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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Adilson da Silva Mello
Cunha: relações religiosas e transformações, tradição e transição
cultural.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Adilson da Silva Mello
Cunha: relações religiosas e transformações; tradição e transição
cultural.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para a obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais, área de concentração:
Sociologia da Religião, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação do
Professor Dr. Luiz Eduardo W. Wanderley.
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
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__________________________________
AGRADECIMENTOS
Gostaria de dedicar estas primeiras linhas a duas pessoas
importantíssimas: Katia R. Lordelo Bamberg (minha esposa) e Gabriel
Bamberg Mello (meu filho). À Katia, pela dedicação e carinho com que soube
superar os momentos mais intensos da pesquisa; ao Gabriel, por ter nascido
no meio deste processo complexo, e conviver entre nós.
A Pedro Bamberg e Lilás Lordelo Bamberg, por serem presença
compreensiva e auxílio nos meus momentos de ausência.
Ao professor Dr. Luiz Eduardo Wanderley, pela paciência e sabedoria
que, de sua parte, construíram este processo de orientação.
À professora Dra. Beatriz S. Muniz, pela acolhida e início de caminhada.
Aos professores Dr. Milton Zamboni e Dr. Ênio Brito pelas orientações
obtidas.
À FATEA, na pessoa da Profa. Dra. Ir. Olga de , bem como de seus
coordenadores, e secretaria na pessoa da Profa. Maria Aparecida de Souza
Boncristiano – pela presteza nas questões administrativas.
A todos aqueles que contribuíram com suas informações.
Ao prof. Giovanni Guimarães, mestre na folia e na academia, por sua
colaboração.
Ao Prof. Julio Cesar Moreno, pelo ajuda prestada na parte técnica.
Ao Pe. José Verreschi Neto, pela importante colaboração prestada a
este trabalho, que, como poucos, conhecem Cunha: suas estradas, seu povo,
sua religiosidade, enfim, sua cultura.
À CAPES, pela ajuda de custo dada através de Bolsa do órgão.
Enfim, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela acolhida e solução eficiente
dos problemas que naturalmente surgiram durante o processo.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo principal, construir uma reflexão sobre
a realidade cultural no Município de Cunha com foco no catolicismo popular, e
demonstrar as transformações ocorridas no mesmo, devido à entrada de
elementos sócio-culturais ligados à modernidade e ao processo de
globalização. A pesquisa constata que a realidade cultural daquele município
se encontra em processo de mudanças significativas, este mas elas não
implicam, necessariamente, em conseqüências que apontem para o fim das
tradições religiosas no município, pois as mesmas são híbridas e, ao mesmo
tempo em que se transformam, preservam seus fundamentos mais valiosos.
Para realizar esta pesquisa, utilizamos entrevistas realizadas com pessoas do
local, bem como uma análise bibliográfica sobre a região.
Palavras-chaves: Cultura, religiosidade, catolicismo, modernidade.
ABSTRACT
This research aims to construct a reflection on the cultural reality in the
city of Cunha and demonstrate the changes in the same due to the entry of
elements linked to the socio-cultural modernity and the process of globalization.
However, the survey states that the cultural reality of that council is in the
process of transformation and the same process does not mean, necessarily, in
statements that say the end of the religious traditions in the city, because they
are hybrid, and at the same time that become, preserve its foundations more
valuable.
Keywords: Culture, religion, Catholicism, modernity.
SUMÁRIO
Introdução. 1 – 17
Capítulo Primeiro – Preparando o Terreno: Elementos Metodológicos e Teóricos.
1.1 O conceito de cultura 21 - 27
1.2 Relações entre transformações e continuidade 27 – 33
1.3 A idéia de circularidade cultural. 33 – 40
1.4 Heterogeneidade ou hibridismo. 40 – 46
1.5 Modernização e secularização. 46 - 51
1.6 A Realidade Caipira 52 – 58
1.7 Sobre o catolicismo. 58 – 61
Capítulo Segundo Cunha, Ontem e Hoje: Conflitos e Transformações; Tradição e
Transição.
2.1 Aspectos gerais sobre a formação dos núcleos urbanos no Vale do Paraíba. 62 - 65
2.2 O povoamento de Cunha 65 - 70
2.3 O mundo rústico a partir da realidade de Cunha: a formação da tradição 70 - 83
2.4 Aspectos históricos relacionados ao processo de formação da estrutura e da
realidade econômica e social na região de Cunha no século XX 83–101
2.5 As mudanças econômicas: a presença do processo de modernização da economia
e da sociedade. 101-113
Capítulo Terceiro: A Questão Católica: Modernização, Hibridismo e Resistência
Religiosa.
3.1 Uma leitura histórica da paróquia. 114-136
3.2. A Renovação Carismática Católica. 137-144
3.3 A tradição que verga, mas não quebra. 144-150
3.3.1 Transformações e concessões na prática religiosa. 150-160
3.3.2 Folias e festas: foliões e seus participantes. 160-180
3.3.3 Os ex votos e as capelas de “santa cruz”. 181-188
3.3.4 Curandeiros (as) e benzedores (as). 189-208
Considerações Finais. 209-217
Bibliografia 218-233
[1]
INTRODUÇÃO
Em maio de 1999, quando apresentei o texto de conclusão do curso de
Mestrado à Banca sob o título de Mariinha das Três Pontes, uma idéia
ficava me preocupando o tempo inteiro e dizia respeito às transformações
ocorridas no município de cunha, o que levou Robert Shirley a escrever um
texto memorável sobre o mesmo, chamado O Fim da Tradição. Com o passar
do tempo resolvi desenvolver outro texto afirmando que, apesar do respeito
que tenho pelo mesmo, não percebia essas transformações como fim, muito
menos como fim de uma tradição que por séculos reside na vivência daquela
população.
Certa vez, ao ler um poema de uma violeira amiga, moradora desse
imenso vale de montanhas, rios e estradas, que atende pelo nome de Mirian
Cris, percebi que era hora de encarar tal tarefa. O texto que li dizia:
“Cresci vendo as folias passarem. Todo fim de dezembro,
esperávamos por elas. Era natural, não precisava de explicações e nem
causava espanto. Para mim, elas existiam no mundo inteiro e seriam
para sempre. Gostava de ver os palhaços pularem na rua e falarem
versos engraçados, com suas máscaras sempre assustadoras. Muitas
vezes, recebíamos a folia inteira par cantar, era muito bonito, mas eu
não conseguia entender as letras, só sabia que louvavam o Menino-
Jesus. Era o bastante. Outras vezes, recebíamos apenas a bandeira, que
levávamos a todos os cômodos da casa, garantindo a proteção para o
ano inteiro. Depois beijávamos suas fitas e dávamos um trocado para
ajudar nas despesas do grupo e da festa do Dia de Reis.
Quando passava uma folia perto da casa da Vó Lourdes, ela dizia:
- Deixa procês vim tocá aqui em casa por último, pra d’ocêis
merendá! Enquanto eles visitavam as casas vizinhas, ela preparava a
mesa com tudo de mais gostoso que tivesse, broa, biscoitos, pão, queijo,
[2]
sem falar o bom café, bem ralinho. Tive a alegria de poder ajudá-la
algumas vezes.
Tentando alcançar o tempo, guardador de todas as novidades, a
tempo do próximo ônibus, por pouco o percebi que estava certa. As
folias são para sempre!
Isso me inquietava ainda mais. Este trabalho foi escrito como parte do
processo de conclusão do doutorado. Esta inquietação faz parte do sentido que
me move a desenvolver e escrever, sob forma acadêmica, os argumentos que
constroem outro olhar sobre aquela realidade interpretada por Shirley.
Na realidade, procurei fazer um recorte no objeto de pesquisa tendo em
vista o tempo e a realidade de um pesquisador nos dias de hoje; e, procurei
fazê-lo a partir daquilo que mais venho analisando durante minha pequena vida
acadêmica: a religiosidade praticada no município. Em consonância com o
orientador decidimos que a pesquisa ficaria centrada na análise do catolicismo
e suas diferentes práticas.
Neste sentido, construí três capítulos para ordenar uma argumentação
que se apóia de um lado, no veio poético vivido por aquela gente. De corte
poético e sensível, como nós pesquisadores nem sempre conseguimos ser, é a
prática devocional e existencial da população que vive naquela também poética
natureza. Mesmo ciente de minhas dificuldades pessoais nesse sentido, tentei
resgatá-lo e valorizá-lo.
A presente pesquisa pretende elaborar uma interpretação sobre as
transformações ocorridas no catolicismo do Município de Cunha - interior do
Estado de São Paulo - nos últimos trinta anos, e verificar se nesse período os
fatos confirmam a idéia de Shirley de que a cultura local passa por um
[3]
processo de transformações que geram o “fim da tradição”. Particularmente
discordo dessa hipótese e pretendo demonstrar o contrário, ou seja, pretendo
defender a tese que afirma que uma perspectiva teórica atenta aos detalhes
dos elementos culturais religiosos vividos no município gera transformações
dialogadas entre diferentes perspectivas culturais, ocasionando uma realidade
cultural profundamente híbrida e, conseqüentemente, mais resistente às
transformações em suas estruturas básicas de sustentação.
Cunha foi um dos locais escolhidos para a realização dos primeiros
estudos de comunidades feitos no Brasil. Trabalho elaborado por Emilio
Willems, ainda citado em alguns campos da pesquisa acadêmica, estimulou um
interesse pelo estudo do caipira paulista. Segundo João Veloso, o primeiro livro
sobre Cunha chama-se Cunha, editado em 1935 pela Empreza Graphica da
Revista dos Tribunaes e escrito por Clementino de Souza e Castro Junior. Em
1944, Mario Wagner Vieira da Cunha publicou nos Anais do IX Congresso
Brasileiro de Geografia um texto chamado O Povoamento do Município de
Cunha. Em 1947, o Prof. Emilio Willems publicou o livro Cunha: Tradição e
Transição em uma Cultura Rural no Brasil. Veloso cita ainda outros trabalhos
mas não atribui aos mesmos o valor acadêmico que possuem o citado trabalho
de Willems, e o de Robert W. Shirley que escreveu O Fim de uma Tradição:
cultura e desenvolvimento no Município de Cunha, publicado no Brasil em 1977
pela Editora Perspectiva.
A partir da década de oitenta do século passado, quase nada mais foi
publicado sobre o Município no campo de estudos tais como a economia, a
cultura e a estrutura social de Cunha, o que abre uma brecha para esta
[4]
pesquisa. O que pretendo é estudar as mudanças ocorridas nas práticas
religiosas católicas do município e as correlações com as estruturas
socioeconômicas e culturais.
O avanço da “modernidade”
1
, geradora de urbanização, afasta o homem
da zona rural de seu meio e coloca em seu lugar as chácaras, sítios e casas de
veraneio, propriedade de pessoas alheias ao universo cultural da região. O
estudo do caso aqui proposto passa necessariamente pela questão da
modernização da sociedade que, em menor escala, atinge também o município
de Cunha. Gradativamente os fenômenos de cura, benzeção e vidência
perdem espaço para a medicina, bem como para a entrada de uma cultura
propensa a uma “credulidade” mais racionalizada. Este fato pode ser notado
nas gerações mais novas, nas quais se percebe a existência de traços de um
ideário marcado por objetivos ligados a uma cultura urbana, em detrimento de
uma cultura de raízes agrárias
2
.
O catolicismo tem convivido de perto com esta realidade, pois a
perspectiva de o catolicismo tradicional urbano e rural ter cedido espaços para
o advento de um catolicismo mais racional e internalizado
3
é real. As mudanças
aconteceram e acontecem de forma lenta devido a uma história de isolamento
1
Gostaria de deixar claro que o termo modernidade possui uma enorme complexidade
embutida em seu conceito. O que queremos trabalhar é a perspectiva de a modernidade ser
produto de uma transformação histórico-cultural complexa. Dentro dessa complexidade
encontramos características como: a substituição da perspectiva cosmocêntrica e teocêntrica
pela antropocêntrica onde tudo é pensável tendo como ponto de partida o ser humano (sua
racionalidade e subjetividade) agora, sujeito de sua ão no mundo; alteração do primado
metafísico para o gnosiológico onde a razão técnica supera a razão teórica e introduz a
perspectiva da industrialização gerando a “imanentização” do sujeito e a imanentização do
infinito ao sujeito pensante que desenvolve um saber que se propõe absoluto.
2
Cf. Shirley p.p. 73-94. Neste capítulo o autor retrata as transformações econômicas ocorridas
no município e, já ao final da década de sessenta, inicio de setenta.
3
Vamos assumir aqui neste trabalho a tipologia adotada por Candido Procópio Ferreira de
Camargo em seu livro Católicos, Protestantes, Espíritas (em seu Cap. 02 Catolicismo no
Brasil”) e anteriormente já exposto em seu trabalho Igreja e Desenvolvimento.
[5]
cultural que, por mais que pareça superado, ainda é forte e faz com que uma
visão tradicional do catolicismo ainda seja vigorosa. Ainda no Campo católico,
a Renovação Carismática Católica começou a se apresentar de forma cada vez
mais consistente a partir do final da década de oitenta. Um dos fatores que
mais contribuiu para isso foi a proximidade da “Canção Nova”, uma emissora
católica de Rádio e Televisão que tem se tornado cada vez mais forte nos
meios de comunicação do Vale do Paraíba.
Gradativamente, porém, algumas religiões protestantes de cunho
histórico ou evangélico foram ampliando seu espaço de influência (isto também
se deve ao fenômeno do êxodo rural que gera a urbanização naquela
sociedade) e, em conseqüência, deixando uma marca de racionalização da fé.
Além disso, encontramos uma grande presença de religiões neopentecostais,
centros espíritas e alguns poucos terreiros. Porém, o universo da religiosidade
católica tradicional rural e mesmo urbana daquele povo é marcado pela forte
influência do catolicismo; no qual se pode perceber uma relação geradora de
trocas de representações simbólicas entre pólos culturais diferentes e
concomitantemente construtores de um universo religioso em que a tradição
tem uma presença operante, na forma de se lidar com o advento de novos
valores oriundos da presença exógena de uma cultura marcadamente urbana
de relações, a qual propõe uma ação geradora de individualização em
detrimento do caráter coletivo e comunitário culturalmente construído na região.
Como fiz a construção deste texto? Os três capítulos têm os seguintes
objetivos: o primeiro procura construir o alicerce teórico deste trabalho
discutindo conceitos importantes para uma interpretação diferente daquela
[6]
descrita por Shirley. O segundo se apóia na história do município e discute a
formação, as transformações, as resistências e as adaptações existentes na
tradição de culos que ainda se encontra presente no imaginário das pessoas
que transitam naquele universo cultural. Esses transeuntes da cultura herdada
no município são olhados pelo pesquisador a partir das tradições de sua
história. E, finalmente, o terceiro capítulo, além de construir um apanhado
histórico do catolicismo vivido em Cunha, transita de uma leitura histórica da
paróquia a às diferentes práticas religiosas culturais desse catolicismo,
afirmando a saúde e a versatilidade adaptativa daquelas tradições seculares do
catolicismo vivido pela população de Cunha. Segue uma apresentação mais
detalhada dos capítulos com suas justificativas.
No primeiro capítulo intitulado Preparando o terreno: elementos
metodológicos e teóricos, parto da explicação da metodologia adotada neste
trabalho. Ela pretendeu utilizar uma abordagem interpretativa tomando como
base um informante central que apontou, outros informantes geradores de uma
rede de informações fundadas na pertença direta às raízes das comunidades
pesquisadas. As entrevistas foram gravadas e arquivadas em formato digital e
transcritas, o que permite ao pesquisador sempre retomar sua análise quando
da dúvida sobre uma interpretação levantada pelo mesmo. Era necessário
buscar raízes culturais do caipira fundador de uma realidade cultural, marcada
por uma ordem de liberdade que, muitas vezes, oscilava entre o acolhimento
das culturas que transitavam pelo local e a violência costumeira existentes
entre seus membros. A metodologia qualitativa caracteriza-se, entre outras
coisas, pelo emprego de uma combinação de técnicas de investigação, que
[7]
permitam mapear e articular intervenções que possam ser confrontadas e/ou
organizadas em função do: conteúdo narrativo; das representações
interpretadas como culturais da localidade ou do meio cultural mais amplo
inclusive historicamente situadas; das falas oriundas de uma estrutura
institucional; enfim, dos contornos de cotidiano complexo e com fronteiras nem
sempre bem determinadas.
No que se refere aos conceitos, em primeiro lugar, me apóio na
interpretação sobre cultura de Clifford Geertz, buscando dar sentido a todos os
trâmites existentes entre as diferentes realidades culturais de Cunha e suas
relações com as diferentes formas de expressão da religiosidade local. Minha
intenção é demonstrar que essas articulações culturais de cunho religioso
católico e suas implicações no comportamento cultural, em contato com
diferentes formas de articulação do catolicismo e em diferentes contextos
dentro da religiosidade católica de Cunha, devem ser lapidadas a partir do
mundo humano; no qual as apreensões interpretativas que os seres humanos
dão à vida acontecem com base na significação estabelecida pelos mesmos a
partir dos fatos sociais.
Em minhas leituras, muitas vezes me deparei com textos que olham a
realidade vivida em seu cotidiano e, conseqüentemente suas tramas de
significação, como algo no qual facilmente se identifica o começo, o meio e o
fim das diferentes realidades. Meu trabalho procura se afastar desta visão, pois
a mesma leva-nos a enganos que pressupõem a existência do fim daquilo que
chamamos de tradição cultural; enganos embasados em um olhar qualitativo
sem a preocupação de detectar o encontro complexo entre realidades culturais
[8]
onde, ao invés de fim, as mesmas se atualizam na ação, pois entre a prática e
a “matriz de significados” existe um sujeito histórico que interpreta, articula e
reconstrói os componentes oriundos dessa mesma matriz. Neste sentido,
procurei ancorar meu objeto de pesquisa na perspectiva de que contatos
culturais nem sempre supõem a supremacia de determinada cultura em
detrimento de outra. Neste sentido, Sahlins contribui decisivamente para as
ciências sociais, ao mostrar que os efeitos das forças materiais globais
dependem dos diversos modos como são mediados em “esquemas culturais
locais”, e que “a presente ordem global foi decisivamente moldada pelos povos
periféricos”. Tal perspectiva vai ao encontro de nossa tese de que não existe o
fim da tradição a partir do avanço do processo de modernização capitalista,
aqui vivida no interior da realidade do município de Cunha, pois Sahlins não
enxerga o capitalismo como uma realidade que no campo cultural tem a
capacidade de “acabar” com a cultura dos povos. Enxerga a influência
capitalista como um novo fator que agirá na transformação das culturas, que
sempre estão nesse processo de renovação e reestruturação.
A questão da “circularidade cultural” sempre me chamou atenção desde
o primeiro contato com a obra de Carlo Ginzburg e, nesta pesquisa, a mesma
fundamenta a idéia de que encontramos trocas culturais fundamentais entre
diversos campos de produção das culturas locais. Neste sentido, essas trocas
corroboram a idéia de que é possível adquirir elementos novos e diferentes em
determinados espaços culturais, valorizando a idéia de circulação dos valores e
apropriação de valores diferentes que sempre são adaptados a novas
construções culturais que os apropriam. Neste sentido, também me apóio no
[9]
conceito de hibridismo proposto por Canclini e, mesmo reconhecendo que
todas as culturas são híbridas e que as misturas datam das origens da história
do homem, não podemos reduzir o fenômeno à formulação de uma nova
ideologia nascida da globalização, ou fruto de um mundo que mistura para
impor uma nova ordem; pelo contrário, o fenômeno é antigo e tem recebido
maior atenção por parte dos pesquisadores modernos. A experiência da
hibridização, para Nestor Garcia Canclini, impede a pretensão de estabelecer
identidades puras ou autênticas, uma vez que os incessantes processos de
hibridização, como a abertura da economia ao mercado global, a imigração e
migração, por exemplo, levam a relativizar a noção de identidade nacional e a
identificação de identidades locais, partindo para idéia de mistura como
formação. Somos ao mesmo tempo outros e com outros, sendo impraticável
representar somente uma identidade cultural pensando nesse processo de
hibridização.
Acredito que outra preocupação presente neste texto é a de pensar a
relação entre as transformações geradas pela globalização da sociedade e as
culturas regionais, entre o avanço da modernidade no Município de Cunha e
suas implicações nas práticas religiosas vividas pela população. Aceitar a
existência de tensões não significa concordar com a idéia de fim de uma
realidade, pois a tensão faz parte de um movimento dialético que transforma o
tradicional híbrido, e em movimento, em realidade que continua se
movimentando. Quando pensamos desta forma, entendemos que a
globalização envolve o problema da diversidade. Praticamente todos os
estudos e interpretações sobre a sociedade global colocam esse problema. A
[10]
reflexão sobre a diversidade não pode estar ausente, que implica aspectos
empíricos, metodológicos, teóricos e propriamente epistemológicos. Logo que
se reconhece que a sociedade global é uma realidade em processo, está posto
o problema do contraponto globalização e diversidade.
Neste capítulo também discuti e utilizei a idéia de uma “tipologia” caipira,
que passa pela idéia de que a compreensão deste modo de vida e sua maneira
tradicional não podem ser entendidas apenas em face de sua estruturação
endógena. É preciso também entender as forças exógenas, pois na relação
destas com a cultura caipira é que se processam as possibilidades históricas e
culturais da configuração da cultura caipira em sua estrutura atual.
Para terminar com o exposto neste primeiro capítulo, afirmo que o
mesmo adota uma estrutura conceitual sobre o catolicismo que foi
desenvolvida por Camargo em seu livro Católicos, Protestantes, Espíritas
(CAMARGO, 1973)
.
No segundo capítulo, Cunha, ontem e hoje: conflitos e transformações?
tradição e transição?, procuro analisar a formação histórica do município no
contexto regional do Vale do Paraíba, pois entendo a história do município
como contexto fundamental para dar uma interpretação adequada às
transformações e reconfigurações existentes na realidade cultural e,
conseqüentemente, religiosa daquela população. Divido o mesmo capítulo em
cinco momentos importantes: A) Aspectos gerais sobre a formação dos núcleos
urbanos no Vale do Paraíba; B) O povoamento de Cunha; C) O mundo rústico
a partir da realidade de Cunha: a formação da tradição; D) Aspectos históricos
relacionados ao processo de formação da estrutura e da realidade econômica e
[11]
social na região de Cunha no século XX; E) As mudanças econômicas: a
presença do processo de modernização da economia e da sociedade.
Esta divisão é relevante no sentido de poder assinalar, a partir de uma
construção didática sem querer absolutizar a mesma ou separar os referidos
momentos -, os meandros pelos quais as transformações históricas foram
paulatinamente acontecendo.
Nos itens A e B -
Aspectos gerais sobre a formação dos núcleos urbanos no
Vale do Paraíba e
O povoamento de Cunha
trabalho com dados significativos do
município a partir de fontes primárias e/ou textos clássicos sobre ele e/ou a
região. Afirmo que quando penso em trabalhar historicamente com um período,
busco levantar todas as possibilidades documentais com o intuito de que,
quanto maior a quantidade de informações, melhor a qualidade para uma
seleção dos dados a serem apresentados de acordo com os objetivos do
presente projeto. Gostaria de deixar claro que não existe um trabalho mais
sistemático que faça uma profunda leitura histórica do município.
No item C - O mundo rústico a partir da realidade de Cunha: a formação
da tradição amplio a discussão argumentando sobre a importância de se
pensar este processo histórico como formador de um mundo cultural rústico,
que deixou marcas profundas a serem analisadas em momento posterior. Todo
imaginário construído no campo religioso católico traz resquícios destes traços
arraigados na dinâmica cultural da população daquele município. Questões
como: a história local do comércio; as figuras fantásticas dos tropeiros,
agregados, camaradas, vendeiros, bem como suas relações entre si, com os
moradores locais; a complexidade da construção relacional para criar
[12]
perspectivas de um comércio com outras regiões, bem como suas
conseqüentes relações culturais; configuram uma trama fundamental que
revela traços de um hibridismo gerador de culturas locais ainda vivas na prática
cotidiana do homem cunhense. Como, por exemplo, nos afirma Franco:
“A literatura das viagens afirma que se experimentava
longamente as dificuldades dos caminhos, o desabrigo dos
ranchos, a pobreza das vendas, a mercê da hospitalidade
estranha, tornando evidente um desnível grande entre os valores
arriscados nesse tráfico e as condições mínimas de segurança. É
no ponto de articulação desses dois caracteres - tecnologia
rudimentar e grande empreendimento mercantil - que se pode
situar a figura do tropeiro no século XIX pois o tropeiro aparecia
como a própria personificação dessas condições objetivas, sua
atividade firmou-se por ser indispensável a um momento das
operações comerciais” (FRANCO, 1997).
No item D -
Aspectos históricos relacionados ao processo de formação da
estrutura e da realidade econômica e social na região de Cunha no século XX
trabalho com dois textos clássicos sobre o Município, a saber: o texto de
Willems (WILLENS, 1947) e o de Robert Shirley (SHIRLEY, 1974). A leitura
construída por Willems é extremamente detalhada, obedecendo a um esquema
do período ligado aos estudos de comunidades no Brasil. Esta primeira leitura
foi realizada na cada de 1940. No segundo momento me detenho na leitura
feita por Robert Shirley ao final da década de 1960. Um trabalho de fôlego que
tinha como objetivo mostrar o processo de modernização da sociedade
Cunhense, as transformações ocorridas no município por conta da interferência
[13]
dos elementos da “modernidade”, trazidos pelo processo de relações sócio-
culturais existentes entre o município e o Vale do Paraíba. O fato de utilizar tal
trabalho não implica em adotar sua perspectiva teórica nos estudos sobre a
região, tampouco tenho a pretensão de construir uma interpretação que se
inspira mais a fundo nas questões e conclusões levantadas pelo autor. Minha
perspectiva é outra e meu objeto se restringe à questão religiosa,
especificamente ao catolicismo e suas mudanças naquele município. Mesmo
assim, utilizo-me de informações importantes para construir a ponte entre o
trabalho de Willems e os dias atuais.
No item E – As mudanças econômicas: a presença do processo de
modernização da economia e da sociedade constato que as transformações
ocorridas em Cunha não pertencem à esfera de um processo de
industrialização, como costumeiramente se constata em vários municípios
existentes no Estado de São Paulo; porém, não se pode negar uma gama de
outras transformações ocorridas no município que transformaram
comportamentos e alteraram partes do processo político e social. Estas
transformações ocorridas nos campos populacional, econômico, social, político,
educacional e religioso são lidas a partir de dados levantados através de
indicadores obtidos a partir do Censo Demográfico do IBGE referentes ao
período, bem como da leitura do “Plano Diretor de 2006” (LEI n. º 1.112/2006).
As transformações ocorridas nas realidades social e econômica têm seu
grau de influência, porém não geraram maiores conflitos sociais nos processos
das relações sociais no município, tendo em vista que a complexificação dessa
estrutura social gera no imaginário local uma releitura gradativa desse universo
[14]
cultural, devido à lentidão dessas transformações naquela sociedade; e neste
sentido, continuidade e mudança ou tradição e modernidade (HOBSBAWN:
1997) não são aspectos excludentes e sim aspectos relacionais e, muitas
vezes, complementares de um mesmo amplo processo social.
O terceiro capítulo A Questão Católica: Modernização, Hibridismo e
Resistência Religiosa, é o cleo da tentativa de demonstração da tese de que
não podemos falar em fim das tradições, principalmente no campo da
religiosidade. O catolicismo popular abriga ritos e a invocação de santos para
curar enfermidades ou atender necessidades. Essas características imprimem
a idéia de uma religiosidade apegada a grande número de santos e entidades,
como anjos ou mesmo o Espírito Santo, e figuras humanas carismáticas como
capelães, rezadeiras e benzedeiras. Nesta realidade, destacam-se traços da
religiosidade que acabou por valorizar o leigo, a partir de uma estrutura
histórica marcada pelo isolamento das pessoas devotas no interior deste país
de dimensões continentais e/ou por dificuldades de acesso; o que acarretou,
por isso, a falta de clérigos em muitas regiões do país e inclusive do interior do
Município de Cunha. Este catolicismo combina a devoção aos santos (com
suas rezas, promessas, romarias, culto domésticos às imagens) com práticas
sacramentais esporádicas (batismo, primeira comunhão, missas festivas e de
sétimo dia), tendo por eixo a relação direta e pessoal entre o fiel e o santo
protetor. Embora a instituição religiosa não faça a mediação oficial entre eles, o
culto privatizado aos santos não é inteiramente autônomo, porque o santo
(imagem) geralmente deve ficar na igreja e ali o padre é que impõe as normas
para o culto. Minha análise partiu de uma reflexão sobre a formação das
[15]
comunidades religiosas católicas em Cunha a partir da presença de uma
Congregação Religiosa, quando a mesma assumiu a paróquia daquele
município. Neste sentido, a primeira parte deste capítulo - Uma leitura histórica
da paróquia procura evidenciar o papel destes sacerdotes religiosos na
formação da atual estrutura pastoral da paróquia. Na medida em que o
processo de formação de comunidades ia se espalhando e concretizando o
projeto desses religiosos, construía-se a interferência de uma liderança de fora
da localidade – agentes de pastoral – ou a liderança racionalizada de um
agente, a princípio endógeno, que, na verdade, se tornavam os olhos dos
agentes exógenos como, por exemplo, os padres. Sem combater diretamente
as devoções tradicionais, os padres limitavam-se a não participar delas e a
condenar os excessos cometidos durante as suas festas, tais como a dança, a
bebida e os jogos, bem como criticar o mau uso do dinheiro recolhido pelos
devotos. Na realidade a prática sacerdotal apontava sempre na direção de uma
construção mais racionalizada da fé católica no município.
Na segunda parte do capítulo discuto, ainda que de forma rápida, a
chegada e influência da Renovação Carismática Católica. Em conversas com
um ex-sacerdote e um membro da Renovação Carismática Católica da
paróquia, percebi que esse movimento ainda tem uma grande penetração na
região.
A terceira parte do capítulo A tradição que verga, mas não quebra
foi dividida em quatro momentos importantes. No primeiro momento
Transformações e concessões na prática religiosa - pretendi elaborar uma
interpretação das transformações existentes no catolicismo e em suas relações
[16]
internas, procurando realocar as transformações na perspectiva híbrida da
realidade cultural, apontando ser tranqüila a convivência com boa parte das
transformações operadas naquela religiosidade; neste sentido o texto afirma
que essas relações existem dentro de uma prática de concessões que
articulam o tradicional e o moderno, mantendo diferenças e interagindo
culturalmente. No segundo momento Folias e festas: foliões e seus
participantes tive como objetivo demonstrar a presença expressiva das festas
no município e dar a elas uma leitura contextualizada à realidade de
transformações pelas quais passam o município. Neste sentido, aponto as
festas, as folias ou qualquer outro momento lúdico como passível de
transformações na rotina da realidade simbólica da população.
No terceiro momento - Os ex votos e as capelas de ‘santa cruz’-, afirmo
que os ex-votos são objetos visuais produzidos com a finalidade de agradecer
uma graça alcançada, ou relembrar fatos religiosos anteriores como elemento
de memorização do mesmo. Neste sentido procuro analisar a permanência
destes objetos e sua importância no universo simbólico da população, fazendo
memória, construindo relatos e trabalhando estes relatos como momentos de
construção histórica desses bairros de Cunha. Numa sociedade em que a
racionalidade instrumental leva a uma fuga dos elementos constitutivos de
sentido de coesão de mundo, ao esvaziamento simbólico do universo, se
implanta o surgimento das emoções como forma de expressão religiosa, pois a
necessidade de significação e identificação não desaparecem no homem
contemporâneo, como não desaparecem os sentidos e os fundamentos
transcendentes à sua existência.
[17]
Finalmente, termino o capítulo Curandeiros (as) e benzedores (as) -
com uma reflexão acerca do imaginário sobre a questão da cura e dos
curandeiros no município. Por questões práticas me concentrei em dois
curandeiros, seu Julio e Mariinha. A escolha se deveu ao fato do primeiro
ser uma pessoa ainda viva no município com relativa expressão religiosa e
trânsito no meio católico, e a segunda, se constituir numa das maiores
expressões religiosas do catolicismo popular de Cunha. A partir de certo
momento, todas as demais entrevistas realizadas com curandeiros e/ou
benzedeiras retornavam às mesmas idéias levantadas nas entrevistas
realizadas anteriormente.
[18]
CAPÍTULO PRIMEIRO
PREPARANDO O TERRENO: ELEMENTOS METODOLÓGICOS E
TEÓRICOS.
Neste trabalho pretendo discutir o catolicismo no município de Cunha e
os modelos religiosos deste mesmo catolicismo existentes naquela realidade
cultural. Entendo que o mesmo existe em suas várias formas dialogando entre
si e construindo perspectivas novas entre diálogos e confrontos diretos e/ou
indiretos. Para isso, foi necessário buscar formas de interpretação da realidade
que ao mesmo tempo dessem conta dos elementos históricos fundantes dessa
cultura, das interpretações sobre os diferentes modelos de catolicismos vividos
naquela realidade, bem como suas estratégias de atuação e fundamentações
culturais hibridas. Era necessário buscar raízes culturais do caipira fundador de
uma realidade cultural marcada por uma ordem de liberdade que, muitas
vezes, oscilava entre o acolhimento das culturas que transitavam pelo local e a
violência costumeira existentes entre seus membros. Somente a partir de um
processo histórico vivido ao longo de alguns séculos, podemos encontrar uma
força de resistência que gera, em seus novos contatos, a sobrevivência da
tradição articulada com as transformações que a “modernidade” propõe.
Por isso, quando pensei na construção de uma estrutura teórica,
me deparei com o problema de muitos ou de quase todos os que se atrevem a
interpretar uma realidade dando a ela um olhar acadêmico: o problema do
recorte. Neste caso, sobre o fio tênue que muitas vezes oscila entre o discurso
científico e a “realidade pesquisada”, procurei construir minhas variações de
lentes. É essa a imagem que tenho quando procuro escrever um texto que tem
a seriedade de ser sobre e o apenas para. Neste sentido, procurei construir
[19]
uma tessitura teórica que pretende, sem ter a pretensão de criar verdades,
trabalhar idéias – conceitos – fundamentais para o tema deste texto, que aspira
fugir dos esquemas cartesianos; os quais muitas vezes separam realidades, a
princípio inseparáveis, quando apreciadas sob a perspectiva de uma
complexidade maior. Com isso pretendo estabelecer fronteiras teóricas e um
recorte que facilita explicitar, do ponto de vista argumentativo, a idéia de que a
tradição religiosa não se relaciona de modo superficial com os diferentes
paradigmas culturais com que dialoga, tampouco termina sem se reconfigurar
em outra realidade.
Além de trabalhar com a historiografia como elemento que contextualiza
o objeto, utilizo o método etnográfico, pelo qual se coletam dados com alto grau
de detalhamento, e produz-se o acesso a informações de diferentes ordens
que vão do discurso mesmo do informante e da tentativa de captação do seu
ponto de vista, ao cotejo com os fatos de que o pesquisador participa. A
metodologia qualitativa caracteriza-se, entre outras coisas, pelo emprego de
uma combinação de técnicas de investigação. Esse procedimento é recorrente
em pesquisas qualitativas, visto que as mesmas têm a preocupação de
associar os objetivos da investigação a técnicas de pesquisa culturalmente
apropriadas. A etnografia se pautou, como é usual, de observação sistemática,
entrevistas com diferentes atores sociais, histórias de vida, mas também
utilizou dados estatísticos tais como índices demográficos.
Sobre as entrevistas, a descrição e delimitação dos sujeitos
entrevistados, assim como o seu grau de representatividade no grupo social
em estudo, constituíam um problema a ser imediatamente enfrentado. A
escolha dos entrevistados esteve vinculada à necessidade de compreender o
[20]
referencial simbólico, os códigos e as práticas daquele universo cultural
específico. Optou-se pelo sistema de rede, no qual se busca uma referência
focal que disponha de informações a respeito do segmento social em estudo,
que possa "mapear" o campo de investigação, "decodificar" suas regras,
indicar pessoas com as quais se relaciona naquele meio e sugerir formas
adequadas de abordagem. De um modo geral, as pessoas indicadas pelo
informante sugerem que se procurem outras, ou fazem referência a sujeitos
importantes no setor. Assim fui, sucessivamente, selecionando novos
"informantes". Essa é uma alternativa muito utilizada em pesquisas qualitativas
e se tem mostrado produtiva. Alguém do meio, a partir do próprio ponto de
vista, tem, relativamente, melhores condições de fornecer informações sobre
esse meio do que alguém que observa, inicialmente de fora. Numa metodologia
de base qualitativa, o número de sujeitos que virão a compor o quadro das
entrevistas dificilmente pode ser determinado a priori - tudo depende da
qualidade das informações obtidas em cada depoimento, assim como da
profundidade e do grau de recorrência e divergência destas informações.
Enquanto estiverem aparecendo "dados" originais, ou pistas que possam
indicar novas perspectivas à investigação em curso, as entrevistas precisam
continuar sendo feitas. À medida que colhia os depoimentos, levantava e
organizava as informações relativas ao objeto da investigação e, dependendo
do volume e da qualidade delas, o material de análise tornava-se cada vez
mais consistente e denso. Quando foi possível identificar padrões simbólicos,
práticas, sistemas classificatórios, categorias de análise da realidade e visões
de mundo do universo em questão, e as recorrências atingiram o que se
convencionou chamar de "ponto de saturação", dei por finalizado o trabalho de
[21]
campo, voltando, se necessário, para esclarecimentos. Foram contatados dois
informantes iniciais, que deram uma lista de mais cinco outros informantes
para os contatos e entrevistas; e estes últimos, na média, mais quatro, cada
um. Visitei oito das 18 (dezoito) comunidades citadas para pesquisar o universo
católico no município. Comecei mapeando as mesmas a partir da parte central
do município (a zona urbana) e abrangi a33 km em estradas de chão, para
caracterizar possíveis realidades de “isolamento” de algumas comunidades.
1.1 O conceito de cultura.
Para buscar uma interpretação sobre a idéia de cultura, me apoiei em
Clifford Geertz, buscando dar sentido a todos os trâmites existentes entre
as diferentes realidades culturais de Cunha e suas relações com as
diferentes formas de expressão da religiosidade local. Minha intenção é
demonstrar que essas articulações culturais de cunho religioso católico,
suas implicações no comportamento cultural, em contato com diferentes
formas de articulação do catolicismo e em diferentes contextos dentro da
religiosidade católica de Cunha, devem ser lapidadas a partir do mundo
humano no qual as apreensões interpretativas que os seres humanos dão à
vida acontecem, dentro das construções de significação estabelecida pelos
mesmos a partir dos fatos sociais. A teoria de Geertz sustenta-se nos
parâmetros originários da antropologia simbólico-interpretativa, embasados
na hermenêutica, com uma construção intelectual fundamentada em uma
atmosfera de diversidade, pluralismo e conflito. A interpretação é moldada
pela questão a partir da qual o intérprete aborda o seu tema. A
hermenêutica fornece interpretações válidas moldadas pelo curso das
[22]
interrogações. Orienta-se não só em como obter interpretações válidas,
mas também, na natureza ou dinâmica da própria compreensão. Seu
trabalho analisa os entendimentos diferentes em relação àqueles
estabelecidos culturalmente. Tais entendimentos, o autor denomina
hermenêutica que, adicionada da palavra cultural, define o que ele faz.
Portanto, a teoria de Geertz se refere a interpretações que transformam em
conhecimento científico aquilo que ele considera as implicações mais gerais
dessas interpretações, “e um ciclo recorrente de termos - símbolos,
significado, concepção, forma, texto [...] cultura - cujo objetivo é sugerir que
existe um sistema de persistência, que todas essas perguntas, com
objetivos tão diversos, são inspiradas por uma visão estabelecida de como
devemos proceder para construir um relato da estrutura imaginativa de uma
sociedade”. (GEERTZ, 1997: 98).
Neste sentido, as configurações do saber são sempre locais,
inseparáveis de seus instrumentos. Tal afirmativa leva ao aguçado sentido de
que a antropologia sempre considera a história, o contexto da inter-relação
existente, portanto, torna-se relevante sua contribuição na forma de se pensar
a sociedade, o homem, seu saber na atualidade, denotando suas contribuições
como ciência. Para a antropologia interpretativa a ação tem um sentido e é isso
o que a faz racional.
O sentido é sempre um sentido para e, compreendê-lo,
significa compreender para quem o sentido se faz, isto é, o intérprete precisa
compreender dentro do universo significativo do outro. A interpretação não
está acima da interpretação do seu interpretado, mas concorre com ela.
Influencia e é influenciada, e é este complexo jogo de interpretações e contra-
interpretações que produz a compreensão cultural. É o sentido que proporciona
[23]
um entendimento sobre o mundo e a racionalidade é apenas uma expressão
desse entendimento.
A cultura é definida como as teias de significados que o homem teceu e
nas quais ele enxerga seu mundo, sempre procurando seu significado. Os
praticantes da antropologia, como ciência interpretativa, constroem uma análise
do significado que é constituído e estabelecido socialmente, sendo
"essencialmente semiótico. Tal perspectiva encontramo-la em sua obra “A
Interpretação das Culturas”. Em seu texto, Geertz afirma que o conceito de
cultura a que se atém “não possui referentes múltiplos nem qualquer
ambigüidade fora do comum (...) ele denota um padrão de significados
transmitido historicamente, incorporado em seus símbolos, um sistema de
concepções herdadas expressas em forma simbólica por meio das quais os
homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida”
1
(GEERTZ, 1989:103).
Seu conceito de cultura afasta-se de qualquer perspectiva etnocêntrica,
pois se afasta da ótica de uma ciência experimental em busca de leis: “O
1
A postura de Geertz sofreu vários questionamentos por ser interpretada a partir de uma
análise que se relaciona à micro-história. A sua descrição densa” tornou-se objeto de várias
polêmicas e mereceu considerações críticas de vários autores. Giovanni Levi, em seu texto
sobre a micro-história” (in, BURKE, Peter. A Escrita da História. p.p. 133-161 Unesp) busca
caracterizar elementos comuns relacionados à micro-história. Ao mesmo tempo trabalha a
relação história/antropologia afirmando que a perspectiva geertziana tem tido forte influência
sobre as análises da micro-história. Um de seus questionamentos se refere à questão da
perspectiva da racionalidade: “Examinemos, primeiro, a maneira diferente como é encarada a
racionalidade. Uma vez que nega a possibilidade de uma análise específica de processos
cognitivos, a antropologia interpretativa presume a racionalidade como um ponto de partida,
como algo impossível de ser descrito fora da ação humana, fora do comportamento humano,
visto como uma ação significativa e simbólica quanto além da interpretação. Até esse ponto
podemos estar de acordo. Entretanto, Geertz extrai dessas considerações conclusões
extremas ...”. Sua perspectiva crítica continua afirmando ser o pensamento de Geertz
relativista. De qualquer forma, não entraremos no mérito da questão, pelo menos no momento,
visto que nosso objetivo nesta nota é apenas mostrar que sua teoria não existe de forma
“impune” ou “unânime”. Outro fato importante é o de que a cultura, no conceito geertziano, é
definida como ingrediente intrínseco ao ser humano e, portanto, não como parte suplementar
do ser humano.
[24]
conceito de cultura que eu defendo é essencialmente semiótico. Acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise”
(GEERTZ, 1989:15). Como em Weber, o conceito de cultura é um conceito de
valor, a significação da configuração de um fenômeno cultural e a causa dessa
significação não podem ser deduzidas de qualquer sistema de conceitos de
leis, como também não podem ser explicados por ele.
“A significação cultural de um fenômeno pode consistir no fato de
se manifestar como fenômeno de massa, um dos elementos fundamentais
da civilização contemporânea. Mas, ato contínuo, o fato histórico de
desempenhar esse papel é que constitui o que deverá ser compreendido
sob o ponto de vista da significação cultural, e explicado casualmente sob
a perspectiva da sua origem histórica”. (WEBER, 1982:93)
Segundo Weber, todo conhecimento histórico somente o é enquanto
significativo na sua especificidade. adquire sentido lógico a idéia de um
conhecimento dos fenômenos individuais mediante a premissa de que apenas
uma parte finita da infinita diversidade dos fenômenos é significativa. Neste
sentido, a ciência devia limitar-se a entender e a compreender, por um lado, a
importância cultural dos acontecimentos singulares - relação com os valores -,
e por outro, as causas pelas quais foram produzidos historicamente dessa
maneira e não de outra. Não podemos chegar a conhecer senão fragmentos da
realidade, que todos eles foram recortados e construídos a partir de um
ponto de vista, um entre os muitos possíveis.
Fundamentado em Weber, como o próprio Geertz afirma sobre seu
pensamento no que se refere à questão da cultura, não é possível uma
compreensão do fenômeno religioso como algo metafísico. Ao contrário, as
[25]
religiões são rodeadas por uma profunda seriedade moral em seus veículos e
cultos, pré possuem um sentido de obrigação (implicação prática e não apenas
emocional e/ou intelectual). Não são apenas moralmente éticas; fundamentam
as exigências da ação humana no contexto da existência. Nesse sentido, em
um ethos e, segundo Geertz, “o ethos de um povo é o tom, o caráter e a
qualidade de sua vida, seus estilo moral e estético, sua disposição; atitude em
relação a ele mesmo e ao seu mundo, que a vida reflete” (GEERTZ, 1989:143).
Neste sentido, a religião funciona para sintetizar o ethos de um povo. “Uma
religião é:(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3)
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações
parecem singularmente realistas”(GEERTZ,1989:104-105). ”Todavia não são
exatamente a mesma coisa...”, afirma Geertz, pois é possível abstrair a
dimensão simbólica dos acontecimentos entendidos como totalidades
empíricas, apresentando fontes extrínsecas de informações. Como extrínsecos,
o autor quer dizer fora dos organismos dos indivíduos (mundo intersubjetivo de
compreensões comuns), fornecidos pelos padrões culturais.
Sua metodologia fundamenta-se em um processo denominado por uma
“Descrição Densa”. Para este autor, a etnografia deve interpretar e buscar os
significados atribuidos a esses atos. É importante ressaltar, que não se trata de
buscar leis para essas ações. Tampouco se trata de se tornar um "nativo".
Identificar certas dinâmicas sociais e seus significados não é suficiente para
que posssamos compreender uma cultura, isso porque estas dinâmicas sociais
e seus significados estão dentro de um "universo imaginativo" dentro do qual
[26]
essas ações são determinadas e fazem sentido para os que dela participam,
mas no qual não estamos inseridos. A cultura é vista como um contexto, algo
dentro do qual os acontecimentos, os comportamentos e os processos podem
ser descritos com densidade.
A "Descrição densa" refere-se justamente ao papel da etnografia para
Geertz, ou seja, à interpretação do fato descrito, procurando suas motivações e
seus objetivos - seus significados. Não é apenas uma descrição minuciosa,
mas uma leitura, uma interpretação. Não por acaso o autor afirma que o
empreedimento do etnógrafo aproxima-se do de um crítico literário
2
.
A descrição amplia-se para além da explicação, exigindo a avaliação
compreensiva, na qual os relatos, obtidos sobre a maneira como qualquer
grupo interpreta suas experiências, sejam depois utilizados pela
“etnometodologia” para tirar conclusões acerca de outros relatos sobre
expressões de identidade, poder, cultura ou expressão, entre outras. Por isso,
em vez de trabalhar com o conceito de explicação, a antropologia cultural
prefere trabalhar com o conceito de tradução, isto é, o delineamento da
maneira pela qual a nossa compreensão de nós mesmos e dos outros – de nós
mesmos entre os outros - é influenciada não pelo intercâmbio com nossas
próprias formas culturais, mas também, e de maneira bastante significativa,
pela caracterização que outros teóricos fazem das formas culturais que nos são
2
Para uma compreensão mais ampla do que Geertz defende como "cultura" e como "descrição
densa", ver o artigo "Uma Descrição Densa: Por Uma Teoria Interpetativa da Cultura",
publicado no livro "A Interpretação Das Culturas" p.p.13 - 44.
