senhoras” (FREYRE, 2005:435).
Esta é a figura da boa ama negra que “criava o menino lhe dando de mamar, que lhe
embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado, o
primeiro “padre nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro “vôte!” ou “oxente”, que lhe dava
na boca o primeiro pirão com carne e molho de ferrugem [...] ela própria amolegando a
comida[...]” (FREYRE, 2005:439).
Enquanto família católica, a família patriarcal adotava a monogamia formal. No caso
do senhor de engenho, as relações sexuais ocorriam com tudo que lhe estivesse à mão - frutas,
árvores, animais, moleques, escravas, filhos ou filhas e a esposa -, representando o “ furor de
Don-Juan das senzalas” (FREYRE, 2005:266).
A este respeito Benzaquen afirma que “[...] estamos diante de uma situação em que a
pretensão da aristocracia de obter o exclusivo controle de todas as paixões, particularmente
das de natureza sexual, faz com que ela desenvolva um ethos assinalado pela mais acentuada
distância no que diz respeito às suas relações com outros grupos sociais” (BENZAQUEN,
1994:65).
Freyre argumenta que além do sadismo (aquele que se manifestava na crueldade com
animais e escravos), a meninice dos filhos do senhor de engenho se manifestava na
55
sexualidade, onde as primeiras vítimas eram os “moleques e animais domésticos, mais
tarde é que vinha o grande atoleiro da carne: a negra ou a mulata” (FREYRE, 2005:455).
Todas essas pessoas eram castigadas pelo senhor de engenho por terem participado,
mesmo forçados, da sexualidade de seus filhos e Freyre nos diz que com a mesma lógica
poderiam responsabilizar-se “os animais domésticos, a bananeira, a melancia; a fruta do
mandacaru, com seu visgo e a sua adstringência quase de carne” (FREYRE, 2005:455), pois
todos foram objetos em que se exercesse a sexualidade do menino brasileiro.
Contudo, as relações em certos momentos reguladas pela intimidade e simpatia do
senhor de engenho e escravo podem revelar o princípio daquilo que Da Matta denominou
como sociedade relacional pautada sobre o favoritismo aos protegidos, enquanto que para os
não apadrinhados sobrava a violência. Esta não é uma visão que percebe apenas o equilíbrio
nas relações, como é o caso da crítica dirigida por Benzaquen a Freyre, ao argumentar sobre
os antagonismos em equilíbrio presentes em Casa-Grande e Senzala.
O homem branco pater familias era dono de tudo e de todos (esposa, filhos e
escravos), distribuindo a uns privilégios, favores e doçura, e a outros, torturas e violência. A
intimidade entre o senhor e suas escravas e os moleques (alguns deles seus filhos) era tanta,
que à mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos
mulatinhos, “crias, malungos, moleques de estimação [...] e alguns saíam de carro com os
senhores, acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos” (FREYRE, 2005:435).
O personalismo do brasileiro vem de sua formação patriarcal, tanto na visão de Freyre
(1961 e 2005), quanto na análise de Holanda (1995), mas há também, ao mesmo tempo, uma
formação cristã em plena convivência com essa formação patriarcal - “um cristianismo
colorido pelo islamismo e por outras formas africanas de religiosidade inseparáveis da
situação familial da pessoa [...]” (FREYRE, 1961: LII).
Ainda existe a figura da mãe de família que tende a manifestar-se também no culto, na
mesma proporção sentimental e mística da mãe, identificado pelo brasileiro com imagens de
pessoas ou instituições protetoras: “Maria, mãe de Deus e senhora dos homens; a Igreja, a
madrinha; a mãe - figuras que freqüentemente intervem na vida política ou administrativa do
país, para protegerem, a seu modo, filhos, afilhados e genros” (FREYRE, 1961: LXXI).
Quase todo brasileiro de formação patriarcal se mostra impregnado de maternalismo
sendo que “entre as figuras paterna e materna se desenrolou o drama de muito menino de
formação patriarcal ou tutelar” (FREYRE, 1961: LXXI).
56
Há também, a figura da “mulher-matrix” em nossa formação. Segundo Freyre
(1961), ela foi o centro de nossa integração social e ele ainda argumenta que, sem essa figura
quase matriarcal, não se pode imaginar a casa-grande de engenho. Ela era o “vulto gordo da
matrona portuguesa do século XVI [...] as donas Brites, as donas Genebras, as donas
Franciscas, as donas Teresas, as donas Marias” (FREYRE, 1961: 32), foram as mulheres
casadas que acompanharam os maridos ao Brasil. Segundo as observações de Freyre, as iaiás
foram as estabilizadoras da civilização européia no Brasil, instalando-se gordas e pesadonas
com seus conhecimentos de culinária e higiene da casa, etc.
É importante ressaltar que houve uma diferença em maior ou menor predomínio de
padrões europeus de cultura em pontos colonizados por casados e pontos colonizados por
solteiros ou amasiados com caboclas locais. Contudo, através de toda a época patriarcal -
época de mulheres dentro de casa o dia inteiro, cozinhando, embalando-se na rede, gritando
com os escravos, brincando com periquitos, tomando o ponto dos doces, parindo e morrendo
no parto, ainda houve mulheres com energia social para administrar fazendas e dirigir a
política partidária da família, mulheres que exerceram o mando patriarcal, e foram “quase
matriarcas que tiveram seus capangas, mandaram dar suas surras, foram conservadoras ou
liberais no tempo do Império” (FREYRE, 1961: 95).
A força era concentrada nas mãos dos senhores rurais, sendo eles os donos de homens
e mulheres. Suas casas representavam esse poderio: “feias e fortes”, “paredes grossas”,
“alicerces profundos”, porém, o que até o próprio Freyre acrescenta, toda essa solidez
arrogante de forma e material, em muitos casos, foi inútil, porque “na terceira ou quarta
geração, casas enormes edificadas para atravessarem séculos começaram a esfarelar-se de
podres por abandono e falta de conservação” (FREYRE, 2005: 38).
Mas, com a chegada de Dom João VI ao Brasil, o patriciado rural que havia se
consolidado nas casas-grandes de engenho - as mulheres gordas, fazendo doces, os homens
vaidosos com seus títulos e privilégios de sargento-mor e capitão, com muitos filhos
espalhados entre a casa e a senzala - começou a perder o poder dos tempos coloniais.
É importante destacar que a análise da decadência do patriarcalismo em Sobrados e
Mucambos inicia-se com a observação do impacto e transformações causadas ela chegada de
Dom João VI e da corte portuguesa no país. Todavia é importante esclarecer que Benzaquen
ressalta em seu ensaio sobre a obra de Freyre que essa mudança de governo não é bem
compreendida por Freyre, somente como a culminância do processo de expansão da
autoridade portuguesa no Brasil.
57
Percebe-se aqui, por conseguinte, a existência de um verdadeiro
‘processo civilizador’ [...] processo no qual a soberania monárquica
e a moderação dos costumes unem esforços para refrear aquele
híbrido e anárquico, quase bárbaro poder exercido pelos senhores de
engenho e outros grandes proprietários durante o período colonial
(BENZAQUEN, 1994:108).
A presença no Rio de Janeiro de um príncipe “aburguesado, porcalhão, os gestos
moles, os dedos quase sempre melados de molho de galinha, mas trazendo consigo a coroa;
trazendo a rainha, a corte, fidalgos, para lhe beijarem a mão gordurosa...” (FREYRE, 1961:
3), modificou a fisionomia da sociedade colonial, mas a mentalidade não.
Conservou-se até o final do século XIX quase intactos alguns de seus privilégios,
principalmente o elemento decorativo de grandeza. O elemento de decoração social diz
respeito à capacidade que possuíam os colonizadores para prolongar a grandeza ou pelo
menos, prolongar a aparência de grandeza. Neste caso, o mercador de origem plebéia quando
bem sucedido nos negócios, se empolgava para vir a ser membro da nobreza rural ou imitar
seu modo de vida, assim, o casamento com filhas de homens da nobreza rural era a via que
levava à ascensão vários homens de origem plebéia, obtendo títulos de capitão, barão ou
visconde.
Freyre argumenta que as uniões poderiam ser entre bacharel pobre, mulato ou militar
plebeu com “moça rica, com branca fina de casa-grande, com iaiá de sobrado [...]” (FREYRE,
1961: 122), fazendo com que os filhos levassem os nomes ilustres das mães e não dos pais.
Portanto, com a mulher em posição de mando ou não, com a queda do poder do senhor
de engenho ou não, por trás de todo este cenário o que havia como pano de fundo era um
sistema em que o mestiço, por sua posição, tornava-se branco para todos os efeitos sociais e
políticos, e o afilhado na mesma proporção tornava-se filho, também para efeitos sociais.
Freyre comenta que os indivíduos biologicamente filhos de padres nada sofriam nas suas
oportunidades sociais sob a designação, apenas de etiqueta, de afilhados ou sobrinhos.
Também o “genro poderia superar o filho biológico nos privilégios sociais de descendente do
chefe da casa ou da família” (FREYRE, 1961:133), ou seja, o que predominava mesmo eram
as relações de poder, de etiqueta.
Era também um sistema em que o “padrinho ou a madrinha superava o pai ou a mãe
biológica, tornando-se mais uma vez o afilhado ou a afilhada, não só completo substituto de
filho ou filha para o casal estéril como substituto de esposo ausente ou esposo morto...”
(FREYRE, 1961: 133), como foi o caso de Joaquim Nabuco, criado por sua madrinha. Freyre
58
menciona, até, que houve uma tentativa de se mudar o nome de Nabuco para Carvalho, que
era o nome de família do marido falecido da madrinha de Nabuco. O nome de família ilustre
ou importante tomava o lugar do nome de família obscuro, ou seja, mesmo se o nome ilustre
fosse de mulher, tio, avô ou padrinho ele superava o nome do pai, somente por possuir poder
e prestigio. Segundo Freyre, a preferência pelo nome ilustre de família era para ter um nome
que protegesse melhor o indivíduo de seu futuro incerto. A busca era por proteção em relação
ao universo impessoal, uma espécie de seguro para o afilhado se encaminhar na vida.
Freyre menciona haver diversos casos em que acontece esse processo de
“dissimulação”, termo usado por ele próprio:
O indivíduo com nome de família pelo lado paterno – normalmente
o dominante- obscuro ou desprezível (às vezes por ser nome de
imigrante ou africano ou ostensivamente plebeu), refugiava-se no
nome de família materna ou no nome da família do padrinho, para
proteger-se, proteger o seu futuro e proteger os descendentes
(FREYRE, 1961: 134).
Freyre afirma que houve inúmeros casos na sociedade patriarcal, “caracterizada pelo
complexo de proteção” (FREYRE, 1961: 134).
Formas de sociabilidade como estas descritas por Freyre, podem ser associadas na
atualidade ao chamado “jeitinho brasileiro” e na própria vida política do país. Em certa
medida, o patriarcal tende a prolongar-se no paternal, no paternalista ou no “culto sentimental
ou místico do pai ainda identificado, entre nós, com as imagens de homem protetor...”
(FREYRE, 1961: LII).
Ainda sobre a importância do “parecer com”, Freyre também menciona o caso do
negro que, quando se tornava livre ou ganhava algum dinheiro, logo usava um chapéu-de-sol,
calças, botinas ou sobrecasacas de seda, e até mesmo, em alguns casos, farda com dragonas
douradas e brilhantes. Deste modo, “ninguém mais feliz que antigo escravo ou filho de
escravo dentro de sobrecasaca de doutor ou farda da Guarda Nacional ou do exército [...]”
(FREYRE, 1961: 293).
Assim, usos e hábitos senhoris e europeus aconteciam eventualmente em todos os
segmentos, fazendo com que fosse trivial o aparecimento de negros usando luvas ou botinas
de bicos finos com penteados e barbas, ou negras de chapéus franceses ou usando véus
europeus.
Neste contexto, era comum o negro livre ostentando alpendre de frente da casa
(arquitetura característica da casa-grande), exibindo-se também o seu ócio “deitado quase
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senhorilmente em rede; e a negra a parda, também livre, a ostentar a volúpia de se fazer
catar piolho pela filha, um tanto, a maneira de senhora de casa-grande ou de iaiá de sobrado”
(FREYRE, 1961: 295).
Havia ao mesmo tempo, muita falsificação e imitação. Freyre observa que o Brasil
atravessou um período de muito artigo falsificado e velho passando-se por novo e, além disso,
se fazendo passar por algo vindo da Europa, Paris principalmente. Na primeira metade do
século XIX o Brasil que procurava se afastar das coisas feitas em casa por negros (que nem
tudo sabiam fazer, de acordo com parâmetros europeus, ou melhor, dizendo, franceses)
atrelou-se aos artigos de fábrica, oficina, loja e de laboratórios europeus, “os mais finos
fabricados por mãos cor-de-rosa de parisiense” (FREYRE, 1961: 339). Assim, o brasileiro
ficava embasbacado pelos brilhos (às vezes falsos) de artigos vindos da Europa, como é o
caso de vestidos com atraso de dezenas de anos que “eram vendidos como o dernier goût de
Paris” (FREYRE, 1961: 339). A classe senhorial imitava a Europa, tendo ou não algum nexo
com o clima e os negros livres imitavam os senhores, fechando um ciclo de imitação na busca
de “parecer com”.
Conseqüentemente, por meio do predomínio desses hábitos “as sinhazinhas e yayás já
não querem ser tratadas senão por demoiselles, mademoiselle e madames” ou “... minha
maman...” (FREYRE, 1961: 102).
O fazer de conta o é o que importa. A intimidade entre as pessoas, a força dos favores
entre os segmentos hierarquizados, a brandura da intimidade entre os segmentos sociais, os
nomes ilustres, tudo isto leva a uma ética que envolve todo este conjunto de relações que
fornece um modelo que continua, de certo modo, sendo legitimado por nossa sociedade em
situações que por algum motivo se manifestam ao longo do tempo, como uma permanência
descrita por José de Souza Martins em Capítulo anterior.
II. 2 A forma de convívio do homem cordial e seus desdobramentos
Como é sabido, a palavra cordial vem do latim e significa cor, cordis, implicando em
algo relativo ao coração, mas isto não quer dizer que essa cordialidade seja algo polido, cortês
ou afável, até porque tal cordialidade não abrange apenas sentimentos positivos de concórdia,
conciliação, confraternização ou simpatia. Levando em conta o significado original da
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palavra, podemos perceber que o homem cordial toma iniciativa e age de acordo com o
coração e não com a razão.
A ética que envolve o conjunto das relações descritas por Gilberto Freyre (1961 e
2005) nos leva ao conceito de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, que consegue
sintetizar todo esse processo, articulando os dois elementos centrais de sua análise: cultura e
estrutura social.
A Cultura, no sentido de possuirmos raízes na cultura ibérica marcada profundamente
pelo “culto à personalidade” e estrutura social vinculada à forma de colonização e dominação
portuguesa ligadas às figuras do “aventureiro” e o “semeador”, tudo isto em meio à estrutura
patriarcal, ou melhor, dizendo, em meio ao personalismo patriarcal.
O homem cordial é o que nasce e se nutre em meio a tudo isto. Em outras palavras, ele
é a personificação da herança ibérica, da cultura ibérica tal como ela se acomoda ao meio
brasileiro e se concretiza na nossa estrutura social.
Sérgio Buarque de Holanda o descreve da seguinte forma:
“A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam...” (HOLANDA, 1995:147), sendo importante ressaltar que tal
idéia que pressupõe uma hospitalidade é uma idéia até hoje exportada para o resto do mundo
em relação a nós mesmos. Entretanto, ele explica que o homem cordial não representa
civilidade e boas maneiras. A inimizade e antipatia podem ser tão cordiais como a amizade,
pois, tanto uma, quanto à outra, despontam do coração, brotam da esfera do íntimo, do
familiar, do privado, tendo sua relação com aquilo que Da Matta (1987) chama de algo que é
ou não é da “mesma substância”. Isto implica em algo pulsional, movido pelos impulsos
elementares e contraditórios do coração, a simpatia e antipatia, o amor e o ódio, a
receptividade e não receptividade. Dessa forma, a cordialidade pode estar relacionada à
violência. Por exemplo, em uma Câmara Municipal, as relações podem acontecer em meio a
apertos de mãos e bater nos ombros e depois se pode mandar matar a mesma pessoa com que
se confraternizou, ou seja, defende-se o interesse pessoal com tapinhas nas costas e violência.
Os sentimentos e a paixão prevalecem sobre a aplicação pública da lei. Concordando-se com a
violência, desde que ela não atinja a família e os amigos. Neste caso, é evidente no homem
cordial o domínio do impulso sobre o raciocínio, da sensibilidade sobre a racionalidade, e da
emoção sobre a razão. Por isto, seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas
maneiras”, civilidade. “São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante” (Holanda, 1995:147).
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Para Sérgio Buarque de Holanda, esta forma de convívio relaciona-se à rejeição
que em alguns momentos se manifesta em relação ao conflito, ou seja, há um confronto que se
manifesta, em alguns momentos, na cultura brasileira entre o mundo dos relacionamentos
pessoais e o mundo selvagem da rua, como aponta Da Matta (1987 e 1991). Isto faz com que
qualquer conflito aberto seja diagnosticado como algo externamente ameaçador. Sérgio
Buarque de Holanda sustenta que a forma de convívio do homem cordial, não representa uma
atitude que é imbuída pela cortesia, representa algo existente apenas na aparência, ou seja, o
que parece representar cortesia é, de certo modo, uma organização de defesa perante a
sociedade. O autor explica que este comportamento que se converteu em uma fórmula de
conduta em momentos específicos, equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar
intactas suas sensibilidade e suas emoções.
Em suma, o que existe na personalidade do homem cordial, na visão de Holanda, “é
que a vida em sociedade é, de certo modo, uma libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se a si próprio em todas as circunstâncias da existência”
(HOLANDA, 1995:147). Sérgio Buarque de Holanda coloca em questão a necessidade que
pode existir em situações específicas de se buscar um convívio familiar e íntimo nos
relacionamentos sociais. Pode-se perceber que a discussão levantada por Sérgio Buarque de
Holanda coloca em questão o homem cívico, descrito por Max Weber, em oposição ao
homem cordial. O homem cívico para Weber (1967), é aquele que, em suas relações sociais,
adota uma conduta voltada para o racional (relativa à ética racional do protestantismo
ascético), que corresponda à existência de um espaço público organizado com regras gerais
transparentes que não dêem margem a atitudes impulsionadas por interesses pessoais. Max
Weber ao definir homem cívico retrata o estado de espírito que predomina na dominação
burocrática, que é um espírito de impessoalidade, afirmando a máxima do “sine ira et studio,
sem ressentimentos e sem preconceitos” (WEBER, 1972:79). Em outras palavras, o homem
cordial – que é o oposto do homem cívico, possui uma impossibilidade de se colocar de forma
imparcial, possuindo uma tendência tempestiva, inclinada às paixões. Por isto o homem
cordial pode ser visto como uma síntese do processo civilizador brasileiro, que é o oposto do
processo vivido naquelas sociedades impulsionadas por um ideal protestante analisado por
Weber, sociedades como a norte americana, a francesa e a inglesa onde existe um espaço
público organizado ou, como diria Roberto Da Matta, sociedades em que não há uma
confusão entre leis universais e práticas sociais. Para Sérgio Buarque de Holanda, a
cordialidade, é algo parecido com complacência, contemporização, estando relacionada a uma
62
busca por agradar, e tudo isto é o oposto de civilidade, que pressupõe qualquer coisa de
coercitivo [...]” (HOLANDA, 1995:147). O coercitivo diz respeito ao controle das pulsões,
ato necessário na vida social, ou seja, não se dominar pelas paixões, pelos desejos. Podemos,
neste caso, pensar no substrato pulsional de atitudes como o fanatismo religioso, o
totalitarismo comunitário, o racismo, o nacionalismo e a guerra, todas formas monstruosas de
realização de desejos.
Para Sergio Buarque de Holanda, os valores personalistas dominam a vida privada,
como é o caso da propensão para o emprego de diminutivos, mencionado por ele. Assim, a
terminação “inho”, serve para nos familiarizar com as pessoas e os objetos, e, ao mesmo
tempo, para coloca-las em evidência. Esta é uma maneira de faze-los mais acessíveis aos
sentidos e também de aproxima-los do universo dos sentimentos. Esta prática de acrescentar a
terminação “inho”, e o emprego de diminutivos se manifesta no cotidiano em momentos
específicos, por exemplo, quando observamos uma boa parte dos nomes dos jogadores de
futebol. Sérgio Buarque de Holanda aponta para a importância que se atribui à intimidade e ao
familiar nas relações e esta questão também se relaciona com a tendência para a omissão do
nome de família no tratamento social, pois, em regra é o nome individual, de batismo que
prevalece no Brasil.
Gilberto Freyre também chama a atenção para este aspecto, quando afirma que os
nomes próprios foram os que mais se amaciaram entre nós, “perdendo a solenidade,
dissolvendo-se deliciosamente na boca dos escravos”, deste modo, “Antonias ficaram
Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés, os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os
Franciscos, Chico, Chiquinho...” (FREYRE, 2005:414). Este amaciamento, segundo Freyre
relaciona-se ao contato com o africano e, neste caso, a linguagem infantil também se
amoleceu no contato com a ama negra. Freyre acrescenta que algumas palavras, consideradas
duras, quando pronunciadas pelos portugueses se amaciaram no Brasil por influência da boca
africana, por exemplo, o “dói dos grandes tornou-se o dodói dos meninos” (FREYRE,
2005:414). Além disso, a língua falada deixou de ser dividida entre casa-grande e senzala na
aliança entre a ama negra e o menino branco, da mucama com a sinhá-moça, do sinhozinho
com o moleque. Freyre comenta sobre vocábulos que subiram com os moleques e as negras,
das senzalas para as casas-grandes. Como por exemplo: dengo, cafuné, mulambo, caçula,
quitute, mandinga, moleque, camundongo, cafajeste, quibebe, batuque, mocotó, vatapá,
caruru, jiló, quindim, mugunzá, berimbau, tanga, cachimbo, candomblé. Assim, muito
brasileiro prefere dizer moleque ao invés de garoto ou molambo ao invés de trapo - “são
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palavras que correspondem melhor que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso
paladar, aos nossos sentidos, as nossas emoções” (FREYRE, 2005:417).
Emoções, sentimentos e intimidade, quase tudo caminha, um pouco, por esta via. Isto
fica bem claro, até mesmo na conduta religiosa, ao se tratar os santos com intimidade. Um
exemplo, disto são as festas, citadas por Freyre e Holanda, do Senhor Bom Jesus de Pirapora,
em São Paulo, que possuem um ritual religioso em que o Cristo desce do altar para sambar
com o povo. Freyre afirma que além dos santos, os anjos só faltarem descer do altar para se
divertirem com o povo. Também, o menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da
casa, tamanha era a perfeita intimidade com os santos, que nunca deixou de existir no
patriarcalismo brasileiro, e neste caso, o menino Jesus só faltava, “lambuzar-se na geléia de
araçá ou goiaba; brincar com os moleques” (FREYRE, 2005:39). Mas tamm, “[...] nas
cantigas de acalanto portuguesas e brasileiras as mães não hesitaram nunca em fazer dos seus
filhinhos uns irmãos mais moços de Jesus, com os mesmos direitos aos cuidados de Maria, às
vigílias de José [...]”, sendo que, “[...] a São José encarregou-se sem a maior sem-cerimônia
de embalar o berço ou a rede da criança” (FREYRE, 2005:38). Ainda em relação à
intimidade entre devoto e santo, acrescenta que os rapazes também tinham sua familiaridade
com o seu santo protetor de namoros: “as moças não me querendo, dou pancadas no santinho”
(FREYRE, 2005:303).
