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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Adjuto de Eudes Fabri
Categorias que constituem a compreensão do humano
e os enlaces entre consciência, subjetividade e significação
na abordagem vigotskiana
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Adjuto de Eudes Fabri
Categorias que constituem a compreensão do humano
e os enlaces entre consciência, subjetividade e significação
na abordagem vigotskiana
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para a obtenção
do título de Doutor em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob a orientação da
Professora Doutora Silvia Tatiana
Maurer Lane e do Professor Doutor
Sergio Ozella.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
DEDICATÓRIA
À Professora Doutora Silvia Tatiana Maurer Lane, que
orientou-me nos primeiros passos do doutorado e
indicou-me caminhos a serem percorridos durante a
elaboração da tese, com carinho, atenção e respeito nas
dúvidas que surgiram neste percurso (in memoriam).
À Ana Lúcia, minha esposa, pela compreensão, apoio e
solidariedade durante a elaboração deste trabalho.
À Ana Maria, minha mãe, pelo carinho e atenção dados
ao longo dos nossos relacionamentos e pela saudade
deixada (in memoriam).
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Sergio Ozella pelas orientações, discussões e
encaminhamentos que permitiram uma melhor visão e rigor nos estudos da
psicologia vigotskiana.
Ao Professor Doutor Mario Sérgio Michaliszyn, que com sugestões contribuiu para o
aprimoramento deste trabalho.
Ao Professor Doutor Odair Furtado, que apresentou questões e contribuições que
levaram a uma reflexão aprofundada sobre o tema aqui exposto.
À Professora Doutora Wanda Maria Junqueira Aguiar, pela análise rigorosa e pelas
sugestões ao desenvolvimento deste estudo.
À Professora Doutora Sueli Terezinha Ferreira Martins pelas observações, correções
e análises pontuais na estruturação deste trabalho.
À Professora Doutora Adriana de Fátima Franco, que estimulou novas reflexões
referentes aos temas envolvidos neste estudo.
À Professora Doutora Bader Burihan Sawaia pelas contribuições dadas em suas
aulas que influenciaram a constituição deste trabalho.
Aos amigos do Grupo de Pesquisa Categorias Fundamentais do Psiquismo, que
sempre trouxeram suas sugestões e incentivos ao desenvolvimento desta tese.
Aos professores do Programa de Doutorado em Psicologia Social pelos
ensinamentos ministrados ao longo da realização deste percurso.
Aos amigos Achilles e Eugenio, que iniciaram comigo os primeiros passos e estudos
referentes à psicologia vigotskiana.
Aos amigos Marcos e Marquinhos que sempre trouxeram contribuições e incentivos
durante a elaboração deste trabalho.
E à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pelo
apoio indispensável para que o trabalho pudesse ser realizado.
RESUMO
Esta tese desenvolve um ensaio teórico referente à materialidade do signo como
princípio de vinculação dialética entre a constituição histórica das tramas sociais e a
emergência da subjetividade humana. Sugere a necessidade de que a crítica aos
princípios materiais das sociedades contemporâneas inclua uma reflexão sobre os
processos sígnicos vinculados a uma crítica das relações sociais concretas.
Recorre-se especialmente aos trabalhos de L. S. Vigotski, na análise das categorias
que constituem a compreensão do humano e nos enlaces entre consciência,
subjetividade e significação, tomados na perspectiva de sua gênese e de suas
contradições. Este estudo apresenta importantes autores que vinculam-se a uma
tradição marxista, como Vigotski, Wallon e Bakhtin. Assim, uma contrapalavra traz à
baila vozes alheias para compor o diálogo, a compreensão, o texto. As vozes que
aqui estão ecoam a partir da abordagem vigotskiana, ao seu redor, atravessando-a,
ou contrapondo-a. A questão da subjetividade não só atravessa a metodologia deste
trabalho, mas se relaciona à própria natureza de seu objeto. A palavra de um
pesquisador não é realidade abstrata, isolada das condições e contradições
concretas de sua existência. O mesmo pesquisador, buscando a especificidade da
subjetividade humana, passa a reconhecer-se, em seu próprio trabalho, como um
caso particular da generalidade que procura pronunciar à sociedade. Diversos
autores contemporâneos têm apostado na atualidade das vozes vigotskianas, como
contribuição efetiva ao estudo da constituição social da singularidade humana.
Assim, esta tese procura realizar um deslocamento com relação à tradicional
prioridade da lógica sobre os desvios da vida humana concreta, encarnada. Além
disso, cabe desdobrar a tese da materialidade do signo em suas nuances e
contradições. Para tanto temos ouvido vozes vigotskianas, e confrontado o estudo
da gênese da consciência com uma investigação sobre a constituição da
subjetividade. A consciência não abrange toda subjetividade e a significação não se
resume à palavra. O problema passa a ser então o de conceber palavra e
consciência não como estruturas isoladas ou abstratas, mas como movimento
histórico, concreto e constitutivo. Nesta leitura, a perspectiva genética torna-se um
princípio metodológico fundamental, vinculando aquelas instâncias em sua
materialidade. A gênese é este movimento dialético poético em que o mesmo se faz
outro e o idêntico se contradiz. A tese da materialidade do signo permite tratar de um
outro patamar as relações entre as tramas sociais e a constituição da subjetividade.
O signo enquanto fragmento material da realidade coloca-se como uma dimensão
concreta das lutas sociais e da constituição do humano. Esta tese não será
suficiente para materializar uma densa psicologia concreta do homem. Mas pode
falar em nome de um projeto que vá em sua direção. As palavras de uma nova
psicologia haverão de atuar justamente nessas instâncias. Tal dissemelhança marca
um duelo entre o que sonhamos e o que vivemos. Cabe buscar-se saídas que não
sejam de simplificação nem de reducionismo. Será saudável e desejável construir e
aprender novas palavras, enquanto vamos tropeçando nelas. E novas palavras
serão sempre citações tanto quanto aquelas que já nos são próprias, pois mesmo
estas também foram novas um dia. O desafio fundamental permanecerá sendo o de
torná-las mais belas.
Palavras-chave: Consciência, Subjetividade, Significação, Vigotski.
Autor: Adjuto de Eudes Fabri.
Título da tese: Categorias que constituem a compreensão do humano e os enlaces
entre consciência, subjetividade e significação na abordagem vigotskiana.
ABSTRACT
This thesis develops a referring theoretical assay the materiality of the sign as entailing
principle dialectic enters the historical constitution of the social trams and the emergency
of the subjectivity human being. It suggests the necessity of that critical to the material
principles of the societies the contemporaries it includes a reflection on the processes of
the entailed signs to a critical one of the concrete social relations. It is appealed
especially to the works of L. S. Vygotsky, in the analysis of the categories that constitute
the understanding of the human being and in you enlacements between conscience,
subjectivity and meaning, taken in the perspective of its origin and of its contradictions.
This study it presents important authors who associate a Marxist tradition to it, as
Vigotski, Wallon and Bakhtin. Thus, a contrary word brings to the quarrel other people's
voices to compose the dialogue, the understanding, the text. The voices that are here
echo from the Vygotskyan perspective, its return, crossing it, or opposing it. The question
of the subjectivity not only crosses the methodology of this work, but if it relates to the
proper nature of its object. The word of a researcher is not abstract, isolated reality of the
conditions and concrete contradictions of its existence. The same researcher, searching
the specific characteristic of the subjectivity human being, starts to recognize itself, in its
proper work, as a particular case of the generality that it looks to pronounce to the
society. Diverse authors contemporaries have bet in the present time of the Vygotskyan
voices, as contribution accomplishes to the study of the social constitution of the
singularity human being. Thus, this thesis looks for to carry through a displacement with
relation to the traditional priority of the logic on shunting lines of the life concrete,
incarnate human being. Moreover, it fits to unfold the thesis of the materiality of the sign
in its nuances and contradictions. For in such a way we have heard Vygotskyan voices,
and collated the study of the origin of the conscience with an inquiry on the constitution
of the subjectivity. The conscience does not enclose all subjectivity and the meaning is
not summarized to the word. The problem starts to be then to conceive word and
conscience not as isolated or abstract structures, but as historical movement, constituent
and concrete. In this reading, the genetic perspective becomes a basic methodological
principle, tying those instances in its materiality. The origin is this poetical dialectic
movement where the same if it makes another one and the identical one if contradicts.
The thesis of the materiality of the sign allows to deal with one another platform the
relations between the social trams and the constitution of the subjectivity. The sign while
break up material of the reality is placed as a concrete dimension of the social fights and
the constitution of the human being. This thesis will not be enough to materialize a dense
concrete psychology of the man. But it can speak on behalf of a project that goes in its
direction. The words of a new psychology will have to act exactly in these instances.
Such aspect marks a duel between what we dream and what we live. It fits to search
exits that are not of reduction simplification nor. It will be healthful and desirable to
construct and to learn new words, while we go stumbling at the same ones. And new
words will be always citations in such a way how much those that already in are proper,
therefore these also had exactly been new one day. The basic challenge will remain
being to become them more beautiful.
Key words: Conscience, Subjectivity, Meaning, Vygotsky.
Author: Adjuto de Eudes Fabri.
Title: Categories that constitute the understanding of the human being and you
enlacements between conscience, subjectivity and meaning in the Vygotskyan
perspective.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 05
2 A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE............................................................... 25
O verbo como signo de dualidade................................................................. 25
O sujeito moderno na esteira de um dualismo.............................................. 32
Crise do sujeito e dispersão da palavra.........................................................
A alienação....................................................................................................
36
39
Da palavra dispersa à materialidade do signo............................................... 44
Consciência e subjetividade.......................................................................... 51
O sujeito na modernidade.............................................................................. 61
3 O HOMEM É A PALAVRA.............................................................................. 66
Pensamento e palavra................................................................................... 66
Mediações e desvios da matéria................................................................... 76
Consciência, palavra, atividade e emoção.................................................... 83
Tensões de um confronto radical.................................................................. 95
A experiência, o sentido e o significado........................................................ 103
4 A MATERIALIDADE DO SIGNO.................................................................... 141
Fissuras de uma unidade múltipla................................................................. 141
Em busca de uma unidade real..................................................................... 145
O enunciado como palavra de ordem............................................................ 153
Constituição de sentidos................................................................................ 167
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 186
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 200
INTRODUÇÃO
Propomos desenvolver neste trabalho um ensaio teórico que foque a
materialidade do signo como princípio de vinculação dialética entre a constituição
histórica das tramas sociais e a emergência da subjetividade humana. Sugerindo a
necessidade de que a crítica aos princípios materiais das sociedades
contemporâneas inclua uma reflexão sobre os processos sígnicos, e que o estudo
da constituição semiótica da subjetividade vincule-se a uma crítica das relações
sociais concretas. Recorrendo basicamente aos trabalhos de L. S. Vigotski,
buscamos a análise das categorias que constituem a compreensão do humano e os
enlaces entre consciência, subjetividade e significação, tomados na perspectiva de
sua gênese e de suas contradições.
Esta tese pode ser ouvida nas vozes de importantes autores que, de algum
modo, vinculam-se a uma tradição marxista, como Vigotski (apud Cole e Scribner,
1989, pp. 8-11), Wallon (1986a, p. 180 e 186) e Bakhtin (1992, pp. 25-28). Podendo
também, de certo modo, radicar-se nas contribuições do próprio Marx (1996, p. 25),
ou mesmo antes na filosofia monista de Espinosa (1997a, p. 107).
Assim, é preciso configurar aqui algumas posições metodológicas
1
sobre o
lugar do qual pretendemos realizar tal tarefa.
Guattari (1989, p. 116) diz que temos usado luvas para tratar da questão da
subjetividade. Isso se dá em função de nosso persistente desejo de cientificidade.
1
Para Wertsch (in Davidov and Radzikhovskii, 1985, p. 61), “a aplicação dos termos ‘metodologia’ e
‘metodólogo’ não é restrita aos problemas de delinear e conduzir pesquisas empíricas. Ao invés
disso, estes termos são usados referindo-se ao estudo de questões teóricas e metateóricas gerais
que subjazem a uma investigação dos fenômenos psicológicos”.
6
Como contraponto, vislumbra-se o que entendemos como um desafio: abdicar desse
desejo e tratar a subjetividade humana a partir de um paradigma ético-estético, em
que a ciência agirá:
como objeto de regeneração política mas também como
engajamento ético, estético, analítico, na iminência de criar novos
sistemas de valorização, um novo gosto pela vida, uma nova
suavidade entre os sexos, as faixas etárias, as etnias, as raças...
Sem dúvida, múltiplas são as interpretações do que significaria tal
paradigma, como diversas e controversas podem ser suas implicações em nosso
cotidiano. Mas a ciência pode se tornar insustentável justamente por imaginar que
as palavras possam atingir um significado único e transparente, e por reduzir os
desdobramentos da palavramundo
2
àquilo que, instrumentalmente, temos chamado
de "aplicações práticas da teoria".
Definir univocamente um paradigma ético-estético seria mortificá-lo já de
saída. Sendo assim, é necessário arriscarmos nossas próprias leituras e afirmações.
Não por se tratar de uma insubordinação nem, necessariamente, de uma postura
inconseqüente ou politicamente descompromissada. Mas por ser impossível falar
senão de algum lugar, real ou virtual.
Diante disso, Lane e Sawaia (1995c, p. 7) salientam a necessidade da
criticidade e do processo de reflexão:
Poderosos processos de globalização a par de novas formas de
diferenciação social e de sociabilidade desafiavam o paradigma das
ciências humanas a buscar um novo olhar sobre si mesmo, sobre o
2
Este signo freireano "palavramundo” (Freire, 1997, p. 11) não caracteriza palavra e mundo como
instâncias divorciadas, mas como desdobramentos de uma mesma substância em seu devir e em
seus desvios.
7
homem e sobre a sociedade. Um olhar local e objetivo, mas ao
mesmo tempo universal e subjetivo em busca de uma ciência ética
comprometida com a emancipação humana.
Assim, a necessidade emergente de um paradigma ético-estético envolve a
reivindicação de um discurso menos cínico. No contexto da antiga Grécia (Mondolfo,
1968, pp. 117-118), o "cinismo" foi signo daqueles que se negavam ao diálogo. Para
Bakhtin (1981, p. 222), o diálogo é inviabilizado tanto pelas posturas dogmáticas, em
que ele se torna impossível, quanto pelas relativistas, em que se faz desnecessário.
Uma discussão franca e consistente pode se estabelecer quando dialogamos
reconhecendo que qualquer palavra envolve posições ideológicas e juízos de valor.
Nossos signos configuram inevitavelmente posições éticas, porque neles edificamos
espaços e caminhos nos quais nossos desejos se constituem e se movem.
Palavras implicam modos de viver e crenças sobre o que seria uma vida
melhor, da perspectiva individual e coletiva. Dizer implica construir, manter,
reconstruir, desmontar, sonhos e experiências, atuais ou potenciais. Signos implicam
relações de poder, são atos que estabelecem ordens, são "palavras de ordem"
(Guattari e Deleuze, 1995, p. 16). Nesse sentido contrapõe-se uma perspectiva
ético-política a uma visão de ciência que pretenda atingir princípios universais
independentes das condições de vida daqueles que a constróem.
Do mesmo modo, uma perspectiva ético-estética implica descortinar uma
dimensão ao mesmo tempo da sensibilidade e da criação. Permite-nos, se
quisermos, enxergar o discurso do cientista como um modo de sentir e criar
realidades, e não como descoberta, ou cópia especular, de certas leis que regem a
realidade desde sempre. Nesta dimensão, poderíamos dizer que discursos são
sempre uma forma ou outra de linguagem figurada, posto que sempre limitados,
8
incompletos, circunscritos a uma trama histórico-cultural, abertos a múltiplas e
inesgotáveis interpretações.
O campo da estética é de produção criadora, nele os discursos ditos
científicos podem ser vistos como invenções, como modos de mover realidades em
determinadas direções, e não como descobertas transcendentes de lógicas desde
sempre inerentes ao real.
Assim, poderíamos entender um paradigma ético-estético como uma nova
forma de interpretar a constituição de sentidos humanos, tanto quanto como um
novo modo de engajamento e luta nesta mesma trama constitutiva. Nele nos
enxergamos recriando conceitos, tanto quanto um artesão recria a natureza,
obrando sua arte. E, sendo artífices da palavra, somos também militantes em arenas
de signos ideológicos, dentro dos quais lutamos e erguemos nossas utopias.
Parece-nos que não é fora desta trama sócio-histórica que o discurso dito científico
se constitui, ao mesmo tempo em que nela se configura nossa própria subjetividade.
Desta forma, é necessário ouvirmos o discurso vigotskiano como uma espécie
de poética
3
da subjetividade humana e como uma composição sobre um tema.
Composição que é refeita no instante mesmo em que a ouvimos. Vigotski compôs
sua obra, de acordo com Rivière (1987, p. 91) assemelhada a um quadro
impressionista.
Vigotski (1998a, pp. 176-179) criou uma poética da subjetividade humana,
tanto quanto Bakhtin (1981, p. 1) criou uma poética de Dostoiévski. Contemplar o
3
O termo poética da subjetividade não refere-se à poesia enquanto tal, refere-se a uma leitura crítica
da realidade, na qual levam-se em conta as contradições sociais que implicam na formação do
sujeito. Esta poética pode ser vista como a atividade que engendra não apenas uma obra de arte,
mas também uma casa, um texto, um filho, uma paixão ou uma revolução. Ela transforma o mundo e
compõe a vida.
9
quadro teórico vigotskiano ou ouvir sua "sinfonia inacabada"
4
não poderia ser menos
que instaurar uma outra composição. Bakhtin (1981, p. 2), ao ler Dostoiévski, buscou
um enfoque dialógico, pois sentia que só assim poderia captar a originalidade dos
seus romances. Bakhtin (1981, pp. 7-9) apresenta uma concepção arrojada sobre o
que seja compreender qualquer enunciado, desde a réplica mais cotidiana a uma
obra romanesca de grande envergadura. Bakhtin (1992, p. 132) diz que
compreender não é criar uma cópia ou repetir o enunciado de outrem, mas formar
uma réplica, "opor à palavra do locutor uma contrapalavra" (grifo no original).
No presente trabalho, pensamos que criar uma contrapalavra é como trazer à
baila vozes alheias, para montar, compor, o diálogo, a compreensão, o texto. Nesse
sentido, as vozes que aqui estarão em jogo ecoarão a partir da abordagem
vigotskiana, ao seu redor, atravessando-a, ou contrapondo-a. E só como trama
dialógica aberta que uma abordagem pode se constituir e se manter. Buscar sua
compreensão como uma repetição fiel das idéias originais seria como buscar
reencontrar um sentido original exato e unívoco, ou recuperar os fundamentos, as
primeiras palavras pronunciadas. Mas não há fundamentos, nem primeira palavra,
tanto quanto não há a última (Bakhtin, 2000, pp. 413-414):
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites
para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e
num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que
nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca estarão
estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre
se modificarão (renovando-se) no desenrolar do diálogo
subseqüente, futuro (...). Não há nada morto de maneira absoluta.
Todo sentido festejará um dia seu renascimento. O problema da
grande temporalidade (grifos no original).
4
Pablo del Rio (1986), escreveu um artigo intitulado “Una sinfonía inacabada” usando este título da
obra de Franz Schubert (1797-1828) como signo do caráter lacunar da produção de Vigotski.
10
Nessa linha, não nos propomos a uma exegese do texto vigotskiano, mas
ensaiar uma leitura poética
5
.
Barros (1994, p. 6) chama de poético um discurso que não seja autoritário,
que “inclui tanto a prosa quanto a poesia, a dança e a pintura, o teatro e o cinema,
desde que a ambivalência se manifeste nas diferentes fases da organização desses
textos”. Uma leitura poética não precisa ser complacente, eclética, nem relativista,
apenas busca não ser autoritária, ortodoxa nem dogmática. Pretende dialogar com
diferentes vozes, fazer com que se confrontem e componham sentidos.
É com esta orientação que procuramos ler e enunciar as vozes que se
fizerem presentes neste trabalho. Além disso, é preciso dizer que, tais vozes devem
contribuir para a compreensão de como a subjetividade se constitui, tanto quanto
passam também a sugerir um modo de constituí-la. Trata-se de uma observação
bastante controversa, que podemos vislumbrar a partir das falas de Guattari (1992,
p. 17) e de Bruner (1997, pp. 148-150).
Guattari (1992, p. 17) fala de sua experiência na Clínica de La Borde,
indicando que os trabalhos com pacientes psicóticos não visavam retomar suas
condições de vida pré-existentes à crise psicótica, mas produzir configurações
sui-generis. Pacientes de origem agrícola, de meios pobres, poderiam se envolver
em atividades antes inacessíveis como a prática de artes plásticas, teatro, vídeo,
música. Por outro lado, burocratas e intelectuais poderiam sentir-se atraídos por um
trabalho na cozinha, no jardim ou em cerâmica:
Não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão,
mas a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-
5
Esta leitura poética é definida por nós como uma leitura crítica e diferente de outras abordagens, e
que tem por base os princípios da visão marxista de sociedade.
11
máquina-trocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades
diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de
seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se re-singularizar.
A grande questão é que esses novos envolvimentos não são vistos, nem
encaminhados, como adequação de estruturas pré-formadas, mas como novas
possibilidades de composição da "corporeidade existencial" de cada um. Segundo
Guattari (1992, p. 17)
6
, "criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo
modo que um artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe".
Bruner (1997, pp. 145-156) analisa as concepções de Freud, Piaget e
Vigotski. E fala das teorias como produções culturais, optando pela postura
vigotskiana e seu modo de construir os fatos. Opta por Vigotski em termos de uma
concepção de educação voltada para o futuro, o devir, o que pode ser. Na esteira
das reflexões de Bruner (1997, p. 151), poderíamos dizer que a concepção de
mundo de Vigotski exige tratar a educação como aposta no porvir. Diferente de
Freud, que foca prioritariamente o passado, ou de Piaget, centrado na equilibração
de estruturas no "aqui-e-agora", Vigotski coloca a dimensão aberta das
potencialidades histórico-culturais como determinante principal do desenvolvimento
humano.
Deste modo, o educador vigotskiano, teria uma visão diferenciada das
relações entre desenvolvimento e aprendizado, dirigindo seu trabalho às
capacidades que o educando poderá desenvolver. Ele atuaria de modo distinto e,
obviamente, contribuiria na produção de contextos dialógicos diferenciados daqueles
6
É interessante que alguns autores contemporâneos, como Guattari, venham se baseando no
conceito de “polifonia”, atribuído por Bakhtin (1981, p.3) à constituição dos romances de Dostoiévski,
para pensar questões relativas aos desdobramentos da subjetividade humana. De modo que a
questão do sujeito como uma obra de arte pode ser tratada a partir de diferentes alegorias de cunho
estético, como uma pintura ou uma obra romanesca.
12
criados com base em princípios freudianos ou piagetianos. O menos óbvio é que os
múltiplos e complexos processos genéticos ali constituídos não seriam os mesmos
em cada caso. Nesta perspectiva, veríamos realidades humanas compondo-se de
modos diversos, em função dos olhares e vozes culturais em que se pautam, das
tradições em que se ancoram e das utopias a que aspiram. Haveria aí um processo
criativo, numa trama indissociável que não separa palavra e mundo. Trama que,
poeticamente, compõe realidades humanas por caminhos concretos, inusitados,
indomáveis. Como expõe Lane (1995b, p. 77): “o trabalho criativo cria o homem”.
Evidentemente, uma tensão se coloca aqui na medida em que podemos estar
fazendo ecoar vozes "idealistas", dando a impressão de estarmos falando que
teorias, ou "visões de mundo", constróem os fatos sociais e não o contrário. Como
se estivéssemos dizendo que a realidade é formada pelas nossas idéias,
contrariando todas as teses realistas clássicas. No entanto, gostaríamos de sugerir
que para contrapor o idealismo não seja suficiente evidenciar a crueza dos fatos
materialmente determinados. Pensamos que seja preciso justamente diluir a cisão
clássica entre idéia e fato, ou entre mundo das idéias e mundo sensível. Seria de se
pensar as próprias idéias, teorias, visões de mundo, como fatos sociais materiais, e
enxergar tais "fatos" não como coisas, mas como movimentos de constituição de
sentidos num circuito de realidades determinadas histórica e culturalmente.
Assim, buscamos a fidelidade à realidade e a objetividade da subjetividade,
conforme expõe Vigotski (1996, p. 383): "como existência, o subjetivo é o resultado
de dois processos, em si mesmos, objetivos".
Gonzáles Rey (2002a, p. 29) desenvolve este modo de pensar e salienta
que:
13
A subjetividade não é, como em ocasiões percebemos que é
tratada, uma negação da objetividade, mas outra forma do
comportamento objetivo do real, um real que não se expressa
em dimensões sensoriais evidentes, mas que se constitui em
complexos sistemas de sentido subjetivo e significação que
implicam um esforço construtivo do investigador para serem
conhecidos. Todas as dimensões objetivas que caracterizam a
existência humana aparecem na subjetividade constituídas em
forma de sentidos e significados, que não são simples reflexos
de uma condição objetiva única do ser humano, mas de uma
complexa rede de informações, instituições, relações, modelos,
representações, climas sociais, etc., que, ao confrontar-se com
a história do sujeito, a qual tampouco é uma soma dos feitos
objetivos que tiveram lugar em sua vida, dão lugar ao sentido
subjetivo e a significação da experiência.
E na mesma linha de reflexão, Lane (2002, p. 17), ao abordar a complexidade
da organização psíquica no tema objetividade e subjetividade, sugere a necessidade
de uma unidade dialética:
A subjetividade é construída na relação dialética entre o
indivíduo a sociedade e suas instituições, ambas utilizam as
mediações das emoções, da linguagem, dos grupos a fim de
apresentar uma objetividade questionável, responsável por uma
subjetividade na qual esses códigos substituem a realidade. Assim,
objetividade/subjetividade como unidade dialética é mediada por uma
estrutura denominada subjetividade social a qual através de códigos
afetivos e lingüísticos garantem a manutenção do status quo (grifos
no original).
Desta forma, partindo da perspectiva marxista, pretendemos mostrar as
coisas tal como são. Talvez, nesse sentido, possa parecer contraditório colocar
autores como Vigotski, Wallon e Bakhtin diante de um desafio ético-estético que não
trata de cindir radicalmente realidades e discursos, conforme propõem Guattari e
Deleuze. Mas seria de olhar mais de perto esta aparente contradição, partindo de
14
indícios das obras desses autores.
Embora Guattari e Deleuze tenham influências do marxismo, não significa que
sejam adeptos da dialética. González Rey (2003, p. 112) destaca que a reflexão
crítica produzida por Guattari tem profunda implicação social e política tanto em sua
produção individual como em conjunto com Deleuze. Por outro lado, Guattari
“compartilha a análise crítica do estruturalismo” (González Rey, 2003, p. 113).
Nossa opção é pela dialética, por isso é significativa a fala de Seabra-Diniz,
no prefácio da edição portuguesa de "Do acto ao pensamento", elogiando
abertamente a "força irresistível das idéias científicas de Wallon – força irresistível
na medida em que exprimem profundamente o real" (Seabra-Diniz, 1979, p. 7).
Também encontramos afirmações próximas a esta em outras leituras da obra de
Wallon (1971, 1986a, 1989), pois este autor entende o desenvolvimento humano sob
a ótica do materialismo histórico e dialético, referindo-se a ele não como uma
questão ideológica. Tal opção metodológica seria como um destino inevitável por
tratar-se da perspectiva que melhor dá conta da realidade humana, frente a
constatação da inegável dialética em que ela se constitui, desde seus fundamentos
biológicos (Zazzo, 1989, p. 184):
O fato de que suas descobertas confirmassem no terreno da
psicologia os princípios metodológicos enunciados por Marx e Engels
reforçava nele a convicção de que nossos trabalhos não podiam
finalizar na coerência de um sistema. O materialismo dialético,
tomada de consciência dos procedimentos eficazes da ciência e
vigilância permanente contra qualquer ideologia só admite um único
postulado: a crença no mundo exterior. Para o resto, ela é somente
uma direção de pesquisa, uma pesquisa atenta à derrotante lógica
de tudo o que vive se desenvolve e morre. O respeito aos fatos, que
aliás comanda nossa ação, é um corolário da crença no mundo
exterior. Uma dialética verbal, que desempenharia um papel de
contradição como uma receita, seria muito mais nociva que a lógica
clássica, válida pelo menos em um certo nível de aproximação. A
15
dialética marxista é função do real. E nada custa mais para o sábio,
como para o indivíduo em sua adaptação cotidiana, que o exercício
dessa função – eu repito e insisto – assim se explica, em última
análise, creio, a dificuldade da obra walloniana. O marxismo não é a
trombeta de Jericó.
Em outras palavras, Wallon teria optado metodologicamente pelo marxismo
por ser para ele o melhor modo de se compreender o real.
Para Vigotski a questão da verdade também não é colocada em segundo
plano. Numa carta para Luria ele evidencia isso em tintas fortes: "Para mim, a
questão primária é a questão do método, esta é para mim a questão da verdade..."
(Vigotski apud Valsiner e Van der Veer, 1996, p. 157). A questão do método é a de
encontrar uma forma mais correta para se dizer algo condizente com a realidade.
Vigotski (1989, pp. 82-84 ) fala da necessidade de tratar mais de processos do que
de coisas, buscando explicações mais do que descrições, para ir à essência e não
ficar nas aparências.
Vigotski (2000b, p. 25), consonante com Marx, considera que as explicações
que dêem conta da essência de um dado fenômeno só podem ser encontradas
vislumbrando o processo genético de sua constituição. Daí decorre que uma
explicação do psiquismo humano só é possível compreendendo-o como processo
histórico. O conceito de história é tomado de Marx nos seus dois significados mais
gerais, o de história como dialética e como história humana
7
. Pode-se interpretar que
Vigotski (2000b, p. 27) tenha buscado um conhecimento adequado de seu objeto
numa perspectiva metodológica histórica e dialética, essencial para sua abordagem.
7
Para Vigotski (2000b, p. 23) “A palavra história [...] significa duas coisas: 1) abordagem dialética
geral das coisas – neste sentido qualquer coisa tem sua história, neste sentido [para] Marx: uma
ciência – a história, ciências naturais = história da natureza, história natural; 2) história no próprio
sentido, isto é a história do homem. Primeira história = materialismo dialético, a segunda =
materialismo histórico” (grifos no original).
16
Esta busca pelo conhecimento se confundia com o sonho de construção de
uma nova metodologia para a psicologia, pautada na dialética (Vigotski, 1996, p.
417). Em Vigotski (1997d, p. 143) a distinção entre questões científicas e ideológicas
também está colocada, e se evidencia por exemplo quando ele diz que:
Renunciar à psicologia na hora de elaborar um sistema educativo
significaria renunciar a toda a possibilidade de explicar e de
fundamentar cientificamente o próprio processo educativo, a própria
prática do trabalho pedagógico. Significaria entre outras coisas,
construir o corpo técnico da educação social e da escola do trabalho
sobre bases exclusivamente ideológicas.
Podemos entender a relevância desta afirmação num contexto em que a
ideologização parece significar, antes de mais nada, a adesão irrestrita às posições
ideológicas das cúpulas dirigentes, em que uma dicotomia entre o psíquico e o
político tende a levar à supressão de um nível pelo outro. No entanto, as questões
que ficam não são no sentido de negar a necessidade de embate contra o
autoritarismo ou o reducionismo sociologizante, mas de colocar na berlinda a idéia
de que seja possível não tomar partido. Haveria um conhecimento crítico isento de
posicionamentos ideológicos? O ideológico
8
necessariamente contrapõe-se ao
epistemológico?
No debate contemporâneo, seja pelo impacto da antropologia estruturalista,
pelo aprofundamento dos próprios conceitos marxistas, ou pela influência de outras
8
Chaui (1980c, p. 44) considera que “o discurso ideológico é coerente e racional porque entre suas
‘partes’ ou entre suas ‘frases’ há ‘brancos’ ou ‘vazios’ responsáveis pela coerência. Assim, ela é
coerente não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas. Ela é coerente como ciência,
como moral, como tecnologia, como filosofia, como religião, como pedagogia, como explicação e
como ação apenas porque não diz tudo e não pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por
dentro. Por este motivo cometemos um engano quando imaginamos ser possível substituir uma
ideologia ‘falsa’ (que não diz tudo) por uma ideologia ‘verdadeira’ (que diz tudo). Ou quando
imaginamos que a ideologia ‘falsa’ é a dos dominantes, enquanto a ideologia ‘verdadeira’ é a dos
dominados” (grifos no original).
17
tantas vertentes, fica difícil sustentar uma oposição nítida entre conhecimento
científico e opções ideológicas. E talvez seja importante admitir que tal distinção foi,
e permanece sendo, usual em algumas correntes do pensamento marxista.
Certamente, a questão da ideologia não é definida do mesmo modo dentre as
diferentes leituras de Marx, de Althusser a Gramsci, ou de Plekhanov a Stálin.
Contudo, é preciso destacar que o materialismo histórico e dialético, como
praticamente todas as posturas epistemológicas, outorgam-se o mérito de melhor
dar conta da realidade. E daí emerge uma contradição que não podemos deixar de
evidenciar.
Ocorre que a realidade objetiva, nesse sentido, pode ser encarada como um
reino autônomo, cujas leis últimas independem de nossas avaliações e posições
subjetivas. Para ascender ao concreto, nosso pensamento necessitaria de um
método adequado, que desse conta de atingir a realidade em seu movimento
histórico e em suas relações de totalidade, não podendo pautar-se em impressões
subjetivas fragmentárias.
Vaz (2001, p. 124) aponta que em Marx as coisas estão invertidas, pois seu
método dialético esta em contraposição ao idealismo da dialética em Hegel:
O esforço gigantesco de Hegel aplica-se a conciliar a contingência
histórica e a necessidade racional, a situar a razão mesma da
história numa história da razão, que articule em imenso processo
dialético os momentos e os planos que integram a experiência total
do espírito no mundo. Ora, deste problema inicial da reflexão, Marx
inverteu a posição dos termos, mas conservou seu conteúdo. Para
ele a razão surgirá da história, e esta encontrará sua razão no
movimento dialético de suas determinações concretas.