[27]
alheias, transformando-as, depois de retrabalhadas, em secundariamente
nossas.
Assim como nas culturas, as religiões possuem um caráter marcado pelo
dualismo, ao afirmarem tanto do mundo quanto sobre como devemos agir nele.
Os símbolos religiosos nos asseguram que o mundo é ordenado e retiram os
fiéis da “irracionalidade do acaso”. um significado oculto nos fatos (perda,
sofrimento, injustiça, morte etc.). Neste sentido, os símbolos sagrados
constroem um mundo que faz sentido e estabelecem uma relação de
compreensão do mundo fundando a aprendizagem para agir no mundo. Mas
esses símbolos religiosos podem funcionar dessa forma na medida em que
são aceitos e absorvidos. A essência da ação religiosa consiste em impor
autoridade sobre um complexo de símbolos. Essa é a tarefa do ritual que
apresenta uma visão do mundo (imagem de ordem cósmica) e induz
predisposições e motivações fundindo uma imagem do mundo, um ethos e um
modelo de comportamento. Aqui, cabe ressaltar que uma boa interrpetação
dessa fusão – socialmente construída - é fundamental para a compreensão das
negociações estabelecidas pelas diferentes práticas religiosas católicas e,
consequentemente, para acompreensão desses modelos de comportamento
estabelecidos pelas mesmas - em constantes transformações.
1.2 A idéia de mudança/continuidade.
Em minhas leituras, muitas vezes me deparei com textos que olham a
realidade vivida em seu cotidiano e, conseqüentemente suas tramas de
significação, como algo no qual facilmente se identifica o começo, o meio e o
fim das diferentes realidades. Meu trabalho procura se afastar desta visão, pois
[28]
a mesma leva-nos a enganos que pressupõem a existência do fim daquilo que
chamamos de tradição cultural, embasados em um olhar qualitativo sem a
preocupação de detectar o encontro complexo entre realidades culturais onde,
ao invés de fim, as mesmas se atualizam na ação, pois entre a prática e a
“matriz de significados” existe um sujeito histórico que interpreta, articula e
reconstrói os componentes oriundos dessa mesma matriz. Gostaria de
começar esta parte do texto deixando clara uma idéia de Marshall Sahlins, que
afirma que importa entender a produção da vida social como apropriação da
natureza. Para uma sociologia crítica este fato é fundamental, porém Sahlins
afirma que devemos entendê-la a partir “de uma determinada forma de
sociedade” e não de um conceito como o de modo de produção “que, em si
mesmo, não especifica qualquer ordem cultural”. Sahlins contribui
decisivamente para as ciências sociais, ao mostrar que os efeitos das forças
materiais globais dependem dos diversos modos como são mediados em
“esquemas culturais locais” e que “a presente ordem global foi decisivamente
moldada pelos povos periféricos”. Enxerga o processo de contato das
diferentes culturas como uma forma de "intensificação cultural", ou seja, as
sociedades tendem a se ajustar às novas condições através das estruturas
existentes e assim, ao invés de perder o aspecto cultural, o modificam de forma
a torná-lo mais intenso. O autor afirma que tudo que se pode hoje concluir a
respeito disso é que não conhecemos a priori, e evidentemente não devemos
subestimar, o poder que os povos indígenas têm de integrar culturalmente as
forças irresistíveis do Sistema Mundial (Sahlins, 1997: 64).
Podemos perceber a defesa da cultura como objeto da antropologia e a
visão de transformação de suas formas a partir do contato entre as diferentes
[29]
concepções de mundo. Sahlins, diferente dos chamados “pessimistas”, não
enxerga o capitalismo como uma realidade que no campo cultural tem a
capacidade de “acabar” com a cultura dos povos. Enxerga a influência
capitalista como um novo fator, que agirá na transformação das culturas que
sempre estão nesse processo de renovação e reestruturação e, neste sentido,
refuta a idéia de um sistema mundial burguês que domina os outros povos
através da imposição de sua superioridade “cultural” e econômica. Neste caso,
as culturas e os povos considerados como “menores” não são passivos no
intercâmbio da cultura global, mas, são sociedades e povos resistentes no
interior desse processo, mostrando a recriação das formas de vida local
através do encontro com as culturas capitalistas. Daí a fragilidade da idéia de
dominação do sistema mundial burguês, pois o mesmo não apreende as
mudanças culturais que estão ocorrendo, e acaba por acreditar no
desaparecimento de culturas que, na realidade, estão em processo de
transformação.
Dentro dessa perspectiva, trabalha principalmente com a noção de
“cultura translocal”. Esta concepção traz a idéia de que as pessoas que migram
de suas “aldeias” para os grandes centros urbanos, ficam ligadas à sua origem
e continuam com o sentimento de pertencimento à terra natal, enquanto
buscam o reconhecimento de sua cultura, ao invés de esquecê-la e serem
absorvidos pela cultura capitalista com a qual começam a interagir. Logo, a
cultura não está restrita ao local e sim ultrapassa os limites do mesmo,
ampliando sua rede de trocas a partir do momento que os membros que estão
em outra localidade interagem com sua terra natal, favorecendo inclusive os
que lá ficaram com o fluxo de bens materiais que irá se expandir. A partir dessa
[30]
nova perspectiva, as pessoas tendem a se apropriarem das culturas que
acreditam fazer parte, e a participar de uma busca pela libertação das
imposições impostas por outras culturas (principalmente capitalistas) e pela
restauração de uma historicidade de suas tradições. Não se trata de uma volta
pura e simples às origens, mas de resgatar as bases culturais e ao mesmo
tempo manter e expandir o acesso ás inovações tecnológicas, ou seja, os
benefícios obtidos através dos bens materiais do sistema econômico mundial.
Acredito que o termo tradicional também apresenta alguns problemas
semelhantes, geralmente esse conceito é compreendido por meio de um
entendimento dicotômico na relação tradicional / moderno, pois, para alguns,
tradicional pode ser entendido, negativamente, como aquilo que designa
costumes antiquados que o representam mais os anseios populares. O
problema se inscreve na forma como se compreende outra relação
fundamental, ou seja, a relação entre mudança e continuidade.
Sahlins considera estrutura (continuidade) e história (mudança) como
partes indissolúveis de um mesmo processo. Para ele, a história é “ordenada
culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os
esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro:
esquemas culturais são ordenados. O dualismo (continuidade / mudança),
muito embora em outro contexto, desde a Antigüidade tem inquietado grandes
filósofos. É dessa dicotomia que surge, posteriormente, idealismo e dialética.
Historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são
reavaliados quando realizados na prática. Este fato se na consolidação
prática da realidade cultural, pois os homens em seus projetos práticos e em
seus arranjos sociais “(...) submetem as categorias culturais a riscos empíricos.
[31]
Na medida em que o simbólico é, deste modo, pragmático, o sistema é, no
tempo, a síntese da reprodução e da variação.” (SAHLINS, 2001: 9).
Entendendo esquemas de significação das coisas como estrutura, é
possível dizer que a história, na concepção de Sahlins, se efetiva de acordo
com a estrutura sociocultural de um povo. Por outro lado, tal estrutura é
alterada historicamente através da ação humana, pois é através dessa ação
que os esquemas de significados são revistos. Para analisar melhor como tudo
se passa, Sahlins propõe a utilização do conceito de evento; para ele, um
evento não é apenas um acontecimento característico do fenômeno, mesmo
que, enquanto fenômeno, ele tenha forças e razões próprias, independentes de
qualquer sistema simbólico. Um evento transforma-se naquilo que lhe é dado
como interpretação. Somente quando e apropriado por e através do esquema
cultural é que adquire uma significância histórica. O evento é a relação entre
um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento do fenômeno em
si mesmo como valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica
específica” (SAHLINS, 2001: 13 - 15).
Na realidade, o que Sahlins quer esclarecer é que um evento é mais do
que um acontecimento; este seria, para ele, um fato ou, para ser mais preciso,
uma fatalidade no sentido de algo que acontece sem significado algum; o
evento, por sua vez, é o significado que emerge de um acontecimento
mediante a cultura. Dessa forma, para Sahlins, um acontecimento que,
aparentemente, introduz mudança não implica, necessariamente, em perda de
traços culturais ou da identidade cultural, mas sim - conforme o significado ou a
interpretação que se tem do acontecimento mediante a cultura - em produção e
reprodução da cultura e da própria identidade cultural de uma sociedade. De
[32]
acordo com Sahlins, dado que as sociedades tradicionais que os antropólogos
habitualmente estudam são submetidas a mudanças radicais, impostas
externamente pela expansão capitalista ocidental, não é possível manter a
premissa de que o funcionamento dessas sociedades está baseado em uma
lógica cultural autônoma. Essa proposição resulta de uma confusão entre um
sistema aberto e a total ausência de sistema, tornando-nos incapazes de dar
conta da diversidade de respostas locais ao sistema mundial, em especial
daquelas que conseguem persistir em seu rastro” (SAHLINS, 2001: 10).
A superação da dicotomia (tradicional / moderno) faz com que tais
conceitos deixem de fazer sentido, pelo menos em termos excludentes, como
se aquele excluísse este e vice-versa; além disso, de certa forma, é também a
superação do dualismo (continuidade / mudança), uma vez que a tradição seria
a continuidade de um modo de vida antigo e a modernidade, por sua vez, seria
a superação desse modo de vida.
De acordo com Hobsbawm (1997), muitas vezes, tradições que parecem
ou são consideradas antigas, são bastante recentes, quando não são
inventadas. Segundo Hobsbawm, o termo tradição inventada Inclui tanto as
tradições realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas,
quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período
limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e
se estabeleceram com enorme rapidez. “(...) Por tradição inventada entende-se
um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
[33]
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado
(HOBSBAWN: 1997; 48).
A invenção de tradições não tem o sentido de algo fictício, de um
engodo ou farsa, mas de algo que foi criado historicamente por decreto
deliberado ou que tenha surgido espontaneamente em um dado período
histórico. Na realidade, Eric Hobsbawm quer ressaltar as tradições como
fenômenos históricos e não como fenômenos perenes e imutáveis. Entretanto,
convém ressaltar que não pretendo trabalhar uma desconstrução dos conceitos
de tradicional e moderno, como se os mesmos não tivessem uma
conceitualidade inerente. Na realidade, este trabalho não pode, de forma
alguma, prescindir de ambas as categorias em uma análise que considera
mudança e continuidade como partes indissolúveis de um mesmo processo.
Interessa saber como tais fenômenos atuam simultaneamente. No caso de
Cunha, especificamente, entender essa lógica no contexto de uma
problematização que põe fim a um falso dilema entre a perpetuação cultural e o
fim da tradição.
1.3 A idéia de circularidade cultural.
A questão da “circularidade cultural” sempre me chamou atenção desde o
primeiro contato com a obra de Carlo Ginzburg. Cabe ressaltar que em sua
obra O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido
pela Inquisição, Ginzburg trabalha diretamente com o termo circularidade.
Segundo o autor, entre a cultura das classes dominantes e a das classes
subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito
de influências recíprocas que se movia de baixo para cima, bem como de cima
[34]
para baixo. A circularidade, ou seja, o influxo recíproco entre cultura subalterna
e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do culo
XVI, será captado através da análise da figura de um camponês, o moleiro
friulano Menocchio, como um leitor muito peculiar de obras da “cultura
hegemônica” com que manteve algum tipo de contato (GINZBURG, 1987:13).
Ainda que possa dar margem a interpretações simplificadoras, essa
abordagem é de um grau elevado de complexidade, pois em Menocchio
encontram-se “obscuros elementos populares” enxertados num conjunto de
idéias muito claras e conseqüentes, que vão do radicalismo religioso ao
naturalismo tendencialmente científico, às aspirações utópicas de renovação
social. A impressionante convergência entre as posições de um desconhecido
moleiro friulano e as de grupos intelectuais dos mais refinados e conhecedores
de seu tempo rediscute e propõe com toda força o problema da circularidade
da cultura formulado por Bakhtin” (GINZBURG, 1987:25-26).
Concretamente podemos perceber a circularidade nas posições de
Menocchio que por um lado entranham-se numa tradição oral antiqüíssima; por
outro, evocam uma série de motivos elaborados por grupos heréticos de
formação humanista. “Trata-se de (...) uma cultura unitária em que não é
possível estabelecer recortes claros. (...) suas afirmações (...) apresentam um
tom original e não parecem resultado de influências externas passivamente
recebidas. (...)” (GINZBURG, 1987:30).
Ginzburg retoma, com toda sua força de argumentação, a questão da
circularidade quando está discutindo como se deu o processo de leitura de
Menocchio. Parece-nos importante a chave de sua leitura, a rede que
Menocchio de maneira inconsciente interpunha entre ele e a página impressa
[35]
um filtro que fazia enfatizar certas passagens enquanto ocultava outras, que
exagerava o significado de uma palavra, isolando-a do contexto, que agia
sobre a memória de Menocchio deformando sua leitura e remetendo-o
continuamente a uma cultura diversa da registrada na página impressa: uma
cultura oral. (...) Pelo menos um livro o inquietara profundamente, levando-o,
com suas afirmações inesperadas, a ter pensamentos novos. Foi o choque
entre a página impressa e a cultura oral, da qual era depositário, que induziu
Menocchio a formular - para si mesmo em primeiro lugar, depois aos seus
concidadãos e, por fim, aos juízes - as ‘opiniões [...] [que] saíram da sua
própria cabeça.” (GINZBURG, 1987:89).
Mais adiante quando, está analisando a tendência, na Itália do século
XVI, em reduzir a religião a uma realidade puramente mundana, novamente a
questão da circularidade entre culturas volta à baila,
“(...)
talvez seja possível
perceber uma convergência parcial entre os círculos mais avançados da alta
cultura e os grupos populares de tendência radical
.”
(GINZBURG, 1987:100).
Ginzburg vai encontrar nos processos contra Menocchio um momento
precioso para o fortalecimento de sua tese da circularidade entre culturas,
quando o moleiro friulano inverte os papéis no interrogatório pedindo para que
o juiz o ouça, tentando convencê-lo de suas idéias. Neste ponto Ginzburg se
pergunta sobre quem representa o papel da cultura dominante e quem
representa a cultura popular. Não é fácil responder. “Cada vez com mais
nitidez, vemos como ali se encontram, de modos e formas a serem ainda
precisados, correntes cultas e correntes populares. (...)” (GINZBURG,
1987:114). Ginzburg tenta demonstrar como Menocchio cruza com as
correntes cultas, examinando um termo culto (“caos primordial”) que aparece
[36]
na descrição de sua cosmogonia. É provável que Menocchio tenha tomado
conhecimento desse termo erudito num livro ao qual se referiu incidentalmente
durante o segundo processo (mas em 1584 já o sabia): o Supplementum
supplementi delle croniche, do ermitão Jacopo Filippo Foresti (GINZBURG,
1987:118).
A invenção da imprensa foi a grande responsável pela circularidade de
cultura na medida em que permitiu uma real socialização da palavra, rompendo
com o monopólio entre cultura escrita e poderosos.
A invenção do alfabeto -
que cerca de quinze séculos antes de Cristo quebrou pela primeira vez esse
monopólio - não foi suficiente, contudo, para pôr a palavra à disposição de
todos. Somente a imprensa tornou mais concreta essa possibilidade. A idéia
de cultura como privilégio fora gravemente ferida pela invenção da imprensa.
(GINZBURG, 1987:128-129).
Não obstante, devemos levar em conta as considerações de Davis,
ainda que em um contexto diferente do qual trabalha Ginzburg, no caso a
França do mesmo período histórico - século XVI -,que se por um lado confirma
tal tese, por um outro lado a critica.
“(...) o paradoxo central do impacto da palavra impressa sobre o povo.
Por um lado, ela podia destruir monopólios tradicionais de conhecimento e
autoria, vendendo e disseminando amplamente tanto informação quanto
trabalhos de criação. Ela pôde, também, criar uma nova relação entre o
autor e a audiência anônima. Mas a palavra impressa também tornou
possível o estabelecimento de novas formas de controle sobre o
pensamento popular. (...)” (DAVIS, 1990:184).
Precisando um pouco mais a cultura hegemônica que Menocchio era
herdeiro, conclui Ginzburg que empregando uma terminologia embebida de
[37]
cristianismo, neoplatonismo e filosofia escolástica, Menocchio procurava
exprimir o materialismo elementar, instintivo, de gerações e gerações de
camponeses.” (GINZBURG, 1987:132)
Ginzburg vai buscar nas raízes da cultura grega elementos que reforcem
esse entrecruzamento de culturas. O historiador italiano procura identificar
como Menocchio estabeleceu contato com a cultura hegemônica, quando
começa a comparar Menocchio com “um desconhecido camponês de Lucca”,
Scolio, que sofrera um processo cerca de vinte anos antes do moleiro friulano.
“As semelhanças entre as profecias de Scolio e os discursos de
Menocchio são evidentes. Não se explicam é óbvio, pela presença de
fontes comuns - a Divina Comédia, o Alcorão -, conhecidas decerto por
Scolio e provavelmente também por Menocchio. O elemento decisivo é
um estrato comum de tradições, mitos, aspirações, transmitidos
oralmente através das gerações. Em ambos os casos, fora o contato com
a escrita na escola que fizera esse estrato profundo de cultura oral
aflorar.” (GINZBURG, 1987:216)
Ginzburg chega a descrever o modo como Menocchio trava contato com
os materiais que lhe forneceu a oportunidade do acesso à cultura hegemônica.
Menocchio comprara o Fioretto della Bibbia, mas também pedira emprestado o
Decameron e as Viagens de Mandeville; afirmara que a Escritura poderia ser
resumida em quatro palavras, todavia sentira a necessidade de se apropriar
ainda do patrimônio de conhecimentos de seus adversários, os inquisidores.
Percebe-se, portanto, no caso de Menocchio, um espírito livre e agressivo,
decidido a acertar contas com a cultura das classes dominantes (GINZBURG,
1987:217).
[38]
Na conclusão desta obra Ginzburg vai dizer que muitas vezes vimos
aflorar analogias surpreendentes entre as tendências que norteiam a cultura
camponesa e as de setores mais avançados da cultura. Isto segundo ele leva
a uma hipótese muito mais complexa sobre as relações que permeavam, nesse
período, as duas culturas: as das classes dominantes e a das classes
subalternas.
Vai um pouco mais adiante ao afirmar que além de complexa é
impossível de demonstrar. O estado da documentação reflete, óbvio, o estado
das relações de força entre as classes. Uma cultura quase exclusivamente oral,
como a das classes subalternas da Europa pré-industrial, tende a não deixar
pistas, ou então deixar pistas distorcidas. Por isso vai dizer que o caso
Menocchio é importante, pois escancara as raízes populares de grande parte
da alta cultura européia, medieval e pós-medieval. Todavia, fecharam uma
época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em
ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular (GINZBURG,
1987:230).
Ginzburg demonstra o quanto a troca de níveis culturais é complexa e
que era através das imagens que se travava a relação circular entre culturas
diferençadas. “Acima de tudo havia a consciência, cada vez mais nítida, da
função decisiva das imagens numa propaganda voltada às massas compostas
predominantemente de iletrados.” (GINZBURG, 1989:121).
Ginzburg vai além ao afirmar, apoiado num “teólogo sem preconceitos”
de nome Politi, que o denominador comum entre as imagens eróticas e
imagens sacras era a eficácia. Umas estimulavam o apetite sexual, outras a
piedade religiosa. (GINZBURG, 1989:122)
[39]
Em sua obra Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos
séculos XVI e XVII, consultou vários processos envolvendo os benandanti e
descobriu que, ao longo dos anos, o Santo Ofício e seu aparato repressor
induziram a transformação das crenças próprias do grupo. O que era exógeno
à demonologia, tornou-se parte dela. Nas palavras do próprio Ginzburg “(...)
modelando as confissões dos acusados graças aos dois instrumentos (...) a
tortura e os interrogatórios ‘sugestivos’ (...) mostrando como um culto de
características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos
benandanti, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores,
para finalmente assumir os lineamentos da feitiçaria tradicional. (...) um estrato
de crenças genuinamente populares, depois deformado, anulado pela
superposição do esquema culto. (...) (GINZBURG, 1988:08)
Em outro ensaio, Ginzburg volta a retratar o entrecruzamento de culturas
nos interrogatórios dos inquisidores especificando um pouco mais com se dava
este processo. Afirma haver, nas perguntas dos juízes, alusões mais que
evidentes ao sabat das bruxas “(...) que era, segundo os demonologistas, o
verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais
ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na
Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc.” (GINZBURG,
1991:206)
Em outra obra, História Noturna: decifrando o Sabá, Ginzburg também
discute a questão da circularidade entre culturas ao dizer que no estereótipo do
sabá é possível reconhecer uma ‘formação cultural de compromisso’: resultado
híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura erudita.” (GINZBURG,
[40]
1991:22) Ginzburg entende o complexo do sabá como síntese erudita realizada
a partir da observação e perseguição da cultura popular.
Segundo Ginzburg, mediante a introjeção (parcial ou total, lenta ou
imediata, violenta ou aparentemente espontânea) do estereótipo hostil proposto
pelos perseguidores, as vítimas acabavam perdendo a própria identidade
cultural. Deve-se atribuir maior importância aos raros casos em que a
documentação tem caráter dialógico isto é, que sejam identificáveis fragmentos
(relativamente imunes a deformações) da cultura que a perseguição se
propunha cancelar (GINZBURG, 1991:24). A busca de perspectivas, que
tragam ao olhar historiográfico uma capacidade maior de complexificar o objeto
e retirá-lo do lugar comum das leituras simplificadoras da realidade, deve ser
constante em nosso meio. Como veremos adiante, muitos elementos vividos na
religiosidade cotidiana da população de Cunha é vivenciado nas camadas
sociais que controlam os contornos e os mecanismos de uma cultura erudita na
região.
1.4 Heterogeneidade ou hibridismo.
O ressurgimento de noções como hibridismo cultural dá notícia de um
dilema real, reposto com força total pelo desenvolvimento tecnológico: estão
dadas as condições técnicas para a criação coletiva de uma “riquíssima cultura
mundial”, baseada na troca e na interação das diferenças, uma cultura que
enfim tornaria a noção abstrata de humanidade concreta. Ora, como a
tecnologia o está a serviço da humanidade, mas a serviço de uma visão
degradada da vida, nada mais longe da cultura global realmente existente do
que essa comunidade mundial da cultura.
Pensar que o homem vive com seu
[41]
imaginário e sua produção imaginária é pensar sobre a cultura. Os estudos do
imaginário foram considerados e iniciados pela psicologia a partir dos conceitos
de sensação, percepção e ilusão, contrapondo-se às pesquisas sobre a
memória, lógica e intelecto. Nossa percepção pode ser considerada como uma
seqüência das sensações que vêm através dos órgãos dos sentidos e, dentre
eles, o olho ocupa uma posição privilegiada. Costuma-se dizer que pior cego é
aquele que não quer ver, que os olhos são as janelas do espírito ou que o que
os olhos não vêem o coração não sente. Todos estes ditos populares apontam
para a sabedoria da percepção como uma das funções principais da
interpretação e da compreensão do sujeito em relação ao mundo. a ilusão
até hoje é considerada em sentido negativo, como sendo uma deformação da
realidade, exceto no caso da arte. O hibridismo cultural nada mais é do que a
maneira possível de viabilizar o imaginário através dos símbolos escritos,
desenhados falados, etc. Imaginário este poluído de fantasmas e de fantasias
originárias ou não de outros povos ou de outras tradições. Imaginário híbrido,
se esta não for a condição de essência do conceito de imaginário.
"Sou um tupi tangendo um alaúde", dizia Macunaíma. E é justamente
esta frase que percorre o livro O Pensamento Mestiço (2001), de Serge
Gruzinski, dando-lhe uma interessante unidade. Segundo ele, o contato entre
culturas diversas sempre gera hibridismos que dificilmente são notados pelos
remanescentes das culturas originais. A identidade híbrida ou mestiça é
multifacetada e fruto de uma racionalidade nova. A sua questão central é
entender de que forma as culturas se misturam e quais as conseqüências
desse hibridismo. O termo Hibridismo vem do grego hybris que quer dizer
destempero e excesso. É também um dos conceitos centrais para se entender
[42]
o legado da tradição helenista; no Fedro, Platão descreve a hybris como a
transgressão da justa medida, sendo, portanto uma expressão do caos com
suas múltiplas faces e partes. O termo adquiriu ao longo da história um sentido
de impureza e mistura. Consciente da dificuldade conceitual do hibridismo,
Gruzinski opta por uma abordagem a princípio fenomenológica: "aceitar em sua
globalidade a realidade mesclada que temos diante dos olhos é um primeiro
passo" (GRUZINSKI, 2001:26). Mas não como evitar a ambigüidade e a
ambivalência da mestiçagem, são elas características próprias dos híbridos,
por isso uma possibilidade de abordagem surge da descrição do fenômeno da
mestiçagem e não de sua explicação. Para Gruzinski, o produto do choque
entre duas culturas não será mais algo do campo de entendimento exclusivo de
nenhuma das duas, será algo novo que novos parâmetros de entendimento
ajudam a compreender. Assim, quando Gruzinski cita o caso das pinturas nos
murais da Igreja de Ixmiquilpan, o que se relata é o surgimento de uma nova
estética que ultrapassa os olhos do renascimento europeu e do entendimento
dos povos pré-hispânicos. O desafio está justamente em perceber a obra
híbrida como ela mesma é, ambivalente e ambígua, pois o híbrido não é a
marca deixada pela continuidade da criação, mas o produto de um movimento,
de uma instabilidade estrutural das coisas. Evitando lhe restringir a polissemia,
podemos com ela aprender uma nova forma de percepção.
Mesmo reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as
misturas datam das origens da história do homem, não podemos reduzir o
fenômeno à formulação de uma nova ideologia nascida da globalização. O
fenômeno é a um tempo “banal” e complexo. “Banal” porque o encontramos
em escalas diversas ao longo de toda a história da humanidade e porque, hoje,
[43]
ele é onipresente. Complexo, porque parece impalpável quando pretendemos ir
além dos efeitos da moda e da retórica que o cercam.
O fenômeno da miscigenação não é novo, sua memória se perde na
história humana. Povos nômades foram os semeadores da espécie no planeta.
A consolidação do estado-nação europeu se deu, pelo contrário, com a
maturação do sedentarismo de alguns povos (HALL, 2001). Desta
sedimentação nasceu uma revolução tecnológica: as grandes navegações. E
novamente os nômades semearam outros portos, passados alguns anos, um
pouco mais de 500, outra revolução tecnológica empurra os nômades em sua
cíclica missão: a interconexão planetária. Mas dessa vez algo mudou, o
semear agora se no campo simbólico da cultura. A mistura agora pode se
dar apenas em nossas mentes, o mestiço de hoje é um novo olhar. Stuart Hall,
analisando a chamada crise de identidade do mundo contemporâneo, afirma
que em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são fixas,
mas que estão em transição entre diferentes posições, as quais “retiram seus
recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais e que são o
produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que o cada
vez mais comuns num mundo globalizado." (Hall, 2001:88).
Para Hall, a complexidade do fenômeno da hibridação cultural está nas
múltiplas implicações que estes cruzamentos podem ter, desde um reforço nas
identidades locais, passando pela questão da ·geometria do poder· ou mesmo
o impacto da compressão espaço-temporal (HALL, 2001: 80). Sobre este
último, Hall afirma que o tempo e o espaço são também as coordenadas
básicas de todos os sistemas de representação. ... a narrativa traduz os
[44]
eventos numa seqüência temporal ·começo-meio-fim· (...). Diferentes épocas
culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo"
(HALL, 2001: 70). Sobre a questão do reforço das identidades locais ou
nacionais, Hall nos lembra que cultura alguma é pura, sendo sua unidade fruto
de um dispositivo discursivo que unifica a diversidade (HALL, 2001: 62). A
Inglaterra, por exemplo, unifica-se sobre os matizes diversos de indianos,
africanos, germânicos e etc.
Tendo em vista que não poso conceber o objeto a partir de uma lógica
exclusivista, matematicamente forjada a partir de uma análise cartesiana da
realidade, busco trabalhar outra importante contribuição no campo acadêmico,
ou seja, a idéia de hibridismo cultural. Neste sentido, é fundamental, o trabalho
de Nestor Garcia Canclini (CANCLINI, 1997) no qual o mesmo propõe uma
reflexão sobre o que chama de hibridação cultural. Seus estudos
fundamentam-se na realidade latino-americana. Segundo o autor, a pós-
modernidade tem lugar como uma maneira útil, em seu caráter
antievolucionista, de problematizar os vínculos entre o mundo moderno e as
tradições. A experiência da hibridização, para Nestor Garcia Canclini, impede a
pretensão de estabelecer identidades puras ou autênticas, uma vez que os
incessantes processos de hibridização, como a abertura da economia ao
mercado global, a imigração e migração, por exemplo, levam a relativizar a
noção de identidade nacional e a identificação de identidades locais, partindo
para idéia de mistura como formação. Somos ao mesmo tempo outros e com
outros, sendo impraticável representar somente uma identidade cultural
pensando nesse processo de hibridização. Encontramos uma concepção de
identidade que se estabelece por meio das negociações entre grupos que são,
[45]
por sua vez, estabelecidas a partir do contato com outras várias culturas e
tradições. Portanto, essas negociações não podem mais ser analisadas sob a
perspectiva da criação de uma identidade nos parâmetros homogêneos, e sim
como um elemento que promove o surgimento de uma nova forma a partir dos
intercâmbios e cruzamentos, que têm na hibridez seu produto. Dentro dessa
nova perspectiva teórica, é possível pensar a coexistência de grupos que se
agrupam e se articulam entre si e com os outros, impossibilitando-nos referir à
nação como lugar da anulação das diferenças. A pureza é algo inconcebível
desde o momento em que passamos a observar a existência permanente de
trocas e mesclas culturais na formação das primeiras civilizações. Assim, a
mistura de etnias e culturas, como elementos constantes em todo processo
civilizatório, servem de fundamento teórico para se afirmar a existência de uma
pluralidade multicultural híbrida. As diferentes construções culturais, por tudo
isso, deixam de ser definidas como limite homogeneizante de identidade e de
pureza, ao passar a serem tratadas como espaço de diferença. Isso permite,
por um lado, as trocas culturais, a heterogeneidade de culturas e, por outro,
provoca, também, a resistência e a luta pela afirmação de identidades locais
que não aceitam a mistura, por considerá-la agente de impureza e
contaminação. (CANCLINI, 1997) Essa relação dual, presente nas diferentes
realidades culturais, é a porta de entrada para a compreensão daquilo que, a
partir de uma lógica cartesiana, não pode ser compreendido, se esconde, não
se revela aos olhos de um observador insensível às noções de relação entre
elementos aparentemente contraditórios.
Neste sentido, é preciso pensar em tradição e transformação como
complementares entre si e não excludentes. Pois o termo tradição não implica,
[46]
necessariamente, uma recusa à mudança, da mesma forma que a
modernização não exige a extinção das tradições e, portanto, os grupos
tradicionais não têm como destino ficar de fora da modernidade (CANCLINI,
1997:239).
1.5 Modernização e secularização.
Acredito que outra preocupação, presente neste texto, é a de pensar a
relação entre as transformações geradas pela modernização da sociedade e as
culturas regionais, entre o avanço da modernidade no Município de Cunha e
suas implicações nas práticas religiosas vividas pela população. Entendo que
essas “implicações” são marcadas por um diálogo cultural muitas vezes rude e,
em muitos casos marcadas por concessões que agregam elementos ao
imaginário local ou, em muitos casos, por um diálogo rude que nos leva a
pensar, de modo enganoso, que a cultura local cedeu espaços e perdeu suas
raízes ou, ainda, muitas vezes, por um diálogo mal interpretado que nos faz
profetas da agonia cultural dos “povos rudes do interior”.
A reflexão sobre a sociedade global, em suas configurações e
movimentos, ultrapassa os limites convencionais da ciência social. Ainda que
haja ênfases e prioridades, quanto a este ou aquele aspecto da globalização,
logo fica evidente que qualquer análise envolve necessariamente várias
ciências. A economia da sociedade global envolve também aspectos políticos,
históricos, geográficos, demográficos, culturais e outros. A cultura da
globalização passa pela cultura de massa, indústria cultural, mídia impressa e
eletrônica, religiões e línguas, além de outros aspectos que transbordam limites
convencionais da antropologia e da sociologia. Em muitos casos, os estudos e
[47]
as interpretações sobre globalização reabrem questões epistemológicas que
pareciam resolvidas, quando as ciências sociais trabalhavam principalmente
com a sociedade nacional, como emblema do paradigma clássico. A questão
diante de nós é se algum critério que possa ser usado para assegurar as
fronteiras entre as quatro presumidas disciplinas de antropologia, economia,
ciência política e sociologia. Acredito que todos os critérios de análise
individuais desarticulados entre as variações das citadas disciplinas níveis de
análise, objetos, todos, enfoques teóricos ou não são mais verdadeiros na
prática, ou, se mantidos, são obstáculos a conhecimentos posteriores, antes do
que estímulos para a sua criação.
A globalização envolve o problema da diversidade. Praticamente todos
os estudos e interpretações sobre a sociedade global colocam esse problema.
A reflexão sobre a diversidade não pode estar ausente, já que implica aspectos
empíricos, metodológicos, teóricos e propriamente epistemológicos. Logo que
se reconhece que a sociedade global é uma realidade em processo - que a
globalização atinge as coisas, as pessoas e as idéias, bem como as
sociedades e as nações, as culturas e as civilizações - está posto o problema
do contraponto globalização e diversidade. No caso da questão religiosa,
devemos ler com atenção os resultados dessa relação pois se coloca, de forma
específica, o problema do debate sobre a secularização.
É importante relembrar que o problema da diversidade está sempre
presente nas configurações e movimentos da sociedade global. Seria
impossível imaginar a globalização sem a multiplicidade dos indivíduos, grupos,
classes, tribos, nações, nacionalidades, culturas etc. São estes que se
globalizam, ao acaso ou por indução, sabendo ou não. Da mesma forma que
[48]
são estes que vivem, agem, pensam, aderem, protestam, mudam,
transformam-se. O capitalismo global simultaneamente promove e é
condicionado pela homogeneidade cultura e pela heterogeneidade cultural. A
produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente essencial
do capitalismo contemporâneo, que é, em todos os casos, crescentemente
envolvido na ltipla variedade de micro-mercados (nacional, cultural, racial e
étnico, de gênero, socialmente estratificado e assim por diante). Ao mesmo
tempo, o micromercado ocorre no contexto das crescentes práticas
econômicas universais. Globalidade social de um capitalismo onipresente
fundado na imbricação de múltiplos processos cada vez mais complexos. Essa
é a modernidade presente, a mundialização da economia, a internacionalização
da vida social. Tudo isto coloca em evidência um sistema global, que não
possui um equivalente ao longo da história da humanidade. É impossível
ocultar a força desta mutação em nome da continuidade capitalista. Também
seria errôneo reduzi-la à sua dimensão técnica.
Para pensar a questão da secularização no contexto da modernização
capitalista e conhecendo de perto as comunidades que formam o município, é
importante marcar posição dentro de certos parâmetros na complexidade desta
discussão que, se não debatida a partir de uma realidade específica,
transforma-se em um labirinto de elucubrações que, nem sempre chegam a
algum lugar. Pretendo dar uma interpretação às transformações ocorridas nas
práticas religiosas e elaborar suas relações com o fenômeno da secularização
presente no avanço da modernidade no município, porém não entendemos o
mesmo como algo concretizado de uma forma padrão em todos os lugares.
[49]
Gostaria, aqui, de relativizar tal fato a partir das diferenças oriundas dos vários
processos históricos existentes em cada construção social específica.
Segundo Antonio Flávio Pierucci, o “pulo-do-gato” para se exorcizar o
que ele chama de enganoso diagnóstico da crise de paradigma na sociologia
da religião é entender o processo de secularização como passagem do
monopólio para um cenário de pluralismo religioso. Este pluralismo realimenta
uma nova realidade articuladora de novos sentidos cobrados pelo processo de
transformação das estruturas econômicas e culturais e nos faz buscar a dar
uma interpretação a estas novas realidades. Em seu texto Secularização em
Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar
aquele velho
sentido”, o autor escreve que é importante afirmar, a partir de Max Weber, que
o mesmo distingue desencantamento e secularização:
“Para Weber, o desencantamento do mundo ocorre justamente em
sociedades profundamente religiosas, é um processo essencialmente
religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação da
magia como meio de salvação, conforme fica explicitado nesta outra
passagem de A ética, na qual Weber estabelece estilisticamente, com o
uso dos dois pontos, a seguinte equação:”o desencantamento do mundo: a
eliminação da magia como meio de salvação" (...). Por isto, por mais de
uma vez Weber lhe agrega o adjetivo religioso: o ‘desencantamento
religioso do mundo’. Secularização, por outro lado, implica abandono,
redução, subtração do status religioso; é defecção, uma perda para a
religião e emancipação em relação a ela”
(PIERUCCI, 1998).
Para este autor, o surgimento de novas religiosidades que atualmente se
incorporam no cenário religioso se explica pelo próprio avanço do processo de
secularização, pois são expressões de um declínio geral do compromisso
[50]
religioso. Esses novos movimentos representariam, na visão de Pierucci, tão
somente a redução da religião a mais um item de consumo, e eles podem
conviver entre si porque a secularização continua seguindo seu ritmo. Segundo
o autor, transformada em item de consumo, a religião passa a restringir-se à
esfera individual. A idéia chave de Pierucci é entender a secularização
enquanto a passagem de uma situação de monopólio e hegemonia de uma
única religião para uma situação de pluralismo religioso, a partir do qual se
pode até falar em reencantamento, mas apenas no sentido de uma
“remagnificação”. Pierucci acredita que as religiões atuais deixaram de ser
fonte de valores éticos e morais transformando-se em atitudes pragmáticas, em
“postos de oferta mágico-místico”.
Existe, a meu ver, uma série de elementos importantes nas reflexões do
autor. Os paradigmas Weberianos - se assim pudermos afirmar - sinalizam
uma tendência de transformações profundas no cenário religioso moderno e,
como teoria inspiradora, dentro de seu contexto de constatação do que o autor
observava em sua época, ainda é pertinente em termos de construção teórica:
ou seja, em diálogo com outros elementos teóricos contemporâneos, pode-nos
fornecer uma explicação plausível para essas mudanças e, inclusive, re-
tradicionalizações encontradas no cotidiano das populações interpretadas pela
ciência. Essas transformações afetam as relações sociais e o grau de
influência dos valores religiosos nas decisões individuais ou coletivas dentro
das diferentes estruturas sociais. Em Cunha, por exemplo, observamos uma
mudança no imaginário dos grupos que convivem de forma mais direta com a
realidade urbana. Porém, não acredito que isto seja o fim da influência desses
elementos no comportamento da maioria dos grupos sociais existentes no
[51]
município. Surpreendo-me, cada vez mais, com as respostas comportamentais
fundadas em elementos religiosos tradicionalmente consolidados na história do
município e suas interferências no cotidiano daquela população. Mesmo entre
os jovens, ainda podemos notar a força das estruturas religiosas presente em
suas decisões, seja no campo pessoal ou coletivo. Com base nas
interpretações de Parker (1995), é possível dizer que em meio a uma crise
geral de valores, que coloca em cheque também a verdade científica e
denuncia o fracasso do mercado, a religião, especialmente na América Latina,
ainda aparece como um fator importante na conformação de padrões culturais
e valorativos em muitas camadas sociais da população. Apesar de todas as
mudanças de enfoque ocorridas no campo religioso, como uma maior
individualização, o emprego da lógica de mercado e da lógica consumista à
religiosidade, a religião tem se mostrado ainda enquanto uma forma de
moralização e não apenas como elemento “desmoralizado”
3
no processo de
aquisição de bens simbólicos.
3
Pierucci acredita que as religiões atuais deixaram de ser fonte de valores éticos e morais
transformando-se em atitudes pragmáticas: A mercadorização fetichizante dos bens de
salvação de fato tem dado resultados para a religiosidade contemporânea e seus performáticos
profissionais: um deles, certamente não previsto e eventualmente não desejado mas em
curso é a sua desmoralização”. ( FSP, caderno Mais, 30/12/2000)
[52]
1.6 A Realidade Caipira
4
.
Neste trabalho utilizaremos a idéia de uma “tipologia” caipira. Tal conceito é
utilizado para se referir aos habitantes camponeses e agricultores que vivem no
estado de São Paulo. Antônio Cândido, em Parceiros do Rio Bonito, alia-se ao
uso da mesma expressão procurando definir o uso do termo “rústico” em sua
obra. Cândido afirma que, no caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por
caboclo designando o mestiço próximo ou remoto de branco e índio, que em
São Paulo forma a maioria da população tradicional. Para designar os aspectos
culturais, usa-se o termo caipira, que tem a vantagem de não ser ambíguo
(exprimindo desde sempre um modo de ser, um tipo de vida, nunca um tipo
racial), e a desvantagem de restringir quase apenas, pelo uso inveterado à
área de influência histórica paulista. Cândido teoriza a existência de três tipos
de reações do caipira nos processos de relação com realidades culturais
externas, dando maior importância ao segundo caso, o qual seria o
comportamento mais comum dos grupos rústicos diante da situação estudada
por ele: 1) aceitação dos traços impostos e propostos; 2) aceitação apenas dos
impostos; 3) rejeição de ambos.
Em nossa realidade, sabemos que pequenos lavradores sitiantes ou
parceiros, arrastados para o âmbito da economia capitalista e para a esfera de
influência do ambiente urbano, procuram ajustar-se ao que se poderia chamar
de “mínimo inevitável de civilização”, procurando, do outro lado, preservar-se o
máximo possível das formas tradicionais de equilíbrio. Podemos entendê-los
4
Sobre a questão da realidade cultural caipira convém citar autores que escreveram textos que
adquiram status de “textos clássicos” como os de Emilio Willems, Antonio Candido e Sergio
Buarque de Holanda. Outros autores também importantes que escreveram sobre o assunto
foram Alceu Maynard Araújo, Carlos Borges Schimidt, José de Souza Martins, Maria Sylvia de
Carvalho Franco e Robert Shiley. Além de um texto tese de doutorado - específico sobre o
caipira do Vale do Paraíba escrito por Judas Tadeu Campos.
[53]
como grupos que aceitam da cultura urbana os alguns padrões impostos -
aquilo que não poderiam recusar sem comprometer sua sobrevivência -
rejeitando os que não se apresentam com força coercível. Em condições
semelhantes, os grupos rústicos dotados de alguma força integrativa reagem
preferencialmente conforme o segundo tipo discriminado. O primeiro e o
terceiro casos correspondem, em tese, ao indivíduo, ou a família, que
enfrentam como tais a situação nova: seja porque se desligaram do grupo, seja
porque este se desintegrou ou está em via de desintegração. (CÂNDIDO: 218-
219).
Citando Cornélio Pires, Antônio Cândido afirma que o mesmo usa os
termos “caipira branco”, “caipira caboclo”, “caipira preto” e “caipira mulato”.
Segundo o autor é a maneira justa de usar o termo, pois sugere a incorporação
de diferentes tipos étnicos ao universo do que se chama “cultura rústica de São
Paulo” (CÂNDIDO, 1987: 21-23). O termo rústico tem sido tomado como
sinônimo de algo grosseiro e relativo ao meio rural, sem polimento, desprovido
de cortesia, rude e tosco em seus costumes. Tais noções são facilmente
encontradas em muitos dicionários. Entretanto, não é esse o sentido utilizado
neste trabalho. A cultura stica refere-se à cultura tradicional do homem do
campo
.
Neste capítulo também utilizo o termo caipira, apesar de certa
diversidade étnica, pois o mesmo congrega certa homogeneidade em termos
de sentido cultural. Dou ao termo caipira o mesmo sentido atribuído por Antonio
Candido, para trabalhar aspectos culturais dos descendentes dos antigos
moradores rurais do Estado de São Paulo. Neste sentido, o caipira é a pessoa
ou o grupo portador dos traços que distinguem a cultura caipira. A
compreensão deste modo de vida e sua maneira tradicional não podem ser
[54]
entendidas apenas em face de sua estruturação endógena. É preciso também
entender as forças exógenas, pois na relação destas com a cultura caipira é
que se processam as possibilidades históricas e culturais da configuração da
cultura caipira em sua estrutura atual.
Darcy Ribeiro em O povo brasileiro dedica um capítulo ao estudo do
caipira e afirma que o Brasil é marcado por uma vasta diversidade cultural que
resultou, basicamente, de fatores ecológicos, econômicos e migratórios. Tendo
em vista essa grande diversidade, ele divide o Brasil em cinco áreas culturais
bastante específicas que denomina de brasis crioulo, caboclo, sertanejo,
caipira e sulino. Segundo Ribeiro, o caipira emerge através de um longo
processo iniciado pelos velhos bandeirantes paulistas, que no grande afã por
índios e ouro, adentraram o sertão dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás
e Mato Grosso. Segundo ele, nessas andanças, muitos paulistas acabaram por
se fixar em regiões distintas fazendo-se criadores de gado ou lavradores. O
ouro, uma vez descoberto, teria proporcionado um rico padrão de vida,
principalmente em Minas Gerais, mas muito breve. Na realidade tudo tinha
mais aparência do que concretude. O próprio Darcy Ribeiro lembra que toda
uma copiosa documentação histórica mostra como se podia morrer de fome ou
apenas sobreviver comendo raízes silvestres e os bichos mais imundos, com
as mãos cheias de ouro. Após a decadência da economia aurífera, toda
população das regiões Centro-Oeste, Sudeste (incluindo Espírito Santo, Rio de
Janeiro e não apenas São Paulo) e até mesmo do Sul (incluindo apenas
algumas regiões do Paraná) entra em um processo de “deculturação”,
equilibrando-se numa variante da cultura brasileira rústica que se cristaliza
como área cultural caipira (RIBEIRO, 1995: 369 - 383). Atentando para a atual
[55]
divisão administrativa brasileira, tal região compreenderia os estados de São
Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, além de porções
do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e do Paraná.
Sob a inspiração dos escritos de Darcy Ribeiro, reconhecemos que esse
Brasil caipira possuía certa configuração espacial/cultural, constituída em
virtude de parte de o território nacional ter sido formada por um processo
histórico sensivelmente atrelado ao bandeirantismo e à mineração, eventos
responsáveis pelo desenvolvimento de uma economia baseada num
capitalismo mercantilista, que, mais tarde, se renderia à subsistência e ao
pastoreio. Em decorrência disso, tal região seria caracterizada pela existência
de sociedades especialmente marcadas pela miscigenação, originalmente
promovida entre brancos e indígenas, por um “imaginário afeito ao
enriquecimento fácil e rápido e por uma disposição política fundada num
profundo senso de autonomia e altivez”.