Freyre também chama a atenção para o costume de se enterrarem os mortos dentro da
casa, que é bem característico do espírito patriarcal de coesão e família, assim, “os mortos
continuavam sob o mesmo teto que os vivos, [...] entre os santos e as flores devotas, [...]
santos e mortos eram afinal parte da família” (FREYRE, 2005:38).
Todavia, a necessidade de intimidade entre as pessoas acabou prevalecendo em todo
tipo de relação, até mesmo nas relações comerciais: “um negociante de Filadélfia manifestou
certa vez a André Siegfried seu espanto ao verificar que, no Brasil como na Argentina, para
conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo” (HOLANDA, 1995:149).
Além de necessidade de intimidade nas relações, isto é, o verdadeiro horror às
distâncias, havia também, uma certa falta de honestidade nas negociações e Freyre afirma que
houve muito fidalgo de casa-grande que foi caloteiro ou também muito “velhaco ou
espertalhão [...]” (FREYRE, 1961:19).
Em relação à esperteza, Freyre cita um divertido caso de um fidalgo rural que não
colocava nome nos seus escravos, era tudo número (Dez, Quinze, Vinte), e quando o
representante do comissário o visitava, “o manhoso senhor, dono de dez ou doze negros
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magros, simulava a maior opulência deste mundo, gritando para o capataz: “mande Dez
para tal trabalho [...] quinze para fazer isto[...] vinte para aquilo” (FREYRE, 1961:20),
simulando possuir muitos escravos para causar um efeito comercial sobre o comissário, que
por sua vez, deixava-se impressionar pelos ouvidos.
Mas, ainda no que diz respeito à necessidade de intimidade nas relações, este parece
ser um traço específico do espírito brasileiro, na visão de Sergio Buarque de Holanda. Ele
ressalta que essa aptidão para o social significa uma dedicação aos valores da personalidade
representada pelo lugar doméstico, ou seja, da casa. Cada indivíduo afirma-se perante os seus
semelhantes de maneira indiferente à lei geral, na direta proporção em que esta lei contrarie
suas afinidades emotivas. O indivíduo fica atento, apenas, ao mundo que o distingue dos
demais.
O ideal igualitário entre os homens, que está presente no pensamento liberal-
democrático, está em contraste direto com qualquer forma de convívio humano baseado nos
valores cordiais. Conclui-se, com base nos argumentos de Sérgio Buarque de Holanda, que o
homem cordial representa a inexistência, no Brasil, de uma sociedade civil que possa servir de
base ao Estado impessoal, e neste sentido, ele personifica, a invasão do público pelo privado.
O homem cordial é também a expressão da influência ativa dos padrões de convívio
informados no meio rural e patriarcal, e esses padrões de convívio significam a predomínio do
emocional sobre o racional e do íntimo sobre o impessoal. São padrões que, se ficassem
restritos à esfera familiar e privada, não seriam em si problemáticos. O problema justamente,
é que o homem cordial sai da esfera privada e projeta-se nas esferas sociais e políticas.
Os fundamentos personalistas e oligárquicos da vida social e a ausência desse
civilismo a que se refere Sérgio Buarque de Holanda são também uma forma do autor cair em
uma certa armadilha ao apostar toda a solução para os dilemas que aparecem na sociedade
brasileira como resultados de um certo atraso social a partir de uma idealização do modelo do
protestantismo ascético descrito por Weber. Neste caso é preciso tomar um certo cuidado com
a forma comparativa que se remete Sérgio Buarque de Holanda em relação ao Brasil e as
sociedades industriais. Isso não quer dizer que ele não atribua qualidades ao homem cordial.
A questão é que a plasticidade, que também pode ser vista como uma qualidade, é
considerada um obstáculo à criação de uma nação moderna. Esta é a questão chave no
pensamento de Sérgio Buarque de Holanda e ao mesmo tempo, é também uma das criticas
dirigidas ao seu pensamento. O atraso para ele está primordialmente ligado à herança ibérica,
que se opõe aos aspectos culturais do protestantismo nas sociedades européias.
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Antes de introduzir a idéia de “homem cordial”, Holanda faz uma referência
normativa à natureza do Estado, lembrando que o Estado não é uma ampliação do círculo
familiar e, menos ainda, uma integração de certos agrupamentos, ou de certas vontades
particularistas, onde a família é o melhor exemplo, portanto, não existe uma gradação entre o
círculo familiar e o Estado, mas sim uma descontinuidade e até uma oposição. “Só pela
transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se
faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade”
(HOLANDA, 1995:141).
O Estado para Holanda está submetido aos valores personalistas que regem a vida
privada e isto impede uma organização política moderna reivindicada em suas idéias em
Raízes do Brasil. Neste caso, a oposição entre família e Estado em Holanda passa por um
modelo idealizado de democracia que é típica em paises europeus. Ele percebe na família e
nos valores dela derivados, um obstáculo ao desenvolvimento desta organização política
moderna. Freyre não analisa criticamente este aspecto, pois dirige suas observações para a
mentalidade da família patriarcal, mas também não possui esta ênfase de Buarque de Holanda,
ao buscar um Estado moderno nos moldes europeus como a solução para situações que
despontam em nossa cultura. Contudo Freyre observa na família a sua relação de apoio para a
organização política, já que esta acaba aderindo em certos momentos a valores vigentes no
meio doméstico.
Todavia, a interpretação que Sérgio Buarque de Holanda faz da sociedade brasileira
possui uma ênfase ao peso do ruralismo, do patriarcalismo, das relações familiares em nossa
formação, deste modo, para o autor não se pode procurar a especificidade da sociedade
brasileira sem levar em conta o fato de que convivemos com padrões legados por nossos
colonizadores. O argumento de Holanda tem como núcleo central a herança ibérica, e neste
sentido ele faz um exame das raízes de nossa sociabilidade dirigindo suas críticas a esta
herança, que é o principal obstáculo para a consolidação de Estado nos moldes das modernas
sociedades européias.
O primeiro capítulo de Raízes do Brasil é dedicado a uma discussão sobre os povos
ibéricos, sobre as formas de vida social em Portugal e Espanha e, neste aspecto, é ressaltado
que um dos motivos que levaram esta região a desenvolver aspectos peculiares em sua
formação, foi o ingresso tardio no coro europeu, que só ocorreu na época dos grandes
descobrimentos marítimos.
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Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre ressaltam que os países ibéricos
representam uma área menos “carregada de um certo europeísmo”, e isto se dá por ser um tipo
de sociedade que se desenvolveu a margem do gênero que predominou no europeu, e também
por ser um território-ponte, uma zona fronteiriça, através do qual a Europa se comunica com
outros mundos.
Conseqüentemente, Freyre julgava o povo da Península Ibérica ser um povo indefinido
entre a Europa e a África, sendo que em alguns momentos “a Europa reinando, mas sem
governar; governando antes a África” (FREYRE, 2005:66). O autor se refere a um intercurso
entre a cultura européia (portuguesa) e a influência africana que dá um toque diferente à vida
sexual, à alimentação, à religião, provocando transformações nas instituições (amolecendo-
as), modificando a rigidez moral. Ele leva em conta também, que não podemos esquecer da
influência do mouro através do português, nem da do mulçumano através do negro.
De qualquer modo, uma das características culturais do português, destacadas por
Freyre, é o que ele chamou de “bambo equilíbrio de antagonismos”, que se manifesta em uma
fácil e branda flexibilidade no comportamento.
Para ele, existem intervalos de intenso utilitarismo no modo cultural do português, mas
que logo caem em sonhos, em busca de um proveito imediato, e existe também, a indolência
que é alternada com o amor à aventura. Estas influências se alternam, às vezes se equilibram
ou se hostilizam na cultura do português, manifestando-se em uma personalidade “cheia de
fogachos e entusiasmo...” (FREYRE, 2005:68). Ou seja, na verdade o constante estado de
guerra entre a Europa e a África, nas observações de Freyre, não excluiu nem a atração sexual
entre as duas raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas. Tudo isto faz com que o
autor encontre um especial caráter da colonização brasileira que participou da formação sui
generis da sociedade mais ampla.
Ainda sobre as características culturais do português, Freyre menciona a aptidão para
imitar e uma imaginação que o leva a exagerar até na mentira, e se este não for um exagero de
Freyre, curiosamente nos faz lembrar que a imaginação e o exagero que chega se transformar
em cultura tem relação com características dos vários tipos que saíram do imaginário social na
contemporaneidade, como é o caso de Zé Carioca e João Grilo personagem de Ariano
Suassuna em “O auto da compadecida”.
Mas, de toda maneira, Holanda afirma que o que é próprio dos portugueses, é uma
característica que não é tão visível em outros povos europeus - o culto à personalidade –
sendo este o principal traço da cultura ibérica. Tal conduta traduz-se em uma extrema
67
valorização da autonomia individual e na repulsa a qualquer forma de dependência. Neste
sentido, a “cultura da personalidade”, para retomar uma expressão de Sérgio Buarque de
Holanda, está relacionada à importância particular atribuída ao valor da pessoa, ou seja, existe
uma valorização à autonomia de cada um dos homens em relação aos seus semelhantes.
Para Holanda, os espanhóis e portugueses encontram o valor de um homem na sua
capacidade de autonomia em relação ao outro, sendo importante que o indivíduo não necessite
de ninguém, que se baste. Para esta mentalidade isto é algo tão imperativo, que tal
característica chega a marcar o porte pessoal e a fisionomia desses povos, sendo algo tão
enraizado na cultura, que a postura, além de ser admitida, também, admirada por todos, e
também, sancionada pelos governos e até elogiada pelos poetas. Ele explica que tal concepção
embasa-se na palavra hispânica – “sobranceria” que indica a idéia de superação.
Deste modo, os sentimentos constituem, para os povos ibéricos, apelos à associação
muito mais fortes do que interesses racionais.
O que deve ser levado em conta, para Sérgio Buarque de Holanda é o predomínio da
exaltação do prestígio pessoal como regra de relacionamento social e de poder.
Efetivamente, as teorias negadoras do livre-arbítrio foram sempre
encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e
portugueses. Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo
onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem
pleno reconhecimento. Foi essa mentalidade, justamente, que se
tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização
espontânea, tão característica de povos protestantes, e, sobretudo de
calvinistas. (HOLANDA, 1995:37).
Sobre isto, Raymundo Faoro (1987) salienta que havia uma hierarquia sem rigidez
entre os membros da administração pública colonial. Isto significa dizer que generais,
governadores, capitães-mores das capitanias, a corte, vereadores e juízes, todos se dirigiam ao
rei e ao seu círculo de dependentes, atropelando os graus intermediários de comando. Deste
modo, o quadro geral da colônia era permeado pelo arbítrio, desobediência, rebeldia das
autoridades coloniais, ao lado da violência.
A justiça também era lenta naquele período e Faoro escreve que “ai de quem caísse
nas mãos dessa justiça tarda, incompetente, cruel, amparada nas duras leis do tempo”
(FAORO, 1987:187). Cria-se, assim um governo “sem lei e sem obediência, a margem do
controle, inculcando ao setor público a discrição, a violência, o desrespeito ao direito”
(FAORO, 1987:182). Com isto, “privatismo e arbítrio se confundem numa conduta de burla
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a autoridade, perdida na ineficiência” (Ibidem, 1987:182). Faoro também argumenta sobre
a existência de funcionários que se dirigiam diretamente ao conselho ultramarino, com
proteções poderosas de pessoas da corte, encostadas no setor ministerial do governo.
Contudo, a integração do colono à ordem metropolitana fez-se por meio da ordem
militar; a patente das milícias correspondia a um título de nobreza, que irradiava poder e
prestígio. Faoro acrescenta que no império a “patente embranquece e nobilita, ela está no
lugar da carta de bacharel” (FAORO, 1987:192); neste caso, é possível perceber que na
colônia o próprio bacharel, em Coimbra, só se elevava com o título militar.
A repulsa a toda moral fundada no culto ao trabalho se ajusta bem a esta reduzida
capacidade de organização e racionalização da vida social. Sendo assim, esta ênfase no
pessoalismo atrelada ao rígido paternalismo, é tudo quanto se poderia esperar de oposto aos
princípios que guiaram a América do Norte, por exemplo, na fundação e constituição de sua
república. Nas nações ibéricas, sempre houve esta falta de racionalização da vida, como
aquela vivenciada pelos países protestantes. Com isto, o que marca a sociedade brasileira e
vida pública é o predomínio de preferências fundadas em laços afetivos e a pouca valorização
do trabalho manual em detrimento da ênfase nas honrarias e títulos que possam representar
poder.
Sérgio Buarque de Holanda entende que a ausência dessa moral do trabalho ajustou-se
a uma reduzida capacidade de organização social. “Efetivamente o esforço humilde, anônimo
e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a
organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles” (HOLANDA, 1995:39).
Ao contrário disto, Sérgio Buarque de Holanda acentua que para a Península Ibérica,
o trabalho manual é pouco dignificante e a moral do trabalho é uma coisa exótica. A busca é
pela maior riqueza possível com menor trabalho possível. Neste caso, a solidariedade entre os
homens existe a partir dos padrões estabelecidos pelos vínculos sentimentais e isto se dá,
geralmente na família ou entre amigos. Esta é, portanto, a ética de fidalgos, universo em que
existe uma repulsa a toda moral fundada no culto ao trabalho, uma verdadeira negação da
atividade utilitária, e isto significa dizer que nesta ética é o ócio e não o trabalho que enobrece
os indivíduos. Desta maneira, na ética de fidalgos o que predomina são círculos restritos e
particularistas.
Freyre faz vários comentários que podem ilustrar esta observação de Holanda. Um
deles é sobre os senhores de engenho que eram carregados nas redes o dia inteiro pelos
negros; “uns viajando de um engenho a outro; outros passeando pelas ruas das cidades, onde
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ao se avistarem dois conhecidos, cada um na sua rede, era costume pararem para conversar,
mas sempre deitados ou sentados nas almofadas pegando fogo” (FREYRE, 2005:504). O
“pegando fogo” que Freyre se refere diz respeito ao calor intenso que era incompatível com os
tecidos pesados que eles usavam para imitar a fidalguia européia.
Freyre ainda relata que até mesmo dentro de casa, os senhores de engenho ficavam
sempre sentados, ou então deitados nas redes e almofadas; “as mulheres de tanto viverem
sentadas, diz um cronista holandês do século XVII, que cambaleavam quando se punham de
pé” (FREYRE, 2005:504); ele ainda observa que algumas mulheres até nas igrejas entravam
de rede.
Até mesmo a fala, em algumas áreas, houve uma acentuação de voz especial, quase
sempre morosa, fanhosa ou arrastada, e Freyre acrescenta, que era um “modo de falar
enfastiado e dando sono”, assim, ele cita um caso de uma certa “Dona Mariquinhas” que era
“menina bonita, vestindo-se bem, dançando suas quadrilhas, tocando piano, cantando”, mas,
“quando falava era só pru mode, cadê, oreia, veiaca, cuié, muié, oxente” (FREYRE, 1961:78).
Tamm chegou a causar perplexidade nos viajantes, situações opostas a esta, como a
dos engenhos patriarcais com moleques, meninos de coro, bandas de música, pianos de cauda
e orquestras tocando ópera. De acordo com Freyre, no século XIX, um missionário norte-
americano que viajou pelo Brasil ficou espantado com a música que ouviu em uma casa-
grande em Minas Gerais. Para o espanto do norte-americano, quando o dono da casa disse que
iria mandar tocar uma musiquinha, ele vê uma grande orquestra se afinando, com
instrumentos como: violino, flauta, trombone, e “[...] a orquestra toda de negros; um sentado
ao órgão; e um coro de mulecotes, os papéis de solfa alvejando nas suas mãos pretas”,
(FREYRE, 1961:45), e assim “executaram o primeiro número: ouverture de uma ópera”,
depois, um outro: “uma missa que os negrinhos cantaram em latim. Stabat Mater. A marcha
de La Fayatte” (Ibidem, 1961:46).
Todavia, essas casas-grandes elegantes e com demonstrações de um suposto gosto
apurado, recebendo os visitantes, com negros tocando ópera e cantando em latim, não foram
típicas. Freyre faz algumas observações, sobre a disparidade dos trajes utilizados, fora e
dentro de casa, porque fora de casa era necessário passar um ar de fidalguia, mostrar que é
importante, então se usava roupas impróprias para o clima, “veludo, seda, damasco” e muitos
dos senhores de engenho só saindo em “palanquins também de seda, de veludo ou de damasco
por dentro” (FREYRE, 2005:503), sendo um verdadeiro forno ambulante.
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Dentro de casa, nas horas de descontração, é que homens, mulheres e meninos
desprendiam-se dos trajes europeus, Freyre destaca que neste caso, os meninos andavam nus
ou de “sunga-nenê”, os adultos de chinelos sem meia ou de pés descalços e as mulheres, que o
autor chama de “mulheres relassas”, que surpreenderam muito viajante, ficavam com os seios
a mostra, dando ordens estridentes aos escravos ou, como é caso de muita baronesa ou
viscondessa analfabeta do Império, ficavam “fumando como umas caiporas; cuspindo no
chão; e ainda outras mandando arrancar dentes de escravas por qualquer desconfiança (...) do
marido (...)” (FREYRE, 2005:428). Tudo isto causava perplexidade nos viajantes, pois em
alguma festa ou cerimônia religiosa na noite anterior estas mesmas senhoras estavam sempre
com excessos de jóias e tecidos caros, ficando irreconhecíveis no dia seguinte, dentro de casa.
Segundo as observações de Freyre a mulher patriarcal no Brasil, principalmente a do
sobrado, embora andasse dentro de casa em um traje que Freyre chama de “cabeção” e
chinelo sem meia, extrapolava nos vestidos que usava nas festas, além dos excessos nos
enfeites, babados, rendas, plumas, fitas, jóias, ouros, anéis. Aponta-se para existência de uma
disparidade entre os trajes usados dentro e fora de casa.
Muita jóia, ostentação, segundo Freyre era algo assim: “saia de chita, camisa de flores
bordadas, corpete de veludo, faixa” e “por cima [...], muito ouro, muitos colares, braceletes,
pentes” (FREYRE, 2005:428).
Contudo, é importante destacar um outro elemento presente na motivação desta
ostentação, pois tais exageros também tinham como intuito à distinção entre a mulher de
mucambo ou casa térrea e mulher de sobrado ou casa-grande.
A diferenciação social, também foi estabelecida através das plantas e animais. Por
exemplo, eram as rosas do Japão, as camélias, magnólias, jasmins e tulipas em oposição as
desprezíveis arruda e manjericão que eram consideradas plantas de “gente baixa, de negro,
planta de macumba ou plantas de mucambo” (FREYRE, 1961:138).
Segundo Freyre no Diário de Pernambuco em 1839, apareciam anúncios deixando
claro, esta predileção por plantas européias: “[...] andromedas, arabas, e roseiras de mais de
200 variedades, cebolas e flores como jacinthos, tulipas, junquilhos, narcisos, lírios, amarílis,
dálias[...]”(FREYRE, 1961:138), e também árvores como: “[...] pereiras, macieiras,
ameixeiras, pessegueiros, damasqueiros, cerejeiras, amendoeiras, grosmeiras, ribes-preto,
avelãzeiras, nogueiras, castanheiros [...]”(Ibidem, 1961:138), acrescentando o anúncio que
todas elas provém das melhores espécies da França.
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Já no animal a diferenciação se dava entre a vaca de leite e a cabra ou o cavalo em
contraste com a mula, mas era muito importante a presença do cão de raça, grande e feroz,
com nomes fortes como: “Rompe-Ferro, Rompe-Nuvem, Nero. E Gavião, Trovão, Furacão,
Sultão, Dragão, Zangão, Papão, Grandão, Negrão, Barão, Tição [...]” (FREYRE, 1961:227).
Feras que eram acalmadas quando tiravam, às vezes, “[...] um pedaço da calça de
estopa ou mesmo um fiapo de carne do muleque de rua que viesse roubar algum manguito
atraente maduro em mangueira do sítio” (Ibidem, 1961:227-228). Todavia, a vida do senhor
de engenhos era ociosa e alargada de preocupações sexuais, mas, sempre uma vida de rede:
“rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando; rede andando com o senhor
em viagem ou a passeio...; rede rangendo com o senhor copulando dentro dela...” (FREYRE,
2005:518).
Freyre destaca que a vida era tão lânguida e morosa, que de rede viajavam quase
todos, sem ânimo para montar a cavalo, “deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por
uma colher”, depois do almoço ou jantar era na rede que ficavam fazendo o quilo - “palitando
os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto”, ou então, “deixando-se
abanar, agradar e catar piolhos pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando
por vícios, outros por doença venérea ou de pele” (FREYRE, 2005:518). Em suma, os dias
eram sempre iguais, “a mesma vida de rede, banzeira, sensual” (FREYRE, 2005:519).
Contudo, a família colonial, que representava o setor onde o princípio de autoridade
era disputado, fornecia a idéia de poder, respeitabilidade, obediência e de coesão entre os
homens. A obediência aparece, então, como o outro lado desse “culto à personalidade” e
impõe-se como a fonte mais viável de disciplina e ordenação. Sérgio Buarque de Holanda
destaca que nesta ética o único princípio político, verdadeiramente forte, se manifesta através
de uma forte obediência e, ao mesmo tempo, uma forte vontade de mandar, ou seja,
predisposição para mandar e disposição para cumprir ordens. O autor relaciona a esta
circunstância certos traços que, segundo ele, são constantes na vida social: as qualidades de
“imaginação” e “inteligência” em prejuízo das manifestações do espírito prático ou positivo.
Além disso, o “talento” é uma das virtudes valorizadas nesta ética, sobretudo, onde a
lavoura colonial e escravocrata deixou raízes mais fortes, como é o caso do nordeste no
Brasil.
Todavia, neste caso, em que é privilegiado o “talento” em detrimento de trabalhos que
exijam esforço físico, não significa que haja uma valorização ao pensamento especulativo,
pois de um modo geral há uma pequena dedicação às especulações intelectuais. Neste caso, o
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que é valorizado é a “frase sonora” e a expressão rara, o verbo espontâneo e abundante e a
erudição ostentosa. Em outras palavras, o que existe são idéias, antes ancoradas na forma e na
aparência do que no conteúdo: uma verdadeira valorização da aparência.
Freyre observa que o português “é um povo que vive a fazer de conta que é poderoso e
importante”, ou em relação ao espanhol, ele afirma que, “a gente miúda gosta que lhe dêem o
tratamento de senhor...” (FREYRE, 2005:268). Com a valorização em relação a certas
virtudes senhoriais, as qualidades do espírito substituem os títulos honoríficos e alguns de
seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, que acabam por
equivaler a brasões de nobreza.