18
Assim, para o materialismo histórico e dialético, a práxis
9
é colocada como
critério primeiro de verdade. O que está evidenciado na segunda tese contra
Feuerbach (Marx, 1987, p. 160):
A questão que se cabe ao pensamento humano uma verdade
objetiva não é teórica mas prática. É na práxis que o homem deve
demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, a
criterioridade de seu pensamento. A disputa sobre a efetividade ou
não-efetividade do pensamento-isolado da práxis – é uma questão
puramente escolástica (grifos no original).
No entanto, talvez o que possa persistir seja uma tendência de colocar o
conhecimento como progressivo processo de iluminação do real, mediante um
adequado procedimento metodológico.
Para Marx, a história e o conhecimento humano não avançam em função da
atualização do espírito absoluto na história, como em Hegel, mas no devir das lutas
entre classes sociais. Hegel é posto, como se diz, de cabeça para baixo: a ideologia
não desce à vida dos homens, mas emerge dela (Marx e Engels, 1965, pp.16-17).
Mas Marx e Engels (1965, p. 39) correm o risco de continuar tratando o
conhecimento mais verdadeiro como superação histórica dos conhecimentos
anteriores, em função do avanço das forças produtivas e do acirramento das
contradições e antagonismos. O conhecimento mais avançado surge como
superação dialética que se dá no fluxo da história das lutas, e que se efetiva numa
práxis revolucionária, por meio dela ou na própria busca de constituí-la.
O conhecimento verdadeiro, como ascensão ao concreto, alia-se à práxis
revolucionária, enquanto a ideologia idealista sustenta e é sustentada por práticas
9
Práxis “refere-se, em geral, à ação, à atividade, e no sentido que lhe atribui Marx, à atividade livre,
universal, criativa e auto-criativa, por meio do qual o homem cria (faz, produz), e transforma seu
mundo humano e histórico e a si mesmo” (Bottomore, 1983, p. 292).
19
conservadoras. As ideologias seriam conhecimentos acríticos, místicos, parciais,
visões invertidas da realidade, que se distanciariam dela inevitavelmente, com o
agravante de que sendo parciais apresentam-se como verdades universais. Em
outras palavras, há vozes marxistas para as quais o conhecimento histórico, crítico,
científico, opõe-se ao falso conhecimento constituído ideologicamente a serviço da
manutenção do status quo.
Não se trata de debatermos aqui o conceito de verdade, nem de fazer sua
arqueologia dos clássicos gregos à contemporaneidade, passando por Kant, Hegel e
Nietzsche. Tampouco teríamos fôlego para discutir os conceitos de história e
verdade em Marx e confrontá-los, por exemplo, com os de Foucault ou Deleuze.
Trata-se apenas de constatar vozes que nos sugerem uma oposição entre
conhecimentos ideológicos e conhecimentos verdadeiros. Tal oposição pode ser
definida em termos do remetimento ou não a uma realidade material aquém ou para
além dos fluxos discursivos. Nesse sentido é que podemos correr o risco de
desconsiderar a materialidade dos próprios fluxos discursivos que constituem cada
proposição dita ideológica tanto quanto cada conhecimento dito científico.
É possível que haja em Wallon e Vigotski uma aspiração à objetividade
científica
10
, pautada num conceito clássico de verdade. Tal conceito trata como
verdadeiro o discurso que corresponda ao real, mas ao pensar essa
"correspondência" acaba por definir discurso e realidade como instâncias distintas.
Pensamos que estes indícios de aspiração à cientificidade, e de distinção entre
10
Marx considera que consciência, idéias e produção intelectual humanas têm raízes na vida
material. Elas refletem as relações concretas dos homens com outros homens e com a natureza. Em
determinadas situações, essas representações são mistificações da realidade (falsa consciência),
ideologia ou “sublimações necessárias do seu processo material de vida” (Marx e Engels, 1984, p.
193). Cabe a ciência, objetivamente, revelar a realidade efetiva que encontra-se escondida sob o véu
de idéias mistificadoras.
20
realidade e signo, possam ser confrontados com vozes dos mesmos autores em
suas teses sobre o devir material da significação. O mesmo pode ser dito quanto aos
mesmos indícios de dentro da própria filosofia marxista.
Para disparar este confronto, poderíamos convocar vozes de Mikhail Bakhtin
(1992, p. 67), um outro autor que comporta vozes metodológicas explicitamente
marxistas. Para ele todo signo é material e ao mesmo tempo ideológico. Ao dizer
que "tudo que é ideológico é um signo" (grifo no original) é bem provável que Bakhtin
(1992, p. 31) não esteja falando de ideologia como falsa consciência, mas admitindo
o caráter de juízo de valor, inevitavelmente constitutivo de cada enunciação. Ao
mesmo tempo confere materialidade à ideologia, uma vez que o signo ideológico é
visto como "fragmento material da realidade" (Bakhtin, 1992, p. 33).
Na vida concreta, socialmente circunscrita, fica difícil dizer que a luta seja
entre a constatação racional ou prática da realidade histórica e o mascaramento
imposto pela ideologia, e seus respectivos aparelhos. Sequer pode-se dizer que uma
maior ou menor consciência histórica tenha a ver com este confronto no interior de
cada pessoa: a verdade contra a mentira, os fatos contra as ideologias. São
realidades lutando contra realidades, sentidos contra sentidos, numa arena material.
No exemplo que temos tomado, esta arena é a terra. Signo de sucesso e
merecimento ou de roubo e exploração. Lugar de libertação e opressão, de vida e de
morte. Matéria bruta, cujo domínio perpetua ou mata a fome.
Lane (1995a, p. 62) argumenta que “neste contexto, a ideologia dominante
tem por função obscurecer as contradições sociais, justificando a opressão e a
exploração de seres humanos como naturais e necessárias, visando à manutenção
das relações de poder”.
21
Nesta arena o confronto é político. Não se trata de luta do bem contra o mal,
nem há balança que os equilibre numa justa e cega medida. De diferentes
perspectivas os valores se alteram, os sentidos mudam e as realidades se
constróem de modos distintos. Quando se trata de epistemologia a questão continua
sendo complexa, porque é atravessada pelas mesmas lutas sociais. O que é
verdadeiro, justo ou correto, sempre o é num determinado sistema de crenças, numa
hierarquia de valores culturalmente determinados e voltados a determinados
interesses. Tem sido difícil sustentar, na contemporaneidade, a idéia de uma razão
neutra que progressivamente ilumina uma realidade cujas leis objetivas estariam
dadas de antemão.
De fato, ao dizer estas coisas, é prudente levar em consideração uma
distinção, também bakhtiniana, entre ciências humanas e ciências naturais, e
circunscrever o debate às humanidades, conforme expõe Freitas (2006, pp. 24-25):
Inverte-se, desta maneira, toda a situação que passa de uma
interação sujeito-objeto para uma relação entre sujeitos. De uma
orientação monológica passa-se a uma perspectiva dialógica. Isso
muda tudo em relação à pesquisa, uma vez que investigador e
investigado são dois sujeitos em interação. O homem não pode ser
apenas objeto de uma explicação produto de uma só consciência, de
um só sujeito, mas deve ser também compreendido, processo esse
que supõe duas consciências, dois sujeitos, portanto dialógico (grifos
no original).
Ou seja, na abordagem bakhtiniana as ciências humanas têm como objeto um
sujeito – posto que fala. Sujeitos não são objetos mudos, pois têm vozes próprias e
pronunciam-se sobre sua existência. Mas quem fala, fala com alguém, para alguém,
contra alguém. Assim, ao abordar seu "objeto", o pesquisador das ciências humanas
precisa admitir que ele tem algo a dizer. Além disso, e ao mesmo tempo, este
22
pesquisador precisa falar também, pois compreender é falar, dialogar, produzir uma
réplica. Falando, replicando, compreendendo, eu também me defino como sujeito
numa relação em que não me basto, pois me dirijo sempre a outros sujeitos. Deste
modo, a busca de compreensão do "objeto" nas ciências humanas seria uma trama
inter-constitutiva, dialógica e ideológica, própria da realidade humana.
Não iremos nos estender aqui às realidades de que trata a física por exemplo,
ainda que mesmo estas andem muito mais fluidas do que se pode pensar no senso
comum. Mas quando falamos de composição ideológica da realidade, pensamos
fundamentalmente em realidades propriamente humanas, em fenômenos que não
podem estar imunes à interpretação que deles se dá, pois esta lhes é justamente
constitutiva.
Tendo em vista este recorte, parece-nos que uma inversão necessária seja
tratar o signo ideológico na sua materialidade, e a materialidade humana no seu
caráter ideológico e sígnico. Assim, de certo modo, o estudo que pretendemos
desenvolver envolve a relação da ação que se faz palavra e que desloca nosso
próprio olhar metodológico tanto quanto recorta nossa reflexão psicológica.
De Vigotski podemos tomar a palavra como chave tanto para a psicologia
quanto para a metodologia. Há indícios disso na proposição metodológica de que "a
palavra é o gérmen da ciência, e neste sentido cabe dizer que no começo da ciência
estava a palavra" (Vigotski, 1997a, p. 281), tanto quanto na proposição psicológica
de que "uma palavra é um microcosmo da consciência humana" (1998a, p. 190).
Mas o verbo, o logos, não é força abstrata que engendra a história de seu interior.
A inversão demoníaca do Mefistófeles de Goethe é cara à psicologia
vigotskiana: "no princípio era a ação" (Goethe apud Vigotski, 1998a, p. 190). Em
23
Wallon (1989, p. 194), o ato também é fundante com relação à função simbólica. No
entanto, se para ambos os autores a ação é fundante não é porque o pensamento
verbal lhe venha em simples substituição, mas porque só pode existir enquanto
materialidade. A palavra vista em sua gênese realiza seu devir enquanto ação,
emerge da vida e confunde-se com ela.
Nesse sentido, a contradição de que falávamos anteriormente mostre-se
como um confronto de vozes, do que como erro lógico. É próprio do materialismo
histórico e dialético buscar a verdade sobre o real, tanto quanto pode lhe ser próprio
pensar as significações como emergentes e constitutivas da vida humana. Sendo
assim, uma leitura poética justificaria sua “validade”, pois não visa conciliação
definitiva entre as contradições, nem sua redução a uma coerência lógica
aristotélica, mas procria contradições e delas se compõe, conforme expõe Lefebvre
(1983, p. 192):
A contradição não é mais inteiramente a contradição formal. Trata-se
de uma contradição "em ato" (...). Essa contradição dialética tem sua
raiz profunda no conteúdo, no ser concreto: nas lutas, nos conflitos,
nas forças em relação e em conflito na natureza, na vida, na
sociedade, no espírito humano. Não apenas A, a identidade imóvel,
não basta e não se basta, como também, no real e no pensamento,
A torna-se necessariamente, ao mesmo tempo, A' e não-A', depois
A'', etc.
A contradição dialética (na condição de ser tal, e não uma oposição
formal ou uma simples confusão) deve ser encarada como sintoma
de realidade. Só é real aquilo que apresenta contradições, aquilo que
se apresenta como unidade de contradições.
O homem é real e viril na medida em que luta contra a natureza, ele,
que é um ser da natureza.
O homem é tanto mais rico espiritualmente quanto mais apresenta
aspectos múltiplos e contraditórios. E a virilidade, nesse caso,
consiste em manter as contradições, suportá-las - apesar da luta e
da dor - a fim de nada perder delas (grifos no original).
Ou seja, pensamos que a busca de verdades contundentes seja uma questão
24
política, pois diz respeito à vida concreta de pessoas de carne e signos. Só não
podemos aceitar o mito de que o cientificismo trate de buscar verdades, pois seriam
elas que o destronariam. Desse modo, segundo entendemos, uma guinada ético-
estética não diminui em nada a busca pela verdade, pois continuamos a nos
comover com as palavras de Deleuze (1994, p. 197) quando diz que “cabe-nos ir até
os lugares extremos às horas extremas onde vivem e se erguem as verdades mais
elevadas, mais profundas”.
Parece-nos que encarar nossos conceitos como amálgamas ético-estéticos é
justamente estar mais consonante com as nuances da vida humana concreta,
dinâmica e inapreensível, polissêmica e polifônica. É apresentarmo-nos tal como
vimos a ser, tal como nosso mundo vem a ser. Todos seríamos como que filhos das
estrelas, no sentido mais literal. Uma dobra delas, que a elas escapa e a elas
pertence. Se assim for, ou assim fizermos ser, por que haveremos de manter as
luvas?
25
1 A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE
Tirar as luvas, ao tratar a questão da subjetividade, é uma metáfora que diz
respeito ao próprio modo de conduzir um trabalho acadêmico sobre este tema. No
entanto, como vimos, a discussão que acabamos de esboçar não só atravessa a
metodologia deste trabalho mas se relaciona à própria natureza de seu objeto. A
palavra de um pesquisador não é realidade abstrata, isolada das condições e
contradições concretas de sua existência. O mesmo pesquisador, buscando a
especificidade da subjetividade humana, passa a reconhecer-se, em seu próprio
trabalho, como um caso particular da generalidade que procura pronunciar à
sociedade. Aqui optamos por estudar uma generalidade poética da subjetividade
humana, mas o que temos a dizer sobre este movimento constitutivo?
O verbo como signo de dualidade
Para falar da gênese do psiquismo humano, tanto Vigotski (1998a, p. 190)
quanto Wallon (1979, pp. 116-117) recorrem ao célebre enunciado do Mephistófeles
de Goethe: “no princípio era a ação”. Tais autores rejeitam uma abstrata
antecedência genética do pensamento verbal, insinuando esse contraponto ao
Evangelho de João (1997, p. 1157), no qual proclama que “no princípio era o verbo”.
Contudo, se nos deslocarmos da estrita constatação de uma precedência
ontogenética da ação, talvez possamos trilhar um caminho mais complexo e
26
produtivo na analogia e diferença entre estas palavras-chave. O “Verbo” não é
criado, pois tudo foi feito por Ele, inclusive a própria humanidade. De onde se deduz
que o dito de que “O Verbo se fez carne” (Evangelho de João, 1997, p.1157), não
significa apenas uma união da natureza divina com a humana, mas também supõe
uma precedência daquela em relação a esta. Já que sem o “Verbo” nada teria sido
criado, pois no princípio o “Verbo” estava Deus e o “Verbo” era Deus.
Mas João (1997, p.1157) escreveu “In principio erat Verbum”. “Verbo” (em
português) e “Verbum” (em latim) são traduções da palavra grega “logos” – que
dentre suas múltiplas acepções, pode significar “palavra”, “discurso” e também
“razão”. Deste modo, configura-se uma importante tensão semântica e pragmática
no interior do texto de João. Por um lado, o “Verbo” foi literalmente pronunciado
como “logos”, voltando-se para interlocutores gentios que se faziam destinatários da
boa nova.
Por outro lado, o significado deste mesmo “Verbo” não poderia confundir-se
com o de uma razão humana, pois remetia à voz absoluta de um Deus cujo nome
sequer poderia ser pronunciado. O “logos” no novo testamento está sob influência
do hebraico “dabar”, que significa “Voz”, “Palavra” e, freqüentemente, “Palavra de
Deus” (Mora, 2001, pp. 1794-1796). O “Verbo”, enunciado por João (1997, p.1158),
remonta assim ao próprio Gênesis, coincidindo com a “Palavra” absoluta que, no
mesmo instante em que se pronuncia, faz acontecer tudo o que existe. Na tradição
cristã, é esta “Palavra” que se faz homem – e, mais propriamente, o “Filho do
homem” – rompendo tradições e materializando profecias.
A poética desta simbologia é inalienável da cultura religiosa em que se
inscreve, e nesse sentido não nos cabe questioná-la, em absoluto. No entanto, se
27
Wallon (1971, p. 13) e Vigotski (2000a, pp. 484-485) jogam alegoricamente com as
palavras de Goethe, para lidar com as tramas da ação e da significação, também
podemos tomar a "primazia do verbo sobre a carne" como uma produtiva alegoria,
um enunciado prenhe de imagens polissêmicas. Uma alegoria que nos permite
operar poeticamente com indícios de diferentes tradições de pensamento, cujo ponto
de convergência residiria em postularem, de um modo ou de outro, uma prioridade
ontológica das formas transcendentes da razão e da lógica sobre a concretude
histórica do mundo e da vida material.
A tensão presente no "'logos" pronunciado por João (1997, p.1157), não é
exatamente levada em consideração por Vigotski (1989, pp. 131-133) e Wallon
(1986a, p. 118). O contraponto destes psicólogos às escrituras cristãs acaba sendo,
antes de mais nada, um deslocamento metafórico que se compõe como confronto à
primazia da lógica, ou do "logos" grego. Ambos se opõem abertamente às
tendências psicológicas que colocam a construção de estruturas lógico-matemáticas
universais como o suporte fundamental para o desenvolvimento humano.
Neste sentido, pensamos que seja produtivo considerarmos justamente esta
vertente analógica, metafórica, e caminhar de modo similar ainda que em outra
direção. Não falaremos da polaridade entre a "ação" e o "verbo", mas da oposição
entre materialidade e significação, cuja penetração radical em nossa cultura parece
servir de sustentação para outras importantes dicotomias. Deste modo, é
confrontando o caráter arquetípico da "palavra-razão" que podemos mover a
alegoria fundamental do nosso trabalho, buscando constituir um sentido ético e
estético para esta tese.
Tal tese, mesmo enquanto alegoria, não pode ser uma inversão simétrica do
28
texto bíblico. Se, em João (1997, p.1157), é um "Verbo" absoluto que se faz carne
humana, aqui não tomaremos a "carne" ou o "verbo", que dela se desdobra, como
princípio ou fim absolutos, mas como aspectos de um único e contraditório devir
material, acontecimento e travessia.
O que importa, nesse momento, é nos situarmos no confronto com algumas
tendências cujo mister tem sido postular uma "razão universal" pautada ou inscrita
em alguma "lógica" abstrata, que rege o universo desde sempre e para sempre.
Trata-se de confrontarmo-nos com concepções de mundo que, de algum modo,
identificam a essência primeira das palavras com algum movimento anterior e
transcendente ao surgimento dos seres particulares, circunscritos, encarnados. Mais
do que isso, cabe-nos destacar indícios de que esta essência universal abstrata
muitas vezes foi posta em relação de oposição com a vida mundana, com as
experiências que os homens concretos têm do mundo e no mundo.
As leis universais, inscritas no "logos" (da tradição grega) ou adequadas à
"razão" ("ratio" – na tradição latina), seriam anteriores e superiores ao homem e
portanto ao seu movimento histórico (Mora, 2001, pp. 1794-1796). Mas, de algum
modo, este mesmo homem poderia vir a reconhecer aquelas leis, pois sendo
derivado delas caracteriza-se também como um ser de razão, ou como ser dotado
de um "raciocínio lógico" de caráter universal. No entanto, como as sensações que o
mundo nos apresenta são ardilosas, nossa existência material nos desvia e nossas
paixões nos transtornam. E por fim é como se tendo sido concedida ao homem uma
existência material, esta se tornasse sua carga. Uma sina de vagar pelo mundo
buscando resgatar uma aliança perdida com a ordem transcendente que o teria
engendrado e da qual, por alguma força misteriosa, teria sido desviado.
29
De certo modo, encontramos indícios dessa relação de oposição já em
pensadores pré-socráticos como Parmênides (apud Mondolfo, 1968, pp. 102-103).
Para ele não haveria distinção entre o "ser" universal único e seu perpétuo "existir":
Parmênides repudia o testemunho dos sentidos e nega a realidade
objetiva do devir pela contradição que este implica, ao aceitar a
passagem do não-ser para o ser e vice-versa, como se ambos
pudessem ter a mesma realidade e transformar-se um em outro, isto
é, identificar-se mutuamente. Contra os que aceitam e asseveram o
devir – e de maneira especial contra Heráclito – “mortais que nada
sabem, gente de dupla cabeça”, Parmênides diz que “a insensatez
dirige em seu peito o pensamento vacilante; e eles são arrastados
para cá e para lá, mudos e cegos igualmente, tolos, multidão
insensata, para os quais o ser e o não-ser parecem o mesmo e não o
mesmo, e o caminho de todas as coisas é reversível”.
Dos dois caminhos opostos imagináveis: o que afirma a realidade do
ser e sua necessidade (impossibilidade do não-ser, e por fim do
devir), e o que assevera como real e necessário o não-ser (condição
imprescindível do devir, que é conversão do não-ser em ser e vice-
versa), Parmênides declara que o primeiro é o caminho da
persuasão que segue a verdade e o segundo um caminho
absolutamente impossível de percorrer, porque o não-ser é
impensável e inexpressável.
Mas, além disso, seria imanente à natureza de tudo o que existe, uma
essência universal imutável e ordenada, cujo movimento e desordem não passariam
de aparências enganosas. Já na filosofia platônica a distinção entre a aparência e a
essência das coisas toma um caráter mais radical e uma elaboração mais apurada.
Platão (apud Mondolfo, 1968, p. 139) fala de "idéias" pré-existentes aos seres
sensorialmente tangíveis, e privilegia o movimento pelo qual o filósofo faz com que a
luz da razão atinja a essência das coisas. A busca é por recordar conceitos cuja
concretude eterna é resguardada num mundo inteligível, enquanto a realidade
sensível é tomada como um mundo de sombras ou aparências.
Mais de dois mil anos depois das formulações dos primeiros filósofos, vamos
constatar que uma anterioridade de princípios universais com relação à vida
30
concreta tem estado presente em pensadores de diferentes perspectivas. Refeita de
modo mais ou menos radical em formulações bastante diversas, ela parece
deslocar-se por todo o pensamento ocidental, vindo ter em Hegel (apud Marx e
Engels, 1965, p. 661) uma de suas maiores expressões contemporâneas.
A filosofia alemã moderna encontra seu remate no sistema de Hegel,
na qual – e este é um grande mérito – se expõe pela primeira vez ao
mundo todo, tanto o mundo da natureza como o mundo histórico e
espiritual, como um processo... Hegel libertou a concepção de
história da metafísica e fez dela uma concepção dialética.
É certo que Hegel (1996, p. 300), tal como os opositores de Parmênides, não
pretende pautar-se no princípio da "identidade", mas no princípio dialético da
"contradição". Tanto quanto é certo que Hegel (1996, p. 307), como todos os
grandes pensadores ocidentais a partir de Kant (1996, p. 56), já não pode encarar a
inteligibilidade do mundo do mesmo modo que os antigos gregos.
No entanto, a dialética de Hegel (1996, p. 312), mesmo no quadro do discurso
filosófico da modernidade, postula ainda um Espírito Absoluto, anterior a tudo que é
relativo, e que se atualiza no mundo mediante o movimento da história. A história
material tem lugar como uma atualização de um princípio imaterial, uma instância
abstrata cujo devir não escapa de fortes princípios teleológicos: a história tem um
sentido e uma finalidade. Um movimento contraditório é imanente à história, mas
ainda como uma atualização de tal finalidade. Desse modo, mesmo em Hegel (1996,
p. 324), o princípio absoluto pelo qual o mundo se põe em movimento jamais poderia
rebaixar-se ao estatuto de uma invenção humana. Tal princípio poderia ser visto
como o próprio discurso do universo, sua lei primeira e última – o alfa e o ômega.
Neste sentido, o enunciado cristão de que "o Verbo se faz carne” não será
31
tomado aqui nas sutilezas de sua hermenêutica, mas como densa e polissêmica
alegoria de diferentes tradições culturais. Tradições cujas raízes teológicas ou
teleológicas conformam uma importante ruptura e antecedência de princípios
universais abstratos com relação à vida material, concreta e situada. Tradições que
acabam colocando a materialidade da vida humana como uma espécie de
concessão ou desdobramento de alguma instância absoluta. Nestas vertentes o
mundo dos homens seria uma expressão particular de alguma ordem universal ou
transcendente.
Contudo, se esse mesmo mundo aparenta conter um caos incompatível com
tal ordem universal, torna-se necessário domar suas contradições e submetê-las
novamente a um princípio de identidade. O que não deixa de ter conseqüências de
cunho moral. Como se a vida humana, sendo atravessada por inúmeras paixões,
passasse a ter um valor inferior ao das leis transcendentes que teriam permitido seu
surgimento. Ou como se tudo o que gera a infelicidade humana derivasse de termos
nos perdido dos princípios racionais que garantiriam o bem-estar da humanidade em
consonância com uma perene harmonia cósmica. De acordo com Sawaia (1995, p.
49), os homens não fazem uma opção entre o bem e o mal:
O compromisso ético não é uma questão de persuasão ou opção
puramente racional entre virtude e pecado. Ele é vivido como
necessidade do eu, como desejo, motivação. Mesmo quando o
indivíduo age em nome do bem comum, a atividade implica o
exercício da motivação individual. Ninguém é movido por interesses
universais abstratos e não se pode pedir ao homem que abandone a
esfera pessoal de busca da felicidade. Mas se deve impedir que esta
busca cerceie a dos outros ou implique a instrumentalização da
alteridade.
A "carne", que tomamos aqui como signo da vida humana, é tida como falível,
32
mutável, contingente, finita e temporal. O "Verbo", por sua vez, entendido como um
princípio imanente à ordem cósmica, é visto como infalível, imutável, necessário,
infinito e atemporal. Trata-se de uma plenitude à qual os homens só poderiam
ascender ou retornar mediante um distanciamento de sua própria condição concreta.
Afinando-nos com a harmonia do mundo, poderíamos progressivamente descobrir
ou recordar princípios nele contidos, que o regem desde sempre e continuarão a
regê-lo por toda a eternidade. Num sentido próximo, mas não idêntico, poderíamos
dizer que a "'carne" de cada homem comum reencontraria assim um "Verbo" que a
criou e que nela está contida.
O sujeito moderno na esteira de um dualismo
Mas em que estes indícios, de uma primazia de princípios universais
ordenados sobre a concretude desviante da vida material, haveriam de relacionar-se
com uma proposição contemporânea sobre o devir da subjetividade humana?
Ocorre que uma das principais definições de sujeito e subjetividade,
instaurada com o advento da modernidade e com a qual vimos operando até os
nossos dias, pauta-se justamente no princípio de uma palavra humana que
passa a reconhecer-se enquanto tal. O sujeito moderno define-se como
movimento auto-reflexivo, identificando-se como um ser livre, que pensa e questiona
sua própria existência.
No entanto, a essência deste movimento reflexivo não é facilmente vinculada
às nuances de uma vida concreta, ou aos desvios da "carne", que aqui tomamos
33
como metáfora do humano enquanto materialidade historicamente situada. Ao
contrário, a palavra que corre ao redor de si mesma, nas tramas reflexivas da razão
humana, mesmo na modernidade, busca justificativa em alguma ordem
transcendente ao indivíduo ou à materialidade de seu corpo.
Pelo menos desde Santo Agostinho (1996, p. 54), e mais recentemente a
partir de Descartes (1996b, pp. 277-278), o homem vem sendo definido basicamente
como portador de uma essência pensante que não se confunde com a materialidade
de seu corpo. Uma ruptura inconciliável entre o fluxo do discurso e a concretude da
vida material sustenta uma concepção de sujeito como um ser autônomo, de sua
palavra como realidade imaterial e de seu corpo como matéria muda, subordinada a
causas exteriores.
Contudo, se o conceito cartesiano (Descartes, 1996a, p. 92) de sujeito,
condensado no "cogito ergo sum" (penso, logo sou), pode ter rudimentos na
patrística de Santo Agostinho (apud Mora, 2001, p. 2219) e mesmo no dualismo
platônico (Mondolfo, 1968, p. 143), ele não deixa de ser um enunciado próprio da
modernidade.
Segundo Habermas (1990, p. 17), Hegel foi o primeiro a caracterizar a
modernidade por sua necessidade de auto-certificação, colocando a liberdade da
subjetividade como "'princípio dos tempos modernos". Hegel vê a grandiosidade de
sua época no "reconhecimento da liberdade, a propriedade do espírito, o
reconhecimento de que o espírito estando em si está consigo" (apud Habermas,
1990, p. 27).
A modernidade ao instaurar no indivíduo o arbítrio e o reconhecimento de
seus desígnios, estabelece uma tentativa de substituição de um "paradigma
34
teológico" por um paradigma "cientificista". No entanto, a tradição de que leis
universais antecedem a história humana parece atravessar também o surgimento do
conceito moderno de sujeito como razão autônoma e auto-reflexiva. Conceito do
qual deriva uma idéia de subjetividade como experiência íntima, intransferível, e
indissociável deste mesmo sujeito (Mora, 2001, pp. 1990-1991 e pp. 2199-2200).
Opera-se uma virada copernicana nas relações do indivíduo com o mundo
objetivo e com o próprio conceito de divindade e transcendência. Mas, ainda assim,
o corpo concretamente situado parece continuar, para muitos pensadores modernos
como Descartes, Rousseau ou Kant, em relação de oposição com o movimento pelo
qual o sujeito logra captar a essência das coisas.
Parece inevitável a tentação moderna de vincular a palavra humana a alguma
"Palavra" transcendente, inerente à própria natureza das coisas, e que não pode
coincidir com as enganosas aparências tangíveis pelos órgãos dos sentidos. Ora, o
sujeito moderno acaba sendo ainda uma instância que aspira a uma unidade
ordenada e transcendente (Mora, 2001, pp. 2532-2533).
Se seguirmos um outro caminho, a conceituação moderna de sujeito e
subjetividade pode ser relacionada à emergência material de novas relações
econômicas e culturais, que criaram uma modalidade específica de vida privada
para o homem ocidental europeu.
Um modo de vida que não existia antes do advento da empreitada capitalista,
ou de suas conseqüências nos marcos da Reforma, do Iluminismo e da Revolução
Francesa. Tal advento refez as condições de vida do homem ocidental, instaurando
o sujeito como ser auto-contido, ciente de sua própria existência e pensamento,
dotado de vontade própria, autor individual de seus atos e aspirante à cidadania. O
35
sujeito, de certo modo, seria uma "invenção da modernidade", aliada à constituição
de um conceito moderno de razão e ao estabelecimento de novos modos de por ela
proceder (Mora, 2001, pp. 1440-1441).
No entanto, ao encararmos as coisas dessa maneira, partimos de princípios
distintos daqueles que norteavam os sistemas de Descartes ou de Hegel, pois
procuramos ver na história material as condições de produção da enunciação que
funda o sujeito e a subjetividade. Mas, mesmo olhando a origem destes discursos, é
preciso admitir que a interioridade da subjetividade, tal como definida com a
modernidade, foi concretamente conceituada e vivida como movimento autônomo da
razão buscando apreender a si mesma (Mora, 2001, pp. 670-672 e pp. 1288-1289).
Na antiguidade grega (Mora, 2001, p. 1794) o "Logos" chegou a ter o estatuto
de essência do mundo objetivo. Na Europa medieval, em alguns momentos, esta
visão parece ter logrado subordinar-se à fé na revelação de um "Verbum". Com a
modernidade há uma tentativa de despir esta crença de sua mística. Mas, ainda
assim, uma cisão entre a matéria e a palavra pode continuar presente, plasmada
num dualismo entre a coisa extensa e a coisa pensante, que ganha densidade no
cogito. Este por sua vez, centrado no indivíduo, emerge como movimento racional
subjetivo e fundamento primeiro da vida social.
Ao longo dos séculos, a palavra humana tem sido submetida, de diferentes
maneiras, a algum tipo de lei eterna e transcendente da qual seria originada ou à
qual deveria adequar-se. Como veremos posteriormente, encará-la como função da
vida material e como movimento desviante e poético tem sido uma tarefa relegada.
36
Crise do sujeito e dispersão da palavra
Todo o projeto moderno está pautado no conceito de uma liberdade individual
respaldada pelo poder da Razão. O indivíduo está agora no centro, mas justifica o
fato de colocar-se neste lugar por sua capacidade de bem proceder no caminho da
verdade. Atinando com as formas transcendentes da Razão, o homem europeu
ocidental generosamente dispõe-se a levar as suas luzes para todos os recantos do
mundo carentes de civilização. Este projeto moderno acaba sendo respaldado, de
algum modo, pela idéia de que a partir da intimidade do sujeito é possível atingir
categorias universais, capazes de nortear o agir humano na construção de sua
progressiva caminhada histórica (Mora, 2001, pp. 2455-2458).
Contudo, este projeto não permaneceu intacto no decorrer dos séculos. A
interioridade, autonomia e voluntariedade da experiência subjetiva, são aspectos da
vida humana que têm sido contestados a partir de distintos referenciais. Em Freud
(apud Herrmann, 1991, p. 28), o conceito de inconsciente desloca a idéia de domínio
voluntário dos atos humanos. Em Nietzsche (1996, p. 55), a verdade deixa de ter
uma justificativa última nas necessidades da razão e passa a estar vinculada a uma
vontade de poder. Em Marx e Engels (1965, pp. 47, 490, 548), as ações dos sujeitos
só podem ser compreendidas remetendo às relações sociais, na luta entre classes,
e as consciências individuais estão sujeitas à alienação, mediante diferentes
inversões ideológicas.
Esses quatro grandes pensadores, cada qual de um modo bem distinto,
podem nos servir como emblemas de um deslocamento do sujeito enquanto
interioridade que auto-certifica-se. Eles nos dão indícios de que a modernidade
37
talvez já não possa mais pautar-se nos mesmos conceitos de liberdade e reflexão
com que Hegel (1996, p. 303) explica o princípio da subjetividade, enquanto
caracteriza os tempos modernos.
Tais deslocamentos radicalizaram-se ao longo do século XX, em pelo menos
duas dimensões: a desconstrução do sujeito como cogito, e a crítica ao conceito de
história como progresso e continuidade. A dissolução do sujeito edificado com a
ascensão da burguesia, parece ter se tornado bastante evidente, pois foi
diagnosticada em perspectivas tão distintas quanto a de Adorno e Horkheimer
(1985, p.40), por um lado; e as de Foucault (1995, p. 7), Deleuze e Guattari (1996, p.
84) por outro.