A partir de meados do século XIX, por conta das plantações de café, o
Brasil caipira se transformaria num espaço capaz de coadunar tais
características com um profundo gosto pelo moderno; e por toda a
materialidade e simbolismo que o envolviam e que eram experienciados na
Europa como marca de um novo tempo, ou melhor, daquilo que era tido como
o melhor dos tempos: a Belle Époque. O termo revela que tais emblemas
modernos possuíam relação estreita com a França, especialmente. É por conta
disso, que durante o término do século XIX e princípio do século XX, muitos
homens no interior paulista tinham seus sonhos povoados por desejos como o
de viver um grande amor em Paris, desfrutar de seus cafés e cabarets, passear
pelas suas ruas olhando as vitrines das butiques e admirando a luz elétrica,
[56]
entre outras novidades técnicas e materiais. Essa Belle Époque caipira era
constituída especialmente pela ação de uma elite desejosa de modernizar-se.
Desobrigados de qualquer ética, derribavam as matas, levando destruição,
morte e grilagem às terras férteis do sertão. Agiam com violência, amparados
na legitimidade de um discurso constituído a partir da significação social
positiva atribuída ao moderno. Assim, o ca seguia levando os trilhos das
locomotivas em seu rastro. Rápido, lugarejos cresciam e tomavam forma de
cidades, tornando-se, assim, centros de um verdadeiro admirável mundo, que
mesclava sem possibilidades de separação o arcaico e o novo. Era nesse
contexto que as ambivalências da própria modernidade se somavam às
contradições de um país e de um povo forjado sob o sopro da bricolagem e da
imposição do poder público (DOIN, 2007).
Por outro lado, o caipira pobre vivia em uma economia natural de
subsistência, dado que sua produção não podia ser comercializada senão em
limites mínimos. Difundia-se, desse modo, uma agricultura itinerante, a
derrubar e queimar novas glebas de mata para cada roçado anual, combinada
com uma exploração complementar. Essas novas formas de vida importaram
numa dispersão do povoamento por grandes áreas, com o distanciamento dos
núcleos familiais. Não impuseram, porém, uma segregação, porque novas
formas de convívio intermitente foram estruturando as vizinhas em unidades
solidárias. Assim se formaram os bairros rurais. Neste sentido, assumem
importância crucial certas instituições solidárias que permitem dar e obter a
colaboração de outros núcleos nos empreendimentos que exigem maior
concentração de esforços. A principal delas é o mutirão, que institucionaliza o
[57]
auxílio mútuo para a execução das tarefas mais pesadas, que excediam as
possibilidades dos grupos familiares.
O mutirão se faz não uma forma de associação para o trabalho, mas
também uma oportunidade de lazer festivo. As vizinhanças mais solidárias
organizam-se em formas de convívio, levando em conta elementos culturais
como, por exemplo, o religioso, como o culto a um santo poderoso, cuja capela
pode ser orgulho local pela freqüência com que promove missas, festas,
leilões, muitas vezes seguidos de festas. Cada núcleo, além da produção de
subsistência, que absorve quase todo o trabalho, produz seus elementos
culturais na troca cotidiana de afazeres e no caldo comunitário das relações de
laço cultural. A vida rural caipira, assim constituída, equilibra trabalho
continuado e lazer. Exprime sua integração numa economia mais autárquica do
que mercantil que, além de garantir sua relativa independência, atende à seu
universo cultural - ainda que marcado por elementos culturais exógenos que
influenciam seu modo de vida - que valoriza mais as alternâncias de trabalho
intenso e de lazer, na forma tradicional, do que um padrão de vida mais alto
através do engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado.
Ainda hoje, essa realidade é comum em muitos municípios do país. O
homem caipira se orgulha da vida, interage com o mundo moderno mas
guarda, de forma sutil, sua tradição negociada não abrindo mão de valores
muitas vezes clássicos de seu dia a dia marcados pelo seu universo cultural.
Neste sentido a contribuição de Ribeiro nos leva a entender como,
historicamente, se consolidou e se abriu – ainda que de forma opressiva,
marcada pelos interesses de uma elite rural e oligárquica - para a modernidade
essa cultura caipira criando, nesse próprio processo de abertura, suas
[58]
condições básicas para forjar um processo de negociação que gera um
hibridismo que ao mesmo tempo em que transforma essa realidade cultural,
não a compromete em suas bases de sustentação cultural.
1.7 Significados do catolicismo.
O termo católico, em nossa realidade, não consegue expressar, de forma
mais definida, um tipo de conduta clara que identifique uma pratica cotidiana de
determinado grupo religioso. Neste trabalho vou adotar uma estrutura
conceitual sobre o catolicismo que foi desenvolvida por Camargo, em seu livro
Católicos, Protestantes, Espíritas. O autor adota uma tipologia, no sentido
weberiano, que procura refletir a diferenciação das funções religiosas e os tipos
de sociedades referentes à pluralidade dessas funções. Camargo adota uma
tipologia que divide o catolicismo em tradicional e internalizado e os subdivide –
adotando uma reflexão especifica sobre tipos diferentes de realidade social, a
partir do qual estas duas tipologias se estabelecem em rural e urbano. Neste
sentido, então, temos: o catolicismo tradicional (rural e urbano), o catolicismo
internalizado (rural e urbano). No catolicismo tradicional, o comportamento
social e religioso fundamenta-se nos costumes e é legitimado pela tradição.
Observa-se pouca consciência quanto à natureza específica dos valores
religiosos, que inspiram normas e papéis sociais, ausência de explicação
racional, em termos de meios e fins, para a conduta religiosa e o
comportamento social legitimado pela religião, não havendo explícita distinção
entre os valores e normas da sociedade global e os da coletividade religiosa.
(CAMARGO, 1973:49) Em Cunha, ainda observo tal realidade como algo
imperativo no comportamento social de uma grande parte de grupos de
[59]
católicos existentes tanto na zona rural quanto na cidade. Esse comportamento
condiciona grande parte da visão: sobre a moral tanto no que se refere a
condutas sexuais; na questão de papéis sociais; na questão do poder como
autoridade inconteste e pratica comunitária; bem como nas obrigações
religiosas dominicais e\ou festividades religiosas do bairro ou da cidade.
uma defesa dos princípios relativos às práticas ancestrais, fundadas no
benzimento e na oração, dos costumes tradicionais de orações repetitivas e
invocações dos padroeiros e protetores divinos representados pelas figuras dos
santos. Essa pratica católica não entrou em crise, mesmo quando do advento
de novas vertentes religiosas católicas. No caso específico do catolicismo
tradicional rural, Camargo observa uma escassez de liderança formal devido à
pouca presença dos padres em localidades mais afastadas. Neste caso, a
liderança religiosa local é assumida por leigos que organizam rezas, novenas e
terços. Assumem também, em muitas localidades, a encomendação dos
mortos. Tal condição facilita o surgimento de liderança leiga que se configura,
muitas vezes, como liderança carismática. De sacralidade rural intensa, esse
catolicismo é marcado por práticas nas quais o sagrado interfere de forma
constante nos elementos naturais. “São freqüentes as procissões, rezas,
promessas e bênçãos, a fim de receber proteção para colheitas e animais
(CAMARGO, 1973:55).
O catolicismo internalizado proporciona ao individuo percepção explicita
e consciente dos valores religiosos” podendo ocorrer “coerência racional em
termo de meios e fins entre esses valores e a conduta do individuo
(CAMARGO, 1973:49). Neste caso, pode ser freqüente a existência de conflitos
[60]
entre os valores religiosos conscientes em seus fiéis e os valores pregados
pela sociedade global.
Não quero tomar essas idéias como verdades absolutas, mas tê-las
como um ponto de partida para distinguir diferentes concepções sobre os
diferentes tipos de catolicismo vividos por camadas importantes de nossa
gente. Lembrando que, assim como Weber, acredito que o conhecimento não
pode ser um retrato fiel da realidade, que o real é mundo amplo e infinito.
Como o conhecimento da realidade é parcial e fragmentado, o que o
pesquisador consegue obter em sua investigação é apenas uma compreensão
aproximativa da realidade. Partindo destas premissas, ele adaptou o conceito
dos “tipos ideais”. Weber queria apenas mostrar o que é específico da
realidade concreta, pois o autor não acreditava no saber completo, acabado e
verdadeiro. Ressalte-se que, apesar dos conceitos apresentarem sempre um
caráter transitório, é somente através deles que o cientista poderia formular
corretamente as perguntas necessárias para organizar uma pesquisa empírica.
Julien Freund entende que o tipo ideal de Weber representa uma
estrutura lógica diante da diversidade do real. Freund afirma que o tipo ideal
weberiano não é um retrato da realidade ou uma verdade do real, mas, ao
contrário, um meio para que o pesquisador possa melhor entender
intelectualmente e cientificamente o problema, embora de maneira
fragmentária. Diz:
“[...] ele consiste em uma representação ideal e conseqüente de uma
totalidade histórica singular, obtida por meio de racionalidade utópica e de
aceitação unilateral dos traços característicos e originais, para dar uma
significação coerente e rigorosa ao que aparece como confuso e caótico em
nossa experiência puramente existencial” (FREUND, 1987:51).
[61]
Weber concebia os tipos ideais como instrumentos que o pesquisador
utiliza arbitrariamente e que pode descartar quando não lhe for mais útil. O
pesquisador pode, quando achar necessário, construir outros tipos ideais mais
apropriados para a pesquisa. Assim, eles podem ser tanto instrumentos úteis
como descartáveis. Esta utilidade, ou inutilidade, que podem ter os tipos ideais,
revelam a concepção weberiana de ciência. Como a sociedade moderna
coloca sempre problemas novos ao cientista, o conhecimento progride à
medida que estes conceitos são substituídos por outros, que sejam capazes de
explicar melhor a realidade social.
Em síntese, o tipo ideal não é um fim em si mesmo, mas um meio, ou
seja, um recurso pelo qual os fenômenos culturais podem ser medidos, ou
comparados, em termos de sua eficácia, visando ampliar os conhecimentos em
torno das relações sociais, das condições causais e da significação. Max
Weber via que a definição genérica de um conceito como um quadro de
pensamento se estabelece através de um tipo-ideal. Os conceitos genéricos
“são imagens sobre as quais construímos relações, pela utilização da categoria
da possibilidade objetiva, que a nossa
imaginação
, formada e orientada
segundo a realidade,
julga
adequadas” (WEBER, 1991:53). Portanto, para a
sociologia weberiana, o emprego do conceito de tipo-ideal é tão vasto, que este
acaba sendo visto como o principal “método” da pesquisa sociológica. É neste
sentido que nos valemos dos conceitos trabalhados por Camargo, como
realidades pensadas sobre um contexto vivido e interpretado.
[62]
CAPÍTULO SEGUNDO
CUNHA, ONTEM E HOJE: CONFLITOS E TRANSFORMAÇÕES; TRADIÇÃO
E TRANSIÇÃO.
Nesta parte do trabalho, pretendo refletir sobre a história do município
como contexto fundamental para dar uma interpretação adequada às
transformações e reconfigurações existentes na realidade cultural e,
conseqüentemente, religiosa da população do Município de Cunha. A princípio,
quando pensei o subtítulo, entendi que toda realidade é, de fato, conflitiva, e
nessa realidade se fundamenta todo o processo de hibridação antecipando
essa conflitividade e sendo resultado da mesma. Como afirmei anteriormente, é
necessário buscar a superação da dicotomia (tradicional / moderno), pois a
mesma faz com que tais conceitos deixem de fazer sentido, pelo menos em
termos excludentes, como se aquele excluísse este e vice-versa; além disso,
de certa forma, é também necessário buscar a superação do dualismo
(continuidade / mudança), uma vez que a tradição seria a continuidade de um
modo de vida antigo e a modernidade, por sua vez, seria a superação desse
modo de vida. Daí a necessidade de buscar na história um conjunto estrutural
de ações efetivas, pois é através dessas ações que os esquemas de
significados são revistos (SAHLINS, 2001).
2.1 Aspectos gerais sobre a formação dos cleos urbanos no Vale do
Paraíba.
O Vale do Paraíba é uma das mais antigas regiões em termos de
ocupação no Brasil. Está intimamente ligada ao desenvolvimento e
conseqüente insipidez da Vila de São Paulo, que levou muitos homens a
[63]
procurarem melhor vida para si e suas famílias em terras incultas da região,
como forma de ascensão social e econômica. Nice Lecocq Müller, em seu texto
Fato urbano na bacia do Rio Paraíba, afirma que o processo de urbanização do
Vale do Paraíba teve início na primeira metade do séc. XVII, motivada por três
fatores principais: A) política metropolitana de promover ocupação de territórios
através da doação de terras; B) procura de jazidas minerais; C) interesse em
estabelecer ligações com o litoral norte da província.
Ao final do século XVII, o Vale do Paraíba contava com três vilas
(Taubaté, Jacareí e Guaratinguetá), dois povoados (Pindamonhangaba e
Tremembé) e dois aldeamentos (N. Sra. Da Escada e São José). O
povoamento seiscentista está limitado ao Vale Médio do Paraíba (em São
Paulo).
Quando do surgimento do ciclo do ouro, o mesmo influenciou o processo
de urbanização na medida em que o Vale do Paraíba se colocava em uma
situação geográfica separada pela Serra da Mantiqueira em relação às Minas
Gerais. Com a intensificação do povoamento, a economia valeparaibana já
transcendia os limites da produção de subsistência. Este fato gerou certo
“euforismo” até que, pela segunda metade do século XVIII, novos fatos irão
restringir a ascendência da vida econômica na região. Em primeiro lugar,
podemos citar a criação do “caminho novo” aberto por Garcia Rodrigues Paes;
outro fator foi a retração do mercado mineiro com o surgimento de novos
núcleos urbanos que se organizavam em torno da produção agropecuária e,
por fim, a decadência das minas e a conseqüente queda do poder aquisitivo
dos habitantes das áreas de mineração.
[64]
Sobre as rotas transversais que ligavam o Vale do Paraíba ao litoral,
Nice Lecocq Muller afirma que “das três últimas, Cunha tem posição especial,
pois, além de ter precedido de bastante as demais, ficava sobre a rota mais
importante, a de Guaratinguetá para Parati, por onde se fazia a ligação com o
Rio de Janeiro, por via marítima. Ao longo desse caminho havia três pequenos
povoados: Campo Alegre, Facão e Boa Vista, mas, quando as autoridades
eclesiásticas resolveram criar paróquia na zona, Facão, que datava de 1723,
foi o preferido. Assim se fazendo, reconhecia-se sua situação favorável, a meio
caminho entre as duas cidades, Guaratinguetá e Parati, a cavaleiro da escarpa
da Serra do Mar. Entre 1736 e 1749 foi criada a Freguesia de Nossa Senhora
da Conceição do Facão que, em 1785, passaria a vila como Nossa Senhora da
Conceição de Cunha” (MULLER, 1969: 22).
Além dos proprietários de terras, viviam nos aglomerados urbanos
outros elementos ligados a atividades rurais: camaradas, feitores, “jornaleiros”,
além de alguns que viviam da extração da madeira, da caça e da pesca.
O setor secundário era de proporções modestas: atividades de caráter
artesanal e doméstico, a grande maioria não possuía lojas. No setor de
manufaturas o grupo mais significativo era o que se prendia à fiação e
tecelagem correspondendo a 40% do total. No setor terciário, a grande
maioria prendia-se à organização militar ou para-militar. Por ordem de
importância seguiam-se atividades ligadas ao comércio e à circulação de
mercadorias.
Os aglomerados reuniam um grande número de pessoas ligadas à
atividades rurais, com pequena representação de ofícios e serviços,
correspondendo ao mínimo necessário para atender à sua população e às
[65]
funções de pontos de paradas na circulação regional. Esse pequeno
equipamento era, a um tempo, causa e efeito da economia de auto-suficiência
que reinava nas propriedades rurais: as “casas grandes” eram centros de
produção e de consumo de todas as utilidades mais indispensáveis, pelo
isolamento em que viviam e pelo pouco que os aglomerados urbanos tinham a
oferecer-lhes ( MULLER, 1969: 45).
2.2 O povoamento de Cunha.
O povoamento do município de Cunha ocorreu semelhantemente ao
acontecido com outras vilas do Vale do Paraíba - respectivamente Taubaté e
Guaratinguetá -, através da doação de sesmarias localizadas próximas ao
caminho aberto por Domingos Velho Cabral em 1650, que dava passagem a
viajantes que penetravam a partir do Porto de Parati para o interior com
necessidades econômicas vinculadas ao bandeirantismo de apresamento.
1
1
Milliet de Saint-Adolphe, citado por Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, afirma que o
povoamento de Cunha teve origem em 1660, quando um bando de aventureiros abriu caminho
por entre as mattas e transpôz as altas serras da cordilheira dos Órgãos para ir da “villa de
Paraty ao districtos das minas de ouro, assentando moradia n’uma d’estas montanhas, á que
pôz o nome de Falcão”. Azevedo Marques contesta tal afirmação fundamentando-se no fato de
terem sido posteriores as descobertas do ouro no interior: Ao que parece, não é procedente
relacionar, de modo imediato, o povoamento de Cunha ao transporte do ouro proveniente da
região mineira. Não encontramos registros documentais que validassem tal idéia apesar de
alguns estudiosos como Shirley relacionarem que a mesma servia ao embarque de muitas
espécies de mercadorias. Shirley não descreve, em seu capítulo sobre a história Cunha, os
reais motivos que levaram à construção do caminho, tampouco que produtos eram
transportados e sua época.
Os textos encontrados sobre a história de Cunha pouco refletem sobre o povoamento e
nada foi produzido sobre as sesmarias da região. Veloso, em um de seus artigos sobre a
cidade de Cunha, denominado Cunha, escreve que Cunha principiou em 1724 por aventureiros
que se animavam a transpor a Serra do Mar, em busca de riquezas ocultas nos sertões de
Minas e São Paulo. Ao que parece, a afirmação peca no que se refere ao termo utilizado pelo
autor quando descreve e relaciona o surgimento de Cunha ligado a “aventureiros”. Segundo
levantamento feito, consultando os registros de cartas de sesmarias, em 1650 havia sido
concedida a sesmaria de Domingos Velho Cabral. Em 1718, consta haver um novo pedido de
revalidação dessa mesma sesmaria, pedido por sua filha Maria Velho do Rosário. Esses
mesmos registros de cartas de sesmarias parecem invalidar a idéia de que Cunha tenha se
formado por simples aventureiros posto que, nas petições de sesmarias, o justificante se dizia
morador com sua família, escravos e plantações, dando-nos a idéia de haver, nesse mesmo
período, uma ocupação do espaço rural em processo adiantado que contradiz a idéia de
“aventureiros”. Outro fato que corrobora essa afirmação são as referências a uma sesmaria no
[66]
As terras, em sua grande maioria, foram concedidas a portugueses
moradores em Guaratinguetá e, com raras exceções, para indivíduos oriundos
de Taubaté e Parati. A partir da segunda metade do séc. XVIII uma
predominância de concessões a moradores já residentes no Facão.
Dentro do contexto da história do Brasil e da região do Vale do Paraíba,
a posição de Cunha, entre o antigo porto de Parati, a cidade de Guaratinguetá
e, seguindo adiante, para o sul, São Paulo e a oeste, o Sul de Minas Gerais,
torna-se ponto privilegiado no que se refere a paradas obrigatórias nas
incursões então feitas pelos povoadores dessa região. A história de Cunha
está, também, ligada à história do transporte de mercadorias à Vila de Parati,
onde se efetuava o embarque de várias espécies de produtos, dentre eles o
ouro e, posteriormente, parte da produção do café. Porém, Cunha é e tem sido
sempre uma região periférica, sempre secundária e dependente dos grandes
movimentos sociais e econômicos, que ocorreram no vizinho Vale do Paraíba e
no imenso interior de São Paulo e Minas Gerais (SHIRLEY, 1974:35).
Duas vertentes podem ser encontradas na historiografia referentes ao
período colonial para explicar as transformações ocorridas nesta fase. Por um
lado, encontramos uma interpretação que valoriza preponderantemente a
dependência econômica para com a metrópole, não tecendo considerações
sobre as áreas coloniais não exportadoras no âmbito de dependentes do
começo do séc. XVIII encontrada no processo de Bartolomeu Bueno de Mendonça (Arquivo de
Taubaté), bem como a um processo anterior envolvendo a capela da N S Penha” de
Itacurussá localizada na região de Cunha (Cf. processo de Bartolomeu Fernandes de Faria -
Ouvidoria Geral, “Arquivo do Estado” - devassa de crime por roubo das alfaias da capela na
segunda metade do séc. XVII). Observando o levantamento realizado nas Cartas de Registro
de Sesmarias existentes no Arquivo Público do Estado de São Paulo, constata-se que foram
concedidas 29 (vinte e nove) sesmarias entre 1650 e 1788. Porém, observa-se um grande
período sem concessões entre a primeira que data de 1650, concedida a Domingos Velho
Cabral e a segunda concessão que data de 1725, a André Marinho de Moura. Boa parte
dessas concessões (1725-1788) se concentrou na região sudeste do atual município de
Cunha.
[67]
crescimento ou retração do núcleo agroexportador que a faz subsidiária.
2
Por
outro lado, encontramos autores que procuram evidenciar a necessidade de se
considerar os elementos econômicos internos à colônia como aspectos
também importantes na estrutura socioeconômica do Brasil colônia. Neste
caso, concebe-se um mecanismo expropriador no interior da colônia, dando à
mesma certa autonomia onde
as regras de estrita dependência para com a
metrópole - pacto colonial - estão marcadas também pela manutenção desta
elite mercantil residente. Perpetuar passa a ser o sentido da expropriação feita
2
Manolo Florentino e João Fragoso fazem um breve apanhado da questão percorrendo os
trabalhos clássicos a partir da ruptura de Caio Prado com as teorias dos ciclos e a busca dos
“fundamentos estruturais da história brasileira” onde afirma que a análise do referido autor se
assenta sobre as bases da contínua transferência de excedentes para a metrópole lusitana - o
que se traduz, ao seu ver, em uma economia exportadora de base agrária centrada na grande
propriedade, no mono cultivo e no trabalho escravo - o que implicaria na incapacidade
estrutural de a colônia gerar circuitos internos de acumulação e na dependência; segundo
Manolo, Celso Furtado chega a mesma conclusão a partir da análise da empresa açucareira
como subordinação ao capital mercantil; ainda segundo o autor, 30 anos depois Fernando
Novais reforçava a mesma idéia. A primeira crítica viria com Ciro Flamarion Cardoso para
quem as sociedades coloniais revelariam seu pleno sentido quando tomadas como
elementos integrantes da economia européia; seguindo os mesmos passos, Jacob Gorender
questionava a excessiva ênfase dada à transferência do excedente colonial aventando a
possibilidade concreta de acumulações no interior da formação colonial - neste caso Manolo
critica em seu modelo a persistência de elementos herdados dos quadros explicativos por ele
criticados. Assumindo as perspectivas de Flamarion e Gorender, Manolo afirma que a assume
o ponto de vista de que “para além das frações dominantes coloniais, a consecução do projeto
colonizador, mais do que criar um sistema monocultor e exportador, visava reproduzir em
continuidade uma hierarquia altamente diferenciada. Por se tratar de estratificação assentada
no escravismo, sua viabilização tinha por pressuposto a própria reprodução das relações de
poder (...)” Cf. João R. Fragoso e Manolo G. Florentino. O arcaísmo como projeto. Rio de
Janeiro. Diadorim, 1993, p. 15-31.
Neste contexto, encontramos a abordagem de Lucila Hermann. Lucila Hermann, descrevendo
a história de Guaratinguetá, divide-a em ciclos econômicos que começam com a economia de
subsistência e continuam com o ciclo dos engenhos, o ciclo do café e o ciclo que a mesma
descreveu como atual à época de sua produção acadêmica - publicada na revista de
administração da Universidade de São Paulo em 1948 - e que chama de economia mista (rural-
urbana). Neste seu trabalho, ao analisar o primeiro ciclo, o que chamou de ciclo da economia
de subsistência, que se estenderia de 1635 a 1775, a autora aponta elementos que se fazem
comuns aos da historia do município de Cunha. Segundo a autora, São Paulo constitui uma
região de passagem, um “nó de comunicações” e articulação entre o continente e o litoral.
Neste sentido, o Vale do Paraíba torna-se um dos principais feixes desse “nó de
comunicações”. Sendo zona de passagem, não consegue a região tornar-se expressão
economicamente significativa. Assim sendo, o Vale do Paraíba se forçado, segundo Lucila
Hermann, a desenvolver uma economia de subsistência “num período sem mercado interno e
externo que servisse às necessidades da sua população, estando aquele voltado para as
formas de economia exploradora das outras regiões para suprir as necessidades de
abastecimento das bandeiras preadoras, mineradoras, ou às grandes tropas e boiadas que
vinham do sul” ( HERMANN,1986:13-15).
[68]
pela elite. Não se nega a dependência para com o externo forjada pelo pacto
colonial, mas se redimensiona a sua importância.
3
(ALVES, 1992:3).
Guardadas as devidas precauções com relação à questão levantada
aqui sobre a periodização de Lucila Hermann, e ao fato de ainda não se ter
sobre Cunha um trabalho de vulto que se possa vislumbrar de modo
sistemático tal problema em uma análise mais profunda, pode-se perceber que
foi de fundamental importância para o desenvolvimento de Cunha a ligação
3
Seu trabalho vai buscar uma análise econômica mostrando a realidade da expropriação e a
manutenção das diferenças sociais baseadas na relação entre homens livres, análise
característica de um procedimento teórico baseado na busca das diferenças econômicas
internas e em uma concepção reconhece as sutilezas internas da estrutura econômica colonial.
Alves trabalha e aponta para a reprodução desta diferença:“A reprodução desta diferença
econômica assenta-se em critérios não econômicos. Tratando-se de uma sociedade de regime
de trabalho compulsório, o controle do senhor sobre o escravo perpetua a diferença entre os
indivíduos livres. A posse de escravos não estabelece uma diferença apenas entre o senhor e
seu cativo, mas também diferencia os indivíduos livres entre si, uma vez que a maior ou menor
posse de mão de obra cativa possibilita uma produção para a exportação ou para o mercado
local/regional. Imprescindível ao sistema, a mão de obra cativa representa os ‘pés’ e ‘mãos’ do
senhor, e seu trabalho contínuo e estável exige o estabelecimento de estratégias de
acomodação: é preciso que o cativo tenha um ‘modo de viver’. Estabelecer famílias escravas é
uma destas estratégias, e sua reprodução junto com a unidade produtiva mostra seu caráter
estrutural”. Escrevendo sobre a periodização da economia valeparaibana, Maurício Alves traça
algumas considerações críticas sobre o período de subsistência descrito por Lucila Hermann.
O autor classifica a análise de Lucila Hermann como integrante do conjunto de análises que
atrela a economia colonial - como dependente - à economia da metrópole. Sua crítica parte dos
estudos sobre Taubaté entre 1680 e 1729, onde o autor buscou demonstrar a acumulação de
riquezas a partir das diferenças existentes na economia local. Como explicar a recuperação
demográfica das duas últimas décadas? Para o autor a historiografia tradicional, cita Lucila
Hermann, afirma que “após a descoberta do ouro os habitantes da região voltam-se para a
produção de gêneros para a subsistência dos viajantes que se destinam às minas. Mas seus
cultivos de pequenas dimensões e uma ‘produção pequena’ com ‘lucros insignificantes’ não
geram recursos suficientes para justificar a mobilidade da média populacional verificada na
tabela 01” (ALVES, 1992:11).
A preocupação é buscar responder à suficiência de uma economia camponesa que explicasse
a recuperação demográfica das duas últimas décadas apontadas na referida tabela. O autor vai
buscar no cultivo da cana de açúcar a resposta par a questão levantada. A média populacional
indicada tanto para a primeira década deste estudo quanto para as décadas finais deve estar
ligada, em grande parte, à produção de cana de açúcar, afirmando a existência de “uma
sociedade cada vez mais voltada para esta atividade” e a conseqüente recuperação
demográfica das décadas de 1710 e 1720.( A análise mais detalhada deste fato da economia
taubateana se encontra veiculada ao Cap. 03 no qual o autor vai buscar compor a riqueza por
setor econômico) “Definitivamente, classificar a economia da região no período anterior à
segunda metade do séc. XVIII como sendo de subsistência contraria todas as evidências
mostradas nas tabelas (...) Do mesmo modo, atribuir a formação de uma economia baseada no
cultivo da cana de açúcar apenas à segunda metade do séc. XVIII também se apresenta como
incorreto. Na década de 1720 a participação dos produtores de cana de açúcar representa
mais de dois terços da riqueza inventariada...” (ALVES, 1992:14)
[69]
feita em 1650 entre o litoral e o Vale do Paraíba e, conseqüentemente, o
interior. Porém, o aumento da atividade produtiva se deu entre 1695 e 1750,
quando da corrida do ouro brasileiro. Segundo Shirley, entre 1693 e 1695,
aumentaram as viagens entre Parati e o interior. Os homens que recebiam as
primeiras concessões o eram prósperos e que foram o embrião da “elite dos
latifundiários da localidade”. Às vezes eram feitas concessões a membros de
uma mesma família, o que possibilitou o desenvolvimento de “colônias de
pessoas congêneres”. O autor descreve a localização das casas dos
proprietários, sua funcionalidade e a relação de ocupação dentre as fazendas e
os camponeses pobres.
A casa era, comumente, estabelecida a alguma
distância longe da estrada para que o proprietário pudesse fiscalizar sua
propriedade mais facilmente. Essa casa, com o tempo, tornava-se uma
fazenda, um núcleo residencial onde o fazendeiro vivia com seus familiares e
escravos. Ainda mais, era comum ao fazendeiro, o grande proprietário, permitir
que diversas famílias mais pobres vivessem em sua terra, livres de aluguel.
Estas famílias dependentes viviam dispersas na área da sesmaria e formaram
a base do campesinato caipira paulista” (SHIRLEY, 1974).
4
A base econômica
4
Nas últimas décadas do séc. XVIII, a Vila de Cunha possuía uma considerável população,
conforme demonstra o censo das Ordenanças de 1783. De acordo com Von Spix e Martius,
citados por Shirley, no início do séc. XIX Cunha possuía uma economia que podia competir
com muitas cidades do Vale do Paraíba. Von Spix e Martius mostraram exemplos, escrevendo
em 1818, sobre a surpreendente pobreza das povoações do Vale. Lorena, por exemplo, agora
é uma cidade 35.000 habitantes e sede de uma diocese, foi antes descrita como: ‘uma vila
composta por 40 casas sem nenhuma importância’. Enquanto Pindamonhangaba é descrita
como constituída de algumas fileiras de relés choupanas, espalhadas sobre uma colina, que
não parece estar numa condição próspera
O censo de ordenança de 1803 fornece um quadro social de Cunha sobre o qual
escreve Shirley: “No ápice, estava o capitão mor, que era tanto o maior fazendeiro, como o
oficial representante da Coroa portuguesa na região. Ele possuía 39 escravos, o maior número
de escravos possuídos por alguém observado no censo. Havia um total de 15 fazendeiros que
possuíam, cada um, mais de 20 escravos. A maioria deles, além disso, tinha um número de
familiares dependentes morando em suas terras. Estas famílias eram registradas com os
nomes dos fazendeiros, como homens livres, mas vivendo na terra a favor’, isto é, sem
aluguel. Embora fossem distintos dos escravos, eram, toda via, apontados como dependentes
do fazendeiro pois os pequenos proprietários de terras livres eram registrados
[70]
de Cunha, no período estudado era, sem dúvida, pautada na produção
agropecuária e na atividade tropeira.
5
2.3 O mundo rústico a partir da realidade de Cunha: a formação da tradição.
Ao descrever a origem do mundo caipira, Shirley afirma, e com razão,
que as origens do caipira e da sociedade devem ser buscadas nos primeiros
povoamentos portugueses na região. A situação periférica, o fato de - tal como
o próprio Vale do Paraíba - ser região de passagem
6
, fazem com que em
Cunha crie-se uma economia de subsistência. A formação social gerou uma
camada minoritária que estabeleceu condições para uma vida mais digna e,
posteriormente, mais rica em detrimento de uma camada majoritária que se
formou à margem do então processo de urbanização - formação do núcleo
urbano de então - com elementos das camadas sociais mais elevadas que
separadamente”. Nesse tempo, quase todo agricultor livre tinha alguns escravos. Havia 40 ou
50 famílias que possuíam de 10 a 20 escravos cada uma e um número maior com 1 ou 2
escravos. Estes últimos podiam ser considerados pequenos sitiantes” (SHIRLEY, 1974 : 42).
5
No Vale do Paraíba, para o período, encontramos registros de população escrava que podem
ser parâmetro para uma relação com a população de escravos encontrada em Cunha. Para
tanto, vamos tomar os apontamentos de Daniel Pedro Müller - Daniel P. Müller. Ensaio d’um
quadro estatístico Província de São Paulo. São Paulo.Gov. Estado de São Paulo. 1978, pp.
154-158. Percebemos, porém, que na realidade, estes dados, no caso de Cunha, pertencem
ao censo de ordenanças de 1835 e não 1836. No caso de Cunha, não existe o levantamento
de 1836. O último censo de ordenanças do período foi realizado em 1835 voltando a ser
efetivado no final do c XIX, especificamente a partir de 1872 - para o ano de 1836 e
relacioná-los com o ano de 1835 em Cunha. Tomamos um total de oito vilas a partir de Jacareí
e encontramos um total de 18.436 escravos, excetuando-se a Vila de Cunha. Essa população
encontra-se assim dividida: Jacareí 2315 escravos, São José 458, São Luiz 1458, Taubaté
3.604, Guaratinguetá 2258, Lorena 3843, Areias 2830 e Bananal 1679 escravos. Neste mesmo
período, a Vila de Cunha possuía um total de 1652 escravos o que representava, diante do
total das cidades citadas, 8,9% da população total de escravos aqui levantada, encontrando-se
como sétima Vila - em termos de colocação, em ordem crescente - do Vale do Paraíba, entre
as computadas, em população cativa. Não acrescentamos a Vila de Pindamonhangaba por
acreditar haver um grave erro na ordem de colocação dos dados; provavelmente, o referido
erro - pág 156 - poderá ser atribuído a um engano de ordem tipográfica, trocando os dados de
pretos africanos livres por pretos africanos cativos. Achamos por bem, diante de tal
circunstância, não considerar os referidos dados.
6
Este assunto foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho no qual tomamos como pontos
referência textos como o de Nice Lecoq Muller e Lucila Hermann e os confrontamos com as
perspectivas de Maurício Alves.
[71]
mantinham um vínculo econômico maior com este núcleo, de acordo com suas
condições econômicas.
A criação da agricultura voltada para o mercado é antitética ao modo de
vida do caipira e que, neste sentido, se torna uma camada de camponeses
marginais. A produção de colheitas de subsistência com a foice e a enxada era,
no início, relegada aos escravos negros e indígenas nas grandes propriedades
de terra. Uma vez estabelecido, este padrão foi preservado pelos escravos que
fugiam, pelos brancos pobres e pelos mestiços que, por uma razão ou outra,
abandonavam as fazendas, indo instalar suas residências no interior. Com o
passar dos séculos, esta camada de camponeses marginais aumentou e se
irradiou, e o padrão estabilizou (SHIRLEY, 1974:59).
Outra realidade observada na região de Cunha é o fato de este mundo
rústico não ter sido subjugado pela Igreja e pela Coroa Portuguesa. Não se
estabelece no processo de colonização do campesinato a constituição de
agrupamentos organizados em aldeias - como no caso da colonização
espanhola. No caso brasileiro, as cidades são comuns porém, com funções
urbanas especializadas e a população rural - no caso, o homem rústico - não
vive nelas, tendo para com as mesmas uma relação de grande autonomia.
Além da concessão das sesmarias, existiam agricultores que viviam como
agregados e outros que tomavam posse das terras através de um processo de
desmatamento e ocupação do solo.
Outro fato que gerou a dispersão foi geográfico. A região de Cunha é
formada por pedaços de pequenos vales rodeados por pequenas colinas - nas
palavras de Shirley - o que gerou um isolamento parcial com relação ao centro
urbano. Esse isolamento gerou também a necessidade de formação de
[72]
pequenos centros de relações rurais que hoje são os bairros rurais. Neste
caso, o termo bairro tem aqui o significado corrente de serem espaços
específicos, constituídos normalmente por uma capela e uma venda onde as
pessoas se concentravam para rezar e/ou comprar. Esses bairros eram, enfim,
pequenos centro onde os moradores da região se concentravam em certas
ocasiões. Nem sempre os bairros possuíam ou possuem esses centros ou
capelas. Neste caso, reúnem-se nos que possuem, de preferência nos mais
próximos. Com isso criou-se o grupo de vizinhança que consiste em um ou
mais bairros específicos, cada um, usualmente, num pequeno vale, ligado a um
centro normalmente constituído de uma capela ou venda.
Em seu livro Parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido dá uma descrição
bastante específica sobre a rusticidade da cultura do mundo caipira. O referido
autor parte dos estudos dos elementos ligados diretamente à manutenção da
vida - no sentido econômico - e posteriormente estuda as formas de vida social
que permitiram a sobrevivência dos agrupamentos rústicos.
7
A perspectiva das
técnicas caipiras tradicionais estaria ligada à própria natureza do povoamento
paulista que, por sua vez, seria condicionada “pela atividade nômade e
predatória das bandeiras”. O interessante é observar a dialeticidade levantada
por Cândido no processo do bandeirismo.
8
7
Vale lembrar aqui que o autor parte do princípio da relação entre necessidades e recursos do
meio físico. Segundo o autor essa relação pressupõe um equilíbrio e requer, por parte do
grupo, soluções adequadas e completas. Essas necessidades possuem caráter natural e
social, isto porque, “se a sua manifestação primária são impulsos orgânicos, a satisfação
destes se por iniciativas humanas, que vão se complicando cada vez mais, e dependem do
grupo para se configurar”. Esta complexificação transcende a esfera estritamente natural e se
torna produto da sociedade. Ainda segundo o autor, o equilíbrio social depende da correlação
entre as necessidades e sua satisfação. Neste caso, as situações de crise aparecem como
dificuldade de correlacioná-las. A partir destes elementos o autor afirma que este processo
gera uma solidariedade estreita onde o meio vai se tornando “reflexo da ação do homem na
dimensão do tempo. (Antônio Cândido. Parceiros do Rio Bonito, pp. 23-27).
8
O bandeirismo pode ser compreendido, de um lado como vasto processo de invasão
ecológica; de outro, como determinado tipo de sociabilidade, com suas formas próprias de
ocupação do solo e determinação de relações intergrupais e ainda grupais. A linha geral do
[73]
A rusticidade do cotidiano do caipira é descrita, fundamentalmente, e
com os devidos cuidados, a partir dos relatos de viajantes comumente citados
por pesquisadores que estudam o período. São textos de viajantes tais como
Spix e Martius e Auguste de Saint-Hilaire. As mesmas características descritas
por Cândido são encontradas no texto de Shirley - para o caso de Cunha. O
que nos possibilita constatar que os elementos comuns são as relações do
mesmo processo de povoamento e do bandeirismo encontrados no processo
de ocupação de São Paulo.
A expansão da cultura rústica ligada às comunidades caipiras acontece
devido às suas características básicas: (1) isolamento; (2) posse de terras; (3)
trabalho doméstico; (4) auxílio vicinal; (5) disponibilidade de terras; (6) margem
de lazer.
Todo homem, quando se casava, fixava a família no seu próprio pedaço
de terra. Esta expansão adentrava as densas matas do sertão de Cunha. Os
caipiras destas regiões montanhosas são demograficamente muito estáveis e
moram no mesmo bairro por várias gerações. Ainda hoje encontramos casos
freqüentes de moradores dos “sertões” de Cunha que vivem de forma quase
isolada, conservando as condições básicas de existência aos moldes dos
moradores de décadas e séculos atrás.
Com relação aos laços de parentesco, observa-se que, devido ao
isolamento, os mesmos eram superados no que se refere à ajuda mútua. Havia
o prevalecimento do bairro sobre os laços de parentesco que podiam até
mesmo ser eventualmente ignorados.
processo foi determinada pelos tipos de ajustamento do grupo ao meio, com a fusão entre a
herança portuguesa e a do primitivo habitante da terra. (Antônio Cândido. Parceiros do Rio
Bonito, p.36). O autor vai fundamentar esta afirmação a partir das abordagens dos estudos de
Sérgio Buarque de Holanda (conforme a nota 1 do capítulo primeiro de seu texto).
[74]
Descrevendo as relações do caipira, podemos afirma que o caipira era
interligado pelo parentesco, mútuo interesse econômico e religião. Estava
também ligado, ainda que vagamente, pela sociedade urbana, da qual obtinha
algumas mercadorias necessárias. O foco integrativo, ligando vários bairros e
famílias, uns aos outros e com a maior comunidade urbana, era o centro do
grupo de vizinhança. Este consistia numa capela e numa venda, e nenhum
grupo de vizinhança da zona rural seria completo sem esses dois elementos. O
religioso e o lúdico são partes integrantes da realidade caipira, tendo muitas
vezes, a Igreja Católica, dificuldades para separar um do outro.
Freqüentemente, ambos eram localizados, embora de maneira não necessária,
perto um do outro.
Em grande parte, a descrição dos viajantes sobre os caipiras paulistas
era marcada por adjetivações que nos traçam um quadro desolador sobre a
forma de vida dos mesmos. Tomava-se como base as formas de vida e de
organização econômica dos habitantes rurais. Chega-se a afirmar que essa
população era entregue à indolência. Apesar de uma visão marcadamente
etnocêntrica, existem elementos importantes a se considerar sobre as
descrições. Antônio ndido cita - de forma resumida - a visão de Saint-Hilaire
sobre esses moradores. A partir de seu texto “Viagem pelas províncias do Rio
de Janeiro e Minas Gerais”, citado por Cândido, Saint-Hilaire pinta um quadro
desolador da agricultura extensiva do caboclo brasileiro apontando, inclusive,
para as conseqüências sociais dessa forma de trabalhar a terra. A destruição
das matas não é a única conseqüência lamentável desse sistema. Uma
população fraca, disseminando-se por uma extensão imensa, torna-se mais
difícil de governar: vivendo a grandes distâncias uns dos outros, os lavradores
[75]
perdem pouco a pouco as idéias que inspiram a civilização. (SHIRLEY,
1974:64)
Para o caipira, a agricultura extensiva, itinerante, foi um recurso para
estabelecer o equilíbrio ecológico: recurso para ajustar a necessidade de
sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento maior da
terra. Por outro lado, condicionava uma economia naturalmente fechada, fator
de preservação duma sociabilidade estável e pouco dinâmica. Essa agricultura
itinerante não existe apenas pelas reservas de terras novas que eram imensas
para as características de uma população esparsa, mas também pelo sistema
de sesmarias e posses, sobretudo as posses, pois as mesmas abriam para o
caipira a possibilidade constante de renovar o seu chão de plantio, sem
qualquer ônus para a compra ou locação e, neste sentido, a posse, mais ou
menos formal, ou a ocupação pura e simples, vêm juntar-se aos tipos de
exploração e ao equipamento cultural, a fim de configurar uma vida social
marcada pelo isolamento, a independência, o alheamento às mudanças
sociais”. (CÂNDIDO, 1987:44-45)
Quando analiso o povoamento disperso, ou seja, formas de
povoamentos “marginais” vinculados à ocupação do sertão, encontro a
dificuldade de emaranhar-se em sua história. Segundo Antônio Cândido, “os
povoadores isolados não têm história, senão na medida em que penetram, por
uma razão ou por outra, na órbita do povoamento condensado”.
9
(CÂNDIDO,
1987:58-65)
9
. Em seu terceiro capítulo o autor busca analisar as condições de vida no tipo disperso de
povoamento e indica formas de sociabilidade desenvolvidas em função do mesmo e não dos
núcleos concentrados. Porém ressalta que os primeiros têm uma relação com o segundo. O
autor busca compor essa relação não desvinculando o povoamento esparso do povoamento
concentrado.
[76]
Apesar do sistema de sesmarias que tinha por objetivo o povoamento e
a produção do solo, encontram-se várias categorias de moradores que ocupam
o solo a partir ou de desdobramentos da sesmaria ou de ocupações ilegais
para o período. Muitos moradores viviam de forma transitória, pois não tendo
títulos legais, podiam perder as terras onde moravam. Aqui se encontram
categorias como os afastados do meio (especialmente os interessados em se
isolar), os agregados ou camaradas (moradores que têm permissão do
proprietário para morar ocupar a terra sem pagar por isso, exceto nos casos de
prestações de serviços), os posseiros (que não possuem a referida permissão
e ignoram a situação legal da terra que ocupam) e os donos de terras
(ocupantes legais do solo) que se dividem entre sitiantes e fazendeiros
(dependendo do tipo de ocupação e mão-de-obra - extra-familiar ou não - e da
extensão da terra.
No caso do Vale do Paraíba, quem analisa, de forma mais próxima, essa
realidade é Maria Sylvia de Carvalho Franco em seu texto Homens livres na
ordem escravocrata.
10
Do ponto de vista histórico, partimos de trabalho de
10
Convém, aqui, citar, nessa fase de relançamento da obra, uma polêmica surgida entre o
historiador Boris Fausto e a referida historiadora. Apesar de o ter sido tão bem interpretado
pela autora, motivo que gerou uma discussão teórica entre a mesma e seu interpelante que
resenhou a sua obra, quero levantar algumas questões que parecem relevantes na discussão.
Refiro-me, em primeiro lugar, à questão da violência marcada, nas palavras de Boris Fausto,
pelo “círculo vicioso” de suas fontes (os processos criminais) que deveriam, para ser mais
amplo, ser “definido com alguma segurança por meio de uma análise quantitativa dos
processos, inclusive ao longo do tempo, discriminando-se a natureza das infrações”. Em
segundo lugar, seguindo o pensamento de Boris Fausto, no processo de relações entre o
fazendeiro e o sitiante que, de fato, acaba gerando, segundo Fausto, uma “robotização” do
homem livre e pobre, empobrecendo a troca desigual de favores. Boris Fausto. “Um mundo em
ruínas”. (In Jornal Folha de São Paulo, caderno 05 p. 11 de 7 de setembro de 1997). Prefiro
fugir da discussão, aqui irrelevante, de se, de fato, a obra é ou não um clássico.
Outra autora que diverge de parte do pensamento de Carvalho Franco é Hebe Maria
Matos de Castro. Em seu livro “Ao sul da história” - cito a edição de 1987, publicada pela
Editora Brasiliense - Hebe Castro busca descrever as relações de trabalhadores pobres na
crise do trabalho escravo. Seu trabalho busca levantar a questão da agricultura desenvolvida
em pequenas plantações, voltada exclusivamente para o mercado interno. Essa agricultura,
segundo a autora, foi que possibilitou a economia agroexportadora. Hebe Castro diverge de
Carvalho Franco quanto à classificação que a segunda elabora com relação ao conceito de
[77]
Carvalho Franco
11
no que concerne às relações das camadas dos homens
livres que são um dos pilares da formação da tradição na região do Vale do
Paraíba, o que pode se aplicar à Cunha por forças de circunstâncias históricas
similares. A autora afirma que, com relação aos tropeiros e vendeiros, as
condições precárias não impossibilitaram o movimento de mercadorias, pois as
tropas de burros percorriam ativamente o país durante todo o século XIX, e
cortavam em todas as direções as regiões do Vale do Paraíba, transpondo as
cordilheiras em direção ao interior ou ao mar, ou seguindo os vales rumo a São
Paulo ou ao Rio de Janeiro.
homens pobres. Afirma Castro: Discordamos, entretanto, da classificação adotada pela autora
por dois motivos básicos:
1) A análise em questão reúne, como ‘homens livres e pobres’, categorias sociais a nosso ver
bastante diversas e nem sempre facilmente identificadas pela ‘pobreza’, como ‘tropeiros’,
‘vendeiros’ e ‘sitiantes’, ao lado de ‘agregados’ e ‘camaradas’. 2) A ‘dependência pessoal’ em
relação aos grandes proprietários é utilizada pela autora, mais que a pobreza, como elemento
de homogeneização dos homens livres analisados. “Tal dependência possuía significados
bastante diversos para cada categoria arrolada, e esta diferenciação parece-nos, pelo menos,
tão importante quanto os traços de identidade ressaltados”. (Hebe M. Castro Matos. Ao sul da
História, pp. 75-82).