Contudo, em relação à colonização, Sérgio Buarque de Holanda destaca que ela foi
levada a diante pelo tipo “aventureiro”, que se caracteriza pela audácia e pela busca de ganho
imediato, ao contrário do tipo “trabalhador”, que valoriza o trabalho metódico e criterioso em
vista de uma compensação final. Busca pelo ganho fácil foi a marca do processo de
colonização; a escolha do modelo de produção –na forma de latifúndios monocultores, com
emprego de trabalho escravo e com a utilização de técnicas rudimentares e predatórias –
foram manifestações desse traço.
Conclui-se, com base no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda (1995) e Gilberto
Freyre (2005) que o tipo de colonização empreendido no Brasil foi feito de uma forma que
transparece um certo desleixo, aliado a uma ausência de planejamento, e que tudo isto foi
marcado pelo “gosto da aventura”. O desleixo transparece na agricultura destruidora da
natureza mencionada por Freyre, em que, era comum no Brasil patriarcal, a idéia de “nada de
adubo, nem gasto ou cuidado com a terra...” (FREYRE, 1961:20), pois cedo ou tarde, ela
poderia ser abandonada sem saudade.
Para explicar melhor todas essas questões, Holanda argumenta sobre uma qualidade
fundamental do colonizador que é a plasticidade, que se manifesta na mobilidade social.
Qualidade esta que recebe dura crítica de Sérgio Buarque de Holanda desembocando, ao seu
modo de ver, em questões como as citadas acima. No pensamento do autor há uma idéia
muito forte de que a política é algo a se construir, pressupondo a negação da família e da
ordem privada, com a qual é incompatível, já que existe algo de coercitivo na civilidade que
se opõe diretamente às paixões do homem cordial que surge em meio a esta plasticidade
advinda da herança ibérica.
Sobre a plasticidade do português, Freyre acrescenta que “prolongou-se no brasileiro
a tendência colonial do português de derramar-se em vez de condensar-se” (FREYRE,
73
2005:88), e ele ainda enfatiza que a plasticidade social foi maior no português que em
qualquer outro colonizador europeu.
Neste caso, é importante ressaltar, que o domínio português não tinha uma
preocupação em plantar alicerces, pois a preocupação era voltada para a obtenção de uma
riqueza fácil, e isto, na visão de Holanda, é expresso na primazia da vida rural em detrimento
do desenvolvimento da vida urbana.
E também na forma de cultivo da terra “ateando primeiramente fogo aos matos”
(HOLANDA, 1995:47).
E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de
posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente
de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do
espírito de aventura? Ainda hoje convivemos diariamente com a
prole numerosa daquele militar do tempo de Eschwege, que não se
envergonhava de solicitar colocação na música do palácio, do
amanuense que não receava pedir um cargo de governador, do
simples aplicador de ventosas que aspirava às funções de cirurgião-
mor do reino. (Ibidem, 1995:46).
Mas a discussão sobre a cultura ibérica e o tipo de colonização e dominação
estabelecido no Brasil pelos portugueses, só se completa quando Holanda trata de um aspecto
central em toda sua análise: a estrutura social brasileira, resultante do processo de
colonização.
Esta estrutura social se caracteriza pelo traço marcadamente rural e patriarcal, tendo
como características, a base da riqueza ser o emprego do braço escravo e a exploração
extensiva de terras de lavoura e as classes sociais: por muito tempo, senhores e escravos,
havendo uma certa “infixidez” das classes sociais.
Sérgio Buarque de Holanda chama a atenção para as relações entre ordem privada e
pública.
O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua
sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A
entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A
nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde
prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços
afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida
pública, todas as nossas atividades (Ibidem, 1995:82).
Ele enfatiza que pelo fato da família colonial ser o centro de toda a organização, ela
fornecia a idéia geral de poder e o resultado era “predominarem, em toda a vida social,
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sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica,
uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (Ibidem, 1995:82). “Um dos
efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia urbana no Brasil, está em
que certas atitudes peculiares, até então, ao patriciado rural, logo se tornaram comuns a todas
as classes como norma ideal de conduta” (HOLANDA, 1995:87)
Na visão de Freyre, de um modo generalizado, todo mundo tinha uma mania de
fidalguia, constituindo-se em uma “república de opereta onde todos os homens fossem
doutores e se tratassem por vossa excelência” (FREYRE, 2005:268). A mentalidade da casa-
grande invade as cidades e conquista todos os segmentos: na ausência de uma burguesia
urbana independente, uma burguesia urbana é “improvisada”, com elementos saídos da massa
dos senhores rurais. Isto significa, que a mentalidade da casa grande estereotipada por longos
anos de vida rural, invadiu as cidades e conquistou todos os segmentos sem exclusão.
E sobre isto, Holanda nos conta um certo caso, bem típico na época, do oficial de
carpintaria “que se vestia a maneira de um fidalgo, com tricórnio e sapatos de fivela, e se
recusava a usar das próprias mãos para carregar as ferramentas de seu oficio, preferindo
entregá-las a um preto” (HOLANDA, 1995:87). Para Freyre este comportamento era comum
no português e esta mania de fidalguia acontecia com “grandes comezainas por ocasião das
festas, mas nos dias comuns, alimentação deficiente, muito lorde falso passando fome”
(FREYRE, 2005:529).
Freyre argumenta que esta era a situação de grande parte da aristocracia e acabou se
prolongando pelo Império e República, sempre simulando grandeza no vestuário e em outras
exterioridades, com sacrifício do conforto doméstico e da alimentação diária. Freyre até
menciona o caso de fidalgos que revezavam ao uso de um só traje de seda, assim, enquanto
um fidalgo ostentava a seda nas ruas, dois permaneciam em casa em trajes menores. Ou então,
o caso dos estudantes das escolas superiores onde “alguns passando fome do dia 15 até o fim
do mês”, mas nas ruas, “uns príncipes, de fraque e cartola, fumando charutos, ostentando
amantes caras...” (FREYRE, 2005:530).
Holanda argumenta, que toda a ordem administrativa do país, durante o império e
mesmo depois, já no regime republicano, possui elementos estreitamente vinculados ao velho
sistema senhorial, ou seja, a mentalidade estruturada sobre o patriarcalismo continuava a ser
dominante. Ele afirma que a nobreza lusitana nunca chegou a ser rigorosa e impermeável, não
havia, deste modo, uma nítida separação das classes sociais, como prevalecia em outros
países, residindo aí esta forma não fixa nas classes sociais.
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No Brasil a nobreza jamais almejou ser uma aristocracia fechada, e Holanda
exemplifica esta questão ressaltando sobre como, por exemplo, os nobres davam filhos aos
camponeses para serem educados, e neste caso, os camponeses desfrutavam de alguns
privilégios e isenções.
Conseqüentemente, em meio a este quadro de práticas comportamentais, que tem
como pano de fundo uma relação embasada em privilégios, a burguesia mercantil não
precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamente novo, nem mesmo, precisou instituir
uma nova escala de valores, sobre as quais firmasse permanentemente seu predomínio. Ela
procurou, em primeiro lugar, associar-se a antiga classe dirigente, depois procurou assimilar
muitos de seus princípios, guiando-se mais pela tradição do que pela racionalidade. Neste
caso, é claro que não só a burguesia urbana, mas os outros segmentos eram contagiados pelos
títulos e honrarias. “[...] A própria ânsia exibicionista dos brasões, a profusão de nobiliários e
livros de linhagem, constituem, em verdade, uma das faces da incoercível tendência para o
nivelamento das classes, que ainda tomam por medida certos padrões de prestigio social
longamente estabelecidos e estereotipados” (HOLANDA, 1995:37).
Contudo, o familismo no Brasil, segundo Freyre (2005 e 1961) tem sido uma grande
força permanente, fazendo com que em torno da família patriarcal ou tutelar girasse os
principais acontecimentos durante quatro séculos e não em torno dos reis ou dos bispos ou
chefes de Estado ou da Igreja. “Tudo indica que a família entre nós não deixará de ser a
influência se não criadora, conservadora e disseminadora de valores, que foi na sua fase
patriarcal” (FREYRE, 1961: LXX).
Ele acentua que os engenhos, lugares santos em que ninguém se aproximava a não ser
nas pontas dos pés e para pedir alguma coisa - “pedir asilo, pedir voto, pedir moça em
casamento, pedir esmola para festa de igreja, pedir comida, pedir côco de água para beber” -
passa em um dado momento a ser invadido por agentes de cobranças representantes dos
bancos. Neste caso, mesmo com a desintegração do poder do pater familias rural dando lugar
aos novos elementos (os bacharéis e médicos) encontrava-se amparo no filho e no genro ou
em algum deputado, ministro ou funcionário público.
Desta maneira, enquanto o despotismo do pater familias foi se dissolvendo com o
prestigio de figuras como o médico, o presidente de província e o juiz, na mesma proporção
às senzalas diminuíam de tamanho, mas engrossavam as aldeias de mucambos e de palhoças
perto dos sobrados e das chácaras. O sobrado conservou o quanto pode, nas cidades, a função
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da casa-grande do interior, de guardar mulheres e valores. “Daí os cacos de garrafa
espetados nos muros: não só contra ladrões, mas contra os donjuans” (FREYRE, 1961:154).
Contudo, o patriarcalismo vindo dos engenhos para os sobrados não se entregou logo à
rua. Freyre afirma que durante muito tempo o sobrado e a rua foram inimigos.
Neste caso, havia um quê de aventura sair pelas ruas nas cidades brasileiras do século
XIX, “tudo escuro; becos estreitos, poças de lama [...] tigres estourados no meio da rua [...]
bicho morto” (FREYRE, 1961:40).
No caso dos “tigres” estourados no meio das ruas, isto também acontecia nas praias
que eram lugares onde não se podia passear, muito menos tomar banho de mar, eram lugares
onde se faziam despejos, onde se descarregavam os tigres cheios de excrementos, o lixo das
casas e das ruas, onde atiravam os animais e os negros mortos.
Ao escravo negro, estava reservado o trabalho mais sórdido na higiene doméstica,
daquele período, um deles, era o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de
excremento conhecidos por tigres, “barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos
dias dentro de casa, debaixo de escada ou em outro recanto, acumulando matéria” (FREYRE,
2005:550). Assim, quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada; chegavam
a estourar de tão cheios, e às vezes “largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador
da cabeça aos pés” (Ibidem, 2005:550).
É importante esclarecer que Freyre fala sobre uma distinção entre a escravatura que
fazia um trabalho grosso e a escravatura que fazia um trabalho doméstico.
Em outras palavras, havia uma hierarquia na escravatura, da qual a parte aristocrática
era composta pelos escravos de serviço doméstico e mesmo entre estes, havia, porém,
distinções marcadas por status.
Dentro da típica casa-grande brasileira, de engenho ou de fazenda e sobrado, havia
uma variedade de tipos de escravos com funções pré-estabelecidas:
Desde as mucamas arrumadeiras, mulatas bonitas e dengosas, que
levavam aos quartos as grandes bacias de cobre e os largos jarros de
água quente e fria para as abluções da manhã, até os copeiros que
serviam a mesa e os molequinhos cuja missão era conservar brasas
acesas para os cigarros e charutos. (FREYRE, 2005:567).
Freyre argumenta que a quantidade de escravos era tanta, que não era só nas casas-
grandes de fazenda que os negros, os moleques e as crias se acotovelavam dentro de casa.
Curiosamente, a cozinha do sobrado ficava no sexto andar e a senzala no térreo, fazendo com
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que os escravos tivessem que subir vários lances de escada. Na cozinha, por exemplo, onde
Freyre afirma ser enorme a movimentação, cada mulher tinha a sua função bem clara,
algumas preparavam doces finos, havia uma outra que se dedicava apenas ao preparo do arroz
e assim por diante.
É importante também, não esquecer das mucamas escolhidas para damas de
companhia das sinhás e sinhás-moças, da mãe-preta, das pajens, cujas funções eram ainda
mais importantes e que eram tratadas quase como pessoas da família.
Portanto, “na hierarquia da escravatura brasileira das grandes fazendas ou engenhos, o
status do escravo ia desde o de quase pessoa da família ao quase animal ou quase bicho”
(FREYRE, 2005:568). Freyre menciona que os próprios jornais da época preocupavam-se em
distinguir em anúncios a cabra-escrava da cabra-animal.
Havia também, a prostituição das negras, negras e mulatas exploradas pelos brancos;
situação em que as senhoras participavam ativamente e “enfeitavam as molecas de correntes
de ouro, pulseiras, anéis e rendas finas, participando depois dos proventos do dia” (FREYRE,
2005:537). Os negros chamados “negros de ganho” serviram para tudo: “vender azeite-de-
carrapato, bolo, cuscuz, manga, banana, carregar fardos, transportar água do chafariz às casas
dos pobres - trazendo de tarde os proventos para o senhor...” (FREYRE, 2005:537).
O escravo de casa e o escravo da rua ocupavam posições diferentes: o de casa ficava
em contato com os brancos dos sobrados, em alguns momentos, como se fosse pessoa da
família, enquanto que o escravo da rua era tratado com distância, longe de ser pessoa da casa,
pois eram indivíduos “expostos aos contatos degradantes da rua” (FREYRE, 1961:48). Os
anúncios da época indicavam a profunda diferenciação que se estabelecia entre estas duas
categorias de escravos. Um exemplo é este do Diário do Rio de Janeiro de 28 de janeiro de
1821, citado por Freyre: “Vende-se huma preta de bons costumes, muito ágil para todo o
serviço de huma casa, tem 16 annos de idade e sempre tem sido criada sem sahir a rua”
(FREYRE, 1961:47).
Desta maneira, até na segunda metade do século XIX, em que já havia as ruas de luxo
e das modas francesas, a casa não deixava de ser casa e a rua não deixava de ser rua: dois
inimigos.
Assim, os sobrados davam de frente para as ruas sujas, ladeiras imundas, por onde só
passavam a pé “negros de ganhos”, moleques empinando seus papagaios, prostitutas, e com
isto, “menino de sobrado que brincasse na rua corria o risco de degradar-se em moleque”
(FREYRE, 1961:152).
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Na frente das procissões tinha a presença do papa-angu, que era alguém que Freyre
descreve utilizando uma espécie de saco por cima do corpo, dois buracos à altura dos olhos e
chicote na mão, e para completar a cena, Freyre ainda afirma que os moleques ficavam
atirando pitombas (fruto arredondado e pequeno, característico em Pernambuco, Paraíba e
Recife) nesta figura tão hedionda.
Em meio a tudo isto, às vezes ainda havia, negro navalhado e “muleque com os
intestinos de fora, que uma rede branca vinha buscar...” (FREYRE, 1961:43); as redes
vermelhas eram para os feridos e as brancas para os mortos.
As procissões com banda de música eram um ponto de encontro dos capoeiras, que era
um negro ou mulato típico de cidade que correspondia ao capanga de engenho. O forte do
capoeira era a navalha ou faca de ponta e também “sua gabolice, a do pixaim penteado em
trunfa, a da sandália na ponta do pé quase de dançarino e a do modo desengonçado de andar”
(FREYRE, 1961:44). E, além disso, a capoeiragem incluía uma série de passos difíceis e de
agilidades extraordinárias do corpo, nas quais “o malandro de rua se iniciava como que
maçonicamente” (Ibidem, 1961:44).
II. 3 Gilberto Freyre na visão de Benzaquen
Como é sabido, a idéia (questionável) de que no Brasil existe uma democracia racial
foi elaborada no século XIX e certamente, tal idéia contou com a colaboração de sociólogos
como Gilberto Freyre. Contudo, é importante entender como se deu a questão do problema
racial no momento em que Freyre escreveu Casa-grande e Senzala. De acordo com
Benzaquen, na década de trinta, momento em que Freyre escreve Casa-grande e Senzala, essa
questão estava sob o predomínio de duas posições:
Uma delas era aquela que incorporava argumentos sobre o Brasil levantados por
Agassiz e Gobineau, viajantes que vieram ao Brasil no século XIX. Estes autores acreditavam
que a miscigenação, ao propiciar o cruzamento entre raças diferentes, levava à esterilidade
biológica e cultural, ou seja, há uma idéia de degeneração. A segunda posição, também parte
da miscigenação, mas acreditando no branqueamento enquanto solução. Como se vê, as duas
posições apresentam idéias negativas em relação à miscigenação. No caso da segunda
posição, ela só é um pouco mais branda porque não concebe a miscigenação como algo que
pode derrocar o Brasil, como é o caso da primeira posição.
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O autor acrescenta que “Isso tudo só se torna possível porque a mestiçagem passa
a ser considerada como envolvida em um processo de branqueamento, processo que [...] dá a
impressão de entender quase como uma solução tipicamente brasileira para o problema da
miscigenação, pelo qual se poderia assegurar um gradual predomínio dos caracteres brancos
sobre os negros no interior do corpo e do espírito de cada mulato” (BENZAQUEN, 1994:27).
As duas versões sobre a noção de raça possuem como argumento central a
superioridade da raça branca. Em outras palavras, não havia uma diferença significativa entre
uma posição e outra.
Benzaquen aponta para um trecho de Casa-grande e Senzala, que expõe claramente
a posição racista de Freyre.
Vi uma vez, depois de quase três anos maciços de ausência do
Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos -
descendo não me lembro se do São Paulo ou de Minas pela neve
mole do Brooklin. Deram-me a impressão de caricaturas de homens.
E veio-me à lembrança a frase de um viajante inglês ou americano
que acabara de ler sobre o Brasil: ‘the fearfully mongrel aspect of
the population’. A miscigenação resultava naquilo (FREYRE, 2001:
XII).
A postura de Freyre está mais próxima daquela primeira posição mais conservadora e
radical, que tinha como principio desqualificar a mestiçagem, como ficou claro quando Freyre
se referiu aos marinheiros enquanto caricaturas de homens, além disso, a própria lembrança
da frase “the fearfully mongrel aspect of the population” do viajante (inglês ou americano), já
diz algo, sobre qual era a postura de Freyre em relação a este aspecto. Benzaquen constata que
Freyre não fazia parte nem daquela segunda versão, que embora tremendamente racista, pelo
menos valorizava a mestiçagem, desde que ela redundasse no branqueamento do país. Assim,
a postura de Freyre após esta admissão de racismo está mais próxima da primeira versão,
aquela que via a miscigenação enquanto uma degeneração.
Benzaquen salienta que ao reconhecer o valor da extensão da influência dos negros e
dos índios, a reflexão desenvolvida por Freyre acaba difundindo a idéia de uma identidade
coletiva. Contudo essa reflexão aparentemente também continha um segundo significado
responsável direto pela mais dura e freqüente crítica que a obra de Gilberto Freyre e Casa-
Grande e Senzala em especial, costumam receber. Ela se refere ao fato de que, no mesmo
movimento em que se afasta do racismo e admite a relevância de outras culturas, Freyre teria
criado uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial, “ocultando a exploração, os
80
conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente implica atrás de uma
fantasiosa ‘democracia racial’, na qual senhores e escravos se confraternizariam embalados
por um clima de extrema intimidade e mútua cooperação” (BENZAQUEN, 1994:29).
Benzaquen aponta para uma outra crítica, que sustenta que Freyre abandonou a
utilização da idéia de raça e não separou o seu emprego da de cultura. Aspecto apontado no
estudo de Benzaquen refere-se à seguinte questão: em que medida o poder de adaptação da
identidade mista lusitana se confundiria com a freqüente afirmação da existência de um
suposto “paraíso tropical” freyriano? Ao destrinchar a expressão “luxo de antagonismos”,
mencionando diversas passagens de extrema violência no universo da casa-grande, ele
confirma a viabilidade de um ambiente que envolveria heterogeneidade, proximidade,
despotismo e confraternização.
A possibilidade de convivência de situações tão desiguais está presente na constante
utilização de Freyre da idéia de excesso, que Benzaquen demonstra por meio da noção grega
de hybris. Sua fonte inicial, a natureza tropical, com seus vermes e sua carência alimentar,
associada à antiga miscibilidade portuguesa e à escassez de mulheres brancas, engendrando
um paradoxal ambiente de “intoxicação sexual” no interior da casa-grande. O conceito de
hybris reforça a dimensão cultural, por meio dos efeitos perversos da sifilização na
poligâmica sociedade patriarcal, sem deixar de enfatizar um quadro de proximidade e
intimidade.
Conclui-se que o “mito freyriano da democracia racial” não elimina as desigualdades e
a violência existentes no universo da casa-grande e senzala. No entanto, este ambiente não
impede um intenso convívio étnico.
Benzaquen sugere em seu trabalho a idealização de um quadro com muitas facetas e
vários aspectos presentes no universo da casa-grande e senzala é um elogio à diversidade
étnica que não se mistura sem a chancela da hierarquização. Isso não significa, como o
próprio autor faz ver de modo recorrente, apagar uma das principais marcas de Freyre: a
ambigüidade. Talvez seja esta ambigüidade que faça com que a sociedade brasileira acredite
na existência de uma democracia racial como utopia recheada por algumas evidências
cotidianas e, ao mesmo tempo, reconheça a realidade das práticas racistas.
Uma outra observação de Benzaquen em relação a Freyre diz respeito à utilização
em Casa-Grande e Senzala de um vocabulário carregado pela consagração a biologia,
compatível com o determinismo racial do século XIX, ambíguo em relação à consagração da
diversidade cultural que ele enfatizou.
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As observações sobre Freyre delinear em Casa-Grande e Senzala, por meio do
elogio a miscigenação, um universo suave, adocicado e, por conseguinte mistificador de nosso
passado colonial é verdadeiramente bastante comum. Benzaquen enfrenta esta discussão
concentrando-se nos “antecedentes e predisposições” do colonizador português, destacados
por Freyre. Para Benzaquen, este caminho permite um entendimento mais complexo e
nuançado da noção de mestiçagem empregada por Freyre. Contudo, ele explica que essa
noção não é aqui aplicada somente ao fruto de intercâmbio entre as diversas raças que
povoaram o Brasil, como nos habituamos a imaginar. Ao contrário, “em um deslocamento
quase surpreendente, ela é destinada, sobretudo ao próprio português, que perde a sua
identidade de branco ‘puro’, passando então a ser encarado como um ‘personagem híbrido’,
resultado de um amálgama iniciado antes, muito antes do seu desembarque no continente
americano” (BENZAQUEN, 1994:40).
Isto se dá antes de qualquer coisa, pela mera localização geográfica de Portugal,
situado em uma das fronteiras da Europa, rota de passagem para África e, portanto cenário
natural de um enorme número de intercâmbios culturais que iriam caracterizar os seus
habitantes. Neste sentido, Freyre oferece uma descrição dos movimentos dos mais diversos
povos, desde a pré-histórica até a ocupação moura, que converteram a Península Ibérica, e em
especial sua face lusitana em um local de intensos encontros, capazes de produzir mútuas e
duradouras influências. Essa concepção envolve uma compreensão da mestiçagem como um
processo no qual as propriedades singulares de cada um desses povos não se dissolveriam
para dar lugar a uma nova figura, dotada de perfil próprio, síntese das diversas características
que teriam se fundido na sua composição.
Desta maneira, ao contrário do que sucederia em uma percepção
essencialmente cromática da miscigenação na qual, por exemplo, a
mistura do azul com o amarelo sempre resulta no verde, temos a
afirmação do mestiço como alguém que guarda a indelével
lembrança das diferenças presentes na sua gestação (BENZAQUEN,
1994:41).
Freyre define o português - e mais adiante o brasileiro – em função de um “luxo de
antagonismos” que, embora equilibrados, recusam-se a se desfazer e a se reunir em entidade
separada, original e indivisível. Esta recusa vai garantir o privilégio de uma imagem da
sociedade extremamente híbrida, sincrética e quase polifônica, uma sociedade indefinida entre
a Europa e a África.