O sujeito, por assim dizer, perde sua substância, tornando-se um nó periférico
numa rede de discursos, ou ainda um subproduto forjado na sociedade de total
administração. Já a oposição ao conceito hegeliano de história é bem mais evidente
em Foucault do que em autores de algum modo pautados numa tradição marxista
e/ou iluminista como Adorno, Horkheimer ou Habermas. A crítica da razão moderna
é feita a partir de diferentes referenciais flutuando entre a reafirmação da
modernidade enquanto "projeto inacabado" (Habermas, 1990, p. 1) e a proclamação
do seu fim pelo esgotamento de seus fundamentos (Vattimo, 1996, p. 110),
implicando a instauração de uma pós-modernidade
11
.
Vemos assim que nossos tempos, cuja definição permanece em disputa, já
não suportam a primazia de uma palavra que busca captar a si mesma. O cogito é
destronado e dispersa-se em exterioridade. Tal exterioridade é interpretada de
11
"Pós-modernidade” é um conceito extremamente polissêmico e complexo, pois envolve questões
tecnológicas, estéticas, filosóficas, sociológicas e políticas. Mas de um modo genérico pode ser
entendido como referente à queda das garantias absolutas para o agir humano em seus diferentes
níveis de articulação social e cultural. E vincula-se tanto à crítica ferrenha ao conceito de história
como progresso, quanto à desconstrução do sujeito como cogito.
38
diferentes modos. Alguns, como Foucault (1986, p.109), desmascaram a razão em
função das tramas de poder que a determinam, marcando que o sujeito é antes
falado do que falante: "descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste
em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem
querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo
para ser seu sujeito". Outros, como Habermas (1990, p. 277), preferem resgatar a
razão que emerge de ações comunicativas, "numa interação linguisticamente
mediada", onde há uma alternância entre os falantes numa trama intersubjetiva.
Mas como pensar essa exterioridade da linguagem, ora tida como razão
dissimulada a serviço de um implacável exercício do poder, ora pautada em normas
hermenêuticas de uma razão comunicativa? Em que lugares a contemporaneidade
edificaria a morada de um "verbo" que fosse tomado como palavra humana? Que
papéis ela poderia atribuir aos desvios da "carne", na desviante concretude da vida?
Para Deleuze e Guattari (1995, p. 13), "a linguagem não é a vida, ela dá ordens à
vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda”.
Para Habermas (1990, p. 277), o "poder" aparece na filosofia de Foucault
como uma "constante no vaivém dos discursos dominadores e dominados" que não
passaria de um "equivalente para a "vida" de filosofias da vida envelhecidas". Por
um lado seria de perguntar: existe alguma vida humana anterior à linguagem?
Haveria uma função para a linguagem que não fosse a de impedir a vida? Por outro,
como isentar os discursos das relações de poder, sem vê-los como apartados ou
transcendentes à vida? É desejável pensar a vida, o poder e os discursos residindo
em lugares distintos?
De algum modo, parece que nos deparamos com diferentes reafirmações de
39
uma cisão originária entre a materialidade da vida e as formas abstratas da palavra,
enquanto movimento discursivo, restando-nos configurar relações de subordinação
entre estas instâncias. Mas, diante destas opções contemporâneas, como enxergar
a emergência da subjetividade humana a partir de uma exterioridade? Como fazê-lo
sem postular o "fim do homem", ou sem recorrer aos critérios normativos de uma
razão universal? Talvez seja necessário confrontar justamente aquela cisão
primeira, buscando outros rumos para o debate contemporâneo. Seria o caso de
fazermos ecoar algumas vozes profanas que vêem no próprio "verbo", enquanto
palavra humana, uma materialidade inalienável da vida concreta, com todas as
contradições da carne: seus jogos de poder e seu desejo utópico de comunhão.
A alienação
A alienação envolve a relação do sujeito com seu meio social e com tudo
aquilo que é produzido pelo homem. O homem é o ponto de partida, por ser
concreto e real, e por ser produto das condições sociais. Desta forma, relaciona-se
tanto ao processo da produção de bens materiais (divisão do trabalho), como à vida
social do homem (sistema de valores).
A alienação tem seus fundamentos materiais principalmente na alienação dos
meios e instrumentos de trabalho e, por conseqüência, dos produtos do trabalho em
relação aos produtores. O sujeito está alienado ao não se reconhecer no produto do
trabalho, pois o processo de objetivação-subjetivação fica deturpado através da
alienação. Marx (1983, p. 139) considera que:
40
A força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado
à medida que e porque ela é oferecida à venda ou é vendida como
mercadoria por seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a
força de trabalho. Para que seu possuidor venda-a como mercadoria,
ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprietário de sua
capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de
dinheiro se encontram no mercado e entram em relação um com o
outro como possuidores de mercadorias iguais por origem, só se
diferenciando por um ser comprador e o outro, vendedor, sendo
portanto ambos pessoas juridicamente iguais. O prosseguimento
dessa relação exige que o proprietário da força de trabalho só a
venda por determinado tempo, pois, se a vende em bloco, de uma
vez por todas, então ele vende a si mesmo, transforma-se de homem
livre em um escravo, de possuidor de mercadoria em uma
mercadoria. Como pessoa, ele tem de se relacionar com sua força
de trabalho como sua propriedade e, portanto, sua própria
mercadoria, e isso ele só pode à medida que ele a coloca à
disposição do comprador apenas provisoriamente, por um prazo de
tempo determinado, deixando-a ao consumo, portanto, sem
renunciar à sua propriedade sobre ela por meio de sua alienação.
Em relação à alienação no processo de trabalho, podemos dizer que o
desenvolvimento do capitalismo levou à fragmentação do próprio processo de
trabalho – o que antes era produzido do começo ao fim por uma única pessoa,
tornou-se parcelado, ou seja, ocorreu uma divisão técnica do trabalho em que cada
trabalhador conhece apenas uma pequena parcela do processo, não tendo seu
domínio como totalidade.
Os sujeitos pertencentes à classe proprietária dos meios de produção
também se encontram alienados – do processo de trabalho, da prática técnica – pois
a divisão do trabalho está colocada nas relações sociais, das quais participam todos
os seres humanos. Entretanto, essa classe beneficia-se dessas relações, buscando
mantê-las.
Entendemos a relação singular-universal como a relação entre o sujeito e o
gênero humano e que essa relação é mediada por outra – entre o sujeito e a
sociedade – podemos pensar que a sociedade capitalista, na medida em que aliena
41
os seres humanos que fazem parte dessa formação social, não possibilita que os
sujeitos singulares usufruam das potencialidades genéricas da humanidade. Dessa
forma, a sociedade capitalista, como mediação da relação entre sujeito e gênero
humano – “mutila” os seres humanos das potencialidades históricas da humanidade.
Ainda que nosso ser seja o ser genérico
12
, os seres humanos da sociedade
capitalista não correspondem ao ser genérico, pois estão “mutilados”. Ao estarem
impossibilitados de manter uma relação orgânica com a sociedade e com os
produtos sociais, os sujeitos estão “mutilados” das potencialidades do ser humano
genérico, ou seja, estão alienados.
Apesar disso, é requerido do sujeito que ele corresponda ao ser genérico,
exercendo tais capacidades e potencialidades que o homem já produziu; porém, a
sociedade capitalista não permite que a humanidade realize suas potencialidades
históricas – tanto a classe trabalhadora quanto a burguesia estão privadas de muitas
das potencialidades desenvolvidas e apropriadas por uma ou outra, sempre de
forma desigual.
Oliveira (2005, p. 26), ao discorrer sobre a concepção marxista, mostra que o
homem singular, isto é, o sujeito “é uma síntese complexa em que a universalidade
se concretiza histórica e socialmente, através da atividade humana que é uma
atividade universal – o trabalho – nas diversas singularidades (...)”.
Ou seja, o sujeito estaria se realizando, rompendo com a alienação, na
medida em que pudesse usufruir do que a sociedade produz, material e
12
Marx (1993, p. 207) ao abordar o ser genérico, afirma que “(...) não é apenas ser natural, mas ser
natural humano, isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve
atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber. (...) E como tudo que é natural deve
nascer, assim também o homem possui seu ato de nascimento: a história (...) é ato de nascimento
que se supera”.
42
intelectualmente, e realizar-se no trabalho concreto, tendo neste não um meio de
sobrevivência, mas um fim, com a abolição do trabalho abstrato. Na sociedade
capitalista, nosso consumo não se faz como algo orgânico, mas na forma de
consumismo – determinado de fora, da necessidade de lucro do capital.
O poder vindo da cooperação entre os sujeitos aparece a estes como uma
força estranha e não como sua própria força. Marx e Engels (2001, pp. 30-31)
apontam que a superação da contradição entre o interesse do sujeito e do coletivo
se dá com a superação da divisão do trabalho entre manual e intelectual, o que
acontece somente dadas algumas condições práticas:
Para que ela [a alienação] se torne um poder ‘insuportável’, isto é,
um poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que ela
tenha feito da massa da humanidade uma massa totalmente ‘privada
de propriedade’, que se ache ao mesmo tempo em contradição com
um mundo de riqueza e de cultura realmente existente, ambos
pressupondo um grande aumento da força produtiva, isto é, um
estágio elevado de seu desenvolvimento. Por outro lado, esse
desenvolvimento das forças produtivas (...) é uma condição prática
prévia absolutamente indispensável, pois, sem ele, a penúria se
generaliza, e, com a necessidade, também a luta pelo necessário
recomeçaria, e se cairia fatalmente na mesma imundície anterior
(grifos no original).
No desenvolvimento das forças produtivas, há um momento em que nascem
forças produtivas que sob as relações existentes tornam-se forças destrutivas. As
relações sociais capitalistas apresentam-se como entrave ao desenvolvimento das
forças produtivas, servindo a sua destruição. Com esse impasse, a luta de classes
acirra-se ainda mais, pois uma classe suporta todos os ônus da sociedade, do que
surge a consciência da necessidade da transformação radical das relações sociais,
inclusive, para a sobrevivência da espécie humana.
O sujeito da classe trabalhadora constitui-se com a contradição de ao mesmo
43
tempo subordinar-se ao capital e embater-se com ele. O trabalhador depende do
capitalista, ao passo que é dele que recebe seu salário, com o que compra seus
meios de vida; porém, ao mesmo tempo, sente a relação de exploração existente
entre ele e o patrão. Essa contradição poderá também emergir em sua consciência,
de maneira que, sendo um ser da ordem capitalista, ele pode passar a questioná-la
e movimentar-se no sentido de transformá-la.
A este respeito desta contradição, Gonzáles Rey (1997, p. 8) considera que:
A alienação do indivíduo como sujeito ativo, participativo de forma
real no curso dos acontecimentos dos quais toma parte, é um dos
elementos essenciais do distress nas sociedades contemporâneas,
nas quais este se sente prisioneiro de critérios externos a ele, que
negam sua própria experiência, aos quais deve subordinar-se para
garantir sua aceitação social.
Havendo um conflito material entre as forças produtivas e as relações de
produção, este poderá explicar a emergência de uma consciência não apenas
reprodutora do sistema capitalista, mas uma consciência que – insatisfeita com o
colocado – busque uma prática transformadora.
O capital, com sua força econômica, ideológica, política, jurídica e militar, tem
grande poder de reconstrução e recomposição e busca a manutenção da ordem
social. Todavia, esse sistema deixa uma grande massa da humanidade em situação
degradante, impulsionando ao conflito. O resultado desse conflito dependerá
também da consciência de classe dos trabalhadores e de sua organização para
enfrentar essa grande força.
A classe é também um processo, ao mesmo tempo em que os sujeitos
isolados só formam uma classe na medida em que devem travar uma luta contra
outra classe; a classe torna-se independente dos sujeitos, já que estes são
44
subordinados a sua classe, pois recebem de sua classe sua posição na vida e seu
desenvolvimento pessoal, tendo suas condições de vida determinadas
antecipadamente. E é nesse complexo processo que se forjarão aos sujeitos
singulares capazes de realizar a transformação social e emancipar a humanidade,
aproximando-a do ser genérico.
Da palavra dispersa à materialidade do signo
Uma abordagem que não vê a vida humana fora da composição do sentido,
nem a palavra como pura lógica desencarnada, pode ser encontrada nas obras de
Vigotski (2000a, p. 396). Tais obras não puderam levar em conta as conseqüências
da reestruturação das sociedades ocidentais após a II Guerra Mundial, muito menos
a conjuntura internacional posterior à queda do muro de Berlim e à dissolução da
União Soviética. Esta circunstância marca fronteiras quanto à criticidade de sua
teoria frente ao complexo horizonte político-social dos nossos tempos. Ainda assim,
diversos autores contemporâneos têm apostado na atualidade das vozes
vigotskianas, como contribuição efetiva ao estudo da constituição social da
singularidade humana. Esta atualidade parece residir justamente na inversão
paradigmática operada pelo materialismo histórico e dialético, ao fundar uma nova
explicação sobre a gênese da consciência.
Tendo lido "Die Krise der Psychologie" de Karl Buhler, Vigotski (1997a, p. 203)
analisou o significado histórico da "crise da psicologia", tomando-a como um signo
do fracasso metodológico da maioria das psicologias no início do século XX. Dizia
45
que elas não conseguiam atingir explicações consistentes para o psiquismo
propriamente humano. Não poderia ser diferente, pois a psicologia, que no final do
século anterior havia inaugurado seus primeiros laboratórios, era filha de uma
modernidade tardia e tomava como objeto um sujeito e uma subjetividade que já
beiravam a falência. Nos diversos caminhos que procurava tomar, ela debatia-se
aspirando a um empirismo cientificista e carregando resquícios de um racionalismo
cartesiano.
A maioria das abordagens psicológicas com que Vigotski se deparou
oscilavam entre um mentalismo idealista e um naturalismo mecanicista (apud Cole e
Scribner, 1989, pp. 5-8). Ora privilegia-se a interpretação metafísica de uma fala
ativa e incorpórea, ora a explicação objetiva de um corpo passivo e mudo. Deste
modo, a chamada "crise da psicologia" não deixa de ser um signo de uma antiga
ruptura entre a palavra e a matéria, que em termos alegóricos temos designado
como uma cisão entre a "'carne" e o "'verbo". É justamente como réplica a este signo
de dicotomia que o discurso vigotskiano se constrói, reafirmando a consciência
como objeto da psicologia e buscando explicá-la pela materialidade das relações
sociais mediadas semioticamente.
Vigotski (1996, p. 188) não aceitava a noção de que o estudo da consciência
pudesse se dar apenas pela experiência direta, num movimento auto-explicativo: "o
fato central de nossa psicologia é o fato da ação mediada”. Mas criticava também os
modelos que colocavam a consciência como epifenômeno, por abandonarem o que
há de específico no psiquismo humano: “a análise semiótica é o único método
adequado para estudar a estrutura do sistema e o conteúdo da consciência”
(Vigotski, 1996, p. 188). Há uma série de indícios de que, numa abordagem
46
vigotskiana, as relações sociais são eleitas como extrato material que explica a
gênese da consciência: “podemos dizer que cada pessoa é em maior ou menor grau
o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, já que nela se reflete a
totalidade das relações sociais” (Vigotski, 1996, p. 368).
Em janeiro de 1924, Vigotski ingressava oficialmente na psicologia soviética,
apresentando informes no II Congresso Nacional de Psiconeurologia em Leningrado.
Neste momento, dialogava com vozes reatológicas e reflexológicas, mas já afirmava
que "temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo
mecanismo, porque somos com relação a nós o mesmo que os demais são com
relação a nós" (1997c, p. 12). Em anotações de 1929, só publicadas bem depois de
sua morte, também fala da alteridade como constitutiva da individualidade. Nesta
ocasião, recorre à alegoria de Marx e Engels sobre Pedro e Paulo, para dizer que
"através dos outros constituímo-nos. Em forma puramente lógica a essência do
processo do desenvolvimento cultural consiste exatamente nisso" (Vigotski, 2000b,
p. 24). Em nota de Puzirei ao texto de Vigotski (2000b, p. 41), são explicitadas as
formulações dos próprios Marx e Engels:
Apenas referindo-se ao homem Paulo como semelhante a si, o
homem Pedro começa a relacionar-se com si mesmo, como a uma
pessoa. Junto com isso, Paulo como toda corporalidade, torna-se
para ele uma forma da manifestação da espécie ‘homem’.
Se Pedro diz que Paulo é tão homem quanto ele, no mesmo momento em
que o reconhece como semelhante, passa também a reconhecer a si próprio como
homem e ao outro como membro da espécie na qual ele mesmo passa a se incluir.
O reconhecimento do outro implica dialeticamente o próprio reconhecimento, numa
relação social. O fluxo do desenvolvimento humano, para Vigotski, vai do social ao
47
individual: todas as funções superiores aparecem duas vezes: a primeiro, no nível
social, e, posteriormente, no nível individual (Vigotski, 2000e, pp. 164-166). Todas as
funções conscientes têm sua gênese nas relações entre indivíduos humanos.
Na sua sexta tese contra Feuerbach, Marx (1987, p. 162) diz que "a essência
humana não é o abstrato residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o
conjunto das relações sociais". Feuerbach abstrai o curso histórico da constituição
do indivíduo e, ao encará-lo de modo isolado, faz com que sua "essência" só possa
ser captada numa "generalidade interna, muda, que liga muitos indivíduos de modo
natural (Marx, 1987, p. 162, grifo no original). Para Marx, o conjunto das relações
sociais constitui-se na melhor forma de caracterizar o homem enquanto gênero. Este
conjunto de relações, ao longo da história de toda humanidade, é a única "essência
humana" possível. Vigotski (2000b, p. 27), por sua vez, faz uma interpretação
psicológica da sexta tese, postulando que a gênese do psiquismo concreto só pode
se dar mediante relações sociais. Enfatizam-se, assim, as relações de alteridade
como fundantes da personalidade individual:
Paráfrase de Marx: a natureza psicológica da pessoa é o conjunto
das relações sociais; transferidas para dentro e que se tornaram
funções da personalidade e formas de sua estrutura. Marx: sobre um
homem como ‘genus’, aqui – sobre o indivíduo (grifos no original).
Estes entrelaçamentos de vozes nos indicam que, na tecitura do discurso
vigotskiano, o "extrato da realidade" do qual a consciência é função, ou seja, seu
princípio explicativo, são as relações sociais. Contudo, por mais que se sustente em
fortes vozes materialistas, a afirmação geral da origem social da consciência não
chega a caracterizar uma saída paradigmática para a psicologia, diante da velha
dicotomia entre o ser e o signo. Vigotski (1997a, p. 391) precisaria ultrapassar a
48
simples sedução pelos jargões sociológicos, decalcados das obras de Marx e
Engels, ou rebatidos numa argumentação hegeliana sobre a constituição
intersubjetiva: "não quero saber de graça, escolhendo um par de citações, o que é a
psique, o que desejo é aprender na globalidade do método de Marx, como se
constrói a ciência, como enfocar a análise da psique".
Seria preciso dar materialidade às relações que vinculam "Pedro e Paulo" ou
"eu e outro", para que sua explicação não continuasse restrita ao paradigma da
dialética "do senhor e do escravo”.
Ultrapassando jargões panfletários e comprovações puramente formais, a
alternativa metodológica de Vigotski (2006, p. 164) desenvolve-se na direção de
especificar as nuances materiais das próprias relações sociais, vinculando-as
concretamente, i. e. materialmente, à constituição da consciência:
Quando se estuda o reflexo, sem considerá-lo em movimento, pode
dizer-se que se uma ou outra operação, por exemplo, a linguagem
ou a consciência, reflete algum processo que se desenvolve
objetivamente, neste caso a linguagem não pode cumprir nenhuma
função essencial, já que o reflexo em um espelho não pode modificar
o destino do objeto refletido. Porém se tomamos um fenômeno em
desenvolvimento, veremos que graças ao reflexo dos nexos objetivos
e, em particular, ao autoreflexo da prática humana no pensamento
verbal do ser humano, surge sua autoconsciência e sua possibilidade
de dirigir conscientemente suas ações. "A consciência, em geral,
reflete a existência. Esta é a tese de todo o materialismo" (V. I.
Lénine, Obras completas, t. 18, p. 343, edição russa). "O domínio da
natureza que se revela na prática da humanidade, é o resultado do
reflexo objetivamente fiel dos fenômenos e processos da natureza na
mente humana, e demonstra que esse reflexo (no marco da prática)
é uma verdade objetiva, absoluta, eterna" (ibidem, p. 198) [grifos no
original].
A metodologia vigotskiana sugere a eleição de uma unidade de análise que
estabelece uma ligação real entre o objeto de estudo da psicologia e seu princípio
explicativo. O significado da palavra, palavra significativa, ou simplesmente "palavra"
49
constitui esta unidade de análise que, em sua materialidade, estabelece uma função
de determinação e indeterminação recíproca entre a consciência e as relações
sociais em diferentes níveis (Vigotski, 2000a, p. 398). A palavra, enquanto processo
de mediação, só pode constituir-se no drama das relações sociais concretas,
fundindo-se a elas na explicação de como se constitui a consciência humana, e
tornando-se o seu microcosmo, conforme expõe Vigotski (2000b, p. 33):
O que é o homem? Para Hegel é o sujeito lógico. Para Pavlov é o
soma, organismo. Para nós é a personalidade social = o conjunto de
relações sociais, encarnado no indivíduo (funções psicológicas,
construídas pela estrutura social). [Às margens] O homem é para
Hegel sempre a consciência ou auto-consciência XXXVII (grifos no
original).
Por outro lado, se esta constituição não é tida como encarnação de algum
princípio lógico abstrato, nem como espelho de códigos moleculares, só pode ser
definida enquanto movimento histórico. Nesse sentido, outra condição indispensável
é a abordagem histórica, o método genético - matéria ignorada pela psicologia
tradicional e que em Vigotski torna-se "a pedra angular" (Vigotski, 1996, p. 388). O
significado da palavra é sua unidade de análise e a abordagem genética, ou
histórica, o modo de proceder a análise. Segundo o próprio Vigotski (1994a, p. 175),
a principal contribuição de sua teoria é mostrar que o significado tem
desenvolvimento histórico. A consciência, portanto, só pode ser entendida como
devir histórico e semiótico.
Assim, podemos desenhar, a traços largos, uma breve articulação dos
princípios metodológicos fundamentais propostos por Vigotski (1989, p, 80 e 1996,
p. 203) em sua busca de construir uma saída para a chamada "crise da psicologia".
Tais princípios foram compostos ao longo de todo seu trabalho em diferentes
50
momentos, não acontecem como um ponto de partida para seus estudos
psicológicos, mas se entrelaçam com eles. A inversão paradigmática operada pela
metodologia vigotskiana reivindica e dá bases para a construção de uma nova
psicologia, enquanto ciência social, histórica e semiótica.
Se até então oscilava-se entre ler o ser humano como uma linguagem
abstrata ou escrevê-lo como uma concretude muda, Vigotski parece ser o porta-voz
de uma proposta distinta, em que a consciência emerge de um movimento concreto
de significação no microcosmo que é a palavra. Lane (2004, p. 33) considera que a
concepção vigotskiana, ao conceber “o ser humano como manifestação de uma
totalidade histórico cultural”, vê “a linguagem como fundamental para o
desenvolvimento da consciência de si e social de indivíduo, a qual se processa
através da linguagem, do pensamento e das ações que o homem realiza ao se
relacionar com outros homens”.
Gonzáles Rey (2002a, p. 29) considera que para uma melhor compreensão
deste processo para a constituição da subjetividade na psicologia, torna-se
necessário:
a superação da dicotomia entre o social e o individual, a qual exige
transcender outra das grandes barreiras que têm dificultado o
desenvolvimento do pensamento psicológico: a divisão entre o
interno e o externo. A subjetividade (...) não se define por estar
dentro ou fora do sujeito, mas pela natureza de seus processos.
Neste sentido, a realidade humana, ademais de estar formada por
elementos objetivos indiscutíveis que afetam ao homem e a seus
processos de subjetivação, é uma realidade subjetiva, de onde os
elementos atuam sobre o homem através do desenvolvimento de
sentidos subjetivos e significações, que de forma simultânea
implicam sua história anterior e sua experiência atual. Esta complexa
relação do histórico e do atual produz necessidades inexeqüíveis
para um observador externo que se situe fora destas dimensões
subjetivas.
51
Podemos dizer que trata-se de uma palavra desde o início encarnada e
tangível em sua materialidade fonológica, neuropsicológica e social. Sendo vista,
simultaneamente, como um signo com grande plasticidade e reversibilidade, como
fluxo cortical de múltiplos sistemas funcionais e como processo de mediação
cultural, no drama da vida concreta. Estas formulações em seu conjunto podem nos
dar pistas para pensar a constituição da subjetividade humana vinculada às tramas
políticas e ideológicas que dão sustentação a qualquer enunciado concreto,
qualquer palavra de ordem. Nesse sentido, é possível que tais proposições
preservem sua atualidade mesmo em tempos não previstos por seu compositor.
Consciência e subjetividade
De Vigotski (1996, p. 82) podemos extrair importantes fragmentos para
compor uma poética da subjetividade atravessada por uma tese que inverte toda a
tradicional cisão e prevalência das formas racionais sobre a vida material. No
entanto, tal não deve omitir uma tensão que atravessa e que materializa-se na
eleição da "consciência" por parte de Vigotski como objeto de estudo ao invés de
"sujeito" ou "subjetividade". Dependendo do foco que lançarmos sobre a palavra
"consciência", poderemos vê-Ia tanto como uma categoria mais abrangente que o de
subjetividade, quanto como uma definição mais restrita.
Gonzáles Rey (2002b, p. 36) caracteriza a definição de subjetividade do
seguinte modo:
52
A subjetividade é um sistema complexo de significações e sentidos
subjetivos produzidos na vida cultural humana, e ela se define
ontologicamente como diferente dos elementos sociais, biológicos,
ecológicos e de qualquer outro tipo, relacionados entre si no
complexo processo de seu desenvolvimento. Temos definido dois
momentos essenciais na constituição da subjetividade – individual e
social -, os quais se pressupõem de forma recíproca ao longo do
desenvolvimento. A subjetividade individual é determinada
socialmente, mas não por um determinismo linear externo, do social
ao subjetivo, e sim em um processo de constituição que integra de
forma simultânea as subjetividades social e individual. O indivíduo é
um elemento constituinte da subjetividade social e, simultaneamente,
se constitui nela.
Já a consciência, em nosso entender, enquanto processo reflexivo, numa
relação de alteridade e estranhamento da pessoa consigo mesma, a partir de uma
relação social fundante, é um conceito que abrange a gênese cultural do psiquismo
humano em diferentes épocas e lugares. Ela não é uma invenção do homem
moderno europeu, ocidental e burguês, mas uma criação da humanidade imbricada
à gênese histórica da linguagem, no trabalho e no jogo. Na história do gênero
humano, a consciência é criação milenar muito anterior ao "sujeito" engendrado pela
modernidade, com sua correspondente subjetividade, enquanto experiência íntima
intransferível e impermeável.
Contudo, pensamos que esta relação de alteridade de alguém consigo
mesmo é uma construção posterior na constituição de uma pessoa concreta, e não
dá conta de toda a dimensão da constituição do psiquismo humano, pois em nós
nem tudo é consciente. Resta saber se o conceito de subjetividade pode se tornar
mais abrangente que aquele de experiência subordinada a um sujeito cartesiano,
para designar esferas mais amplas da vida psíquica. E questionar se a consciência,
enquanto movimento de reflexão, não arrisca reduzir-se a uma versão atenuada
daquele mesmo cogito, fundado pela modernidade européia e repartido com os
53
herdeiros de seu colonialismo por todo o planeta.
Sendo assim, as relações entre as formulações de Vigotski (2000a, p. 398)
sobre a gênese da consciência e os estudos contemporâneos sobre a constituição
do sujeito, não são óbvias nem imediatas. Elas solicitam uma discussão
metodológica quanto à definição do objeto da psicologia. Em Vigotski (2000c, p.
300), os desdobramentos materiais da palavra relacionam-se com conceitos de
voluntariedade e intelectualização que podem pronunciar uma noção moderna de
integridade da experiência subjetiva. Se for assim, qual o lugar do conceito
vigotskiano de "consciência" frente aos princípios modernos de liberdade e reflexão
pelos quais Hegel procura definir a subjetividade?
É importante relacionar estas questões à trama histórica na qual os conceitos
vigotskianos se constituíram, para não apartarmos contradições que lhes são
inerentes. Ao buscar uma inversão paradigmática sem abdicar do signo
"consciência", Vigotski (1989, p. 73) lançou-se numa arena de enunciados próprios
à psicologia que ele mesmo procurava superar, ancorando-se em seu horizonte
histórico para dele desprender-se em direção a interlocutores distantes, viajantes de
seu futuro.
A palavra encarnada, anunciada por Vigotski (2000b, p. 33), mostra-nos hoje
seu caráter material, mas traz também indícios dos templos de uma psicologia da
consciência, à qual se contrapôs e da qual pôde emergir. Como propor um diálogo
contemporâneo de uma poética da subjetividade com um estudo genético da
consciência, sem pensar essa contraposição emergente?
Ao dar os primeiros passos, a psicologia teve de se debater com
contradições essenciais. Como era natural e necessário, constituiu-
54
se a principio por oposição às especulações sobre as coisas. Em
face dos objetos dados pela experiência externa, ocupava-se em
erguer o sujeito. E procurou-o na experiência que ele pode ter de
si próprio, na experiência íntima. Da experiência destacou,
portanto a consciência para dela fazer seu objeto. Foi assim que
o estudo do sujeito teve como ponto de partida a consciência.
E porque o sujeito é formado dum estofo diferente do das
coisas supôs-se que era dela que recebia os seus elementos
constitutivos (Wallon, 1979, p. 49).
Dizer que a consciência chegou a ser destacada da experiência que o sujeito
tem de si próprio, é entender que ela não poderia abranger toda essa experiência.
Contudo os primeiros passos da psicologia científica se dão com base numa
interpretação de que o sujeito receberia da consciência seus elementos
constitutivos, e a consciência por sua vez seria reduzida à soma de seus elementos
perceptuais – pautados nas sensações. A psicologia inicial de Wundt (apud Marx e
Hillix, 1993, pp. 154-157) tentava unir experiência íntima à associação de elementos
passíveis de serem tratados objetivamente. Se por um lado esse associacionismo foi
encontrar eco em outras abordagens que dispensaram o conceito de experiência
subjetiva, por outro novas posições surgiram para se opor à fragmentação do sujeito
que experimenta a si próprio. Wallon aponta nesse sentido a elaboração do conceito
de elan vital por Bergson (apud Dantas, 1983, pp. 55-57).
O confronto seria entre uma integridade do sujeito e sua fragmentação em
elementos constitutivos que reagrupados não dariam conta de recuperar o todo.
Sendo que, grosso modo, as posições que advogam uma integridade não
conseguem sustentá-la senão por instâncias metafísicas a priori. E aquelas que
buscam uma saída objetiva acabam por prescindir de qualquer princípio integrador e
deixam a subjetividade e a consciência como epifenômenos.
Mas haveriam em Vigotski princípios estruturais unificadores? Como faz
55
Vigotski para não "perder" a integridade sem a qual parece, neste contexto, não
haver sujeito? Ou será que a proposta de Vigotski levada às últimas conseqüências
haverá de dissolver qualquer integridade identificadora do sujeito consigo mesmo?
Não é de se estranhar que Vigotski, em seus primeiros trabalhos propriamente
psicológicos, viesse a passar pelo conceito de consciência como "estrutura do
comportamento" (Vigotski e Luria, 1994b, p. 161).
Contudo, Vigotski (1989, p. 75) parece não pretender um retomo ao conceito
de interioridade do sujeito como saída epistemológica, e suas definições para o
conceito de consciência são múltiplas, complexas e mutáveis no conjunto de sua
obra. Como veremos, a questão é que a tal integridade e voluntariedade da
consciência teriam uma gênese histórico-cultural. Estas características não seriam
um a priori para o seu desenvolvimento histórico, mas uma conseqüência dele. Mas
será que a mudança está apenas no modo de entender a origem de uma
consciência voluntária sem questionar sua soberania ou centralidade? E o que dizer
desse caráter "integral" ou "integrador" de uma consciência cuja gênese está em
tramas sociais múltiplas, fragmentárias e contraditórias?
As diversas e contraditórias ligações sociais que geram a consciência não o
fazem apenas como uma acumulação quantitativa de associações. Não se trata
apenas de uma grande rede telefônica de interconexões, como se postulava de uma
perspectiva pavloviana. Pensamos que esta metáfora se redimensiona quando
entendemos que Vigotski (1998a, p. 114) estava pensando num caráter ativo da
consciência humana – em sua voluntariedade:
A atividade da consciência pode seguir rumos diferentes; pode
explicar apenas alguns aspectos de um pensamento ou de um ato.
56
Acabei de dar um nó – fiz isso conscientemente, mas não sei
explicar como o fiz, porque minha consciência estava concentrada
mais no nó do que sobre os meus próprios movimentos, o como de
minha ação. Quando este último torna-se objeto de minha
consciência, já terei me tornado plenamente consciente. Utilizamos a
palavra consciência para indicar a percepção da atividade da mente
– a consciência de estar consciente. Uma criança em idade pré-
escolar que, em resposta à pergunta: “Você sabe o seu nome?”, diz
como se chama, não possui essa percepção auto-reflexiva; ela sabe
o seu nome, mas não está consciente de que o sabe (grifos no
original).
Vigotski (2000d, p. 70), remete-nos à fábula do asno de Buridan. O asno está
diante de dois montes idênticos de capim, cada qual posicionado exatamente à
mesma distância dele. Por fim, ele acaba morrendo de fome, pois os estímulos de
mesma intensidade geram respostas de mesma intensidade que, como vetores
espelhados, acabam se anulando, inviabilizando seu movimento. Trabalhando
alegoricamente esta fábula, Vigotski (2000d, p. 70) diz que um homem jamais
passaria pela mesma situação, pois – no mínimo – jogaria uma moeda para decidir
por qual caminho haveria de optar.
Vigotski (1989, p. 53) lança a idéia de que, diferente dos animais que atuam
por estímulo e resposta (S-R), o homem interpõe um signo entre o estímulo e a
resposta (S-X-R). O ser humano interpõe voluntariamente um signo que passa a
mediar e a possibilitar o controle de sua própria atividade. Um homem joga uma
moeda para tomar a decisão, arbitra por onde quer ir a partir de um signo. Coisa que
nenhum animal seria capaz de fazer. Fala-se assim do caráter arbitrário do signo.,
por não ter nenhuma relação prévia com as realidades no lugar das quais está
sendo posto e, conseqüentemente, por depender da vontade humana.