11
Este livro foi escrito em 1964, como tese de doutorado, defendida na USP. Abre o trabalho
uma questão decisiva para quem tenta entender a formação histórica da sociedade brasileira:
Qual o significado do trabalho escravo na produção colonial moderna? Entre a escravidão
antiga e a moderna, Maria Sylvia aponta uma diversidade de sentido que explica os "rumos
diametralmente opostos do processo histórico das sociedades em que uma e outra se
constituíram". Questiona-se a tese da exterioridade capitalismo-escravidão e destaca-se o
trabalho livre como constitutivo do mundo moderno pela mediação de seu contrário, o trabalho
escravo. Decisiva também é a caracterização de "uma formação sui generis de homens livres e
expropriados, que não foram integrados à produção mercantil - destituídos de propriedade dos
meios de produção, mas não de sua posse". São homens "a rigor dispensáveis", e a tentação é
grande de aderir a alguma tese dualista das "populações marginais" ou das sobrevivências
arcaicas, ora apontadas como obstáculo ao desenvolvimento capitalista "moderno", ora como
espaços funcionais e complementares a este - tentação também muitas e muitas vezes
reconstruída nas décadas seguintes. O objetivo para o qual esteve basicamente orientada a
sociedade brasileira determinou, de ponta a ponta, sua organização. Embora os homens livres
e pobres tenham permanecido apartados da produção para mercado, este setor localizou-os na
estrutura social e definiu o seu destino. No material consultado, "as notícias sobre a violência
cometida circulam livremente", já que são testemunhos necessários ao esclarecimento dos
processos-crime que constituem o ponto de partida do trabalho. Transcritos dura e cruamente,
os testemunhos, reconstruindo detalhadamente situações triviais da vida social, comovem pela
"naturalidade" e vigor com que essa violência aparece, inclusive onde menos deveria ser
esperada. A contradição que encontramos nas origens da sociedade brasileira, ao nível da
economia - produção direta de meios de vida e produção mercantil -, desdobrou-se, ao nível da
organização social, na síntese difícil das associações morais e das constelações de interesses,
e desenvolveu-se, ao vel da organização política, na unidade da vida pública e da vida
privada.
[78]
Uma importância relativa do movimento de mercadorias na época, em
contraste com a pobreza da estrutura material existente para suportá-lo. A
literatura das viagens afirma que se experimentava longamente as dificuldades
dos caminhos, o desabrigo dos ranchos, a pobreza das vendas, a mercê da
hospitalidade estranha, tornando evidente um desnível grande entre os valores
arriscados nesse tráfico e as condições mínimas de segurança. É no ponto de
articulação desses dois caracteres - tecnologia rudimentar e grande
empreendimento mercantil - que se pode situar a figura do tropeiro no século
XIX, pois o tropeiro aparecia como a própria personificação dessas condições
objetivas, sua atividade firmou-se por ser indispensável a um momento das
operações comerciais (FRANCO, 1997: 62-63). Havia vários tipos de tropeiros,
um deles era o de negociante de animais e criação, para vendê-las nas feiras e
mercados urbanos, ou que se dirigia às regiões de cultura agrícola, realizando
suas transações diretamente com proprietários de terras. Este era um tipo que
estava pouco ligado ao grande fazendeiro, porque ambos entravam em contato
em termos de uma relação de mercado, sem a interferência de obrigações
necessárias de ordem pessoal. A importância desses tropeiros era tamanha
que, no início do processo de povoamento, no caso, na fase de abertura das
fazendas, o próprio fazendeiro esteve preso ao tropeiro, dependendo de suas
decisões em fornecer-lhe os animais, dentro dos prazos e dos preços
convenientes. Essa dependência tendia a pesar mais para o lado do tropeiro, à
medida que se consolidavam as plantações e aumentava a diferenciação de
fortunas.
Porém, havia uma relação de troca, pois: o tropeiro, seduzido pela
hospitalidade e pelas imensas pastagens que cercavam a fazenda, pedia ao
[79]
fazendeiro para ceder a seus animais essas riquezas perdidas. Nessa ocasião,
estabelecia o seu quartel general na fazenda, onde criava seus burros. De
tempos em tempos, fazia uma tournée pela vizinhança e vendia os que
estavam preparados. Em seus momentos ociosos (o tropeiro) tornava-se útil na
fazenda: ensinava a laçar e a domar animais rebeldes, servia de escudeiro nas
viagens e de sacristão ao padre (FRANCO, 1997:64).
Outra figura era a do condutor de tropas. Esse grupo se dividia entre os
que mantinham tropas de aluguel e os que eram camaradas nas fazendas. Os
que mantinham tropas de aluguel se ligavam mais às cidades e vilas onde
localizavam e ajustavam as empreitadas. Nas atribuições do condutor de
tropas incluíam-se, assim, desde as curtas e simples viagens aos centros
próximos, aa condução de uma grande e complexa caravana por caminhos
longos e difíceis. Neste caso, as funções desdobravam-se na supervisão dos
escravos, no cuidado dos animais, na vigilância da carga. Suas próprias
funções seriam de molde a limitar os laços de dependência em relação ao
fazendeiro (FRANCO, 1997:67).
A figura do vendeiro também se fazia relevante e, para que se
compreenda a real posição do vendeiro na sociedade senhorial brasileira, é
necessário enfatizar a sua condição de único agente (embora a maior parte das
vezes de modo muito rudimentar) ocupado em atividades comerciais e ao
mesmo tempo inserido na vida comunitária.
Isto fazia do pequeno comerciante do bairro ou da beira da estrada o
único, dentro do âmbito da população rural, a manipular dinheiro de maneira
mais ou menos constante e a depender vitalmente desse fluxo.
[80]
A dependência vital desse fluxo de dinheiro levava o vendeiro a
equilibrar por vias menos lícitas a falta de regularidade no rendimento de seu
negócio. Participando de uma sociedade cuja economia se organizava num
duplo plano, um deles comercial e desintegrado do sistema local, e outro de
subsistência, e tendo-se apropriado de uma atividade que se inseria a meio
caminho entre esses dois planos (dependia do comércio com a população do
setor de subsistência), não lhe sobrava muita escolha senão explorar todas as
oportunidades de lucro. Muitas vezes o vendeiro era uma figura mal vista na
comunidade, pois os mesmos se mantinham pelo lucro, muitas vezes
exagerado, obtido em negócios às vezes escusos (FRANCO, 1997:76-77).
Sua posição era incerta e oscilante, pois se localizava nos intervalos dos
grupos componentes do sistema social. Sua atividade transcorria na interseção
dos planos em que se desdobrava a economia - o mercantil e a subsistência.
Seu comportamento reúnia características tanto dos estratos superiores, com a
exploração hábil dos esquemas de dominação, quanto das camadas pobres,
participando de sua moralidade. Estas condições de sua existência foram
sintetizadas na técnica competitiva que foi sua, por excelência: a astúcia e a
malícia para criar e exaurir as oportunidades de formar pecúlio num meio em
que o dinheiro era escasso.
No que se refere às relações entre pequenos e grandes proprietários,
Carvalho Franco afirma que essa relação se fundamentava, muitas vezes, em
uma relação de compadrio, na qual se permitia a quebra das barreiras sociais
entre as pessoas por ela ligadas. Essa caracterização mostra, também, que a
associação padrinho/afilhado encerra possibilidades de transformar-se numa
peça do processo de dominação. Nas suas origens, o batismo estabelece
[81]
ritualmente um parentesco divino, e isto entre seres que se reconhecem,
também originalmente, como da mesma ordem natural, como pessoas; e o
respeito pelas promessas trocadas, em que pese a diversidade de posições
sociais, era requisito mínimo de sua própria eficácia como cnica de
dominação.
Esta relação gera uma consciência de indiferenciação, porém, essa
consciência da camada dominante não se manifesta empiricamente, no
pensamento de indivíduos concretos, como ideais de igualdade efetiva entre os
homens, nem de equivalência de seus direitos. Muito pelo contrário. Segundo
Carvalho Franco, a formulação ideológica dessa dimensão da realidade social
postula a desigualdade inata entre os seres humanos, mistificando as
diversidades das situações de existência, que condicionam as probabilidades
de destino, com o simulacro de diferenças individuais de ordem psicológica,
intelectual, ou biológica, apontadas como fatores decisivos para a redefinição
do curso de cada sujeito. O mesmo fazendeiro entrevistado, que reconhece no
sitiante um vizinho, declara-se incapaz de admitir que os homens sejam iguais
(FRANCO, 1997:88). Porém, nessas relações fundadas na troca política e na
dependência de favores, quase não referências a conflitos entre grandes e
pequenos proprietários. É preciso combinar-se um conjunto muito especial de
fatores para que as tensões emerjam e venha a romper-se o equilíbrio mantido
por um sistema de controle tão forte como o acima descrito. No cerne dessa
constelação de fatores está, sem dúvida, a posse da terra. Muito dificilmente
poderá surgir um estado de crise entre pequenos e grandes lavradores, uma
vez estabilizada a distribuição da propriedade fundiária e desenvolvida entre
eles a acomodação acima caracterizada. De outro lado, a crise também é
[82]
cancelada pela simples desigualdade das forças em jogo no processo de
expropriação da terra.
Sobre os agregados e camaradas, Carvalho Franco afirma que as
facilidades de acesso à terra possibilitaram o ajustamento social do homem
pobre através de sua incorporação a grupos rurais relativamente auto-
suficientes. Na região paulista persiste a existência desses pequenos núcleos
de população - os bairros - onde a adaptação ecológica, a vida econômica, a
cultura e a organização social integram-se em termos de mínimos vitais, mas
de modo a permitir seu funcionamento interno. Esse equilíbrio foi rompido com
o desenvolvimento da exploração lucrativa da terra, que promoveu o
desaparecimento do pequeno lavrador independente e, em seu lugar, ou
subsiste o sitiante proprietário, ou surge outro tipo, o morador em terra alheia.
A constituição deste agregado como categoria social se completa quando
também se conclui a ocupação da terra sob a forma de grande propriedade
privada e se expande a agricultura comercial baseada no trabalho escravo.
No Vale do Paraíba, as dificuldades de mão de obra possibilitaram a
sobrevivência do caipira independente: as terras improdutivas podiam, sem
prejuízo para o proprietário, ser cedidas, por favor. A possibilidade de
sobrevivência através de uma reelaboração do antigo estilo de vida, em larga
medida dificultava o aproveitamento regular do caipira nos serviços da grande
lavoura. Assim, as condições básicas em que a cultura do café se desenvolveu
permitiram a sobrevivência do caipira tradicional e o preservaram da
transformação em trabalhador livre.
A visão do homem pobre na consciência da camada dominante o
aproximava do escravo e estabelecia uma desigualdade entre o proprietário e o
[83]
homem sem posses. Entretanto, essa mesma visão compreendia a solicitação
desse homem para as ações que pressupunham o reconhecimento de seus
atributos humanos em sua expressão máxima: se aceitava, para efeitos legais,
a sua palavra de honra.
12
Diferentemente dos vendeiros ou dos pequenos proprietários, a
frustração das expectativas expõe o caráter precário e transitório das relações
de dependência, o que possibilita a substituição da imagem da imutabilidade
sagrada dos compromissos.
13
Em resumo, o destino do homem pobre definiu-se num mundo regido
por dois princípios divergentes de ordenação das relações sociais: associações
morais e ligações de interesses que se articularam e tiveram efeitos deletérios
recíprocos.
2.4 Aspectos históricos relacionados ao processo de formação da estrutura e
da realidade econômica e social na região de Cunha no século XX.
Antes de começar esta parte do presente estudo, gostaria de explicar
que, neste item, irei trabalhar as duas leituras feitas sobre a realidade cultural
12
Carvalho Franco trabalha a visão do homem pobre na consciência da camada dominante, no
caso citado, a partir das “Atas da Câmara Municipal de Guaratinguetá” (15/02/1897). Carvalho
Franco cita o referido documento afirmando que, no mesmo, percebe a tendência de sujeitar o
homem pobre a uma servidão legalmente sancionada. Segue-se aqui o conteúdo do mesmo:
“Art. 3
o
. - Todas as estradas municipais e vicinais serão feitas de mão comum pelos moradores
do bairro e pelos vizinhos que dela se utilizarem; Art. 6
o
. - Para o serviço das estradas
municipais será avisado e obrigado a comparecer todo indivíduo que trabalhe por suas mãos
em serviços de roça, quer seja agregado, jornaleiro, meeiro, colono nacional ou estrangeiro
residente no respectivo bairro; Par. único - os fazendeiros concorrerão com a quarta parte dos
seus trabalhadores não domiciliados no bairro.” Maria Sylvia C. Franco. Homens livres na
ordem escravocrata, p. 101.
13
A oposição de dominados contra senhores, em conseqüência da perda de suas esperanças,
chega a manifestar-se porque as mesmas condições responsáveis por um estado real de
sujeição, também o são, em seu reverso, por um estado real de autonomia. Neste sentido, a
autora elabora perspectivas reais de autonomia: “ Compreende-se afinal como numa sociedade
economicamente diferenciada e autocrática, que postula e ao mesmo tempo nega, ao homem
pobre, o reconhecimento de sua condição humana, abrem-se veredas para o seu
desvencilhamento (...) Torna-se, deste modo, inteligível que camaradas enfrentem
ousadamente a fazendeiros. Ibidem., p. 104.
[84]
de Cunha. A primeira construída por Willems, extremamente detalhada,
obedecendo a um esquema do período ligado aos estudos de comunidades no
Brasil. Esta primeira leitura foi realizada na década de 1940. No segundo
momento me deterei na leitura feita por Robert Shirley, ao final da década de
1960. Um trabalho de fôlego que tinha como objetivo mostrar o processo de
modernização da sociedade Cunhense, as transformações ocorridas no
município por conta da interferência dos elementos da “modernidade” trazidos
pelo processo de relações culturais existentes entre o município e o Vale do
Paraíba.
A situação levantada pelo senso de 1943, quando Willems estudou o
município, era de uma localidade habitada por cerca de 25.000 habitantes.
Eram encontrados cerca de 50% da população envolvida com atividades
ligadas ao setor primário, sendo que essa percentagem envolvia habitantes
acima dos 10 (dez) anos de idade.
Na época, aproximadamente 1500 habitantes viviam na cidade, o que
representava 5,5% da população do Município. Além disso, cerca de 30% da
população urbana não praticava uma atividade econômica de caráter urbano.
Willems afirma que: a sociedade local oferece apenas quatro espécies de
atividades rotinizadas: agricultura e pecuária, comércio, funcionalismo público e
artesanato (WILLENS, 1947:18).
A agricultura era interessante, do ponto de vista ocupacional, para
quem fosse proprietário de terra em quantidade e qualidade que garantisse
uma existência independente. A condição de arrendatário ou meeiro
representava uma perspectiva de assalariado. Com a chegada dos “meeiros”
surgiu um novo tipo de arrendatário. Um contrato garantia ao proprietário das
[85]
terras um pagamento em dinheiro, e ao meeiro a autonomia no uso da terra.
Segundo Willems, a entrada desses mineiros ampliou a criação de gado e
aumentou o processo de êxodo rural.
As relações da vida econômica de Cunha estavam essencialmente
ligadas à vida rural, pois não havia, como em outros municípios, indústrias que
utilizassem de matéria importada, capital e mão-de-obra local, para exportar,
integralmente, o produto manufaturado, sem que a zona rural fizesse qualquer
contribuição (WILLENS, 1947:21). Os próprios comerciantes de Cunha
sofriam a concorrência de mercadores do Vale do Paraíba, que subiam a serra
para adquirir diretamente produtos rurais.
Willems chega a citar o artesanato como atividade a se destacar, porém
afirma que a maioria dos artesãos possuía uma atividade econômica paralela.
Neste sentido, afirma que o crescimento da indústria no Vale do Paraíba
acabava por enfraquecer este tipo de atividade econômica no município.
Sobre o funcionalismo, podemo-se afirmar que tal tipo de carreira
permanecia aquém de outras oportunidades profissionais, tendo em vista as
poucas necessidades burocráticas erigidas pela estrutura econômica da época.
No que se refere à migração, afirma que a mesma tinha a função de “manter o
equilíbrio relativo entre o excedente demográfico e as possibilidades de
distribuição dos indivíduos nos campos de atividades socialmente aprovadas”
(WILLENS, 1947:20).
Os moradores se agrupavam em bairros com um povoado compacto. Os
mesmos se comunicavam por caminhos com poucas estradas municipais. A
malha rodoviária municipal era de aproximadamente 280 km, transitável em
tempo seco, entretanto o município possui 1510 Km2. A população de Cunha,
[86]
principalmente do interior, vivia em um alto grau de isolamento. Boa parte dos
moradores rurais não conhecia Guaratinguetá. para a época, porém, se
percebia o aparecimento de “veranistas” a fim de construir uma “estação de
repouso”.
Sobre os setores sociais, 10% da população representava a classe
superior do município. Estrangeiros, chefes políticos, famílias tradicionais e
poucos funcionários públicos compunham esta classe social. O autor chama a
atenção para a possibilidade de mando desta classe social: “... representam
posições de mando ou possibilidades de exercer influencia sobre um número
variável de indivíduos dependentes: devedores, fornecedores, agregados,
empregados”. Continua o autor: “... talvez seja aí que se deva procurar a
diferença de cotação entre fazendeiros e sitiantes, pois os últimos não dispõem
senão de reduzido número de agregados e, freqüentemente, o tio é
trabalhado pela família”. (WILLENS, 1947:26).
Segundo o autor, com o isolamento histórico do município, poucas
famílias novas se estabeleceram na região, não se criando o contraste sócio-
cultural que gerou, em muitos outros lugares, a valorização excessiva das
famílias tradicionais. Outro fator importante é não se encontrar, para a época,
uma estrutura latifundiária no município. Assim, o se acumularam grandes
fortunas. As famílias antigas primavam por uma simplicidade que o se
comparava ao esplendor atingido pela aristocracia rural valeparaibana.
As classes inferiores nunca formaram um operariado industrial,
conseqüência do tipo de economia do município. Essa classe correspondia a
68% dos moradores citadinos e os mesmos não possuíam recursos ou
propriedades em escala ponderável, o que os deixava à deriva com relação às
[87]
oscilações da vida econômica local. A grande maioria aqui o texto menciona
apenas muito mais do que 50 p.c. da classe inferior...” - era formada por
trabalhadores ligados ao trabalho no campo. A existência de um número
elevado de arrendatários e meeiros fez com que as relações destes com os
proprietários fossem subordinativas de patrão com agregado, termo que
substitui geralmente o de arrendatário. Esses arrendatários transformaram-se
em ‘camaradas’ assumindo obrigações relativas às lavouras do patrão. Os
cuidados que dispensavam às lavouras do patrão traziam, não raro, prejuízo às
próprias lavouras, dada a impossibilidade de cuidar simultaneamente de ambas
(WILLENS, 1947:32).
No que se refere às relações de vizinhança, Willems uma atenção
especial aos laços de solidariedade prestados através do mutirão, e afirma
existirem acontecimentos que afetavam mais profundamente a vida de
indivíduos e famílias, tais como casamentos, partos, doenças, velórios, rezas,
novenas e festas; por outro lado, acontecimentos de caráter cíclico ligados ao
controle do meio físico, tais como atividades relacionadas à lavoura, construção
e conservação de caminhos e o barramento da casa. Esta solidariedade,
porém, era carregada de uma expectativa de reciprocidade que se dividia em
duas perspectivas: a reciprocidade adiada, marcada por intervalos
consideráveis entre os acontecimentos (geralmente ligados à realidade do
indivíduo e da família) e a reciprocidade imediata ou instantânea, em que se
retribui quase que de imediato. No caso do mutirão, em sua base, se
encontravam as duas perspectivas de reciprocidade. Na realidade, o mutirão
acontecia devido ao fato de os sitiantes raramente possuírem agregados em
número suficiente para a realização destes trabalhos, que são indispensáveis à
[88]
sobrevivência de suas raízes e existência no meio rural. Porém, existia, para o
período, o sintoma da desorganização do mutirão através de uma individuação
do regime de trabalho. É interessante citar o exemplo dado por Willems - do
“velho Olímpio de Campos”, metodista que, na sua relação com elementos
culturais da época conviventes com elementos religiosos católicos, teria
dificuldades de lidar com esses elementos culturais locais. Essas atitudes
demonstram quatro elementos fundamentais, a saber:
1. A associação íntima de elementos religiosos e econômicos no contexto da
cultura local.
2. A influência dessa associação sobre a estrutura social, no sentido de
alterar relações vicinais básicas.
3. A desobediência a uma norma de comportamento tido como fundamental
para a cooperação vicinal. Neste sentido a atitude pode ser interpretada
como indício de desorganização social.
4. A substituição do regime tradicional de trabalho coletivo e a troca de
serviços entre os moradores do bairro, pelo trabalho assalariado. Nesse
sentido, a mudança que a atitude do fazendeiro acarretou, pode ser
interpretada como individuação.
A crise do mutirão ficou demonstrada na discussão do “Código Municipal
de Cunha de 1893” e sua comparação com o “Código de Posturas do Município
de Cunha de 1929”. No primeiro, todas as estradas municipais eram
construídas e conservadas ‘de mão comum’ pelos moradores do bairro ou
vizinhos. Todo indivíduo que trabalhasse ‘por suas mãos em serviço de roça’
era obrigado a comparecer aos mutirões. Os fazendeiros deviam concorrer
com um quarto de seus trabalhadores não domiciliados’. O Código de
Posturas do Município de Cunha de 1929 substituiu o mutirão obrigatório pela
‘taxa de viação’, e com o dinheiro arrecadado a Câmara Municipal contratava
[89]
trabalhadores para a conservação das estradas municipais. Havia, contudo, a
possibilidade de ‘remissão’ da taxa, que era substituída por dois dias de serviço
de oito horas cada um, porém, isso ainda o representava uma quebra da
solidariedade vicinal (WILLENS, 1947:38-39).
No que se refere às relações entre sexo e família, em Cunha,
geralmente, nos bairros rurais e/ou na cidade, quase todos se conheciam e, às
vezes, se evitavam por inimizade política. Nas relações entre diferentes sexos
percebiam-se comportamentos variados, que se tornavam diferentes
dependendo de onde forem vividos: meio urbano ou rural. As regras morais de
Cunha tinham funções conservadoras pois as mesmas tendiam:
1. A afastar da comunidade as moças “mal faladas” às quais se atribuem
deslizes sexuais. Geralmente, são expulsas pela família que age com “mão
forte” na comunidade... Todas elas pertencem à classe inferior e algumas
entre elas o consideradas do corte”, o que na gíria local significa: “dado
a aventuras amorosas em troca de presentes ou dinheiro.”
2. A impedir que se estabeleça uma prostituição organizada. As poucas
meretrizes existentes, além de clandestinas são desclassificadas, quer
dizer, abaixo do nível tido como aceitável pelos rapazes de família.
3. A perpetuar o status superior do homem, perdoando-lhe os mesmos
deslizes que invariavelmente levam à condenação das moças. Contanto
que os escândalos de defloramento não se repitam, os homens se
reabilitam sendo readmitidos.
Havia uma lentidão na aproximação entre os diferentes sexos no meio
rural.
Os rapazes da roça eram considerados acanhados pelos da cidade.
Tivemos o ensejo de observar que na zona rural a segregação dos sexos era
mais acentuada do que na cidade. Mesmo em festas, homens e mulheres
conservavam-se separados. Rapazes em idade de namorar exibiam-se
[90]
medindo suas forças em lutas improvisadas. Procurando, assim, tecer
demonstrações coletivas para as moças, que se mantinham afastadas, olhando
e rindo entre cochichos (WILLENS, 1947:41).
A oposição a casamentos mistos era menor nas camadas inferiores e
entre moradores da roça. Mesmo assim os casamentos inter-raciais
representavam a minoria das uniões que configuram no registro civil de Cunha
(WILLENS, 1947:43).
CASAMENTOS REALIZADOS ENTRE 1929 E 1944
I - Casamentos intra-raciais
Ambos os cônjuges brancos 749
Ambos os cônjuges pretos 11
Ambos os cônjuges pardos 80
total 840
II – Casamentos inter-raciais
Homem branco com mulher preta 3
Homem branco com mulher parda 51
Homem preto com mulher branca 4
Homem preto com mulher parda 14
Homem pardo com mulher branca 89
Homem pardo com mulher preta 4
Total 165
III – Não declarados 24
Total 1.029
Outro fato importante, no que se refere às atitudes relacionadas ao
casamento, é que na cidade predominava o casamento civil e religioso. No
meio rural, tal fato não se repetia e, na maioria das vezes, limitava-se à
[91]
cerimônia religiosa. Parece-me que tal atitude era um ato de reserva ante o
poder público e seus representantes. Porém, crescia o número de casais que,
após o nascimento de dois ou mais filhos, legalizavam o matrimônio.
Sobre a organização da família, as tendências patriarcais organizaram
um padrão de recato que limitava a esfera de influência da mulher casada ao
lar, porém no meio rural as mulheres tinham mais autonomia do que as da
cidade, pelo fato de se dedicarem a atividades econômicas na propriedade. No
meio urbano esses padrões estavam sendo modificados por mulheres de
camadas superiores, vindas de fora do município. A procriação era um fim do
matrimônio se deve ter tantos filhos quanto Deus der -, não era comum o
emprego dos meios abortivos e/ou anticoncepcionais, mas havia vontade de
conhecê-los, principalmente entre mães de meia idade. A tendência por não se
usar meios abortivos tem suas raízes em questões religiosas não somente
doutrinais, mas também por medo de elementos sobrenaturais tais como a
vingança de Deus e dos Santos. A mudança de atitude não se operava sem
conflito com o padrão tradicional que continuou poderoso, principalmente pela
ameaça de sansões sobrenaturais.
Existia, para a época, principalmente na zona rural, uma tendência clara
e poderosa que operava a continuidade dos padrões de organização social
utilizando-se, se fosse preciso, de padrões de tolerância. A estrutura cultural
organizativa desses padrões estava acima de elementos que, a princípio, não
deveriam ser aceitos, porém, se rejeitados, levariam a uma desestruturação da
ordem criada. Sobre padrões de austeridade sexual em Cunha, posso afirmar
que a moral sexual se caracterizava por uma relativa austeridade, quando
comparada com a do litoral ou das maiores cidades do Vale do Paraíba. O
[92]
padrão de recato e a vigilância exercida pela família e vizinhança obrigavam os
homens casados, desejosos de ‘aventuras amorosas’, a procurá-las em
comunidades distantes. Porém, este fato contrastava com o padrão moral dos
agregados, pois “eram corriqueiras as referências a ‘casais que se largavam’.
Bailes realizados na roça levavam, às vezes, à separação de casais, passando
cada um a viver, maritalmente, com outra pessoa (WILLEMS, 1947:49).
Sobre a educação das crianças, no meio rural, a mesma tinha o objetivo
de introduzi-las, o mais rápido possível, no mundo adulto, pois na roça uma
criança de seis ou sete anos colabora com os adultos acompanhando-os à
roça e imitando-lhes todas as técnicas de trabalho. O filho era considerado
homem, quando capaz de ‘tirar uma tarefa’ ou ‘meia tarefa’ conforme a
natureza do serviço. Nessa época, que coincidia com a puberdade, o rapaz
pedia uma faca, símbolo material da “hombridade”. A entrega da faca equivalia
a um rito de passagem; era a iniciação de meninos que nunca tiveram outro
ideal senão o de adotar bitos que a sociedade associava ao homem adulto.
Os pais não faziam nada que pudesse retardar a realização desse desejo. Era
aspecto comum um pai dar fogo a um filho de oito ou dez anos, para acender o
cigarro de palha.
A desintegração das famílias no meio rural acontecia quando os pais
não possuíam terra, ou quando não a possuíam em quantidade suficiente para
suprir as necessidades de toda a família. Com a mobilidade espacial da
população, as distâncias e as dificuldades de trânsito pelas estradas, essa
desintegração se tornava fatal.
A sociedade urbana apresentava uma outra realidade para a educação
das crianças. O trabalho infantil continuava acontecendo, porém limitado à
[93]
camada inferior da população. Meninos entregavam leite ou vendiam hortaliças
à domicílio, limpavam quintais ou se encarregavam de recados ou outros
serviços ocasionais. As meninas empregavam-se em casas de família como
domésticas, ou ajudavam às mães na lavagem da roupa (WILLEMS, 1947:50).
As crianças das camadas médias ou superiores, ao contrário,
freqüentavam a escola pública, principal canal de difusão da cultura entre os
jovens. As crianças dessas camadas podiam entregar-se às brincadeiras
adequadas à idade. Aprendiam jogos na escola e praticavam-nos na rua, pois
não havia distâncias que lhes dificultassem a associação. Através da escola
eram colocados em contato com a literatura infantil, cujos efeitos começavam a
se fazer sentir na mentalidade dessas crianças cunhenses. Na
família
cunhense, a autoridade tinha seus graus de hierarquia e era comum a
autoridade do irmão mais velho sobre os demais irmãos, bem como a
autoridade das avós sobre os netos (WILLEMS, 1947:50). Essa mesma família
era marcada pelo ideário religioso, que contribuía de forma fundamental no
processo de formação de valores da comunidade. No caso do catolicismo, o
mesmo não possuía um equipamento material e/ou pessoal necessário a uma
efetiva ação eclesial, que construísse uma relação constante entre o aparelho
religioso e a população católica.
A zona rural estava dividida em mais de vinte “capelas”, muitas das
quais ficavam a quarenta e mais quilômetros de distância. Paróquias da
extensão e densidade demográfica de Cunha costumavam a ter dois ou três
padres, que dividiam seu trabalho entre a sede e as diversas capelas. Na
maioria dos distritos rurais os contatos com o sacerdote eram raros. Na zona
[94]
rural existiam dois templos importantes: a igreja de Campos de Cunha e a
Capela de São José, no bairro da Boa Vista.
A população criava uma distinção entre a “religião” e o “padre” ou entre o
“padre” e a “Igreja”, pois para muitos a “Igreja era do povo” e as festas
religiosas “eram do povo”. Toda vez que algum padre tendia a mudar as
tradições de uma festa religiosa, o mesmo o era bem visto pela população,
sobretudo do “povo da roça”, incapaz de separar aspectos “profanos” e
“religiosos”.
Apesar destes fatos citados tensão entre povo e vigário -, não havia
ateus em Cunha e todos seriam crentes, embora houvesse homens que não
aceitassem alguns sacramentos.
Sobre as associações religiosas católicas, as mesmas obedeciam a uma
divisão entre os grupos que o próprio Willems constrói: uni-sexuais e bi-
sexuais; de idade; em casados e solteiros; e em classes sociais. Muitas vezes
encontramos nestas associações religiosas mais de uma divisão destas
convivendo. Porém vejamos alguns exemplos:
a) Cruzada Eucarística: associação infantil e bi-sexual;
b) Pia União das filhas de Maria: uni-sexual, feminina abrangendo
mulheres solteiras.
c) Congregação Mariana São Luiz Gonzaga: uni-sexual, masculina,
abrangendo jovens solteiros.
d) Apostolado da Oração do Sagrado Coração de Jesus e Irmandade
Nossa Senhora das Dores: associações femininas formadas por
mulheres adultas e, na maioria, casadas.
[95]
e) Irmandades do Santíssimo Sacramento e São Benedito: masculinas,
composta quase que exclusivamente por homens casados. A primeira
acima citada reúne nomes “tradicionais” da cidade pertencentes à classe
superior ou média. A maioria dos membros da irmandade de São
Benedito pertence à classe inferior.
f) Associação São José: bi-sexual para adultos.
No que se refere ao controle da Igreja sobre as associações religiosas, a
grande maioria era facilmente controlada e deveria prestar contas à Igreja
(vigário). Porém os moçambiques oriundos das irmandades de São Benedito
eram utilizados como “baluarte da tradição”, contra as influências - segundo
Willems rotuladas a partir do púlpito do modernismo. Como modernismo, na
concepção da Igreja, entendia-se que seria “a existência de difusão de certos
elementos da civilização urbana que encontram amplo apoio e irradiação no
único clube social de Cunha”. A vida religiosa nas Associações se deparava
com problemas de relação entre valores morais rígidos, de algumas
associações religiosas relatadas anteriormente, e valores oriundos da realidade
urbana. No meio urbano, esses conflitos não eram totalmente externos à
estrutura religiosa local, devido ao fato de muitos freqüentadores do clube
serem adeptos fervorosos e freqüentadores do catolicismo. Embora a
desorganização social decorrente dessa quebra de homogeneidade não
houvesse produzido sintomas mais graves, ela foi suficiente para dividir as
novas gerações e, indiretamente, também os adultos, em dois campos opostos,
no que se refere ao ajustamento de certos interesses às normas estabelecidas
pela Igreja” (WILLEMS, 1947:67).
[96]
O trabalho de Shirley sobre o Município de Cunha foi iniciado em 1966,
publicado na década de setenta, e é de fundamental importância para se
entender as questões sociais e culturais que permeavam as relações entre
tradição e modernidade, naquela localidade para o período. O fato de utilizar tal
trabalho não implica em adotar sua perspectiva teórica nos estudos sobre a
região, tampouco, tenho a pretensão de construir uma interpretação que
adentre às questões e conclusões levantadas pelo autor. Minha perspectiva é
outra e meu objeto se restringe à questão religiosa, especificamente ao
catolicismo e suas mudanças naquele município. Nos capítulos sete e oito
de seu livro O Fim de uma Tradição, Shirley descreve mudanças na sociedade
cunhense, afirmando que a mesma se encontrava em transição. O Capítulo
Sete analisa as transformações estruturais ocorridas na Zona rural do
município. O que afirma o autor neste capítulo? Em primeiro lugar, o autor
afirma existir em Cunha uma sociedade altamente estratificada e em processo
de complexificação. Terra e riqueza são os pontos de foco de sua análise.
Neste sentido, afirma o autor que “terra” possuía diferentes significados para os
diferentes grupos existentes em Cunha. Para o “camponês caipira” era algo a
ser trabalhada a cada dia, base da sua existência. Para os fazendeiros, terra
não era algo a ser trabalhado diretamente, mas sim algo que lhes dava
autoridade e prestígio sobre clientes e meeiros.
Com a decadência do café e a saída de alguns aristocratas da região, a
imagem do sistema social dicotômico (senhor/escravo) foi abrandada. Daí a
importância da figura do caipira pois, como vivia em áreas marginais, o caipira
formava um grupo relativamente independente.
[97]
Com o fortalecimento das atividades comerciais, o valor da terra
começou a crescer no município. A mesma tornou-se artigo comercial e a
posse legal tornou-se cada vez mais importante e, assim, pela década de 1920,
a grande maioria da população caipira estava morando em uma terra de
grande valor comercial. Entre 1930 e 1940, surgiram os grandes movimentos
de desapropriação facilitados pelo pouco conhecimento da população caipira
em relação ao sistema jurídico, gerado, segundo o autor, pelo sistema
urbano
14
.
Esta situação gerou um grande aumento no número de propriedades
registradas entre 1920 e 1940. Houve, entre estas duas datas um aumento de
797 para 1531 propriedades registradas. Esta situação justifica o fato de uma
crescente conscientização por parte da população rural. Para o período, existia
um conhecimento generalizado sobre a importância do registro oficial das
terras por parte da população rural. Muitos proprietários registravam apenas
parte das terras para evitar impostos, o que ocasionou muitos conflitos entre
vizinhos. Fonte de violência, resolvida nos tribunais. O número deste tipo de
violência superava as questões de disputa de mulheres.
Outra questão social importante é o transporte no município.
O
desenvolvimento das redes de transporte é o vinculo sico na compreensão
das dinâmicas sociais e econômicas da zona rural de Cunha. De acordo com
informações das autoridades locais, havia cerca de 800 quilômetros de
14
Aqui o sistema urbano judiciário, auxiliado pela lei urbana escrita, interpretada pelas
autoridades judiciárias da localidade, e com toda a força política estadual atrás de si, investiu-
se contra a sociedade caipira, na sua própria base de existência, a terra. (...) durante essa
época, muitos perderam suas terras que sempre presumiram ser herdeiros. Devido à
ignorância ou à alienação geral da cultura urbana e às vezes apenas parra evitar os impostos,
eles nunca se importavam em registrar legalmente suas terras, e outros mais bem esclarecidos
sobre os costumes da cidade e de suas leis simplesmente privaram-nos delas (SHIRLEY,
1974).
[98]
estradas no município em 1965, embora nem todas fossem acessíveis ao
tráfego motorizado. Emilio Willems menciona que, em 1945, havia somente 280
quilômetros de estradas municipais (SHIRLEY, 1974:147).
Esta mudança acarretou um contato maior do trabalhador da zona rural
com a cidade e, conseqüentemente, este fato transformou estas relações
recriando um espaço de lazer e trabalho.
15
Para justificar o que chama de na tradicional sociedade de folk, o autor
articula estes três fatores: novos mercados, comercialização das terras e
melhorias no sistema de transporte, além da presença no município, o que não
é novidade em todo o Brasil, das heranças divisíveis. Muitos caipiras perderam
suas terras, com o resultado dos valores crescentes das mesmas. Outras
pessoas da zona rural chegaram a um relativo equilíbrio com as forças
comerciais, aceitando a escritura de terra sem perder sua qualidade de
camponeses de subsistência.
Os bairros rurais, apesar de estarem em grande parte - em transição,
mantinham os padrões culturais caipiras. Afirma que a estrutura sócio-rural de
Cunha tinha como base a existência de grupos de vizinhança interligados pelos
vínculos de parentesco e ajuda mútua. Os grupos de vizinhança diminuíram
enquanto as pessoas se voltavam cada vez mais para a sede do município
como centro da vida social. Na questão religiosa, este fato teve reflexo, pois
estes agentes eram fundamentais em seu meio e, neste sentido, detectou-se a
redução do número de capelas católicas para a década de sessenta.
15
“Torna-se possível aos trabalhadores da zona rural trabalhar na roça, quando moram na
cidade, e isto é verdade em todo o nível social. em Cunha, agora, inúmeros lavradores
ambulantes que trabalham em épocas diferentes para uma variedade de proprietários de
terras. Dessa maneira, o transporte aperfeiçoado no município tem sido muito importante para
o contato crescente entre a população rural e os indivíduos e as organizações da zona urbana”.
[99]
Com relação ao que entende por desagregação da realidade caipira,
Shirley afirma que dois elementos trabalham contra a existência deste tipo de
cultura (rural) local: as mudanças de ordem econômica e demográfica, pois
estes dois fatores trabalharam contra o camponês. O primeiro foi a mudança
econômica no município de produção agrícola no qual o fazendeiro achou mais
lucrativo criar gado, outro fator foi de ordem demográfica. A sociedade caipira
necessitava de um espaço ilimitado para se expandir. Uma vez que a terra foi
comercializada e seus limites fixados através da escritura, a expansão foi
impossível (SHIRLEY, 1974 :151). O caipira que permaneceu em sua situação
cultural, o fez por algum dos quatro motivos que apresenta: (1) possuía um
pedaço de terra que reluta em abandonar; (2) Era muito velho ou muito tímido
para começar a vida na cidade; (3) Era capaz de ganhar a vida como meeiro;
(4) trabalhava numa das fazendas sob tradição paternalista.
Ao final deste capítulo, apresento algumas afirmações ou “profecias” de
Shirley, que irei examinar ao traçar certas considerações a este texto. Vamos a
elas:
a) a trajetória das forças culturais em Cunha tendeu a favorecer a
emergência de uma camada rural de burgueses residentes e
comercialmente astutas.
b) a contínua dissolução das grandes propriedades tenderá a
fragmentar ainda mais os grupos de vizinhança caipiras.
c) as forças econômicas tendem a impedir os fazendeiros de Cunha ao
estilo misto de fazenda “estilo mineiro” onde estão associados a
criação de gado e de suínos, a produção leiteira e a agricultura.
[100]
d) as camadas da sociedade caipira tradicional estão desaparecendo;
tanto o proprietário quanto o camponês estão sendo substituídos por
uma classe média rural.
e) o resultado final da divisão das grandes propriedades será,
posteriormente, a decomposição da sociedade caipira.
Quando penso a realidade de formação de imaginários para a população
do município de Cunha, nos dias de hoje, a partir do que foi levantado,
sempre procuro perceber transformações que acontecem em diálogo com as
realidades culturais oriundas de outros meios; e as da tradição ratificadas em
um “modus vivendi” que busca se preservar em seu núcleo, ou seja, seus
valores fundamentais defendidos por mecanismos controlados por pessoas
mais envolvidas com essa realidade. Neste sentido, gostaria de afirmar com
Linhares, o fato de que as transformações socioeconômicas vivenciadas pelo
caipira, devido à expansão da economia de mercado para o campo, não
implicam no despojamento de sua identidade cultural, pois toda mudança é
acompanhada por alguma continuidade
,
às vezes com outra feição, porém com
significado muito próximo ao de antes, pois ocorre somente a partir de
parâmetros culturais já existentes. A cultura o é apenas determinada pelos
processos sócio-históricos, mas é também fator determinante desses
processos. Sendo assim, é possível entender que, a despeito da expansão
capitalista para o meio rural, a cultura caipira é produzida e reproduzida ao
mesmo tempo. Daí é possível dizer que o caipira de hoje não é mais como fora,
por exemplo, cinco cadas, porém continua sendo caipira (LINHARES,
2005:03). Pessoalmente não entendo a relação rural/urbano como algo
dicotômico para a realidade estudada. Em Cunha, essa mescla de realidades
[101]
culturais articuladas entre a relação citada é integrada pela força da presença
dos costumes rurais, tendo em vista que grande parte das influencias oriundas
dos meios de comunicação é filtrada pelos costumes da cultura local.
2.5 As mudanças econômicas: a presença do processo de modernização da
economia e da sociedade.
As transformações ocorridas em Cunha não pertencem à esfera de um
processo de industrialização, porém não se pode negar uma gama de
transformações ocorridas no município, transformando comportamentos e
alterando parte do processo político e social. Cunha é um município com
148.278 ha. Destes, 148.036 ha formam a área rural do município e 242 ha a
área urbana. Sua população total (segundo o censo de 2000) é de 23.090
habitantes, dividida entre 11.134 habitantes na zona urbana e 11.956
habitantes vivendo na zona rural. Muitos autores da região, apegados a essa
divisão populacional, afirmam que Cunha é um dos municípios brasileiros com
uma ativa vida cultural rural (fonte de preservação dos elementos culturais
rurais importantes ainda vivos e tradições que fazem valer o universo rústico do
homem do campo). Porém, se levarmos em conta a taxa de urbanização entre
os anos de 1991 e 2000, perceberemos que no período a população de Cunha
teve uma taxa média de crescimento anual de -18%, passando de 23.462
habitantes em 1991 para os atuais 23.090 habitantes do censo de 2000, com a
agravante de que a taxa de urbanização cresceu 26,12%, passando de 38,23%
em 1991 para 48,22% em 2000. Em 2010 não sabemos ao certo se esse
quadro vai sofrer apenas uma pequena alteração ou outra vigorosa taxa de
urbanização.
[102]
Tabela 01
População por Situação de Domicílio, 1991 e 2000
1991
2000
População total
23.462
23.090
Urbana
8.970
11.134
Rural
14.492
11.956
Taxa de Urbanização
38,23%
48,22%
Fonte IBGE
No período entre 1991 e 2000, a taxa de mortalidade infantil no
Município diminuiu 55,65%, e a esperança de vida ao nascer cresceu 5,55% ao
ano, passando dos 66,14 anos em 1991 para 71,69 anos em 2000.
Tabela 02
Indicadores de Longevidade, Mortalidade e Fecundidade, 1991 e 2000
Mortalidade até 1 ano de idade (por 1000 nascidos vivos)
33,8
15,0
Esperança de vida ao nascer (anos)
66,1
71,7
Taxa de Fecundidade Total (filhos por mulher)
3,0
2,4
Fonte IBGE
A renda per capita média do município cresceu 13,18%, passando de R$
134,23 em 1991 para R$ 151,92 em 2000. A pobreza (medida pela proporção
de pessoas com renda domiciliar per capita inferior a R$ 75,50, equivalente à
metade do salário mínimo vigente em agosto de 2000) diminuiu 18,74%,
passando de 57,4% em 1991 para 46,7% em 2000. A desigualdade diminuiu: o
Índice de Gini passou de 0,58 em 1991 para 0,55 em 2000.
[103]
Tabela 03
Indicadores de Renda, Pobreza e Desigualdade, 1991 e 2000
Renda per capita Média (R$ de 2000)
134,2
151,9
Proporção de Pobres (%)
57,4
46,7
Índice de Gini
0,58
0,55
Fonte IBGE
Tabela 04
Porcentagem da Renda Apropriada por Estratos da População, 1991 e 2000
20% mais pobres
3,4
2,9
40% mais pobres
9,9
10,2
60% mais pobres
20,0
22,0
80% mais pobres
36,5
41,3
20% mais ricos
63,5
58,7
Fonte IBGE
No período 1991-2000, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
(IDH-M) de Cunha cresceu 11,40%, passando de 0,658 em 1991 para 0,733
em 2000. A dimensão que mais contribuiu para este crescimento foi a
Educação, com 50,2%, seguida pela Longevidade, com 40,9%, e pela Renda,
com 8,9%. Neste período, o hiato de desenvolvimento humano (a distância
entre o IDH do município e o limite máximo do IDH, ou seja, 1 - IDH) foi
reduzido em 21,9%.
Segundo o IBGE, se mantivesse esta taxa de crescimento do IDH-M, o
município levaria 18,2 anos para alcançar o Caetano do Sul (SP), o
[104]
município com o melhor IDH-M do Brasil (0,919).
Em 2000, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de Cunha era
0,733. Segundo a classificação do PNUD, o município está entre as regiões
consideradas de médio desenvolvimento humano (IDH entre 0,5 e0,8).
16
Em relação aos outros municípios do Brasil, Cunha apresenta uma
situação intermediária: ocupa a 2342ª posição, sendo que 2341 municípios
(42,5%) estão em situação melhor e 3165 municípios (57,5%) estão em
situação pior ou igual.
Em relação aos outros municípios do Estado, Cunha apresenta uma
situação ruim: ocupa a 599ª posição, sendo que 598 municípios (92,7%) estão
em situação melhor e 46 municípios (7,3%) estão em situação pior ou igual.
Tabela 05
16
Indicador que focaliza o município como unidade de análise, a partir das dimensões de
longevidade, educação e renda, que participam com pesos iguais na sua determinação,
segundo a fórmula:
IDHM=
Índice de longevidade + Índice de educação + Índice de renda
-------------------------------------------------
3
Em relação à Longevidade, o índice utiliza a esperança de vida ao nascer (número médio de
anos que as pessoas viveriam a partir do nascimento). No aspecto Educação, considera o
número médio dos anos de estudo (razão entre o número médio de anos de estudo da
população de 25 anos e mais, sobre o total das pessoas de 25 anos e mais) e a taxa de
analfabetismo (percentual das pessoas com 15 anos e mais, incapazes de ler ou escrever um
bilhete simples). Em relação à Renda, considera a renda familiar per capita (razão entre a
soma da renda pessoal de todos os familiares e o número total de indivíduos na unidade
familiar).