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Diferença, hibridismo, ambigüidade e indefinição: parecem ser estas as principais
conseqüências da idéia de miscigenação utilizada em Casa-Grande e Senzala e destacadas por
Benzaquen:
[...] essas características não importam de maneira nenhuma em
qualquer diminuição ou perda para Portugal. Muito pelo contrário, é
exatamente aí, nessa índole flexível e até ‘vulcânica’, inteiramente
despida de compromissos com a coerência e a rigidez, que Freyre
vai localizar a maior virtude do português, responsável inclusive
pelo sucesso do processo de colonização desencadeado por ele no
início dos tempos modernos (BENZAQUEN, 1994:43).
Para Freyre, Portugal só teve condições de empreender uma expansão ultramarina na
escala e na dimensão que conhecemos graças à ilimitada mobilidade, miscibilidade e
aclimatabilidade dos seus habitantes.
Deslocando-se com rapidez, deitando-se com qualquer raça e
aceitando todos os climas, o português realiza a proeza de não só se
multiplicar e assegurar a sua presença nas mais longínquas regiões
do planeta, mas também a de fazê-lo através de um tipo singular de
colonização, baseada em um íntimo contato com as terras e os povos
por eles conquistados [...] (Ibidem 1994:43).
Benzaquen explica que é por esta razão que a mobilidade, a miscibilidade e a
aclimatabilidade, depois de sintetizadas por Freyre na idéia de plasticidade, transformaram-se
em categorias centrais de sua análise em Casa-Grande e Senzala. Benzaquen inicia uma outra
discussão importante, que é questão do despotismo e da dimensão opressiva da escravidão
portuguesa, presentes na sociedade patriarcal, observando que da mesma maneira que
encontramos em Casa-Grande e Senzala um vigoroso elogio de confraternização entre negros
e brancos, também é perfeitamente possível descobrirmos lá numerosas passagens que tornam
explícito o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata, violência que chega
a alcançar os parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente endereçada aos
escravos.
Ele faz uma observação sobre o prefácio de Casa-Grande e Senzala em que há uma
passagem que Freyre cita a morte de escravas grávidas queimadas vivas, para ilustrar o grau
de violência presente naquele ambiente, nos lembrando que em Casa-Grande e Senzala
apesar da mestiçagem, da tolerância e da flexibilidade, “o inferno parecia conviver muito bem
com o paraíso [...]” (Ibidem 1994:46).
83
Para entender melhor o modo pelo qual “a intimidade e distância”, o “céu e o
inferno” (Ibidem 1994:46), conseguem se relacionar em Casa-Grande e Senzala, o autor faz
uma referência à tradição grega que influenciou a reflexão ocidental sobre a questão da
escravidão no que diz respeito às idéias de violência. Na análise do modelo clássico,
representado, nota-se que a noção de violência se confunde com a de despotismo.
“Cria-se, desta forma, uma atmosfera de verdadeiro e generalizado terror, ancorado,
sobretudo, na própria orientação despótica do sistema escravocrata em vigor” (Ibidem
1994:50).
Contudo, Benzaquen esclarece que Casa-grande e Senzala dá impressão de ter sido
escrito para “acentuar a extrema heterogeneidade que caracterizaria a colonização
portuguesa, ressaltando basicamente a ativa contribuição de diversos e antagônicos grupos
sociais na montagem da sociedade brasileira” (Ibidem 1994:51).
Neste caso, Benzaquen reconhece que existem divergências em relação ao modelo
grego, uma delas é o fato de que os escravos acabavam sendo incorporados ao lar, sem que
isto envolvesse obrigatoriamente algum abrandamento da opressão que estavam submetidos.
E isto se dá até mesmo porque havia os filhos bastardos do senhor de engenho, que
em alguns momentos, surgia o sentimento cristão de “amor aos bastardos”, que terminavam
inclusive sendo contemplados em testamento. Neste caso, Benzaquen chama a atenção para
uma das categorias que recebem destaque em Casa-Grande e Senzala, a do patriarcalismo.
“Esta categoria nos remete ao ideal de uma família extensa, híbrida e – um pouco
como no velho testamento - poligâmica, na qual senhoras e escravas, herdeiros legítimos e
ilegítimos convivem sob a luz ambígua da intimidade, da violência, da disponibilidade e da
confraternização” (Ibidem 1994:51).
Ao pensar o escravo a partir da sua incorporação ao lar senhorial ou à casa-grande,
ele chama a atenção para a presença do modelo cristão que se manifesta na confraternização
em Casa-grande e Senzala.
Benzaquen explica que enquanto a tradição cristã tentava assegurar pela proximidade
o controle espiritual, a conversão do escravo, Freyre tratou essa questão de maneira distinta.
Para ele, o que importa é o estabelecimento de uma ampla troca de
experiência, na qual, aliás, a participação da senzala é tão ou mais
ativa quanto à da casa-grande, não só espalhando-se pela comida,
pela língua, pelo folclore, pela higiene, pelo sexo e por inúmeras
outras práticas e instituições, como também dando origem a uma
experiência social marcadamente aberta, capaz de aproximar
84
antagônicas influências culturais, sem, contudo, procurar fundi-las
em uma síntese mais totalizante (Ibidem 1994:53).
Ele explica que foi possível observar no texto de Freyre a existência de uma
concepção de despotismo que, no sentido rigoroso do termo, pode até ser comparada com
aquela que predominava na antiguidade clássica. Esta revelação, entretanto, não reúne
condições de resolver totalmente o problema, visto que, paralelamente, pode-se discernir
também uma intimidade e uma inclusão do escravo na casa-grande que parece absolutamente
estranha aos hábitos gregos, e bem mais próxima dos costumes cristãos. Benzaquen explica
que estamos diante de uma reflexão que combina fragmentos das duas tradições de maior
relevo na condução do tema da escravidão com argumentos próprios, dando origem a uma
peculiar imagem da sociedade, ou melhor, a uma visão do relacionamento entre grupos sociais
opostos tão híbrida e plástica, quanto aquele que norteava a discussão sobre miscigenação.
Este hibridismo deve ser compreendido no sentido específico que Freyre utiliza quando define
Portugal.
Para Benzaquen, o argumento de Freyre, fundado em um relativo louvor da
ambigüidade, da particularidade, é mais do que uma característica isolada em seu raciocínio,
sendo um ponto central, decisivo de sua reflexão.
Esta interpretação de Freyre, que realça a heterogeneidade constitutiva da casa-
grande, fornece muitas explicações sobre os motivos que permitem a manutenção, apesar
dessa heterogeneidade, daquela proximidade e confraternização. É importante destacar que
esta proximidade não pode ser debitada à ausência de despotismo.
A questão é explicar o por que os antagonismos em equilíbrio não chegam a se
romper. Benzaquen responde a esta pergunta, dirigindo o olhar para a idéia de trópico,
ressaltado por Freyre em Casa-grande e Senzala, chamando a atenção para a noção de clima
irregular, com seus rios de difícil navegação, pelo desequilíbrio, e, sobretudo, por uma idéia
de excesso. Deste modo, o trópico envolve excesso. “[...] trópico implica excesso [...]
transformando de certa forma condições físicas e geográficas em culturais [...]” (Ibidem
1994:56).
Benzaquen ressalta que uma das modalidades da hybris é o excesso de natureza
sexual, que pode ser apontado como o maior responsável por aquela atmosfera de intimidade
e calor que, entrelaçado ao despotismo, que caracterizava as relações entre senhores e
escravos em Casa-Grande e Senzala. Um outro aspecto diz respeito ao fato de ao invés da
caridade, do rigor e da serenidade que orientavam o modelo cristão, existe o predomínio da
85
irracionalidade e do furor típicos da paixão, convertendo a casa-grande e sua patriarcal
família em um cenário de rivalidades e desejos.
Para ele, Casa-grande e Senzala “pretende reunir elementos antagônicos sem se
preocupar com sua síntese ou seguir com o estabelecimento de alguma mediação entre eles”
(Ibidem 1994:58).
Ele chama atenção para o fato de que a vantagem da miscigenação apontada por
Freyre também inclui sua desvantagem, que foi a sifilização, doença apontada por Freyre
como exclusiva da relação entre a casa-grande e a senzala, cuja introdução no país foi de
única e exclusiva responsabilidade dos europeus, ponto ressaltado por Freyre.
Um outro aspecto importante destacado por Benzaquen diz respeito a uma
contradição existente na questão da religião em Casa-grande e Senzala.
Este contra-senso apontado por Benzaquen está no fato de em Casa-grande e
Senzala existir uma ênfase a um comportamento muito distante dos valores consagrados no
dogma cristão, algo mais próximo de um catolicismo que promove um culto a um Cristo
peculiar, “um Cristo mais ou menos dionisíaco” (Ibidem 1994:78).
“Basta lembrar, por exemplo, o papel crucial desempenhado por alguns dos assim
chamados ‘pecados capitais’, como a luxúria, a gula e mesmo a preguiça na definição do
estilo espiritual da casa-grande” (Ibidem 1994:71).
Para Benzaquen a explicação Weberiana sobre o caráter mais tolerante do
catolicismo – quando comparado com o puritanismo - em relação ao pecado, posto que ele
dispõe de instrumentos, como a confissão e a penitência, capazes de redimi-lo, é insuficiente
para abarcar esta questão. O que Benzaquen percebe é que na forma pela qual Freyre enfrenta
o tema da religião existe um esforço em incluir o pecado como parte integrante da experiência
cristã, como algo fundamental.
Ele sugere que alguns pecados, sobretudo a luxúria, parecem se revestir em casa-
grande de um significado eminentemente positivo, convertendo-se praticamente em uma
virtude e tornando-se, então, parcela constitutiva e rigorosamente legítima do credo católico
da casa-grande.
Ele explica a existência desse catolicismo pouco ortodoxo, inclinado à festa e ao
sexo por meio da análise da relação de Freyre com os franciscanos. Neste caso, esta
predileção de Freyre pelos franciscanos em detrimento dos jesuítas leva a uma vocação
antiascética, animada pela mestiçagem e pela hybris em seu raciocínio.
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[...] Como os frades preferidos do nosso autor estão longe de
renegar o dogma do pecado original, transformando o sexo em uma
fonte de genuína intimidade cristã, esta recordação acaba por revelar
incapaz de dar conta inteiramente daquele singular e semi-herética
versão do catolicismo que, ao meu juízo, habitava a casa-grande
(BENZAQUEN, 1994:75).
Uma outra explicação dada por Benzaquen a esta questão diz respeito, às múltiplas
influências sofridas pelo cristianismo português. Influências provenientes dos vários povos
que participaram do processo de miscigenação. Benzaquen salienta que tanto o aspecto que
envolve as influências dos franciscanos com as paixões da alma quanto o das muçulmanas
paixões da carne, embora diferentes e submetidos a ênfases bastante dessemelhantes em
Casa-grande e Senzala vão desaguar em uma única concepção religiosa. Uma concepção
impregnada pela “vitalidade e pelo sexo, pela inclinação bélica, festiva e quase orgiástica
[...]” (BENZAQUEN, 1994:78).
Benzaquen questiona sobre o tipo de clero que apóia e veicula uma concepção como
esta. A explicação dada por Freyre em relação a esta questão esta no fato dos padres estarem
sob a tutela, física e moral dos senhores de engenho, ou seja, plenamente dominados,
portanto, por aquele “excessivo ethos senhorial [...]” (BENZAQUEN, 1994:78).
Segundo Benzaquen, isto se deu pelo próprio peso que a miscigenação adquiriu no
país, e por esta razão a Igreja foi forçada a aceitar a convivência com uma série de crenças e
práticas oriundas das populações nativas, sobretudo, dos muitos povos de origem africana que
para cá foram transportados produzindo um sincretismo religioso.
Ele também argumenta que essa prática religiosa parece ser algo ativo, pois ela não
tem como escapar de um íntimo envolvimento com as numerosas tensões provocadas pelos
antagonismos que povoam a casa-grande. Esses conflitos se manifestavam primordialmente
entre senhores e escravos, ou melhor, dizendo, era dirigido do senhor para o escravo, mas
alcançavam também outras relações, por exemplo, entre pais e filhos, e entre sinhá e
mucamas.
Contudo, o que importa ressaltar aqui é que Benzaquen reconhece que é inevitável
que a casa-grande siga por um caminho inverso àquele seguido por uma sociedade como a
norte-americana:
[...] se o pacto constitucional produzia cidadãos, a ausência dele irá
estimular o aparecimento de um mundo de senhores de engenho,
claro-composto apenas de soberanos, soberanos que desconheciam
qualquer regra e qualquer autoridade superior à sua, sentindo-se
87
desmedidamente livres tanto para impor despoticamente a sua
vontade quanto para aceitar até as mais incompatíveis influências,
de acordo com as suas conveniências (Ibidem 1994: 98, 99).
Neste sentido, é perfeitamente compreensível que a excessiva conveniência
senhorial, ao contrário da severa e autocontrolada obsessão puritana com o predomínio de
uma norma ética, consiga apenas equilibrar e aproximar, mas nunca mediar ou dissolver os
muitos antagonismos que atravessam Casa-grande e Senzala.
Em Sobrados e Mucambos, Freyre faz uma análise da decadência do patriarcalismo,
ou seja, decadência do sistema escravocrata e do predomínio agrário. Contudo, é importante
esclarecer que não estamos falando que com esta decadência houve uma mudança de
mentalidade. Benzaquen chama atenção para um aspecto importante em Freyre que é o fato da
passagem do tempo começar a aparecer em Sobrados e Mucambos por meio das modificações
sofridas pela arquitetura e pelas formas de sociabilidade doméstica da cultura brasileira.
Com a transferência da família real para o Brasil, a invasão holandesa, a descoberta
do ouro e das pedras preciosas em Minas Gerais, tudo isso, acaba produzindo uma certa
urbanização, gerando negociantes. Freyre ressalta que no inicio da colonização agrária do
Brasil havia uma certa negligência por parte dos senhores de engenho em relação ao
pagamento de financiamentos de suas lavouras com a Coroa. Com a vinda de Dom João ao
Brasil, houve uma diminuição dessas facilidades e uma conseqüente implantação de
instrumentos de crédito regulares e impessoais, como é o caso do Banco do Brasil.
Foi o fim “daquelas ternuras d’el Rei com os devedores sempre em atraso”
(FREYRE, 1961:38).
Todavia, Benzaquen percebe que “é preciso uma certa dose de cautela diante dessa
pilha de evidências do declínio senhorial [...]” (BENZAQUEN, 1994:111).
Para Benzaquen isto não significa dizer que devemos desconfiar da extensão e da
profundidade dessas transformações; o problema é que aos poucos Freyre vai chamando a
atenção para a resistência de alguns componentes da tradição colonial que acabam tornando
relativas àquelas alterações. Neste ponto parece que Benzaquen não compreende que a
intenção de Freyre era a de chamar a atenção para o ethos, a mentalidade. Mas ele percebe
que dentre esses componentes apontados por Freyre nesta resistência em manter padrões
patriarcais, um deles é a conservação do elemento decorativo de nobreza, ou seja, a mania de
fidalguia, que acaba sendo transferida para o desejo do mercador ou do que Benzaquen
88
chamou de “pequena burguesia” bem sucedida nos negócios, que acabava querendo imitar
o modo de vida da nobreza.
Um outro ponto ressaltado por Benzaquen que diz respeito às diferenças entre Casa-
grande e Senzala e Sobrados e Mucambos em relação ao tema da sexualidade. Ele explica que
a falta de referências ao sexo e, sobretudo ao seu excesso no interior dos sobrados em
Sobrados e Mucambos não significa necessariamente, que o “processo civilizador que vimos
resenhando tivesse imposto um severo voto de castidade aos herdeiros daqueles
‘intoxicados’portugueses focalizados em CGS” (BENZAQUEN, 1994:115).
Segundo ele, o que ocorreu neste caso que, com a constante liberação dos escravos,
foi diminuindo aquela coisificação do escravo por parte do senhor, no sentido usa-los
enquanto objetos sexuais. Deste modo, esse processo foi acompanhado por um certo
abrandamento e, com a urbanização, a solução encontrada para a queda das “orgias
patriarcais” (BENZAQUEN, 1994:115) foi a sua transferência para áreas de prostituição,
tema ao qual Freyre se dedica analisando a zona de meretrício inaugurada em Recife, pelos
holandeses.
“[...] a prostituição complementa e comprova a tese que sustenta que o sexo nos
sobrados havia se transformado em uma experiência bem mais tranqüila e temperada que nas
casas-grandes” (BENZAQUEN, 1994:116).
Como se vê houve um afastamento tanto da escravidão, quanto do campo e até das
relações poligâmicas, mas não houve um afastamento do que Benzaquen chama de hybris.
Contudo, a versão urbana do patriarcalismo ainda carrega uma carga de despotismo e
também carrega uma certa mentalidade da versão anterior, é certo que com algumas
modificações. Tais modificações são apontadas por Benzaquen no velho antagonismo
apontado por Freyre entre pais e filhos que se dá em “[...] uma situação de ruptura, na qual os
filhos acalentam projetos – intelectuais, urbanos e cosmopolitas – absolutamente opostos aos
dos pais” (BENZAQUEN, 1994:121).
Ele explica que o total abandono daquele “dionisíaco ambiente” (BENZAQUEN,
1994:121), que caracterizava o patriarcalismo colonial, tem seu ápice com o aparecimento do
bacharel, os “antigos alunos dos jesuítas” (Ibidem, 1994:121). Nesta perspectiva, ocorre uma
troca de idéias, troca-se o ideal do patriarcalismo colonial pelo “ideal de comedimento, de
cultivo espiritual e de vida de gabinete” (Ibidem, 1994:121). Tudo isso, na opinião de
Benzaquen, acaba se convertendo em um “[...] novo golpe na autoridade patriarcal, diminuída
89
e desafiada então a partir do seu próprio interior, com a adoção, justamente por aqueles que
seriam os seus herdeiros, de uma visão de mundo que repudia a sua [...]” (Ibidem, 1994:122).
Esse novo formato nas relações domésticas de poder afiança ao bacharel primordial
acesso aos cargos políticos, confirmando uma mudança que Freyre, segundo Benzaquen, mal
explica em Sobrados e Mucambos, mas que, mesmo assim, meio oculta na obra de Freyre,
parece desempenhar um importante papel em sua reflexão, pois diz respeito ao surgimento de
uma nova aristocracia de sobrado, um pouco diferente da comercial, uma ascensão dos filhos
doutores.
Na síntese feita por Benzaquen desse processo destaca-se que a partir de
modificações na economia engendrada pelo crescimento do comércio e a urbanização,
paralelamente a queda da escravatura, ainda existe um avanço de um processo civilizador.
Um outro aspecto importante destacado por Freyre em Sobrados e Mucambos e
analisado por Benzaquen, diz respeito a este declínio e sua relação com a distancia social no
universo dos sobrados, pois, na medida em que a queda vai acontecendo, também vão se
acentuando as distâncias entre brancos e negros, entre sobrados e mucambos. Para
Benzaquen, estas distâncias sociais começam a se acentuar na medida em que a casa-grande
em contato com a rua vai ficando menor, reivindicando menos espaço físico, só que aí
também os antagonismos entre ricos e pobres vão aumentando na mesma proporção.
[...] Distâncias que são ressaltadas de tal forma que acabam por
dividir aquela híbrida, sincrética sociedade analisada em CGS em
duas ‘metades antagônicas’ [...]. Confirma-se desse modo, aquela
sugestão que indicava que os sobrados, quanto menos patriarcais,
mais excludentes iriam se tornar, conformando isto um tipo bem
mais convencional de dominação aristocrática, fundada na diferença,
mas também, e, sobretudo, no afastamento (Ibidem, 1994:130).
Benzaquen vê nessa abertura de relacionamento entre sobrado e rua uma forte
característica do momento analisado em Sobrados e Mucambos, que é a aglomeração de
residências da classe dominante próximas umas das outras, e ao mesmo tempo, todas elas
próximas das igrejas e dos teatros, criando um “conjunto aristocrático altamente defendido e
coeso, enquanto os mocambos, gradualmente expulsos para zonas cada vez mais longínquas e
insalubres, dão também a impressão de constituir-se – no limite- uma cultura inteiramente
separada [...]” (Ibidem, 1994:130). Essa metade dominante passa por uma reeuropeização
substituindo aquela paisagem social, observada por Freyre em Casa-Grande e Senzala,
apresentando fortes tendências orientais (asiático, africano, indígena) por uma roupagem
90
européia. A presença oriental se manifestava no excesso de cor (nas casas, roupas) e foi
substituída pelo preto e cinza. Freyre critica a postura da aristocracia dos sobrados em
incorporar a reeuropeização enquanto um modelo e não somente enquanto uma contribuição
entre outras. Tal critica é dirigida à “[...] tendência à estetização da existência [...]” (Ibidem,
1994:130). Benzaquen explica que a prática dessa estetização é analisada em Sobrados e
Mucambos sob um duplo aspecto:
O primeiro aspecto está na ênfase da obsessão com as aparências e, é claro que tal
ênfase é acentuada no comportamento da aristocracia. Esta obsessão transforma a sociedade
em um “verdadeiro teatro, onde cada ator é também espectador, e todos se esforçam por
demonstrar sua perfeita adequação àqueles modelos importados” (Ibidem, 1994:134). Já o
segundo aspecto está relacionado à importância do que o outro vai pensar, exprimindo-se em
um processo de reocidentalização com o predomínio de um modo de vida pautado no “viver
nos olhos dos outros”, explica Benzaquen citando Freyre (Ibidem, 1994:134).
Uma outra dimensão dessa reeuropeização está na formalização e artificialismo que
se manifestam na busca por uma ruptura com as irregularidades na composição de jardins nos
sobrados, adotando canteiros geométricos, demonstrando a presença de um domínio do
artificialismo na vida privada. Além disso, existe o predomínio da retórica ajudando a formar
um quadro em que “boa parte das atividades públicas se subordinava tamm ao império da
estilização” (Ibidem, 1994:137). Deste modo, política, justiça, imprensa e universo literário
possuindo, naquele período, uma inclinação para a oratória. A difusão dessa predileção pela
retórica se deu por meio do ensino religioso. Neste caso, o que acaba acontecendo é que “por
intermédio da oratória, particularmente da dos bacharéis, a hybris termina por assegurar uma
certa presença nesse moderno, cosmopolita e civilizado Brasil imperial, inclusive depois do
término do patriarcalismo e da ocupação dos sobrados por uma nova aristocracia [...]”