Podemos dizer que esta seja uma visão de signo na perspectiva vigotskiana,
que certamente pode ser deslocada pelo entrelaçamento e outras vozes em sua
57
obra. Mas, no intuito de mover nossa reflexão, podemos levantar dois
questionamentos básicos a partir desta visão sobre o signo como um meio material
arbitrário. Um com relação ao caráter abstrato da voluntariedade do sujeito, e ou
outro com relação à simplificação da função do signo. Duas faces de um mesmo
problema: o caráter instrumental do signo nesta abordagem inicial.
Em primeiro lugar, será que no exemplo da moeda, o signo não é visto como
uma materialidade muda, como um meio colocado a serviço de uma "vontade" que
estabelece os fins? Se assim for, fica complicado sustentar o conceito de arbítrio, de
voluntariedade, sem cair em instâncias a priori. A questão do "livre-arbítrio" esteve
presente já na filosofia patrística de Santo Agostinho (apud Mora, 2001, pp. 2219-
2220), atravessou toda a Idade Média, veio ter reflexos no cogito cartesiano
(Descartes, 1996b, p. 301) e na definição hegeliana (Hegel, 1997, p. 23) de
subjetividade. Se a moeda, enquanto signo, for tomada como instrumento de um
arbítrio abstrato, o problema da vontade continua sem solução. Pois, afinal, em que
alturas ou profundezas do sujeito residiria a vontade?
Mais do que isso, esse arbítrio só se faz possível numa rede social de
significações, que cria práticas como jogos de azar ou consultas aos astros e que,
fundamentalmente, configura um horizonte de opções possíveis ou utópicas. E numa
trama social, política, ideológica, que se situa a própria necessidade de escolher
entre um caminho ou outro, tanto quanto as expectativas quanto ao que se ganha ou
se perde com a opção. Em Hamlet (Shakespeare, ato III, cena I, 1997, pp. 48-49), a
opção entre ser ou não ser, flutua entre o fascínio pelo sono da morte e o receio
quanto aos sonhos que ela porventura reserve. Isto pode implicar que Vigotski
(1999, pp. 88-89) translada o significado da opção de Hamlet entre ser e não ser
58
para as opções humanas cotidianas entre fazer ou não fazer algo.
Em segundo lugar: seriam as duas faces da moeda os únicos signos
envolvidos no complexo ato de arbitrar uma decisão? Esta trama pode ficar muito
mais dinâmica se quisermos ver a alegoria se desdobrar em outros sentidos. Ora, há
palavras em jogo, identificando dois caminhos a serem tomados, comparando-os ou
mesmo categorizando-os como idênticos. Palavras que questionam e que
respondem: "cara ou coroa? ser ou não ser? o que fazer? como escolher? que a
sorte decida". As palavras também lançam moedas e decidem caminhos, pois elas
são os próprios seres humanos em movimento.
Pensamos que a partir das contribuições do próprio Vigotski (1994b, p. 116),
possamos encontrar vozes que nos permitam aprimorar estes questionamentos.
Vigotski (2000b, p. 32) não trata de falar da consciência como um ponto de comando
a partir do qual as coisas se decidem. Mesmo que não atinemos com a saída do
jovem Vigotski no contexto do discurso reflexológico, fica evidente que ela já passa
longe da solução de Descartes, assentando uma alma sobre a glândula pineal, ou
vinculando a vontade humana às suas relações com os desígnios de Deus.
A saída já esboçada desde 1924 (Vigotski, 1997b, p. 57) é na direção da
alteridade: "tenho consciência de mim mesmo só na medida em que para mim sou
outro". Nesse momento a saída seria que as ligações que são estabelecidas numa
relação extra-cortical passam a ser feitas num nível intra-cortical, mediante o signo.
A lei genética geral do desenvolvimento cultural é postulada como transição do
campo "'interpsíquico" para o "intrapsíquico" (Vigotski, 1997e, p. 91). Em um texto
apresentado em 9 de outubro de 1930, Vigotski fala de três etapas nesse processo:
59
Todos os sistemas, dos quais falo, passam por três etapas.
Inicialmente, a etapa interpsicológica: eu ordeno, outra pessoa
cumpre a ordem; logo, a etapa extrapsicológica: começo a falar
para mim mesmo; mais tarde, a etapa intrapsicológica: dois
pontos do cérebro, excitados exogenamente, têm tendência a
atuar em um sistema único e se convertem em um ponto
intracortical.
É fundamentalmente mediante o signo que o processo de internalização se
dá. Posteriormente Vigotski (2000a, p. 427) irá complexificar o conceito de
internalização mostrando que a trama de relações entre sentido e significado
modifica-se na transição da fala social para a fala interior mediante a chamada "fala
egocêntrica", que poderíamos colocar como um desses momentos extra
psicológicos. O próprio signo verbal, por seu caráter plástico e reflexivo, ao mesmo
tempo em que viabiliza um vínculo entre sujeitos, vai viabilizando um vínculo da
pessoa consigo mesma. O humano age semioticamente sobre o outro para então
agir semioticamente sobre si mesmo. Mas ao agir sobre o outro só pode fazê-lo com
base em vínculos de interpretação historicamente marcados, anteriormente
existentes na corrente da comunicação social constitutiva dos signos ideológicos.
Literalmente, tornamo-nos humanos tomando a palavra enquanto somos capturados
por ela.
Além disso, a questão do signo vai se tornando mais elaborada quando
visualizamos um conjunto maior dos trabalhos de Vigotski (2000a, p. 409). Algumas
pistas da complexidade desta elaboração já estavam presentes em seus trabalhos
iniciais vinculados a preocupações estético-literárias, como sua monografia sobre "A
Tragédia de Hamlet", de 1917, e "A Psicologia da Arte" de 1925. Mas é em
"'Pensamento e Linguagem", concluído em 1934, que encontramos indícios mais
claros da configuração de um novo lugar para a questão da significação na obra de
60
Vigotski. O signo então vai deixando de ser visto como um "estímulo-meio" que o
sujeito coloca para si mesmo, para ser compreendido como "significado da palavra".
O significado, por sua vez, aparece como uma área mais estável do "sentido"
constituído em múltiplas tramas de relações sociais. Tomado como fenômeno tanto
da fala quanto do pensamento, o significado da palavra é um microcosmo da
consciência humana, permitindo estudar sua gênese e seus diferentes modos de
organização e desorganização.
Talvez possamos mesmo dizer que, no entrelaçamento das vozes de Vigotski
(1998a, p. 181) em diferentes trabalhos, não se entende a existência do signo
enquanto tal se ele não estiver envolvido num movimento de produção de sentido:
O predomínio do sentido de uma palavra sobre o seu significado
uma distinção que devemos a Paulhan. Segundo ele, o sentido de
uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a
palavra desperta na nossa consciência. É um todo complexo, fluido e
dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual. O
significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e
precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que
surge; em contextos diferentes altera o seu sentido. O significado
permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido. O
significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma
pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que
se realiza de formas diversas na fala (grifos no original).
No entanto, ao mesmo tempo e dialeticamente, não pode existir produção de
sentido que não envolva a materialidade dos signos. A questão é que Vigotski
(2000a, p. 398) passa a privilegiar a constituição, a gênese do "significado da
palavra", ou da "palavra significativa" como amálgama de pensamento e fala e como
signo propriamente humano.
61
O sujeito na modernidade
Pode ser que mesmo com todo o seu esforço por forjar uma "ciência
psicológica", Vigotski (Wertsch, 1985, pp. 198-199) preserve a noção de sujeito
baseada com o advento da modernidade. Ou, dito de outra forma, pode ser que uma
noção moderna de sujeito permaneça presente, mesmo que se mude o modo pelo
qual sua constituição é compreendida. Na filosofia cartesiana, que impactou sobre
certas tendências psicogenéticas, o sujeito é pressuposto de suas relações com o
mundo, na abordagem vigotskiana ele emerge delas.
Ocorre uma inversão que talvez pudéssemos comparar àquela operada por
Marx e Engels (2001, pp. 18-19) com relação à filosofia idealista alemã:
A produção das idéias, das representações, da consciência está, a
princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens
aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu
comportamento material. O mesmo acontece com a produção
intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, na das
leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo. São
os homens que produzem suas representações, suas idéias etc.,
mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das
relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas
que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais do que
o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real.
E, se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos
aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse
fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente
como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de
vida diretamente físico.
Mas a virada vigotskiana fica na berlinda se confrontada a determinadas
vozes contemporâneas, que têm procurado mais evidenciar a desconstrução do
conceito de sujeito em múltiplos estilhaços do que propor uma mudança no modo de
62
compreender sua gênese. Para além dessa divergência, ocorre que o próprio
conceito de gênese histórica também têm passado por sérias críticas.
Vigotski (apud Lee, 1988, p. 68) distancia-se do cogito cartesiano e de alguns
conceitos pelos quais Hegel explica a subjetividade como princípio dos tempos
modernos. Tendo dialogado com as obras de Marx, Nietzsche e Freud, é bem
provável que ele não tenha ficado imune aos seus deslocamentos com relação à
modernidade elevada a estatuto filosófico por Hegel. No entanto, esses
deslocamentos têm suas especificidades em cada caso. E a filiação de Vigotski
(1996, p. 395) à Marx é bem mais evidente do que com relação aos demais
pensadores:
Mas é preciso saber o que se pode e o que se deve buscar no
marxismo. Não se trata de adaptar o indivíduo ao sábado, mas o
sábado ao indivíduo; o que precisamos encontrar em nossos autores
é uma teoria que ajude a conhecer a psique, mas de modo algum a
solução do problema da psique, a fórmula que contenha e resuma a
totalidade da verdade científica. Isto não pode ser encontrado nos
textos de Plékhanov pela simples razão de que não figura neles. É
uma verdade a que não tinham chegado nem Marx, nem Engels,
nem Plékhanov. É por isso que muitas fórmulas têm um caráter
fragmentário, compendiado, preliminar, cujo valor se limita
estritamente ao contexto. De maneira geral, podemos dizer que uma
fórmula assim não pode ser estabelecida, mas será obtida como
resultado de um trabalho cientifico secular. O que sim pode ser
buscado previamente nos mestres do marxismo não é a solução da
questão, e nem mesmo uma hipótese de trabalho (porque estas são
obtidas sobre a base da própria ciência), mas o método de
construção [da hipótese – R. R.]. Não quero receber de lambuja,
pescando aqui e ali algumas citações, o que é a psique, o que desejo
é aprender na globalidade do método de Marx como se constrói a
ciência, como enfocar a análise da psique (grifos no original).
Marx (1991, p. 38), em "A questão judaica" faz uma profunda crítica ao
princípio da liberdade como isolamento que cinde a vida política da vida individual,
63
fazendo desta uma experiência solitária concreta e daquela um sistema abstrato
inalcançável. Se a liberdade do liberalismo é a de nos isolarmos dos outros, a crítica
de Marx sugere um conceito socialista de liberdade como aproximação concreta
entre os homens em suas condições reais de existência, conciliando a vida cotidiana
e política de cada pessoa. O compromisso político de Marx (1993, p. 12) filia suas
preocupações filosóficas à luta das classes trabalhadoras na direção de uma
transição revolucionária:
O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho que
é determinado pela necessidade e por objetivos externos; por
conseqüência, em virtude da sua natureza, encontra-se fora da
esfera da produção material propriamente dita (...). A liberdade neste
campo só pode consistir no fato de a humanidade socializada, os
produtores associados, regularem racionalmente o intercâmbio com
a natureza, submetendo-a ao seu comum controle, em vez de serem
governados por ela como por um poder cego, e cumprindo a sua
tarefa com o menor dispêndio de energia possível e em condições
tais que sejam próprias e dignas de seres humanos (...). O
desenvolvimento da potencialidade humana com fim em si mesma, o
verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer
tendo como base o reino da necessidade. A redução do dia de
trabalho é a sua condição prévia fundamental.
Vigotski (1994a, pp. 177-179) também não ficou imune a estas questões.
Invertendo Hegel ou não, elas preservam características importantes do discurso
filosófico da modernidade, em que a história humana se coloca aberta às
possibilidades do que há de vir.
Além disso, é preciso dizer que Vigotski dialogou com a obra de Espinosa,
"que foi durante toda sua vida seu pensador preferido" (Leontiev, 1991, p. 423). Ele
comungava com este filósofo, além da condição judaica e o peso da tuberculose,
uma série de princípios metodológicos, como o monismo, a crítica às superstições e
a ênfase no método genético. Que dizer então da profunda afirmação da liberdade
64
humana, posta na filosofia de Espinosa (apud Chaui, 1995, p. 70)? Esta ânsia pela
busca da liberdade com base em princípios racionais não haveria de tocar as
aspirações daquele pensador bielo-russo, que queria construir uma nova abordagem
em psicologia?
É interessante que o próprio Hegel tenha dito que "a modernidade filosófica
começa com Espinosa e que sem ele nenhuma filosofia é possível" (apud Chaui,
1995, p. 9). Os namoros de Vigotski com Espinosa parecem nos dar mais indícios de
vozes modernas na obra vigotskiana. O que se potencializa se destacarmos o
interesse de Vigotski pela concepção hegeliana de história, e por outros tantos
conceitos de Hegel que impulsionaram a construção de seu quadro conceitual em
psicologia (Kozulin, 2001, pp. 15-18).
É em meio a esta tensão que a obra de Vigotski (apud Valsiner, 1988, p. 165)
se situa enquanto tentativa de construir uma abordagem psicológica original. As
categorias de Vigotski (1996, pp. 17-18) parecem viabilizar recursos para não
abandonarmos nem diluirmos definitivamente a categoria de sujeito ou de
subjetividade. Ao mesmo tempo, nos dão pistas para nos deslocarmos de
determinadas garantias quanto ao seu caráter auto-contido.
Por enquanto, podemos dizer que a obra de Vigotski (2000b, p. 32) está em
meio a uma importante tensão entre multiplicidade e singularidade. Nesta tensão
pode-se pensar em sua abordagem no debate contemporâneo, em que algumas
psicologias falam de subjetividade e onde a modernidade se torna cada vez mais
polissêmica e inapreensível. Falar de modernidade, seria caminhar por sua
polissemia, admitindo que seu significado hegeliano talvez já não nos baste.
O confronto entre o estabelecimento da interioridade do sujeito com o advento
65
da modernidade e a sua exterioridade e desconstrução com a pós-modernidade,
configura-se em meio a uma crise cultural bastante ampla, de cunho epistemológico,
político, ético e estético. Crise cujos sentidos podem sugerir um redimensionamento
contemporâneo do significado histórico da "crise da psicologia" diagnosticada por
Buhler (apud Vigotski, 1997a, p. 203). A obra de Vigotski (1996, p. 417), buscando
realizar uma crítica desta crise no início do século, pode não ter transcendido seus
próprios limites, justamente por situar -se naquela mesma arena de contradições.
Contradições que tinham a ver com a busca de um discurso científico sobre o
que é especificamente humano, numa obra repleta de multiplicidades: estética e
reflexologia; semiótica e biologia; história e antropologia; teoria do conhecimento e
economia política; metodologia e psicologia. No entanto, no debate contemporâneo,
a eficácia de suas vozes talvez possa ser buscada não na garantia de uma
superação sintética e monológica para as contradições, mas na possibilidade de nos
sugerirem o desafio de montarmos uma composição dialética e poética. Nestes
lugares extremos, de sonhos em duelo, erguem-se verdades dialógicas que
confrontam as recorrentes cisões entre palavra e matéria, postulando uma tese
profana que desloca a investigação e a constituição da subjetividade para outra
dimensão.
66
2 O HOMEM É A PALAVRA
Buscar uma tese investigativa é realizar um deslocamento com relação à
tradicional prioridade da lógica sobre os desvios da vida humana concreta,
encarnada. Tal busca implica a configuração de um contexto dialógico em que as
tensões não tendem a uma síntese superadora. Além de esboçar tal contexto, cabe
desdobrar a tese da materialidade do signo em suas nuances e contradições. Para
tanto temos ouvido vozes vigotskianas, e confrontado o estudo da gênese da
consciência com uma investigação sobre a constituição da subjetividade.
A consciência não abrange toda subjetividade e a significação não se resume
à palavra. Contudo, atinando com a tese peirceana (apud Sebeok, 1991, p. 10) de
que "o homem é a palavra", podemos entendê-la como semiose propriamente
humana, do mesmo modo que Vigotski vê na consciência o psiquismo propriamente
humano. O problema passa a ser então o de conceber palavra e consciência não
como estruturas isoladas ou abstratas, mas como movimento histórico, concreto e
constitutivo. Nesta leitura, a perspectiva genética torna-se um princípio metodológico
fundamental, vinculando aquelas instâncias em sua materialidade. A gênese é este
movimento dialético poético em que o mesmo se faz outro e o idêntico se contradiz.
Pensamento e palavra
Em 1934, pouco antes de sua morte, de um leito no Sanatório "Serebranii
67
Bor" em Moscou, Vigotski ditava os fragmentos que comporiam seu último trabalho:
um texto intitulado "pensamento e palavra". Neste trabalho, bastante conhecido
entre nós, Vigotski (1998a, p. 156) pronuncia-se quanto à originalidade de sua
própria obra:
A descoberta de que o significado das palavras evolui tira o estudo
do pensamento e da linguagem de um beco sem saída. Os
significados das palavras passam a ser formações dinâmicas e não
já estatísticas, transformam-se à medida que as crianças se
desenvolvem e alteram-se também com as várias formas como o
pensamento funciona.
Se o significado da palavra é a unidade de análise para o estudo da
consciência, e se este mesmo significado se desenvolve, disso se deduz que a
consciência também se desenvolve. Deste modo, a principal contribuição da
psicologia vigotskiana é mostrar que a consciência não é epifenômeno, derivação
secundária e periférica, nem tampouco entidade metafísica, fundamento original,
matriz da qual tudo emerge. Trata-se antes de uma gênese material constitutiva da
especificidade do humano. Este caráter concreto da origem da consciência já havia
sido fortemente evidenciado por Marx e Engels (1965, pp. 25-26) em “A Ideologia
Alemã":
Totalmente ao contrário do que ocorre com a filosofia alemã, que
desce do céu sobre a terra, aqui se ascende da terra ao céu. Quer
isso dizer, não se parte do que os homens dizem, representam ou
imaginam, nem tão pouco do homem descrito, pensado,
representado ou imaginado, para chegar ao homem de carne e osso.
Principiamos com homens reais, ativos, e baseados em seu
verdadeiro processo vital demonstramos a evolução dos reflexos e
ecos ideológicos desse processo vital. Os fantasmas formados no
cérebro humano são também forçosamente sublimados de seu
processo vital, empiricamente verificável e ligado a premissas
materiais Moral, religião, metafísica e todo o restante da ideologia e
suas formas correspondentes de consciência, pois, não mais
68
conservam o aspecto de sua independência. Elas não têm história
nem evolução: mas os homens, desenvolvendo sua produção
material e seu intercâmbio material, alteram, a par disso, sua
existência real, seu pensamento e os produtos deste. A vida não é
determinada pela consciência, mas esta pela vida. No primeiro
método de abordagem, o ponto de partida é a consciência tomada
como o individuo vivo: no segundo, são os próprios indivíduos vivos
reais, tal como são na vida concreta, e a consciência é considerada
unicamente como consciência deles.
Deste modo, reafirmamos a concepção de que as ideologias não têm uma
história própria nem uma existência autônoma, independente da vida de pessoas
concretas que as produzem e mantém em suas relações sociais. Não há idéias nem
ideais exteriores à vida humana no seu confronto dialético com a concretude do
mundo – nem existe consciência que não seja a consciência de uma pessoa de
carne e osso, situada social e historicamente. Nenhuma construção ideológica,
vivida por homens e mulheres reais, pode ser independente de suas condições
materiais de produção.
Contudo, nesse momento, Marx e Engels não falam destas pessoas concretas
como constituídas e constituintes também de movimentos ideológicos materiais –
em sangue e signos. Não enfatizam o fato de que carne e ossos não bastam para
definir aquilo que somos. Se há outros seres que também são de carne e osso e não
chegam a ser humanos, seria de perguntar o que há de diferente no sabor de
nossas carnes?
Nossa carne, por ser fraca, precisou vibrar de um modo distinto e fazer-se
verbo, Não fosse assim, como poderia o Homo sapiens, o mais frágil de todos os
animais, aquele que engendra o mais incompleto dos filhotes, garantir sua
permanência sobre este planeta? Nietszche (1996, p. 60) denunciou abertamente
esta fragilidade para falar dos limites da razão e da arrogância do filósofo, mas
69
Wallon (1971, p. 91) valeu-se dela para dizer que somos seres geneticamente
sociais. Nossa matéria orgânica, compondo com o mundo para além de nossas
peles, desdobrou-se em matéria que diz algo, imagina, concebe, descreve, pensa,
constitui sentidos. Por que essas atividades precisariam ser vistas como abstratas
ou fantasmáticas? Por que não encará-las em sua materialidade?
A questão é que, na crítica da ideologia alemã, Marx e Engels (1965, p. 27)
não lograram, nem era seu objetivo, atentar para uma distinção básica entre
ontogênese e filogênese. A origem das ideologias no curso da história da
humanidade só pode ser mesmo posterior ao surgimento da vida. No entanto, em
momentos históricos circunscritos, homens e mulheres concretos nascem em
comunidades estabelecidas, repletas de modos culturais de conduzir a vida,
transformar o mundo e povoá-lo de objetos.
As pessoas nascem e desenvolvem-se num mundo de ideologias constituídas,
mediante as quais passam também a formar seus ossos e carnes. O que passamos
a dizer, sentir e pensar, deriva de relações político-econômicas, tanto quanto aquilo
que nos é permitido comer ou beber, ou quanto as terras e casas em que iremos
viver. O político e o econômico, por sua vez, constituem e são constituídos por lutas
que se dão fundamentalmente em arenas de signos ideológicos em diversos níveis.
Dizer que há lutas ideológicas no campo da economia política é entender que
suas leis são diferentes daquelas que regem o curso dos astros no fluxo do cosmo.
A economia é também ciência humana pois a mais-valia só pode surgir mediante
uma expropriação do trabalho humano. Segundo Arendt (1987, p. 96), o trabalho
humano é qualitativamente distinto do labor animal. Isso fica claro se tomamos
consciência do fato de que nenhuma máquina nem animal pode produzir mais-valia,
70
já que todas as operações que realizam são pagas, de um modo ou de outro. Não
podemos dizer a um computador "trabalhe mais" ou "produza valor", tudo o que ele
produz implica um dispêndio de energia que lhe é próprio, e que ou será totalmente
pago ou seu funcionamento se inviabiliza.
Um capitalista não pode obrigar suas máquinas a produzirem sem os insumos
que lhes são próprios. Mas este mesmo capitalista não apenas acumula
individualmente o excedente de produção socialmente gerado pelos trabalhadores,
como também passa a exigir deles que produzam em condições insuficientes para a
manutenção plena de suas próprias vidas. Furta-se do trabalhador não só a mais-
valia, como também a restituição da sua força de trabalho, a devolução daquilo que
lhe é necessário para manter sua própria existência, e a de sua prole, em níveis
dignos, em condições adequadas de alimentação, transporte, moradia, educação,
saúde e assim por diante.
Deste modo entendemos que só o humano pode ser explorado, no sentido
mais literal da palavra. Um animal morrerá, ou produzirá menos, se não lhe for dada
a energia necessária, uma máquina quebrará se sua manutenção não for feita de
modo adequado. Mas um homem haverá de desdobrar-se se for submetido a uma
condição na qual não veja outra saída senão a de vender sua força de trabalho a um
preço inferior ao de seu potencial produtivo.
Em economia política vê-se, então, que relações de poder passam a estar
entrelaçadas com a própria produção do valor de troca e o acúmulo do excedente de
produção. De modo que a crítica da ideologia não se basta enquanto tal, na simples
constatação de que as idéias emergem da vida concreta. Resta perguntar: o que é a
vida concreta? Pois as leis da vida humana não são mais apenas as leis da biologia
71
nem tampouco as da física. A concretude de nossas vidas envolve tramas político-
econômicas, semioticamente mediadas.
Pensamos que Marx e Engels (1965, pp. 25-26) ao dizerem da vida como
determinante da consciência, não estivessem com isso sugerindo uma determinação
mecanicista rebatida sobre uma interpretação imediata de causa e efeito. Seria um
tanto ingênuo avaliar que eles nos sugerissem determinações simplistas como as de
que "uma vida burguesa leva a uma consciência burguesa", ou "uma vida operária
gera uma consciência operária". Marx e Engels (2001, pp. 18-19) partem de uma
visão dialética, que comporta desvios, contradições e relações de mútua e múltipla
constituição. Além disso, eles não postulam que os diferentes níveis de
organização da matéria devam submeter-se ao mesmo conjunto de princípios
explicativos.
Consideramos que a idéia de determinação da consciência pela vida, possa
ser melhor compreendida como condição sene-qua-non do que como derivação
causal imediata. Ou seja, a vida é determinante porque é condição imprescindível,
porque não há consciência a não ser a partir da vida e dentro dela.
Da perspectiva do materialismo histórico e dialético, é impossível uma
consciência transcendente, desencarnada, de modo que é só enquanto seres
viventes que podemos constituir nossas consciências. No entanto, se admitimos que
isso não basta para entendermos os modos de funcionamento da consciência em
sua relação com a vida, podemos abrir uma brecha para perguntar o que é mesmo a
vida humana? Quais as suas especificidades?
Podemos interpretar que o próprio Marx (1983, p. 149), em seu "O Capital",
dá indícios de evidenciar o caráter mediado da ação humana, como constitutivo de
72
sua especificidade:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a
Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação,
media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural.
Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se
da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar,
por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele
desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas
forças a seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas
instintivas, animais, de trabalho. O estado em que o trabalhador se
apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de
trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que
o trabalho humano não se desfez ainda de sua primeira forma
instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence
exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um
arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias.
Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é
que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em
cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já
no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto
idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da
matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu
objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo
de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa
subordinação não é um ato isolado.
Comparando o trabalho humano às operações executadas pela aranha ou
pelas abelhas, Marx (apud Vigotski, 1997b, p. 39) diz, alegoricamente, da vergonha
do homem diante da perfeição com que aqueles animais produzem suas teias ou
suas casas suspensas; no entanto, resgata o lugar específico do trabalho humano,
inédito na natureza com relação ao labor de qualquer outro animal.
Parece tenso esse confronto entre o fato de a consciência derivar da vida
material dos homens em suas relações concretas de trabalho e o fato dessas
mesmas relações só poderem ser entendidas colocando em jogo o caráter
73
consciente e voluntário do trabalho humano. O homem não é aquilo que diz, imagina
ou concebe, mas o mesmo homem só trabalha se subordina sua vontade a um fim.
E o que seria um fim, senão um projeto que alguém imagina, concebe, e do qual
pode fala? Coloca-se assim um confronto entre o que depende da vontade humana
e o que lhe escapa. Uma tensão que nos atravessa quando nos perguntamos sobre
como a própria vontade pode ter surgido para os homens em sua história. Diríamos
que tal tensão não aparece como uma luta em que uma posição precise
necessariamente vencer, para que possamos atingir maior coerência lógica.
Podemos encará-la como uma contradição dialética indomável.
No entanto, talvez o confronto entre a tese de que a vida humana precede a
consciência com a de que o trabalho humano só existe se for consciente, poderia
articular-se mediante desdobramentos que dessem mais consistência a esta
contradição dialética. Talvez fosse necessário falar da consciência, enquanto
constitutiva do processo de trabalho humano, como fruto de um processo genético e
como um devir material.
A consciência seria um estágio posterior, tardio, do desenvolvimento da
matéria, não deixando de ser matéria, mas também tendo distinções qualitativas
com relação aos demais níveis de organização da matéria. Contudo, o fato de ser
posterior não desprestigiaria seu papel na definição daquilo que é propriamente
humano. As vozes de Lukács (1978, pp. 2 e 3) podem nos possibilitar importantes
elementos para irmos adiante nesta discussão:
Em Marx, o ponto de partida não é dado pelo átomo (como nos
velhos materialistas), nem pelo simples ser abstrato (como em
Hegel). Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo
existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte
(movente e movida) de um complexo concreto. Isso conduz a duas
74
conseqüências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu
conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as
categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou se
torna, mas sim como formas móveis e moventes da própria matéria:
‘formas do existir, determinações da existência’. Essa posição radical
– também na medida em que é radicalmente diversa do velho
materialismo – foi interpretada de diferentes modos, segundo o velho
espírito; quando isso ocorreu, teve-se a falsa idéia de que Marx
subestimava a importância da consciência com relação ao ser
material. Demonstraremos mais tarde, concretamente, que esse
modo de ver é equivocado. Aqui nos interessa apenas estabelecer
que Marx entendia a consciência como um produto tardio do
desenvolvimento do ser material. Aquela impressão equivocada só
pode surgir quando tal fato é interpretado à luz da criação divina
afirmada pelas religiões ou de um idealismo de tipo platônico. Para
uma filosofia evolutiva materialista, ao contrário, o produto tardio não
é jamais necessariamente um produto de menor valor ontológico.
Quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre essa
base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer-
se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não
– como se supõe a partir das supracitadas visões irrealistas – que
ela é carente de força.
A tese de que tudo é objetivo fica claramente definida não em termos de
anular as distinções entre consciência e outras materialidades. Mas em termos de
viabilizar uma concepção de que tais realidades se interpenetram não como
instâncias distintas que “interagem”, mas justamente por serem aspectos de uma
única e mesma substância – a matéria. Não se trata de um "interacionismo" mas de
uma visão dialética de constitutividade contraditória.
Desta perspectiva, é impossível falar de relações concretas entre consciência
e mundo se ambos não forem aspectos de uma mesma substância. O fato de
participarem de uma mesma natureza é que possibilita sua mútua composição,
ainda que isso não se dê diretamente mas por uma série de mediações e
desdobramentos materiais.
Deste modo, se as categorias e conceitos não são enunciados abstratos e
sim "formas móveis e moventes da própria matéria" é porque as palavras são
75
matéria em movimento, um modo humano de mover e constituir realidades. Matéria
que refaz a matéria, refazendo-se então, em sua poesia interminável.
Se a consciência fosse considerada como composta de um estofo distinto
daquele do qual se constitui o mundo, sua relação com o mesmo mundo só poderia
ser tratada em termos metafísicos. Dito de outro modo, se ela não fosse parte da
natureza, da physis, só poderia ser sobrenatural ou metafísica. Mas, se o natural por
si já apresenta tantas nuances e guarda tantos segredos, por que necessitaríamos
inventar mistérios que lhes sejam anteriores ou superiores? Para quê, a não ser
para manter, propor ou impor hierarquias?
Quando dizemos que todas as multiplicidades por onde transitamos e que nos
constituem, participam de uma mesma substância material, postulamos um monismo
que é caro ao materialismo histórico e dialético. Além disso, podemos visualizar aí
uma anarquia ontológica radical: todos os seres pertencem à mesma substância,
tanto quanto tudo que compõe cada um desses seres.
Não há hierarquias que se pautem em uma anterioridade metafísica entre
substâncias nem entre seres. Não há nada que, de antemão, determine uma
soberania da alma sobre o corpo, muito menos do intelecto sobre a ação, ou do
homem livre e poderoso sobre aqueles que pretende submeter e escravizar.
Tais formulações, ao caracterizarem princípios filosóficos básicos, não deixam
de ter implicações no campo da psicologia. Rubinstein (1972, p. 40), por exemplo,
chega a afirmar que “o princípio da unidade psicofísica é o princípio mais importante
da psicologia soviética".
A questão remete à própria teoria do conhecimento materialista-dialético,
ainda que não estejam em jogo apenas questões gnosiológicas, mas também
76
discussões da ordem de uma ontologia do ser social.
Mediações e desvios da matéria
O fato de defendermos a existência de uma única substância não implica
subordinarmos seus diferentes níveis a um mesmo conjunto de leis, ou princípios
explicativos. Desde a antiga Grécia, ecoam vozes que contemplavam o caráter
contraditório, plural e desviante da matéria. Demócrito (apud Mondolfo, 1968, p. 210)
disse que tudo o que existe é composto por partículas materiais indivisíveis que
chamou de átomos. Partículas de infinitas formas, passíveis de infinitas
combinações, e que desde sempre estão em movimento, chocando-se e compondo
contradições no fluxo do cosmo. Epicuro (apud Moraes, 1998, p. 38) foi mais além,
acrescentando à cosmologia de Demócrito um princípio caótico imanente, dizendo
que os átomos são providos de uma mínima possibilidade de desvio, que viabiliza a
criação dos mundos e a liberdade humana.
Se na antiguidade grega houve estes filósofos que propunham, de um modo
ou de outro, uma complexa explicação material e natural para a constituição do
mundo, a modernidade européia também teve pensadores monistas que não
negaram a complexidade da natureza. Giordano Bruno (apud Neves, 2004, p. 67) foi
um deles com sua cosmologia materialista e panteísta, por conta da qual morreu
numa fogueira da Santa Inquisição.
Espinosa (1997b, p. 57) foi outro destes pensadores, dentre os modernos
europeus. Tendo sido excomungado e expulso de seu país, radicou-se na Holanda,
77
onde poliu lentes até morrer de tuberculose com apenas quarenta anos de idade.
Ele propunha a existência de uma única e ambígua substância "Deus, ou seja, a
natureza”, mas não reduzia esta natureza a um único aspecto, muito menos a um
único modo de ser ou de se mover. Pensamos que o mesmo valha para os
princípios do materialismo histórico e dialético: não há substância exterior à matéria,
nem vida exterior à natureza, tampouco consciência anterior ou exterior à vida. Mas
há diferentes níveis de composição da matéria, e diferentes modos da vida
desdobrar-se, contradizer-se e desviar-se.