Todos os indicadores são obtidos a partir do Censo Demográfico do IBGE.
O IDHM se situa entre 0 (zero) e 1(um), os valores mais altos indicando níveis superiores de
desenvolvimento humano. Para referência, segundo classificação do PNUD, os valores
distribuem-se em 3 categorias:
a. Baixo desenvolvimento humano, quando o IDHM for menor que 0,500;
b. Médio desenvolvimento humano, para valores entre 0,500 e 0,800;
c. Alto desenvolvimento humano, quando o índice for superior a 0,800.
[105]
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
0,658
0,733
Educação
0,697
0,810
Longevidade
0,686
0,788
Renda
0,591
0,611
Fonte IBGE
No que se refere ao acesso aos bens de consumo percebemos um
grande crescimento dos itens Geladeira e Televisão. No que se refere ao
segundo, item percebemos uma interação maior, nesta década, com as
realidades sócio-culturais de áreas distintas das do município. Em artigo
publicado há pouco anos em um jornal de Cunha, Robert Shirley observou que
estava em construção um processo de interação com as diferentes culturas do
município, pelos meios de comunicação, em especial pela televisão, que
delineia em Cunha o que se pode chamar de uma “roça parabólica”, dada a
presença de antenas parabólicas existentes no município e, em grande escala,
na zona rural.
Tabela 06
Acesso a Bens de Consumo, 1991 e 2000
1991
2000
Geladeira
35,8 73,9
Televisão
43,2 75,7
Telefone
10,1 11,0
Computador
ND 3,3
Fonte IBGE
[106]
Com relação à questão do trabalho no Município de Cunha, houve um
pequeno progresso no total de empregos ocupados, porém, ainda assim, uma
situação problemática para o município, tendo em vista
a taxa média de
crescimento anual .
Apesar de uma gradual diminuição da população urbana (constatada na
tabela no. 01) a geração de empregos se desloca para o setor de empregos
ocupados na área de comércio e de serviços, e isto é explicado pelo
desenvolvimento da área de turismo no município. O plano diretor de 2006 tem
todo o seu artigo 10º orientado para esta perspectiva.
17
Tabela 07
Trabalho
1991
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
Total de empregos ocupados
478
730
739
737
748
789
751
985
Empregos ocupados na
indústria
68
44
57
98
88
120
77
77
Empregos ocupados no
comércio
65
62
63
74
96
109
110
123
Empregos ocupados nos
serviços
309
463
455
395
398
382
379
607
Demais empregos ocupados
36
161
164
170
166
178
185
178
Pessoal Ocupado na
Administração Direta
245
360
250
17
Art. 10. O Poder Executivo dará prioridade ao desenvolvimento de atividades de
apoio ao turismo, de acordo com as seguintes diretrizes:
I Fomentar a construção de meios de hospedagem dentro dos padrões oficiais da
EMBRATUR, construção de centros de convenção e atividades culturais com
incentivos fiscais;
II Investir na manutenção do patrimônio histórico, cultural, paisagístico e
arquitetônico do Município, a ser classificado, incentivando os proprietários à
preservação;
III Incentivar a instalação de comércios de artesanato, doces, queijos e iguarias
locais em espaço próprio, reservado as atividades turísticas;
IV Incentivar o desenvolvimento da culinária local, melhorando a qualidade dos
serviços dos restaurantes;
V Dotar as áreas de maior fluxo, de equipamentos de apoio ao turista e a população
local, consistindo na implantação de bebedouros, banheiros e bancos com
cobertura; (Plano Diretor da Estância Climática da Prefeitura Municipal de
Cunha, p. 08).
[107]
Pessoal Ocupado no
Legislativo
-
5
5
Número de Funcionários da
Prefeitura em relação à
população total do município
(Em %)
1,63
1,17
Fonte IBGE
No município de Cunha, entre 1991 e 2000, houve um pequeno
crescimento da renda das pessoas responsáveis pelos domicílios particulares
na faixa de mais de 3 a 10 sal.min.; em contrapartida, uma perda na faixa que
vai de 2 a 3 sal. min. E uma piora sensível no campo dos responsáveis
particulares permanentes sem rendimentos (de 2,93% para 6,85%).
Tabela 08
Rendimento
1991
2000
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes sem
Rendimento (Em %)
2,93
6,85
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento até 1/2 sal.min. (Em %)
14,25
2,65
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento entre mais de 1/2 a 01 sal.min. (Em %)
32,23
36,22
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento entre mais de 01 a 02 sal.min. (Em %)
29,65
27,18
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento entre mais de 02 a 03 sal.min. (Em %)
8,89
7,80
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento entre mais de 03 a 05 sal.min. (Em %)
5,34
8,93
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento entre mais de 05 a 10 sal.min. (Em %)
4,53
6,91
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes com
Rendimento maior que 10 sal.min. (Em %)
1,95
3,46
Pessoas Responsáveis pelos Domicílios Particulares Permanentes sem
Declaração de Rendimento (Em %)
0,23
-
Rendimento Médio Mensal das Pessoas Responsáveis pelos Domicílios
Particulares Permanentes (Em Reais de Julho de 2000)
405,99
Renda Per Capita (Em Reais de 2000)
151,92
Fonte SEADE
Um forte indício do avanço de elementos culturais exógenos é
observado pela invasão da mídia de massa. Os meios de comunicação
ampliaram seu espaço e, consigo, trouxeram uma série de traços culturais
diversos dos da cultura local. A energia elétrica chega hoje a 87.59 % dos
domicílios. Quando falamos sobre a presença da televisão, percebemos que
[108]
sua presença quase duplica em uma década no município. A presença de
carros nos domicílios do município teve um aumento considerável na última
década apurada – quase que dobrando em relação à década anterior.
Tabela 09
ITENS APURADOS 1991
2000
Percentual de pessoas que vivem em domicílios com energia elétrica e tv. 43,20
75,68
Percentual de pessoas que vivem em domicílios com energia elétrica. 64,93
87,59
Percentual de pessoas que vivem em domicílios com telefone. 10,12
11,01
Percentual de pessoas que vivem em domicílios com carro. 17,89
33,74
Percentual de pessoas que vivem em domicílios com densidade acima de 2
pessoas por dormitório.
22,22
16,80
Fonte IBGE
A qualidade de vida transformada implica em avanços no campo da
saúde e da educação. No campo da saúde este fato deve-se à ampliação no
processo de atendimento gerado e aqui não cabe a discussão dessa
qualidade, se podia ser melhor ou não pelo SUS a partir da Santa Casa de
Cunha. A ampliação de leitos e a contratação de novos profissionais
modernizaram o hospital e garantiram uma melhora no processo de
atendimento à população do município.
[109]
Tabela 10
1991 2000
Esperança de vida ao nascer 66,14 71,69
Mortalidade até cinco anos de idade 38,23 17,16
Probabilidade de sobrevivência até 40 anos 89,01 93,75
Probabilidade de sobrevivência até 60 anos 73,11 82,80
Fonte IBGE
No campo da educação fato importante foi a ampliação da rede publica
de ensino. A cidade de Cunha hoje conta com duas escolas públicas estaduais
E E Paulo Virgílio, E E Prof.ª Maria da Conceição Querido e uma municipal
– EMEF Dr. Casemiro da Rocha, além das escolas rurais encontradas no
interior do município e das escolas no distrito de Campos Novos de Cunha.
Tabela 11
1991 2000
Percentual de crianças de 10 a 14 anos analfabetas 3,35 1,27
Percentual de crianças de 7 a 14 anos que estão freqüentando o curso
fundamental
71,01
87,75
Percentual de adolescentes de 15 a 17 anos com acesso ao ensino médio 7,98 37,26
Percentual de jovens de 18 a 22 anos com acesso ao curso superior 1,88 4,95
Percentual de pessoas de 25 anos e mais com acesso ao curso superior 0,72 1,70
Fonte IBGE
[110]
Essas transformações encontradas não teriam sido possíveis sem uma
política que vislumbrasse transformações no processo econômico do
município. Contudo, o município, não contou com uma economia que levasse
adiante um processo de industrialização para o mesmo, devido à sua
localização fora da linha que Liga São Paulo ao Rio de Janeiro, e também por
questões naturais originadas pelo relevo, por sua flora, fauna e hidrografia,
conforme relata Prudente:
“Cunha apresenta uma rede hidrográfica de grande importância para a
Bacia do Rio Paraíba do Sul, que abrange três importantes estados da
Federação: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em suas terras
encontram-se as nascentes dos rios Paraitinga e Paraibuna que, no município
de mesmo nome, (...) unem-se constituindo o Rio Paraíba do Sul (...)
apresenta uma vasta rede capilar de nascentes distribuídas de modo quase
uniforme pelas suas extensões e servindo de base para a constituição de um
patrimônio ambiental significativo (...). O território cunhense, devido à
importância dos recursos naturais, quer em relação aos recursos hídricos,
quer em relação à biodiversidade do ecossistema da Mata Atlântica, é objeto
de preocupação do poder público. Em seu espaço há a abrangência de
quatro unidades de conservação ambiental sendo duas da esfera federal e
duas da esfera estadual.” (PRUDENTE, 2005: 119-121).
Nas primeiras décadas do século XX, houve um grande esforço para
introduzir o turismo, inspirados nos moldes da Serra da Mantiqueira (Campos
do Jordão). Em 1945 a prefeitura do município de Cunha entrou com o pedido
de transformação do mesmo em Estância Climática. O mesmo foi promulgado
no dia 28 de outubro de 1948. Coincidentemente, no mesmo período, a
pecuária entrou em expansão e se tornou importante para a economia local,
[111]
permitindo a subsistência dos pequenos produtores. A economia municipal
ganhou força com a pavimentação da rodovia Paulo Virginio, que liga a cidade
de Cunha à de Guaratinguetá, em 1966. A rodovia amplia o movimento entre o
litoral e o Vale do Paraíba. Cunha fica no meio desta rota. Porém, no campo do
turismo, somente na última cada do século XX foi que começaram a surgir
as primeiras iniciativas concretas de organização do turismo. Em 1993, foi
criada a primeira Temporada de Inverno (em 2007 Cunha organiza o 14º.
Festival de Inverno), posteriormente o Conselho de Desenvolvimento que, a
partir de 1997, deu origem à Cunhatur, uma associação de empresários do
turismo com a finalidade de consolidar o processo de implantação do mesmo e
organizar seu desenvolvimento.
No início do processo de organização do turismo, a estratégia de
desenvolvimento levava em conta a reabertura e pavimentação da Rodovia
Cunha/Parati - asfaltada até a divisa do estado e que tem como fundo temático
a questão histórica do antigo caminho do ouro. O fluxo de turistas começou a
crescer a partir da implementação desta estratégia do município.
Os governos municipais procuraram ampliar os pontos de atração
turística e aperfeiçoar a estrutura de atendimento aos visitantes. Muitos
acessos foram melhorados para incentivar a permanência do visitante e sua
circulação pela vasta região do município, suas belezas naturais e o contato
direto com a população rural.
Outro aspecto importante é a valorização do potencial artístico da
cidade, que leva em conta a arte da cerâmica, o artesanato e as manifestações
folclóricas e tradicionais. O trabalho desenvolvido se preocupou, em linhas
[112]
gerais, em assegurar a participação do habitante local. Criou-se um grande
leque de atrações, que inclui o turismo rural, cultural, religioso, ambiental, além
de se investir na idéia do turismo de inverno e o de verão. A estratégia é evitar
o acúmulo de pessoas no mesmo lugar e hora, para não saturar a crescente
capacidade de atendimento que a estrutura da cidade permite. Como afirma o
plano Diretor de 2006 em seu artigo 10 (citado na íntegra na nota 17).
As transformações ocorridas nas realidades social e econômica têm seu
grau de influência, porém não geram maiores conflitos sociais nos processos
de relação social no município; tendo em vista que a complexificação dessa
estrutura social gera no imaginário local uma releitura gradativa desse universo
cultural, devido à lentidão dessas transformações na sociedade e, neste
sentido, envolvem continuidade e mudança ou tradição e modernidade
(HOBSBAWN: 1997). Esses aspectos não são excludentes e sim relacionais e,
muitas vezes, complementares de um mesmo processo social.
Como diz Silveira, refletir sobre a modernidade e sua relação com a
religião é pensar o papel da tradição, as transformações em curso na esfera da
cultura e as suas repercussões na manifestação das diversas religiosidades”
(Silveira: 2006). O autor afirma que é preciso “desnaturalizar” conceitos como o
de modernidade, - eu diria também o de tradição e demonstrar a existência
de significados plurais nas “dobras” do (s) conceito (s) e da realidade. A
hibridação deve ser utilizada com mais tranqüilidade para se interpretar os
complexos universos populares.
Partindo desse pressuposto, talvez seja possível pensar na continuidade
da cultura e da identidade caipira com menos pessimismo, pois pelo menos em
Cunha e em toda a região do Alto Paraíba isto é possível. Gostaria de salientar
[113]
tal fato com uma conversa que tive com um conhecido da Zona Rural de Cunha
que, quando perguntado e tendo percebido certo espanto de minha parte
sobre a sua participação em determinado grupo da Renovação Carismática
Católica, o mesmo me afirmou que é era questão de fé e festa. –“Lá a conversa
com Deus é festiva, alegre. A gente canta, dança... isso é bom”. Foi que
comecei a entender que a nova pertença está muito mais vinculada à tradição
dos festejos do que à internalização (CAMARGO: 1973) proposta pela estética
cultural do movimento. Conceitos e doutrina não fazem parte,
necessariamente, do processo de adesão, e às vezes passam longe dos
fatores de pertencimento, mesmo que para os movimentos isso seja uma
necessidade real. “... a gente canta, dança... isso é bom”. Precisa ser
diferente? Isso é bom, isso é anterior, isso faz parte dos horizontes de
“miragem cultural”, isso foi - mesmo que de outra forma - vivido, isso é
seguro, certo, tradição, hibridação. Podemos afirmar com Bittencourt Filho que
isso faz parte de uma matriz religiosa presente em nossa realidade cultural,
sendo esta, “... um substrato religioso que ao modo de uma corrente
subterrânea inspira e referencia diferentes propostas religiosas (...) amesmo
antagônicas”. (BITTENCOURT FILHO, 2001: 212). Neste sentido, essa matriz
religiosa é reprocessada para adequar a tradição a uma “pertença moderna”.
[114]
CAPÍTULO TERCEIRO
A Questão Católica: Modernização, Hibridismo e Resistência Religiosa.
3.1 Uma leitura histórica da paróquia.
A História da Paróquia de Cunha praticamente se confunde com a
história da cidade. Porém, neste capítulo, estou interessado em interpretar a
construção de uma estrutura pastoral que foi tornando-se complexa a partir do
final da década de 1960, e se enraizando no interior através de um sistema de
construção de comunidades; que oscila de propostas entre as fundadas a partir
da conferencia de Medelin, das práticas católicas tradicionais devocionais e
festivas, até as recentes práticas católicas pentecostais marcadas pelos
elementos de participação emocionais.
Em entrevista realizada com o Pe. José Verreschi pároco no município
por 10 anos pude levantar alguns dados importantes, bem como pistas para
um trabalho de campo objetivo. O referido informante citou nomes de padres
que trabalharam na paróquia antes de sua chegada, alguns ainda estão vivos e
vários deles deram uma contribuição importante. Antes de ser entregue à
Diocese de Lorena, a paróquia era coordenada pastoralmente por padres
ligados à Congregação dos Missionários do Sagrado Coração.
NOME CATEGORIA
AFONSO BERTASI REL
ADRIANO SELEEN REL
TARCÍSIO LIMA REL
AGENOR POSSA REL
JOÃO JOSÉ REL
[115]
GERALDO BARBOSA REL
MAURO DIOC
EDILÉRCIO REL
JOSE VERRESCHI DIOC
FERNANDO A SAMPAIO DIOC
LEANDRO C PEREIRA DIOC
A linha de atuação dos padres, até a primeira metade da década de
1960, era tradicional
1
, procurava conservar ao máximo os padrões tradicionais
de comportamento, especialmente os relativos à família, organizar as escolas
para educar as elites econômicas, desencorajar movimentos reivindicatórios e
pregar a harmonia das classes sociais.
O esforço romanizador em retirar o catolicismo do domínio leigo ganhou
um significativo apoio durante a 1ª Reunião do Episcopado Brasileiro, realizada
em São Paulo, em 1890. Durante o encontro, os bispos discutiram essa
questão dos centros de religiosidade popular, e duas candentes questões
foram firmadas: a primeira consistia em retirar definitivamente das irmandades
leigas a administração financeira dos santuários; e a segunda confiá-la a
institutos religiosos europeus, a serem chamados especificamente para esse
fim. A justificativa era a de que os leigos dilapidavam o patrimônio constituído
pelas doações dos devotos e que, em contrapartida, se fosse administrado por
sacerdotes idôneos, poderia ser utilizado em outras pias finalidades como, por
exemplo, a formação do clero. (GAETA, 1997). Tudo isso se prestava aos
1
No catolicismo tradicional, o comportamento social e religioso fundamenta-se nos costumes e
é legitimado pela tradição. Observa-se pouca consciência quanto à natureza específica dos
valores religiosos que inspiram normas e papéis sociais, ausência de explicação racional, em
termos de meios e fins, para a conduta religiosa e o comportamento social legitimado pela
religião, não havendo explicita distinção entre os valores e normas da sociedade global e os da
coletividade religiosa. (CAMARGO, 1973:49)
[116]
serviços oriundos das necessidades de tal tipo de postura eclesiológica
2
.
Porém, ao final da década de 1960, com a chegada, dentre outros, dos padres
João Jo e Geraldo Barbosa, ambos pertencente à Congregação dos
Missionários do Sagrado Coração, o trabalho começou a ter uma nova
vertente, pois foi o período em que aconteceram as primeiras tentativas de
formar Comunidades Eclesiais de Base, ou seja, comunidades que passariam
de uma tipologia tradicional (seja rural ou urbana) para uma prática
internalizada fundada na perspectiva da Teologia da Libertação. Confesso que
fiquei um pouco assustado com a iniciativa para o período, porém me lembrei
que em 1955 fora criado o Conselho Episcopal Latino Americano (Celam),
importante organismo para a história das CEB’s na América Latina. A CNBB,
para os anos de 1966 a 1970, elaborou o Plano de Pastoral de Conjunto em
que, pela primeira vez, se falava de Comunidades Eclesiais de Base. Surgia
uma idéia de “Igreja de Deus”, comunhão, participação, Igreja inserida no
mundo. Em 1968, na cidade de Medellín, Colômbia, aconteceu uma
importantíssima conferência dos Bispos da América Latina, onde se proclamou
2
A partir da segunda metade do século XIX, um novo modelo eclesial católico começou a ser
implantado no Brasil: o ultramontanismo. Movimento conservador, nasceu sob o impacto das
revoluções liberais européias. Esse catolicismo estava marcado pelo centralismo institucional
em Roma, por um fechamento sobre si mesmo e por uma recusa de contato com o mundo
moderno. Os pontífices romanos, desde Gregório XVI até Pio XII, não mediram esforços para a
sua consolidação. Construiu-se, então, um arcabouço religioso destinado a se espalhar pela
sociedade, e nos seus diferentes microcosmos. Os papas ultramontanos insistiram junto às
hierarquias eclesiais brasileiras para que encetassem uma campanha de transformação radical
nas formas de piedade e devoção praticadas por grande parte da população, no sentido de a
presença sacerdotal ir se constituindo gradualmente na figura central de toda a neo-
sacralidade. O padre tornava-se o responsável por toda a dinâmica da espiritualidade e da
política da Igreja, e sob a sua liderança é que se desenvolviam as antigas atividades
reservadas aos leigos. Com esse processo de romanização, o poder decisório das Mesas das
confrarias foi migrando para as mãos do vigário, ou do assistente espiritual. A partir daí, toda a
programação festiva e/ou administrativa caberia à autoridade clerical competente.
[117]
a opção preferencial pelos pobres. O interessante neste processo é que nesta
prática católica, o cristão aprende a assumir a responsabilidade da construção
da sua Igreja, da sua comunidade, da sociedade. A cidadania coletiva das
CEBs constrói-se no cotidiano através do processo de identidade político-
religiosa que as lutas cotidianas geram. Mas a cidadania é plena numa
sociedade democrática.
A importância desta postura se dá pelo fato de que em nosso país a
negação da cidadania é histórica, em todos os planos acharam-se pretextos
para excluir, por lei, aos brasileiros da participação política: no plano cultural,
por serem analfabetos; no do gênero, por serem mulheres; no plano
econômico, por serem pobres e não-proprietários; no social, por serem
escravos. Todas as exclusões levam à exclusão política e à negação da
cidadania. A maior exclusão não necessita de uma lei escrita: trata-se da
exclusão do mercado de trabalho e, portanto, do mercado consumidor de bens
e serviços. Ninguém precisa dizer que é proibido entrar no ônibus, no
supermercado, pleitear uma casa ou um barraco, mandar as crianças para a
escola, pois simplesmente não se tem o dinheiro para pagar a passagem, a
conta, o aluguel, o uniforme, os cadernos e os livros.
Em conversa com o Pe. João José de Almeida, um dos primeiros
sacerdotes da Congregação dos missionários do Sagrado Coração, que
chegaram à cidade, começamos a perceber como se construiu o processo de
transformação na atuação pastoral no Município de Cunha.
[118]
Sobre a chegada afirma o Pe. João José:
Eu fiquei 10 anos em Cunha. O primeiro a chegar à Cunha foi o Pe
Aloísio Pinto. Ele ficou por volta de uns três anos aproximadamente.
Depois, quem foi pra foi o Afonso Bertasi. Enquanto o Afonso estava lá, eu
trabalhava com vocações na Congregação, em 1969 recebi ordens para
ajudá-lo e depois acabei ficando em Cunha. A partir de 1970 passei a residir
como coadjutor e assim fiquei nesse primeiro ano. No segundo ano, o
Pe. Afonso entrou em crise e forçou a barra para eu assumir a paróquia. Foi a
partir de 1971 que eu assumi a paróquia”.
Quando perguntei sobre a formação de uma nova estrutura
paroquial, sabiamente, sabendo do que se tratava a minha pesquisa, Pe. João
José, afirmou que para entender o que se passou naquela época deveríamos
adentrar o contexto da situação que os colocara diante daquela realidade.
“Aqui a gente tem de entender uma coisa... éh... na teologia em São
Paulo
3
, nesta época, havia uma forte tendência de se falar em criação
de Comunidades de Base. E quando se falava de CEB´s se levava para
certas reivindicações... e não se acentuavam os aspectos tradicionais
do povo. Inclusive a gente era orientada mais no sentido de formar
comunidade e deixar o resto pra lá. (...) Naquele tempo se falava
muito em Comunidades de Base. Influenciei-me por isso, mas achava
que o papel das comunidades de base, no meu entender, era organizar
o povo... a base era a fé”.
A postura inicial dos Missionários do Sagrado Coração oscilava entre
uma posição favorável à Teologia da Libertação e a convivência com uma
3
Segundo depoimento colhido com os padres MSC residentes, hoje na cidade de Itajubá, a
teologia na época era ministrada no próprio escolasticado, em São Paulo (um grande prédio no
Bairro de Vila Formosa hoje colégio da referida Congregação religiosa) em módulos.
Posteriormente o ensino da telogia foi transferido para os Institutos Teológicos surgidos, no
caso da Provincia Brasileira dos Missionários do Sagrado Coração, em São Paulo.
[119]
prática romanizadora e, de certa forma, modernizadora ainda vivida pela
proximidade do Concílio Vaticano II.
“Quando cheguei em Cunha a paróquia era centralizada na cidade,
super-centralizada. O pessoal vivia mais de festas... tinha aquela festa do
Divino, festa da Imaculada Conceição... eh algumas comunidades rurais
tinham até suas capelas próprias mas eram usadas mais nas festas anuais.
Quando cheguei lá o Pe. Afonso já estava em crise com este tipo de atuação.
Ele já tinha mais a intenção de evangelizar aquele pessoal do interior. Cunha,
naquele tempo tinha uma população de trinta mil pessoas, quatro ou cinco mil
morava na sede, o resto morava no interior... apoiei o Afonso. Ele não quis
mais que se celebrasse a Festa do Divino por causa do que se fazia na festa
né, um negócio tão esquisito pra gente que estava chegando por que a
gente não vivia a história. Eu hoje faria diferente... era o contexto”.
uma postura natural de estranhamento da realidade na qual o
sacerdote é inserido. A postura adotada o me cabe julgá-la, apenas
descrevê-la – foi a de romper com os elementos tradicionais constitutivos
daquela religiosidade que convivia, até aquele momento, com uma instituição,
por um lado desejosa em desqualificar os leigos centralizando na matriz e na
figura do sacerdote o poder de decisão, por outro, confinada em seus limites
pastorais, o que dificultava construir uma intervenção fora das fronteiras
urbanas e, de certa forma, a partir de suas dificuldades, negligente, em sua
prática, com suas posturas teóricas de reformar as devoções. O catolicismo
popular, fundado em uma matriz religiosa brasileira
4
, convivia solto e se
4
Bittencourt Filho afirma que as abordagens teóricas não podem desprezar as idiossincrasias
culturais e os valores que subsistem nos mais diferentes contextos e momentos históricos. É
preciso considerar que valores retidos nas camadas profundas da existência social continuam
a se expressar e a se reproduzir. Neste sentido, o autor propõe a tese de uma matriz religiosa
brasileira seguida de uma religiosidade matricial. Essa Matriz Religiosa não foi rejeitada. Foi
reprocessada como uma Religiosidade Matricial e isto faz com que certas características do
[120]
tornava compatível com aquele catolicismo tradicional de raízes comuns. O
caráter festivo desta religiosidade assustava os sacerdotes religiosos: “O
pessoal vivia mais de festas... tinha aquela festa do Divino, festa da Imaculada
Conceição... eh algumas comunidades rurais tinham até suas capelas próprias
mas eram usadas mais nas festas anuais”(Pe. João José). Neste sentido, Pe.
João José expressa sua lealdade para com seu superior no momento, o Padre
Afonso afirmando: “(...)
Pe. Afonso já estava em crise com este tipo de atuação... Ele
não quis mais que se celebrasse a Festa do Divino. (...).
Diante de uma formação
muito mais racionalizada os sacerdotes fizeram a opção natural em seu
contexto, diz o padre João:
“(...)o Pe. Afonso estava em crise com este tipo de atuação. Ele
tinha mais a intenção de evangelizar aquele pessoal do interior.
Cunha, naquele tempo tinha uma população de trinta mil pessoas,
quatro ou cinco mil morava na sede, o resto morava no interior...
apoiei o Afonso”.
Os sacerdotes religiosos fizeram uma opção no sentido de superar um
esquema tradicionalista centralizador do processo pastoral no centro urbano.
Era necessário ir ao encontro de uma população rural que era maioria no
município. Segundo Willems, por volta da década de 40, a população urbana
girava em torno de menos de 10% da população total do município (WILLENS,
catolicismo popular reapareçam em diferentes momentos sob nova roupagem, mas revelando
uma mesma estrutura religiosa básica. Suas propostas religiosas foram reprocessadas de
acordo com a polissemia dos símbolos da Religiosidade Matricial brasileira (BITTENCOURT
FILHO,2001).
[121]
1947:18). O processo de urbanização do município se efetiva, de fato, a partir
do final da década de 1970.
5
O sacerdote religioso afirma com correto orgulho: Eu preferi optar por
formação de comunidades, dei apoio ao Pe. Afonso e continuei com o meu
trabalho. Meu trabalho foi o de formar comunidades na Paróquia de Cunha.
Descentralizei a paróquia”. Nesse mesmo contexto talvez o próprio autor
tivesse feito a mesma opção. Foi uma opção clara de confronto com o
tradicionalismo centralizador e conservador que gerava uma pastoral, de
acordo com a visão do sacerdote, que não evangelizava de fato. Outro
confronto, ainda que de forma leve, aconteceu com os militares da região. Essa
intervenção é descrita pelo sacerdote:
“Os militares queriam obrigar a gente a manter aquelas tradições
do mesmo jeito. Não por amor ao povo, mas com medo das
Comunidades de Base. Achavam que a gente estava formando células
comunistas. Chegaram inclusive a fazer acampamentos em torno de
Cunha pra vigiar a gente. Nestas alturas já havíamos formado muitas
comunidades no interior de Cunha”.
Investi nas capelas...”, afirma o sacerdote. E continua: se você for olhar em
Cunha a maioria daquelas capelas foram formadas no tempo em que eu estava
lá”. Porém afirma não ter sido fácil o começo, pois a população local não
entendia muito bem o que se processava naquele momento:
5
Se levarmos em conta a taxa de urbanização entre os anos de 1991 e 2000, perceberemos
que no período a população de Cunha teve uma taxa média de crescimento anual de -18%,
passando de 23.462 habitantes em 1991 para os atuais 23.090 habitantes do censo de 2000
com a agravante de que a taxa de urbanização cresceu 26,12%, passando de 38,23% em
19991 para 48,22% em 2000. Esses dados dão crédito à afirmação do Pe. João Jose de que
Cunha, naquele tempo tinha uma população de trinta mil pessoas, quatro ou cinco mil morava
na sede, o resto morava no interior...”.
[122]
“Os primeiros contatos com aquelas comunidades eram difíceis, pois o
povo tinha medo dos padres. Às vezes eu estava em uma rodinha
assim para conversar e o pessoal ia fugindo. Sobravam aqueles que
não tinham mais jeito e agüentava até o fim... Risos. Foi duro no
começo. Custou para eles entenderem o que a gente queria”.
De outra parte podemos interpretar também que, ao invés de não
entender, grande parte da população não aceitava de bom grado certas
transformações que estavam ocorrendo de forma abrupta em sua vivência
religiosa. Muitas vezes, ainda hoje, mesmo agentes de pastoral, mais próximos
dos sacerdotes, não aceitam certas normas, apenas obedecem.
A estratégia adotada era a de primeiro formar pequenas comunidades.
“Muitas vezes celebrei a eucaristia debaixo de árvores”. Neste sentido a
intensificação das visitas e celebrações foram fundamentais para estabelecer
relações e criar uma nova oportunidade de construção da pastoral:
“Quando cheguei, além da matriz, comunidades que tinham... -
onde havia missa regularmente, vamos falar assim... Não eram
bem comunidades ainda – eram Paraitinga e Campos de Cunha.
comecei a visitar e fazer a programação de visitas para aquelas
comunidades”.
O grupo de religiosos sabia - isso fica claro em sua estratégia - que não
bastava apenas criar grupos e formar capelas para as celebrações. Era
necessário ir além do sacramental para evangelizar, para colocar marcas de
uma doutrina racionalizada, para internalizar uma realidade cultural. Neste
sentido, investiu-se na catequese. Buscou-se o contato com uma das poucas
realidades que dialogavam com a perspectiva de uma ordem racionalizada: a
escola. Em seu depoimento o padre firma que começou a se preocupar com a
[123]
catequese e o fez por intermédio de um processo de formação teológica de
algumas professoras das escolas rurais:
“Comecei a me preocupar muito com a catequese, pois sem a
catequese... sem catequese não teria influencia nenhuma no meio
daquele pessoal. Havia uma Irmã (freira) que trabalhava comigo no
começo, na formação das catequistas. Então ela trabalhava formando
mais as professoras primárias. Naquele tempo havia umas cem escolas
rurais e a gente procurou manter contato com essas professoras (...).
Muitas vezes trabalhamos por módulos (a Trindade, a Graça...), então
para nós não havia problemas de níveis de aprendizagem, pois todas
estavam começando. Fizemos o curso em três etapas de modo que
quem participasse no primeiro ano da primeira etapa, no segundo ano
participava da segunda etapa, mas quem estivesse começando
participava também da segunda etapa. E assim... quando chegava no
terceiro ano tinha percorrido toda aquela formação catequética” (Pe. J
José).
É o início de um processo de formação de agentes orgânicos que se
costuma chamar de “agentes de pastoral”, ainda que na figura tímida da
professora que dava catequese.
Perguntei então se, na verdade, a sistematização da catequese havia se
iniciado com os religiosos da Congregação dos Missionários do Sagrado
Coração. A resposta positiva foi ligeira e mostrou um lado de oposição ao que
se fazia anteriormente, quando o Padre João descreveu parte da importância
histórica de leigo agente de pastoral na formação de estruturas de
comunidades religiosas pelo interior do município procurando evangelizar as
populações rurais.
[124]
“Foi, começou conosco. Feito isto a gente ia cuidar da primeira a
eucaristia e trabalhar com os pais até formar a criança. Assim que
funcionou por um bom tempo. E ao trabalhar estes grupos – todo esse
trabalho nas escolas -, começamos a formar comunidades. Me lembro,
de passagem..., sistematizei a visita em campos Novos de Cunha.
Todo mês, isso era sagrado... Comecei a visitar Bocaina... Cachoeira
dos Rodrigues... Catioca. Devagarzinho essas comunidades nos
ajudaram a formar outras comunidades... nós tínhamos catequistas
formados, pessoal com certo conhecimento de liturgia... as
comunidades cresceram um pouco mais.. Devagar formamos leigos
que nos ajudavam a ampliar este tipo de trabalho”.
O investimento no novo papel do leigo se amplia mesmo que fosse de
uma realidade totalmente diferente daquela da população de Cunha. Afinal, os
próprios sacerdotes pouco conheciam pelo menos no início - esta mesma
realidade cultural. Não faria muita diferença conhecer a cultura daquele povo.
O foco estava centrado na pregação da doutrina, em um processo de
racionalização de parte do entendimento daquela religiosidade.
Mais tarde vieram dois reforços para ajudar essas comunidades, um era
a Emília, de São Paulo... outro era o Santana... (esqueceu o nome
completo) trabalhou no Santuário de Vila Formosa. Ele, a esposa e as
filhas dele ajudavam a formar catequistas. o pessoal vinha para a
cidade fazer cursos. Ele ajudou muito. E associou a ele um grupo de
leigos na cidade. Então o começou a evoluir a partir do momento em
que tivemos leigos envolvidos neste trabalho. sim... Mais tarde veio
um..., Nicola Marra, por volta de 74 ou 75. Ele era um empresário em
SP, Santos, perguntou se podia vir trabalhar em Cunha... Com ele se
ampliou este trabalho de comunidade”.
[125]
O desenvolvimento das atividades corria de acordo com o projeto dos
religiosos, pois
“... chegou o tempo em que as próprias comunidades assumiram este
papel. E eles diziam: Olha nós começamos a formar um trabalho
missionário no bairro para formar uma nova comunidade, o senhor ta de
acordo? Assim foram se multiplicando as comunidades. (...) Daquilo
surgiram certas reivindicações, espontâneas, de comunidades sem a
gente falar”.
A princípio, diferentemente do processo de organização das CEB’s, a
politização não aconteceu de forma constante e sistemática. No campo das
reivindicações casos esporádicos foram narrados pelos religiosos. O caso mais
complexo narrado na entrevista foi o da estrada de Campos de Cunha. Mesmo
nesse caso, o padre João afirma não ter tomado a iniciativa, tampouco ser um
dos articuladores do processo de enfrentamento com o poder público. Bom, os
motivos podem ser variados, inclusive divergências políticas de correligionários
de grupos diferentes, pois em Cunha o enfrentamento político até hoje é
acirrado e as disputas acontecem na urna e, muitas vezes nas ruas e nas
estradas. Conta o religioso:
Eu me lembro de um caso de uma comunidade de Campos de
Cunha – se você se informar por lá você vai ficar sabendo disso. Aquela
estrada de Campos de Cunha era péssima, mas houve uma época em
que ficou ainda pior e o pessoal de eu não tive nada com isso, não
fui eu que falei sobre isso - se reuniu para resolver o caso da estrada.
Não era uma reivindicação por reivindicação, não tinha apenas
conotação política. Aquilo brotou da vida de comunitária que eles
tinham, então eles resolveram lutar para reformar a estrada. Foram
umas vezes ao prefeito, o prefeito não dava solução... aí falaram assim:
[126]
‘o senhor manda aquina que nós pagamos o combustível”; não
veio... então resolveram, um dia, eles mesmos, arrumar a estrada...- no
braço e formaram um mutirão de trabalho. Por coincidência eu
passei em um dos dias em que eles estavam trabalhando... cheguei
encontrei um Jeep da prefeitura com um funcionário ameaçando e
dizendo que eles estavam fazendo uma coisa contra a lei, então eu
entrei no meio: ‘Se alguém vai ser preso então eu também quero ser
preso com eles’. (...) Pra você ver que o povo foi se organizando
devagarzinho e mostrando interesse pelas coisas deles sem aquele
sistema exacerbado que surgiu em determinada época com
determinados modelos de Comunidades de Base que ao invés de
favorecer o crescimento, acabaram até atrapalhando”.
O padre João José deixou a paróquia após cumprir seu objetivo em
Cunha, que era estruturar uma pastoral descentralizada do núcleo urbano:
“Eu tinha um programa onde tinha comunidades que eu
visitava todos os meses. Havia comunidades que eu visitava a
cada dois meses. De três em três, uma vez por semestre... mas
eram comunidades centralizadas em torno de uma comunidade
maior que servia de irradiação para aquele trabalho. Eu
conseguia visitar, durante o ano, todas as comunidades.
Quando eu saí de lá, deixei 65 comunidades funcionando”.
Analisando esta fala podemos traçar alguns parâmetros para a
religiosidade local. É indiscutível que o catolicismo popular foi contemplado
com a oficialização dos espaços urbanos como locais de devoção e vivência de
uma fé católica. A criação destes espaços deu certa autonomia diante do poder
religioso urbano. Muitas capelas, com o passar do tempo, se tornaram núcleos
de vivência daquela religiosidade festiva que os religiosos não entendiam a
[127]
principio e hoje muitos diocesanos não entendem e/ou aceitam. O próprio
padre João, ao final de sua entrevista afirmou que hoje talvez trabalhasse de
modo diferente com relação àquela religiosidade local.
“Então eu tinha que mostrar por que, durante muito tempo, nós
deixamos e até combatemos aquele tipo de festa que havia lá.
Hoje em dia eu faria completamente diferente... foi o contexto
em que se passou... quando eu saí de estava até
pensando em reorganizar as festas de um modo um pouquinho
mais... e na medida do possível procurei valorizar aquela festa
da padroeira”.
Acredito também, de outra parte, que o que ajudou o catolicismo popular
em sua atuação local, também criou empecilhos. Na medida em que o
processo de formação de comunidades ia se espalhando e concretizando o
projeto dos religiosos, construía-se a interferência de uma liderança de fora da
localidade agentes de pastoral ou a liderança racionalizada de um agente,
a princípio endógeno. Essas lideranças, muitas vezes, se tornavam os olhos e
os ouvidos do clero, fazendo com que a tão propagada autonomia se tornasse
relativa aos olhos da instituição eclesiástica. Era o braço da Igreja clerical e
hierarquizada
6
atuando no espaço rural e ocupando posições estratégicas na
batalha cultural travada nestas fronteiras religiosas.
6
As diversas irmandades leigas ligadas às devoções incumbiam-se de promover o culto por
meio de festas e de procissões populares. As imagens do milagroso Bom Jesus iam sendo
substituídas pela divulgação de outra, ligada ao culto do Sagrado Coração de Jesus,
promovida especialmente através de associações como o Apostolado da Oração. Como
expressão dessa nova devoção, começou a surgir a luta subjacente entre as devoções
romanizadas trazidas da Europa e as antigas formas típicas de um catolicismo luso-brasileiro.
Uma nova afirmação da Igreja como instituição hierárquica promotora do culto eucarístico, por
intermédio dessa devoção, confrontava-se com o caráter laico da Igreja concebida como
cristandade, e agora em crise.
[128]
Pode ser que, neste processo, as devoções que possuíam uma larga
expressão popular, como a de São Benedito e a do Divino Espírito Santo, a de
Nossa Senhora do Rosário, e a dos Reis Magos começaram a ser
desqualificadas. Discretamente as imagens foram retiradas dos altares centrais
e alojadas em capelinhas. Sem combater diretamente as devoções tradicionais,
os padres limitavam-se a não participar delas e a condenar os excessos
cometidos durante as suas festas, tais como a dança, a bebida e os jogos, bem
como criticar o mau uso do dinheiro recolhido pelos devotos. Tentativas de
eliminar os elementos picarescos populares dos eventos religiosos
esquadrinhavam-se durante as procissões, as novenas e as romarias.
Os antigos santos foram aposentados nas sacristias, enquanto eram
entronizadas nos lugares centrais imagens de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, de Santo Afonso de Liguori, de São Luís Gonzaga, de Nossa Senhora
Auxiliadora, de São João Bosco, de Santa Úrsula, da Sagrada Família, de São
José, de Madre Mazzarello, entre outras. Os cultos europeus que se instalaram
nos altares das paróquias e nas capelas de colégios católicos tornaram-se
espelhos paradigmáticos a serem imitados nas vivências cotidianas.
Sacralizadas pelas virtudes sacramentais, as devoções brancas européias,
então conectadas às hierarquias eclesiais, tornaram-se privilegiadas
estratégias de erradicação e de substituição das antigas práticas populares.
Era e, ainda é, o jogo discreto do poder em processo de convencimento das
camadas populares a uma adesão a um projeto romanizador e racionalizador
da vivência da fé. Uma moral católica correta acima da vida cotidiana na
qual o humano acontece no dia a dia das pessoas comuns.
[129]
A posição oficial da paróquia, na época, através das decisões do Pe.
João José, não facilitava com relação a entrada da Renovação Carismática na
área do município. O mesmo disse ter proibido a entrada do movimento na
paróquia, por conta de uma atitude alienadora desse movimento religioso e
afirma:
“Naquele tempo estava começando movimento da Renovação
Carismática Católica na região e tivemos uns “entreveiros” com o Pe.
Jonas (Jonas Abib). A RCC estava surgindo e quis entrar por
Campos de Cunha e Bocaina. Eu falei, nossa senhora, esse pessoal
vai acabar com tudo o que foi feito durante esse tempo, vai
desestruturar tudo isso... bati o e falei, ‘não entra, aqui não
entra’. A preocupação deles era formar grupos de oração sem um
trabalho de evangelização. conseguimos segurar durante um
tempo. Depois que saí de não sei o que aconteceu. Sei que com o
passar do tempo acabaram entrando um pouco também”.
Uma de suas grandes preocupações era com relação à postura
ideológica do movimento que não se preocupava, na época, com um processo
de evangelização que tivesse uma postura mais social. O medo de
desagregação do trabalho realizado era real: “... esse pessoal vai acabar com
tudo o que foi feito durante esse tempo...
Com a Chegada do Pe. Geraldo Barbosa, também religioso e
Missionário do Sagrado Coração, intensificam-se os cursos de formação de
lideranças. Assessorado por um agente que vinha constantemente de São
Paulo, a paróquia passa a oferecer cursos de aprofundamento na formação de
[130]
líderes da pastoral. Pe. Geraldo trabalhou este período sozinho e, por isso,
tinha uma rotina mais ‘árdua’.
“Quando cheguei o trabalho de comunidade estava
implementado. Mas quando saí da teologia, saí quente pra mexer
com o povão. Em 1976 estive apenas seis meses lá... voltei em 81
como pároco e fiquei três anos sozinho lá. Tinha um assistente de
SP Henrique que vinha dar cursos. Tinha muitos cursos para
as lideranças. Às vezes de dois, três dias... pousavam e tudo.
Formei mais umas dez comunidades. havia umas sessenta...
Celebrava três vezes por dia. A gente chegava a levar 4 horas de
Cunha a Campos Novos”.
Com sua chegada, a situação das festas populares e celebrações de
caráter popular voltaram a ganhar espaço em território oficial. Segundo o
informante, muita vezes, durante as festa e após às celebrações o padre abria
espaço para as apresentações das folias. Mas sua presença não foi muito
longe. Pe. Geraldo afirma que ao final de três anos teve problemas com a
Diocese e, apesar das desculpas utilizadas pela mesma para o seu
afastamento, o motivo central foi a distancia existente nas atividades pastorais
(ideologia, metodologia, etc...) entre a paróquia e a Diocese que, em sua
perspectiva, ainda tinha uma linha de atuação pastoral conservadora e não se
empenhava em um trabalho de fronteira na perspectiva, por exemplo, da
teologia da libertação. Segundo o mesmo padre, a diocese se tornava cada vez
mais conservadora aderindo às práticas da Renovação Carismática Católica.
Sua saída da paróquia aconteceu de forma conflituosa. Uma comissão de
lideranças da paróquia foi até Lorena procurando pelo Bispo D. João Hipólito e
o mesmo não recebeu a população.
[131]
Acredito que se possa entender a crise a partir das influências recebidas
pelo Pe. Geraldo. Morando em São Paulo e em contato constante com a
teologia recebeu toda a influência dos concílios de Medellin e Puebla. Sua fala
mais politizada que a dos religiosos anteriores lhe trouxe problemas com a elite
local - apesar de o mesmo negar que não atendesse a população dirigente e
elitizada da cidade – que, junto com as diferenças em relação à linha de
atuação da Diocese de Lorena, criou um quadro político favorável para a
intervenção do bispo diocesano.
Porém, em relação ao catolicismo popular o padre, apesar de ter
reestruturado as festas e aberto espaço para as folias e outras representações
culturais da população, ainda não entendia a relação entre o campo afetivo e a
religiosidade daquela gente.
“O problema que a gente enfrentava era cultural. Leitura... a gente
incentivava os sindicatos, a participação e a leitura. Sem leitura, sem
cultura como é que se vai fazer? Ficar na boa intenção... Atualmente
eu tenho uma frase que resume tudo: ‘Sem um comportamento não
nasce o sacramento’. Então não é sentimento. Muito do nosso
cristianismo, ainda hoje tem muito sentimento, não tem
comportamento”.
No catolicismo popular podemos falar sobre a valorização de expressões
sentimentais e corporais como chorar, botar a mão no santo, beijar a fita, pegar
a flor do andor, acender velas, ir às procissões, fazer o sinal da cruz ou tirar o
chapéu. Símbolos que revelam uma linguagem própria e a necessidade da
manifestação externa da sua fé.
Com a saída do Pe Geraldo, foi nomeado para a paróquia o Pe. Mauro.
Adepto da RCC, Pe. Mauro procurou recomeçar e estruturar seu trabalho em
[132]
pilares diferentes daqueles criados pelos Missionários do Sagrado Coração.
Sua atuação foi em favor de uma linha mais conservadora e pentecostal. O
referido padre deu continuidade a uma linha de construção de uma pastoral
fundada numa religiosidade internalizada, porém a base teórica mudaria
totalmente, pois estava atrelada a um projeto de expansão da Renovação
Carismática Católica que, no Vale do Paraíba, construiu sua base na cidade de
Cachoeira Paulista onde hoje funciona um complexo enorme de
comunicação: Rádio Canção Nova e TV Canção Nova. A grande novidade
neste período foi a forma pessoal de conduzir a pastoral na paróquia, pois o
padre aliava uma proposta carismática espiritualidade e pregava um
engajamento político que paulatinamente se intensificou e gerou, inclusive, sua
saída da Igreja e uma candidatura pelo Partido dos Trabalhadores, que não
lhe rendeu um cargo de vereador por conta da escolha do partido e seu
coeficiente eleitoral.
A presença do Pe. Edilércio foi rápida (um ano) e não deixou
qualquer tipo de marca pastoral.