(Ibidem, 1994:137). Trata-se então, de uma erudição oca, desprovida de conteúdo e
entrelaçada pela “retórica, mas mesmo assim indispensável, ao menos como marca de
prestígio e distinção [...]” (Ibidem, 1994:140), e nesta perspectiva a “[...] educação superior, o
grau e anel de doutor, notadamente quando obtidos na Europa, começam finalmente a superar
tanto a velha quanto à nova riqueza, a fundiária e a mercantil, como símbolo de instrumento
de poder” (Ibidem, 1994:141). Contudo, esse processo todo, que tem como pano de fundo a
reeuropeização, não foi o bastante para permitir que as carreiras, sobretudo, a carreira política,
fossem completamente abertas ao talento, ou seja, neutras. Em outras palavras, “ainda era
imprescindível a sua união quer com o nome quer com a riqueza, em uma aliança que
91
obviamente limita e qualifica o processo civilizador [...]” (Ibidem, 1994:142). Apesar da
ascensão pelo nome ou pela riqueza, o quadro é “extremamente intolerante e excludente”
(Ibidem, 1994:142), e segundo Benzaquen, provoca reações nos mulatos. Ele argumenta que
Freyre distinguiu dois tipos de reações:
Uma primeira que era o “[...] estímulo à cordialidade como instrumento de
integração social” (Ibidem, 1994:143) e a segunda que Freyre denominou como uma revolta
social. Em relação à cordialidade, Benzaquen esclarece que “essa ‘simpatia à brasileira’ a
brasileira se concretiza tanto no riso abundante, fácil, um riso já não servil como o do preto,
mas quando muito, obsequioso e, sobretudo criador de intimidade [...], quanto no uso do “[...]
diminutivo, outro criador de intimidade[...]”(Ibidem, 1994:143). Ainda embasando-se em
Freyre, Benzaquen argumenta que essa forma de encarar os preconceitos, utilizando
docilidade e reivindicando os vínculos criados pela intimidade, complementa, nos modos de
vida, o esforço de integração amparado pela retórica por meio da utilização de termos
difíceis, solenes.
Ele chama atenção para o tema do ressentimento em Freyre para evidenciar que a
alternativa da revolta, assim como, a da cordialidade dá a impressão de estar igualmente
marcada por uma adesão, ainda que mais ambígua, aos valores ocidentais que dominavam o
país naquele momento, mesmo que tal domínio tivesse um forte caráter preconceituoso e
excludente.
Para finalizar, Benzaquen alerta para um último tipo de mulato destacado por Freyre,
que contraria tais valores. Estes eram os mulatos saídos dos cortiços e mucambos
Benzaquen afirma que Freyre transmite a sensação de que a própria vocação
europeizante e excludente dos sobrados, afastando os mucambos para a periferia, teve um
lado positivo, permitindo uma resistência em relação a desafricanização. Porém, para ele, não
há somente uma resistência nesse aspecto, existindo, também um contra-ataque. Benzaquen
vê neste isolamento dos mucambos uma base para que os mulatos pobres protagonizassem um
outro tipo de ascensão social em reação ao caráter fechado e estetizante dos sobrados.
Contudo, o que é importante ressaltar nessa reação é que ela é “nada ressentida, ela
importava, isto sim, em uma afirmação dos valores negros postos em segundo plano durante o
século XIX” (Ibidem, 1994:146).
Benzaquen faz uma critica a Freyre, argumentando que no final de Sobrados e
Mucambos, existe um clima de confraternização entre negros e brancos, parecendo
encaminhar tudo para “um bem-vindo final feliz” (Ibidem, 1994:147).
92
O problema para Benzaquen está no fato de que mesmo, os mocambos terem sido
mencionados por Freyre algumas vezes, não se encontra nenhuma referência à sua
sociabilidade.
De fato, Gilberto não fornece nenhuma informação acerca da
maneira pela qual essas tradições africanas, no que diz respeito a
comida, ao uso das cores e ao culto de orixás, por exemplo, foram
concretamente preservadas, nem muito menos sobre como foi
possível que elas, de repente, ultrapassassem aquela barreira de
civilidade e preconceito e se mostrassem ativas e influentes dentro
dos sobrados (Ibidem, 1994:147).
93
CAPÍTULO III
Três filmes e algumas inquietações
O cinema pode ser uma importante ferramenta para averiguarmos elementos que
podem compor o imaginário social em algumas situações especificas, e por isto é relevante
dirigirmos o olhar para a reflexão sociológica e antropológica que algumas produções
sugerem. Este trabalho tem como proposta buscar em três produções cinematográficas
contemporâneas, produzidas no Brasil a partir dos anos 2000, formas de manifestações de
questões abordadas nos capítulos anteriores.
Busca-se pensar e dialogar com os elementos sociológicos sugeridos pelos filmes,
apreendendo seus eixos temáticos e conceituais enquanto objeto de reflexão crítica sobre a
sociedade por parte dos diretores ou roteiristas dos filmes.
O primeiro filme analisado é o Saneamento Básico (2007), cujo diretor e roteirista é
Jorge Furtado, que aborda a questão do chamado jeitinho brasileiro. O objetivo aqui é
observar como essa forma de conduta se manifesta, e mostrar a plasticidade e flexibilidade no
cotidiano.
O filme conta a história de um povoado de uma pequena cidade do interior do Rio
Grande do Sul, em que um grupo de moradores percebe a necessidade de se fazer uma obra de
saneamento básico, para livrar-se do mau cheiro de um arroio que incomoda seus habitantes.
Formada uma comissão para levar a reivindicação da construção de uma fossa às autoridades,
descobre-se que não há mais dinheiro disponível para saneamento básico no orçamento da
prefeitura. Porém, há uma verba de dez mil reais, já liberada, para a produção de um filme. O
interessante aqui é que se tal verba não for utilizada, será devolvida para Brasília, que é o
fator de indignação dos personagens em alguns trechos do filme.
Então surge a idéia de usar a quantia para realizar a obra e fazer um filme,
inicialmente sobre a própria obra. Porém a retirada da quantia está condicionada a
apresentação de um roteiro e de um projeto do filme, além de haver a exigência que ele seja
de ficção. Os moradores então se reúnem para elaborar um filme barato. Após alguns
episódios, chega-se a conclusão que o filme contará a história de um monstro que vive nas
obras de construção de uma fossa. É o jeitinho brasileiro sendo utilizado, nesse caso, em seu
lado positivo, que é a criatividade.
94
Há também uma funcionária da prefeitura que diz, mais de uma vez, que “pecado
é devolver dinheiro para Brasília” ou a fala de Marina (Fernanda Torres), ao saber das
condições da verba, que “devolver dinheiro é chato...” e mais uma vez a funcionária da
subprefeitura: “você já imaginou devolver dez mil reais para Brasília, isto não existe...”. Para
entender melhor estas passagens, penso ser importante inicialmente fazer uma descrição
sobre quais as formas em que se pode conceber a conduta do jeitinho brasileiro, sabendo que
no filme Saneamento Básico, estamos, primordialmente, tratando de uma flexibilidade e
plasticidade que se relaciona com a criatividade, embora o filme seja nuançado por outras
questões sociais não tão positivas.
O jeitinho também pode estar relacionado a uma solução criativa em alguma
emergência, que se manifesta ao burlar as regras e, em alguns momentos, pode se manifestar
sob a forma de aliança (em sua forma cordial) ou astúcia (buscando a malandragem). Em
suma, jeitinho é algo relacionado ao imprevisto, às contingências da vida e, por isto, busca-se
no jeito uma solução rápida para tratar o problema. Nem sempre a solução encontrada é uma
solução legal, embora não seja este o foco filme, que encontra uma solução legal para o
problema dos protagonistas. Contudo, é importante salientar aqui que o elo que temos com a
lei universal no Brasil está fundamentado em uma forma em que a lei existe, mas, ao mesmo
tempo, não existe. Isto significa dizer que a lei pode existir no papel, mas a prática social em
alguns momentos pode ser outra, diferente do que reza a lei no papel. Roberto Da Matta
argumenta que há um conflito entre leis (que valem para todos) e relações que funciona para
quem as tem, e conseqüentemente, existe uma divisão entre indivíduo que é o sujeito das leis
universais e a pessoa que é o sujeito das relações sociais. Para Da Matta, os crimes no Brasil,
por exemplo, admitem graus de execução, estando de acordo, com o princípio hierárquico que
governa a sociedade, e será essa possibilidade de gradação que permitirá a interferência das
relações pessoais. Em cada caso, existe uma espécie de curvatura que impede a aplicabilidade
da lei universal. Do ponto de vista prático constata-se que os indivíduos têm direitos, mas não
há garantia de usufruí-los, como é o caso do saneamento reivindicado pelos protagonistas do
filme. Em outras situações, os indivíduos não têm o direito, mas existe a certeza de que irão
usufruí-los, como é o caso do lado negativo do jeitinho, que se manifesta em sua forma de
favoritismo ao estar ligado a alguém acima na hierarquia. O duplo sentido nesta questão
reside em reconhecer o direito na forma para negá-lo no fato, e fazê-la valer na forma
patriarcal, forma em que a lei é o exercício pessoal do poder. Da Matta (1991), afirma que dar
um jeito é uma saída para situações que, em geral, não se quer ou não se pode enfrentar; é
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livrar-se de uma situação; é também, fechar os olhos para as situações que podem
prejudicar o indivíduo. Podemos perceber no filme também que ele nos faz pensar nas
dificuldades do país em sanar necessidades básicas de sobrevivência da população, como é o
caso do saneamento.
O elenco que compõe o filme conta com a participação dos atores Fernanda Torres,
Wagner Moura, Camila Pitanga, Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Paulo José, Janaina Kremer e
Tonico Pereira.
Antes de iniciar o filme há uma narração em off de Fernanda Torres (Marina) que
deixa claro a posição ativa de sua personagem na narrativa: ela convida todos a se sentarem,
acomodarem-se e depois pergunta se compensa esperar alguém que esteja atrasado ou se já se
pode dar início à sessão: “Pode sentar, tem cadeira ali sobrando, vai sentando gente...” ou
“chega mais perto, por favor...”. A personagem Marina é quem participa ativamente de toda a
organização do evento, desde a primeira cena do filme ou até mesmo antes da primeira cena
do filme, já que o diretor utiliza uma técnica de colocar a personagem falando em off antes de
iniciar o filme, que faz o expectador ter a sensação de que se está falando com ele próprio e
não só com os outros personagens.
A primeira cena do filme, que é a reunião da comissão para elaborar e enviar o pedido
da obra para a subprefeitura tem início com a leitura do texto que será enviado: “Disse o poeta
que a natureza é grande nas coisas grandes, e enorme, nas coisas pequenas, mas sabemos Sr.
Prefeito, que um pequeno arroio que corta uma pequena comunidade do município é apenas
um pequeno arroio, mas para nós moradores da comunidade da linha Cristal, da antiga linha
Margueira, o arroio Cristal é único”.
Após essa leitura temos a organização da comissão eleita para representar os
moradores: “A comissão eleita para representar os moradores será composta pelo Sr. Joaquim
Figueiredo, pela senhora Marina Margueira Figueiredo, ficando o Sr. Otaviano Margueira de
suplente”, diz Marina na ânsia de querer ver tudo organizado para a realização do evento.
“Eu acho que eu não vou poder ir”. “Eu já fui lá dez vezes e aquela cambada não quer
saber de nada, só de cafezinho e auxílio-paletó...”, diz Otaviano, recusando-se a acompanhar a
comissão a subprefeitura. A fala de Otaviano invoca um discurso que permeia o imaginário
social sobre as relações que se tem, enquanto cidadão, com os órgãos públicos no Brasil,
transmitindo o desencanto com o funcionamento desses órgãos, dando a impressão de que
tudo será demorado, de que não será atendido, de que o próprio funcionário público não
levará a frente seu pedido, sendo um pouco daquilo que Da Matta (1991) chama atenção,
96
sobre o fato de vivermos em uma sociedade em que “a lei sempre significa não pode” (DA
MATTA, 1991:99).
Na relação entre leis e práticas sociais estudadas por Da Matta constata-se que casa e
rua, na visão do autor, não são apenas espaços antagônicos, mas, antes de tudo, esferas de
ação social específica.
Quando digo que ‘casa’ e ‘rua’ são categorias sociológicas para os
brasileiros, estou afirmando que entre nós, estas palavras não
designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas
mensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação
social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais
institucionalizados [...] (DA MATTA, 1991:17).
Neste sentido, o universo da rua é o mundo exterior transpassado pela dura realidade
da vida, um mundo que é concebido como um mundo de luta, competição, individualidade,
simbolizando, também, o sombrio mundo onde ninguém se conhece, em outras palavras, a rua
é o verdadeiro lócus do anonimato, e neste caso é importante lembrar que o anonimato é o
horror do homem cordial.
Diferente do universo da rua, o da casa está ligado ao universo compartilhado com os
amigos, as pessoas que possuem as mesmas substâncias e tendências, e é também um lugar
onde se pode projetar a identidade social, sendo ainda, um espaço moral que se exprime em
uma rede de símbolos, “onde as pessoas são todas nossa gente” (DA MATTA, 1991:24).
Da Matta argumenta que universos da casa e da rua formam os espaços básicos por
onde circula nossa sociabilidade. A rua simboliza a impessoalidade, o universo frio das leis, a
crueza do anonimato, que é o oposto do que almeja o homem cordial, que reivindica a
intimidade nas relações, intimidade que Sérgio Buarque de Holanda disse ser um traço
específico do espírito brasileiro, manifestando-se em uma dedicação aos valores da
personalidade representada pelo lugar doméstico, ou seja, a casa. Assim, o homem cordial
personifica, a invasão do público pelo privado. Mas no que diz respeito ao filme Saneamento
Básico, a personagem Marina demonstra o lado positivo que pode se manifestar em meio a
essas práticas sociais que parecem fugir um pouco da impessoalidade das leis, pois a
personagem busca o tempo todo obter seu objetivo, que é o saneamento para sua cidade
enfrentando todos os meios legais e burocráticos. Por fim, após a reunião, acontece a visita à
subprefeitura. A protagonista Marina argumenta sobre as vantagens e necessidades em relação
à execução da obra:
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“No verão fica um cheiro insuportável, as crianças ficam brincando naquela água
podre, depois ficam pegando doença, muita conjuntivite na cidade, muita gente aparecendo
com micose... (sugerindo um problema de traição do marido), e as moscas ficam posando
naquele esgoto e depois elas entram e pousam na comida da gente...”. Discurso em vão, pois
o que se ouve do funcionário da subprefeitura é uma recusa, alegando não possuir verba para
tal obra:
“Não tem dinheiro para obras este ano, daqui a pouco vem a copa do mundo, depois
tem eleições, depois tem o natal e pronto, acabou-se o ano”. Esta fala de Marcela, a
funcionária pública, nos remete a idéia de que no Brasil tudo funciona um pouco mais
lentamente em torno de alguns acontecimentos como é o caso da copa do mundo, eleições e
natal. “Acabou o ano em junho”, diz Joaquim (Wagner Moura), já indignado e de certa
forma, invocando toda uma indignação do brasileiro ao perceber que o país funciona em
marcha lenta em época de certos acontecimentos.
O carnaval e a copa do mundo são ocasiões especiais na vida social. No que diz
respeito ao carnaval, uma das ocasiões especiais analisadas por Da Matta (1983), este pode
ser um “momento onde as regras, rotinas e procedimentos [...] são modificados [...]” (DA
MATTA, 1983:121). E isto ocorre, também, em sociedades diferenciadas como é o caso da
sociedade norte americana e brasileira, já que Da Matta contrasta o carnaval de Nova Orleans
com o carnaval do Rio de Janeiro, colocando o foco nos elementos que estas sociedades
buscam para criar uma situação carnavalesca. Nova Orleans é uma cidade fronteiriça nos
Estados Unidos, situada na fronteira com o sul do país, o “sul aristocrata que faz questão de
preservar os valores da hierarquização e da nobreza de sangue” (DA MATTA, 1983:122),
além de preservar e realçar o preconceito racial, tudo isto localizado no interior de uma
sociedade onde supostamente predomina a idéia de um credo geral igualitário herdado de
uma ideologia calvinista. Da Matta (1983) chama a atenção para o carnaval de Nova Orleans
que realiza o oposto do carnaval carioca, buscando uma aristocratização, transparecida na
prática dos Krewes (grupos que comandam o carnaval da cidade) fantasiados desfilando em
“[...] carros alegóricos bem acima do profanum vulgus, desdenhosa e caprichosamente
distribuindo seus centavos armazenados como uma resposta aos gritos de ‘jogue-me algo,
Senhor’, vindos das crianças e adultos das ruas abaixo deles” (Ibidem, 1983:125). Já o
carnaval carioca está voltado para o “vale tudo” (Ibidem, 1983:122), consistindo em
momentos em que “[...] tudo pode ocorrer; ou seja, sociologicamente, um período onde o
mundo social fica pleno de potencialidade e deixa de ser focalizado através de seus
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mediadores sociais ordinários (como profissão, bairro, riqueza, poder, etc.)” (Ibidem,
1983:125).
Em Saneamento Básico, com ou sem a urgência para driblar o atraso causado pelas
festividades, como o natal, carnaval ou copa do mundo, eis a solução dada pela funcionária ao
dilema da comissão:
“Tem uma verba para a produção de um vídeo, um filme. É um concurso federal, um
prêmio para a produção de um filme em cidades de até vinte mil habitantes. O filho do
governador (neste momento a funcionária quase sussurra, ao falar do filho do governador) fez
um projeto e foi aprovado, mas aí, ele desistiu. A verba já foi alocada, é do governo federal,
se eu não gastar, vou ter que devolver...”. No mesmo momento em que a funcionaria explica
sobre a existência da verba para o filme, Joaquim prende sua atenção na camisa que a
funcionária está utilizando, lembrando Marina, recordando que ele já teve uma camisa igual
aquela, só mudando a cor.
O que é interessante e destacado por Da Matta, é que o jeitinho pode se manifestar,
quando ambos (o funcionário e a pessoa, o cidadão) descobrem um elo comum, sendo que “tal
elo pode ser banal (torcer pelo mesmo time) ou especial (um amigo em comum, ou uma
instituição pela qual ambos passaram ou, ainda, o fato de se ter nascido na mesma cidade...)”
(DA MATTA, 1991:100). Para Da Matta, essa é uma forma típica do jeitinho, que neste caso,
se manifesta na existência de uma camisa em comum entre a funcionária e Joaquim. Mas o
que é importante aqui é que com elos ou não em comum entre as pessoas envolvidas na trama
do saneamento, foi elaborado um jeito, um estilo de navegação social que, segundo Da Matta,
passa nas entrelinhas do “não pode” da legislação brasileira, sociedade em que “a lei sempre
significa não pode”, por conseguinte, “entre o “pode” e o “não pode” , há uma escolha que é a
“junção do pode com o não pode” (DA MATTA, 1991:99). Ele argumenta que nesta junção
se produz todos os tipos de jeitinhos. Assim, o jeitinho é um modo cordial de relacionar o
impessoal com o pessoal, e neste ponto, ele nos diz que o jeitinho provoca uma junção
casuística da lei com a pessoa que a está utilizando.
Na fala da funcionária da subprefeitura do filme temos duas categorias. A primeira é o
filho do governador fazer um projeto e ser aprovado, a segunda é a reprovação total em
devolver uma verba para Brasília, já que se espera utilizá-la de um modo ou de outro,
consistindo um verdadeiro pecado não utilizar uma verba do governo federal. Em relação à
primeira categoria, não é difícil lembrar imediatamente sobre o que José de Souza Martins
argumenta a respeito da existência de uma manipulação de verbas dos orçamentos locais,
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estaduais e federais, ressaltando que “a destinação das verbas atende, quase sempre, as
conveniências do próprio político, de sua família ou de membros de seu clã político” (Ibidem,
1999: 43).
É importante acentuar que a noção histórica de poder local no Brasil está vinculada ao
coronelismo, patrimonialismo e personalismo no exercício do poder político. Porém em um
regime democrático, mesmo recente, como é o caso do Brasil, o poder local poderia ser visto
sob um outro ângulo, a partir das noções de descentralização e participação da cidadania, isto
é da sociedade civil, no poder político. O exercício da função pública, e a administração do
dinheiro público têm suscitado amplas discussões, tendo em vista o divórcio entre as
necessidades dos cidadãos e o conteúdo das decisões sobre o desenvolvimento econômico e
social. Muitos são os investimentos em projetos que necessitam de grande dispêndio público,
mas que não representam os interesses da sociedade. Do mesmo modo, muitas são as obras
inacabadas ou superfaturadas, que prejudicam a sociedade como um todo, fazendo com que o
contribuinte sofra as conseqüências da ingerência e má aplicação dos recursos públicos.
Da Matta (1987) chama a atenção para o uso patriarcal de um órgão federal, sendo
que este é um modo de observamos os hábitos patriarcais na contemporaneidade e não está
muito distante do caso analisado no filme, em que o filho do governador faz um projeto e é
escolhido como o vencedor co concurso e depois simplesmente desiste. O aspecto principal
nesta questão diz respeito ao favoritismo em relação ao filho do governador que obtém tal
verba em detrimento de outras pessoas que não possuem uma relação direta com pessoas na
hierarquia de poder e que talvez fossem realmente fazer o filme, sem desistir depois de
conseguir a verba.
A este respeito, Da Matta cita um caso que, segundo ele, se tivesse sido mencionado
por Gilberto Freyre, chegaria a causar um escândalo ou até mesmo uma certa descrença
sociológica. Trata-se de um momento na Nova República em que houve uma certa
visibilidade na ocupação de cargos por amigos, parentes e afilhados no governo do presidente
José Sarney, momento em que até o próprio presidente da república defende o nepotismo em
seus pronunciamentos. A fala do Presidente destacada por Da Matta, em um de seus
principais pronunciamentos é a seguinte: “Em primeiro lugar, eu acho que se a pessoa tem
qualificação, tem valor, tem condição de exercer o cargo, ela deve ser aproveitada. Pelo fato
de ser parente, não pode ser penalizada nem condenada a não trabalhar” (DA MATTA,
1987:120).
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Da Matta, chama a atenção para o tom exagerado deste discurso, tom que é usado
sempre quando uma instituição supostamente considerada como sagrada e indiscutível é
questionada, como é o caso da família ou da polícia, como veremos mais adiante neste
capítulo. Ele afirma que neste caso, o problema não está na nomeação em si, mas no modo em
que esta nomeação foi realizada. Ele argumenta que uma pessoa comum, que não tem
relações com o presidente ou qualquer outra pessoa dos mais altos escalões do governo, tem
que se submeter a um concurso público e normas burocráticas, neste caso ficam na condição
de apenas indivíduos, porque são obrigados a seguir a lei, além disso, não possuem relação
com pessoas que mandam no sistema.
Neste ponto, existe o hábito de se recorrer aos amigos quando se está diante das leis
com sua impessoalidade e universalidade, ou seja, que se apóiam no modo relacional. O
resultado, segundo Da Matta, é uma circularidade entre a vida burocrática (ou constitucional)
do país e as relações de amizade e compadrio. Conseqüentemente, as leis são concebidas
como instrumentos de correção. Nesta perspectiva a lei é o ideal, ao passo que as regras da
lealdade aos amigos e as pessoas da casa, fazem parte da realidade.
Contudo, voltando ao filme, os protagonistas vão a luta em busca da realização do
filme, liderado por Marina, mas com a colaboração de todos os outros personagens. Marina
conta com a ajuda do marido (Wagner Moura) e da irmã (Camila Pitanga) e com o namorado
da irmã (Bruno Garcia). O problema é que nenhum deles tem a menor noção de como fazer
um filme e um dos obstáculos, logo no ponto de partida é descobrir o que exatamente seria
uma obra de ficção, exigida pelo regulamento do concurso que disponibilizará a verba.
Joaquim (Wagner Moura) vai até Marcela (Janaina Kremer), a funcionária da subprefeitura e
acaba se deparando com tais obstáculos.