A matéria inorgânica não funciona por leis idênticas às contidas na matéria
viva. E a matéria viva também desdobra-se em múltiplos devires vegetais e animais,
cujas relações de interdependência não anulam suas diferenças. Os próprios
animais, por sua vez, constituem de modos distintos suas estruturas orgânicas e
seus correspondentes reflexos psíquicos, frente as múltiplas necessidades materiais
que condicionam suas vidas (Leontiev, 1978, p. 66). Deste modo, dizer da
consciência como materialidade não implica explicá-la mediante as leis da
mecânica, nem da biologia no sentido estreito, pois cabe buscar sua especificidade
e originalidade com relação as demais formas de psiquismo. Vigotski (1997d, p.
150), por sua vez, chegou a dizer que a psique “não aparece isolada nem separada
do resto mundo ou dos processos do organismo nem por um milésimo de segundo".
Isto indica que estes autores partem do princípio de que o homem é também
um ser biológico, que vive e morre como integrante da physis, – cuja permanência e
transformação coincide como fluxo infindável do universo. Mas nem por isso eles
incorrem em reducionismos organicistas ou mecanicistas, que pretendem explicar o
humano a partir de determinações mudas e transcendentes. Se a consciência
78
emerge da vida, passa também a compô-Ia, num movimento que pode transformar,
contradizer e desviar.
Como vimos em Lukács (1978, pp. 2 e 3), a questão da atuação da
consciência sobre o mundo também não é posta em termos idealistas pois a
consciência é componente real do mundo, num confronto dialético entre matéria
refinada e matéria bruta. Contudo este confronto supõe mediações, a composição
da consciência com o mundo não é vista como operação direta.
As expectativas dos homens com relação à eficácia de seus signos podem ter
diversas nuances místicas, mas não estamos imunes ao culto da palavra, nem à
subordinação aos seus poderes. Por vezes estas coisas estão mesmo bastante
presentes em nossa cultura na política, na pedagogia, na psiquiatria, na vida
acadêmica ou em qualquer outra esfera de nossa atividade. No entanto, o
materialismo de que vimos falando, ao dizer da materialidade da consciência
procura não dissimular as distinções entre os diferentes níveis de materialidade. Não
basta que determinadas idéias tenham materialidade na consciência para que façam
com que os demais níveis da matéria sigam suas ordens.
Para Vigotski (1989, p. 33), signos e instrumentos implicam em diferentes
formas de mediação material. Em ambos os casos ocorre uma transformação
recíproca entre instâncias materiais por intermédio de um processo mediador, mas
se o instrumento é mediador entre sujeito e objeto, o signo é mediador entre um
sujeito e outro sujeito. Um instrumento, uma ferramenta, amplia as possibilidades de
atuação do humano no processo de trabalho, em que transforma as coisas da
natureza e é por elas transformado. Com um arado o lavrador tomba a terra da qual
tira seu sustento e o de sua família, o arado amplia as suas possibilidades físicas,
79
mediando a relação de seu corpo com a dureza do solo.
Um signo, por sua vez, não existe senão numa relação entre pessoas, e é
entre elas que operam-se suas transformações recíprocas: no signo uma pessoa
age sobre outra agindo também sobre si própria. Os signos para serem definidos
enquanto tal, não são tomados em sua atuação direta sobre as coisas, mas em sua
atuação no interior da própria atividade humana. Eles atuam sobre as ações dos
outros, para então atuarem sobre nossas próprias ações, estabelecem trocas
humanas, são um modo humano de criar realidades, sacralizá-las ou profaná-las.
Dito de outro modo, o signo em cujo desenvolvimento está ancorada a gênese da
consciência, não transforma diretamente os objetos, mas transforma a própria
atividade humana na sua composição poética com o mundo.
A eficácia material dos signos não se dá como construção puramente
imaginária do mundo. A imaginação “nos permite inventar, não apenas coisas novas,
mas também formas de relacionarmo-nos com os grupos que nos constituem, seja
no trabalho ou no lazer” (Lane, 2003, p. 111). Mas, uma vez que a imaginação surge
das ações do homem sobre o mundo, ela passa também a afetá-Ias na reconstrução
deste mesmo mundo. Não basta imaginar para que o trabalho se dê e o mundo se
transforme, no entanto nenhum trabalho pode se dar sem que haja, num plano
imaginário, algum projeto mental que guie nossas ações na busca de efetivá-Io. O
lavrador não conduziria seu arado na transformação da terra se não tivesse no
horizonte de sua imaginação a possibilidade de uma boa colheita. Por certo, a
distinção vigotskiana entre instrumento e signo não pode ser tomada de modo
reducionista.
É importante dizer isso, pois o próprio trabalho com instrumentos envolve
80
signos. Ferramentas têm nomes, suas funções podem ser designadas por palavras
e sua correta utilização depende de alguma instrução verbal aos aprendizes,
indicando modos de ação cuja execução não está dada de antemão, por mais que a
forma das ferramentas “sugira” um determinado manuseio. Além disso, a própria
fabricação de um instrumento envolve projetos, alguém precisou imaginar um arado
que pudesse ser puxado por animais ou acoplado a um trator, pois estas coisas não
nascem em árvores, não são realidades pré-fabricadas pela natureza. Enfim, o uso
de instrumentos implica também um contexto social no qual passa a fazer sentido,
mediante relações sígnicas.
No limite, os próprios instrumentos podem converter-se em signos. É o que
ocorre marcadamente com a foice e o martelo, instrumentos de trabalho tornados
signos políticos, ou com a cruz, instrumento de tortura tornado signo religioso. Mas
além dessas transformações semióticas mais óbvias, existem outras mais sutis. Pois
quem diz que para um trabalhador seus instrumentos mais comuns não se tornam
também signos de sua luta pela vida? Quando conhecemos o cuidado do mestre de
obras com suas ferramentas, ou da costureira com suas linhas, tesouras e agulhas,
entendemos que os próprios instrumentos de trabalho são também investidos de um
conteúdo semiótico.
As vinculações entre ação e imaginação também não são simples nem
mecânicas, tratam-se de realidades simultâneas e desviantes, complementares e
discrepantes. O projeto mesmo não deixa de ser ação, e a ação mesma não deixa
de ser múltipla e indomável. As imagens que formamos em nossos cérebros não são
fotografias estáticas, nem filmes lineares, elas se desdobram em caleidoscópios
multidimensionais, abertos e inusitados. E nossas ações no processo de trabalho
81
também não são totalmente previsíveis, sempre há algo que pode surpreender-nos,
sair dos eixos, funcionar errado, desviando nossa atenção, solicitando novos modos
de agir e de enxergar as coisas, apontando caminhos inesperados. Tratam-se de
planos distintos mas integrados no humano, ambos comportam ambigüidades que
lhes são próprias e que transitam de um plano a outro de modo complexo, como
constante recriação e transformação recíproca.
Entendemos que o fundamental no conceito vigotskiano de mediação seja
justamente o movimento de relações que se estabelecem de modo mediado entre
diferentes instâncias. Pino (1991, pp. 32-33) considera que mediação:
É toda a intervenção de um terceiro “elemento” que possibilita a
interação entre os “termos” de uma relação. [...] O termo mediação é
utilizado para designar a função que os sistemas gerais de sinais
desempenham nas relações entre os indivíduos e destes com o
meio. Mais especificamente, é utilizado para designar a função dos
sistemas de signos na comunicação entre os homens e na
construção de um universo sócio-cultural (grifos no original).
Vigotski entende o sujeito como construtor ativo de seus próprios processos
psicológicos superiores e que esta estruturação se dá fundamentalmente em
situações de interação social. Entendemos que o processo de mediação não pode
ser desvinculado da atividade do sujeito. Desta forma não são os mediadores neles
mesmos que determinam a gênese do psiquismo, mas todo o processo de mediação
enquanto o uso que o sujeito ativamente realiza destes mediadores numa atividade
complexa de comunicação e/ou de organização de uma outra atividade.
Ou seja, é o processo de mediação que converte um pedaço de madeira em
um instrumento, ou que faz um som, um traço, ou mesmo um instrumento, tornarem-
82
se signos. É necessário que haja um processo de mediação para que eles se
configurem enquanto tais. Este processo, por sua vez, não está pré-formado em
nossos códigos genético-moleculares nem nos desce como inspiração divina.
Na abordagem vigotskiana, o inverso também é verdadeiro: não há mediação
sem mediadores materiais. Parece ser justamente esta reciprocidade um
contraponto ao conceito hegeliano de mediação. Para Hegel (1996, p. 303), o
processo mediado é posto a serviço de uma razão que se encarna na história, pois o
"espírito absoluto” só pode se afirmar dialeticamente mediante a relatividade
histórica. Em Vigotski (apud Wertsch, 1985, pp. 95-96), a mediação só se define
enquanto tal quando se estabelece uma função.
A professora Silvia Lane, em suas orientações de pesquisa, considerava que
uma função não é o que está em uma realidade “a”, nem numa outra realidade "b”,
mas na relação que se estabelece entre elas constituindo uma terceira instância que
não está dada de antemão. Contudo se não houver realidades a ser relacionadas a
função também deixa de existir, pois ela não é tida como uma regra universal fora de
tempo e espaço, mas como movimento possível da própria matéria. Isto coloca uma
diferença epistemológica importante entre Vigotski e Hegel. Só há signo com
significado, mas só há significado com signo. Só há sentido quando se estabelece,
entre diferentes realidades, uma relação que não está dada de antemão, mas esta
relação só pode se estabelecer se houverem realidades a serem relacionadas.
Outro ponto a destacar, envolve o caráter material da consciência e o fato
dela não ser um a priori nem na origem da humanidade nem no desenvolvimento de
cada pessoa. O que não nos isenta de fazermos uma distinção entre a
83
sociogênese
13
e a ontogênese
14
, pois nesta os signos ideológicos afetam
diretamente a gênese da consciência, antes mesmo de uma inserção da criança no
processo produtivo. As relações sociais nas quais e pelas quais o filhote humano se
desenvolve são, desde o início, atravessadas por interpretações, expectativas,
concepções de mundo, diretrizes éticas e políticas.
Certamente marcar tal distinção não foi exatamente a preocupação do
marxismo em sua crítica da ideologia alemã, pois suas questões eram de outra
ordem. Contudo a psicologia vigotskiana nos possibilita pensarmos com mais rigor
sobre a dimensão concreta destas relações na esfera do cotidiano, em que a vida
confronta a ideologia em determinações recíprocas pela mediação de signos
materiais. Tal dimensão pode ser relevante para a construção de uma visão crítica
sobre a constituição das ideologias tais como experimentadas por pessoas comuns.
Permitindo vincular a análise semiótica à crítica material das sociedades
contemporâneas com seus signos de exploração e exclusão.
Consciência, palavra, atividade e emoção
Para extrairmos do estudo da gênese da consciência uma contribuição à
investigação e composição de uma poética da subjetividade, é preciso que
acirremos ainda mais as contradições entre estes dois níveis. Que nos movamos por
tensões relativas à própria definição de consciência em seu caráter reflexivo e
13
A sociogênese envolve diferentes formas culturais que potencializam, constituem e interferem no
funcionamento psicológico humano (Oliveira, 2003, p. 25).
14
A ontogênese refere-se ao desenvolvimento natural e biológico da espécie humana (Oliveira, 1997,
pp. 56-57).
84
cognoscitivo. Uma vez que a consciência é matéria humana desdobrada do
desviante fluxo da matéria cósmica, é preciso discutir os seus limites, em sua
pretensão de controle e domínio voluntário sobre si e sobre o mundo.
Sabemos que a palavra "soznanie”, consciência em russo, pode ser traduzida
como "conhecimento partilhado", considerando os significados literais de seu radical
e sufixo. Esta tradução produz uma definição praticamente tautológica mas que não
deixou de estar presente no próprio discurso dos pesquisadores soviéticos. A
consciência seria uma espécie de conhecimento duplicado, que não pode se
constituir a partir de uma singularidade originária.
Em Vigotski (1996, p. 187), a questão da consciência remete assim à da
alteridade, pois “partilhar”, implica na divisão de uma mesma coisa por diferentes
pessoas. Ela não pode se dar como uma derivação lógica individual, ela precisa ser
no mínimo dialógica, um discurso entre pessoas, uma palavra em algum nível
compartilhado. No capítulo anterior apresentamos várias colocações de Vigotski
sobre o fato de que nos tornamos conscientes agindo conosco do mesmo modo e
pelo mesmo processo pelo qual agimos com relação aos outros e pelo qual os
outros agem em relação a nós. A partir daí, a consciência implica um caráter
reflexivo, um conhecimento do próprio conhecimento, um dizer sobre a própria
palavra e sobre a própria ação.
Em alguns diálogos virtuais de Vigotski com Piaget, entre acordos e
discrepâncias, podemos notar com mais nitidez o posicionamento do primeiro
quanto à questão da consciência na ontogênese. Nesse sentido são interessantes
as críticas vigotskianas (Vigotski, 1998a, p. 110) à chamada lei da transferência ou
do deslocamento, com a qual Piaget propõe complementar a "lei da percepção" de
85
Claparède. Vigotski (1998a, p. 111) delineia a lei da transferência ou do
deslocamento e suas implicações:
Tornar-se consciente de uma operação mental significa transferi-la
do plano da ação para o plano da linguagem, isto é recriá-la na
imaginação de modo que possa ser expressa em palavras. Essa
transformação não é nem rápida, nem suave. A lei afirma que o
domínio de uma operação no plano superior do pensamento verbal
apresenta as mesmas dificuldades que o domínio anterior dessa
operação no plano da ação. Isto explica o seu lento progresso.
Vigotski (1998a, p. 111) diz que esta transferência, do plano da ação ao da
linguagem, não pode ser explicada com base numa recapitulação de semelhanças
entre níveis distintos, pois o que parece ser semelhante pode ter importantes
diferenças estruturais e genéticas. Além disso discorda também de Claparède, por
ele dizer que a percepção das diferenças precede a das semelhanças,
desconsiderando o fato de que a percepção das semelhanças implica um processo
de generalização, e chegando a atribuir este movimento a uma incapacidade das
crianças. O confronto de fundo, nesse caso, é com a idéia piagetiana de que a
ausência de consciência na criança em idade escolar, com relação aos seus
próprios conceitos, seja um resíduo de seu egocentrismo.
No entanto, Vigotski não discorda de Piaget quanto à afirmação de que
consciência e controle consciente só podem surgir “num estágio tardio do
desenvolvimento de uma função, após esta ter sido utilizada e praticada
inconsciente e espontaneamente. Para submeter uma função ao controle da volição
e do intelecto, temos primeiro que nos apropriar dela” (Vigotski, 1998a, p. 113).
Todas estas questões são levantadas no âmbito de uma discussão sobre o
desenvolvimento dos conceitos científicos em relação com os conceitos cotidianos.
86
Em função de haver diferentes explicações para o fato de que "todas as funções
mentais básicas tornam-se conscientes e deliberadas durante a idade escolar,
exceto o próprio intelecto" (Vigotski, 1998a, p. 113, grifo no original). Mais adiante,
no contexto dessa discussão, Vigotski (1998a, pp. 113-114) procura criar algumas
áreas de estabilidade para os sentidos da palavra consciência:
Queremos esclarecer o termo consciência, no sentido em que o
empregamos ao falar das funções não-conscientes 'que se tornam
conscientes' (Empregamos o temo não-consciente para distinguir o
que ainda não é consciente do 'inconsciente' freudiano, resultante da
repressão, que é um desenvolvimento posterior, um efeito de uma
diferenciação relativamente elevada da consciência) [grifos no
original].
A discussão sobre o desenvolvimento dos conceitos é fundamental na
discussão sobre o desenvolvimento das formas conscientes de atividade mental em
sua transição a partir de suas formas "não-conscientes". A relação entre os
diferentes rumos que pode seguir a atividade da consciência, impregnando outros
níveis da ação humana, possibilitam discussões bastante produtivas. Contudo,
mesmo para discutir mais a fundo estas questões, precisamos evidenciar o conceito
de consciência que está sendo posto em jogo. Uma vez que ela vem se
apresentando enquanto processo auto-reflexivo que emerge como experiência de
um conhecimento partilhado com outrem. Um exemplo interessante disso, é dado
por Vigotski (1989, p. 124), ao tratar da questão da brincadeira das crianças.
No jogo, as crianças tornam-se conscientes de conceitos e de papéis sociais,
ações humanas concretas, que determinados conceitos condensam em seus
múltiplos significados. Vigotski (1989, p. 124) observou brilhantemente uma situação
em que duas irmãs "brincavam de irmãs". Quando algumas crianças brincam de
87
"casinha”, às vezes uma toma o papel de "pai", outra de "mãe" e outras vão ser os
“filhos", de forma que pode acontecer de dois irmãos terem que assumir o papel de
irmãos. Isso não esvazia o caráter da brincadeira enquanto tal, nem faz com que as
crianças confundam seus papéis sociais efetivos com os papéis jogados na
brincadeira. Mas, enquanto brincam, estas crianças passam a desenvolver uma
observação delas mesmas. Algo que diferencia desde o início o jogo humano das
estrepolias dos animais. Um gato "brinca" com sua imagem no espelho sem se dar
conta de sua identidade ou alteridade com relação a imagem.
Em Leontiev (1978, p. 69) o caráter auto-reflexivo também implica uma
distinção entre a consciência e a vivência do sujeito enquanto experiência. Sendo
que a consciência constitui-se num distanciamento e discernimento entre o que
imaginamos e o que compõe a realidade objetiva.
Na consciência, a imagem da realidade não se confunde com a do
vivido do sujeito: o reflexo é como que 'presente' ao sujeito. Isto
significa que quando tenho consciência de um livro, por exemplo, ou
muito simplesmente consciência de meu próprio pensamento a ele
respeitante, o livro não se confunde na minha consciência com o
sentimento que tenho dele, tal como o pensamento deste livro não se
confunde com o sentimento que tenho dele.
A consciência humana distingue a realidade objectiva do seu reflexo,
o que leva a distinguir o mundo das impressões interiores e torna
possível com isso o desenvolvimento da observação de si mesmo.
Esta observação de si mesmo, em termos leontievianos não pode surgir
senão mediante a atividade do ser humano num contexto sócio-histórico. A vida é
precedente com relação à consciência, como em Marx e Engels (1965, pp. 25-26). E
as relações sociais possibilitam ao humano ir saindo de uma relação de
indiferenciação com relação ao mundo para uma condição de poder se reconhecer
enquanto destacado dele tanto quanto relacionado com ele. A experiência inicial é
88
de uma imersão social difusa e indiferenciada, onde não há distinção entre as
emoções que a criança experimenta com relação ao mundo e seu conhecimento do
próprio mundo.
No início não há distinção entre as experiências interiores e exteriores, nem
fronteiras nítidas entre expressão e impressão. O filhote humano, antes de mais
nada vive, experimenta, emociona-se, age, e assim vincula-se intimamente ao
mundo social do qual depende, necessariamente, a sua própria existência. Tudo vai
se dando antes mesmo dele saber que realiza todas essas coisas, ou de poder ter
domínio sobre elas. Para Leontiev (1978, p. 175) a atividade humana parece rumar,
nas relações sociais, para uma crescente diferenciação entre o que sentimos quanto
ao mundo e a nós mesmos e aquilo que sabemos sobre ele e sobre nossa vida
dentro dele.
O conceito marxista clássico de consciência como reflexo material e parcial
do mundo está fortemente colocado na concepção leontieviana, e são as relações
sociais práticas, na vida concreta, que levam ao desenvolvimento desse reflexo
numa trama de sentidos e significados. Um outro autor que compartilha desta visão,
aproximando seu discurso ao da teoria sócio-histórica da atividade, é Rubinstein,
cujas posições são expostas de modo bastante claro por Damaceno e Guerreiro
(1991, p. 12):
Rubinstein (1972) admite que a tendência essencial e geral da
evolução psíquica é a penetração no ser exterior e objetivo da
realidade, inseparavelmente ligada ao desenvolvimento do âmbito
psíquico interno da atividade com seu reverso. Durante o
desenvolvimento psíquico, o indivíduo destaca-se cada vez mais da
realidade e une-se a ela cada vez com mais força: desenvolve
formas cada vez mais perfeitas do reflexo ao passar da diferenciação
sensorial de um estímulo externo à percepção de um objeto ou de
uma situação e, depois ao pensamento, que reconhece as ligações e
89
as relações mútuas do ser. Neste processo destaca-se cada vez
mais do ambiente que o rodeia e une-se a uma esfera cada vez mais
vasta.
Tanto quanto na concepção walloniana, Leontiev e Rubinstein fazem uma
distinção entre consciência e experiência subjetiva, na medida em que a consciência
é um processo reflexivo posterior. Tal processo implica experimentar a própria
experiência tal como se experimenta a relação com um outro. E, nesse sentido, só
pode ser um produto posterior do desenvolvimento histórico e só pode surgir
mediante as relações vitais concretas das pessoas, em função da estrutura e
condições de produção de suas atividades culturalmente circunscritas.
Vigotski (1989, p. 124) por sua vez, no estudo da brincadeira das crianças,
também demonstra um entendimento de que o desenvolvimento da consciência
implica uma diferenciação entre aquilo que elas imaginam e aquilo que os objetos
são. Além disso, Vigotski também compartilha da posição de que a imaginação tem
um vínculo primordial com a realidade concreta, na medida em que nada pode ser
criado sem que seja com base em experiências reais vividas pelas pessoas em suas
relações sociais concretas (Vigotski, 1987, p. 16).
Um menino brinca de cavalo com um cabo de vassoura, mas se lhe
perguntamos se aquele é um cavalo ele nos diz que não é um cavalo e sim um cabo
de vassoura. Este menino realiza uma ação, cujo significado não é dado pela
experiência imediata, mas é esta mesma ação que possibilita o significado mediado.
Além disso este menino passa a distinguir a brincadeira da realidade à qual ela
remete enquanto significado. A questão é que em Vigotski (1989, p. 128) a ênfase é
dada aos processos sígnicos que constituem a ação num plano imaginário: um
conceito é colocado em jogo na própria atividade da criança, ao mesmo tempo em
90
que se distancia e se diferencia dela, possibilitando a constituição da imaginação.
Há diferenças teóricas nos modos de interpretar a questão da gênese da
consciência a partir da concepção vigotskiana ou da perspectiva daqueles autores
centrados no conceito clássico de "atividade". Contudo essas diferenças parecem
não ser tão profundas a ponto destes autores divergirem quanto a concepção do
surgimento da consciência como processo posterior, nem quanto ao seu caráter
reflexivo. Concomitantemente, as vozes desses pensadores, movendo-se por uma
teoria do conhecimento fundada em princípios marxistas clássicos, tende também a
um outro ponto de convergência: o caráter cognoscitivo da consciência. Deste modo
a questão da consciência fica bastante vinculada à constituição de um conhecimento
efetivo da realidade objetiva em suas múltiplas facetas e relações genético-causais.
Tal conhecimento pode voltar-se tanto para as realidades independentes do humano
quanto para o próprio homem em sua inserção física, ecológica e política no mundo.
Esta ênfase no caráter cognoscitivo na consciência não deixa de ter um horizonte
ético e político, numa visão marxista de mundo.
Espinosa (apud Chaui, 1995, pp. 52-53) já havia entendido que o homem é
tão mais livre quanto mais conhece os múltiplos determinantes de suas ações.
Acreditava que, sendo o real plenamente inteligível, os erros seriam conseqüência
de conhecermos parcialmente. Caberia então buscarmos uma superação da
ignorância, decorrente de nosso conhecimento parcial, pois a "alegria" é a passagem
do homem de um nível de conhecimento menor para uma compreensão maior
quanto aos determinantes de sua existência, na medida em que passa a compor-se
mais com o mundo. Nesse sentido, Espinosa (apud Chaui, 1995, p. 52) é
radicalmente contra as superstições, pois estabelecem relações causais parciais e
91
arbitrárias, impedindo-nos de conhecer as coisas pelas suas causas reais, ou seja,
pelo processo de sua gênese.
Na filosofia marxista, a questão do conhecimento verdadeiro está vinculada a
práxis. É na sua atividade coletiva que os homens vão se aproximando de uma
melhor compreensão das relações em que estão inseridos, de suas determinações
históricas. É um tanto nesse sentido que Marx e Engels (1977, p. 87) dizem que o
avanço das forças produtivas com a consolidação da burguesia enquanto classe
dominante, leva a uma dessacralização dos mitos e a uma aproximação cada vez
maior entre os próprios trabalhadores, ampliando suas possibilidades de
associarem-se em suas lutas. Com a ascensão da burguesia e o avanço das forças
produtivas no capitalismo, "tudo o que era sólido e estável evaporou-se no ar, tudo o
que era sagrado é profanado, e por fim os homens são obrigados a encarar com
serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com os demais
homens” (Marx e Engels, 1977, p. 87).
A partir destas vozes o desenvolvimento dos processos cognitivos do humano
pode ser visto como avanço progressivo de sua atividade na direção de uma
compreensão mais completa e precisa do real. Avanço este que pode dissipar as
ideologias ou ser atravancado por elas. Tal posição, como vimos, encontra uma
série de contraposições contemporâneas gerando tensões que continuarão sendo
produtivas para as discussões que continuaremos a fazer.
No entanto, ao mesmo tempo, seria importante lembrar que aqueles mesmos
autores, de que vínhamos falando, também apontam para a necessidade de
destacarmos os aspectos afetivos como constitutivos da consciência. De modo que
estas vozes marxistas não configuram necessariamente um cognitivismo. Mesmo
92
privilegiando o conhecimento claro, objetivo e seguro em detrimento da instabilidade
das emoções que, por vezes, prejudicam uma avaliação adequada das coisas, não
deixam de considerar aspectos afetivos da consciência.
Rubinstein (1972, pp. 11-12), propõe que seja característico dos fenômenos
psíquicos tanto uma vinculação a um sujeito que os experimenta quanto a um objeto
que independe do psíquico e do conhecimento. Esta caracterização geral busca
vincular sujeito e objeto na atividade psíquica uma vez que o psíquico é sempre
experienciado por alguém e uma vez que a experiência desse alguém é sempre
experiência de alguma coisa. Nem sempre este autor diferencia claramente os
conceitos de psiquismo e consciência, embora esta seja uma distinção usual nas
psicologias marxistas constituídas na então União Soviética. De qualquer modo, a
conceituação de uma dimensão da experiência como indissociável dos fenômenos
psíquicos tem seu correlato na definição das dimensões afetiva e cognitiva da
consciência, que é o psiquismo propriamente humano conforme expõe Rubinstein
(1968, p. 10):
Todo ato psíquico concreto, toda unidade de consciência,
compreende os dois componentes, um deles e intelectual ou
cognoscitivo, o outro e afetivo (não no sentido que o entende a
psiquiatria moderna, senão no sentido da filosofia clássica do século
XVll, por exemplo na de Espinosa, e também na dos socialistas
utópicos do seculo XVIII). Não obstante, e precisamente no aspecto
cognitivo do processo psíquico que se manifesta com singular relevo
a conexão dos fenômenos psíquicos com o mundo objetivo.
Leontiev (1978, p. 172) também vincula a consciência aos afetos na medida
em que ela passa a ser definida não como um reflexo especular da realidade, mas
como um reflexo parcial. A parcialidade da consciência residiria no fato de ser
93
atravessada por motivos e necessidades
15
, os quais não deixam de ter sua origem
nas relações sociais concretas, nem de serem mutáveis dentro da atividade de cada
pessoa, em seus sentidos e significados.
Vigotski (1998a, p. 190), por sua vez, fala da palavra como microcosmo da
consciência humana, e busca estudar a configuração dos níveis de consciência no
processo de desenvolvimento do significado da palavra, que parte de organizações
mais sincréticas e subjetivas para organizações mais objetivas e conceituais.
A objetividade da consciência, na busca do homem por uma compreensão
mais crítica da sua realidade, está vinculada ao desenvolvimento do significado das
palavras mas as palavras, os enunciados, só podem ser compreendidos quando nos
remetemos, ao processo de pensamento em que estão envolvidas e ainda, em
última análise, aos seus aspectos afetivo-volitivos. Deste modo podemos interpretar
que a palavra, microcosmo da consciência é ao mesmo tempo afetiva e intelectual.
Diante deste processo, Lane (1997, p. 19) aponta o seguinte:
Destacamos assim as duas mediações fundamentais na constituição
do indivíduo: a linguagem e as emoções, ambas permitindo a
comunicação com o outro, seja ela expressiva, seja ela verbal, elas
estão na base da construção do saber, manifestado através de
representações sociais, da imaginação e mesmo da fantasia, mas
também das ações, de projetos e de suas revisões.
15
Leontiev (1983) considera que os motivos “não estão separados da consciência. Mesmo quando os
motivos não são reconhecidos, isto é, quando o ser humano não se dá conta do que o faz realizar
uma ação ou outra, eles ainda encontram seu reflexo psíquico, mas de uma forma especial - na forma
da coloração emocional da ação. Esta coloração emocional (sua intensidade, sua marca e seu
caráter qualitativo) exerce uma função específica, que também requer a distinção entre o conceito de
emoção e o conceito de sentido pessoal”. Em relação às necessidades, Leontiev (1983) aponta que
“a necessidade real é sempre uma necessidade de alguma coisa, que, no nível psicológico, as
necessidades são mediadas pela reflexão psíquica, e de duas maneiras. Por um lado, os objetos que
respondem às necessidades do sujeito aparecem diante dele dentro de suas características
sensoriais objetivas. Por outro lado, as condições da necessidade, nos casos mais simples,
assinalam-se e são sensorialmente refletidas pelo sujeito como resultado das ações de estímulos de
recepção interna”.
94
Assim, a questão das emoções é complexa e, por vezes, pode acabar sendo
secundarizada ou deixada para uma esfera da experiência humana particular, única
e intraduzível. Luria (1987, p. 46), por exemplo, tende a vincular o sentido das
palavras a experiências mais íntimas e particulares de cada pessoa, enquanto o
significado seria um aspecto mais social, compartilhado e objetivo das palavras
mesmo considerando sua polissemia. Por mais que se mapeasse a polissemia de
uma palavra, detalhando seu significado, e cercando um referente mais preciso a ser
compartilhado por diferentes pessoas, ainda assim cada uma delas faria uma
avaliação particular daquela palavra, em função das peculiaridades de suas histórias
pessoais.
Vigotski (1998a, p. 181) já não faz uma polarização tão nítida entre sentido e
significado, pois vê este como uma esfera mais estável daquele, mas tende a
privilegiar a razão e as emoções mais “elevadas", mediadas culturalmente. Na
abordagem walloniana, por sua vez, fala-se sobre oposição, vinculação genética e
alternância funcional entre emoção e razão, acentuando o fato de que um fluxo
emocional muito forte prejudica uma clara avaliação das situações. Mas também
diferencia emoções de sentimentos, sendo estes propriamente humanos e
culturalmente mediados e aquelas mais básicas permitindo um vínculo social
primordial.
Cabe dizer que se o aspecto afetivo da consciência pode ser secundarizado
nos autores com os quais vimos dialogando, isso não significa que seja
desconsiderado em sua dialética com os processos cognitivos.
Quanto à subjetividade, Mitjáns Martinez (2001, p. 239) destaca o enlace que
deve haver entre afeto e cognição para compreendê-la, considerando que:
95
Capacidades, reflexões, valores, aspirações, necessidades, planos,
projetos, motivações, interesses, auto-valorização, atividades e
relações subjetivadas e outros muitos elementos psicológicos
complexos se articulam em configurações de forte valor emocional
constituindo a subjetividade individual. A complexidade da
subjetividade implica também sua expressão singular, a forma
diferenciada, única e irrepetível, que assume nos indivíduos
concretos.
Ou seja, a questão da consciência implica aspectos afetivos e cognitivos,
ainda que isso não pareça ser definido numa relação de igualdade nem de equilíbrio.
De qualquer modo, esta parcialidade da consciência dá margem a pensarmos numa
possibilidade de vincular seu estudo à questão da subjetividade.
Tensões de um confronto radical
Aprofundando o debate em torno do conceito de consciência numa
abordagem vigotskiana, chegamos a perceber seus limites e uma incipiente abertura
à vinculação com esferas mais amplas da vida psíquica. Isto nos conduz a um ponto
crítico: mesmo assumindo a materialidade da consciência em sua gênese histórica,
seu caráter tardio nos leva a questionar sua abrangência enquanto objeto da
psicologia.
Abdicar do conceito de consciência seria desarticular todos os princípios
metodológicos da psicologia vigotskiana. Mas deixá-lo intocável talvez fosse
renunciar à força poética desta abordagem, abandonando uma de suas melhores
promessas. Já vimos que não é possível igualar os conceitos de subjetividade e
consciência, no entanto talvez também não possamos descartar um em função do
96
outro.
Algumas contradições quanto aos conceitos de sujeito e subjetividade
também foram esboçadas no capítulo anterior, mostrando dificuldades
metodológicas que eles encontram frente a uma abordagem vigotskiana clássica,
pois sua circunscrição moderna já não se sustenta. Mas como situar a consciência
numa dimensão mais ampla sem recorrer ao conceito de subjetividade?
Pensamos que seja preciso provocarmos alguns deslocamentos,
confrontando a noção de que só é possível falar sobre uma generalidade humana a
partir de nossa "própria”, e específica condição de homens modernos. É preciso
rever essa afirmação em busca de um caminho que permita extrair uma poética da
subjetividade do estudo da gênese da consciência, apartando ambas das amarras
do sujeito moderno.
Certamente, não será fora de nossos limites temporais e espaciais que
falaremos sobre o que vai além deles, em busca de outras épocas e outros povos.
Mas este relativismo, levado às últimas conseqüências, pode criar um dogmatismo
etnocêntrico, e inviabilizar um confronto dialógico constitutivo com a alteridade de
outros tempos e outras culturas. Se só posso falar a partir de minha própria posição,
como tomar-me permeável à palavra do outro? Ou o outro, em última análise, não
tem palavra própria?
Essa idéia de um outro "mudo" pode ter sido um pressuposto implícito de
determinadas análises antropológicas, que acabaram colocando seu objeto num
lugar de diferenças impenetráveis. Outras culturas apresentariam uma lógica interna
inacessível, só recuperável mediante princípios estruturais a priori.