Outro padre que ficou um bom tempo na paróquia foi Jose Verreschi
Neto (1990 – 2000). Neste período tentou reformular todo o trabalho construído
pelos padres Missionários do Sagrado Coração até porque os conhecia por
ter pertencido a esta congregação religiosa antes de se encardinar na Diocese
de Lorena. Seguindo os passos de seus antecessores, após uma breve
passagem de dois sacerdotes Pe. Mauro e Pe. Edilércio -, Pe. Verreschi
retoma o trabalho com as comunidades entendendo que as mesmas não
vingaram como CEB’s.
7
Em seu relato ficou claro que a Paróquia se isolara
7
Pe. José Verreschi Neto tinha larga experiência em trabalhos com as Comunidades Eclesiais
de Base pois trabalhou na, entre outros lugares, na Região Belém da Arquidiocese de São
[133]
pois a Diocese de Lorena não acompanhara o avanço das reflexões pastorais
proporcionadas pelos grupos específicos da CNBB. Daí, para a época, o
caráter conservador da diocese. Acredita que a RCC tenha minado todo um
trabalho isolado do conjunto da diocese e conquistado espaço na
administração dos dois párocos anteriores.
A paróquia estava estruturada pelos Missionários do Sagrado
Coração. As CEB’s funcionaram certo tempo na zona rural, mas
não vingaram... Posteriormente à saída do Pe. Geraldo os grupos
de oração da RCC cerraram um verdadeiro ataque aos movimentos
mais avançados politicamente. Acho até que aquilo que era
fundamental (comunhão, partilha, mutirões) ficou porem como parte
de uma tradição cultural existente no próprio município”.
Na atual fase de refluxo dos movimentos mais progressistas da Igreja
Católica Brasileira (CEBs e TdL) tem sido evidente o crescimento da
Renovação Carismática Católica (RCC). O fenômeno da ocorrência de
movimentos de maior abertura para o social, seguidos de seu refluxo e
substituição por outros, de caráter conservador, o é novo na história da
Igreja Católica mundial. O conservadorismo pode manifestar-se com estilo
“tradicional” ou “moderno”.
Quando nos deparamos com a questão do avanço de estruturas
religiosas modernas tanto no caso das CEB’s quanto no da RCC - sobre a
cultura popular, nos perguntamos sobre a capacidade de resistência desta
cultura popular diante dos elementos racionalizadores exógenos a esta cultura.
Resistência e/ou resiliência, resta-nos saber como, na realidade, a cultura
Paulo com D. Luciano Mendes e, posteriormente na Diocese de Campinas na Paróquia Jesus
Cristo Libertador ao lado do Pe. Benedito Ferraro.
[134]
popular lida com estas perspectivas vividas no cotidiano da população local.
Neste sentido, Brito levanta a mesma questão e se pergunta:
”Ignorada, pouco estimulada e até desprezada não estaria perdendo
a sua capacidade de auto-reprodução? O poder econômico
expansivo dos meios de comunicação parece ter abolido, em vários
momentos e lugares, as manifestações da cultura popular,
reduzindo-as à função de folclore para turismo... A impressão
dominante é de que as culturas populares serão plastificadas pelo
rolo compressor da cultura moderna. Um olhar diacrônico, no
entanto, revela que ao longo da história da humanidade, a cultura
popular deu impressão que desapareceria, mas, como relembra
bem, Oswaldo Elias Xidieh, um dos mais importantes estudiosos da
cultura popular brasileira, a mobilidade da cultura popular é tal que
ao perder sua função num determinado setor encontra espaço nos
setores que sobrevivem “
8
.(BRITO, 1998).
Revigorando as capelas (trabalho com comunidades rurais) a pastoral
ganhou uma dimensão que ele chama de missionária – presença dos leigos no
processo de evangelização. Houve uma revitalização das comunidades rurais e
na área urbana a constituição de um trabalho fundado no conselho paroquial e
trabalho descentralizado na prática pastoral. No campo político, mais propenso
a um tipo de religiosidade internalizada, porém respeitando os valores de uma
prática religiosa tradicional, o padre foi construindo um modelo de atuação que
conciliava uma “espiritualidade missionária” e uma prática política que o
mesmo chama de “não partidária” – uma espiritualidade onde o discurso estava
mais aberto ao processo de conscientização política sem o envolvimento ou
8
Brito discute tal tema apresentando como o debate do tema se estabelece afirmando, a partir de Otavio
Velho, que as diferenças culturais não se apresentam com o empecilho para o avanço da modernidade.
[135]
comprometimento da estrutura religiosa com uma prática partidária. Poucas
pessoas dos membros da comunidade se encaminharam para um partido
político a partir das reflexões pastorais ou doutrinárias. Porém, o voto era
trabalhado a partir das posturas dos documentos editados e publicados pela
CNBB. Neste período, criaram-se os agentes comunitários e de pastorais.
A pastoral urbana: podemos esquematizar a prática pastoral na área
urbana para o período da seguinte forma:
SETORES
ATIVIDADES PASTORAIS IRMANDADES FESTAS
PRINCIPAIS
CAJURU ESCOLA DA FÉ S BENEDITO SEMANA
SANTA
ALTO
JOVINO
CATEQUESE VICENTINOS S BENEDITO
RIO DAS
PEDRAS
CURSOS: SACRAMENTOS SANTÍSSIMO FESTA S
JOSE
VILA RICA
CURSOS
PROFISSIONALIZANTES
APOSTOLADO
ORAÇÃO
FESTA
DIVINO
SANTA
CASA
CURSOS FORMAÇÃO
LIDERANÇAS
CONGREGAÇÃO
MARIANA
FESTA
PADROEIRA
MOTOR CIRCULOS BIBLICOS
CENTRO
OFICINAS ORAÇÃO
PASTORAL LITURGICA
PASTORAL DOS
ENFERMOS
PASTORAL DA JUVENTUDE
PASTORAL DA CRIANÇA
PASTORAL ECOLOGICA:
PROJ REFLORESTAMENTO
[136]
A pastoral rural: tem uma estrutura orgânica menos complexa e é
coordenada por uma “diretoria”. O isolamento as torna mais autônomas. Eram
66 comunidades rurais – das quais 59 bastante ativas - e, para efeito de
trabalho selecionamos algumas a partir de critérios de participação e
isolamento em relação à sede do município. Acrescentamos os contatos como
possíveis informantes para o trabalho de campo.
ALGUMAS COMUNIDADES RURAIS
COMUNIDADE
DISTANCIA
DA CIDADE
CONTATO
E/OU
LIDERANÇA
CATEGORIA FESTAS
RURAIS
PAIOL 17 KM GERALDA INTEGR SIM
BAIRRO DO J
ALVES
24 KM TONINHO
ALVES
INTEGR SIM
CAPIVARA
COM S FCO
13 KM PEDRO E/OU
CHIQUINHO
DA CHICA
INTEGR SIM
JAGUARÃO 17 KM MARIA
INÁCIA
INTEGR SIM
SANTA CRUZ 6 KM ORLANDO INTEGR SIM
CATIOCA STA
TEREZINHA
22 KM CID E
TEREZA
INTEGR SIM
SERTÃO
ITAMBÉ
30 KM OLGA ISOL SIM
STO ANTONIO
PINHAL
27 KM MARGARIDA ISOL SIM
MILTON
SANTANA
33 KM JOÃO (IGR
SNTANA)
ISOL SIM
CÓRREGO DA
ONÇA
33KM – DIV
AREIAS
VALENTIM ISOL SIM
[137]
3.2. A Renovação Carismática Católica.
A diversidade existente ampliou seu campo de atuação e atingiu o
catolicismo em setores antes diversamente diferentes, porém impregnados de
uma mesma perspectiva de controle hegemônico. Uma revitalização de rituais
impregnados de emoção abriu a possibilidade para ltiplas escolhas e
pertencimentos religiosos no seu campo hegemônico. As opções para
expressar o “ser católico” se multiplicaram nestes últimos anos, de modo que
as suas possibilidades podem variar das formas mais tradicionais às mais
político-libertárias ou emocional-carismáticas.
Em conversas com um ex-sacerdote e um membro da Renovação
Carismática Católica da paróquia, percebi que esse movimento ainda tem uma
grande penetração na região. Amparada na força da TV Canção Nova
9
com
sede em Cachoeira Paulista a Renovação se tornou um fenômeno que, a
meu ver, estancou e parece não agregar novos devotos. Parece-me que
chegou até onde podia expandir-se. Daí para frente, a meu ver, as concessões
feitas pelo catolicismo tradicional deixaram de existir e seu espaço ficou mais
restrito ou, pelo menos, em uma hipótese benéfica ao movimento, a RCC
apenas não amplia mais seu universo de devotos.
As emissoras da Comunidade Canção Nova (rádio e TV) operam em
Cunha com facilidade, pois grande parte da população, para ter um sinal de
qualidade, precisa de sintonizar os canais de televisão através de antenas
9
Segundo MARIZ, a Comunidade Canção Nova foi fundada por um padre, Jonas Abib. O
carisma principal dessa comunidade é a comunicação massa, por isso possui um canal de
televisão e emissoras de rádio. A Canção Nova é citada sempre na fala de membros de outras
comunidades religiosas, tendo sido uma referência e inspiração para os fundadores das
comunidades mais recentes. Brenda Carranza (2000) discute essa comunidade em seu livro.
A dissertação de mestrado de Eliane Martins Oliveira (2003) teve como tema a Canção Nova,
em especial os encontros realizados em sua sede em Cachoeira Paulista, já a TV Canção
Nova é objeto da pesquisa de Antônio Braga (2003).
[138]
parabólicas. Por esse meio fica mais cil ter acesso às emissoras da TV. A
tecnologia empregada pela emissora faz com que a mesma seja um forte
elemento de divulgação dos ensinamentos da Comunidade
10
. Segundo NETO,
a estratégia midiática empregada pela instituição é marcada por elementos que
esboçam o funcionamento do que podemos chamar de “religião do contato”.
Nela, ofícios religiosos - cultos, missas, etc - são transformados, a partir de
operações midiáticas, em dispositivos de ação, de intervenção e de regulação
do discurso religioso sobre mente e corpo do fiel.
“O dispositivo religioso-midiático é resultado do agenciamento de
várias operações tecno-discursivas e que se caracterizam pela
sustentação de um discurso que envolve largamente, a presença
de um outro, mas que opera por conta própria os processos de
constituição de sua inclusão e de sua presença no processo
interativo” (NETO, 2006).
Ainda segundo o autor, este modo de “fazer religião” é também uma
forma de “ação comunicativa” mobilizada por “braços das Igrejas” (católicas e
pentecostais), via estratégias de produção de sentido que são voltadas para
desenvolver o combate simbólico, no contexto do espaço público
contemporâneo, pela posse dos fiéis, e pela estruturação de um novo mercado
religioso. Em Cunha, muitos católicos se sentem desconfortáveis diante da
estética religiosa adotada pela instituição que, em si, revela formas de atuação
da própria Renovação Carismática Católica. Porém trabalhando
constantemente as aflições humanas, paulatinamente esse discurso penetra as
10
No site http://www.cancaonova.com/portal/canais/tvcn/tv lê-se que a fundação dispõe de
satélites de distribuição e contribuição como o Brasilsat B1 e B3 e o NSS-806 que transmite o
material produzido no Brasil e distribui para toda América do Norte, do Sul e parte da Europa,
podendo ser vista desde setembro de 2005 por todas as regiões da Europa, através do HOT
BIRD que abrange 45 milhões de receptores e oferece a programação católica em canal livre.
[139]
fendas existentes em algumas partes da tradição católica familiar. Seja através
da doença de um membro da família, do desentendimento rotineiro nas
relações familiares, no desemprego, enfim o discurso mina a resistência e,
mesmo que não modifique totalmente as tradições religiosas nas famílias,
atinge membros da mesma criando adeptos capazes de desenvolver tais ideais
religiosos em nome de uma evangelização renovada. Sobre esses elementos
formadores desse mundo religioso, NETO afirma:
“São fragmentados e alocados em diferentes “gêneros” de
programas, que são estruturados segundo elementos técnico-
simbólicos que constituem o universo ritualístico do mundo
religioso, e que servem como “senha” de reconhecimentos das
emissões junto aos fiéis. “Missa da cura”, “culto em família”,
“direção espiritual”, “show da fé”, são algumas das teleemissões
que acolhem os sintomas apresentados, enquanto demandas,
pelos fiéis receptores e que se inscrevem, em diferentes níveis no
corpo, segundo uma história específica com que cada um as
descreve ou as relata: cirurgias, alcoolismo, mutilação de órgãos;
perturbações e doenças nervosas; câncer, AIDS, deficiências
cardíacas, etc.”(NETO, 2006)
Segundo NETO, esta modalidade de “fazer religião” se torna um
fenômeno público na medida em que seus rituais estão fortemente permeados
pelos processos de afetação da cultura e das lógicas midiáticas. A vivência da
religião motivada por uma recolocação do processo emocional. Tal fenômeno
encontra na mídia espaço fundamental para desenvolver nos fiéis, agora “tele-
fiéis”, um canal direto para dialogar com a emoção dos mesmos. O que antes
se fazia relativamente bem, agora passa a ser feito com uma linguagem muito
[140]
mais competente. O próprio “recrutamento” para a prática religiosa passa pela
televisão, num deslocamento do papel da Igreja tradicional para uma política
ampla de “teleatendimento” espiritual. Complementando tal processo,
encontramos uma fundamentação local que faz o virtual e midiático se
tornarem real e mobilizador, quando tais fiéis são tomados em torno de
situações físicas como acampamentos, estádios, onde novas aglomerações
descobrem formas de exercitar a religião. um “reencantamento do mundo”,
um retorno às dimensões do devocional, que se atualizam, contudo, pela
mediação específica das operações midiáticas. Instaura-se nesses moldes não
mais exclusivamente a magia, o milagre, porém permeados pela técnica e
colocados nos espaços midiáticos gerando a experiência religiosa midiatizada.
A técnica se torna uma instância de organização da ordem social, do
estabelecimento da cosmovisão e da instauração de sentidos voltados para
uma nova sociabilidade. Neste sentido, as práticas religiosas sofrem, de
diferentes maneiras, a presença de elementos que pertencem a uma cultura
que o lhe é própria, alterando a fundamentação religiosa construída pela
tradição.
Em conversas com membros da RCC em Cunha, pude perceber a
dificuldade encontrada nos mesmos para entender o campo religioso
tradicional e suas constituições práticas fundamentais. A perspectiva do
curandeirismo, por exemplo, é tida como atraso da tradição. Segundo os
“renovados”, a cura vem de Deus e é através do Espírito Santo que a mesma
se manifesta. Quando lembro a esses informantes o fenômeno de Cura vivido
por Tia Laura
11
, os mesmos afirmam que ela era instrumento do Espírito Santo.
11
Senhora já falecida que vivia na cidade de Lorena, tinha o “dom da cura”, pertencia à RCC e
recebia seus clientes em casa.
[141]
O que não vale para os membros ligados a outro tipo de catolicismo e/ou
cristianismo.
Quando, por outro lado, procurei membros das comunidades que não
pertencem à RCC e conversei com eles sobre a prática do movimento, percebi,
a princípio, uma espécie de resistência velada. Porém, aos poucos, com a
conversa, a mesma ia sendo quebrada e sempre percebia um discurso
vinculando as práticas religiosas ao campo evangélico. Dizia-me um senhor pai
de uma aluna da zona rural do município: Num participo disso não. É uma
mistura de credo, uma gritaria que faz a gente ficar surdo... meu finado pai
falava que com Deus a gente fala baixo e não como os crentes”. Nesta fala,
percebi a outra ponta do desajuste provocado pelas diferentes visões de
prática religiosa existentes entre as duas perspectivas: a carismática fundada
numa modernidade emocional e a tradicional fundada no hibridismo resultante
de uma religiosidade ibérica, as configurações emergentes de traços das
religiosidades indígenas e das diferentes perspectivas religiosas afro-
brasileiras. Ora, tal diálogo não é mesmo fácil.
Um fato que pude perceber em Cunha foi a falta de crescimento dos
grupos de oração no município. Sobre o assunto encontrei duas versões que
precisam ser aprofundadas: A) por um lado, encontrei a interpretação de um
grupo de leigos e um sacerdote que trabalhou na paróquia, afirmando que essa
estagnação é fruto de uma relação difícil com a cultura religiosa local, como se
o catolicismo tradicional, em sua visão híbrida, tivesse cedido o espaço
marginal para que o movimento se instaurasse e, com sua capacidade de
convencimento esgotada, este mesmo catolicismo não mais fazia concessões
para o avanço desta nova realidade religiosa. Ou seja, a Renovação
[142]
Carismática Católica se vê diante da saturação de seu mercado religioso.
Havia uma demanda que foi saciada e, por isso, o movimento não consegue
avançar. Isto seria fruto de um embate direto entre a força midiática carismática
e a força de uma tradição secular que não quer mais ceder espaços para este
tipo de prática religiosa; B) por outro, encontrei em um líder local da RCC uma
explicação que, apesar de não contradizer a primeira, parece abrir espaço para
pelo menos dois tipos de explicação. Em conversa com esse líder, o mesmo
afirmou que a RCC, pelo menos no município de Cunha, o trabalha com a
intenção de formar grupos de oração. Segundo Teodoro, a Renovação tem de
criar ambientes que possam proporcionar o batismo no Espírito Santo. Neste
sentido, encontramos uma prática religiosa mais orgânica e em comunhão com
os objetivos do clero regional no caso, a diocese de Lorena. A RCC, em
Cunha, ganha uma versatilidade maior do que em outros lugares, pois na
medida em que sente uma necessidade de se fortalecer como estrutura, como
movimento, a mesma acaba agregando as pessoas em função de uma leitura
de ampliação dialogada, inserindo-se nos movimentos religiosos pastorais da
paróquia como catequese, algumas irmandades e em algumas comunidades
espalhadas pelo interior do município.
Segundo Teodoro, o papel da TV Canção Nova no município é o de
construir a identidade da Renovação para facilitar a linguagem do movimento
como um todo. Quando a gente chega a um bairro a gente pergunta se eles
assistem a Canção Nova. Quando assistem é mais fácil, pois para eles a
linguagem da Renovação é meio enigmática e o que nós queremos é facilitar a
pregação e fazer a catequese também”. Afirma Teodoro sobre a importância
da TV Canção Nova: Nós, então, vamos somente exercitar o carisma... a
[143]
pregação é mais fácil de ser entendida”. Em sua fala parece que a pregação
desenvolvida tem um viés carismático: os Dons do Espírito Santo, o sangue de
Jesus, os dons, o poder de Deus, o Dom de falar em línguas.
Uma coisa que marcou as entrevistas com as pessoas simpáticas à
RCC foi o fato de que o movimento é forte não na quantidade de grupos de
oração existentes. Se fossemos medir a força do movimento pelo mero de
grupos existentes no município, talvez chegássemos à conclusão de que o
mesmo estaria fadado ao término de suas atividades o que seria inocente,
até mesmo por conta da Canção Nova. Os dez grupos existentes, mais as
emissoras de rádio e TV que atingem o município são capazes, segundo
Teodoro, de reunir uma grande quantidade de pessoas no município.
De fato Teodoro tem razão, a TV Canção Nova é fundamental para as
pretensões da RCC não apenas em Cunha, mas no Brasil inteiro. Sem ela, o
trabalho desenvolvido o teria as proporções que tem hoje em dia. Mesmo
quando não consegue adeptos fixos mas simpatizantes do movimento que
procuram por novas respostas para seus antigos problemas. Porém, gostaria
de terminar esta parte do trabalho com o texto de GASPARETO:
“Sem duvidar das intenções que move o projeto da TV Canção
Nova, que é o de “evangelizar por meio da mídia”, devemos, porém,
constatar que (...) nada disso seria possível sem uma compreensão
de religião como um “objeto de consumo” vendido mediante a
exploração do imaginário religioso devocional, segundo as
operações telemidiáticas. Os “garotos-propaganda” são os padres
pop star, que se tornam referencial para um modelo de Igreja
igualmente virtual, onde não se vendem apenas uma promessa de
salvação, mas se compra um estilo de “vida alternativo”. Ou seja, o
[144]
acesso se sob certas condições de consumo, orientadas por um
corpo de especialistas religiosos, produtores e difusores de um
“saber religioso” cada vez mais elaborado por meio das estratégias
midiáticas”. (GASPARETO, 2006)
Neste sentido, constatamos um processo de disputa cultural travada no
interior do catolicismo tendo, de um lado, a modernidade carismaticamente
constituída a partir dos elementos emocionais, e por outro lado, convivendo,
dialogando e duelando com um catolicismo tradicional, que não esconde sua
força e sua vitalidade nas práticas populares.
3.3 A tradição que verga, mas não quebra.
Como nos afirma Machado, crenças e tecnologias dialogam no
enfrentamento entre tradição e modernidade, instituindo novos investimentos
estéticos, rítmicos, performáticos, imagéticos e poéticos. Novos personagens
também se encenam ao lado daqueles que trazem na lembrança suas práticas
culturais”. (MACHADO, 2002).
As relações entre uma economia rural modernizada e a economia de
subsistência dão lugar ao embate ou ao conformismo, criando novos vínculos
12
entre o político, o poder público e os anônimos da cultura popular. Crenças e
tecnologias dialogam no enfrentamento entre tradição e modernidade,
instituindo novos investimentos no imaginário. Novos personagens também se
12
Esta influência pode ser percebida, por um lado, através de diversos indicadores
socioeconômicos e demográficos, dentre os quais merecem especial menção: o peso da
população rural no conjunto da população municipal; a proporção das pessoas que, vivendo
nas áreas urbanas, trabalham no meio rural, especialmente agricultores e suas famílias - o que
estabelece uma via de duas mãos na circulação entre a população rural e urbana no espaço
municipal - e a proporção das pessoas ocupadas nas atividades agropecuárias sobre o
conjunto das pessoas ocupadas no município. Por outro lado, ela se expressa no fato de que o
espaço municipal pode ser impregnado pelas «qualidades» do meio rural, diante das quais a
pequena e carente cidade dificilmente consegue se impor como alteridade. Estas qualidades
dizem respeito sobretudo ao povoamento reduzido e à predominância das paisagens “naturais”
e das relações sociais de interconhecimento (WANDERLEY, 2000).
[145]
encenam ao lado daqueles que trazem na lembrança suas práticas culturais. O
rural e as pequenas cidades passaram a ser espaço residencial para uma faixa
da população que trabalha nos centros maiores e também para aposentados.
No entanto, por uma questão de mobilidade cotidiana e de acesso a serviços,
esse fenômeno se restringe às áreas mais próximas das grandes e médias
cidades. A precariedade do nosso meio rural constitui um freio para que se
consolide como espaço residencial nos moldes das experiências européias e
norte-americanas. Em Cunha, cresce, nos espaços rurais, o número de
citadinos que se lançam em empreendimentos agrícolas ou rurais com fina-
lidades não agrícolas, desenvolvendo um contínuo intercâmbio com as cidades
e otimizando as oportunidades disponíveis nos dois espaços. Já é visível a
utilização do espaço rural como lugar de lazer e como paisagem que tem um
valor em si, uma certa “amenidade” que pode ser dinamizadora do
renascimento de localidades não muito distantes dos grandes centros urbanos
ou daquelas próximas de espaços particularmente dotados de recursos
naturais atraentes. Trata-se de um processo que enfrenta vários obstáculos,
como a ausência de boas estradas e serviços que propiciem estrutura de base
às atividades turísticas no meio rural e em pequenas cidades. Mas já se
identificam iniciativas de valorização de paisagens culturais específicas
étnicas, de valor histórico regional e de revitalização da cultura popular local
que dinamizam os municípios onde estão sendo desenvolvidas. Conflitos de
gerações se interpõem e dividem grupos. A igreja, antes distante da rural, se
aproxima, muitas vezes, com o intuito de controle.
As relações das pessoas com os bairros rurais ainda são importantes
tanto na zona rural quanto na cidade. Tais bairros o resultado da cultura
[146]
caipira oriunda em sua forma consolidada, de meados do século XVIII, com a
sedentarização do paulista, a reorganização de seus hábitos e a redefinição de
muitos dos seus valores sociais. Para Candido, o bairro consiste no
agrupamento de algumas ou muitas famílias mais ou menos vinculadas pelo
sentimento de localidade e pelas atividades lúdico-religiosas, tornando-se a
estrutura fundamental da sociabilidade do caipira. Segundo Candido, os limites
de um bairro podem ser definidos pela participação dos moradores nos festejos
religiosos locais. Dos maiores, realizados na capela, aos menores, realizados
nas casas dos moradores. (CANDIDO, 2001) Para o mesmo autor, a festa do
padroeiro, realizada nas capelas rurais, era a forma e o momento em que os
moradores afirmavam a personalidade do bairro em relação aos bairros
vizinhos.
Na conversa com os mais velhos percebe-se que, para estes, a “mata”
ainda é carregada de sentidos. Segundo Brandão, o mundo dos “bairros” é
plenamente nominado. O autor define o bairro como um intermediário entre o
sertão, lugar de absoluta natureza e a vila ou a cidade. Brandão afirma, em
estudo feito em Catuçaba, município de São Luis do Paraitinga, cidade
localizada, assim como Cunha, no Alto Paraíba, que qualquer lavrador adulto
sabe reconhecer os detalhes do produto do trabalho de cada um:
“... os sítios e as fazendas pelos nomes dos donos (não raro de vários
donos anteriores); as lavouras e roças de acordo com quem possui cada
uma, em cada lugar, ‘em terra sua’, no ‘arrendo’, ou na ‘meia’ (...); o gado
de cada quem, dentro ou fora do seu próprio pasto; as casas de
moradores, fechadas ou habitadas por famílias de donos ou agregados”.
(BRANDÃO, 1995: 73)
[147]
A memória de cada um reconhece os arredores e, assim, a região.
Seguindo os passos de Maria Isaura P. Queiroz, no que se refere à
percepção do espaço
entre sitiantes tradicionais de São Paulo, Brandão afirma
que o espaço sagrado percebido pelo sitiante tradicional é ambíguo. A
ambigüidade se quando da percepção de que espaços sociais, naturais e
sobrenaturais são parte de um todo não claramente definido. No campo da teia
de significações que constituem a lógica dos sitiantes de Cunha, as relações
vividas nos espaços sociais partem da perspectiva “da família nuclear à
parentela, desta à vizinhança, a outras comunidades, a outros grupos sociais
externos aos relacionamentos da vida cotidiana, a sociedades distantes não
conhecidas, mas apenas imaginadas”
13
(BRANDÃO, 1995: 75).
A noção de
espaço comporta, dentro de relações não conhecidas, mas imaginadas, as
relações sociais na natureza. Bichos, santos e divindades também estão em
algum lugar, também se relacionam entre eles. O universo dos territórios do
imaginário, assim como os do cotidiano, parecem ser ao mesmo tempo,
restritos e abertos. Centrados no bairro e na capela e descentralizados.
O espaço é muitas vezes marcado, no mundo rural, por locais revestidos
de sacralidade, aos quais os fiéis dedicam respeito, medo ou veneração. Essas
atitudes mostram-se mais intensas com relação a Igrejas e capelas,
especialmente quando se trata do espaço próximo ao altar. Cabe ressaltar,
também, os referenciais de devoção como as cruzes, os pequenos santuários
existentes nas estradas, todos carregados por sentimentos locais e\ou histórias
a serem reparadas diante de uma moral religiosa. Além do mais, ainda existem
os pequenos oratórios familiares que, em alguns momentos, ainda reúnem a
13
Ibidem, p. 75.
[148]
família para um momento religioso de agradecimento ou pedido. Os oratórios
são elementos de grande importância na religiosidade popular. Solução
provável em decorrência do pouco espaço de que dispunham as residências,
impedindo a construção de grandes altares, como nas casas coloniais, onde
eram a morada dos santos de devoção das famílias e congregavam os fiéis
para orações e pedidos, demonstração cabal de uma religiosidade popular
socializada e que dispensava a intermediação do sacerdote. Em minhas
andanças no meio rural do município consegui encontrar muitas famílias que
ainda guardam a tradição da presença do sagrado por intermédio desses
oratórios. A prática da reza do terço nas famílias não é mais constante e a
maioria não utiliza mais tal elemento de relação com o sagrado. Muitos afirmam
não conseguir mais reunir a família, pois, mesmo à noite, período em que
moradores do meio rural utilizam para o descanso que antecede mais um dia
de lida nos pastos e cultivos, os mais jovens, em muitos casos, saem de seu
meio para freqüentar os estudos (na cidade de Cunha ou, em menor
proporção, em outras cidades estudando em um curso superior).
A resistência da cultura popular é algo que pode ser entendida dentro
de um processo de relações híbridas entre as várias praticas católicas que
convivem lado a lado no cotidiano das comunidades. Em seu texto Fronteira
da fé: alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje”, Carlos
Rodrigues Brandão afirma que
“... o Catolicismo parece ser a religião com a mais aberta
capacidade de ajustamento aos "novos tempos", embora seja a
confissão religiosa que mais "perde fiéis para as outras". Quando
observada de perto, vemos como ela se abre e se permite
diversificar, de modo a oferecer, em seu interior, quase todos os
[149]
estilos de crença e de prática da fé existentes também fora do
Catolicismo (BRANDÃO, 2004).
Essas relações existem dentro de uma prática de concessões e
resiliências que articulam o tradicional e o moderno mantendo diferenças e
interagindo culturalmente. Esse comportamento condiciona grande parte da
visão sobre a moral tanto no que se refere a condutas sexuais, na questão de
papéis sociais, na questão do poder como autoridade inconteste e prática
comunitária, bem como nas obrigações religiosas dominicais e festividades
religiosas do bairro ou da cidade. A defesa dos princípios relativos às práticas
ancestrais fundadas no benzimento e na oração, os costumes tradicionais de
orações repetitivas e invocações dos padroeiros e protetores divinos
representados pelas figuras dos santos. Essa pratica católica não entrou em
crise mesmo quando do advento de novas vertentes religiosas católicas. No
caso específico do catolicismo tradicional rural, Camargo observa uma
escassez de liderança formal devido à pouca presença dos padres em
localidades mais afastadas. Neste caso, a liderança religiosa local é assumida
por leigos que organizam rezas, novenas e terços. Assumem também, em
muitas localidades, a encomendação dos mortos. Tal condição facilita o
surgimento de liderança leiga que se configura, muitas vezes, como liderança
carismática. Seria interessante observar com Bitencourt que a existência, no
bojo da matriz cultural, de uma matriz religiosa, provê um acervo de valores
religiosos e simbólicos característicos, assim como propicia uma religiosidade
ampla e difusa. Essa matriz gerou leituras bem diversas dentro do catolicismo
do tradicional à própria RCC e também nas religiões protestantes de caráter
evangélico. Apesar de mudanças ocorrerem na sociedade, é preciso considerar
[150]
que valores retidos nas camadas profundas da existência social continuam a se
expressar e a se reproduzir. É nesse sentido que o autor entende a sua tese de
uma matriz religiosa brasileira seguida de uma religiosidade matricial.
Antes de qualquer coisa é oportuno citar que, como em toda paróquia,
as relações religiosas não são simples, e interesses pessoais, de grupos
religiosos ou o e/ou políticos convivem dentro de espaços limitados por
uma espécie de unidade legitimadora da prática católica, ou seja, os conflitos
existentes cessam ou abrandam diante da força política da oficialidade católica,
permitindo que os conflitos concretos sejam mapeados na prática cotidiana do
trabalho pastoral. Lado a lado convivem o catolicismo tradicional (CAMARGO,
1973:49)
14
, a Renovação Carismática Católica, agentes de várias pastorais
com ou sem elo político-religioso, agentes das comunidades rurais bem como
agentes do meio urbano pertencentes à elite política e dirigente da cidade, ao
lado de lideranças populares mais conscientes (ou não), porém oriundas de
situações de pobrezas existentes na periferia da cidade.
3.3.1 Transformações e concessões na prática religiosa.
A sociedade moderna apresenta uma estrutura extremamente complexa
vivida e pensada longe dos processos de construção de sentido das camadas
populares. Segundo Steil, ao mesmo tempo em que as sociedades se
organizam a partir de instâncias seculares autônomas, - como o Estado e o
Mercado, - os diferentes indivíduos que a compõem podem cultuar uma imensa
14
Vale lembrar que neste trabalho adotei uma estrutura conceitual sobre o catolicismo que foi
desenvolvida por Camargo em seu livro Católicos, Protestantes, Espíritas.
[151]
diversidade formas de relações com o sagrado sem se preocupar com o
complexo processo existente nas relações seculares. Essa realidade
racionalizada do processo econômico e político atinge de modo periférico a
realidade de crenças construídas pela população mais rústica pobre e rural
do município. Parece que as falas de personagens de Guimarães Rosa
15
se
repete a cada dia nos arredores do município de Cunha. Aliás, parece que a
questão do hibridismo religioso transcende as fronteiras das ciências sociais,
da história e já se alojou no seio das reflexões literárias há muito tempo.
“Embora esteja na moda, (...) , o hibridismo religioso é velho
problema para os pensadores brasileiros e também para a literatura.
Nosso pensamento social constituiu-se às voltas com nossa
formação pluriétnica e com a mestiçagem, reflexão que se reconhece
em seu próprio cerne. Por isso, a crítica literária brasileira vê-se,
amiúde, obrigada a recorrer aos estudos de religião para não
desfigurar seus objetos: poucas literaturas do mundo estarão tão
impregnadas da presença de diferentes hibridismos religiosos
(GALVÃO, 2006).
Em minhas “andanças” pelo município, percebi que mesmo leigos
engajados e envolvidos com um processo de “evangelização” fundado na visão
de um catolicismo mais racionalizado oriundo das orientações pastorais do
clero local acabam fazendo suas confissões híbridas em “off” durante as
15
“Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza
é que sara da loucura. No geral, isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço!
Eu cá, o perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só,
para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as
preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no
Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, alto a Bíblia, e
ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me
refresca. Mas é muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo. Muita gente não me
aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. (ROSA, 1963: 17)
[152]
entrevistas. o gostaria de citar nomes em respeito aos pedidos pessoais
recebidos de meus entrevistados, porém ouvi de um agente de pastoral a
seguinte afirmação:
“Nós temos, como cristãos que somos, de seguir as orientações
de nosso pastor. Se não se deve rezar pra quem não é santo –
referindo-se à Mariinha não se reza, pelo menos pra não
desagradar o pastor. Mariinha vai entender e atender nossas
necessidades. Eu não rezo, penso nela e consigo resolver as coisas”.
Em outro bairro ouvi uma fala importante. “Nós que somos mais
esclarecidos não podemos acreditar em qualquer coisa, né”. Quando perguntei
se freqüentava a casa de alguma curandeira o informante me falou: “Freqüento
não senhor. Vou lá só quando preciso... Já faz tempo, mas to precisando ir”.
Caso diferente e interessante aconteceu quando da entrevista com Seo
Pedro (Pedro da Chica) que desde os quinze anos trabalha como agente de
pastoral na paróquia de Cunha, no bairro da Cachoeira dos Rodrigues e bairros
da região. no início da conversa o mesmo afirmou que a população local
tinha uma devoção muito grande à “Santa Cruz”. Paulatinamente o clero foi
negociando e introduzindo sua marca racional a partir da implantação dos
santos padroeiros nas comunidades locais.
Aqui não existia as comunidades, vocês sabe. Ninguém...Aí depois
do Padre João José pra começou...Aí o Padre Mauro deu uma
força muito grande...Aí o Padre Verreschi...O Padre Verreschi
levantou a comunidade...Aí então existia muito também no
tempo do Padre Mauro...Eu não sei se eu me engano é o Padre
Mauro ou o Padre Verreschi, quase todas as igrejas aqui falavam
[153]
da Santa Cruz. Aqui mesmo era Santa Cruz, alí na..., tudo era
Santa Cruz, tinha muito Santa Cruz...Aí o Padre fez um negócio lá e
também não pode, vamo colocar os padroeiro..Aí que fomos... o
padre, se não me engano se é o Padre Verreschi ou o Padre Mauro
colocou. Aqui ficou São Francisco, Pinheiro que era Santa Cruz
ficou Sagrada Família, e...alí na Paiolzinho que era Santa Cruz
ficou São Marcos..então foi..aí que foi colocando as
comunidades...”
A presença do agente de pastoral garante, quando o mesmo é
carismático, à Igreja um processo gradativo de construção catequética e
doutrinária buscando a transformação de uma prática católica tradicional a uma
prática mais engajada. Dependendo da orientação dos sacerdotes do período,
esse engajamento podia acontecer, inclusive, no campo político. Porém, a
maioria deles desejava uma população mais reflexiva e receptiva a uma
construção de mais racionalizada. Na fala de Seo Pedro essa realidade é
percebida e, com certa empolgação ele afirma:
“Por que teve muita mudança, por que de primeiro, o povo
mais antigo ia na missa às vezes, de mês, ou um ano, ou quase a
igreja, existia em Cunha mesmo ou em Lagoinha, que o Padre
não vinha na nossa comunidade. Era raro o Padre ir nas
comunidade né... Aí depois que foi criando as comunidades, que foi
levantando as comunidades, que os Padre começou a vir nas
comunidade, todo o mês, ou em três em três meses, foi
evangelizando mais, bem evangelizado. Hoje é o dia que as
comunidade ta mais evangelizada do que antigamente. Por que
antigamente, eu cheguei a assistir aquelas missas em latim
[154]
(risadas). Por que latim só padre falava, então o povo não tinha
como assim pegar, então o povo não tinha bem a realidade assim
com a igreja, por que por exemplo, morreu a pessoa, faleceu
aquela pessoa...Então a missa do sétima dia tem obrigação de ir,
não. foi recordando que s somos obrigado a ir a missa todo
domingo, assim como nós podemos ir na missa pela comunidade,
comunidade vizinha a gente ia a missa, o pessoal foi
compreendendo. A gente vai com o padre ajudando, e hoje eu
acredito muito bem preparado, mas existe muito, muito, aqui
mesmo na minha comunidade a gente faz celebração, então
começaram fazer todo o primeiro domingo do mês. o pessoal da
família sempre vem nos domingos. A não, vamos mudar essa
celebração pro dia de São , ficou pra primeira terça-feira do mês
né”.
Além dos agentes de pastoral, a paróquia sempre investe em agentes
externos para que a doutrina seja articulada com a liturgia vivida nos momentos
mais fortes. Muitas vezes, se apropriando da cultura local, a Diocese de Lorena
cria os mutirões de confissão. Porém, no que concerne ao processo de
evangelização das comunidades mais afastadas a presença desses agentes
externos é tida como importante e esperada como palavra auxiliar na condução
dos trabalhos locais levados a efeito pelos agentes de pastoral dos bairros. Seo
Pedro afirma que seu trabalho é cosntante: “... É assim o, aí temos aqui na
comunidade né... toda quinta-feira a gente vai na adoração ao santíssimo,
nas quartas-feiras nós temos a novena Perpétua na nossa comunidade né...”
Em momentos especiais a presença externa é importante:
[155]
“É...então quando tem esses eventos, que nem agora
acontecendo a Quaresma né, então quarta e sexta nós tem a Via
Sácra também na comunidade né, todas as quarta-feira e sexta... E
ainda tem gente que precisa vir, que nem agora mesmo, nós vamos
ter a visita do seminarista aqui na semana santa... Eu não sei se o
padre tá vindo de Lorena. Tavam falando pra mim até de São Paulo, o
seminarista né...Então aqui mesmo vai ficar dois seminarista pra fazer
a semana santa. Então nós vamos sair a família tudo né, aqui, vizinho,
os bairro vizinho também, visitando as casa perguntando como é que
tá e trazendo pra igreja...”
Minha conversa se desenvolve e procuro entender se a ação dos
agentes de pastoral tem certa autonomia e afirmo: “Então quer dizer que hoje
tem uma participação e tem uma organização em cada capela e cada capela
tem a liberdade pra fazer as celebrações, onde achar melhor, de acordo...”
Antes que eu terminasse a idéia, Seo Pedro foi direto e afirmou que as
decisões precisam levar em conta a negociação feita com a realidade dos
moradores dos bairros rurais:
“De acordo com a comunidade né... Não adianta nada se
eu chegar na comunidade e falar: 'tais dia celebração', não,
então tem que entrar em contato com as comunidade com as
pessoa e fica pronto tais dia. bom! Aí é nesse dia que a
gente marca pra modo de dar mais participação...”
Após várias conversas com ex-festeiros das comunidades rurais e
pessoas da cidade, percebi que a liberdade das comunidades é limitada pela
visão que o sacerdote, no caso, o pároco, possui sobre as variações culturais
com relação aos festejos populares.
[156]
Uma série de fatores preocupa os ministros das comunidades urbanas
ou rurais e um dos mais evidentes é o crescimento das igrejas evangélicas no
município. No último levantamento realizado contei mais de vinte
denominações religiosas ocupando, principalmente, a periferia da área urbana
do município. Seo Pedro, que não foge à regra com relação a este tipo de
preocupação, afirma que na região que faz seu trabalho religioso como ministro
região do Jacuí, Três Pontes até a Cachoeira dos Rodrigues a situação é
mais tranqüila para os católicos.
“Vê... agente nota o aumento desse povo...nota...mas não é o
povo do lugar...que aqui mesmo no nosso bairro não existia família
que não fosse católico e hoje tem, mas é o pessoal que vem de fora.
Veio da cidade, então que aqui mesmo tem três família e até aqui
embaixo tem um pastor Geová, mas ele veio de lá. Aqui, criado, do
nosso lugar, no bairro é muito difícil você encontrar uma pessoa que
era católica virar a lei deles pra outra lei. encontrei esse lá...eu
peguei uns vinte bairro até sai pra encontrar esse que eu falando
pro senhor, até agora foi o único...o único. Agora você vê, o pessoal
veio comprou terreno e veio de São Paulo, comprou um terreninho
“sou metodista”. Veio outro de São José “ah eu sou Geová”, então
você encontra, você sabe que tem, mas è o pessoal que veio de fora,
daqui do bairro não tem quase nada”.
Na verdade, constato que a dificuldade de penetração dos grupos religiosos
pentecostais protestantes e/ou católicos no interior do município de Cunha
é bem mais difícil devido a presença deste catolicismo que Camargo chama de
tradicional. Essa vertente concede participação nos ritos, na perspectiva
doutrinal, mas não permite que as diferenças que invadem o campo do
[157]
comportamento ordenado simbolicamente através de sua história sejam
transformadas e deformadas. Uma vez conversava com um aluno de um bairro
próximo a Campos Novos e o mesmo me falou que, na sua região, ninguém
tinha nada contra os evangélicos, mas que cada um deve cuidar de si”.
Segundo ele, “reza é reza e vida é vida...” A doutrina presente nas pregações é
para ser ouvida, nem sempre vivida, pois a lógica da vida se encontra na
tradição recebida no cotidiano, na moral articulada e transmitida pelos
antepassados. Novamente é Seo Pedro quem nos esclarece:
“Porque o povo tem devoção e vê que aquela tradição dos pais é
antiga. Que nem já pego por mim, porque eu venho da tradição da
minha mãe, meu pai eu não cheguei a conhecer, mas da minha
mãe... vem a tradição... E quando tinha missa do insento no bairro
lembro que a mãe falava: “Oía essa semana vai ter a missa aqui no
bairro”.Então a gente ficava aqui é a missa, amanhã é a missa,
então a gente já ficava tudo arrumando pra ir pra missa, então
agente vem daquela tradição”.
Na análise dos agentes do interior realidade importante para ser
analisada em Cunha, pois na Zona rural ainda encontramos praticamente a
metade da população residindo e trabalhando – o que mais preocupa é a
ausência dos jovens. Essa ausência é explicada pelas transformações na
conduta do homem rural, hoje, marcada pela presença da televisão que chegou
com a tecnologia das “antenas parabólicas”, pela presença cada vez maior de
barzinhos no meio rural e pelo êxodo urbano
16
existente nesta faixa etária,
16
Anos 60: a Aceleração do Declínio Caipira. Essa é a única década em que a maior parte dos
migrantes rurais brasileiros não teve origem no Nordeste. Nenhuma região brasileira, em
qualquer momento de sua história, sofreu uma migração tão importante quanto o Sudeste rural
dos anos 60: nada menos que 6 milhões de pessoas deixam o meio rural da região, metade de
[158]
embora o grande momento de êxodo do homem rural tenha acontecido nos
anos sessenta do século passado. De qualquer forma é importante frisar a
preocupação de Seo Pedro:
“E hoje aqui no nosso bairro, no bairro vizinho a gente
levantando o problema com o jovem, porque o jovem tá difícil. Num
sei se é televisão, até acho que sim, ou é bar que existe na nossa
comunidade, que tão criando, a juventude vai mais para aquele
lado e deixa a igreja... Então a gente ter muito cuidado com a
juventude. E antigamente não existia barzinho de jeito nenhum e
hoje não, tem barzinho aí pra tudo que é lado... Os que ficam... Que
aqui mesmo no nosso bairro,olha eu...eu mesmo, meus filhos jovem
foram tudo pra cidade, aqui no nosso bairro tem de jovem, os que
tiver, dois, três, cinco, por causa do jeito de trabalho...e a gente
tem que dar...Então vai pra cidade, não tem como ficar, fica nóis
porque não tem o que fazer, tem que tar naquela tradição mesmo
porque não pode sair os mais velho, agora a juventude quase
tudo pra cidade”.
toda a migração rural nacional e 46,5% dos que habitavam o meio rural do Sudeste em 1960.
Podemos atribuir esse movimento às mudanças técnicas por que passa a agricultura da região
(sobretudo São Paulo), bem como aos chamados “fatores de atração”, que já estavam
operando durante os anos 50 com a expansão das grandes cidades da região. A erradicação
de cafezais, sua substituição por pastagens e a dissolução das “colônias” de fazendas que se
seguiu à maneira como a legislação trabalhista foi usada em situação de regime militar
contribuíram para este impressionante movimento populacional do Sudeste. O resultado é que,
apesar das altíssimas taxas de fecundidade [que passam de 7,17 a 7,04 entre 1940/45 e
1960/65, observou-se uma redução absoluta da população rural regional de 800 mil pessoas —
contrariamente às outras áreas do país onde a população continuou a crescer. É durante os
anos 60 que ocorre, então, a grande desruralização da região Sudeste. Os 3,1 milhões de
migrantes rurais nordestinos dos anos 60 correspondem a 27% do total nacional e a 1/5 da
população rural nordestina do início do período. A redução das secas, o caráter relativamente
tardio que teve a expulsão dos trabalhadores rurais para a “ponta de rua” no Nordeste (que se
intensifica na década seguinte com a não aplicação das conquistas obtidas com o Estatuto do
Trabalhador Rural) e a redução das oportunidades de trabalho derivadas tanto da erradicação
dos cafezais no Sul como do menor crescimento econômico nacional e da inexistência de
grandes obras como as da década anterior contribuem para explicar este menor nível
migratório do Nordeste (ABRAMOVAY e CAMARANO, 1998).
[159]
Percebe-se, então, que grande parte da juventude deixa suas terras
para buscar um futuro diferente em cidades maiores da região, tais como
Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté, o Jodos Campos e, muitas
vezes, fora da região: Guarulhos, São Paulo, Suzano e etc.
Mesmo defendendo muitas das mudanças na prática cotidiana do
catolicismo, Seo Pedro tem orgulho da fé que movimenta a população de sua
comunidade afirmando que o povo tem fé:
“Tem naquilo ali, mas o povo acredita... ah o povo acredita.
Quanto dia santo também que a igreja tirou né... A igreja tirou,
mas o povo guarda... Que nem aqui mesmo, dia quatro de outubro
é o dia do santo, então o povo considera como dia santo”.