“Deixando claro que a minha opinião é sigilosa e o meu nome não pode ser citado,
eu apoio fortemente a realização do vídeo e a utilização da verba... No entanto, para a verba a
comunidade precisa apresentar um roteiro, um projeto. No projeto posso ajudar, mas o roteiro
vocês vão ter que inventar... Ah e tem uma outra coisa, a verba é necessariamente para obras
de ficção”, diz Marcela.
Joaquim sai se perguntando sobre tudo isso, roteiro, ficção, se é ficção é cientifica?
Ao falar com Marina, ela pergunta a ele:
“Se ficou na dúvida sobre o que é ficção, porque não perguntou?”. (Marina)
“Mas eu não tenho vergonha de perguntar...” (Joaquim).
Este diálogo nos remete a uma pergunta: Por que perguntar é tão difícil?
101
Roberto Da Matta, em Carnavais, malandros e heróis analisa a questão da
dificuldade que os brasileiros sentem ao perguntar alguma coisa, pois no Brasil não é bem
visto quem fica perguntando; isto não é uma solução cordial, remete ao universo de inquérito,
de delegacia, de indivíduo. Ao mesmo tempo, existe o aspecto da aparência que deve ser
mantido, sendo algo vergonhoso admitir que não se sabe algo. A própria Marina que
repreende o marido porque não ter perguntado um pouco mais sobre sua dúvida sobre o que é
ficção, incorpora este medo, no momento em que resolve falar sobre essa questão com o pai.
“Pai, o que é um filme de ficção? Um filme de ficção, o que é?”.
Ela obtém a seguinte resposta: “um filme de monstros, futuro, coisas que não
existem” (Otaviano, interpretado pelo ator Paulo José). De volta ao diálogo com o marido,
Marina conta ao marido a definição do pai para “ficção” e ele pergunta: um filme de monstro
ou filme de futuro? Marina, já confusa com todas as dúvidas em relação ao o que é ficção,
responde: “é um filme de monstro ou um filme que passa no futuro, é ficção, não sei. É uma
coisa que não existe”. O marido segue questionando Marina: “é um filme de monstro ou é um
filme de futuro, porque pode ser um filme de monstro no passado, um filme de lobisomem,
dinossauro. Dinossauro é passado ou futuro? Pode ser um filme de capacete, daquelas pessoas
de roupas de plásticos, de nave, foguete. Quer dizer... ficção é o que?” Marina insiste, com
mais dúvidas ainda que inicialmente: “você devia ter perguntado para aquela mulher”. Por
fim, vencendo um pouco do medo de perguntar e também por não haver outra solução, já que
ficção suscita muitas coisas, os dois voltam até a funcionária da subprefeitura. Após uma
consulta ao dicionário Marcela define ficção como “substantivo feminino, ato ou efeito de
fingir; construção voluntária ou involuntária da imaginação, criação imaginária, fantasiosa,
fantástica, quimera [...]”. Para quimera o dicionário fornece a seguinte definição: “monstro
mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e lança
fogo pelas narinas”.
Contudo, o que importa para estas pessoas é fazer o filme para obter a verba para a
realização da obra sanitária. A qualidade ou o tipo do filme não importa muito e sim o
dinheiro. Somente após o envolvimento com o processo de criação do filme é que esse sentido
passa a se modificar. A funcionária da subprefeitura diz a Marina: “vocês podem fazer um
filme de ficção, uma história que se passa no riacho [...]” e Marina responde: “Mas como eu
vou fazer um filme de ficção que se passa no riacho [...]?”, ela responde: “Ah! Não sei, faz
qualquer coisa, o que não pode é devolver dinheiro para Brasília, isto não existe”.
102
O filme aponta também para uma preocupação ecológica em detrimento de uma
busca mais voltada para resultados utilitaristas, como fica claro em uma cena em que Fabrício
e Silene estão sentados à beira do riacho, portando latas de cervejas. Fabrício joga uma lata no
riacho e silene diz: “hei você é idiota” e ele pergunta: por que? Ela responde: “jogar a lata no
rio...”, e ele: “que é que tem?”. “O que é que tem? Imagine você um dono de pousada, depois
reclama que aqui não tem turismo...”, diz Silene. “Turismo, quem vai querer fazer turismo
nesta cachoeira, Silene? Ela argumenta: “cheia de latas de cerveja, ninguém!”. Ele responde:
“você queria que eu jogasse a lata onde?” Ela aponta em direção às árvores e diz: “ali no
mato, parece idiota!”. O filme mostra, assim, que a ignorância não se resume à dúvida sobre o
que vem a ser ficção.
Uma vez sanada a esta dúvida geral saem em busca da realização do filme, pedindo
a câmera emprestada, providenciando o figurino, arrumando figurante, escolhendo a
protagonista, Silene (interpretada por Camila Pitanga), que inicialmente será a vítima que irá
se deparar com o monstro.
Silene, ao saber que será a protagonista, imediatamente se preocupa em como irá se
lançar como atriz e esta preocupação se reflete na busca por um nome ideal: “Silene Santos,
Silene Souza, Silene Sandrelli” e Marina pergunta: “por que não Silene Margueiro?” Silene
após experimentar alguns nomes, resolve: Marina Margueiro combina. “Marina Margueiro é
meu nome [...] você enlouqueceu, você está querendo pegar o nome da própria irmã?”, diz
Marina. “Estou só experimentando! Estou só experimentando!”, responde Silene.
A ênfase nas aparências ressaltada por Freyre e por Sérgio Buarque de Holanda
transparece na busca de Silene por um nome ideal que ela possa utilizar como atriz do filme,
um nome que possua visibilidade, mesmo que este nome seja emprestado, mesmo que seja o
nome da irmã. Da mesma forma em que na família patriarcal se substituía o nome tido como
obscuro, ou seja, um nome não importante, não ilustre, pelo nome que tinha alguma
importância social, também é mencionado por Freyre, havia momentos em que se utilizava
outro nome somente por ele ser sonoro, por combinar, por ser bonito ou estrangeiro, diferente,
incomum, famoso. A busca primordial era por uma proteção em relação às contingências, já
que um nome de prestigio protege melhor o indivíduo através de alguns privilégios.
Contudo há aquilo que Freyre chama de “elemento de decoração social” que se
relaciona mais com a forma do que o conteúdo. No filme, busca-se um nome que tenha
visibilidade e sonoridade, que combine melhor e pareça mais bonito, que chame mais a
103
atenção. No fim resolve-se que será usado o nome “Silene Seagal”. O sobrenome fora
retirado do lutador de karatê, Steven Seagal.
Após uma discussão entre Antônio (Tonico Pereira) e Marcela, a funcionária
(Janaina Kremer), sobre a quantidade de cimento que será utilizada para executar a obra que
causa uma alteração no orçamento, a funcionária argumenta que Antônio precisa dar a sua
contribuição na realização da obra e ele responde que já dá a contribuição pagando o seu
imposto: “[...] imposto que já paga o salário de muita gente”. Ela responde: “sou funcionária
de carreira, concursada”, e ele argumenta: “efetivada em concurso interno”. Neste ponto,
temos um primeiro elemento presente neste filme que remete a importância do funcionário
público, sendo ele um agente que desfruta de vantagens indiretas, como é caso de uma
efetivação em um concurso interno e também diz respeito ao status de portador da
autoridade atribuído ao funcionário público, uma espécie de nobreza administrativa,
lembrando neste caso, que Raymundo Faoro (1987), argumenta que o cargo público foi a via
que atraiu as classes sociais, mergulhando-as no estamento.
O diálogo continua e a funcionária se defende alegando que passou em primeiro
lugar no concurso que a efetivou. “Mas estava concorrendo sozinha”, argumenta Antônio.
“Não, não o João Carlos, seu primo era um dos candidatos”, defende-se Marcela. “Mas, ele
não estudou”, diz Antônio, “ele não estudou porque ele bebe”, diz Marcela. “Quem disse que
ele bebe?”, pergunta Antônio, “eu fui vizinha do João Carlos por muitos anos e ele faz
horrores com a mulher”, alega Marcela. “O que ele faz?”, pergunta Antônio.
“Ele bate na mulher”, diz ela. “Ah! Mas ela gosta, é uma tradição de família”, diz
Antônio.
Temos aí um outro elemento importante, que é o aspecto da opressão masculina em
relação a mulher. Questão que parece ser uma das preocupações de Gilberto Freyre em
Sobrados e Mucambos, já que ele apresenta diversas passagens em que a mulher, mesmo
sendo idealizada enquanto sexo fraco, nobre e belo, ainda assim, o autor faz referência a
dominação da mulher pelo homem, dominação despótica, que atende exclusivamente os
interesses masculinos. Isto diz respeito ao chamado duplo padrão moral adotado pela família
patriarcal, que era monogâmica e católica. Por outro lado, podemos dizer que na obra de
Freyre é possível observar o caráter poligâmico do homem, ou seja, a expectativa de que o
macho branco tivesse todas as relações sexuais possíveis, com tudo que lhe passasse pela
frente, das frutas, as árvores, os animais, os moleques, as escravas a esposa. Todavia, a dupla
moral no casamento não é especificamente brasileira, ao contrário, é um fenômeno
104
generalizado e corresponde à opressão da mulher, mas resta saber qual o modo especifico
que se manifesta em alguns momentos. Neste caso, August Bebel (1989), embasando-se em
Engels argumenta que se pode observar o índice geral de emancipação de uma sociedade ao
observar o índice de emancipação da mulher nesta mesma sociedade, ou seja, sem uma
emancipação feminina não há como haver uma emancipação da sociedade mais ampla.
Essa opressão se prolonga e pode se manifestar em alguns momentos na
contemporaneidade, como é o caso da mulher em Saneamento Básico que apanha por ser uma
tradição de família e da personagem seu Antônio que quase justifica o fato do marido bater na
mulher, pela suposição dela gostar, expressando assim um dos grandes “chavões” do
machismo.
Ainda na preparação do filme, o grupo se reúne para decidir o nome a nacionalidade
do cientista que irá revelar a existência do monstro da fossa. A sugestão é que o cientista seja
alemão e Fabrício diz: “um cientista alemão, morando aqui? Aqui só tem caipira”, Joaquim
responde: “a começar por você”, “eu tenho curso superior, high School”. Aqui temos mais vez
a valorização da forma em detrimento do conteúdo, pois o simples fato de ser portador de um
diploma de curso superior faz com que a personagem se sinta diferenciada dos demais,
deixando de ser um “caipira”, valorizando mais a forma do que o conteúdo, porque, high
School para a cultura norte-americana equivale a um diploma ou certificado de segundo grau,
diferente do College que equivale a um diploma universitário. Sérgio Buarque de Holanda
argumenta que em alguns casos, busca-se o “talento” em detrimento da racionalidade ou do
esforço que exige um pensamento especulativo, não havendo um predomínio de uma
dedicação às especulações intelectuais, e neste caso, o que é valorizado é a frase que tenha
uma boa sonoridade, que chame a atenção, demonstrando uma certa erudição. Com isto,
existe uma adesão aos valores e idéias senhoriais, como é o caso da posse de títulos ou o anel
de grau e a carta de bacharel, que acabam por equivaler, em alguns momentos, a brasões de
nobreza. Em outras palavras, possuir um titulo, como é o caso do anel de doutor e a educação
superior, equivale a um símbolo e é instrumento de poder que aumenta ainda mais a distância
que separa os grupos sociais.
Todavia, a realização do projeto de se fazer o filme continua sendo posto em prática
e o prefeito da cidade resolve fazer uma visita ao local da obra e pergunta a Antônio em meio
a jornalistas que cobrem tal visita: “o que o senhor está achando da obra?”, e Antônio
responde: “eu estou achando que aqui deveria erguer uma pinguela, porque as crianças estão
tendo que atravessar o riacho por cima das pedras, que estão cheias de limo, e, isto que Deus o
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livre, pode acabar em pescoço quebrado”. O prefeito responde que “Toda obra certamente
causa alguns desconfortos, mas é importante, o senhor não acha?” Já imbuído por um discurso
pronto, e continua: “ é uma reivindicação antiga, muitas vezes solicitada pela comunidade e
finalmente atendida pela prefeitura. Se eu fosse me pautar pela imprensa e pela oposição, eu
nunca investiria recursos públicos em obras de saneamento básico. E isto é administrar
recursos públicos com inteligência. É preparar o município para crescer, para o futuro”.
Neste ponto existe o vazio do discurso pronto do prefeito que se aproveita da
ocasião para fazer a sua própria propaganda eleitoral, atribuindo a sua gestão os méritos de tal
realização. A cena termina com uma foto de todos, o prefeito e os representantes da
comunidade diante da placa da obra em meio a aplausos para o discurso do prefeito. Enfim, a
concretização do filme, que conta com a colaboração de Fabrício interpretado por Bruno
Garcia, ao emprestar a câmera, mas as idéias são concretizadas com a presença de Zico
(Lázaro Ramos), que é a personagem que mais entende de cinema. Conhecendo audiovisual
mais que os outros membros do grupo, ele é quase um cineasta amador da região e utiliza seu
conhecimento ao perceber a utilidade de algo na fita levada pelos outros até ele. A fita
continha cenas de nudez de Silene feitas informalmente e de modo não intencional por
Fabrício, e utilizadas por Zico na montagem final do filme com uma música de Billie Holiday
ao fundo, compondo uma cena em que existe “[...] uma metáfora de amor à natureza [...],
como se expressa Marina. Furtado recorre a técnica do filme dentro outro filme, terminando
com a frase: “Salve a natureza. A natureza é bela”, complementada pela frase de Fiódor
Dostoiévsky: “ a beleza salvará o mundo”, do livro O Idiota, publicado em 1868.
A utilização da frase de Dostoiévsky sugere que as pessoas podem estabelecer
relações criativas com a arte, a natureza e o outro. Ao estabelecer relações criativas escapa-se
da mediocridade alçando uma realização por meio de experiências significativas com a arte,
que nesse caso, é o fio condutor de todo esse processo estético-existencial. O filme agrada a
todos, desde a Igreja até o representante do Conselho Nacional de Educação e por meio dessa
cena final, todos os membros do grupo ficam famosos e a realização da obra de saneamento
básico acaba tendo um papel coadjuvante, pois não foi concluída.
Contudo, todos se beneficiaram com o projeto, o prefeito, por exemplo, continuou
com seu discurso: “se eu fosse me pautar pela imprensa e pela oposição, eu nunca investiria
recursos públicos da prefeitura em projetos culturais”. Marina diz: “eu lamento que a obra não
tenha sido concluída, mas o importante é que a verba foi aplicada a região, gerou emprego e
renda e só este ano, por exemplo, o número de turistas cresceu”. Silene se beneficia com a
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fama, Fabrício com o aumento da quantidade de turistas na região, Marina, o marido e o
pai passam a vender mais móveis na fábrica de beliches e camas, além de produzirem fotos e
brindes com o cenário do filme. Antonio tenta se beneficiar com a sugestão da realização de
uma ponte, tendo em vista o crescimento de turistas. Em suma, a sociedade civil se mobiliza
em busca de saneamento, e acaba por se resignar com a não realização de seu objetivo e de
certo modo esquecendo-se dele.
Outro filme analisado aqui é Ó Pai, ó (2007) que tem como diretora e roteirista
Monique Gardenberg. O filme tem como foco o cotidiano de um cortiço que se localiza no
centro histórico do Pelourinho em Salvador, cidade que logo no início do filme é definida por
meio do uso da voz de um locutor de rádio, como aquela em que predomina o sol, o calor e o
carnaval. Os membros desse cortiço compartilham entre si o fascínio pelo carnaval e o
enfrentamento do despotismo exercido por Joana (Luciana Souza), a proprietária do cortiço,
que resolve punir a farra dos moradores no último dia de carnaval, cortando o fornecimento
de água. Há, ao mesmo tempo, o confronto e a relação de alteridade entre todos os
personagens que compõem a trama.
Existem as crianças, dois meninos: Cosme (Vinícius Nascimento) e Damião (Felipe
Fernandes) que andam com bíblias nas mãos, por ordem da mãe Joana, vendendo doces e
frutas que obtiveram por meio de brincadeiras e travessuras, dizendo para as pessoas nas ruas
e faróis com os carros parados, que a mãe está doente e necessita daquelas compras, e também
posando para fotos para os turistas, por dez reais.
O corte no fornecimento de água, provocado pela dona do cortiço faz com que Roque
(Lázaro Ramos); o motorista de táxi Reginaldo (Érico Brás) e sua esposa Maria (Valdinéia
Soriano); o travesti Yolanda (Lyu Arisson), amante de Reginaldo; a jogadora de búzios
Raimunda (Cássia Vale); Carmen (Auristela Sá), que realiza abortos clandestinos e ao mesmo
tempo cria crianças órfãs em seu apartamento, se confrontem e ao mesmo tempo se unam.
Entre outros significados que o filme pode apontar um deles é a tentativa de uma remodelação
urbana no Pelourinho que acaba sendo excludente, violenta e opressiva, reivindicando um
modelo cultural que tende a uma transformação dos espaços públicos. A busca por este
modelo é um pouco parecida com o período da reeuropeização, descrito por Gilberto Freyre
(1961) e analisado por Angela Mendes de Almeida (1987 e 2006) e Ricardo Benzaquen de
Araújo (1994). Período em que houve uma tentativa de resgatar os padrões europeus,
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deixando de lado a influência africana e indígena. Isto se transparece no diálogo entre
Carmen (Auristela Sá) e Baiana (Rejane Maia):
“A sua irmã vai estranhar isso tudo aqui. Está tudo muito mudado, porque
antigamente a negrada vinha e fazia a sua festa, não é não? Hoje em dia não, depois dessa
brancada [...] agora que o pelourinho é festa soçaite... eu digo isso porque você sabe que este
lugar era um dos últimos que servia de quilombo para esta negrada. Pelourinho agora é ACM
– Ação, Competência e Moralidade e está tudo empestiado de Barbie e tudo cor-de-rosa, não é
lindo Baiana?”, diz a moça que trabalha no Pelourinho para Baiana e Carmen que tem uma
irmã que chega de uma temporada no exterior.
O filme também aponta para o machismo que está presente na personagem de
Reginaldo (interpretado por Érico Brás), o taxista casado com Maria (Valdinéia Soriano) que
tem casos amorosos com o travesti Yolanda (Lyu Arisson) e Psilene (Dira Paes), a irmã de
Carmen que chega do exterior. Yolanda e Maria encarnam o papel da mulher ressentida com a
opressão masculina. Quando Maria diz a Reginaldo que Yolanda a procurou para falar de sua
relação com ela, Reginaldo sai de modo agressivo para bater no travesti, dizendo para Maria:
“você é minha esposa, você é a mãe do meu filho, você é minha federal”, denotando
claramente a postura despótica do homem em relação à mulher e em relação ao travesti. Ele, o
homem, é valorizado se tiver todas as relações com tudo que lhe passe pela frente, como no
caso do senhor de engenho nas descrições de Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala,
tendo a esposa como a mulher principal, sua “federal” dentro de casa, ele pode até se
apaixonar pelo travesti, entretanto ele é o macho prepotente deixando a homossexualidade ou
bissexualidade apenas para o travesti. A violência também se manifesta na questão de gênero
tendo como herança os valores patriarcais – o machismo do homem brasileiro, lembrando que
patriarcado, como o próprio nome indica, é o “regime da dominação-exploração das mulheres
pelos homens” (SAFFIOTI, 2004:44).
Reginaldo, em um outro diálogo com a esposa, remete a uma outra discussão que diz
respeito à corrupção e ao uso do “presentinho” que pode se revelar em algumas situações,
como é o caso da situação vivida pelo personagem que para ter um carro novo diz a esposa
que o conseguiu com um amigo. “Minha Nossa Senhora, Reginaldo, está envolvido com
gângster...”, diz Maria. “Que gângster, o cara é da polícia”, argumenta Reginaldo, explicando
que para rodar definitivamente com o carro teve que dar algum dinheiro para o policial. Na
verdade Reginaldo não teve que corromper a polícia, pois o amigo que ele se refere é Boca, o
traficante. Contudo, este elemento presente no imaginário e na realidade social, que é o
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corromper até mesmo a polícia, que chega a ser uma razoável desculpa para a esposa para
disfarçar suas relações com o traficante, remete à relação entre a ação da polícia e o crime
organizado, que envolve a prática de violência e arbítrio, potencializados durante o regime
militar que continua manifestando em muitos momentos até hoje. O filme mostra outros
significados que podem ser atribuídos a esta discussão, outras nuances e um olhar para outras
situações que podem, também envolver a prática da violência despótica. Enquanto o carnaval
acontece nas ruas de Salvador, Joana reclama aos gritos, da fumaça de incenso que queima na
janela da vizinha do andar de baixo, ironizando a diferença religiosa, que no final do filme se
manifesta em sincretismo religioso: “feiticeira que fumaceira é essa aí, mas você está
fumando maconha é? [...] quando a polícia chegar aí dando tiro [...]”. Por que em uma
democracia a polícia pode chegar dando tiro? Em quem e em quais lugares a polícia chega
dando tiro? A frase é de uma moradora de cortiço. Podemos relacionar violência com
exclusão social como fez Sidney Chalhoub (1996) ao chamar a atenção para a falha existente
na distinção entre “classes perigosas” e “classes pobres”. Ele analisa a noção de que os
pobres são por definição, perigosos, ressaltando que desde o início, os negros tornaram-se
suspeitos preferenciais no interior desta abstração estabelecida pelas autoridades,
desembocando na “teoria” da suspeição generalizada, isto é, a premissa de que todo cidadão é
suspeito de algo. Chalhoub enfatiza que a destruição do cortiço carioca “Cabeça de Porco”,
que foi invadido pelas autoridades em 26 de janeiro de 1893, impressiona com sua
contemporaneidade, pois, “intervenções violentas das autoridades constituídas no cotidiano
dos habitantes da cidade, sob todas as alegações possíveis e imagináveis, são hoje um lugar-
comum nos centros urbanos brasileiros” (CHALHOUB, 1996:19). É claro que existe a
dimensão analisada por Mauro Wolf (2003), em que ele chama a atenção para a questão dos
efeitos dos meios de comunicação e a forma como eles constroem a imagem da realidade
social, demonstrando que as notícias são, entre outras coisas, o exercício do poder sobre a
interpretação da realidade. Contudo, podemos dirigir o olhar para esses rumores que apontam
para a existência de justiceiros, encapuzados agindo violentamente em meio às periferias.
Segundo Barry Glassner (2003) existe uma ampla variedade de grupos, incluindo empresas,
seitas religiosas e partidos políticos que acabam promovendo e lucrando com a disseminação
do pânico. Mas em sua análise da cultura do medo, o foco principal é a observação da ação da
imprensa, enquanto criadora e mantenedora do pânico, pois para ele uma análise da cultura do
medo que ignora a ação da imprensa é incompleta, uma vez que a imprensa ocupa um dos
primeiros lugares dentre as diversas instituições em relação à disseminação do pânico.