Dizer que nosso conhecimento só pode se constituir a partir de nosso
97
"próprio" quadro referencial é o mesmo que reafirmar a concepção moderna de um
sujeito cognoscente que se auto certifica. Concepção que pode levar a um
solipsismo insuperável, a não ser por um apelo à transcendência absoluta de Deus,
como em Descartes, ou à universalidade de princípios estruturais, como em Lévi-
Strauss (apud Chaui, 1980a, p. 8).
Mas, em última análise, de que gesto mágico teriam surgido as nossas
"próprias" palavras? Retomaremos esta questão no próximo capítulo, mas desde já
podemos compor com a noção de que nossas próprias palavras são alheias, e de
que o alheio nos é próprio.
O outro não nos é estranho mas constitutivo. Identifico-me enquanto humano
justo quando reconheço a humanidade do outro. A humanidade do outro é forjada
em sua historicidade e em suas raízes culturais, tanto quanto a minha, e não pode
ser totalmente alheia a mim. Dizer que não podemos ser mais do que sujeitos
burgueses, filhos da modernidade européia, seria negar a dialogia e a polifonia da
história humana. Seria negar a luta de classes e a polissemia do signo, atribuindo a
uns poucos séculos de modernidade uma força monológica colossal capaz de
silenciar todos os rumores milenares das diversas culturas humanas.
A questão de serem o sujeito e a subjetividade invenções modernas precisa
ser tratada de um outro patamar. Não fazê-lo seria correr o risco de monologizar a
reflexão psicológica tanto sob o prisma de um resgate do sujeito cartesiano quanto
sob o assombro de identificar sua desconstrução com um suposto “fim do homem".
Talvez seja preciso falarmos em termos mais genéricos sobre o humano e a
constituição semiótica de seu psiquismo. Se o ser humano e seus signos não são
uma invenção moderna, por que uma crise da modernidade haveria de decretar o
98
fim do homem?
O fato da psicologia vigotskiana não eleger o conceito de sujeito como objeto
de estudo pode não ser um descuido teórico, mas uma opção metodológica.
Posto que dizer da gênese da consciência como psiquismo propriamente
humano possibilita confrontar diversos modos de sua constituição em diferentes
tempos e culturas. Não restringindo a análise da constituição humana às suas
formas modernas européias ocidentais, mas vendo-as como uma de suas
possibilidades históricas no confronto entre diferentes signos culturais.
Por certo, esta discussão é bastante ampla e repleta de contradições, mas já
não é possível seguir nosso trabalho sem posicionar-nos diante dela. Para tanto,
proporíamos algumas considerações quanto a três temas fundamentais: a definição
de sujeito; a definição de subjetividade; e o modo de abordar a vinculação desses
conceitos ao de consciência.
Em primeiro lugar, seria preciso dizer que se admitimos o sujeito como uma
invenção moderna (européia, ocidental, burguesa) não podemos dar a este conceito
o estatuto de objeto da psicologia numa concepção vigotskiana. Entretanto, não há
um só modo de falar sobre o sujeito e a própria palavra "modernidade” também tem
sua polissemia. Então seria melhor dizer que "ser sujeito” é apenas um dos modos
possíveis da constituição do psiquismo individual e da consciência.
Uma possibilidade alternativa seria vincular o conceito de sujeito às relações
sociais concretas em que cada ser humano se insere. O homem então não seria
visto como um sujeito abstrato mas como o próprio movimento de fazer-se sujeito
em função de múltiplas relações sociais mediadas.
99
Falaríamos do sujeito de uma relação familiar, sujeito de um vínculo amoroso,
sujeito de uma determinada opção política, e assim por diante. Contudo, esta
definição ampliada não deixa de ter suas tensões, possibilitando-nos falar de
"sujeitos” na Antigüidade greco-romana, na Idade Média, ou em quaisquer outras
relações sociais anteriores ou exteriores à modernidade européia à qual atribui-se a
invenção do sujeito. Por essas e outras, a disputa quanto à categoria "sujeito”
persiste. Tal categoria não chega a ter o estatuto de objeto central de estudo, mas
pode ser ampliada e articulada a uma reflexão mais genérica sobre o psiquismo
humano.
Em segundo lugar, seria necessário pensarmos a articulação da categoria de
subjetividade a este debate. Se defino subjetividade apenas como experiência de
um sujeito, vinculada necessariamente aos princípios de "liberdade e reflexão"
essenciais à emergência da modernidade em sua necessidade de auto-certificação,
também não posso tomá-la como um conceito central. Muito pelo contrário,
definindo-a assim, ela não passaria de uma instância fugidia e impenetrável,
oscilando entre um pressuposto e um epifenômeno. Isso pelos mesmos motivos que
discutimos acima quando nos referíamos ao conceito de sujeito. No entanto, se o
conceito de subjetividade puder passar a ser entendido como conjunto das
experiências que possibilita a emergência do sujeito concreto em suas múltiplas
relações, talvez sua vinculação com o estudo da consciência possa ser abordada
em termos produtivos.
Nesse caso proporíamos um deslocamento do conceito de subjetividade do
de sujeito moderno. E buscaríamos generalizar a questão da subjetividade para
vinculá-la à composição do psiquismo humano. O sujeito moderno poderia ser
100
considerado um dos modos possíveis de composição da subjetividade. O conceito
de subjetividade deixaria de estar subordinado ao de sujeito e seria encarado de um
modo mais amplo vinculando-se às próprias condições de constituição do sujeito. A
subjetividade teria a ver com a experiência humana, experiência plasmada à sua
existência material. Experiência que o homem tem do mundo e de si próprio, mas
que enquanto experiência de si próprio só pode se constituir na relação com o
mundo e com os outros.
Optaríamos por trabalhar com uma definição conforme a proposta por
González Rey (2004, pp. 125-126), ou seja:
De uma perspectiva dialética, o resgate da subjetividade, em vez de
coisificar a definição de subjetividade em uma instância, entidade ou
tipo de processo concreto, foi capaz de estender e compreender a
produção de sentidos a todos os processos e formas de organização
da atividade humana, dos processos macrossociais até os
microssosicais e os individuais. A subjetividade não se substancializa
em atributos universais. Ela representa uma produção de sentidos
inseparáveis do contexto e das formas complexas de organização
social que estão por trás dos vários espaços de ação social. (...) A
subjetividade é da ordem do constituído, mas representa uma forma
de constituição que, por sua vez, é permanentemente reconstituída
pelas ações dos sujeitos dentro dos diversos cenários sociais em
que atual.
Seria preciso compreender essa materialidade da experiência de um ser
humano concreto, situado num mundo social, histórico e cultural. Tal materialidade
não estaria restrita ao organismo humano, ao que está sob sua pele, mas seria da
ordem dos vínculos dialéticos entre a organicidade humana e as condições materiais
de sua atividade numa determinada sociedade.
Nos termos de Rubinstein (1972, pp. 11-12), a experiência de um ser humano
seria sempre considerada, simultaneamente, como uma experiência de algo. A
101
emergência de uma experiência da própria experiência seria posterior e vinculada à
gênese da consciência, mediante a reversibilidade da palavra. Mas a subjetividade
estaria antes de mais nada vinculada às condições de emergência da consciência e
do próprio sujeito enquanto referenciado em relações sociais concretas.
Em terceiro lugar, a opção metodológica que necessitamos fazer, tem a ver
com a necessidade de pensar geneticamente os desdobramentos da subjetividade
que possibilitarão a emergência da consciência, tanto quanto a constituição dos
múltiplos lugares significativos de onde cada ser humano se relaciona com os
demais, fazendo-se sujeito dessas relações. A subjetividade poderia ser vista como
uma realidade e um conceito anterior, vinculada à experiência, e a consciência como
posterior, vinculada à experiência de uma alteridade remetida à própria experiência.
No entanto, numa perspectiva genética as temporalidades se confrontam
dialeticamente, constituindo-se mutuamente. O que é anterior não permanece
sempre o mesmo e remete ao seu devir, e o que é posterior nem sempre foi o
mesmo e remete às suas origens. Se a consciência se desenvolve, poderíamos
dizer que a subjetividade e o sujeito também têm um devir. Não numa relação de
substituição de um nível por outro, mas numa trama de inter-constituição dialética.
O conceito de gênese, como veremos, está entrelaçado ao de multiplicidade:
subjetividade implica múltiplas experiências; a atividade da consciência, por sua vez,
segue rumos diferentes, e os lugares de ser sujeito são múltiplos pois remetem ao
estabelecimento de múltiplas relações. A materialidade desta multiplicidade não
deixa de estar intimamente vinculada a multiplicidade e movimento do mundo, da
vida, e da palavra que dela se desdobra. O entrelaçamento de múltiplas linhas
genéticas também é um conceito importante, pois os níveis não excluem mas
102
multiplicam-se ou fundem-se, e desenvolvem-se em tempos não-coincidentes.
Por certo, esta questão da multiplicidade também gera tensões pois
confronta-se com o enigma da identidade do homem consigo mesmo, de dentro de
sua própria multiplicidade. Se nós vamos nos fazendo sujeitos de determinadas
relações, um mesmo homem é sujeito de diferentes relações que não estão dadas
de antemão.
Mas se este homem é constituído por essas relações e não há um fator aos
quais elas se integrem, como dizer que se trata do mesmo homem em cada
relação? Se não é o mesmo, o que pode diferenciá-lo de uma multidão? Se é o
mesmo, qual a arena que contém suas multiplicidades em luta? Tais perguntas vão
reaparecer com maior ênfase no capítulo posterior, onde trataremos da
multiplicidade como princípio fundamental dizendo que a gênese lhe é constitutiva.
Por ora estamos tomando a questão da perspectiva genética como princípio
metodológico fundamental e dizendo que a multiplicidade lhe é constitutiva.
A abordagem vigotskiana é radicalmente histórica, no sentido de buscar
explicar seu objeto no movimento de sua constituição. Partindo desse princípio, é
como movimento genético que procuraremos tratar da questão da subjetividade.
Não é no seu caráter intransferível que nos centraremos, mas no seu
desdobramento poético constitutivo, que faz proliferar multiplicidades e
singularidades. Para seguir adiante, buscaremos retomar a questão da gênese da
palavra a partir da contribuição de Vigotski (1998a, p. 63), articulando conceitos
deste autor que nos possibilitem pensar esse processo como um devir material
concreto.
103
A experiência, o sentido e o significado
A partir da contribuição de Vigotski (2001, p. 346) podemos pensar em três
níveis imbricados na constituição da materialidade da palavra e, portanto, articulados
na gênese da consciência humana: a experiência, o sentido e o significado. Com o
intuito de compor uma discussão, proponho que o conceito de experiência seja
articulado a questão da subjetividade. Que vinculemos a questão do sentido à
constituição dos múltiplos processos de significação. E que passemos a pensar a
questão do significado, que se constitui antes do sentido, como relativo à
reversibilidade da palavra na gênese da consciência.
A constituição do sentido implica o estabelecimento de relações entre
realidades materiais cujo vínculo não está dado de antemão. O sentido não está
exatamente na experiência direta que se tem de uma realidade "a" ou "b", mas no
movimento semiótico que estabelece uma relação entre estas diferentes
experiências, presentes sensorialmente e/ou compostas em nossos cérebros. Nesta
perspectiva este conceito amplia-se e multiplica-se, pois o sentido é visto como o
próprio horizonte de possibilidades para as significações humanas.
Já o significado da palavra vincula-se, em seu desenvolvimento, à gênese da
consciência e implica no estabelecimento de um vínculo de alteridade, de
diferenciação e de estranhamento da pessoa consigo mesma. Estranhamento que
emerge de uma experiência de alteridade, configurada na relação dinâmica e
contraditória entre pessoas concretas, constitutiva de sentidos dispares e
complexos. Os significados das palavras são regiões de estabilização destes
sentidos (Vigotski, 1998a, p. 181), zonas de partilha ou de litígio, em meio a
104
multiplicidades e desvios.
A partir de nossas experiências no mundo, mediadas pelo sentido e reflexivas
pela palavra generalizante, criamos uma experiência de nossa experiência, uma
explicação para o sentido, um conhecimento partilhado. Mas a consciência não é
mais do que um fluxo de transição por diferentes áreas do sentido e da experiência.
Ela toma rumos diferentes, podendo focar diferentes ações, processos ou
significações, na medida em que toma corpo em diálogos internalizados. A mate-
rialidade da consciência é literalmente a de um movimento dialógico, uma
alternância de palavras e contrapalavras numa grande assembléia de vozes.
Pensamos que seria útil proceder a vinculação desses diferentes níveis de
consciência em termos genéticos. Não como etapas que se sobrepõem de modo
excludente ou se sucedem de modo linear, mas como níveis dialeticamente
relacionados por vínculos de interconstitutividade dispares, tensos, não
necessariamente harmônicos. Ao mesmo tempo, também não podemos negar o
caráter tardio dos níveis mais complexos de consciência, a não ser que eles nos
fossem dados de antemão como num mundo inteligível platônico. Ao contrário,
dizemos que a experiência precede e acompanha o sentido, este por sua vez
acompanha o significado. No entanto, o sentido constitui a experiência, e o próprio
significado também transforma, cinde, estratifica e amplia sentidos e experiências,
transitando por suas amplas e instáveis regiões.
Numa perspectiva materialista inverte-se aquela proposição platônica,
contudo também não é como derivação direta do sensível que os níveis mais
complexos emergem, mas em relação com eles, em confrontos contraditórios. Esta
questão é tangível inclusive em termos neuropsicológicos, pois o fato das estruturas
105
mais elementares estarem na base não implica em que as mais complexas sejam
um desdobramento direto delas (Luria, 1984, p. 16).
Por outro lado, também é certo que níveis complexos de relações culturais
antecedem o nascimento do filhote humano, num dado momento historicamente
circunscrito. Pois as relações ideológicas estarão, desde o início, em confronto
dialético com a própria constituição do sujeito.
No entanto, ao tratarmos a subjetividade de cada pessoa concreta em sua
ontogênese, não podemos colocar a consciência dessas relações ideológicas como
pressuposto das relações da criança com o mundo. A consciência não é um
pressuposto de sua história de vida mas sua conseqüência dialética. Os signos
ideológicos materiais impactam sua experiência desde o início mas não de forma
direta nem tampouco como movimento reflexivo. Desde o início há mediações e
desvios, mas a reflexividade só poderá ser posterior. Tentaremos articular uma
discussão, falando sobre aqueles três níveis como categorias importantes numa
perspectiva genética e procurando estabelecer relações entre eles: a palavra, o
significado e a experiência.
A experiência, em um de seus significados filosóficos mais abrangentes,
implica a vinculação do psíquico à materialidade do ser. Discutir esta vinculação
parece-me fundamental para pensar o devir material dos processos de significação
propriamente humanos. A experiência diz de uma vinculação concreta da
subjetividade à materialidade da vida humana. No intuito de marcar a relevância
dessa problemática, podemos retomar Rubinstein (1972, pp. 11-12):
Não há nenhuma dúvida de que nada do que nos é dado na nossa
experiência direta nos pode ser dado de outra forma. Nenhuma
106
descrição, por muito intensa que fosse, faria um cego perceber a
policromia do mundo, nem um surdo reconhecer o caráter musical
dos seus tons. Nenhuma dissertação pode substituir, no ser humano,
o que ele sente, se ele próprio não experimentou o amor, o espírito
combativo ou a ânsia de criar. As minhas próprias sensações ou
emoções são-me proporcionadas de uma outra forma, de uma outra
perspectiva e de maneira diferente da dos outros. As emoções,
pensamentos e sentimentos do sujeito são os seus pensamentos, as
suas emoções. São as suas emoções, um pedaço da sua própria
vida, da sua própria carne e do seu próprio sangue (grifos no
original).
Há uma dimensão incomunicável do psíquico, uma dimensão que implica uma
experiência que não pode ser duplicada na vivência do outro ou transmitida para ela
como num sistema de vasos comunicantes. Poderíamos até falar de uma
possibilidade – em termos wallonianos – de "contágio"
16
, mas esta metáfora seria
um tanto pobre e vazia. Pois nunca nos contaminamos com a própria experiência do
outro, antes somos atravessados por uma experiência que temos de seus indícios. A
minha experiência não pode ser vivida pelo outro tal como eu a vivo, a experiência
do outro não pode ser vivida por mim tal como ele a vive. Omitir essa dimensão
primeira talvez seja omitir a própria materialidade do homem concreto.
Há um nível da experiência indissociável de cada ser humano, um limite para
o saber e o domínio consciente de um outro. Há um real do próprio ser. E se cada
ser é diferente e singular, então há uma realidade de cada um que só pode ser
experimentada por cada pessoa, de um modo inigualável e intransferível. Não se
pode ter um espelho exato do que o outro "é", não no significado clássico para o
16
As manifestações afetivas provocam na criança um verdadeiro contágio emocional, que, por
conseqüência, imprimem uma significação para elas. O contágio na abordagem walloniana implica
em uma espécie de participação mútua e possui forte valor expressivo. Nesse encontro é que
começa o estabelecimento do circuito de relações interindividuais, implicando a correspondência
entre os próprios atos que a criança realiza e os respectivos efeitos. Wallon (1971, p. 228) destaca
que as relações afetivas que ocorrem entre os indivíduos são traduzidas pelos comportamentos
expressivos numa troca de significados capturados por vários indícios de atitudes e fisionomias.
Assim, a mímica é considerada “a função postural apropriada às necessidades das relações afetivas
entre indivíduos”.
107
verbo "ser". Há uma realidade material específica para cada ser humano. Dito de
outro modo, há uma existência corpórea múltipla e singular anterior a quaisquer
estratificações, que experimenta o mundo e a si própria, mesmo antes de passar a
atribuir sentido para si mesma e para o mundo. Não se trata de um cógito reflexivo,
mas de um atravessamento de diversos fluxos energéticos numa instância corpórea
aberta e adjacente a outras materialidades com as quais se compõe em seu
movimento.
Mas a questão não pode se esgotar nessa constatação, pois a experiência
que posso vir a ter em mim mesmo não acontece senão num confronto com o
mundo. Na verdade a dimensão da experiência do mundo precede qualquer "mim
mesmo", cuja emergência só deriva de significados posteriores. Ela é o próprio
movimento de uma materialidade em si, desde sempre contígua e dialeticamente
integrada a outras materialidades. Merleau-Ponty (apud Chaui, 1980b, p. 10) já
indicara que:
O corpo apresenta aquilo que sempre foi o apanágio da consciência:
a reflexividade. Mas apresenta também aquilo que sempre foi o
apanágio do objeto: a visibilidade. O corpo é o visível que se vê, um
tocado que se toca, um sentido que se sente. Quando a mão direita
toca a mão esquerda, há um acontecimento observável cuja
peculiaridade é a ambigüidade: como determinar quem toca e quem
é tocado? Como colocar uma das mãos como sujeito e a outra como
objeto? A descoberta do corpo reflexivo leva Merleau-Ponty a
mostrar que a experiência inicial do corpo consigo mesmo é uma
experiência em propagação e que se repete na relação com as
coisas e na relação com os outros (grifos no original).
O corpo, em sua materialidade orgânica primeira, já é uma unidade sujeito-
objeto, e converte-se numa instância em que estes aspectos sequer dissolvem-se
pois nem mesmo chegaram a diferenciar-se.
108
Um bebê é uma "materialidade em si" desdobrada da materialidade do ventre
de sua mãe, um astronauta em sua cúpula sem gravidade, vinculando-se à grande
nave por um cordão material. Ao nascer todo o meio passará a ser sua cúpula, toda
a materialidade do mundo proverá os contornos do novo ventre que o gesta, mas
agora com gravidade, com frio, calor, tensão, relaxamento, com atributos e
atravessamentos. E todas estas suas interfaces com o meio físico, e ainda outras,
irão se dar mediante as mãos e as palavras de um meio social, como considera
Wallon (1986b, pp. 87-88). Agora os cordões já serão outros, na emergência de
sensações e significações, mas continuarão sendo materiais. O movimento daquela
materialidade em si, matriz de todos nós, vai se tornando movimento de um corpo
para si, mediante um processo que necessariamente transcende os limites do
próprio corpo.
Para Vigotski (2000b, p. 24) a passagem do desenvolvimento em si ao
desenvolvimento para si, implica um inevitável desenvolvimento para o outro. Esse
"para o outro", na perspectiva ontogenética tem tanto um significado de "na direção
de um outro", quando de "segundo a visão de um outro". Hoje já não temos como
viver qualquer experiência senão mediante os significados que a ela atribuímos.
Mas, ao mesmo tempo, também não podemos atribuir significados que não sejam
encharcados pela experiência que temos do mundo, de nós mesmos e de nossos
próprios signos. A totalidade aberta dessas experiências, no confronto dos corpos
com múltiplas e desviantes materialidades sensíveis, configura o próprio movimento
de nossas vidas.
O tema é complexo e de difícil tratamento teórico. Mas alguns trabalhos de
vigotskianos nos dão pistas para avaliarmos a importância dessa dimensão humana,
109
vinculando-a à subjetividade e às esferas afetivas necessárias a qualquer ato
psíquico. Um desses indícios pode ser encontrado nos princípios metodológicos
adotados por Vigotski (1998b, p. 271) em sua "Psicologia da Arte", ao buscar a
especificidade das emoções produzidas pela fruição de uma obra literária. Ele
entendia que a análise não poderia pautar-se nem no "estudo dos processos que
haviam levado à criação de uma mensagem estética” (Valsiner e Van der Veer,
1996, p. 36), nem tampouco nos processos internos do leitor. Seria preciso estudar a
própria mensagem e estudar a própria obra de arte como signo.
Deste modo, indiretamente, assume-se a existência de um plano pessoal um
tanto quanto inapreensível, da criação e da fruição da obra de arte, que seria a
dimensão da experiência. Tal dimensão, própria ao psiquismo individual do artista e
do leitor, não poderia ser o foco sobre qual devesse recair análise da psicologia da
arte. Porque, segundo Vigotski, "não podemos saber do poeta nem do leitor, qual é a
essência dessa experiência que os liga à arte" (Vigotski apud Valsiner e Van der
Veer, 1996, p. 36).
A questão se coloca nesses termos não só porque tal experiência não tem
como ser transmitida ou deslocada daquele que a vivencia, mas também pelo fato
de sua singularidade e multiplicidade não permitir falar do que há de especifico na
própria obra literária, cedendo, assim, a interpretações psicologizantes da produção
de uma obra de arte. Nesse sentido, a proposta metodológica de Vigotski (2000a, p.
455) coincide com a de Bakhtin (1981, p. 223), que procurou a especificidade da
obra de Dostoiévski não em seus aspectos psicológicos mas em sua própria
constituição dialógica, especificamente em seu caráter polifônico.
Para Valsiner e Van der Veer (1996, p. 37), Vigotski se aproxima dos
110
formalistas russos, porém "uma faceta mais relevante de sua análise foi a ênfase na
dinâmica do modo como uma determinada experiência afetiva é gradualmente
gerada pela estrutura da mensagem". A ênfase vigotskiana estava em investigar o
modo pelo qual a construção semiótica da obra conduz o leitor a um embate
emocional, e à catarse, em função duma contradição dialética entre forma e
conteúdo. Por outro lado essa discussão a partir da leitura de Valsiner e Van der
Veer (1996, pp. 31-37) nos leva a configurar algumas tensões, pois eles trabalham
com o conceito de resistência que o sujeito individual oferece ao meio social não
absorvendo harmonicamente os processos semióticos produzidos historicamente.
Pode ser que estes autores, lendo a distinção vigotskiana entre a dimensão
da experiência individual e o significado social da obra de arte, encontrem
argumentos para justificar suas teses imunológicas. E para falar das múltiplas e
desviantes interpretações como um fator de resistência individual confrontando as
formas sociais da obra literária, marcadas no modo de construção de sua estrutura.
Nesse momento, Vigotski de fato dá margem a essa leitura. No entanto, pensamos
que a ponto mais interessante apontado por Valsiner e Van der Veer (1996, p. 39)
seja a necessidade de
pensar a ênfase de Vigotski não em termos da semântica, mas em
termos da pragmática: o escritor escreveu um texto que o leitor lê e
tenta compreender. O texto apresenta certa estrutura criada pelo
autor para que o leitor interprete. O modo como o leitor interpreta
essa estrutura pode assumir uma multiplicidade de formas, mas
continuam existindo alguns direcionamentos básicos estruturalmente
gerados que guiam as relações do leitor para algumas (e não para
outras) direções.
A questão é que Vigotski (1998b, 328) não pretendia centrar sua análise da
obra de arte na sua dimensão individual, pois isso faria com que nos perdêssemos
111
em seu caráter singular, circunscrito a um circuito de relações particulares, e sujeito
a múltiplas e imprevisíveis interpretações. Isso não daria conta de explicar por que
várias pessoas diferentes emocionam-se de um modo semelhante, frente a uma
determinada obra, a partir da proposta organizada pelo autor. Ora como podem
nossas emoções, que são tão desiguais, seguirem um caminho semelhante ao de
outras pessoas, a partir dos aspectos sociais e generalizantes da arte?
Grande parte da estética marxista teve que se confrontar com a questão,
levantada pelo próprio Marx (apud Eagleton, 1993, p.164), de que não basta dizer
que as obras clássicas foram produzidas em um contexto sócio-econômico
específico, cabe perguntar como é que elas podem preservar seu valor estético
através dos séculos, pois a arte “floresceu em condições de imaturidade social,
como na Grécia Antiga, quando a qualidade e a proporção ainda podiam ser
preservadas do domínio da mercadoria”.
Lukács (apud Frederico, 1997, pp. 81-83), por exemplo, teve que se haver
com essa questão, vinculando essa discussão à constituição das esferas genéricas
da atividade humana, e postulando uma dialética do homem em sua totalidade.
Contudo, nesse momento, torna-se claro que, para a abordagem vigotskiana,
no reverso da generalidade da obra de arte está a especificidade de um homem
concreto em sua fruição. E talvez não precisemos assumir a idéia de um aparato
imunológico do sujeito ao social para admitir essa dimensão. De fato, a dimensão da
experiência possui uma dialética com a dimensão dos significados sociais e da
pragmática em que estão envolvidos. Mesmo rejeitando o nível da experiência como
objeto de estudo neste momento, Vigotski (1997a, pp. 374-375) não pode negar o
seu lugar na vida humana:
112
Tratei de introduzir a aplicação deste método pessoalmente na
psicologia consciente, tentando deduzir as leis da psicologia da arte
mediante a análise de uma fábula, um romance e uma tragédia. Parti
para isso da idéia de que as formas mais desenvolvidas da arte são
a chave das formas atrasadas, como a anatomia do homem o é em
relação à dos macacos e não ao contrário. Faço afirmações,
ademais, sobre toda a arte e não provo todavia minhas conclusões
na música, na pintura etc. Ainda mais: não as comprovo sequer em
todas ou na maioria das variedades de literatura; tomo somente um
romance, uma tragédia. Com que direito? Não estudei as fábulas
nem as tragédias e menos ainda uma fábula dada e uma tragédia
dada. Estudei nelas o que constitui a base de toda a arte: a natureza
e o mecanismo da reação estética. Apoiei-me nos elementos gerais
da forma e do material inerentes a toda a arte. Escolhi para a análise
a fábula, o romance e a tragédia mais difíceis, precisamente aquelas
nas quais são especialmente patentes as leis gerais: selecionei os
monstros dentro das tragédias etc. Essa análise pressupõe fazer
abstração dos traços concretos da fábula como um gênero
determinado para concentrar o esforço na essência da reação
estética. Por isso não digo nada da fábula como tal. E o próprio
subtítulo “Análise da reação estética” indica que a finalidade da
investigação não consiste na exposição sistemática da doutrina
psicológica da arte em todo seu volume e amplitude (todas as
variedades da arte, todos os problemas etc.) nem sequer a
investigação indutiva de uma série determinada de fatos, mas sim
justamente a análise dos processos em sua essência.
Agora, ao discutir as relações entre pensamento e fala, Vigotski (1998a, p.
150) volta a dar indícios da importância dessa questão, mas já de um outro modo.
Fala da dificuldade de transitarmos do plano dos nossos pensamentos ao plano da
fala. Dificuldade cantada por inúmeros poetas e que no livro "A imaginação e a arte
na infância" (1987, pp. 49-52) é relacionada às "torturas da criação". Ali evocam-se
as vozes de Dostoievski (apud Vigotski, 1987, p. 49): “Não existe no mundo
tormento maior que a tortura da palavra, em vão, às vezes, lábios enlouquecidos
exalam gritos em vão, às vezes está a alma prestes a arder de amor, e nossa pobre
linguagem é misera e fria". Em "Pensamento e Linguagem" cita-se Tiúttchev (apud
Vigotski, 2000a, p. 478):
113
Como poderá o coração exprimir-se
Como poderá um outro compreendê-Io...
A idéia que se coloca aqui é a de que vai surgindo para o humano uma
ruptura entre sua experiência íntima e a possibilidade de traduzi-Ia em sentidos e
significados, mesmo quando sabemos que sentidos e significados alheios são
constitutivos de nossa própria experiência. A questão, no nosso modo de entender,
é que só mediante os sentidos e significados podemos passar a saber da existência
dessa ruptura, ou mesmo a criá-la. Ela não é uma necessidade ontológica, mas fruto
de um processo histórico. É complicada essa discussão, pois o campo semântico ao
seu redor acaba comportando vozes cartesianas, vozes modernas, de um ser
humano que se descobre solitário e que só nas garantias de seu próprio
pensamento pode sustentar sua existência. Mas não pensamos que essa seja a
única via de análise possível.
Talvez pudéssemos dizer de uma dialética eu-outro na gênese social da
nossa própria ciência de que somos nós mesmos. A princípio não há eu nem outro,
há simplesmente a experiência de um mundo em que tudo e nada é eu e outro. Mas
dessa mesma vinculação pode emergir a diferenciação, e daí a possibilidade de nos
vermos sós. Ao mesmo tempo, ao nos vermos sós, podemos tomar consciência de
que estivemos e continuaremos inevitavelmente acompanhados, como se nossa
vocação inalienável fosse vincular-nos aos outros, já que é este vínculo o que
inaugura nossa existência.
O conceito de experiência talvez nos permita vislumbrar os aspectos afetivos
não mais como um continente oculto nas profundezas de um desejo insondável. Mas
como uma dimensão material do psiquismo humano que o vincula às suas raízes
114
biológicas mas que, pela própria especificidade dessas raízes, solicita um
movimento que o destaca delas integrando dialeticamente experiência, sentidos e
significados. Para Wallon (1971, p. 62), no início a experiência, a emoção, é um
acontecimento, não expressa sentidos vividos interiormente, sensações e
movimentos formam um bloco emocional único e altamente inconstante. Expressão
e impressão são uma e a mesma coisa no fluxo emocional que flutua entre tensão e
relaxamento, satisfação e insatisfação. Não havendo ainda conflitos propriamente
ditos entre as emoções, mas alternâncias e atravessamentos. As torturas da criação
e a discrepância entre os níveis são engendradas pelo próprio movimento genético
que vai reconstituindo o humano em sua subjetividade.
Para Vigotski (apud Valsiner e Van der Veer, 1996, p.), não há porque falar de
"emoções" inconscientes no sentido de "impulsos inconsciente". As emoções são o
que vivemos, o que experimentamos, são aspecto indissociável do fluxo da atividade
humana e posteriormente dos rumos da atividade da consciência. O que o fluxo da
consciência pode não focar são os motivos, ou os múltiplos caminhos pelos quais
nossos afetos se constituem e se movem. Podemos, por exemplo, num dado
momento, não ter idéia do porque de estarmos angustiados, no entanto a própria
angústia nos é presente, e se não o fosse simplesmente deixaria de ser angústia.
No entanto, mais uma vez, a dinâmica entre o que é vivido, os aspectos
constituídos na vivência e os significados que isto toma, não pode ser tratada de
modo linear. Nossas experiências também são injetadas num movimento semiótico
e podem mesmo ser nomeadas. Ao mesmo tempo, experimentamos nossos próprios
signos, inclusive nossas palavras, em múltiplos de seus aspectos, tônicos, tonais,
atonais, em seu timbre, altura e intensidade. Também experimentamos o vivido
115
referente às realidades que elas substituem, evocam, generalizam ou criam, em sua
policromia, polifonia, poliestesia. Mas não podemos ter o domínio de todos estes
aspectos. A consciência segue muitos rumos mas, justamente por isto, não pode
capturar a multiplicidade de seus caminhos num mesmo instante. Além disso,
existem fluxos complexos e desviantes de um nível ao outro, o fluxo da consciência
ao passar seu foco de um aspecto para outro é, via de regra, descontínuo, caótico e
poético.
Vigotski (1987, pp. 49-52), metodologicamente, opta por não tratar da
experiência do poeta ou do leitor em sua análise da obra literária, mesmo que
mostre seu lugar psicológico na discrepância dialética entre pensamento e fala
evidenciada pelas "torturas da criação". No entanto, ainda assim, irá colocar o nível
afetivo-volitivo das motivações humanas como instância fundamental para
compreensão de qualquer enunciado. De certo modo, torna-se paradoxal essa
eleição: se a experiência é intransmissível, como podemos compreender a fala de
alguém ou seu pensamento, a partir de suas motivações? Como poderíamos tomá-
las como critério primeiro, se é nomeando-as que nos movemos com relação a elas?
Pensamos que seja preciso avançar nessas discussões, tanto mais quando
sabemos que nossas motivações são tão plurivalentes quanto nossas palavras.
A grande questão é que a subjetividade, uma vez vinculada à experiência e,
portanto, às condições materiais dessa experiência, desenvolve-se, desdobra-se,
mescla-se com o mundo de modos distintos em diferentes momentos de seu devir. A
tensão está em não cairmos nem num solipsismo absoluto, nem numa exterioridade
absoluta. O homem concreto é arena dos signos de sua cultura e de sua história,
sendo também o próprio movimento destes signos em luta, compondo sentido em
116
suas próprias carnes e em seu próprio sangue. Esta é nossa maior preocupação:
dizer que, numa perspectiva vigotskiana, não se trata do homem como o conjunto de
seus impulsos biológicos, libidinais, ou qualquer desses nomes dados para uma
generalidade humana muda, inatingível e sem face.