Gostaria de ressaltar que a tradição religiosa católica de Cunha nos
aparece, às vezes, como um porto seguro diante das tempestades da
modernização, da desagregação das instituições e do anonimato nas
sociedades contemporâneas. Na construção da identidade religiosa da
população do município, os embates, a convivência hibrida com uma realidade
moderna que quer se impor não desmoronam a velha tradição fundada nas
raízes mais profundas do cotidiano daquela população. O conceito de
identidade, como nos lembra Stuart Hall, é um desses conceitos que operam
“sob rasura”, uma idéia que não pode ser pensada mais da forma antiga, mas
sem a qual certas questões-chave não podem nem ser pensadas (2000). Não
acredito em uma ruptura drástica no modus vivendi católico tradicional em
função de uma vivencia fundada numa postura da modernidade, faz-se
importante reafirmar que a tão propalada passagem a uma estrutura de vida
moderna que marca o “fim da tradição”, ainda que promova um trabalho de
[160]
realocação dos símbolos partilhados pela cultura católica, não acontece em
Cunha como profetizado. O que argumento é que não vemos processo de
ruptura, principalmente no plano cultural. Acredito que não faça sentido,
estratégico principalmente, para os agentes envolvidos romperem com
sistemas identitários nos quais eles se sintam “confortáveis” e/ou que lhes
promovam ganhos sociais e culturais. Então, nessa perspectiva, a passagem a
uma nova estrutura cultural, rompendo de uma vez por todas com a tradição
(no caso desta pesquisa, religiosa), dificilmente se daria em contextos
identitários como os descritos aqui, a não ser por uma faixa restrita da
população que na reorientação religiosa uma estratégia de inserção social
ou cultural.
3.3.2 Folias e festas: foliões e seus participantes.
Meu objetivo aqui é o de demonstrar a presença das festas no município e
dar a elas uma leitura contextualizada à realidade de transformações pelas
quais passam o município. Quando eu penso em festas populares, estou
trabalhando uma idéia que se afasta de evento/espetáculo. Refiro-me
especificamente à celebração de algum fato importante na vida de uma
comunidade. Esta visão se aproxima dos símbolos dos moradores locais e
transmite uma identidade na qual a vida doméstica, a realidade de trabalho,
abrem espaço para a comemoração deste fato significativo, mas, ao mesmo
tempo, revelam os elementos centrais da população que organiza e desenvolve
todo o aparato necessário para que a festa aconteça de acordo com os
princípios locais. Esta parte do trabalho se desenvolvida a partir de
entrevistas realizadas com um sacerdote local, alguns agentes pastorais e
festeiros.
[161]
No caso das festas populares no município de Cunha, uma espécie
de conflito camuflado que nem sempre encontramos na fala das lideranças
legitimadas pela Igreja Católica, porém presente em grande parte de católicos
do interior e, em menor grau na cidade. Fato é que as mesmas foram proibidas
no interior durante algum tempo e para ser sincero não sei se voltaram a
acontecer. Segundo muitas pessoas, inclusive padres que trabalharam na
paróquia, os festejos o fonte de muito desentendimento. Em seu texto
Sacerdotes de Viola, Carlos R. Brandão afirma ter presenciado ou ouvir falar
inúmeras vezes em atividades de foliões marcadas por situações de violência.
Afirma o autor que:
“... nos ritos coletivos do catolicismo popular, estão presentes as
seguintes situações de desafio e conflito com trocas interpessoais de
violência e controle da violência: 1) desafios e conflitos entre freqüentadores
de festejos, sob a forma de desentendimentos entre participantes comuns;
2) desafios e conflitos de concorrência pelo acesso a postos de unidades
rituais com direitos a poder burocráticos (...) ou simbólicos (...); 3) desafios e
conflitos de desempenho ritual entre grupos ou entre chefes de grupos
rituais, enquanto personagens; 4) desafios e relações de conflito aberto,
teatralizadas como núcleo da própria estrutura de significados do ritual”
(BRANDÃO, 1981: 182).
Brandão afirma que “ a festa é um momento em que a sociedade
interrompe a seqüência de sua rotina e introduz um curto tempo quente...
redistribui papéis e posições entre os seus praticantes-ativos e seus
praticantes–assistentes”
(BRANDÃO, 1981: 183).
Neste sentido toda festa, folia
ou qualquer outro momento lúdico são passíveis de transformações na rotina
da realidade simbólica da população. Na rotina do cotidiano tudo tem sua hora
[162]
no lúdico tudo se faz ao mesmo tempo. Não disponibilidade temporal para
viver separadamente as coisas pois tudo é criação, prazer, alegria e devoção
ao mesmo tempo. Recordo-me aqui de uma apresentação que vi de um grupo
de Moçambique durante uma festa de São Benedito em Aparecida Vale do
Paraíba. O grupo estava prestes a homenagear e se apresentar para o Santo,
tomava seus últimos goles e bem tomados o que, de certa forma me
deixou com água na boca quando o mestre reuniu o terno e a dança
começou. Um grupo de meninas observava um rapaz do terno que se
apresentava e, durante toda a apresentação, elas desceram a praça “mexendo”
com o rapaz, que por sua vez, em sua devoção não olhava para o lado. Após a
apresentação... Isso eu conto noutra oportunidade. Tudo se mistura e, talvez,
se separa em curto espaço de tempo.
Parece ser difícil para o clero e demais membros de uma Igreja, que
racionalizou sua e sua conduta a partir de elementos simbólicos racionais e
importados (processo de romanização),
17
entender uma lógica diversa daquela
que se constitui na verdade sobre a conduta humana. Brandão afirma que:
17
Segundo Gaeta,
as congregações religiosas européias foram peças fundamentais para os
bispos, que se dedicavam à cruzada romanizadora em suas dioceses. Instaladas nos velhos
centros de religiosidade popular voltaram-se, a partir desses lugares, para as manifestações
exteriores do culto. Festas, ruas, procissões, folias e foliões foram incessantemente
devassados, vigiados e normatizados. A cultura clerical esforçou-se na marginalização de todo
um corpo de comportamentos e práticas culturais socialmente admitidos e que, a partir de
então, começaram a ser criticados e condenados. No desejo de esvaziamento popular e de
ortodoxia religiosa, as hierarquias clericais voltaram-se para os poderes públicos municipais e
judiciários em busca de ratificação para esta imposição de valores culturais. A ancoragem
policial e as Posturas Municipais, estabelecendo os seus padrões de decoro e de moralidade,
configuraram-se em pilares dessa campanha de vigilância e de erradicação dos elementos
populares da religiosidade, sobretudo dos homens pobres. Bebedeiras, vadiagem, desvio de
esmolas arrecadadas, denúncias de orgia, de abusos, de jogos de roleta e de víspora, críticas
à falta de higiene das bandeiras que eram beijadas (como um veículo de propagação de
moléstias) foram fatores básicos nessa conjugação de esforços. A vigília espiritualizante
encontrou guarida sobretudo nos destacamentos policiais que se incumbiram de moralizar os
eventos, tirando das ruas as danças e confinando-as em recintos fechados, e intensificando a
repressão aos jogos sempre presentes nas festas.Nos livros do Tombo paroquiais encontram-
[163]
Ao prescrever condutas rituais para os seus dias de festa, a
sociedade não só ressalta a proscrição delas, (...) como deixa que as
situações dos festejos remetam para um plano mais simbólico de
relações, padrões de conduta regularmente incorporados à sua
rotina, como os de valentia, desafio e conflito. Ao mesmo tempo em
que convoca os devotos para o louvor público de um santo padroeiro,
a festa autoriza que os seus participantes façam experiência de
louvor de si próprios, atualizando demonstrações pessoais...”
(BRANDÃO, 1981: 184).
Mas entendo também que à “violência ritual” antecipa-se o controle ritual
da violência, formatado, ou na figura de membros populares, ou na figura de
pessoas instituídas a partir “de fora” das estruturas simbólicas das populações
locais. Na fala de Seo Pedro está implícita a idéia do controle sobre as práticas
festivas inseridas na religiosidade das comunidades.
“Antigamente era diferente também das festas porque, a
festa de roça existia também, todas as festas de roça, mas era
diferente de hoje que as festas de roça antigamente sem
comunicação com o Padre da paróquia né, então eles fazia do jeito
deles né. Chegava, vai ter uma festa no bairro das cachoeira. A
cachoeira comunicava o padre da diocese né, e fazia a festa. Hoje
não, se nós vamos fazer a festa na comunidade, tem que ver tudo
se inúmeras queixas do clero contra o mau comportamento dos romeiros nas festas.
Precavendo-se destas profanações, os padres foram disciplinando as procissões, destruindo
os barracões que alojavam os romeiros, proibindo os bailes e as arruaças. Danças, músicas,
alardes, tambores, folias, máscaras, palhaços, imperatrizes, bandas, fogos - representações
emblemáticas do sagrado que eram consentidas e incentivadas pelo catolicismo tradicional,
como privilegiadoras dos sinais visíveis da fé e da graça
- começaram a ser ciosamente
regulamentadas (GAETA,1997).
[164]
com o padre né. Primeiramente é o padre que as ordens e a
autorização pra você poder conseguir fazer a festa”.
Tudo isso esconde, também, por outro lado, outro forte motivo da
instituição para a transformação das festas e destituição, por exemplo, das
folias: o do elemento econômico. Certos festejos e devoções de construções
historicamente populares (oriundos de uma perspectiva popular ibérica) foram
oficialmente patenteados pela Instituição religiosa (Igreja) e, com isso, os
direitos (simbólicos e/ou econômicos) ficam sob seu manto de custódia e
beneficio. Muitas vezes ouvi de sacerdotes e leigos a idéia de que a Folia traz
muitos problemas e um deles é certo prejuízo econômico – que pode ser
interpretado por uma quantia gasta pelos foliões para arrecadar a esmola. Se
houver folia, os foliões devem conciliar o cotidiano do trabalho e a esmola se
sustentando apenas com o dinheiro proveniente de seu suor cotidiano. Ouvi de
um folião que trabalha como agente de Pastoral: “O que é de Deus é de Deus e
a Igreja cuida”.
Apesar de defender uma prática religiosa mais “limpa” (asséptica), Seo
Pedro lembra-se, com certo sentimento, das andanças das folias:
“É hoje também é, você sai o ano inteiro. Por exemplo,
começava o ano você saia com a folia...Posava aqui, posava alí, o
ano inteiro ...esmolando,saindo como a gente fala...tradição dos
antigos...esmolando.Rodava...rodava aqui,hoje posava
aqui,amanhã posava em outro lugar,depois depois de amanhã
posava noutro bairro né, e fazia o município inteiro e saia do
município.Lá fui no município de Lagoinha,São Luís né,que ela
andava em Cunha,todo município ela andava.Hoje não,hoje tá cada
[165]
um faz seu município né,então hoje nóis sai com a bandeira do
Divino, que nem aqui eu peguei um bairro aqui vizinho aqui Pinheiro
aqui na divisa do Paraitinga e fui até o asfalto...esse é setor
meu,mas um dos sete setor, o município cada festeiro é dono de
uma parte...e se a festa do Divino antigamente era oito dias de
festa,então tinha oito dia de comida né,o pessoal ia cozinhar,oito
dia de festa.Hoje não,hoje é só no último dia da festa que dá
almoço,da almoço pra todo mundo mundo,é visitante é tanta
gente...”
Na verdade, a festa deve se tornar comportada e isso só acontece
quando se rompe com a realidade cultural e costumeira do homem simples que
ocupa o papel de folião. Censurar o folião é fundamental para construir o
comportamento da festa nos moldes ditos civilizados, padronizados de acordo
com os interesses da Igreja Católica institucional. Isso ocorre, por exemplo, em
outra fala de Seo Pedro sobre as folias, durante o período de arrecadação da
esmola para a Festa do Divino. A idéia de desprendimento é fundamental para
solapar os fundamentos das folias tradicionais – geralmente profissionalizadas:
“Era o trabalho deles, e naquela época eles tinha também hoje
aquela ordenadozinho - vamos falar a verdade... Hoje não, hoje
não, a gente faz a festa pelo amor do Divino, pelo amor do Divino
então a gente, por exemplo, se eu saio no meu carro vou andar e
tudo eu tiro a gasolina o resto tudo pela fé”.
Trabalhar por amor ao Divino, além de romper com as tradições
populares e concentrar a renda nas mãos do clero muito mais trabalho.
Certo festeiro uma vez em conversa afirmou:
[166]
“O negócio é dificultoso. É uma dificuldade... a coisa mudou... eu
achei 100% essa mudança da festa. Na época você tinha que
arrumar quatro foliões pra cantar, mais o carguereiro. Você pagava
tudo aquele povo e o povo era tudo recebia né. Hoje não, hoje sai
o festeiro com a bandeira, anda de carro, anda trinta, quarenta
casas por dia...”
Escolhidos criteriosamente pelo conselho da paróquia, os festeiros
devem ser a ponte entre os elementos culturais populares e os interesses da
paróquia, procurando harmonizar as possibilidades de conflitos encerradas nos
diferentes interesses em jogo. As capelas convivem entre a tradição de se
gastar a esmola em função da promessa e na expectativa de se fazer uma boa
festa para o santo, e o controle econômico da paróquia que, na realidade,
significa a centralização dos gastos dos recursos levantados inclusive para
aparelhar a comunidade: reforçá-la como instrumento de evangelização e
divulgação da com compra de aparelhos de som, instrumentos litúrgicos e
etc. O que para a paróquia significa controle racional dos gastos em função de
seus fins, para as comunidades rurais é controle e uso do dinheiro do santo. Na
ótica popular a esmola é para a festa e festejar o santo implica em utilizar todos
os recursos para este fim. Em depoimento tomado de Seu Pedro no bairro
Cachoeira dos Rodrigues, o mesmo afirma ser difícil conciliar os diferentes
interesses, porém defende a posição da Igreja na questão afirmando que:
“É por causa do jeito, não tava dando certo, as comunidade não
tava encaixando com o Padre. Então tem que pegar as normas da
cidade. “Vocês são obrigados a dar a cada festa 50%”. O que
adianta você fazer uma festa esbanjar todo o dinheiro? A
comunidade ficou em pé, então ele deu hora pra entender que os
[167]
50% eles diziam que o Padre levava 50%. Não! É da comunidade,
50% é pra voltar pra comunidade. Do Padre era 10% que é do
bispo né, 40% volta pra comunidade. Então eles queriam gastar
mais e o Padre não concordou”.
Essa desarticulação orgânica é fruto de visões diferentes entre as
lideranças paroquiais e população rural sobre os valores representados nas
devoções. Os valores vividos na devoção são os valores do dia-a-dia, da vida.
Geertz afirma que
a religião nunca é apenas metafísica, mas rodeada por uma
profunda seriedade moral em seus veículos e cultos; se pré possui
um sentido de obrigação (implicação prática e não apenas
emocional e/ou intelectual. Neste sentido, não é apenas
moralmente ética; fundamenta as exigências da ação humana no
contexto da existência
18
(GEERTZ,1989:143).
Os santos ou seres sobrenaturais educam e transmitem os valores do
grupo. Ao olharmos as construções imaginárias da população local,
percebemos a importância dessa relação educacional entre a devoção e o
homem da região. Os “Santos”, oficiais ou não, transmitem um conjunto de
práticas comportamentais que devem ser respeitadas e vividas. Seu poder
deriva de uma estrutura vivencial que leva cada um e a todos a se
comprometerem com o bem dos demais e do bairro e/ou comunidade. A
importância do elemento religioso na estruturação dos costumes das pessoas e
na ordenação do mundo social, negada por alguns teóricos para o mundo
contemporâneo, apesar de não ter a mesma influência do passado, ainda
18
Clifford Geertz, A Interpretação das Culturas, p.143. “Ainda segundo Geertz, “o ethos de um
povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seus estilo moral e estético, sua disposição;
atitude em relação a ele mesmo e as seu mundo que a vida reflete”.
[168]
insiste em delinear padrões de comportamento. Nesse sentido, procurarei
trabalhar o significado de se pertencer a esses grupos bem como os objetivos
de cada grupo além, é claro, de sua formação social e etária.
Na atualidade, a religiosidade popular que permeia a paisagem urbana
tem redefinido novos contornos. Em Cunha, por exemplo, a Secretaria de
Cultura organiza eventos nos meses de férias, que promovem o encontro de
Folias de Reis na cidade - janeiro, por conta da festa de reis e Folias do
Divino - julho, por conta da Festa do Divino na cidade. Tais eventos têm a
intenção oficial de mostrar aos turistas as tradições religiosas do lugar muito
mais do que ser um instrumento de resistência das práticas culturais locais. Em
seu texto, Machado afirma essa relação em função dos interesses externos
aos dos foliões.
“... os Encontros de Folias (Congado/Reis) se multiplicam em
cidades mineiras e do interior de São Paulo e Goiás. Parecem
grandes convenções mediadas pelo poder público e a Igreja
Católica. Do lado político se incentiva o turismo religioso, se
vende a festa como uma mercadoria que qualifica as cidades,
do lado dos capitães é uma oportunidade para confraternizar
com outras companhias, festejar, representar o nome da
cidade (MACHADO, 2007).
A autora insiste, e com grande razão, na idéia de que esse discurso que
folcloriza a religiosidade popular perde a dimensão histórica que atravessa tais
práticas, suas transformações e recriações. Contudo, intenção mesma é
congelar a tradição como folclore quando na verdade, a tradição, como suporte
para uma memória transgressorada ordem e do progresso imposto, retoma o
[169]
passado, não como rastros ou lembranças que se diluem no tempo, mas para
alimentar uma identidade cultural, consciente dos sofrimentos e perdas, porta-
voz de uma luta contra a alienação. (MACHADO, 2006) O entorno dos grupos
culturais de foliões existentes no município é marcado por este olhar folclórico.
Não é de se esperar que a fala sobre o tema seja a de “fim da tradição”.
Congela-se o real, o vivido em função de memórias que não possuem história;
tudo vira folclore, que é utilizado pelas secretarias de turismo para ser
transformado em souvenir expostos em prateleiras para serem adquiridos e/ou
apreciados.
Em minhas conversas com foliões do município, encontrei uma riqueza
muito grande de formas de prática ao redor destas folias. Ao chegar ao
cemitério de Cunha perguntei a um dos coveiros do mesmo, dentre outras
coisas, sobre a existência de folias na cidade. De pronto o mesmo respondeu:
Depende um pouco do que o senhor quer. Tem a folia do Chiquinho de Castro
com a irmã que chama de Nólia. Agora, pro interior tem outros tipos de folias...”
A expressão “... outros tipos de folias...” ficou meio no ar. Foi andando, me
informando, convivendo e entrevistando que descobri outros tipos. Na verdade,
ambas têm a função devocional na relação entre o homem e o sagrado, porém
a diferença acontece na estética das folias. Quando encontrei o Seu Chiquinho
de Castro em sua barbearia, um amigo meu, de pronto falou: Dois coelhos
com uma só cajadada. Você faz a entrevista e eu a barba”. Por mim ficou ainda
melhor, pois eu o entrevistara em seu ambiente natural de trabalho. Figura
atípica em relação ao espírito do cidadão cunhense, porém respeitada por
todos. Seu Chiquinho de imediato falou que tocava e muito bem violão,
entendia de música, cantava bem e dava uma força para a irmã, Nólia. “Faz 20
[170]
anos que toco nessa folia. Eu sou irmão da Nólia chefe da folia. Ela tem as
letra du verso tudo certinho, né. Aonde você canta... na porta, pra entrá... pra
esmola e agradece” (Seu Chiquinho de Castro). Na conversa com o
barbeiro descobri que seu outro irmão (Neto) também tem uma folia. Descobri
que a separação da folia se deu por conta de problemas existentes entre seus
dois irmãos: ... era junto, depois separou”. Muitas folias carregam consigo
problemas oriundos das relações sociais e econômicas existentes na realidade
cultural de seus participantes.
Uma vez conversando com o Pe. José Verreschi sobre o fim das festas
e sua permissão para o retorno, o mesmo afirmou que tentar fazer as coisas de
acordo com os padrões de uma elite cultural, acaba por desestruturar a forma
de construção das atividades culturais da população. Mesmo na questão
econômica a população tem sua forma “diferente” de se organizar e distribuir
suas contribuições. O mesmo afirmou que nosso “falso moralismo” acaba por
colocar limites à proliferação das atividades culturais populares e que isso
acaba escondendo essas práticas devocionais. Que o festeiro cuide da
festa...”, afirmou Pe. Verreschi que, por sua vez concluiu: “Descobri isso um
pouco tarde, mas a gente aprende...”
Voltando à fala de Seu Chiquinho de Castro, percebo que a folia sai por
um período longo, nem sempre de acordo com a tradição popular. Segundo
seu depoimento, a mesma começou a sair em 06 de dezembro de 2007 e
pretende ir até meados de fevereiro de 2008, ou enquanto o povo tiver dando a
esmola. Isso demonstra a força desses eventos da cultura popular. Apesar da
existência de poucas folias, a densidade dessas estruturas culturais é clara no
imaginário popular local. “Quem não gosta de uma folia?” Perguntava em tom
[171]
desafiante um folião local. “A gente canta em todos local. Cantemo na praça
aqui, cantemo na Igreja que o padre mondou cantá... “ Intervi: O padre
deixou...” De pronto respondeu Seu Chiquinho: “... Ô o padre deixa...o padre é
legal, as duas folia...” Aproveitar o pouco espaço oficial para a folia... astúcia
popular. “Aí sai pras casas né. Sai nove horas da noite e chega em casa uma
hora da manhã...” Não falta público para assistir a folia e rezar com os foliões.
Não falta esmola para Santo Reis e os foliões. Segundo o entrevistado os
foliões são remunerados (as folias tradicionais sempre remuneraram seus
foliões). Muitas vezes, aos olhos da Igreja, isso é uma prática escandalosa. A
esmola cabe ao santo e deve ser repartida com quem administra as coisas
do santo... A Igreja. Seu Chiquinho afirma: “Depois de pagar os foliões, dá uma
parte pra Igreja e guarda outra pra festa de Reis”. Quanto maior o tempo da
folia, maior a esmola e a festa. A data da festa de Reis é lembrada mas, em
muitos lugares (inclusive no Sul de Minas Gerais), a festa de Reis acontece
quando para acontecer, ou seja, os atributos da vida cotidiana moderna
muitas vezes interferem no calendário religioso, sem prejuízo para as práticas
devocionais que são administradas de acordo com a reconfiguração das novas
possibilidades urbanas e/ou rurais. Quando perguntamos sobre a existência de
uma contribuição para a Igreja, Seu Chiquinho respondeu: “... mas o padre
exige, né. É a contribuição para a Igreja que é para o Menino Jesus”. Meu
amigo interviu: “Ué, mais o menino Jesus vem antes da Igreja, né?” Todos nós
rimos espontaneamente. Esse riso demonstra a astúcia popular no trato com o
poder pois, afinal, repartir um pouco mais não é um problema tão grande
assim. Na realidade a contribuição para o Menino Deus acontece na festa de
Reis, no banquete popular feito com a esmola arrecadada. A Igreja, muitas
[172]
vezes, leva a sua parte e o povo, que não é ingênuo, sabe onde a tradição
coloca o menino: na real partilha popular (festa de Santo Reis).
Um pouco mais adiante, na conversa com Seu Chiquinho de Castro,
uma fala dele me intrigou. Perguntei: “Além dessas folias, no interior tem mais
folias?”. “Tem...”, disse ele, “... na roça tem. Folia da roça... a folia da roça é
aquela folia gritada, né, que ninguém entende nada, né. A folia não tem letra...
tem letra, mas é pra eles, pra nós não. Na nossa, a cantiga é forte.” E canta:
“Acorda quem ta dormindo,
Levanta quem ta acordado,
Venha ver o Deus Menino,
Na sua porta parado.”
Continua: acaba o verso, certo? A pessoa abre a porta, a folia entra.
Tem um presépio lá... (aponta) Saúda o presépio com algumas música...
para e fala pra pessoa esmola. Quem pode dar mais dá mais, quem é
mais fraco dá menos... aí nós agradecemos...” E canta novamente uma estrofe:
“Agradeço a boa oferta,
Dada de bom coração...”
Volta a falar: “... a folia vai. É tudo ensaiadinho, tudo ensaiadinho. Eu
que faço os arranjinho. Toco violão desde os dez anos. Toco violão que
gosto”.
Quando afirmei ter ficado intrigado, me referi à fala em que afirma sobre
a folia da roça (dando ênfase no fato de ser rural) que “... a folia da roça é
aquela folia gritada, né, que ninguém entende nada, né. A folia não tem letra...
tem letra, mas é pra eles, pra nós não. Na nossa, a cantiga é forte.” Parece
[173]
haver certa assepsia no cantar e na apresentação. A folia precisa ser
entendida, inclusive para arrecadar a esmola e agradecer. Daí cantar para ser
entendido, diferente da tradição dos cantos populares de folia que, na maioria
das vezes, não são entendidos pelas pessoas e, nem por isso, as pessoas
reclamam. Dá-me a impressão de ser uma folia para a sustentação da tradição
folclórica, para o turismo e turistas. A secretaria da cultura, neste início de
2008, trouxe para as suas apresentações oficiais apenas essas duas folias da
cidade. Parece-me que é necessária uma limpeza na estética cultural da folia
para que o turista se agrade da mesma.
Como Clifford Geertz, costumo afirmar que é mais difícil lidar
cientificamente com as idéias do que com as relações econômicas,
políticas e sociais(GEERTZ, 1989:227). Difícil (e encontrando-se, por
isso, numa situação duplamente periférica) é a análise das formas
culturais cotidianas, pois estas se movem, no terreno do implícito, do
não sistemático, do não-dito, do não discursivo. Como explicar atitude
da folia da cidade? Uma ruptura com a tradição? Ou um modo astuto de
lidar com a sobrevivência cultural, cedendo no campo de sua estética,
para evidenciar o que é mais profundo: a gratidão a Santo Reis e a Deus
Menino? Novamente remonto ao pensamento de Geertz que, ao
contrário das correntes hermenêuticas, defende o carácter construído
dos dados e a análise cultural como sendo duplamente interpretativa,
pois analisamos através das nossas construções outras construções,
forjadas no permanente fluir das práticas sociais. A análise cultural
consiste, por isso, num conjunto de explicações de explicações. As
explicações de segundo grau, construções do analista, selecionam e dão
[174]
coerência às explicações que os agentes fornecem sobre as suas
próprias condutas.
Acredito que Seu Chiquinho age com os olhos voltados para a
permanência cotidiana da Folia de Reis, se acomodando, de modo
estratégico, no espaço cedido pelas autoridades na realidade urbana
que a modernidade forjou. Mesmo porque em determinado momento da
entrevista, quando perguntei sobre a existência das Folias do Divino, o
mesmo afirmou:Existem quatro. Tudo da roça, tudo da roça. Mas é
gostoso viu.Eu gosto... Acredito que se possa falar aqui em uma poética
de resistência popular, pois a tradição se elabora e se recria no tempo e no
espaço, no aqui que nos mistura ao distante e no agora que nos emaranha a
um passado. A tradição criada localmente pode servir de resistência à difusão
das instituições universalizadas pela cultura. Quando cede, não morre, se
embaralha e continua vivendo de forma reconfigurada. Esses foliões são
guardiães da memória e do ritual e estão sempre interpretando os laços que
ligam o presente ao passado, nos rituais vivenciados no cotidiano da cultura.
São os mediadores ou agentes que podem costurar as histórias fundadoras
dos lugares e das tradições que, a partir de suas interpretações, estão sempre
mudando (MAIA e KRAPP, 2006). Um acontecimento que, aparentemente,
introduz mudança não implica, necessariamente, em perda de traços culturais
ou da identidade cultural, mas sim - conforme o significado ou a interpretação
que se tem do acontecimento, mediante a cultura e a própria definição do que,
de modo prático, venha a ser a tradição - em produção e reprodução da cultura
e da própria identidade cultural de uma sociedade.
[175]
Realidade diferente encontrei no Bairro da Barra do Bié. Bairro retirado
da cidade, uns quinze quilometros de asfalto no sentido de Parati, mais um
mesmo tanto de estrada de terra à direita. Por ser um bairro retirado, como
tantos outros no município de Cunha, até que as condições de tráfego não são
tão ruins. Chegando fui procurar pelos mestres foliões. De cara encontrei o
Ditão e horas mais tarde chegava outro mestre e folião da Folia do Divino da
Barra. Uma das primeiras novidades foi saber que, como a folia de reis de
Cunha, a do bairro também não possuía um palhaço
19
. A assepcia parece
acontecer de forma concreta aqui. O mais próximo que consegui chegar para
entender o motivo da ausência dessa figura foi a idéia de que a mesma
significa a presença do demônio e isso não é bom. O engraçado foi que, ao
falar sobre outras folias que trabalham com a figura, um folião da Barra
respondeu que não usava na folia mas que achava muito bonito e que era
difícil encontrar uma pessoa que tivesse tal desenvoltura.
19
O palhaço é uma figura enigmática e alegre. Personagem contraditória, é a mais rejeitada
pela folia. Muitos mestres dizem que suas brincadeiras não são compreendidas pelo povo e
acabam se tornando motivo de confusão. Também argumentam que a irreverência do palhaço
compromete o caráter solene da folia e que sua máscara caricata provoca medo e afasta as
crianças da festa. As representações simbólicas e as funções desempenhadas por ele são
ambíguas. Para alguns ele representa Satanás ou Herodes. Para outros, eles representam
homens que se vestiam de palhaços para atrapalhar e despistar o rei e seus soldados na
perseguição ao menino Jesus. Entre os foliões, é considerado como um soldado dissimulado,
com as funções de proteger os Reis Magos e confundir os soldados de Herodes que
pretendiam sacrificar Jesus.
Para alguns foliões, palhaço tem a sua explicação. Quando Jesus nasceu, o palhaço
fazia gracinhas para os soldados romanos, entretinha-os enquanto Nossa Senhora escapava
com o menino.
De fato, no imaginário da folias o palhaço também era espião de Herodes e acompanhava os
reis magos para encontrar o menino Jesus e o entregar aos romanos. Mas no caminho,
arrependido, ele se converte ao cristianismo. Na única ocasião que lhe é permitido se
aproximar do presépio na festa de entrega da bandeira, o palhaço pede perdão. Nos rituais seu
símbolo esligado às crianças e brincadeiras, servem para socializá-las nos rituais. Também
são eles que providenciam abrigos, observam qual casa está esperando a folia, buscam saber
se a frente das casas possuem símbolos (isso é importante para saber que tipo de verso o
capitão vai cantar).
De acordo com muitos foliões, o palhaço não chega de máscara perto do presépio, seu
significado é de atrair para a máscara qualquer mal enviado à folia e seus integrantes. A
maioria das folias de Cunha não tem palhaço mas conhece a sua tradição.
[176]
No caso da Folia do Divino, um dos mestres afirmou que hoje em dia é
muito difícil encontrar uma folia que percorra oito ou nove meses do ano,
esmolando prenda para a festa do Divino durante os dias de semana e finais
de semana. Antigamente, dizia o mesmo mestre, os foliões recebiam para
esmolar e passavam muito tempo fora. Hoje em dia as poucas folias existentes
saem apenas aos finais de semana nos bairros do município, esmolando para
a festa, porém não pousam nem recebem para tal intento. Acredito que se a
Igreja Católica, na figura de seus representantes autorizar, novamente, o giro
das foliões profissionalizados, ou seja, recebendo pelo trabalho, haverá um
aumento considerável do número de Folias do Divino circulando pelo
município.
As Funções dos participantes variam conforme a realidade local da Folia. Mas,
em geral, possuem elementos comuns como:
Festeiro: prepara a festa de encerramento;
Folião: os integrantes das músicas e danças;
Embaixador: responsável por esclarecer aos foliões as normas a serem
seguidas durante o giro e na condução da cantoria;
Alferes: conduz a bandeira, orienta as pessoas das casas que os
recebem e recolhe as doações;
Os palhaços: podem representar os Reis Magos como também o Rei
Herodes ou seus soldados. Isto é, podem simbolizar o perseguidor ou
protetor do menino Jesus.
Gerente do giro: elabora o roteiro do percurso.
[177]
As atividades das Folias (Reis ou Divino), assim como diversos
elementos da cultura popular, vêm sofrendo modificações em virtude da
migração do homem para a cidade e da invasão de elementos urbanos nas
regiões rurais. A Folia de Reis, se deslocada de seu contexto de origem, pode
tomar outro valor e, por vezes, outro sentido. Os foliões estão ligados
diretamente com sua cultura tradicional, mas muitas vezes o traduzidos
pelos meios de comunicação e pela própria população, de maneiras totalmente
diferentes, contrárias a uma série de valores que lhes são próprios e próprios
de sua cultura. Parto do entendimento segundo o qual as manifestações das
Folias estão impregnadas de ritos em constante criação, recriação e
adaptação, de acordo com a dinâmica da sociedade, e ao mesmo tempo, pelo
valor semântico que os dançadores atribuem a eles e que também não é
estático e estanque em si mesmo, mas dinâmico e se reelabora de acordo com
o movimento da sociedade. Muitas vezes, quando o festeiro não tem acesso a
alguma folia, o mesmo sai com a bandeira fazendo aquilo que a folia fazia o
bem.
A princípio, um intérprete que não conhece tão bem o município poderia
afirmar que o declínio do número de folias representa, de fato, o fim de uma
tradição popular que tem seus dias contados. Porém acredito que o quantitativo
é relativo para se entender o que se passa nessa realidade. Não para
afirmar sobre a importância das folias, no imaginário religioso popular de
Cunha, somente a partir da quantidade de folias existentes no município. Fato
que corrobora tal afirmação está na fala de um folião da Barra que afirmou ser
a Folia o principal pilar de sustentação para a festa do Divino. Ninguém
arrecada igual à folia. Apesar de serem poucas, as folias têm um lugar
[178]
importante no imaginário da população local. Segundo esse mesmo folião,
pode juntar vários festeiros que esses, juntos, o arrecadam a metade que a
folia da Barra consegue arrecadar. Acredito que o processo de sensibilização
da folia no imaginário dos sitiantes locais seja fruto de sua importância cultural.
Ainda há espaço para as tradições da população local.
Quem recebe o grupo da folia é obrigado por devoção a dar aos foliões
uma acolhida especial. É a hora de receber a bandeira, um símbolo que
contém um grande significado místico. É o motivo principal da folia. A bandeira
deve trazer a estrela, ou no caso da Folia do Divino, a imagem do Divino. Ela é
a guia. Tem de ser ‘passada’ de ano a ano. Senão fica ‘enterrada’. A pessoa
pode adoecer, acontece coisa ruim com a família. Esse símbolo sagrado
permanece em um lugar especial, depois de passar pela louvação da folia.
Depois a dona da casa leva a bandeira em todos os cômodos da casa, para
abençoá-los e para abençoar cada membro da família. Esta é a parte de uma
longa louvação.
Reza a tradição que, quem sai numa folia uma vez, te de participar
dela sete anos seguidos, embora grande parte se associe a ela definitivamente.
Nestes momentos de festa e devoção, os sujeitos das folias, em geral gente
modesta que mora no campo ou nas periferias das cidades, entretecem uma
identidade que pode consolidar as relações de amizade, parentesco e
vizinhança. É o momento de compartilharem os tons da vida de cada um, suas
experiências familiares, profissionais, amorosas, aquelas que são de sorte ou
de azar, o sucesso ou o desencanto e, sobretudo, a esperança.
Essas práticas são importantes, pois, numa época em que a
globalização é um lugar comum, mas em que se reavivam, por oposição,
[179]
localismos e paroquialismos vários, nada como a temporalidade para traçar
linhas de continuidade e ruptura, identificar persistências estruturais, dar o
devido valor a conjunturas ou episódios esporádicos, que ainda revelam a
presença de elementos humanizantes presentes na tradição popular.
Rompendo com as fronteiras das religiões institucionalizadas, o
catolicismo tradicional ou arcaico estabelece uma religiosidade múltipla e
diversificada, distante do dogmatismo oficial, mas com ele muitas vezes
dialogando. Neste espaço de crenças os sujeitos sociais estabelecem um
vínculo com a natureza, da qual são parte integrante; corpo e espírito, o real e
o sobrenatural integram e compõem o universo criado por Deus. O lugar do
sagrado realiza as graças que permitem a sobrevivência numa sociedade
injusta e desigual, o lugar do profano reconcilia o indivíduo no seu coletivo, no
qual compartilha o encontro, a festa, a comida. Quase sempre este vínculo
entre o sagrado e o profano se articula propiciando momentos nos quais
recompõe a vida e sua identidade social (BRANDÃO, 1989).
Tais práticas culturais permitem manter laços de sociabilidades e reaver
uma identidade partida que resguarda a identidade social de uma alienação
ameaçadora. Refletem situações concretas, são práticas de um mundo real,
foram construídas, estão entremeadas no cotidiano, no fazer do dia a dia dos
seres humanos. Podem a estar inscritas na cronologia de eventos
comemorativos criados por órgãos oficiais, que priorizam e estabelecem ao
sabor de suas conveniências um calendário cultural regional ou local. A
sobrevivência de um tempo na contemporaneidade não nos deixa órfãos de
história, dão um sentido a nossa existência, a nossa paisagem, cujo mapa
[180]
permite localizar lugares significativos e nele a possibilidade de nos vermos
como nós. (STEIL, 2001)
Para os foliões, a folia é tradição. Patrimônio cultural que transmitem aos
filhos e compartilham com os amigos. Festa que reverencia os valores cristãos
e preserva a identidade de seus adeptos. A maioria é gente simples, que teve
de deixar o campo e hoje mora na periferia da cidade.
O antropólogo Jadir Pessoa (1999) afirma que ainda que a globalização
ganhe estrondosas forças, as tradições e festas populares devem permanecer,
por fazerem parte da construção da identidade dos goianos. O antropólogo
afirma que as manifestações que não têm função social na cultura popular
desaparecem, de modo que manter tradições como Folia de Reis, Cavalhadas,
quadrilhas, terços e rezas depende da continuação de sua função social.
Quanto mais se desenvolve a globalização, mais se fortalece a desagregação,
mas as pessoas continuam buscando festas populares por necessitarem de
espaços e ambientes agregadores para a vida social. Além disso, geralmente
as festas populares criam um sentimento de pertença, utilidade e
reconhecimento nas pessoas.
A Folia de Reis é um testemunho vivo da tradição que é passada de pais
para filhos e assim, sucessivamente. No entanto, como a cultura não pode ser
congelada, a própria tradição a faz-se dinâmica porque as pessoas não se
limitam apenas a reproduzir, mas a construir, através de sua subjetividade, de
sua interpretação e ressignificação uma realidade simbólica.
[181]
3.3.3 Os ex votos e as capelas de “santa cruz”.
"Nesta estrada tem congada
Folia de Reis, Tambu e tropeiro.
Passa a viola com fita encarnada
E passa a infância que o tempo passou
E a Santa Cruz de imagens quebradas
Que sabe calada
Quem morreu quem matou (...)"
Gildes Bezerra.
É possível fazer uma etnografia do olhar na cultura das populações
rústicas do Brasil. No momento da morte, o crucifixo ou o santo de devoção do
moribundo é para ser visto, tocado e beijado no momento extremo, um modo
de ocupar os sentidos no instante do perigo maior. Esse é o momento supremo
do visível, justamente quando o visível se nega no invisível das ocultações
próprias dessa realidade vivida. Nega-se a morte ou o esquecimento no que
tem visibilidade unicamente através da fé. É com este espírito que pretendo
trabalhar uma leitura da religiosidade mostrada em alguns pontos de estradas
do município de Cunha. Na verdade os ex-votos são objetos visuais
produzidos com a finalidade de agradecer uma graça alcançada ou relembrar
fatos religiosos anteriores como elemento de memorização do mesmo.
Estamos diante de uma forma de manifestação imagética em que os fins para
os quais se destina importavam mais do que seus aspectos estéticos. Nesse
sentido, importa resgatar aqui o que Peter Burke denominou de "contexto
social" da imagem, ou seja, as circunstâncias nas quais ela foi encomendada,
[182]
bem como o contexto material e o local onde se desejava exibi-la. Em outras
palavras, dar conta das formas de produção, circulação e consumo dos meios
visuais. Vou documentar visualmente e contextualizar essas formas de
expressão religiosa.
A princípio, parece ser fácil localizar e identificar as várias capelinhas ou
“santa cruz” existentes nas estradas do município, porém descobri que a
quantidade supera, e muito, o que esperava encontrar. Uma vez, junto com um
amigo no cemitério de Cunha, encontrei um senhor que, ao ser perguntado
sobre a região em que havia mais dessas capelinhas ou “santa cruz”, o
mesmo, de imediato, respondeu: Na Bocaina... é tanta Santa Cruz que parece
até que tem um vilarejo delas...”. Uma região marcada pela violência gera
mortes que têm nessa quantidade de “santa cruz” um testemunho da realidade
social histórica encontrada pelos bairros do município.
Toda “Santa Cruz” existe a partir de uma história particular e a prática de
sua existência, presente em maior ou menor grau na região, é fruto de um
catolicismo que aposta em seus símbolos para ser ponte entre o homem e o
Sagrado. Presença testemunhal de fatos históricos envolvendo entes queridos,
as mesmas são cuidadas para que a memória não se perca. Não apenas os
familiares têm acesso a essas histórias, na maioria dos casos a própria
comunidade tem ciência dos fatos desenrolados ao redor daquele espaço. Em
Cunha, na maioria das vezes, encontramos pessoas que sabiam narrar os
fatos que se referiam à existência daquele espaço religioso, sem pertencer à
família ou à época em que tal fato aconteceu. Isto é sinal de que a memória é
mantida viva através dos relatos orais familiares ou comunitários e de que,
[183]
conseqüentemente, este elemento religioso ainda tem um grande
reconhecimento no imaginário religioso local.
Figura 1
Interior de capelinha de Santa Cruz no caminho para o bairro Cachoeira dos Rodrigues.
Ao redor das mesmas os moradores ainda acendem velas e devolvem
seus santos quebrados ao “espaço sagrado” para que não sejam encontrados
nos lixos do município.
Figura 2
Interior de capelinha de Santa Cruz no caminho para o bairro Cachoeira dos Rodrigues.
[184]
Os símbolos, quando utilizados nas devoções, expressam realidades
vivenciadas e desejadas, presentes em cada ex-voto. Todos m única
preocupação, que é o sentido de dignificar aquele que caminha no mundo de
injustiças em direção ao Sagrado. Possibilita experimentar a existência de
forma mais profunda e é uma nova linguagem, que vai além da realidade
quotidiana, transmitindo sentimentos, sonhos, pensamentos, fé e utopia, e
provoca a convocação de pessoas. Os devotos encontram recursos para
relacionarem-se efetiva e afetivamente com o Santificado e fazer memória
deste relacionamento.
Figura 3
Santa Cruz na Rodovia Paulo Virgílio.
Esta capelinha de “santa cruz” fica no Km 35, 5 da rodovia que liga o
município de Guaratinguetá ao de Cunha. Uns 4 km depois eu precisei parar o
carro e perguntei a uma pessoa da região sobre a mesma e ela me descreveu
o ocorrido naquele lugar.
[185]
Figura 4
Bairro do Cume, caminho para o vale das cachoeiras.
Esta, por sua vez fica na estrada de terra que liga Cunha às cachoeiras
do Desterro e Pimenta. Um sitiante local fez questão de contar a história da
morte de um dos jogadores de futebol de um time da cidade, que foi disputar
uma partida na região em um dia chuvoso. No retorno, ao tentar desatolar o
caminhão, o mesmo acabou matando um desses jogadores. Apesar da
distância histórica em relação ao fato (1945), a população local guarda a
memória do ocorrido e representado naquele símbolo de devoção da família da
vítima que, ao fim, se torna um símbolo do bairro e sua história vai além da
vizinhança.
[186]
Figura 5
Os símbolos, quando utilizados nas devoções, expressam realidades vivenciadas e desejadas, presentes
em cada ex-voto.
Os registros da consciência se movem em torno das representações da
repetição e da diferença que estabelecemos sobre e com os fenômenos, como
registros de nossa própria consciência de continuidade e de mudança. O
passado deixa de ser “o passado imediato da retenção [para ser] o passado
reflexivo da representação” (DELEUZE, 1988:129); da mesma forma, essa
mudança projeta-se na relação entre o futuro imediato da antecipação e o
futuro reflexivo da previsão.
A preservação deste patrimônio cultural religioso é marcada pela
flexibilidade na explanação sobre o ocorrido. A construção imaginária do fato
ganha contornos diferentes (embora preservando o elemento básico na
história: o fato em si) dos que a tradição familiar enuncia. Isso ocorre sem
maiores problemas.
“Na imaginária da devoção, a figura, os motivos e os temas aos
que está associada, estão sujeitos a variações, adequações e
[187]
modas, tributárias da estética determinada pelo projeto de
comunicação que conduz a devoção. O que é admitido sem muita
dificuldade pelos devotos.” (LONDOÑO, 2000, p. 257-258).
Uma coisa que marca a fala sobre as histórias existentes em cada
pequeno monumento destes é a emoção de quem conta o fato ocorrido. Numa
sociedade em que a racionalidade instrumental leva a uma fuga dos elementos
constitutivos de sentido de coesão de mundo, ao esvaziamento simbólico do
universo, se implanta o surgimento das emoções como forma de expressão
religiosa, pois a necessidade de significação e identificação não desaparecem
no homem contemporâneo, como não desaparecem os sentidos e os
fundamentos transcendentes à sua existência.
Quem vai (morre e parte para melhor...) fica no símbolo reverenciado,
assim como o mesmo, com suas histórias, tem o poder de educar novas
gerações. Uma senhora à beira da Rodovia Paulo Virgílio me falava sobre uma
destas capelinhas construídas após morte de um senhor em um acidente:
Sempre falo pros meus filhos... conto sempre esse fato... bebida e volante não
certo. Ta o exemplo, né?” Elas não existem à toa e são criadas
significações variadas a respeito delas em vários bairros do município.
[188]
Figura 6
A foto revela as relações entre a tradição e a modernização religiosa centrada na
racionalidade.
Gostaria de encerrar esta parte do texto, com a foto que acrescento
como figura 6, tirada em uma santa cruz a caminho do Bairro Cachoeira dos
Rodrigues, como elemento revelador das trocas simbólicas presentes de forma
tranqüila no cotidiano daquela população católica. Uma outra imagem esta
infelizmente não tenho que marcou minhas andanças, foi a que encontrei na
parede de uma humilde casa no bairro da Várzea do Gouveia, na qual, lado a
lado, conviviam uma foto do Pe. Marcelo Rossi, e uma imagem de Mariinha
das Três Pontes. Essa visão marcou minhas andanças e acredito que nunca
irei esquecê-la.
[189]
3.3.4 Curandeiros (as) e benzedores (as).
Outra dimensão do catolicismo tradicional, que ainda persiste no cenário
urbano, é a prática da benzeção e do curandeirismo que, diferentemente das
festas e das romarias, pressupõe vínculos pessoais nas comunidades locais e
na vida familiar. Os sujeitos dessas práticas acreditam serem detentores de
poderes e forças sobrenaturais, quase sempre recebidos como missão e dom,
por isso mesmo são intermediários entre o sagrado e o profano e o seu
reconhecimento e sua identidade provêm do grupo social de origem.
(MACHADO, 1997)
O sentido dessas práticas curativas advém da sua eficácia simbólica que
privilegiam aqueles portadores da fé. Estes agentes religiosos leigos, em
contrapartida ao seu poder de cura, não podem obter lucro de sua atividade,
antes de tudo compartilham com o outro não só o seu ritual de magia e preces,
mas também a certeza de que para curar o corpo é preciso curar a alma. Para
tanto, laços de afetividade e solidariedade se estabelecem e as frustrações, as
decepções, a dor e os sofrimentos se articulam numa rede de significados,
onde o mal pode ser vencido e a esperança se anuncia.