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Contudo no que diz respeito aos ataques entre polícia e crime organizado em São Paulo a
imprensa atuou disseminando o medo mais no sentido de novos ataques do PCC em relação à
queima de ônibus e bombas explosivas pela cidade do que na ação de grupos de extermínio
(que não se sabe quem são os componentes, se estão ligados a alguma instituição ou não, se
são somente membros da sociedade civil, atuando violentamente por aí) que atuavam na
periferia paulista. De acordo com os jornais da época havia um grupo encapuzado, cujos
indivíduos possuíam várias tatuagens pelo corpo, movidos por uma ideologia neonazista,
muito parecidos com os famosos Skinheads. “A nova onda de ataques do PCC (Primeiro
Comando da Capital), iniciada na noite de terça-feira (11), continuou com força total na
madrugada desta quinta-feira. Já passa de 100 o número de ataques contra forças de segurança
em mais de 15 cidades do Estado de São Paulo [...] no total, 107 suspeitos foram mortos [...],
em diferentes pontos do Estado. Na tarde desta quinta, 75 corpos permaneciam nas unidades
do IML em Pinheiros e na Vila Leopoldina, na cidade de São Paulo” (Folha Online).
O filme analisado aponta ainda para um outro tipo de violência, a violência contra
criança pobre. Seu Jerônimo, um comerciante do Pelourinho é procurado por um policial que
diz: “sabe Seu Jerônimo eu vim aqui falar com o senhor daquele dinheiro que eu estou lhe
devendo, porque eu queria ver o que o senhor consegue fazer por mim, que estou com aluguel
de casa atrasado esse mês, tenho cinco filhos para criar, o senhor sabe...” e Jerônimo
responde: “a gente sabe que vocês são fudidos mesmo, ganham mal não é mesmo?” E ainda
“vocês são que nem papel higiênico, quando não estão enrolados estão na merda. Deixa pra
lá, eu quero que você me pague com outras obrigações. Aqueles moleques que ficam fazendo
bagunça aí na frente da loja...” . “Sei...”, responde o policial e Jerônimo complementa: “quero
que dê um susto neles”. “O senhor pode ficar tranqüilo [...] que no que depender de mim seu
comercio estará protegido”. Assim, com essas palavras do policial é feito o acordo tácito.
“Faça isso! Faça isso!”, diz Jerônimo que sai falando e inglês com os turistas dos navios que
atracam no porto, alguns deles, turistas portugueses “voltando para a bela terra que eles
descobriram [...] e quem não voltaria?”, como diz o guia aos turistas.
Existe um primeiro aspecto nesses elementos apontados pelo filme, que diz respeito
ao ideário que vê o policial como mal remunerado, categoria profissional que expõe a própria
vida e permeia o imaginário social como algo à margem, em virtude da má remuneração. Não
muito diferente disso é a visão em relação ao professor, como denota a cena em que a
professora aparece no bar de Neuzão (Tânia ko), com um abaixo assinado para a escola e
ouve de um dos personagens presentes no local: “[...] eu não vou assinar porra nenhuma,
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porque vocês professores ficam o ano inteiro fazendo greve, meus filhos vão para a escola
é pra estudar, eu não tenho culpa que a senhora ganha pouco. O governo paga a senhora é
para dar aula”. Educação e segurança, professor e policial, duas categorias de profissionais
que ganham mal, negligenciados quanto à importância de seus papeis sociais.
O segundo aspecto diz respeito ao final do filme em que a personagem Baiana (Rejane
Maia) aparece em várias cenas chamando a atenção dos outros personagens para as mortes de
crianças, já que ela se relaciona com todos os outros, seus fregueses em quitutes. “Carnaval é
assim, tudo de ruim acontece...”, diz Joana, a mãe de Cosme e Damião e Baiana apontando
para o jornal diz: “... e por falar nisso, olhe três presuntos, não parece os filhos de Faustino?”.
“Eu lá quero saber de filho de Faustino, é cada qual que de seu cada qual, quem pariu para
Deus que balance, eu quero é falar dos meus que eu levo ali na rédea curta, linha dura [...]”,
evidenciando o seu lado individualista, no sentido de quem diz que a violência pode chegar
nos outros, nunca nos meus, de minha mesma substância, como aponta Roberto Da Matta
(1987). Nas cenas finais do filme aparecem crianças correndo pelas ruas do Pelourinho, o
carnaval acontecendo ao fundo e, o policial reclama: “não adianta falar não, será que não se
pode contar cm segurança pública?” E assim, inicia-se o seguinte diálogo: “Seu Jerônimo,
outro dia mesmo eu falei com o senhor, no dia que o senhor quiser é só o senhor me dizer, que
eu largo a farda e venho aqui e faço segurança particular de sua loja...”; Jerônimo retruca: “se
os comerciantes fazem isso, é problema deles, eu pago imposto para ter direito à segurança
pública”. “Mas, seu Jerônimo, eu não posso ficar aqui o dia inteiro fazendo ponto não”,
responde o policial. “Você não me prometeu que iria dar um jeito hoje cedo? Faça isso!”
manda Jerônimo . O jeito dado aparece no final do filme, na cena em que o policial aparece
correndo atrás de várias crianças e o carnaval acontecendo ao fundo da cena, Baiana do
desfile vê a situação e lamenta secretamente o que ela alertou a todos os personagens durante
todo o filme. Joana abandona o que disse no início em relação à vizinha, no momento em que
a chamou de feiticeira e pede a ela lhe jogue os búzios. Jerônimo percebe que Cosme e
Damião, filhos de Joana estavam entre as vítimas e diz ao policial: “ que foi que a gente
combinou, que foi que eu te disse, que os daqui não, os da área a gente dá um jeito, a gente
fala com a mãe, com o tio. Dá um jeito [...]”. Novamente temos a questão da proximidade, da
intimidade, dos daqui não, mas os outros, os de lá, estes sim podem até morrer. “Seu
Jerônimo, eu faço esse serviço há mais de dez anos e meu negócio é bem feito! Bem feito!
Desse jeito!”. Jerônimo vai até a casa de Joana e chega no momento em que a vizinha acaba
de jogar os búzios, ela pede a ele que leia a previsão sobre estão seus filhos e ele lê: “ dez
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negrinhos numa cela ... Fugiram de manhã cedo, mas eram nove. Nove negrinhos fugiram,
um deles o mais afoito, lascou-se...”
Yolanda entra e dá a notícia e assim todos vêem os corpos de Cosme e Damião
estirados no chão. Neste ponto temos aqui o que Giorgio Agamben (2002) conceituou como
vida nua, referindo-se à vida matável e sacrificável do homo sacer. O autor dirige o olhar para
uma lógica na qual a vida humana é incluída na forma de exclusão, ou melhor, dizendo, numa
forma de sua matabilidade, como é o caso contemporâneo de Guantánamo, em que a vida nua
atinge sua máxima indeterminação, mas também se aplica em relação aos mortos nas
periferias das cidades. Agamben (2004) nos fala sobre a relação de proximidade entre
democracia e totalitarismo, ressaltando que a forma desta relação não acontece de uma hora
para outra, como uma reviravolta repentina, mas tudo isso ocorre de um modo contínuo. Ele
afirma que é como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre
uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu
conflito com os poderes centrais e que simultaneamente preparam uma silenciosa, porém
crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim, uma nova e mais
receosa instância ao poder soberano do qual desejariam liberar-se. Agamben ainda nos lembra
que Foucault escreveu sobre o “direito à vida” para explicar a importância assumida pelo sexo
enquanto tema de debate político, ou seja, o direito à satisfação das necessidades (saúde,
felicidade, etc.), o direito de resgatar aquilo que se é e o que se pode ser, sendo esse direito, a
réplica política a todos esses novos procedimentos de poder. Ele ressalta que o primeiro
registro da vida nua enquanto sujeito político, esta implícito no documento de hábeas corpus
de 1679, documento este que é considerado a base da democracia moderna. Neste caso, a
fórmula que se encontra na base da democracia moderna não é o homem livre, com suas
prerrogativas e seus estatutos, mas sim, “corpus” (um ser bifronte portador tanto da sujeição
ao poder soberano quanto das liberdades individuais).
Este é segundo Agamben, o novo sujeito da política, sendo que a democracia moderna
nasce enquanto reivindicação e exposição deste corpo. Agamben, também argumenta a
respeito do conceito político no qual está em questão a metamorfose da vida matável do homo
sacer, sobre a qual baseia-se o poder soberano. Este conceito é denominado por ele de “vida
indigna de ser vivida”. Neste caso, ele explica que a “vida indigna de ser vivida” não é um
conceito ético que concerne às expectativas e desejos dos indivíduos, na eutanásia, por
exemplo, um homem encontra-se na posição de dever separar em um outro homem a “zoé” da
“bíos” e de isolar nele uma vida nua, matável. É enfatizado por ele, que na perspectiva da
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biopolítica moderna, ela se coloca, sobretudo entre a decisão soberana sobre a vida
matável e a tarefa assumida de zelar pelo corpo biológico da nação, assinalando o tempo em
que a biopolítica converte-se em tanatopolítica. Agamben argumenta que “a dupla categorial
fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas a vida nua-existência
política, zoé-bíos, exclusão-inclusão” (AGAMBEN, 2002:16). Com isto, “o que a ‘arca’ do
poder contém em seu centro é o estado de exceção - mas este é essencialmente um espaço
vázio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem
relação com a vida” (AGAMBEN, 2004:131). Ele sustenta que a vida nua é o início em que o
direito transforma-se em fato e o fato em direito, momento em que os dois planos tornam-se
indiscerníveis. Nesta perspectiva, uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas
democracias burguesas a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades
individuais sobre os deveres coletivos, e tornam-se, ao contrário, nos estados totalitários, o
critério político decisivo e o lócus das decisões soberanas. Deste modo, a vida biológica com
suas necessidades torna-se o fato politicamente decisivo, e assim, Agamben nos proporciona a
possibilidade de entender como no século XX as democracias converteram-se em
totalitarismo e vice-versa. Segundo ele, em ambos os casos estas mudanças ocorreram em um
contexto em que a política já havia sido transformada em biopolítica, sendo somente preciso,
determinar qual forma de organização se revelaria mais eficaz para garantir o controle da vida
nua. Conseqüentemente, as distinções políticas (direita-esquerda, liberalismo-totalitarismo,
privado-público) perdem seu sentido, entrando em uma zona de indeterminação no mesmo
momento em que seu referêncial fundamental tornou-se a vida nua. Nesta perspectiva, o
totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção
de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só de adversários políticos, mas
também de cidadãos, que por qualquer razão pareçam não integráveis ao sistema político.
Com isto, o autor defende a tese de que o estado de exceção possui uma tendência
cada vez maior de se apresentar como paradigma de governo dominante na política atual, pois
o deslocamento de uma medida provisória para uma técnica de governo ameaça transformar a
estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. No que
diz respeito à violência, a morte dos 111 presos do Carandiru, o massacre da Candelária, o
massacre de moradores de rua em São Paulo; os adolescentes que atearam fogo em um índio
em Brasília; nestas manifestações é possível observar a exclusão social. Essas e outras são
manifestações de uma vida matável, sacrificável, ou seja, um “homo sacer” como é definido
por Giorgio Agamben (2002). O filme Ó pai, ó termina com um homem pegando latinhas de
113
cervejas pelo chão, demonstrando a sujeição das pessoas para sobreviver, pois as latas
não são apanhadas somente para serem recicladas e preservar o meio ambiente e sim para
serem vendidas custeando a sobrevivência do indivíduo.
Sujeição é o tema principal do último filme analisado, O cheiro do ralo (2006)
dirigido por Heitor Dhalia. Lourenço, que é interpretado pelo ator Selton Mello, é o
proprietário de uma loja que compra todo tipo de objeto usado. Neste personagem existe a
dimensão do despotismo, assim como a frieza ao negociar e o prazer em explorar e humilhar
os clientes que o procuram em função de dificuldades financeiras. Lourenço vê as pessoas de
um modo geral como se estivessem à venda, como uma mercadoria. Existe uma coisificação
por parte dele em relação ao outro. Todos os personagens se sujeitam ao despotismo de
Lourenço. A noiva se sujeita só para ter um relacionamento e os outros personagens se
sujeitam para sobreviverem. O sadismo do personagem se manifesta também ao longo do
filme quando ele pronuncia a quase todo momento, a seguinte frase: “a vida é dura”, ou, “la
vida es dura”. Numa das cenas Lourenço, ao chegar em sua loja, vê um mendigo sentado na
frente. Ele olha fixamente para o mendigo, entra e chama seu segurança (interpretado por
Lourenço Mutarelli) diz ainda: “você sabe que Deus criou o mundo, mas foi o homem que
tornou o mundo confortável”, e o segurança em um tom de resignação e concordância
responde: “ta na bíblia”. Lourenço continua: “o homem é o Deus do conforto”, e o segurança
responde: “faz sentido...”. Lourenço continua expondo sua filosofia de vida: “o único animal
que poderia fazer isso é o homem. Você acha que o cachorro faria isso? A girafa faria isso?
Pescoçuda do caralho. A baleia faria isso?”. “Não, iria deixar tudo molhado”, responde o
segurança. “Só o homem era capaz de fazer uma coisa assim... confortável como uma
poltrona. Sente ela”, diz Lourenço apontando para a poltrona e os dois se recostam. “Um
casacão desse assim...” mostrando seu próprio casaco, “Mas o homem encheu o mundo de
coisa ruim também”, continua Lourenço. “Tipo o que? Lixo?”, pergunta o segurança. “Não,
eu discordo. O lixo é bom. O lixo é o troco”, responde Lourenço. “Troco?”, indaga o
segurança. Lourenço responde: “o homem criou o lixo para ocupar os desocupados”.
“Peguei”, responde o segurança. “Pegou? – tem muito vagabundo por aí...”, diz Lourenço.
“Pilantra, os nêgo não toma banho”, diz o segurança. “Banho passa longe, são diferentes da
gente. Não querem saber de conforto. O homem criou o lixo pra distrair essa gente toda”,
argumenta Lourenço. “Peguei”, responde o segurança. “Esse mendigo que fica aí, cê...”, diz
Lourenço. “Quer que eu...”, responde o segurança, já entendendo o que Lourenço quer que ele
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faça. “Ah! Eu queria”, diz Lourenço. “Ta feito”, responde o segurança. “Certo? Pegou,
né?”, confirma Lourenço. “Peguei”, responde o segurança. “Pegou, né?”, mais uma vez,
confirma Lourenço.
Temos aqui, mais uma vez o homo sacer na figura do mendigo, que será exterminado
pelo segurança de Lourenço, sendo esta uma vida matável, sacrificável, que ninguém ira
reivindicar. O mendigo está fora da sociedade de consumo, e neste caso ele é, na visão
despótica de Lourenço, a “sujeira” da pureza pós-moderna. O critério de pureza é a aptidão de
participar do jogo consumista. Na visão de Zygmunt Bauman (1998) a busca da pureza
moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as chamadas classes perigosas,
e também se expressa cotidianamente com a ação punitiva contra os moradores de rua das
áreas urbanas proibidas, os vagabundos e indolentes. Conclui-se também que a esmagadora
maioria dos reclusos no corredor da morte provém da chamada classe baixa, “esse imenso e
crescente depósito onde se armazenam os fracassados e rejeitados da sociedade consumidora”
(BAUMAN, 1998:59). Ser pobre é considerado um crime em um universo em que a coação
atua através da abundância e não da escassez.
Bauman adverte que durante os últimos anos a população de encarcerados e de todos
que obtém a sua subsistência da indústria carcerária — a polícia, os advogados, os
fornecedores de equipamento carcerário — tem crescido constantemente. O mesmo ocorreu
com a população de ociosos: exonerados, abandonados, excluídos da vida econômica e social.
O jornal Folha de S. Paulo publicou em 25 de maio de 2005 uma reportagem sobre
um caso de exclusão social em São Paulo que não está muito distante do que Bauman chama a
atenção. Há 20 anos um homem de 68 anos transitava pelas ruas do bairro Vila Nova
Conceição. Ele ocupava uma área equivalente à de um quadrado de 1,5 metro de lado na
Praça Pereira Coutinho, em frente a edifícios luxuosos. Ele ficava entre um poste e duas
caçambas de reciclagem de lixo. Tal praça onde vivia o mendigo, possui edifícios que
homenageiam duas famosas vinícolas francesas: o edifício Château Margaux, ao lado do
Château Lafite, ambos com apartamentos avaliados em até 15 milhões. O local considerado
invadido por ele, está a três quarteirões do parque Ibirapuera. Houve toda uma mobilização
para retirar o morador de rua do local, mobilização que contou com a colaboração de muitos
que circulavam cotidianamente pelo local, além de assistentes sociais e técnicos da secretaria.
Até o jornaleiro da praça recebeu a incumbência: “tão logo visse o sem-teto voltar ao local,
deveria telefonar para o celular da assistente social [...]” (Folha de S.Paulo, 25 de maio de
2005). O morador de rua foi rendido e levado para Hospital Psiquiátrico Pinel sem previsão
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alguma de alta. “Já não era tempo. Tinham de tirar logo o homem daqui. Ele era uma
ameaça à saúde das crianças. A imundície, o mau cheiro, podiam contaminar as crianças que
brincam no playground da praça” (Folha de S.Paulo, 25 de maio de 2005), disse o proprietário
de um estabelecimento comercial da praça. Um cliente do estabelecimento comercial
complementa: “era assustador. Envolto em plásticos, o mendigo exalava um cheiro
concentrado de urina. Alguma coisa tinha de ser feita”.
Neste caso, é possível lembrar da perspectiva aberta por Hannah Arendt em Eichmann
em Jerusalém que se encontrou com a questão que deu origem ao ensaio de Christophe
Dejours, A banalização da injustiça social que aborda por um lado, a indiferença e a
tolerância crescente na sociedade neoliberal, e a adversidade e o sofrimento de uma parcela da
população, por outro. Um outro aspecto apontado por Dejours diz respeito à noção de zelo,
que neste caso se aplica às pessoas que foram zelosas colaboradoras do isolamento do
morador de rua, agindo como meras engrenagens de uma organização que os transcende.
Neste caso do mendigo, a eficácia do ostracismo repousou sobre a colaboração maciça da
grande maioria dos “executores”. O zelo demonstrado por todos esses atores é fundamental,
se não decisivo para a eficiência do sistema. Entende-se por banalização do mal não somente
a atenuação da indignação contra a injustiça e o mal, mas, além disso, o processo que, por um
lado, suaviza o mal e por outro, mobiliza ummero crescente de pessoas a serviço da
execução do mal, fazendo delas “colaboradores”.
O elemento essencial apontado por Dejours, na formação de uma vontade de agir
contra a injustiça e o sofrimento, é o despertar da compaixão. Um aspecto levantado por
Bauman que também diz respeito a este assunto está na relação entre “pureza” e “sujeira”,
entendendo a “sujeira” como os “agendes poluidores”, “coisas fora do lugar”. Essas coisas
“fora do lugar” são “coisas móveis” que não se cravaram no lugar que lhes foi destinado, são
coisas que trocam de lugar por livre vontade, como é o caso do morador de rua que fugiu
várias vezes antes de ser definitivamente retirado do local. Como o morador de rua não tinha
parentes localizados, seu final trágico foi o hospital para doentes mentais sem ao menos saber
o porque estava sendo internado e nem por quanto tempo e muito menos qual será o
tratamento utilizado para a cura de sua suposta doença mental. Neste caso, ele vai para uma
espécie de prisão perpétua decidida por médicos.
É uma nova roupagem do higienismo do século XIX que transparece na fala das
pessoas do bairro ao invocarem a higiene ou sua ausência em sua argumentação em defesa da
internação ou retirada do morador de rua. Trata-se de uma atualização da noção higienista que
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esteve na base da criação dos primeiros hospitais psiquiátricos, demonstrando como o
discurso da profilaxia do meio urbano pode ser atual. Até que ponto as pessoas podem ser
diminuídas em seu direito de ir e vir? A rua é um lugar público para todos. Neste caso, temos
aí uma das formas de manifestações do que Giorgio Agamben denominou de estado de
exceção, pois, há uma suspensão da constituição entrando em cena atos que não têm valor de
lei, mas adquirindo força de lei. Isto significa dizer que a norma pode estar em vigor, isto é, o
morador de rua não pode ser isolado sem o seu consentimento em hospital psiquiátrico, mas a
norma não se aplica, não tem força enquanto norma e atos que não têm valor de lei adquirem
sua força. Desta maneira, o estado de exceção é “um espaço anômico onde o que está em
jogo é uma força de lei sem lei” (AGAMBEN, 2004: 61). O estado de exceção não se define
segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, mas sim como um vazio e uma
interrupção do direito. Portanto, “o estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou
inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço de vazio de direito, uma zona de
anomia em que todas as determinações jurídicas - e, antes de tudo, a própria distinção entre
público e privado – estão desativadas” (AGAMBEN, 2004:78).
Portanto, decide-se qual vida pode ser morta sem que se cometa homicídio. No tempo
da biopolítica este poder tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em
poder de decidir sobre o ponto em que a vida deixa de ser politicamente relevante. Quando a
vida torna-se o valor político supremo coloca-se ao seu lado o problema de seu desvalor. Com
isso, na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor e o desvalor da vida
em si. Os moradores de rua, idosos e crianças (muitas nascidas nas ruas) são privados de
quase todos os direitos humanos e, todavia, biologicamente ainda vivos, eles situam-se em
uma zona-limite entre a vida e a morte, na qual não são mais que vida nua. Deste modo, eles
são inconscientemente assemelhados a “homines sacri”, isto é, a uma vida que pode ser
morta sem que se cometa homicídio, como fez Lourenço, o personagem do filme O Cheiro do
Ralo ao mandar seu segurança matar o morador de rua. No espaço biopolítico da
modernidade, o médico e o cientista movem-se na terra de ninguém onde antes somente o
soberano se movia.
Nota-se que o médico exerceu um papel de juiz ao isolar o morador de rua no hospital
psiquiátrico do caso citado pelo Jornal Folha de S.Paulo. Deste modo, quais procedimentos
jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram tais atrocidades, a ponto de seres humanos
serem privados integralmente de seus direitos? Agamben argumenta que a vida nua é o início
em que o direito se transforma em fato e o fato em direito, onde os dois planos tornam-se
117
indiscerníveis. Esta análise também se aplica a postura despótica de Lourenço e seu
colaborador, o segurança de seu estabelecimento. Hannah Arendt entendia por “banalidade do
mal” a suspensão ou a supressão da faculdade de pensar que podem acompanhar os atos de
barbárie ou o exercício do mal. Este aparece não como uma maquinação que implica a
mobilização de uma inteligência fora do comum; ele pode ser produzido, simplesmente sem
esforço, como é o caso do segurança de Lourenço que não questiona o raciocínio e a visão de
mundo de Lourenço ao sugerir a morte do morador de rua.
O segurança de Lourenço passa a ser um típico representante da banalidade do mal e,
também, representante de uma certa estupidez, sendo ele uma inteligência inteiramente a
serviço da eficácia de uma atividade exercida sem o emprego da faculdade de pensar, e
também desprovido da capacidade de criticar o sentido da ação. As pessoas entram na loja de
Lourenço para se desfazer de seus objetos por uma extrema necessidade de dinheiro. Por isso,
Lourenço aprende a explorá-las ao máximo e diz: “o poder é afrodisíaco”.
Com o tempo, acha que pode comprar tudo, até a garçonete do bar da qual ele cobiça
as nádegas na hora do almoço, sem ao menos poder reconhecer seu rosto no momento de sua
ausência: “eu prefiro pagar para ver, eu não quero casar com essa bunda. Eu prefiro comprar
ela para mim”, reflete Lourenço. No caso de Lourenço, homens e coisas têm mais ou menos o
mesmo status. Neste caso, apenas prevalece à racionalidade instrumental, não existindo
nenhuma capacidade de identificação com o outro, existindo apenas uma indiferença afetiva,
um completo desinteresse, gostando apenas das nádegas da garçonete do bar, que também é
coisificada.