Ao mesmo tempo, também não se trata de pensar a materialidade do corpo
humano como epifenômeno onde os signos da cultura se instalam. Nem como uma
peça numa grande trama sócio-ideológica: um peão numa partida sem jogadores,
onde o único princípio movente são regras que, no fim das contas, ninguém
inventou. Pensamos que o conceito de experiência corpórea não seja um princípio
explicativo nem um objeto de estudo, mas um nível de análise necessário para
configurar o conceito de materialidade dos processos de significação. Trata-se
de um nível que dá uma concretude à constituição da subjetividade humana,
atribuindo-lhe uma dimensão sensível inalienável.
Entretanto, tal dimensão não é suficiente. A experiência do mundo é
característica própria aos fenômenos psíquicos, mas a vida humana, como vimos,
destaca-se qualitativamente por implicar modos distintos de constituição do
psiquismo. Desde bem cedo o filhote humano confronta-se com uma trama
sócio-cultural ideologicamente composta e mediada. E os adultos vão atribuindo
significados para a experiência de seus filhos, experiência que jamais saberemos
exatamente qual é, mas que nem por isso deixa de nos afetar. A vida psíquica de
um bebê é composta de acontecimentos enigmáticos, da perspectiva de quem se
incumbe de cuidar deles, mas num jogo social esses acontecimentos vão se fazendo
inteligíveis. Pois, a partir de seus indícios, fazemos nossas conjecturas com base
nas tradições culturais em que nos situamos. O que de um lado é experiência em si,
117
de outro é também um acontecimento que alguém experimenta, interpreta, aprecia e
valora. No entanto, como pode esta avaliação alheia passar a constituir o que nos é
próprio?
Na perspectiva walloniana a questão pode ser tratada em termos das
relações de predominância funcional entre atividade tônica ou postural – atividade
do músculo em repouso – e atividade clônica ou cinética – atividade do músculo em
movimento (apud Dantas, 1992, p. 37). Para um recém-nascido predomina a
atividade tônica. Sua impossibilidade de mover-se para garantir a própria
sobrevivência vincula-o necessariamente a um jogo social de interpretações com
relação às suas necessidades. Sua inabilidade faz com que a eficácia de sua
atividade seja antes sobre um outro ser humano do que sobre os objetos, e é por
intermédio do mundo social que o mundo físico lhe chega. A atividade tônica, que
está vinculada diretamente às emoções, garante esta eficácia. Nas suas diferentes
posturas, em seu modo de olhar, chorar, sorrir, a criança passa a estabelecer
relações com o meio humano.
Esse vínculo emocional se desenvolve em modulações e diferenciações que
vão desdobrar-se num jogo inicial de estabelecimento de sentidos. O que era
apenas em si e interpretado pelo outro, passará a ser também para o outro – -
mobilizado na direção de um outro.
A constituição de sentido pode ser vinculada, antes de mais nada, à
constituição do signo enquanto processo de significação. Um signo implica o
remetimento da experiência de uma realidade imediata a uma outra realidade. Ele
compõe nossa experiência imediata ao mesmo tempo em que dela nos desloca,
possibilitando-nos experiências inusitadas e indiretas. Dito de outra maneira, o signo
118
é um movimento de deslocamento de uma experiência em si, para uma experiência
para si que além disso remete a outra experiência, duplicando-a, antecipando-a num
projeto imaginário, prolongando-a na memória. Um signo coloca-se no lugar de algo
que não está presente como experiência direta, ele substitui, indica, prolonga,
antecipa, generaliza, mobiliza, materializa, constitui uma outra experiência. É
matéria que nos remete para além da experiência imediata na direção de uma outra
materialidade possível, enquanto cognição, sensação ou movimento.
Em Vigotski (1989, p. 74), a passagem do "em si" ao "para o outro" é
demonstrada de modo paradigmático pela gênese do gesto de apontar, que em
termos wallonianos poderíamos tratar como uma atividade simbólica sustentada por
uma abreviação tônica. Uma criança realiza uma atividade cinética, um movimento
de tentar pegar um objeto, um adulto interpreta que ela esteja "querendo" fazê-lo, e
passa a atuar no sentido de garantir que o objeto chegue às mãos dela. Com o
tempo, esta criança, de algum modo, passa a atribuir sentido para a interpretação
feita pelo outro, e o que era movimento de pegar pode abreviar-se numa atividade
tônica, tornando-se um gesto de apontar. O sentido deste gesto só pode configurar-
se numa relação com alguém e em meio a condições específicas que configuram o
horizonte da ação e da significação dirigida a um intérprete. O que era em si passa a
ser na direção de um outro, o gesto não pode atingir o objeto mas passa a
influenciar a atividade do outro. Tal processo não surgiria numa relação direta com
objetos, porque o gesto, enquanto signo, solicita necessariamente uma vinculação
social.
Esta explicação de Vigotski (1989, p. 75) sobre a origem do gesto é
paradigmática pois diz respeito à emergência do signo num campo interpsíquico. No
119
entanto, ela não está isenta de fissuras, das quais podem emergir alguns
argumentos que a contraponham. O privilégio dado ao gesto, como signo arbitrário,
secundariza realidades que podem constituir-se para a criança como índices ou
ícones de outras coisas, por contigüidade ou analogia, prescindindo de um vínculo
primeiro com outra pessoa. Além disso, o próprio gesto e a atividade tônica que
sustenta sua gênese também poderiam ser tratados mais em sua indicialidade do
que em termos de uma convenção social estabilizada num plano intersubjetivo. Tais
observações precisam ser tratadas com atenção, para que procuremos dar maior
consistência dialógica à discussão que estamos levantando, a partir das vozes
vigotskianas e wallonianas.
Quanto à contigüidade e analogia entre as múltiplas realidades que se movem
ao redor da criança, é preciso admitir que constituem um nível sensorialmente
tangível, e que como tal configuram um vínculo inalienável da criança com o mundo.
Negar essa dimensão seria pensar as relações com o outro se dando num vácuo,
num mundo de pura convenção, desprovido de cores, aromas, texturas, sabores,
tonalidades, temperaturas. No entanto, nos primeiros meses de vida, a
predominância da atividade tônica nos leva a crer que a maioria dos objetos que
chegam à criança passam pelas mãos de alguém que se move mediante uma
concepção de mundo culturalmente constituída. O que é socialmente convencionado
como propício ao trato com os bebês não está desprovido de indícios materiais. Mas
tais indícios não chegam até eles senão por um filtro, também material, de
referências histórico-culturais.
A emergência da significação não pode ser tratada apenas neste nível de
análise, pois um signo não é apenas algo que alguém "recebe", mas também e
120
primordialmente algo que se move em direção de outrem. Para um bebê, a principal
via de acesso a todas aquelas realidades materiais repletas de atributos é sua
atividade tônica que, numa troca com um outro social, pode modular-se de
diferentes maneiras tomando-se signo de suas necessidades. Deste modo, a
questão central não gira apenas em tomo de critérios estritamente semânticos, cabe
levantar também critérios pragmáticos. Ou seja, não está em jogo simplesmente a
natureza do vínculo do significante com o referente, trata-se de pensar o signo que o
bebê passa a constituir para que alguém o interprete.
O que importa não é apenas o fato de haver realidades materiais que
impactam sobre outras, ou o fato de haver materialidades sensorialmente tangíveis
para um bebê. É preciso pensar também o movimento humano pelo qual estas
materialidades vão deixando de ser experimentadas apenas enquanto tais para
passarem a remeter a outras experiências. A este movimento estamos nos
permitindo dar o nome de "constituição de sentido". Falar da atividade tônica ou do
gesto como gêneses possíveis da significação, é apenas um modo de dizer que a
constituição do sentido é tema amplo que não se esgota na palavra, ainda que seja
atravessado por ela o tempo todo, numa direção ou noutra.
Desta maneira, dizemos que a palavra não é o único símbolo humano e que,
para além disso, nossos símbolos estão apoiados em outros signos e em suas
múltiplas condições de relação e remetimento de uma experiência a outra. No
entanto, isso não quer dizer que basta sentirmos os indícios do mundo, ou
aproximarmos experiências análogas, para que a significação humana se dê. A
emergência do gesto enquanto signo voltado para alguém dá uma marca distinta a
este processo, e permite pensar a origem da palavra de um outro patamar que não o
121
da passividade de um organismo respondente ao meio circundante, ou subordinado
a seus impulsos instintivos.
A palavra, enquanto signo arbitrário, não será apenas mais um elemento na
estrutura de nosso quadro perceptual, ou uma vestimenta para estruturas inatas. Ela
terá um destaque diferente e uma função específica, possibilitando recortes
inusitados com relação àquele quadro repleto de multiplicidades, fazendo com que
se abstraiam traços perceptuais discretos e com que se movam realidades humanas
em diferentes direções.
Em Vigotski (1998a, p. 181), a palavra é o signo humano por excelência e
nela se vislumbram tanto a dimensão do significado quanto a do sentido. Como
dissemos, a abordagem vigotskiana coloca a palavra num lugar fundamental,
vinculando o desenvolvimento de suas funções à própria gênese da consciência. A
palavra constitui-se tanto como função designativa quanto como função
generalizadora. Ela indica, aponta e especifica mas também simultaneamente
abstrai, categoriza e generaliza. O desenvolvimento desta dupla função da palavra
amalgama-se ao desenvolvimento sistêmico das funções psíquicas conscientes
(Luria, 1979, p. 20), numa relação assimétrica entre linhas genéticas, que envolve
uma alternância de suas relações de predominância em diferentes momentos do
processo.
A consciência, por sua vez, só pode emergir na palavra como um movimento
em que se opera uma tensão dialética entre o específico e o geral, entre o mesmo e
o outro. Neste movimento, identidade e alteridade contrapõem-se dialogicamente –
uma palavra confronta outra palavra, um signo remete a outro signo. Esta gênese da
consciência no desenvolvimento do significado generalizante da palavra e de sua
122
função designativa, não se processa senão em relação com a esfera do sentido, que
abrange uma vasta gama de processos semióticos. A própria palavra só pode existir
na sua tensão entre estabilidade e instabilidade, entre significado e sentido
Dialogando com o psicólogo francês Frédéric Paulhan (1856-1931), Vigotski (2000a,
pp. 465-466) evidencia diferenças e relações entre o significado e o sentido das
palavras:
A palavra incorpora, absorve de todo o contexto com que está
entrelaçada os conteúdos intelectuais e afetivos e começa a
significar mais e menos do que contém o seu significado quando a
tomamos isoladamente e fora do contexto: mais, porque o círculo
dos seus significados se amplia, adquirindo adicionalmente toda uma
variedade de zonas preenchidas por um novo conteúdo; menos,
porque o significado abstrato da palavra se limita e se restringe
àquilo que ela significa apenas em um determinado contexto. O
sentido da palavra, diz Paulham, é um fenômeno complexo, móvel,
que muda constantemente até certo ponto em conformidade com as
consciências isoladas, para uma mesma consciência e segundo as
circunstâncias. Nestes termos, o sentido da palavra é inesgotável. A
palavra só adquire sentido na frase, e a própria frase só adquire
sentido no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, o
livro no contexto de toda a obra de um autor. O sentido real de cada
palavra é determinado, no fim das contas, por toda a riqueza dos
momentos existentes na consciência e relacionados àquilo que está
expresso por uma determinada palavra.
Esta definição é bastante interessante por sua vinculação com esferas amplas
do psiquismo, agregando "todos os fatos psicológicos" resultantes da palavra, o que
nos permite vislumbrar uma dimensão da experiência e um vasto horizonte
semiótico. Entretanto, seus desdobramentos são de difícil articulação, pois mesmo a
dicionarização de uma palavra comporta uma polissemia. Como sabemos, não é
verdade que os significados dicionarizados sejam necessariamente únicos ou fixos.
E comum encontrarmos, mesmo nos dicionários mais simples, as diferentes
acepções de uma mesma palavra. Ou seja, os significados também evoluem e se
123
transformam.
Se é assim, mesmo os significados dicionarizados para uma mesma palavra
só podem estabilizar-se num determinado contexto. Um enunciado específico, numa
situação particular, mediante condições de produção circunscritas e constitutivas, é
que determina o próprio significado dicionarizado que será posto em jogo. Então a
questão do sentido parece implicar um âmbito ainda mais amplo, pois mobiliza um
jogo de significação muito mais complexo, para além dos conceitos tradicionais de
polissemia ou de campo semântico. Um exemplo dado por Vigotski (1998a, p. 181) é
o final da fábula "A Cigarra e a Formiga", onde a formiga sentencia: "Vá dançar!"
Dizer "vá dançar" implicaria num “significado" preciso que se mantém, implica um
imperativo que manda alguém dançar. No entanto, o "sentido" no contexto da fábula
seria ambivalente e indireto, quer dizer tanto "'divirta-se" quanto "morra". Sentidos
que não estariam restritos aos significados aprisionados num dicionário.
Entretanto, esta distinção é bastante sutil. De certo modo, quando falamos
que "vá dançar" quer dizer "morra" ou "divirta-se", acabamos também estabilizando
para aquela palavra significados que, no limite, também poderiam vir a ser
dicionarizados. Em português, no contexto de alguns grupos, a gíria "fulano dançou"
possui um significado estabilizado. Deste modo os sentidos mais fluidos ou
desviantes também estão sujeitos a estabilizarem-se. Todas as gírias (que se
transformam no tempo e nas culturas) parecem ser um bom exemplo deste fluxo,
pois são bastante fluidas com relação à língua oficial, mas nem por isso deixamos
de encontrar dicionários de gírias.
Outra vez, a questão não é simplesmente semântica mas também
pragmática: é de se perguntar não apenas o que uma palavra "quer dizer", mas
124
também em que direção aquilo que se diz "faz mover" nossas experiências com
relação ao outro e vice-versa. Ainda assim, o sentido, em última análise, é definido
como algo que escapa às estabilizações, e que pode romper com as finalidades
pragmáticas mais evidentes, pois possui inúmeras fissuras, transita por muitos
caminhos sendo, em última análise, inesgotável, conforme aponta Paulham (apud
Vigotski, 2000a, p. 466):
O sentido da Terra é o sistema solar que completa a noção de Terra;
o sentido do sistema solar é a via Láctea, o sentido da Via Láctea...
Isto quer dizer que nunca saberemos o sentido completo seja lá do
que for e, conseqüentemente, o sentido pleno de nenhuma palavra.
A palavra é uma fonte inesgotável de novos problemas. O sentido de
uma palavra nunca é completo. Baseia-se, em suma, na
compreensão do mundo e no conjunto da estrutura interior do
indivíduo.
Sendo assim, o sentido é ao mesmo tempo uma âncora e um trampolim. Em
sua totalidade, como horizonte de múltiplos processos de significação, o sentido
torna-se signo de uma pessoa concreta, condensando sua visão de mundo, o
conjunto de suas marcas ideológicas, valores, utopias e desejos de poder. No
entanto, este mesmo horizonte, não contendo-se sob a pele de uma mesma pessoa,
permite contradições, rupturas e transições que flutuam com o próprio fluxo da
história da humanidade, plasmada nos múltiplos e instáveis sentidos para seus
signos em diferentes culturas. Deste modo, a definição vigotskiana de sentido,
aproxima-se da seguinte afirmação de Bakhtin (2000, p. 414):
Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma
multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos, esquecidos, porém,
num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua
evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma
renovada (num novo contexto).
125
Só nesse movimento é que a palavra pode passar a existir, fundando
simultaneamente possibilidades de mudança e de permanência. Toda palavra,
situada na dinâmica da constituição de sentidos, é flagrada em seu caráter
incompleto, metafórico, poético, prenhe de contradições. Pois nenhuma
estabilização lhe é definitiva.
Em Vigotski e Paulham vemos que o movimento da fala viva não pode ser
estancado, paralisado ou mortificado, pois seu sentido nunca é completo. Mas nas
palavras de Bakhtin (2000, p. 414) esta dinâmica torna-se ainda mais radical pois,
para este autor, mesmo os sentidos há muito silenciados poderão ser retomados.
Nenhum sentido tem que ficar esquecido para sempre, pois enquanto houver
humanidade não haverá força que o silencie de uma vez por todas. "Não há nada
morto de maneira absoluta. Todo o sentido festejará um dia seu renascimento”. A
força poética deste enunciado, que postula uma complexidade indomável do sentido,
transita pela explicação vigotskiana para a gênese da consciência humana no
significado da palavra.
Vigotski (2000a, pp. 466-467) procurava uma saída para o estudo da
consciência mediante a análise genética e funcional das relações entre pensamento
e fala, amalgamadas na palavra significativa. Em função disso, esteve
particularmente interessado nas relações discrepantes entre palavra e sentido, e viu
na análise destas relações a principal contribuição de Paulhan:
As palavras podem destoar do sentido nelas expresso. Há muito se
sabe que as palavras podem mudar de sentido. Há relativamente
pouco tempo foi observado que também se deve estudar como os
sentidos mudam as palavras, ou melhor, que se deve estudar como
os conceitos mudam de nome. Paulhan apresenta muitos exemplos
126
de como as palavras permanecem enquanto o sentido evapora. Ele
analisa frases estereotipadas do cotidiano, por exemplo: "'Como
você está?”, a mentira e outras manifestações de independência das
palavras em face do sentido. O sentido também pode ser separado
da palavra que o expressa, assim como pode ser facilmente fixado
em outra palavra. Da mesma forma que o sentido de uma palavra
está relacionado com toda a palavra e não com sons isolados, o
sentido de uma frase está relacionado com toda a frase e não com
palavras isoladas. Portanto, uma palavra pode às vezes ser
substituída por outra sem que haja nenhuma alteração de sentido. O
sentido se separa da palavra e assim se preserva. Mas, se as
palavras podem existir sem sentido, de igual maneira o sentido pode
existir sem palavras.
Paulhan teria demonstrado que a relação da palavra com seu sentido não se
caracteriza de um modo tão direto quanto sua relação com seu significado. As
palavras poderiam dissociar-se dos sentidos que são expressos nelas. Tanto as
palavras poderiam mudar de sentido, quanto os sentidos poderiam mudar de
palavra. Pensamos que se trate de uma proposição tão importante quanto polêmica,
em função do próprio caráter inesgotável do sentido, como poderíamos falar de um
mesmo sentido que permanece mais ou menos estável ao percorrer diferentes
palavras?
Talvez possamos compreender melhor esta afirmação se pensarmos que
diferentes visões de mundo podem estar em luta numa palavra como "democracia",
por exemplo, que não tem o mesmo sentido no discurso de um militar, um neoliberal,
um social-democrata ou de um socialista. Ou se entendermos que palavras
diferentes podem tornar-se máscaras de uma mesma visão de mundo fantasiada de
acordo com as conveniências, como no caso dos mesmos governos conservadores
que se sucedem sob legendas ou siglas distintas.
Mas nada é tão simples. Nossa visão de mundo pode até manter-se enquanto
nossas palavras se modificam de acordo com as circunstâncias. Se não houvesse
127
tal possibilidade seria impossível a mentira, a simulação, a ironia, ou mesmo a
ficção, o teatro, o conto, a piada, o "causo", enfim. Mas o que dizer daqueles a quem
nossas palavras se dirigem: suas visões de mundo haverão sempre de manter-se
imunes ao que pronunciamos? Ou será que o fato de uma ditadura colocar-se sob o
signo da "defesa da democracia", não afeta a constituição do seu sentido político na
dinâmica das relações sociais de um povo?
Palavras diferentes sugerem e encaminham sentidos diferentes, tanto quanto
sentidos inusitados solicitam palavras novas. É difícil conceber que, em sua
materialidade, uma dimensão possa abstrair-se totalmente da outra. Talvez isso se
dê justamente porque a dimensão da experiência proporcione um íntimo vínculo
entre aquelas instâncias, pois em cada palavra experimentamos marcas de sentidos
vividos. A palavra é também indício de algo que alguém viveu, tendo assim uma
dimensão sensível, sugerindo um modo de sentir e construir realidades. Há choques
entre a experiência que uma palavra nos proporciona e o que sentimos com relação
ao lugar do qual ela é pronunciada, como quando um tirano fala em liberdade. No
entanto as conseqüências deste choque são imprevisíveis, pois podemos refazer
tanto o sentido da liberdade quanto o da tirania.
Por um lado há o que diz Marcuse (1982, pp. 227-235) quando critica o
fechamento do universo da locução, mostrando a importância da multiplicidade
semântica e até mesmo léxica, para que as contradições se evidenciem. A ideologia
das sociedades industriais dissimula tensões e pronuncia palavras como "liberdade"
e "democracia” de um modo unidimensional. Se todos somos livres e iguais perante
Deus e a Justiça, não há por que lutar nem contra que se rebelar. A esta tendência à
homogeneização, caberia contrapor uma visão crítica, desdobrando os sentidos em
128
luta dentro das palavras mais consensuais, evidenciando contradições e abrindo o
universo da locução.
No entanto, por outro lado, esta mesma multiplicidade semântica, deriva
também do remetimento das palavras a determinados interlocutores ou interpretes,
marcando lugares de poder. Numa mesma palavra concorrem diferentes visões de
mundo, mas cabe lembrar que elas também encaminham diversos modos de
construir e de manter realidades humanas. Novamente não se trata de jogarmos
apenas com um critério semântico, há uma dialética entre a discrepância semântica
e a multiplicidade pragmática.
Se sentido e palavra discrepam, precisamos vislumbrar uma esfera
motivacional, um "sub-texto", que impulsiona aquilo que dizemos. Mas este caminho
entra em looping se entendemos texto e sub-texto como materialidades semióticas
constitutivas. Dizemos que na base das palavras de alguém estão suas motivações,
mas o que constitui nossas motivações senão nossas próprias palavras, enquanto
formas móveis e moventes da própria matéria?
Leontiev (1983, p. 54) considera que se deve conceber “a motivação como
um reflexo peculiar da realidade que surge, desenvolve-se e tem sua razão de ser
na atividade que o sujeito desempenha”.
Ou seja, talvez o problema resida no fato de termos nos habituado a pensar
nossos "motivos" como derivados de algum lugar obscuro, de instintos primeiros a
partir dos quais nos movemos e não como o próprio movimento em direção de
realizarmos algo. No primeiro caso continuamos presos a um paradigma
interpretativo, hermenêutico, como ocorre com muitas psicanálises, mas no segundo
caberia um paradigma interventivo, pragmático, ético e estético. Este confronto entre
129
paradigmas delimita fronteiras epistemológicas e configura um problema ético de
primeira ordem. No entanto, justo por isto, é preciso situarmos a ênfase vigotskiana
na discrepância entre sentido e palavra no contexto de sua análise sobre as
distinções entre fala interior e fala exterior. Pois aí situa-se um dos grandes esforços
vigotskianos (2000a, p. 467) em busca de uma saída para pensar a constituição
social do plano da consciência.
Na linguagem interior, ao contrário, o predomínio do sentido sobre o
significado – que observamos na linguagem falada em casos
isolados como uma tendência mais ou menos fracamente expressa –
é levado ao seu limite matemático e representado em forma
absoluta. Aqui o predomínio do sentido sobre o significado, da frase
sobre a palavra, de todo o contexto sobre a frase não é exceção mas
regra constante.
O sentido é amplo, múltiplo, contraditório, integral, incompleto e descontínuo.
É confronto entre infinitas possibilidades de remetimento de uma realidade a outra.
Mas o significado da palavra em suas estabilizações provisórias nos provê de
coordenadas que nos viabilizam um vínculo com os outros e conosco a partir das
solicitações de nossa cultura e de nosso tempo histórico. É nessa dinâmica que se
torna possível o surgimento da consciência humana, não como razão definitiva,
garantia primeira para nossas ações, mas como movimento dialógico numa dialética
entre reprodução e transformação. As relações entre sentido e palavra tomam-se um
parâmetro para pensar as diferenças e relações entre a fala exterior desdobrada e a
fala interior predicativa, no desviante devir material da consciência humana.
Vigotski (1998a, p. 163) mostra que diferentes modos de conceituar a fala
interior, como '"memória verbal", "fala sub-vocal", ou "experiência interior não
articulada”, foram ineficazes por não darem conta de sua especificidade genética e
130
funcional. Para compor uma explicação mais coerente sobre a fala interior seria
preciso evidenciar parâmetros específicos de sua formação, suas próprias leis, e
não dissimular suas relações complexas com outras formas de fala reduzindo-as a
um denominador comum. A fala interior não pode ser encarada como antecedente
inespecífico da fala exterior, nem sua reprodução na memória, e o declínio de sua
vocalização não é seu traço fundamental mas apenas uma conseqüência de sua
especificidade funcional e estrutural.
Vigotski (1998a, p. 164) diz que “a fala interior é a fala para si mesmo; a fala
exterior é para os outros", uma vez que a fala exterior traduz, materializa, o
pensamento em palavras, e a fala interior interioriza a fala em pensamento. Para
pensar esta dinâmica funcional, é preciso admitir que as estruturas da fala interior e
exterior são divergentes. Dois caminhos básicos apontam para essa divergência
caracterizando a especificidade da fala interior. Um deles é uma tendência à
predicação como sua forma sintática psicológica fundamental. E o outro é a
predominância do sentido sobre o significado, que leva a outras peculiaridades
semânticas relativas à combinação das palavras, como a aglutinação e o influxo de
sentido.
A questão da predicação remete à idéia de que há discrepâncias entre a
sintaxe gramatical e a sintaxe psicológica. Vigotski (1998a, p. 159) trabalha com a
idéia de sujeito e predicado psicológicos em suas relações com sujeito e predicado
gramaticais. Em termos gramaticais "sujeito" refere-se ao elemento que realiza ou
sofre uma ação, e o "predicado" é tudo o que se diz sobre o "sujeito". Mas em
termos psicológicos o “sujeito" indica uma função que marca aquilo que já é
conhecido por alguém, e compartilhado entre os interlocutores, sendo o "predicado”
131
uma novidade, um acontecimento novo que se acrescenta àquilo que já
conhecemos. Nem sempre a sintaxe gramatical coincide com a psicológica.
Segundo Vigotski (1997f, p. 220), tratam-se de sintaxes psicológicas distintas
ainda que coincidam totalmente em termos gramaticais. O sujeito e o predicado da
sintaxe psicológica invertem-se, ainda que a sintaxe gramatical permaneça a
mesma. A novidade é diferente em cada caso, logo o predicado da sintaxe
psicológica modifica-se. Ou seja, qualquer parte de uma frase pode tornar-se
predicado psicológico, a idéia adicional, a parte que carrega a "ênfase temática".
Vigotski (1997f, p. 236) elenca vários exemplos para explicar esta dinâmica,
mostrando que a duplicação da função sintática (gramatical e psicológica) ocorre
não apenas para sujeito e predicado, mas também para gênero, número, caso e
grau. Fundamentalmente evidencia-se a discrepância entre estes dois níveis, de
modo que a fala nunca traduz uma total harmonia entre seus aspectos gramaticais e
psicológicos. Nesse sentido, "um enunciado espontâneo, errado do ponto de vista
gramatical pode ter seu encanto e valor estético. A correção absoluta só é alcançada
para além da linguagem natural, na matemática" (Vigotski, 1998a, p. 159). Nossa
fala passa a concordar antes com uma dinâmica de constituição de sentidos do que
com normas gramaticais abstratas. Estas, por sua vez, deixam de ser vistas como
uma base universal de sustentação da fala, e passam a ser concebidas como áreas
de estabilização do sentido, pois só dentro dele podem adquirir alguma função.
Segundo Vigotski (1998a, p. 180), o principal traço distintivo da fala interior é
sua sintaxe especial, que envolve uma estrutura abreviada e/ou simplificada e uma
tendência progressiva à predicação – que é vista como sua forma sintática
fundamental. Por seu caráter predominantemente predicativo, a fala interior é
132
discrepante com relação à fala exterior desdobrada. Há um movimento de
transformação funcional e estrutural na transição do signo para o outro ao signo para
si. No entanto, esta discrepância na sintaxe psicológica da fala interior com relação à
sintaxe gramatical da fala exterior está intimamente vinculada à discrepância entre
sentido e significado. “A fala interior opera com a semântica e não com a fonética. A
estrutura semântica específica da fala interior contribui para a abreviação. A sintaxe
dos significados na fala interior não é menos original do que a sua sintaxe
gramatical" (Vigotski, 1998a, p. 181). Com a sintaxe reduzida, os aspectos
semânticos passam cada vez mais ao primeiro plano.
O reverso dialético também há de ser verdadeiro. A dinâmica dos aspectos
semânticos influencia a própria organização sintática, já que a sintaxe a que nos
referimos não se inscreve numa ordem de leis gramaticais estanques. A organização
dos sentidos e significados na fala interior apresenta tantas peculiaridades quanto a
sua organização sintática. Esta trama social complexa de transição da fala externa
para a fala interior, permite visualizarmos uma dinâmica de transformações
qualitativas pela qual um signo alheio é tornado o signo de uma pessoa,
transformando sua experiência e vinculando-a às experiências que transitam por
outros corpos.
A constituição da fala interior como mediação fundamental da vida psíquica,
entrelaçada a outros planos de fala, tanto quanto à imaginação, percepção, atenção
e memória, coloca a dimensão do sentido como o plano fundamental para este fluxo
da consciência, enquanto signo de outros signos. Este plano multidimensional,
configura um horizonte aberto enquanto visão de mundo no confronto entre
diferentes signos ideológicos e também como vínculo possível com a dimensão
133
sensível da experiência humana. Ao mesmo tempo, em sua descontinuidade e
multiplicidade, o sentido abre brechas, fissuras, para diferentes nexos com as
realidades histórico-culturais que o constituem, indicando a possibilidade de
constante reformulação de nossas visões de mundo e de nossas próprias emoções.
Pois cada palavra pronunciada ou interiorizada tende a realizar um caminho
tortuoso, desviando-se, causando novos problemas e solicitando novas réplicas.
No entanto, precisamos considerar o impacto dos sentidos já estabilizados na
cultura sobre o desenvolvimento da palavra de uma pessoa concreta que nela se
inscreve, ou por ela é capturada. Não podemos negar que a vida nas sociedades
contemporâneas estabiliza, territorializa, lugares por onde podemos transitar ou não,
e elege vozes oficiais silenciando outras, desprovendo-as de legitimidade. O
conjunto da história humana é múltiplo e polifônico, mas as perspectivas ideológicas
dominantes tendem mesmo a apagar as marcas de suas lutas, e a negar sua
contaminação por discursos alheios. Determinadas leis são postuladas como se
ninguém as tivesse pronunciado, isentas de quaisquer influências, pairando acima
de todas as classes sociais como verdades universais e eternas. Enquanto
formulações desviantes e marginas podem ser simplesmente silenciadas ou
desprovidas de validade, relegadas ao campo do irracional.
Vigotski (1997f, p. 162) realizou seus estudos sobre a gênese do significado
da palavra, no campo do desenvolvimento dos conceitos cotidianos confrontados
com os conceitos científicos. E talvez não precisemos tomar isto apenas como uma
contingência pedagógica. Ainda que seja notório o compromisso histórico de
Vigotski (1993, pp. 50 e 75) com a educação soviética, e que sua tendência seja um
tanto cientificista neste caso, é possível visualizar naqueles estudos uma dimensão
134
antropológica mais abrangente. Neles podemos encontrar uma tensão dialética e
dialógica entre as vozes mais abertas da fala cotidiana, e as solicitações
sistematizantes dos discursos filosóficos ou científicos, tanto quanto um movimento
que transita das formas mais instáveis e circunscritas da produção do sentido aos
conceitos mais definidos e generalizantes.
Vigotski (1998a, pp. 116, 135-136) diz que os conceitos cotidianos avançam
do concreto ao abstrato, mediante a influência dos conceitos científicos, e estes, por
sua vez, avançam do abstrato ao concreto, ganhando consistência com os conceitos
cotidianos. Cada conceito é tido como uma generalização, situando-se no campo da
função significativa da palavra, abstraindo, categorizando e generalizando traços,
aspectos, características, movimentos, ações, relações e processos. Ou seja,
haveriam parâmetros que nos possibilitam pensar diferentes modos de constituição
de um conceito – o processo pelo qual as palavras realizam sua função
generalizante. Tais parâmetros seriam basicamente a constituição de um "sistema
de coordenadas" e uma “estrutura de generalização tipificada" no desenvolvimento
dos conceitos. Pensamos que a partir desses parâmetros possamos situar algumas
contradições quanto ao campo de estabilização do sentido que Vigotski (1998a, pp.
138 e 140) chama de significado, ou conceito.
Segundo Vigotski (1998a, pp. 138 e 140) todo conceito envolve um sistema
de coordenadas, cujas demarcações são seu grau de generalidade e seu conteúdo
concreto. A primeira coordenada indica o quão geral pode ser uma palavra "animal",
por exemplo, tem um grau de generalidade maior do que "mamífero” ou “réptil”. A
segunda coordenada diz respeito ao extrato da realidade ao qual a palavra remete, e
que talvez pudéssemos relacionar com seu referente "animal", por exemplo, estaria
135
no mesmo grau de generalidade que "vegetal", no entanto estas palavras têm um
conteúdo concreto distinto. Isto também ocorre com as palavras "mamífero" e
"réptil": situam-se num mesmo grau de generalidade mas possuem conteúdos
concretos distintos. Por outro lado, "animal" e "mamífero" estão numa mesma região
de referência e seus conteúdos concretos não são excludentes, uma mesma
realidade material pode ser ao mesmo tempo animal e mamífero. Um mesmo
conteúdo concreto pode conter diferentes graus de generalidade, e diferentes
conteúdos concretos podem possuir um mesmo grau de generalidade. Transitamos
assim pelo campo da lógica formal, e das classificações aristotélicas.
Ao analisar o desenvolvimento da função intelectual, Wallon (apud Vigotski,
2000a, pp. 144-145) também opera nesta região de definições clássicas para o que
venha a ser um conceito, ou antes uma categoria, quando o pensamento da criança
volta-se para a explicação da realidade:
Quando uma criança pergunta pelo nome de algum objeto, ela
redescobre uma relação que já havia descoberto mas nada indica
que não veja em um o simples atributo do outro. Só uma
generalização sistemática de perguntas pode comprovar se não se
trata de uma relação fortuita e passiva mas de uma tendência que
antecede as funções de descobrir o signo simbólico para todos os
objetos reais.