Ainda hoje, quando percorremos o município, em todos os cantos
encontramos pessoas que se dizem curadas ou defendidas espiritualmente por
curandeiros (as) e/ou benzedeiros (as). Apesar do avanço das políticas
públicas na área de saúde, a procura por essas pessoas carismaticamente
constituídas ainda é notória. Porém, não encontramos em quantidade como
encontrava-se no passado. Hoje, sabemos pelos próprios benzedores, poucas
são as pessoas que se habilitam a dar orientações espirituais diante da
questão da doença.
[190]
Podemos dividir os curadores em três categorias que o próprio povo
distingue, de acordo com as técnicas empregadas e o grau de poder mágico
que possuem. Alguns se limitam a receitar ervas medicinais e também alguns
“remédios de farmácia”. Parece que, no entanto, ambos os elementos
caracterizam a grande maioria das mezinhas usuais, quer na dosagem, quer na
escolha de alguns ou de todos os ingredientes, quer, enfim nas técnicas
adotadas para o preparo das ervas. curadores que recomendam
“remédios” e benzeduras, mas no caso de se tratar de “doença de Deus”.
Não tratam “coisa feita”, quer dizer, moléstias decorrentes de feitiço, coisas
ligadas ao mal ou advindas de um mundo em que Deus não se encontre.
Existe, enfim, pequeno número de curadores que trata qualquer doente,
empregando os recursos mais variados, desde ervas medicinais e
medicamentos homeopáticos aas benzeduras mais poderosas indicadas em
caso de feitiço, mandingas feitas por outros. (WILLEMS, 1947:118) De todos os
três tipos citados o que mais encontramos hoje, até mesmo por serem mais
procurados, é o segundo (que mistura remédios e benzedura). Isto se deve ao
fato de que quem os procura quer, na realidade, ainda hoje, algo que seja
alternativo à medicina encontrada com maior freqüência do que em outros
tempos, seja por recomendação de parentes, seja por frustração diante da
realidade das políticas de saúde encontradas no Brasil.
Caso interessante se deu quando da entrevista com o Sr. Julio Alves dos
Santos, morador da cidade que teve o início de suas atividades de benzimento
no interior do município, especificamente no bairro do Monjolo. Em sua
entrevista, sempre procura trabalhar a idéia que é Deus quem cura, ele é
apenas o intermediário. Gostaria de expor aqui alguns elementos de sua
[191]
entrevista, para mostrar a tendência de defensividade no que concerne ao tipo
de benzimento e trabalho feito com as pessoas da região. Uma coisa sempre
alegada é o fato que no início tudo aconteceu pelo fato de “naquele tempo” não
existir “doutor” atendendo na região... “Eu fazia benzimento pra dor de cabeça,
pra dor de ouvido por que aquele tempo não tinha doutor, entendeu?”
O início dos feitos sempre tem estreita relação com símbolos sagrados,
ligados a um ancestral que transmite a sabedoria da relação vertical com o
transcendente.
A minha mãe tinha me dado uma cruz, ela já benzia, dava
remédio. Eu comecei assim, vendo ela fazer também... eu gostei
e parece que Deus me abençoou que o Dom era pra aquilo e eu
comecei a fazer, entendeu com é que é? Quando eu tinha mais
ou menos 25 anos e morava num bairro na roça, as pessoas
vinham pedir pra fazer o benzimento. Eu falo oração, mas eles
falavam benzimento. (Sr. JULIO ALVES)
As figuras carismaticamente constituídas assumem o Dom. Segundo
Weber o carisma pode ser adquirido por meios extracotidianos e trabalhado
desde que acordado com a comunidade que o circunda, por isso a importância
de assumir o “dom” estrategicamente dado por Deus.
“O carisma pode ser um dom pura e simplesmente vinculado
ao objeto ou à pessoa que por natureza o possui e que por nada
pode ser adquirido. Ou pode e precisa ser proporcionado ao objeto
ou à pessoa de modo artificial, por meios extracotidianos”. (WEBER,
1991: 280)
Nas religiões mágicas este carisma se concentra na figura do mago. O
mesmo é uma figura qualificada permanentemente do carisma, o que o
[192]
diferencia das pessoas comuns. Para manter o carisma e, conseqüentemente,
seu poder, seu saber torna-se um “saber secreto”.
“... os carismas mágicos inerentes a seres humanos
limitam-se a pessoas especialmente qualificadas, constituindo
assim a base mais antiga de todas as profissões - do mago
profissional. O mago é uma pessoa carismaticamente
qualificada de modo permanente, em oposição à pessoa
comum, o leigo, no sentido mágico do conceito. Requisitou
para si particularmente o estado que especificamente
representa ou transmite o carisma, o êxtase, como objeto de
um empreendimento. Ao leigo o êxtase é acessível como
fenômeno ocasional”. (WEBER, 1991: 280)
No caso dos benzedores esse saber o é secreto mas a força da
figura o torna carismaticamente instituído. É necessário assumir a eficácia em
suas relações com as demais pessoas da comunidade.
Agora, o benzimento bom de fazer, a gente concentra o
pensamento em Deus e faz o pedido e é aceito, entendeu? O
pedido vai pra milhões de pessoas... que... nossa nem sei a
quantidade de pessoas que procuraram e todos disseram que
deram certo. È dificilmente tem um dia que ninguém procura...
num sei quantos anos que não passa um dia que ninguém
procura pra fazer o benzimento. (Sr. JULIO ALVES)
A princípio o entrevistado, dentro de uma lógica de defesa, não admite
falar em benzimento “... eles falavam benzimento.” O mesmo começava
curando coisas simples, porém:
[193]
“Depois passou o pessoal a procurar, quando mulher ficava ruim
pra ter o parto, pra fazer oração. Se não fizesse oração a mulher
ficava difícil pra ter o filho... eu fazia oração e dava certo,
sempre deu certo. Fazia a oração dava meia hora, uma hora,
quinze minutos, a mulher tinha o filho”. (Sr. JULIO ALVES)
Na medida em que a entrevista transcorre, o entrevistado fica mais
tranqüilo e começa a agregar valor aos seus feitos. Talvez isto aconteça por
causa de uma maior autonomia diante da questão religiosa. O indivíduo sente
mais à vontade para assumir seus feitos sobrenaturais.
Depois veio o pessoal procurando... depois veio pedindo o
benzimento pra criança que tem sapinho, pra dor no corpo, pra
mau olhado que eles trata aqui que a criança fica doente e faço
simpatia também pra quando tem “rotura no umbigo da criança,
que o médico fala que tem que operar. Vem aqui, eu faço uma
simpatia, e o umbigo da criança sara, o véu da barriga consegue
fechar de novo. Faço benzimento pra sapinho... sapinho é um
troço que na boca da criança que o médico remédio e as
vezes não certo e chega aqui faz o benzimento e some, daí
já sara. Pra pessoa que tem um dor no corpo... (Sr. JULIO
ALVES)
ao final da entrevista Seu Julio observa que os poderes são ainda
maiores e que pode lidar com coisas que outros benzedores nem sempre
admitem realizar:
“pessoa que tem encosto ruim, que tem mal espírito então vem
aqui eu faço oração e o espírito não volta mais no corpo...
Pessoas que não têm fé em Deus então ataca esses
problemas”. (Sr. JULIO ALVES)
[194]
Interessante é sua capacidade em admitir um grau de interação que cria
uma interação com o sagrado, que vai além do elemento magicamente
constituído, seja na repetição de orações, seja em suas finalidades. Os ritos
destrutivos, como Willems costuma classificar em seu texto, o eram
atribuídos a qualquer curandeiro poderoso, mas ao anonimato. Além disso, o
anonimato é facilitado no discurso pois, nesta ótica, qualquer pessoa pode
possuir “qualidades mágicas que, a todo momento exigem medidas de
precaução e defesa”.
Seu Julio afirma que não faz orações comuns aos católicos em seu
cotidiano, o mesmo afirma uma interação maior com o sagrado
“O povo procura, quando não é eu é outro qualquer, outra
pessoa que faz o benzimento e oração... que eu não faço
oração com Pai Nosso, Ave Maria e essas coisas, não faço.
Faço é que eu coloco a mente em Deus e faço o pedido,
entendeu?” (Sr. JULIO ALVES)
Na realidade, em toda fala sobre a sobrevivência da tradição dos
curandeiros, uma preocupação com o futuro. Essa preocupação é
sintomática na medida em que delimita um campo estreito para a sobrevida
desta tradição. As investidas do complexo de ampliação do processo de
racionalização têm seu grau de influência, e o podemos negar o fato de que
os mais jovens não se interessam tanto mais pelo saber desta tradição
ancestral. Apesar de tal fato, a população ainda procura pelos seus elementos
religiosos populares, carismaticamente constituídos dentro do processo cultural
da região, conforme relata seu Julio:
“Aqui ainda tem bastante gente que procura... mas ta acabando.
Ta acabando por que os mais novos não sei se não tem o dom
[195]
pra isso. Mas o povo procura permanente, entendeu? O
problema ta na continuação. O povo procura, quando não é eu é
outro qualquer, outra pessoa que faz o benzimento e oração”.
(Sr. JULIO ALVES)
Quando falamos em procura por benzedores não podemos excluir
qualquer perspectiva de setores sociais existente no município, embora a
população mais carente seja a que mais procura pelos benzedores, devido,
inclusive, ao fato de que suas necessidades materiais são maiores que as
necessidades de outros setores. As diferenças sociais não separam as
religiões e crenças de maneira estanque, como se não tivessem vínculos
verticais que permitam e promovam a comunicação entre classes distintas. A
comunicação se faz de modo circular. Dentro do campo da produção
acadêmica, me amparo na teoria da circularidade cultural proposta por Carlo
Ginsburg, retirada a partir dos escritos de Bakhtin.
20
(GINSBURG, 1989)
Os sistemas de crenças e de práticas dos benzedores de Cunha muito
se aproximam de outros descritos na literatura a respeito, inclusive quanto a
essa convivência/confronto com diferentes sistemas concomitantes de cura.
Essa convivência/confronto pode ser encontrada em uma série de depoimentos
colhidos mesmo quando o tema da entrevista não se direciona para o assunto.
Emílio Willems já publicava relatos sobre essa relação:
“Qual é a atitude diante do médico? É crença bastante generalizada de
que ‘o curador não dando volta , nem o médico’. Muitas vezes ‘quando o
20
Carlo Ginzburg trabalha o conceito de “circularidade cultural” (ver capítulo primeiro). Neste
sentido, é importante, no campo da produção historiográfica brasileira, conferir também o texto
de Ronaldo Vainfas - A Hereisa dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São
Paulo, Cia das Letras, 1995 - e de Plínio Freire Gomes - Um Herege vai ao Paraíso:
Cosmologia de um ex-colono condenado pela inquisição 91680 1744). São Paulo, Cia das
Letras, 1997.
[196]
médico não conta, eles procuram o curador’ (...) Um velho cunhense
nos confiou que ‘é costume chamar o doutô, mas por trás da porta vem
o curadô e cura, e isso fica sendo o doutô quem curou. O povo quase
todo crê, mas fazem às escondidas do doutô. Agora mesmo o Carlo
Souza, vendo que com o doutô não sarava, mandou na Mariquinha das
Três Pontes e curou-se. O médico daqui pensa que foi ele quem curou’”.
(WILLEMS, 1947)
Na ótica da tradição dos benzedores de Cunha, “o benzimento é um
socorro” (tratamento/solução) frente a algum mal, mas que funciona através
de Deus e da que nele tem o benzedor que socorre e o cliente que é
socorrido. A fé em Deus é mediada por alguma religião na linha da
religiosidade popular. Um dado importante sempre observado é que em Cunha
e, acredito não ser diferente na maioria dos casos estudados esses
benzedores são provenientes das camadas populares da sociedade. Mas não
podemos restringir a procura aos curandeiros, como afirmei, apenas a
pessoas sem condições econômicas ou oriundas das camadas populares: “Há
muita gente boa aqui na cidade que procura o curandeiro”.
Além da defensividade, podemos apontar outras perspectivas de
afirmação dos benzedores. Essa auto-afirmação tem um de seus pés firmados
na positividade do saber dos benzedores que se opunha e ainda se opõe à
medicina e às práticas dos farmacêuticos. Em seu trabalho, Rosane Prado
afirma a partir de conclusões retiradas das entrevistas feitas junto aos
benzedores que “há males que devem ser encaminhados aos benzedores”.
Prado afirma que “o quebrante, o mau-olhado e o feitiço ‘não provocam
doenças curadas pela medicina comum’”. À fonte de poder centrada na
[197]
positividade do saber, acrescentam-se, ainda, eixos importantes tais como: a
moral que ditam; o respeito/temor que inspiram; e o prestígio que desfrutam.
O caso de Sá Mariinha das Três Pontes.
Maria Guedes, nascida a 18 de junho de 1882, era filha de Benedito
Guedes dos Santos e Francisca Maria da Conceição, e passou a ser chamada
no município por Mariinha das Três Pontes. Curandeira e vidente, morta em
1959, tornou-se um fenômeno devocional na cidade de Cunha.
Mariinha foi, já em vida, uma curandeira que criou tradição, se tornou
conhecida e respeitada em todo o município. De acordo com informações
recebidas em entrevista realizada com o Sr. José Baltazar Tobias, morador do
bairro das Três Pontes e sobrinho de Sá Mariinha, a chegada da família
Guedes ao bairro se por volta de 1897 aproximadamente pois conta o
entrevistado que aos 13 anos Sá Mariinha foi tomada por uma doença e faz
relação entre sua cura e a mina de água existente no sítio que pertence à
família. Afirmou Seu José: “... ela chegou aqui com 13 anos. Ela ficou ruim e
logo chegou aqui, já ficaram atrás da doença dela...”.
21
A chegada da família Guedes se deu de forma paulatina. Trabalhando
como agregado, o senhor Benedito Guedes, pai de Mariinha, fixou
residência na região das Três Pontes quando ainda havia uma densa mata na
localidade. O bairro das Três Pontes é o espaço onde se inicia os grandes
feitos de Sá Mariinha.
Seu José Tobias narra o início dos milagres:
“O jeito que começou é que deu uma enfermidade nela... e ela teve
por morta três dias... o finado Dito Juquita, que tava tratando dela, que
21
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/1997. Registro, fita 2/A.
[198]
era um curador disse: -“Não leva ela pra sepultar por que num morta”.
Mas ninguém dizia que ela tava viva por que não respirava, não movia com
nada... quando foi no fim dos três dias, era mais ou menos meia noite,
por ela deu um suspiro... parece que ela levantou, não sei como é que
foi lá, e chamou a mãe dela.
Ela tava com 14 anos. Chamou... e daí desse dia em diante virou o
olho dela. A lágrima que descia era sangue e aí ... o finado Juquita disse: -
“Óia Chiquinha, leva ela na água todo dia cedo, quando o sol apontá,
vai lavando olho dela que Deus vai um recurso que tem que pará
esse sangue”. E a coitada não enxergava, né. Todo dia cedo a defunta
Chiquinha, que era mãe dela, pegava ela por braço, ia encostando e ia
na água... no pocinho de água. ela pegava a água, lavava os olho. Foi
três dias. Quando foi no quarto dia que ela foi, ela abaixou pra pegá água
pra lava os olho, ela abaixou e pegou a água pra molhá os olho. Depois
pegou um outro punhado, depois quando foi uns três punhado, ela pegou e
passou nos olho assim (faz o gesto), ela sentiu um... pareceu um... pino na
palma da mão,né. Ela falou assim: -“Ó mãe... negócio pesado aqui...” a
defunta Chiquinha foi olhá, não viu nada. –“Não tem nada ...” -“Ué, mas tá
pesada a palma da minha mão”. Daí vieram simbora pra dentro e ela
coincidiu com a mão pesada. Mas quando foi no outro dia cedo –foi interá
os seis dias, né – aí ela tornou a levá ela lá na água outra vez, ela tornou a
baixá pra lavá os olho de novo pegá água pra passá nos olho ela
sentiu que caiu lá, né. Saiu aquele troço da mão dela. “E eu não vi nada
fia!” sentiu que caiu dentro d’água. tornou a pegá outro punhado
d’água... passou outra vez, saiu. Na hora que saiu: -“Mãe, tem uma
coisa nas minhas costas”. “Nas costas?” a defunta Chiquinha levou a
mão nas costas dela e não achou nada... Quando foi mais ou menos pras
[199]
onze horas, por aí, ela começou a chegá a mão pra ajeitá a roupa, saiu o
quadro da santa, né.
A: Saiu o quadrinho com a imagem que tem ali?
J: é, saiu com a imagem... guardada nas costa dela. Ela tinha o retrato da
santa com o quadrinho nas costa certinho. –“Mãe, é uma santa mãe que tá
aqui... Como é que faz mãe?” É aquela que ali (aponta para o
quadrinho no altar da capela). Aí ela disse: -“Olha, tem que deixá fazê, né?
Como é que vai fazer? Apareceu. Quem sabe se é ela que vai ser sua
guia?” Ela disse: -“É, vai ser. Então vai por que pelo meu sofrimento todo
eu venci, graças à Deus, agora aparece... jogar fora eu não vou de jeito
nenhum”. mandou fazer , depois que ela sarou bem, que ela foi
aprimorando, fortalecendo o corpo e tudo, sustanciando, né. E aí ela
mandou fazer ali uma capela e colocá a virgem. Até ainda tem uma trava
ali e dali pra é que era a igrejinha que ela fez primeiro. E ela colocou a
santa e dali por diante que ela começou. Aparecia um pra visitá ela,
contá qualquer coisa, ela dizia a tal coisa, ela dizia: -‘Ah! Tal coisa
assim procê vai certo, é bom’. O sujeito vivia, dava certo mesmo, né.
Daí foi aumentando, foi aumentando, foi aumentando e depois ficou essa
multidão que começava a vir aqui”.
A narrativa da gênese do processo que configurou Sá Mariinha como
curandeira e vidente, coletada em entrevista com seu José Baltazar, apresenta
um quadro circundado pelo mistério característico de seu universo cultural. O
mistério envolve a narrativa que origina o fenômeno. Alguns elementos
importantes aparecem no contexto: A) o acompanhamento da enfermidade por
parte do curandeiro de Paissanduva (Juquita, de acordo com seu José Baltazar
e Juquinha, de acordo com seu Cândido, em depoimento coletado por João
Veloso), sua mulher Nhanhana (provavelmente Nhá Ana) e seu tio João Lau.
[200]
Estes personagens têm uma grande importância no universo que envolve os
curandeiros de Cunha e aparecem citados por José Veloso Sobrinho em seu
livro Um causo rio (publicado pelo Centro de Tradições de Cunha); B) a
palavra do curandeiro se fez respeitada sem qualquer discussão quando da
afirmação: “Não leva ela pra sepultar que num tá morta.”
22
A palavra dada é veredito e abre as portas para a possibilidade do
suspiro que acontece três dias depois de a família tê-la dado como morta; C)
Fato interessante encontrado na narrativa é o horário do retorno sinalizado pelo
suspiro da enferma: -“mais ou menos meia noite”.
23
Horário circundado pelo
mistério de transição entre os dias. No imaginário popular o horário é solene na
relação com o inexplicável. É observar que na encomendação das almas, o
“chamatório”, o horário de meia noite é tido como um marco no início do
contato entre a companhia de encomenda das almas e os crentes (LUZ
SOUZA, 1997). Além disso, são comuns as estórias de pactos de violeiros por
volta deste mesmo horário, seja às margens de um rio onde o mesmo deverá
tocar melhor que o desafiado (criatura sobrenatural) sob a penalidade de ser
engolido pelas águas do rio, seja em um cemitério onde faz-se o pacto com o
demônio; D) A fonte de água é o espaço onde começa a se configurar o
fenômeno. Os primeiros fatos misteriosos ali se procedem. Foi lá que Sá
Mariinha percebeu algo diferente. A mesma fonte “limpa os olhos” e a faz
enxergar fenômenos que sua própria mãe não percebia. É interessante
observar a necessidade de ir à fonte sendo que, no caso, poder-se-ia trazer a
água até a enferma. Ao que me parece, essa ida está vinculada à autoridade à
palavra do curandeiro Juquita: -“Óia Chiquinha, leva ela na água todo dia
22
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/1997. Registro, fita 2/A
23
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/1997. Registro, fita 2/A
[201]
cedo, quando o sol apontá. Vai lavando o olho dela que Deus vai dá um
recurso que tem que pará esse sangue”;
24
E) O aparecimento da imagem que
se desprendeu de seu corpo é antecedido por momentos de mistério onde
ela consegue ter contato com fatos inexplicáveis. Esses fenômenos
preliminares preparam o momento maior que se com o aparecimento da
imagem da Santa. O consentimento da mãe acontece após ser testemunha de
um fenômeno visível: -“Olha tem que deixá fazê, né. Como é que vai fazê?
Apareceu. Quem sabe ela é que vai ser sua guia?”
25
; F) Mariinha aceita o
fato, ainda incompreensível numa dimensão mais ampla: -“É, vai ser. Então vai
por que pelo meu sofrimento todo eu venci, graças à Deus...”; G) Na seqüência
do depoimento de seu José Baltazar, após a publicidade da imagem da santa
constrói-se o altar. A Santa passa a ocupar o seu lugar. O complexo que
origina o fenômeno está constituído com elementos importantes: a água, os
mistérios, o aparecimento da santa, a certeza da guia e o altar. Segundo seu
José Tobias: -“Ela colocou a santa lá e dali por diante que ela começou”.
Mariinha se perpetuou na história do município como a curandeira
mais lembrada, e que transcendeu os limites da existência concreta, tornando-
se um ponto de confluência de pessoas que ahoje buscam soluções para os
seus problemas. Acredito que tal fato se deve, entre outros fatores, ao
processo de formação de sua configuração como curandeira, no qual constrói-
se lentamente um complexo devocional apoiado em uma moral que tem seus
fundamentos presos tanto à perspectiva da religião popular do município, mais
especificamente no catolicismo e sua leitura concreta feita pelas pessoas mais
distantes do núcleo da religião oficial. A capela funcionava como um local de
24
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/1997.
25
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/1997.
[202]
cura e também como um espaço oficial da Igreja, pois os padres da Paróquia
de Cunha faziam nela suas celebrações e batizados de modo natural, como em
qualquer outra “capela de roça” dentro dos limites territoriais da mesma. A
distância propõe o elemento sincrético onde as práticas de cura e benzeção
não ferem os princípios da religião oficial, mesmo porque não existe um
catolicismo puro nos moldes das propostas elaboradas pelo controle ideológico
central da Igreja Católica.
O auxílio mútuo entre os curandeiros era algo que também acontecia no
caso de Sá Mariinha. Embora tivesse o poder de prever que a pessoa não seria
curada, buscava o auxílio de outros agentes de cura, o que demonstra o
respeito e a crença diante de outros benzedores.
O benzimento envolvia o complexo religioso criado em função de suas
atividades. O próprio senhor Malaquias testemunhou várias vezes o
procedimento no que se refere o processo de benzeção:
“Ela tinha uma capelinha na casa dela. Ela saía da rede dela e ia lá,
fazia o cumprimento, pedia benção à Santa ... Quando a pessoa pedia o
benzimento dela, ela encostava a mão na cabeça da pessoa, olhava pra
cima e fazia o benzimento”.
26
Na construção do discurso dos depoentes, dá-nos a impressão de uma
preocupação velada em não dar margens a interpretações que possam
relacionar Mariinha com as práticas de outros curadores da região, que
trabalhavam com elementos que fossem advindos de um campo externo às
curas provocadas pelas “doenças de Deus”.
26
Depoimento oral de Benedito Malaquias de Paula, 12/11/1996. Registro, fita 1/A.
[203]
O depoimento passeia por duas esferas teoricamente distintas da
reflexão sobre a questão religiosa, a saber, pela perspectiva da magia onde a
curandeira consegue antecipar, em sua visão, acontecimentos não previsíveis
vidência e pela esfera do campo do catolicismo onde a sua fé ( e,
concretamente, uma ancorada na devoção à Nossa Senhora desde a
configuração de seu poder “Ela será sua guia”.). Nas palavras dos
depoentes, a retiram do campo dos curandeiros que trabalham com “coisa
feita”. Cabe aqui relembrar a teoria da ética defensiva proposta por Rosane
Prado, em sua pesquisa realizada com os curadores de Cunha. Por outro lado,
podemos perceber que tal defensividade sinaliza para a perspectiva de uma
contraposição horizontal. A ocupação do espaço religioso traz, em si, conflitos
nas relações de poder numa dimensão de verticalidade religiosidade
oficial/religiosidade popular mas também aponta para um conflito instaurado
dentro de uma dimensão horizontal, ou seja, a disputa e, por isso mesmo a
busca da diferenciação, com práticas similares dentro do próprio campo do
curandeirismo.
Rosane Prado afirma que nesse esquema de defesa funda-se a sua
ética de trabalho. Essa mesma ética se apóia em vários eixos onde os
discursos são os mais variados: “o poder não é meu, é de Deus, é ele quem faz
através de mim; trabalho para o bem, com outras coisas não lido (diz que
tem quem faça, mas eu, comigo não isso é macumbaria)”. Uma das frases
que mais se aproximam entre as colhidas pela autora é a seguinte: “não receito
remédio de farmácia, só de mato, de homeopatia” (PRADO, 1987:13).
O apelo à oração por parte se Mariinha também pode ser explicado
numa mesma perspectiva. A ética defensiva pode ser explicada a partir de um
[204]
“pertencimento” católico, o que, no plano das oposições verticais, a diferencia
de outros. Deus é a primeira coisa no benzimento e, por isso não falta a oração
e, no sentido estrito de reza, acaba transformando-se sempre, pelo menos na
sua visibilidade externa em Pai Nosso e Ave Maria (orações protetivas que
se alojam na gica de uma ética defensiva). Podemos aqui, relembrar o
depoimento de Seu José Baltazar: “A oração que ela pedia sempre pro sujeito
rezá, era rezá um Pai Nosso e três Ave Maria pra Santa Virge”.
27
Uma das coisas que intrigam, no caso de Mariinha, é a
precocidade com que começou atender. Devemos relembrar o depoimento de
Seu José Tobias, sobrinho de Mariinha, criado por ela e que,
conseqüentemente, conviveu de modo muito próximo com este universo. O
problema aparece quando percebemos na literatura existente no caso o texto
de Prado – que a precocidade pode ser um empecilho para a credibilidade.
Talvez possamos apontar a saída na linha da reflexão que fiz no
começo, ou seja, que o fenômeno se configura a partir de uma autoridade
aceita anteriormente (o curador Juquita); é envolto em mistérios que colocam
seu suspiro de retorno (talvez à vida); o simbolismo da água para sarar as
impurezas da doença aliado ao poder de Deus: Vai lavando o olho dela que
Deus vai um recurso que tem que pará esse sangue”; a aparição da Santa
“...quando foi uns três punhado, ela pegou e passou nos olho assim (...), ela
sentiu um... pino na palma da mão,né. Ela falou assim: -“Ó mãe... negócio
pesado aqui...” a defunta Chiquinha foi olhá, não viu nada. –“Não tem nada
...” -“Ué, mas pesada a palma da minha mão” (...) quando foi no outro dia
(...) ela tornou a levá ela na água outra vez, ela tornou a baixá pra lavá os
27
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/97. Registro, fita 2/A.
[205]
olho (...) ela sentiu que caiu lá, né. Saiu aquele troço da mão dela. “E eu não
vi nada fia!” Aí sentiu que caiu dentro d’água. tornou a pegá outro punhado
d’água... passou outra vez, saiu. Na hora que saiu: -“Mãe, tem uma coisa
nas minhas costas”. “Nas costas?a defunta Chiquinha levou a mão nas
costas dela e não achou nada... Quando foi mais ou menos pras onze horas,
por aí, ela começou a chegá a mão pra ajeitá a roupa, saiu o quadro da santa,
”]; a Santa que se torna guia (reconhecimento da própria mãe): Olha, tem
que deixá fazê, né? Como é que vai fazer? Apareceu. Quem sabe se é ela que
vai ser sua guia?”; a aceitação do fato por parte de Mariinha: “É, vai ser.
Então vai por que pelo meu sofrimento todo eu venci, graças à Deus, agora
aparece... jogar fora eu não vou de jeito nenhum”.;
28
e, por fim, a formação de
um complexo religioso constituído paulatinamente (imagem, altar, capela e uma
fonte com fortes poderes). Talvez esse conjunto de fatos justifiquem sua
atuação e fama desde muito jovem.
Passados quase quarenta anos da morte de Mariinha, percebemos
que o respeito à curandeira, a procura por suas intervenções e o crescimento
da devoção são fatos visíveis levantados pela pesquisa.
Ao que se percebe, Sá Mariinha adquire credibilidade no seu cotidiano e
sua história é reforçada por um grupo de significados sagrados que não estão
na origem de tantos outros curandeiros da região. Nesse caso, Mariinha
possuía, dentro de sua redes sociais de trocas simbólicas, um valor político que
operava tanto dentro de sua comunidade quanto em setores fora da mesma.
Sua aceitação como figura eminente detentora de orientações aceitas não se
28
Depoimento oral de José Baltazar Tobias, 10/07/97. Registro, fita 2/A.
[206]
faz acontecer apenas dentro de sua família, mas também em seu bairro, nos
bairros circunvizinhos e no próprio município – atingindo inclusive a cidade.
Dentro deste contexto expande-se, a partir do bairro das Três Pontes,
por meio de uma cultura oral, o fenômeno Mariinha. Sua prática envolvia a
comunidade naquilo que era fundamental, a busca da vida a partir do universo
simbólico religioso.
O universo de Mariinha é marcado pela influência de um “catolicismo
fragmentado”, no qual pode-se perceber uma relação geradora de trocas de
representações simbólicas entre os dois polos culturais. Para clarificar essa
perspectiva recorro, à idéia que Ginsburg usa quando analisa o “estereótipo do
sabá”.
29
Existe uma relação de poder entre a representação da cultura “oficial” -
a Igreja Católica com sua estrutura e ordenação coerente com a ortodoxia do
universo religioso - e as representações populares - neste caso representada
por Mariinha. É necessário que haja credibilidade simbólica para que, a
partir do agenciamento dos elementos que compõem a “consciência
fragmentada”, possa-se estabelecer crédito e poder à heterodoxia de
Mariinha.
A presença do universo cultural ligado a Mariinha, ainda hoje, pode
ser fruto de uma composição de auto-preservação. Mariinha não se
29
... considerei ser possível reconhecer uma ‘formação cultural de compromisso’ ,
resultado híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura erudita”
29
.Retomando o termo
emprestado de Ginsburg, Ronaldo Vainfas o utiliza quando da análise das “santidades
indígenas” - mais especificamente na análise da Santidade de Jaguaripe”: Decifrando suas
crenças e ritos pude recompor o que chamei, ancorado em Ginsburg, ‘formação cultural de
compromisso’. Formação cultural híbrida ...”
29
O que queremos neste caso das representações
simbólicas é, por um lado, fugir de uma visão cartesiana” destes símbolos (não deixar a
questão cair no campo da bipolarização estereotipada dos símbolos) e, consequentemente, por
outro lado, apontar para a complexa e confusa lógica dessas relações. Roberto DaMatta afirma
o seguinte sobre esta questão: “ O problema não é descobrir que as coisas estão fora do lugar,
mas compreender o lugar das coisas. Ou seja: a ordem de legitimidade pela qual uma
sociedade articula as práticas e os valores (sempre contraditórios) vigentes em seu meio. O
que parece caracterizar o caso do Brasil é a ausência da necessidade desta articulação, daí a
nossa perene auto-surpresa com nosso sistema”.
[207]
confronta com o catolicismo oficial, pois parte do seu poder é oriundo de um
dos mais fortes símbolos do catolicismo - Nossa Senhora Aparecida.
A perspectiva da cultura a que se vincula aos curandeiros apresenta-se
marcada por traços de heterogeneidade que, ainda hoje, opera presa à
concretude da realidade sensível. Aqui nos deparamos com a possibilidade de
reinterpretação do real que entra em contradição com a gica hegemônica da
modernidade. No contexto de Mariinha, além dos elementos citados, existia
a perspectiva da falta de infra-estrutura que pudesse dar sustentação à busca
de soluções no quadro da saúde do homem do campo. A visão do sagrado não
toca o núcleo da oficialidade católica e toda demonstração de competência na
cura de um ser humano, mesmo que a partir de ervas, é fruto de uma
intervenção do humano no universo sagrado.
O Catolicismo tornou-se veiculador destes fenômenos. Esta suposta
veiculação nos permite entender as dificuldades da Igreja Católica: a presença
de duas religiosidades distintas, uma intelectualizada e outra popular, implicam
na dificuldade de uma Igreja organizar os seus fiéis no seio de um mesmo
universo simbólico. A hegemonia clerical - representante da ortodoxia -
encontra-se ameaçada por estas posturas heterodoxas (nascem de um
referencial de tradição católica mas possuem raízes profundas em um universo
simbólico fragmentado e ancestral que reinterpreta o real sem as dimensões
lógicas da oficialidade religiosa) na medida em que não consegue preencher os
espaços do “popular” através da doutrinação oficial. Sendo assim, esses
fenômenos religiosos estudados possuem uma “formação híbrida de
compromisso” que os preserva com suas particularidades dentro de um
contexto religioso mais amplo no qual a Igreja Católica se encontra. Nossa
[208]
hipótese aponta na perspectiva de uma persistência de fragmentos da
religiosidade popular rural inserida em um contexto urbano e encontrando
nesse contexto formas novas e variadas de reconfiguração para a
sobrevivência.
[
209
]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parti da busca de um fio condutor que pudesse nortear a história
do município, suas transformações todo processo de transformações é algo
natural em relações de trocas simbólicas entre diferentes culturas -, e a relação
das mesmas com a vivência da “religiosidade católica” dentro das tramas
cotidianas daquela população.
Algumas constatações históricas fazem-se necessárias para se entender
o município. Em primeiro lugar, sugiro a idéia de que na região de Cunha, este
“mundo rústico” não foi totalmente subjugado pela Igreja e pela Coroa
Portuguesa, mas se estabeleceu independente aos meandros do poder,
criando condições de sobrevivência, a partir do seu isolamento. Na colonização
brasileira, as cidades são comuns, porém com funções urbanas especializadas;
e a população rural tem para com as mesmas uma relação de grande
autonomia. Isto preserva as pessoas dessa população, que conseguem viver
sem uma influência total e direta das transformações ocorridas no meio urbano,
mantendo, com essas transformações, certa distância. A população rural não é
imune a estas transformações, apenas afirmo a idéia de que as mesmas não
atingem este meio da mesma forma que atingem a vida da população urbana.
Outro fato que merece ser citado é o componente do isolamento
proporcionado pelo meio geográfico. A região de Cunha é formada por pedaços
de pequenos vales, rodeados por pequenas colinas, que geram um isolamento
parcial da população rural em relação ao centro urbano. Mesmo com a
melhoria das estradas vicinais e o maior contato com o centro urbano, a
população rural não dispõe de tempo e recursos para grande quantidade de
[
210
]
locomoções a este centro. Isto cria uma aproximação dos elementos geradores
de transformação geralmente exógenos vividos no meio urbano, mas, ao
mesmo tempo, não gera um processo de transformação avassalador do
imaginário local, pois a relativa distância destes centros urbanos gera um
processo de reflexão sobre as mudanças encontradas naquela realidade.
Até hoje, muitos moradores rurais se agrupam em bairros com um povoado
compacto. É comum, em Cunha, ainda hoje, o visitante chegar a um bairro
rural e encontrar um pequeno povoado com sua venda, boteco, ponto de
ônibus e uma pracinha ou um lugar propício ao encontro e bate papo. Quando
esta mesma realidade não se faz presente, ainda encontram-se as casas dos
sitiantes em grande quantidade, mostrando a força da população rural no
município. A estrutura sócio-rural de Cunha ainda tem como base a existência
de grupos de vizinhança, interligados pelos vínculos de parentesco e ajuda
mútua, apesar de as pessoas se voltarem, cada vez mais, para a sede do
município, como centro da vida social e econômica.
A economia não se mantém fechada. As articulações com outros locais
de produção e consumo são muito maiores do que, naturalmente, as descritas
pelos pesquisadores citados neste trabalho. Predomina no município, o
comércio, fundado na produção local e em pleno desenvolvimento devido à
indústria do turismo que consegue, articulada pela prefeitura, e ao lado da
iniciativa privada, desenvolver o setor de forma planejada, procurando um
desenvolvimento sustentado na realidade ecológica do município e nas formas
das tradições culturais. Neste sentido, afirmo que a preservação de muitas das
tradições fundamentais do município se fez necessária também pelo fato de
[
211
]
que as mesmas se tornaram “mercadoria” que agrega valores ao pacote de
desenvolvimento econômico, provocado pela indústria do turismo.
Além de não se tornarem contradição ao processo de modernização da
economia local, a tradição é aliada desse mesmo processo, construindo uma
relação na qual a convivência não é algo dicotômico a estes dois aspectos,
aparentemente diferentes, da vida local: os avanços econômicos e a tradição.
Com o fortalecimento das atividades comerciais, o valor da terra começou a
crescer no município. Houve considerável aumento de uma população
exógena, na figura de proprietários veranistas e/ou empresários do turismo que
construíram suas pousadas na região. Porém, as transformações
socioeconômicas, vivenciadas pelo caipira, devido à expansão da economia de
mercado para o campo, não implicam no despojamento de sua identidade
cultural. Toda mudança é acompanhada por alguma continuidade, às vezes,
com outra feição, porém, com significado muito próximo à de antes, pois toda
transformação ocorre somente a partir de parâmetros culturais já existentes.
A cultura não é apenas determinada pelos processos sócio-históricos, mas
é também, fator determinante desses processos. Sendo assim, é possível
entender que, a despeito da expansão capitalista para o meio rural, a cultura
caipira é produzida e reproduzida ao mesmo tempo. Daí é possível dizer que o
caipira de hoje não é mais como fora, por exemplo, cinco décadas, porém
continua sendo caipira (LINHARES, 2005: 03). Em Cunha, essa mescla de
realidades culturais, articuladas entre a relação citada, é integrada pela força
da presença dos costumes rurais, tendo em vista que, grande parte das
[
212
]
influências oriundas dos meios de comunicação é filtrada pelos costumes da
cultura local.
Partindo destes pressupostos, afirmo que talvez seja possível pensar na
continuidade da cultura e da identidade caipira com menos pessimismo, pelo
menos em Cunha e em toda a região do Alto Paraíba. Porém, desde que
entendamos as transformações históricas reais existentes nas trocas
simbólicas das representações culturais conviventes.
Sobre os “costumes festeiros” da população local, apesar da aparente
desordem e incoerência, que parece presidir a festa, sua configuração de
“mundo ao avesso” corresponde a um “excesso permitido, e até mesmo
ordenado”; desta forma, o caos aparente é a estratégica justificativa para a
reordenação da ordem, onde o desequilíbrio gera o restabelecimento do
equilíbrio. Uma coisa fica clara em Cunha: parece que a Igreja Católica, na
figura dos seus sacerdotes e agentes de pastoral, não sabe lidar com isso ou
mesmo compreender a complexidade de tal realidade.
Em Cunha, ainda, observamos a presença do catolicismo tradicional como
uma realidade cultural complexa e operante no comportamento social de uma
grande parte de grupos de católicos existentes, tanto na zona rural, quanto na
cidade. Esse comportamento condiciona grande parte da visão sobre a moral,
tanto no que se refere a condutas sexuais, quanto na questão de papéis
sociais; tanto na questão do poder como autoridade inconteste e prática
comunitária, quanto nas obrigações religiosas dominicais e festividades
religiosas do bairro ou da cidade.
[
213
]
Amparada na força da TV Canção Nova, a Renovação Carismática Católica
se tornou um fenômeno que chegou até onde podia expandir-se. No entanto,
as concessões feitas pelo catolicismo tradicional deixaram de existir, seu
espaço ficou mais restrito e a RCC vem encontrando grandes limites para
ampliar mais seu universo de devotos. Neste sentido, constato um processo de
disputa cultural travada no interior do catolicismo, tendo, de um lado, a
modernidade carismaticamente constituída a partir dos elementos emocionais;
e, por outro lado, convivendo, dialogando e duelando com um catolicismo
tradicional que o esconde sua força e sua vitalidade nas práticas populares.
Além disso, no catolicismo popular pode-se constatar a valorização de
expressões sentimentais e corporais, como: chorar, botar a mão no santo,
beijar a fita, pegar a flor do andor, acender velas, ir às procissões, fazer o sinal
da cruz ou tirar o chapéu. Símbolos que revelam uma linguagem própria e a
necessidade da manifestação externa da sua fé.
Existe, de fato, uma intervenção de novos elementos culturais na formação
do imaginário religioso na região: forte presença do que chamamos, ancorados
em Candido Procópio Ferreira, de catolicismo internalizado; a presença de
comportamentos marcados por uma postura muito mais individualizada
(oriunda do avanço da modernidade no município); uma presença maior dos
meios de comunicação de massa reflete comportamentos e transformações no
imaginário religioso, ligados a uma espécie de “teologia da prosperidade”;
algumas lideranças têm sua conduta marcada por uma atitude mais ligada a
um “pentecostalismo católico”; uma maior tolerância religiosa advinda da
expansão das igrejas evangélicas; mudanças no comportamento ligado ao
consumo de bens materiais, o que afeta o imaginário no que tange à
[
214
]
construção dos desejos, diante da realidade social, e das aspirações
econômicas não atendidas. Isto obriga a construção de novas relações com o
sagrado; a idéia de pertença religiosa agregada às instituições se encontra
mais frágil em alguns setores da sociedade, embora isto seja um fator
preponderante no catolicismo popular.
As comunidades rurais, em suas trocas culturais, fazem as concessões
necessárias às novas perspectivas culturais, preservando ainda o cleo de
seus elementos religiosos tradicionais: a presença de oratórios é percebida de
forma consistente; os mutirões marcam sua presença na constituição das
festas religiosas; existe uma forte presença de devoções populares oriundas de
uma cultura colonial; a prática da utilização dos ex-votos ainda existe em larga
escala.
Em várias comunidades, do mesmo modo, não se faz constante a
presença do sacerdote católico (embora a diocese tenha aumentado o seu
plantel de sacerdotes no município).
A perspectiva do curandeirismo permanece tendo espaço no imaginário
religioso local, embora tenha havido avanços no que se refere ao acesso à
medicina oficial no município.
No campo das imagens, encontramos elementos que articulam a
presença de imagens modernas com as da tradição, como fotos do Pe.
Marcelo e imagens de Sá Mariinha convivendo no mesmo espaço.
É bom observar que não existe, na realidade local, uma contraposição
entre modernidade e tradição. Ambas convivem sem maiores conflitos e
influenciam a prática religiosa local.
[
215
]
Embora o trabalho não tenha refletido sobre a questão, gostaria de
afirmar a expansão do Pentecostalismo como um fenômeno importante dentro
do cenário religioso local acompanhando o que acontece no cenário religioso
nacional. A relação existente entre o crescimento pentecostal e a
racionalização das praticas católicas são comuns.
A tentativa da Igreja Católica de se adaptar à sociedade moderna, levou
a mesma a um distanciamento em relação à religiosidade popular,
principalmente no que diz respeito a seu caráter mágico. Tal distanciamento
conduziu uma considerável parcela da população, que se sentiu abandonada
por sua religião tradicional (esse catolicismo laicizado), a ir buscar novas
formas de crer e, sobretudo, de se mostrar crente, remodelando outros meios
de se relacionar com o sagrado.
A lógica mercadológica que vem afetando a religião, produz, entre outras
coisas, o aumento da importância das necessidades e desejos das pessoas
na definição dos modelos de práticas e discursos religiosos a serem
oferecidos no mercado; ao mesmo tempo em que demanda das organizações
religiosas maior flexibilidade em termos de mudança de seus "produtos", no
sentido de adequá-los, da melhor maneira possível, para a satisfação da
demanda religiosa dos indivíduos. Assim, as modificações introduzidas em
termos de discursos e práticas religiosas se constituem num esforço no
sentido de tornar, a cada momento, o produto religioso oferecido mais
eficiente em atender as necessidades religiosas dos fiéis.
Os dados levantados e sua análise apontam para a idéia de que a
cultura, não pode ser refletida a partir de uma forma estática, mas dinâmica.
[
216
]
É possível a existência de uma realidade híbrida, que deve ser pensada de
forma multidisciplinar, pois, segundo Nestor Canclini, os circuitos híbridos têm
conseqüências que extrapolam a investigação cultural, que a realidade
convive com coexistências variadas tais como: culturas étnicas e novas
tecnologias; formas de produção artesanal e industrial; e assim por diante.
Esta interconexão cultural o deve ser pensada apenas naquilo que separa
“urbano” de “rural”, mas, principalmente, no que é fruto desta fusão, ou seja,
elementos que convivem e (nos dois espaços), deixando de ser como
era a partir da construção de algo novo. O resultado deste encontro pode
levar a essa postura híbrida, na qual as interpretações culturais, advindas de
um dos lados da cultura, podem gerar algo novo. Lembro-me de um texto de
Ronaldo Vainfas (A Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil
Colonial), no qual o autor retrata a questão das Santidades, a partir de uma
leitura fundada em Ginzburg, na qual as mesmas seriam fruto desse
hibridismo.
Não sei se de forma coerente com o propósito do texto, ou com a
complexidade conceitual do termo hibridismo, lembro me de Riobaldo (algo
que não é novidade, pois sempre citado em muitos textos com o mesmo
objetivo). Tal personagem encontra-se sempre na zona nebulosa entre dois
pólos opostos. As especulações o acompanham no amor, na guerra, nas
viagens, na tentativa de compreender a natureza humana e, a mesmo, na
busca de sua própria identidade. É aquele que é e não é. Em Guimarães
parece-nos que o Sertão” pode ser tanto um lugar sagrado, onde se vive em
comunhão com a natureza, quanto um lugar habitado por seres maléficos. É
um mundo de incertezas, onde o Mal disputa a primazia do Bem. Talvez
[
217
]
pudéssemos também citar Ariano Suassuna (A Pedra do Reino) como alguém
que, crítico com o meio acadêmico por conhecer pouco o Brasil, defenda uma
“cultura brasileira” híbrida e forjada em nosso meio.
Uma coisa parece ser correta, não podemos estudar somente a
aparência sincrônica da sociedade, mas reconhecer a heterogeneidade
formada nessa historicidade heterogênea - tanto do ponto de vista dos
acontecimentos quanto do das interpretações e rastrear historicamente essa
diversidade. É necessário ampliar as relações entre a antropologia, a história, a
sociologia, a economia, e qualquer outra área científica que tenha a dizer sobre
essa realidade, para ajudar a entender a densidade de outras etapas, que se
inserem nas estruturas culturais atuais. Neste sentido, entendemos a cultura
como um processo marcado pelos elementos de mobilidade e de ação. Espero
que, neste trabalho tal idéia possa ser interpretada de forma condizente.
Gostaria de terminar afirmando que as idéias, refletidas neste trabalho,
não se constituem em verdades inquestionáveis, mas estão abertas às novas
interpretações advindas de uma reflexão sistemática, fruto de outras pesquisas
que possam aparecer, para refletir de modo abrangente sobre novas versões
nas relações entre os avanços da modernidade e a religiosidade local. Faltam
mais estudos sistemáticos para entender melhor a questão religiosa, a partir de
outras religiões além do catolicismo. Fica, aqui, um convite à ampliação desta
pesquisa no Município de Cunha e sua possível ampliação e aplicação no Vale
do Paraíba Paulista.
[218
]
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