Paradoxalmente, essas cenas de avareza total são contrapostas a episódios em que ele
esbanja dinheiro com artefatos aparentemente inúteis e sem valor que, no entanto, lhe servem
para preencher o vazio criado pelas distâncias e pelos constrangimentos infligidos ao outro,
como é o caso do olho de vidro que causa fascínio. Lourenço exerce seu despotismo em
relação a todos os outros personagens, um pouco como fazia o senhor de engenho em relação
a todos que o cercavam, sempre atendendo exclusivamente seus interesses pessoais, mesmo
os subjetivos, como um simples ir ou não com a cara da pessoa. O homem que quer vender
uma caneta (Wolney de Assis) entra e sua sala e diz: “é de ouro”, Lourenço responde: “vinte
no máximo”. “Mas é de ouro”, argumenta o homem, “não me interessa”, responde friamente
Lourenço. “Por quê?”, pergunta o homem. “Porque eu não gostei da tua cara”, responde
Lourenço. “Meu senhor me desculpe a minha cara... mas não é ela que estou oferecendo, é a
caneta”, tenta argumentar o homem já se submetendo inteiramente a Lourenço e ele responde
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“não quero!”. “Tô precisando muito desse dinheiro”, já quase implorando, diz o homem.
“Faria qualquer coisa pra conseguir esse dinheiro?”, pergunta Lourenço sabendo que o
homem já estava inteiramente sob seu domínio. “Eu sou um homem de princípios”, responde
o homem. “Até onde vão os seus princípios?”, pergunta Lourenço. “O que o senhor quer que
eu faça?”, pergunta o homem. “Nada, pode ir embora, não vou te ajudar”, responde Lourenço.
Em uma outra cena, Lourenço chega em sua loja de bom humor e diz a todos
presentes: “quem quer dinheiro? E pensa: “Todo mundo me abraça. Todo mundo gosta do
meu dinheiro”. Neste ponto, vemos um pouco do que enfatiza José de Souza Martins (1999),
sobre o Programa Silvio Santos, em que são distribuídos prêmios como se fossem doações
oriundas de uma generosidade, reforçando a imagem de pai protetor que em muitos momentos
do programa distribui dinheiro para seu auditório, atirando em sua direção. “ [...] essa é uma
prática que associa patrimônio e poder [...]” (MARTINS, 1999:38).
O bom humor de Lourenço também é vinculado às relações de poder, mas desta vez
associado ao patrimonialismo. Martins ressalta que no caso do Programa Silvio Santos há
uma identificação com partidos políticos claramente oligárquicos. A ação do grupo Silvio
Santos se dá por meio da captação de recursos com a venda de carnês para a população (em
sua maior parte, uma população de baixa renda). Tal carnê dá direito ao comprador a
concorrer a grandes e pequenos prêmios (desde casas e carros até a um liquidificador). Neste
caso quem não é premiado retira o valor pago corrigido em mercadorias nas lojas do “Baú da
Felicidade, fazendo com que aparentemente o comprador não perca nada. “De fato, porém ele
adiantou dinheiro ao grupo aludido, que negocia com ele como capital de terceiros, sem o
pagamento de juros e sem distribuir aos compradores os lucros extraordinários que podem
decorrer da especulação com os preços dos produtos finalmente distribuídos” (MARTINS,
1999:38). O apresentador de TV usa o dinheiro do povo e ao mesmo tempo aparece como
provedor, “exatamente como ocorria com os políticos sertanejos, ele enfia a mão no bolso e
vai tirando o dinheiro e distribuindo ao público” (MARTINS, 1999:38).
Silvio Santos aparece majoritariamente como um protetor de famílias pobres, tendo o
papel de facilitador de sonhos impossíveis. Lourenço expressa seu bom humor ao saber que
irá captar recursos de pessoas que não possuem uma outra forma de conseguir dinheiro a não
ser se sujeitando a ele, sujeição em relação ao seu despótico poder que negocia como e com
quem quer, distribuindo dinheiro ou distribuindo violência no mais alto estilo de senhor de
engenho que reivindica todas as pessoas absolutamente disponíveis aos seus interesses, aliado
119
ao inseparável privatismo, sentimento de posse e de propriedade privada de pessoas e de
objetos.
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Considerações finais
A relação entre a família patriarcal no Brasil e as condutas do apadrinhamento,
pessoalismo e o chamado “jeitinho brasileiro”, presentes em alguns momentos específicos na
contemporaneidade foi o que se propôs analisar neste trabalho. A idéia foi a de dirigir o olhar
para algo do passado colonial, uma herança, que se manifesta em situações específicas. Ao
recuperar tais características da família patriarcal por meio da aproximação entre a história,
antropologia e cinema, foi possível observar que esta foi uma oportunidade para o cientista
social de realizar uma investigação dos elementos sociais ao mesmo tempo motivadores e
constitutivos do enredo ficcional. Neste caso, outros elementos além destes citados acima
vieram à tona, como é o caso da banalização da violência que aparece nos três filmes
analisados.
Este trabalho percebe a importância dos estudos sobre os fenômenos culturais e,
entende a necessidade de se analisar não somente o imaginário, que aparece nessas
manifestações, mas também o modo, os processos em que tudo isso acontece. Neste sentido,
mais uma vez a perspectiva pluridisciplinar adotada na pesquisa foi fundamental.
Para nos debruçarmos neste intrincado assunto é necessário esclarecermos alguns
pontos:
Inicialmente é importante elucidar que o conceito de família patriarcal foi descrito por
Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala e, posteriormente em Sobrados e Mucambos ao
delinear as relações familiares no Brasil do período colonial ao século XIX. Segundo essa
definição a família patriarcal é numerosa, sendo composta não só pelo núcleo conjugal e
filhos, como é o caso da família nuclear burguesa surgida em um período posterior a esse. A
família patriarcal é concebida como extensa, pois inclui escravos, parentes e agregados, todos
subordinados à dominação despótica do patriarca.
Esse conceito de família patriarcal tem sofrido diversas críticas embasadas em
argumentos que enfatizam que no período estudado coexistiam outras formas de organizações
familiares, além de acentuar também que o conceito exalta em demasia a submissão
feminina. O retrato da família patriarcal destacado por Freyre é questionado por autoras como
Mariza Corrêa (1984), Eni de Mesquita Samara (1987) e Maria Odila Leite da Silva Dias
(1995). Essas autoras defendem que a família patriarcal tal como definida por Freyre impõe
uma concepção única e genérica da família brasileira fazendo com que uma situação
121
localizada no tempo e no espaço converta-se em única matriz social da sociedade colonial.
Neste caso defende-se a existência de elementos “não patriarcais” mais próximos da atual
família conjugal, e uma variedade de modelos familiares que diferem do que foi descrito por
Freyre. Maria Odila Leite da Silva Dias (1995), aponta para a presença de mulheres fortes,
com papéis sociais decisivos para a sobrevivência dos grupos familiares. Ela ressalta as
peculiaridades deste universo feminino e sua atuação cotidiana marcada pelo improviso.
No processo de colonização, mulheres brancas tiveram um papel sui
generis de liderança social: eram fundadoras de capelas, curadoras,
mulheres de negócios, administradoras de fazendas e líderes
políticas sociais. Como chefes de família, viam-se na liderança dos
clãs e das alianças do mandonismo local (DIAS, 1995:104).
Para estas autoras, a história das mulheres não foi totalmente marcada pelo isolamento
e obediência. Tanto Maria Odila Leite da Silva Dias, quanto, Eni de Mesquita Samara
argumentam que em São Paulo, no final do período colonial, existiam figuras femininas que
se desviavam dos parâmetros convencionais.
Esta é uma das críticas dirigidas ao uso do conceito de família patriarcal, acentuar que
o conceito exacerba em demasia a submissão feminina. Contudo, até mesmo Gilberto Freyre
que é sobre quem são dirigidas estas críticas, percebeu esse fato. Em Sobrados e Mucambos,
por exemplo, ele menciona a presença de mulheres fortes, em posição de mando.
Por isso, é necessário ressaltar que o conceito de família patriarcal em Gilberto Freyre
não está necessariamente ligado a uma família extensa, mas a um tipo de poder exercido, uma
rede de poder e dependência ligados ao escravismo e ao despotismo senhorial. Ele descreve
uma ordem social da qual o poder patriarcal e a família são os elementos nucleares.
Freyre também apresenta uma preocupação com a mulher, que transparece em sua
obra ao descrever primordialmente em Casa-Grande e Senzala, mas também em Sobrados e
Mucambos, a questão do despotismo do homem em relação à mulher, sendo uma marca no
trabalho de Freyre.
Um outro ponto a esclarecer é que o patriarcalismo inclui uma forma hierárquica de
relacionamento social entre os grupos sociais, etnias e os gêneros, complementada em alguns
momentos pelo que Freyre chamou de doçura nas relações que são as relações paternalistas.
Manuel Castells (2000) define o patriarcalismo como uma das estruturas sobre as quais se
assentam todas as sociedades contemporâneas, tendo como característica a dominação do
homem sobre a mulher e os filhos. O autor acentua que para que esse domínio do patriarca
122
possa ser exercido é “necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da
sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura” (CASTELLS,
2000:169). Isto significa dizer que a dominação inicialmente exercida pelo patriarca na
família se irradia para o restante da sociedade, atingindo outros aspectos da vida social.
Por isso, alguns autores, como Angela Mendes de Almeida (1987), Roberto Da Matta
(1983, 1985, 1987, 1991) e Gilberto Velho (1987), defendem que o modelo patriarcal acaba
se constituindo em núcleo de valores e de visão de mundo que pode orientar condutas em
algumas situações sociais específicas.
É necessário levar em conta as implicações do conceito de família patriarcal para
Freyre, que inclui, em alguns momentos, a ampliação do despotismo do senhor de engenho
para a vida social e política, concebendo as relações familiares estabelecidas no núcleo
patriarcal como base de uma cultura política de cunho familista. Além disso, também deve se
levar em conta que as relações despóticas se irradiam para as relações sociais e políticas,
como demonstram os elementos significativos que refletem as situações sociais apontadas
pelos filmes analisados, como é o caso da exclusão social e da banalização da violência que
aparecem na questão dos moradores de rua em Ò paí ó e em O cheiro do ralo.
Portanto, qual a semelhança entre os senhores de engenho descritos por Freyre em
Casa-Grande e Senzala que queimavam escravas grávidas e crianças vivas e os jovens que
atearam fogo em índio que morava nas ruas de uma grande cidade?
Segundo Roberto Da Matta (1987), a família patriarcal deixou de existir apenas como
um grupo visível, mas seu modelo, no que diz respeito às idéias, ainda se manifesta em
situações específicas e essa pode ser uma delas. Embora tenha havido uma pluralidade de
modelos familiares no período colonial, como assinalaram Mariza Corrêa (1984) e Eni de
Mesquita Samara (1987), também existe o poder dos modelos dominantes fornecendo
paradigmas sociais, como argumentam Roberto Da Matta (1983) e Angela Mendes de
Almeida (1987). Nesta perspectiva, a família enquanto idéia é algo que deve ser levado em
consideração.
É importante lembrar aqui a questão levantada por Peter Burke (1997) sobre o paralelo
entre a chamada “Nova História”, surgida na França na década de 1960, e as observações de
Freyre, a partir da década de1930 no Brasil. O autor ressalta que Gilberto Freyre, ao realizar
um percurso memorial pela família patriarcal brasileira, fornece apontamentos significativos
em relação à alimentação, vestimenta, habitação, vida íntima e história da infância,
proporcionando-nos um maior entendimento sobre as mentalidades que permearam tal
123
universo. Todas esses aspectos contribuem para que possamos entender as diferentes
culturas e suas significações simbólicas, expressões de valores por meio de formas no vestir,
falar, alimentar-se, receber os visitantes, brincadeiras, brinquedos e formas de agir da criança,
enfim, toda uma observação sobre o cotidiano social da família patriarcal, tanto da casa-
grande quanto do sobrado.
De acordo com Peter Burke (1997), Freyre possuía um estilo interdisciplinar
(dialogando com sociologia, antropologia e história social) adquirido na Universidade de
Columbia, que o fez interessar-se pela cultura material e história da infância. Para Burke, há
em Freyre um interesse pelas mentalidades, pois ele esteve interessado em ethos e valores.
Em Sobrados e Mucambos, por exemplo, Freyre discute os regimes alimentares do que
ele denominou como “virgem pálida” e “esposa gorda e bonita”, do mesmo modo que é
possível observar em sua obra que ele tinha algo a dizer sobre as crianças, descrevendo em
Casa-Grande e Senzala o modo de vida da criança, (seus brinquedos, desde bonecas, pipas,
piões, bolas) até o que ele denominou de sadismo patriarcal que inclui a disciplina rígida dos
colégios jesuítas, além da postura despótica do senhor de engenho logo na infância.
Conforme Burke, “Freyre argumenta, como Philippe Ariès iria fazer no caso da
Europa moderna nascente, que no Brasil colonial mesmos meninos com dez anos idade eram
obrigados a se comportarem como gente grande” (BURKE, 1997:4). Além disso, em
Sobrados e Mucambos, Freyre enfatiza as diferentes formas de se conceber os bebês, que
eram vistos como anjos, o menino que em uma certa idade era concebido como diabo, e o
jovem adolescente visto como um pequeno adulto. Por isto, autores como Peter Burke
comparam o interesse de Freyre pela história do cotidiano social com a preocupação corrente
com o cotidiano e seu interesse na história intima com o que os historiadores franceses
chamaram de historie de la vie privée. Portanto, conclui-se que “este não é lugar para discutir
se Freyre usou ou não fontes tais como relatos de viajantes ou jornalistas de modo
suficientemente crítico, o que precisa ser aqui enfatizado é sua disposição de ir além do
âmbito relativamente estreito de documentos usados pela maioria de seus predecessores”
(BURKE, 1997:4).
A contribuição dada pelas observações de Ricardo Benzaquen de Araújo foi
significativa para entendermos a interpretação de Freyre, que colore a heterogeneidade
constitutiva da casa-grande, sugerindo em vários momentos a existência de uma proximidade
e confraternização entre os grupos. Mas é importante destacar que esta proximidade não pode
ser debitada à ausência de despotismo, um dos pontos centrais na obra de Freyre. A adoção da
124
família patriarcal como um ponto de partida para a análise dessas situações
contemporâneas evidenciou a convivência entre o moderno e o arcaico em tais situações.
Situações que se manifestam, por exemplo, no machismo do personagem Reginaldo do filme
Ò paí ó que realiza seu domínio tendo várias relações ao mesmo tempo, no mais alto estilo de
um senhor de engenho. Nas relações inclui-se a esposa, um caso com o travesti Yolanda e
paralelo a isso um outro caso com a moça que chega de uma temporada no exterior. Todas
essas relações ocorrem sob um prepotente despotismo do homem em relação à mulher.
O machismo também se manifesta na concordância sutil do personagem Antonio em
Saneamento Básico ao saber que o primo bate em sua mulher e ao argumentar que esta é uma
tradição de família e que a mulher gosta de apanhar.
Podemos relacionar a família patriarcal com a violência, o despotismo e a exclusão
social, pois em várias passagens tanto em Casa-Grande e Senzala como em Sobrados e
Mucambos, Freyre faz referência a uma diferenciação social que se manifestava desde as
arquiteturas das casas, o estilo de plantas e jardinagens, os tipos de animais, além das roupas e
jóias que eram usados até mesmo nos escravos para diferenciar o poder aquisitivo de seu
proprietário. A noção de que os pobres são por definição, perigosos, aparece logo no período
colonial.
Com isto, uma leitura de Gilberto Freyre que traduz o perfil da família patriarcal
brasileira como uma construção de padrões de comportamentos, contribui para a análise da
ética que envolve o conjunto das relações, possibilitando um maior entendimento sobre o
predomínio do pessoalismo, mas também de outros elementos, como é o caso da violência.
Pode-se observar a formação de feudos políticos, que apresentam um comportamento
inclinado às relações de favoritismo resultando, como demonstrou Da Matta, em uma
circularidade entre a vida burocrática (ou constitucional) do país e as relações de amizade,
compadrio e parentesco, mas também existe a figura do homo sacer, como conceituou
Giorgio Agamben (2002).
Tal conceito desenvolvido pelo autor consegue sintetizar situações despóticas como
aquelas apontadas pelos filmes Ò Paí ó e O Cheiro do Ralo. Portanto, a morte das crianças em
Ò Paí ó e o extermínio do morador de rua em o Cheiro do Ralo implicam no que Agamben
(2002), definiu como vida nua, uma vida matável que está em forma de exclusão, considerada
indigna de ser vivida, pois está deslocada da sociedade de consumo, está fora do lugar.
A postura despótica de Lourenço em O Cheiro do Ralo e o arbítrio utilizado pelo
comerciante em seu pacto com o policial em Ò Paí ó possuem sua relação com o que
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Giorgio Agamben (2004) denominou de estado de exceção, pois há uma suspensão da
constituição entrando em cena em atos que não têm valor de lei, mas adquirindo força de lei.
Isto é o estado de exceção para Agamben, a existência de uma violência fora do direito em
que há uma indistinção entre público e privado, pois o privado como é o caso de Lourenço e
do comerciante, simplesmente não podem atuar usando a força para decidir quem vive ou
quem morre. Tal definição estabelecida por Giorgio Agamben pode chegar a implicações
muito mais complexas, contudo também se aplica a essas questões levantadas aqui.
Um outro aspecto que podemos concluir é que em alguns momentos pode existir uma
circularidade entre a individualização (universo das leis) e o modo relacional de viver atrelado
ao universo dos amigos, fazendo com que a vida social seja movida por duas éticas
diferenciadas: por um lado, a ética que envolve o universo dos amigos e família e, por outro, a
ética que envolve uma razão pública.
A apreensão teórica dos contornos desta mentalidade, (apontada por Sérgio Buarque
de Holanda e, complementada pelas observações de Gilberto Freyre), ou desta matriz ética,
torna-se indispensável para entender sob que forma deu-se a persistência das idéias que
recebemos da família patriarcal, que aparecem em situações apreendidas nos nexos
significativos da estrutura fílmica.
Sérgio Buarque de Holanda (1995), argumenta que uma dessas heranças reside no
fato da entidade privada preceder a entidade pública e isto explica porque as relações que se
criam na vida doméstica podem fornecer o modelo para outras composições sociais.
Há uma espécie de paradoxo em que a sociedade se inclina para a cordialidade e ao
mesmo tempo busca o particular e hierarquizado, como demonstrou Da Matta (1983, 1985,
1987, 1991). O pessoalismo, o nepotismo, o favoritismo, as relações de apadrinhamento e o
jeitinho são formas socialmente estabelecidas em uma estrutura social onde a hierarquia
parece estar baseada na intimidade das relações pessoais.
Nesse sentido, as relações podem começar como marcadas pelo eixo econômico do
trabalho, mas logo adquirem uma tonalidade pessoal, como demonstram Tânia Casado e
Siegrid Guillaumon Dechandt (2005). Com isto, percebe-se que ao se fazer uma análise do
sistema social brasileiro não é possível pensar somente na questão da diferenciação
econômica. Deve-se sim, ir um pouco além, observando o que se passa no imaginário social e
alguns de seus elementos continuam aparecendo.
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Assim como demonstra Roberto Da Matta, existe entre nós um individualismo que
é complementado por uma rede de relações que o sustenta de maneira integral, fazendo com
que a experiência individualizante exista na medida em que o sujeito possui uma rede de
relações para ampará-lo, prevalecendo a idéia de que “quanto mais aristocratismo e rede de
pessoas me apóiam, mais individualista posso ser” (DA MATTA, 1987:135).
A ética que está por trás das relações descritas por Freyre e o conceito de “homem
cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, assim como as observações feitas por Roberto Da
Matta no que diz respeito ao conflito entre leis e práticas sociais e a circularidade entre os
espaços da casa e rua, permitem que possamos perceber a importância de se analisar as
persistências que existem na cultura e na estrutura social, manifestando-se no imaginário por
meio de idéias, piadas, chistes, modos de vida, ações, palavras e sendo apresentadas em
manifestações literárias ou cinematográficas.
O modo patriarcal presente nas idéias transparece nas relações contemporâneas por
meio do jeitinho, do despotismo e da banalização da violência, possuindo uma matriz
histórica, mas uma vigência contemporânea que se manifesta em certos momentos.
O efeito da estrutura social engendrada do processo de colonização revela o
predomínio de uma vida cultural pautada pelas relações pessoais, constituindo-se em um
mecanismo de proteção e ascensão social, na mesma proporção que um instrumento para o
jeitinho. Desta forma, estas relações se desenvolvem e se internalizam no imaginário.
Conclui-se que somos herdeiros de uma tradição. A questão é entender o que permanece em
nossa sociabilidade como impasses, enigmas; e isto está sendo pensado em formas de
convívios, instituições, idéias e ações.
Contudo, este estudo não tem a pretensão de esgotar o assunto sobre este tema tão
fascinante que é a existência desses elementos em nossa sociedade enquanto uma “herança”
da família patriarcal, elementos que permeiam o meio social, assim como as estratégias de
exercício e manutenção do poder, instituindo o ilegal – ao torná-lo legítimo - como forma de
convívio social, como é o caso do jeitinho quando se manifesta desta maneira.
A pretensão de não esgotar o assunto se justifica pela própria incapacidade de se
abarcar a totalidade do problema em questão. Como salientou Weber (1993), quanto mais
“universal” for o problema em questão e quanto mais amplo for o seu significado cultural,
menos será possível dar uma resposta extraída do material do conhecimento empírico. Em
outras palavras, ao olharmos para o mundo ao nosso redor, verifica-se que ele se manifesta
127
dentro e fora de nós, “sob uma quase infinita diversidade de eventos que aparecem e
desaparecem sucessiva e simultaneamente” (WEBER, 1993:124).
É demonstrado por Weber, que essa diversidade subsiste, mesmo quando voltamos a
nossa atenção, isoladamente, a um único objeto, e com isto, todo o conhecimento da realidade
infinita baseia-se na “premissa tácita de que apenas um fragmento limitado dessa realidade
poderá constituir de cada vez o objeto da compreensão científica e de que só ele será essencial
no sentido de digno de ser conhecido” (WEBER, 1993:124).
Deste modo, toda investigação científica deve ser continuada, não sendo possível
avaliar a medida do significado cultural do pessoalismo, favoritismo, despotismo e da
banalização da violência em relação a outros elementos componentes da cultura
contemporânea sem tarefas subseqüentes.
Weber (1972) sustenta que a significação de que está revestido todo trabalho
científico é a de que toda obra “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgirem
novas “indagações”. Deste modo, não é possível concluir um trabalho científico, sem esperar,
ao mesmo tempo, que outros avancem ainda mais, e neste caso, ele esclarece que esse
progresso poderá ser prolongado.
Este trabalho percebeu a importância dos estudos sobre os fenômenos culturais e,
entende a necessidade de se analisar, não somente o imaginário, que aparece nessas
manifestações, mas também, o modo e os processos em que tudo isso acontece. A perspectiva
pluridisciplinar adotada na pesquisa foi fundamental.
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Livros Grátis
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