Para Wallon (apud Galvão, 1999, p. 45), explicar envolve definir, e o processo
de definição é entendido em termos clássicos: definir é atribuir qualidades
específicas a um objeto, integrando-o numa classe maior e diferenciando-o de
classes vizinhas. A definição então envolve basicamente os processos de
diferenciação e integração. Trata-se do próprio procedimento lógico aristotélico, que
opera pela articulação entre gênero próximo e diferença específica, situando os
136
seres num sistema hierárquico de coordenadas.
Contudo, tanto Wallon quanto Vigotski solicitam parâmetros para além da
lógica aristotélica, pois ambos se questionam quanto à gênese histórica dos
conceitos. Os graus de generalidade e conteúdos concretos não estão estabilizados
de antemão, nem permanecem estáveis para sempre, pois sua articulação deriva da
atividade humana. Para Wallon (apud Dantas, 1992, p. 43), precisamos ir além da
definição para chegarmos a uma explicação. Se a explicação em termos aristotélicos
identifica-se com o estabelecimento das "condições de necessidade de um fato", em
termos wallonianos ela implica a constituição de uma vasta trama de relações que
determina existências num devir permanente. Vigotski (1998a, p. 138), por sua vez,
trata de acrescentar mais um parâmetro à compreensão da constituição de um
conceito: suas “estruturas de generalização tipificadas". Ou seja, modos típicos
pelos quais articulam-se, misturam-se, separam-se, confundem-se, organizam-se,
diferentes graus de generalidade transitando por múltiplos conteúdos concretos.
Uma criança vai configurando sua "rede de categorias", no jargão walloniano,
ou seu "sistema de coordenadas", em termos vigotskianos, mediante um processo
genético que envolve desvios, flutuações, estabilizações, alternâncias e
contradições. Este processo genético constitui-se em diferentes modos de se
articular palavras e outras realidades, transitando por suas coordenadas. Modos que
não se excluem nem se sucedem de maneira linear, mas cujas relações de
predominância modificam-se ao longo da ontogênese. Tais modos de articulação,
também denominados "estruturas de generalização tipificadas", são classificados
basicamente em três níveis: sincretismo; pensamento por complexos; e conceitos
(Vigotski, 1998a, p. 138).
137
No sincretismo, as relações entre a ordem das palavras e a ordem das outras
coisas é bastante fluida e indiscriminada, uma mesma palavra pode dizer tudo e
nada. As conexões subjetivas predominam sobre as objetivas, e os critérios de
vinculação do signo com outras realidades são circunstanciais, e dependentes do
campo perceptual. Já no pensamento por complexos, os traços dos próprios objetos
começam a ser abstraídos e generalizados nas palavras, mas os critérios destas
generalizações são ainda bastante móveis. Estabelecem-se relações frouxas e
desviantes, as palavras vão de um lugar para outro em movimentos mais analógicos
do que lógicos. Uma criança pode chamar uma poça d'água de mar, tomar um bairro
pelo nome de sua cidade, confundir almoço com jantar, ou ontem com amanhã. Ela
atravessa as coordenadas semióticas de seu mundo cultural por caminhos incertos.
Os conceitos por sua vez, implicam generalizações mais estáveis, com graus de
generalidade e conteúdos concretos bem definidos. São modos sistemáticos e
hierarquizados de organizar as relações entre as palavras e as outras realidades
que elas comportam ou produzem. São organizações próprias à ciência e à filosofia,
à lógica e à matemática.
Vigotski (1997f, pp. 103-105) elaborou, em parceria com Sakharov, estas
categorias a partir do estudo de conceitos artificiais. Algumas leituras tendem a
encontrar aí indícios da elaboração de uma teoria de fases de desenvolvimento. Mas
pensamos que o essencial não seja discutir se Vigotski postula, ou não, fases na
gênese das relações entre a palavra e as funções psíquicas conscientes. A questão
fundamental me parece ser antes o modo pelo qual se concebe esta gênese. Para
Vigotski (1998a, p. 138), a ordem genética apresentada por tais estruturas tipificadas
não se dá como sobreposição de processos superadores ou excludentes, mas como
138
movimento de ruptura e de mudança nas relações de predominância. Trata-se de
um movimento que vai do predomínio das formas sincréticas ao predomínio da
formas conceituais. Contudo, em diferentes momentos microgenéticos
17
, cada
apropriação de uma palavra nova, pode envolver simultaneamente sincretismos,
pensamentos por complexos, e organizações conceituais. Haveriam assim
diferentes modos de organização em luta, tanto quanto diferentes conteúdos
concretos e múltiplos graus de generalidade.
Mais do que isso, nenhuma estabilização categorial resiste às flutuações de
sentido, porque é só delas que as categorias podem emergir. Vários modos de dizer,
várias referências em choque, diversas posições e generalizações, permitem o
surgimento dos conceitos e não o contrário. A força poética de um pensamento por
complexos não é um indício de incapacidade ou deficiência, mas antes um
movimento produtivo que permite a criação de novos significados estáveis no âmbito
de uma dada cultura. É o que o ocorre com a maioria das palavras que compõem
nossos dicionários, senão com todas. São desvios que tomaram-se regra.
Na história da humanidade e de cada grupo social, os próprios significados
dicionarizados vão mudando, tanto quanto vão surgindo neologismos, enquanto
outras palavras vão caindo em desuso. As generalizações realizadas pelas palavras
mudam, tanto quanto as realidades às quais elas remetem e a função pragmática
que cumprem nas relações concretas entre os homens, que são sempre políticas e
ideológicas. No nível da ontogênese também ocorrem importantes mudanças com
relação ao significado das palavras, tanto quanto nos múltiplos processos
17
Segundo Góes (2000, p. 10), “a visão genética vem das proposições de Vygotsky (1981, 1987a)
sobre o funcionamento humano, e, dentre as diretrizes metodológicas que ele explorou, estava
incluída a análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social e as
transformações do curso de eventos. Essa forma de pensar a investigação foi denominada por seus
seguidores como ‘análise microgenética’”.
139
microgenéticos que a atravessam. Todos esses níveis se entrelaçam na vida de um
mesmo ser humano concreto e na gênese de sua consciência.
Como vimos, Vigotski (1998a, p. 141) procurou dizer que o modo pelo qual a
realidade é refletida e generalizada nas palavras não é constante no decorrer da
ontogênese, e que portanto a consciência se desenvolve, desdobrando-se de outras
materialidades. O significado de uma palavra não muda apenas por ela poder
referir-se a conteúdos concretos distintos, mas também pelo próprio modo pelo qual
se operam suas generalizações. Para uma criança pequena uma determinada
palavra pode chegar a cumprir uma mesma função referencial que para um adulto,
se as condições de produção de seu enunciado forem propícias. No entanto, isso
não significa que se trate de um mesmo modo de generalizar a realidade. As trocas
serão díspares mesmo que uma comunicação já seja possível.
O fato do significado predominar sobre o sentido na fala social desdobrada,
indica a necessidade de algumas estabilizações no processo de comunicação,
contudo isso não implica em que a multiplicidade não esteja presente. O sentido de
uma palavra não é o que está num lugar fixo mas o próprio movimento que vincula
suas áreas estáveis, isto é, seus significados socialmente constituídos e
convencionados, aos contextos particulares e circunscritos em que ela é posta em
ação. O sentido vincula significados tanto quanto os complexos sustentam
conceitos, sem eles os conceitos seriam uma casca vazia, uma forma inócua.
O significado envolve uma necessidade social de situarmo-nos diante das
tramas ideológicas que constituem as comunidades em que vivemos.
No entanto, é numa multiplicidade de sentidos que nos constituímos e que a
sociedade se constitui, pois as ideologias dominantes não conseguem calar todas as
140
vozes que a elas se contrapõem. Vigotski (2000a, p. 465) prefere não lidar com a
experiência pessoal para entender a montagem de uma obra literária, em função
dela ser sempre múltipla e inapreensível. Mas é na multiplicidade inesgotável dos
significados sociais que se ergue a morada do humano. De modo que é apenas a
partir de um agenciamento coletivo que o significado pode surgir como área estável,
fazendo com que possamos entender o sentido daquilo que a formiga diz quando
manda a cigarra dançar.
A experiência é dimensão material inalienável do processo de constituição do
sentido, em adjacência a própria materialidade do mundo. Signos são matéria e
energia, cujas nuances experimentamos mas que também proporcionam um
movimento que nos faz transitar de uma experiência para outra, vinculando e
fazendo mover realidades em direções inusitadas. As estabilizações são possíveis a
partir daí e, agenciadas coletivamente, transformam todo o processo material de
nossas vidas, possibilitando-nos um estranhamento com nossa própria experiência.
A palavra não é o único signo material mas é o signo humano por excelência,
vinculando as dimensões da experiência, do sentido e do significado num
movimento genético, poético, amalgamado à multiplicidade da vida social.
141
3 A MATERIALIDADE DO SIGNO
Temos dito que a tese da materialidade do signo permite tratar de um outro
patamar as relações entre as tramas sociais e a constituição da subjetividade. O
signo enquanto fragmento material da realidade coloca-se como uma dimensão
concreta das lutas sociais e da constituição do humano. Sendo a palavra o signo
humano por excelência, coube-nos compor algumas articulações entre suas
diferentes dimensões numa perspectiva genética. Ao fazê-lo, fomos nos deparando
com uma série de contradições, em função da própria tensão que atravessa toda
obra vigotskiana, em sua circunscrição histórica.
Entendo que esta tensão seja constitutiva e não um acidente que
devêssemos reparar, mas é preciso assumi-Ia e fazê-Ia ecoar com mais força no
diálogo com outras vozes. A partir de agora será preciso acirrar algumas
contradições dessa materialidade em sua multiplicidade e em seu caráter sócio-
ideológico.
Fissuras de uma unidade múltipla
A tese de que o signo é uma dobra da própria materialidade da vida humana,
inscrita na dialética do biológico com o cultural, e do indivíduo com a sociedade,
possibilita uma articulação concreta entre proposições metodológicas de base. Os
processos de significação, encarados em sua materialidade, tornam-se uma unidade
142
de análise que vincula intimamente a gênese da consciência às relações sociais. No
entanto, para assumirmos tal materialidade como princípio que nos levará das
análises formais para uma psicologia concreta do homem, é preciso explorar seus
desdobramentos numa discussão mais aguda sobre nossa unidade de análise.
Vigotski (2000a, p. 398) elege o "significado da palavra", "palavra com
significado", ou ainda "palavra", como a unidade de análise para sua abordagem em
psicologia. Para ele, a "palavra" é um amálgama entre pensamento e fala, concebida
como um ato concreto que se estabelece primordialmente numa relação entre
pessoas. Como já dissemos, tal palavra é tangível em sua materialidade social,
fonológica e neuropsicológica, vinculando-se intimamente à experiência humana e
comportando tanto a dimensão do sentido quanto a do significado.
Segundo entendemos, trata-se de um movimento aberto, vinculado à
experiência mas também deslocado dela, envolvendo múltiplos níveis de articulação
e desvio nas transições entre as diferentes planos. Por um lado, a palavra é
adjacente e amalgamada a outros processos sígnicos, no campo amplo da
constituição do sentido. Por outro, ela assume um lugar qualitativamente distinto, por
sua grande plasticidade e reversibilidade, tanto quanto pelo caráter multifuncional
que apresenta, transitando por movimentos referenciais e generalizantes. Em última
análise, numa palavra significativa operam-se os diálogos que constituem o próprio
movimento da consciência. Movimento que emerge num processo dinâmico que
transforma relações estruturais e funcionais estabelecidas na própria palavra em
toda sua concretude.
Temos dito que, em todas as nuances de seu movimento genético e
funcional, a palavra preserva e realiza sua materialidade, constituindo a consciência
143
humana como função de relações sociais. Ainda assim, para falar sobre os
movimentos dessa palavra, parece fundamental recorrermos a outras vozes que
também tem tratado os processos de significação em seu caráter essencialmente
social. As articulações que temos feito até aqui entre experiência, sentido e
significado, na gênese da consciência e na constituição da subjetividade, ainda
carecem de uma maior atenção aos seus desdobramentos sócio-ideológicos. O
critério genético, essencial para Vigotski (1989, p. 86), comporta um jogo de
multiplicidades, mas talvez seja preciso amplificá-lo mediante outras vozes. Nessa
direção, o critério dialógico de Bakhtin (1981, p. 155) parece-nos ser providencial na
composição de uma articulação sobre a subjetividade humana.
Se Vigotski (1998a, p. 190) fala da palavra como "microcosmo da consciência
humana”, Bakhtin (1992, p. 125) propõe o enunciado como unidade da comunicação
e realiza uma densa discussão sobre sua constituição em tramas dialógicas que
remetem a uma alteridade:
A primeira palavra e a última, o começo e o fim de uma enunciação
permitem-nos já colocar o problema do todo. O processo da fala,
compreendida no sentido amplo como processo de atividade de
linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem
começo nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha
emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As
dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação
da enunciação e por seu auditório. A situação e o auditório obrigam o
discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida,
que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida
corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta
verbal dos outros participantes na situação de enunciação (grifos no
original).
A enunciação não pode ser compreendida nela própria, no nível de suas
formas sintáticas, pois remete primordialmente às suas relações com uma trama de
144
vozes alheias, tema fundamental na obra bakhtiniana.
A constituição do enunciado em função de suas relações com o "discurso de
outrem" (Bakhtin, 1992, p. 144) foi retomada por Deleuze e Guattari (1995, p. 17),
autores pouco interpelados por pesquisadores que vêm trabalhando numa
abordagem vigotskiana. Por sua forte crítica às tendências estruturalistas e
hermenêuticas, estas vozes também podem trazer-nos contribuições produtivas para
uma leitura poética da materialidade dos processos de significação. Estes autores
trabalham com o conceito de "palavra de ordem", conferindo-lhe o estatuto de
função constitutiva de qualquer enunciado, e remetem sua explicação ao
agenciamento social do "discurso indireto livre" – tema marginal que tornou-se
primordial em Bakhtin, Pasolini e Bamberger (apud Deleuze e Guattari, 1995, pp. 12-
13).
O "discurso indireto", não seria uma das variantes na constituição dos
enunciados, mas o seu próprio princípio constitutivo em qualquer situação. "Todo
discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto"
(Deleuze e Guattari, 1995, p. 13). Discutindo a translação própria à linguagem
fundante do "discurso indireto" com relação a qualquer enunciado concreto, talvez
possamos ampliar o debate contemporâneo sobre a eleição de uma unidade de
análise concreta na investigação e composição da constituição semiótica da
subjetividade humana. No discurso indireto, cada pessoa concreta toma palavras
alheias como suas, sendo também tomada por elas. Neste movimento, tal pessoa
vai constituindo limites e possibilidades de sua experiência, a partir de um horizonte
de sentidos que abrange toda a multiplicidade de vozes históricas, todos os rumores
sociais, em suas regras e transgressões.
145
Trabalhando nessa trama de possibilidades, talvez possamos radicalizar a
composição que vimos fazendo, contrapondo-nos às suas possíveis leituras
cognitivistas ou psicologizantes. Para que a palavra significativa, enquanto unidade
de análise da gênese da consciência, possa vociferar seu caráter material e dialético
sem reduzir-se às suas idiossincrasias nem à sua estabilidade lógico-formal. Seria
preciso darmos uma outra dimensão ao próprio processo analítico, com vistas a um
paradigma menos cientificista, e ver a palavra não só como unidade de análise mas
também como um modo de composição ético-estética da realidade e da
subjetividade humana. Ou seja, a palavra não como uma tela onde o fenômeno
humano é projetado, mas como a própria matriz dinâmica que é constituída por ela.
Buscaríamos dialogar com vozes que constróem uma alternativa aos modelos
analíticos interpretativos, pensando a linguagem como um movimento dialógico
aberto e interventivo, cujo significado primeiro ou último nunca pode ser encontrado
mas cujo movimento propõe formas reais de relações políticas entre as pessoas.
Talvez assim possamos caminhar para uma unidade material de composição
múltipla que, justo por isso, precisa evidenciar seu conteúdo concreto na vida social,
como uma "palavra que realmente significa e é responsável por aquilo que diz"
(Bakhtin, 1992, p. 196). Para que não continuemos com nossas luvas, postulando
uma neutralidade de processos universais abstratos, sem cor ou sabor.
Em busca de uma unidade real
Segundo Bakhtin (2000, p. 279), o enunciado é a unidade da comunicação
146
verbal que permite tratar a linguagem como movimento de interlocução real,
ultrapassando a ficção científica postulada no velho paradigma emissor-mensagem-
receptor:
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam,
estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de
surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão
variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não
contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e
únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana.
Não existe tal receptor passivo, e toda enunciação envolve a constituição de
algo que se molda, desde o início, na direção de uma atitude "responsiva ativa” a ser
tomada pelo interlocutor. Um enunciado é um ato de linguagem cujos contornos
permitem e solicitam que um outro realize uma apreciação valorativa daquilo que
falamos ou escrevemos. Ele não se reduz a formas sintáticas ou morfológicas
isoladas, como orações ou parágrafos, nem tampouco ao "volume" do discurso, pois
pode ir de um polissêmico “ai” a um romance polifônico como "Os irmãos
Karamázovi". Um enunciado define-se, basicamente, por três características: a
relação com o autor e os outros parceiros da comunicação verbal; a alternância dos
sujeitos falantes; e seu acabamento específico.
Quanto à relação com o autor, tem-se em vista o fato de que uma palavra ou
uma oração, enquanto unidades da Língua, não são "de ninguém". Só funcionando
como um enunciado completo é que elas podem ter uma real autoria individual. Mas
isso só se dá numa relação que remete a algum parceiro ou adversário.
Para chegar a definir tal particularidade constitutiva do enunciado, Bakhtin
(2000, p. 280) passa pela discussão sobre a própria possibilidade de alternância
147
entre sujeitos falantes. Pois um enunciado, diferente de uma oração, não se
circunscreve ao discurso de um único sujeito falante nem limita-se às relações
sintáticas. O enunciado entra numa relação direta com a realidade e com os
enunciados alheios – abre-se para a semântica e para a pragmática. A pausa que
desenha as fronteiras do enunciado de um locutor não é decidida por ele próprio,
mas pela "resposta ou compreensão responsiva de outro locutor (...) A pausa entre
os enunciados é um fato real e não um fato gramatical" (Bakhtin, 2000, p. 296).
Sendo assim, as pessoas não trocam orações tampouco palavras, enquanto
unidades lexicais ou morfológicas, elas trocam enunciados que possibilitam e
solicitam uma tomada de atitude por parte de um outro. A alternância move-se pela
construção e/ou reivindicação de uma réplica cujas conseqüências são
posicionamentos concretos diante de realidades humanas no cotidiano e para além
dele. Esta característica de alternância, por sua vez, leva a pensar a questão da
constituição de um acabamento ou da "totalidade acabada do enunciado", que é
tomada como "a alternância dos sujeitos falantes vista do interior". As determinações
de um tal acabamento remetem a três fatores indissociáveis: "1) o tratamento
exaustivo do objeto de sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3) as formas
típicas de estruturação do gênero do acabamento" (Bakhtin, 2000, p. 299).
O esgotamento ou tratamento exaustivo de um tema varia desde esferas mais
práticas onde ocorre quase em plenitude, como quando pedimos fogo para acender
um cigarro ou quando um militar ordena fogo numa execução sumária, a
enunciações mais hipotéticas, como nas dissertações que jamais esgotarão seu
objeto. No caso das réplicas cotidianas, ou das ordens militares, este esgotamento é
mais viável e a dimensão criativa fica reduzida, ainda que nunca esteja totalmente
148
ausente, pois “a palavra se torna poderosa quando alguma ‘autoridade’ social impõe
um significado único e inquestionável, que determina uma ação automática” (Lane,
1994, p. 29). Já nos enunciados próprios da investigação científica a dimensão
criativa pode amplificar-se impossibilitando o esgotamento, ainda que haja ciências
que pretendam-se unívocas.
Em função desta dimensão criativa estar sempre presente, pelo menos em
algum nível em todos os enunciados, o acabamento sempre comportará uma
relatividade, delimitada pelos objetivos aos quais o autor se propõe, a partir de um
determinado intuito. No limite, qualquer tema é virtualmente inesgotável, mas na vida
real todo enunciado receberá um acabamento, mesmo que relativo e provisório.
O intuito do locutor é o lugar em que se circunscreve o objeto do sentido a ser
tratado exaustivamente, formando uma "unidade indissolúvel" entre os elementos
subjetivos e objetivos do enunciado. Contudo, para Bakhtin (2000, p. 301), este
"querer-dizer", do locutor, índice de sua dimensão subjetiva, só se realiza mediante a
escolha de um determinado gênero discursivo, em função "da especificidade de
uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do
objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros". Os gêneros do discurso
tornam-se então o principal critério na definição de um acabamento específico do
enunciado – que é a unidade real da comunicação verbal.
A definição dos gêneros discursivos materializa uma das mais contundentes
críticas bakhtinianas ao objetivismo abstrato saussureano. Ocorre que qualquer
enunciação só é possível dentro de um determinado gênero, mesmo que não
saibamos disso enquanto falamos. Mas estes gêneros se ancoram nas diferentes
esferas da atividade humana, em suas diversas possibilidades de estabelecimento
149
de relações sociais, permeadas por semioses características de determinadas
instituições ou tramas de poder. Saussure (apud Bakhtin, 1992, p. 85) considerava
como da ordem social e objetiva apenas as formas sintáticas da Língua, próximas às
próprias raízes lógicas universais que configuram a primazia da Langue sobre a
parole. As variações, acidentes e desvios da fala concreta seriam de uma ordem
individual, definindo o enunciado como um ato de "vontade e inteligência" e
desconsiderando totalmente o que Bakhtin (2000, p. 304) chama de "formas de
combinação dessas formas da língua", ou seja, ignorando “os gêneros do discurso".
Assim, os gêneros, enquanto formas de combinar as formas sintáticas da
língua, não são da ordem puramente idiossincrática, são normatizações da ordem
das relações sociais constituídas em atividades humanas concretas. É mediante a
escolha de gêneros socialmente produzidos que a autoria individual pode se realizar,
e tal escolha nunca é totalmente arbitrária ou aleatória, pois necessita constituir um
acabamento que permita e solicite uma atitude de um outro. Os modos de dizer
que configuram este acabamento são constituídos socialmente e ancorados em
práticas culturais reais. Deste modo, algo totalmente desprezado pelo objetivismo
abstrato torna-se central na definição de enunciado como unidade real da
comunicação verbal, confrontando os secos e artificiais esquemas lógico-estruturais
que pretendem dar conta da constituição das enunciações concretas.
Os gêneros implicam entonações, modulações, deferência, riso, gesticulação,
articulação com o ambiente verbal e não verbal, constituindo uma dimensão estética
inalienável aos enunciados. Dimensão esta que não se restringe a uma derivação
secundária dos atos de uma compreensão social abstrata, mas que pelo contrário,
constitui-se enquanto desdobramento material indispensável à própria composição
150
real dos sentidos. Tais gêneros do discurso são sociais e, segundo Bakhtin (2000, p.
281), é o domínio de um gênero que nos permite descobrir ou criar nossa
individualidade dentro deles. Quanto mais Dostoiévski dominava o gênero
romanesco, mais confortável se tornava seu trânsito por ele, imprimindo marcas
características aos seus próprios romances, permitindo-nos reconhecer neles a
singularidade de seu estilo.
O locutor recebe de sua cultura formas gramaticais prescritivas da língua
tanto quanto prescrições conformadas por gêneros discursivos, estas são mais
móveis do que aquelas mas não deixam de ser normativas. No entanto, a rigidez de
tais normatizações pode flutuar bastante, em função das esferas da vida humana às
quais os gêneros se vinculam. Nos gêneros cotidianos as variações são maiores do
que no gênero da ordem militar por exemplo, ou no campo da deferência religiosa.
Além disso, diferentes gêneros colocam-se em luta num mesmo sujeito, como
quando alguém domina um gênero científico e não consegue dar-se bem numa
conversa cotidiana, ou quando um militante de desenvoltura com as massas
sente-se constrangido diante de uma platéia acadêmica.
Diferentes gêneros podem mesmo discrepar, misturarem-se, contaminarem-
se, atravessando esferas alheias, criando inadequações, surpresas, mal-estar, riso
ou comoção. Usar um gênero solene numa conversa cotidiana pode provocar riso. E
configurar um gênero cômico numa situação religiosa, militar ou acadêmica pode
causar escândalo. Um texto acadêmico pode tomar caminhos literários, e um
simples anúncio publicitário pode revestir-se de um gênero científico positivista. Um
tom paternal no campo da vida política pode ser indício de fascismo e um tom
politizante num discurso religioso pode mover a luta de um povo oprimido e repleto
151
de fé.
No campo da paródia, da ironia e da composição artística, no teatro, no
cinema ou na poética em geral, enquanto movimento de ambivalências, os gêneros
podem chocar-se, desviar-se, contaminarem-se, refazerem-se, recriando sentidos,
fazendo soar diferentes vozes, rompendo relações de poder e criando outras. A
grande questão é que tratam-se de forças sociais em jogo, em luta, na determinação
do sentido de uma enunciação real, para além do objetivismo abstrato, ou do
subjetivismo idealista (Bakhtin, 1992, p. 72). Pois o gênero, pautando-se em normas
culturais, é social, mas sendo social não inviabiliza variações individuais dentro de
esferas concretas de enunciação.
Na concepção bakhtiniana, social e individual não são instâncias opostas que
de algum modo passariam a interagir por algum vínculo estrutural, pelo contrário,
são planos indissociáveis de um movimento dialético e dialógico interconstitutivo.
O trânsito social pelo campo real da constituição do sentido, não se
resume assim à inteligibilidade de estruturas lógicas por parte de um sujeito
auto-referenciado. Não podemos captar a forma lógica de um discurso, sem nos
pronunciarmos quanto a ele mediante um determinado sistema de valores culturais e
qualquer compreensão só se completa com esta dimensão valorativa. Na verdade,
aquela se antecipa a partir desta. Não ocorre que passemos a avaliar um enunciado
só depois de concluirmos o entendimento lógico da sua estrutura. Pelo contrário, nós
o avaliamos desde o começo e vamos completando a fala do outro de acordo com
nossas expectativas, e dentro de nossas perspectivas ideológicas.
Por certo, nossas antecipações podem entrar em crise e refazerem-se no
meio do caminho, mas não deixa de ser em função desta apreciação que
152
configuramos nossa compreensão da própria sintaxe, que sequer precisa estar de
acordo com a norma padrão.
Contudo, além disso é preciso dizer que o sentido, enquanto visão de mundo,
não é um catálogo geral de remetimento semântico mas também, e
fundamentalmente, um modo de solicitar uma réplica de um outro. A própria
constituição de uma visão de mundo se estabelece também enquanto produção e
composição de contrapalavras. De modo que quando procuramos compreender o
que alguém nos diz estamos também solicitando a esta pessoa que se posicione ou
que se mova em determinadas direções. Nossas contrapalavras dirigem-se à
apreciação de um outro tanto quanto as suas palavras se dirigem à nossa
apreciação. Nossa compreensão e uma montagem de replicas frente a uma fala
alheia, tanto quanto uma solicitação de que outra pessoa as refaça, apreciando-as e
replicando-as, ou checando-as, de algum modo.
O sistema de valores de um outro está então implicado em minha própria
valoração daquilo que ele me diz, e não sou impermeável às suas apreciações, no
mesmo instante em que realizo as minhas.
Sendo assim, a posição bakhtiniana contrapõem-se ao egocentrismo e
etnocentrismo próprios às definições cartesianas de sujeito e subjetividade,
rompendo com uma primazia estrutural das formas lógicas. Compreensão e juízos
de valor constituem-se antes em tramas dialógicas que furtam-se à interioridade do
cogito, pois não começam nem terminam dentro de nós. Não se trata de afirmar
assim uma suposta harmonia ou transparência intersubjetiva nas alternâncias entre
os falantes, mas de evidenciar o fato de que, numa direção ou noutra, a locução
carrega marcas do lugar ao qual se dirige, justamente na tentativa de atingi-lo.
153
Nesse movimento nossas visões de mundo se sustentam ou se refazem, entram em
crise e se constituem. A apreciação, assim, não se aliena da experiência, enquanto
emoção e provação, mas também não se reduz à fruição epidérmica, pois é uma
ação semiótica social, elo de uma corrente histórica que constitui sentidos e
significados.
O enunciado como palavra de ordem
Para Deleuze e Guattari (1995, p. 12), "a unidade elementar da linguagem – o
enunciado – é a palavra de ordem". Eles criam, assim, um outro modo de falar sobre
esta unidade concreta e social que é o enunciado. Contudo, se Bakhtin (1992, p.
125) discute a constituição do enunciado enquanto unidade da comunicação verbal,
Deleuze e Guattari (1995, p. 13) procuram mostrar que a função primeira da
linguagem não é comunicar, no sentido de informar, mas transmitir palavras de
ordem, ordenar, mover realidades em determinadas direções. Esta oposição ao
conceito de comunicação filia-se a uma séria crítica à noção de que a linguagem
possa constituir formas neutras ou transparentes na compreensão de uma realidade
exterior ao humano, no estabelecimento de verdades puramente lógicas. A
linguagem informa e censura, comunica e dissimula, revela e oculta, mas tais
possibilidades não só dizem respeito à compreensão das realidades como também,
e essencialmente, à sua construção, manutenção ou transformação.
Tais autores contrapõem-se não só a tese de que “a linguagem seria
informativa e comunicativa" como também a outras grandes teses lingüísticas
154
tradicionais como a de que "haveria uma máquina abstrata da língua, que não
recorreria a qualquer ‘fator extrínseco’"; a de que "haveria constantes ou universais
da língua que permitiriam defini-Ia como sistema homogêneo"; e a de que "só se
poderia estudar cientificamente a língua sob as condições de uma língua maior ou
padrão" (Deleuze e Guattari, 1995, pp. 11, 26, 34 e 45).
Deste modo, opõem-se à predominância sintática postulada pela lingüística
estruturalista, desmascaram interpretações semânticas ingênuas e tratam o
enunciado como trama pragmática de relações de poder, configurada na chamada
"palavra de ordem". A palavra de ordem não é considerada a origem da linguagem,
mas antes uma "função-Iinguagem" que prevalece sobre outras, sustentando sua
constituição.
Além disso, tal "palavra de ordem" está intimamente vinculada aos
movimentos do “discurso indireto", citação que se constitui de um modo indireto,
palavra de um outro que faz sua morada em nossa própria voz, sendo ao mesmo
tempo a matéria da qual ela se constrói. Porque, conforme (Deleuze e Guattari,
1995, p. 13):
A primeira 'linguagem’, ou, antes, a primeira determinação que
preenche a linguagem, não é o tropo ou a metáfora, é o discurso
indireto. A importância que se quis dar à metáfora, à metonímia
revela-se desastrosa para o estudo da linguagem. Metáforas e
metonímias são apenas efeitos que só pertencem à linguagem
quando já supõem o discurso indireto.
Para estes autores franceses, a linguagem não surge do que vemos mas do
que ouvimos dizer. É como se sempre realizássemos uma citação da palavra de um
outro, mesmo quando nos referimos àquilo que dizemos estar vendo. Mesmo
quando nos referimos a um objeto relativamente simples dizendo "isto é uma fruta”,
155
seria como se estivéssemos afirmando "dizem que isto é uma fruta", "aqui chamam
de laranja", "ouvi dizer que é fonte de vitamina C", e assim por diante.
Quando um menino inquieto solicita nomes para referenciar-se no mundo, ele
vive a perguntar "que é isso pai?". E a gente diz que o pai ensina o nome das coisas.
Dentro de uma determinada cultura, ele comunica a seu filho nomes e normas que o
permitem ler a realidade de um determinado modo, cindindo o continuum de suas
múltiplas sensações, e traçando contornos propriamente humanos para sua
percepção. Guattari e Deleuze (1995, p. 11) diriam que este pai, tanto quanto um
professor, “ensigna, isto é, estabelece palavras de ordem, realiza um ato de
coerção comum à sociedade da qual se faz um porta-voz. Ele diz "isto é uma
laranja", "isto é uma fruta", “isto tem vitamina C", ou talvez "isto é uma mercadoria",
"uma dádiva de Deus", "'uma obra prima da natureza", “um objeto de conhecimento",
ou ainda milhares de outras coisas. Este pai, tanto quanto qualquer "outro-sociaI",
indica coordenadas, ou empresta à criança um mapa que estratifica a vida, o mundo,
de determinada maneira.
Então aquele menino vai passando a dizer o que "'é" tal objeto, mas ninguém
até hoje soube o que ele é realmente. Simplesmente porque o "ser em si" é algo
intangível, ou assim se tornou pelo menos a partir de lmmanuel Kant. Podemos
apenas saber o que "dizem que é" e o que "passamos a dizer que é", pois nosso
próprio saber só se constitui como um dizer coletivo relativo àquilo que as coisas
são, ou a como elas vêm a ser. Entretanto, isso não se dá a partir de uma única
posição, pois existem múltiplos e incongruentes rumores sobre o "mesmo" fato,
configurando diversos modos de construí-lo. Desta maneira, é pela palavra, em suas
múltiplas contradições, que os povos preenchem o mundo de objetos culturais. Se
156
pensarmos em termos bakhtinianos, diremos que diferentes modos de construir a
realidade estão em luta num mesmo signo, numa mesma palavra de ordem: ser e
não ser em cada palavra, em cada construção de um fato humano. No entanto, as
palavras de ordem, tomadas em sua materialidade, não estão apartadas das
realidades, pois elas mesmas também são fatos reais: são atos.
Platão (apud Mondolfo, 1968, p. 139) quisera que houvesse um lugar onde
pudéssemos ter visto por primeiro a realidade das coisas, e que pela filosofia
chegaríamos a rever aquilo que já vimos. Poderíamos relembrar o que sempre
soubemos, pela luz que dissipa as sombras de nossa ignorância e nos apresenta o
mundo real, ou seja, o mundo das idéias. Mas a "palavra de ordem" não se presta a
nos conduzir para fatos exteriores ou a comunicar algo que alguém supostamente
tenha visto por primeiro, ela não pode nos fazer recordar coisas já vistas ou já
vividas de um modo puro ou direto. Ao contrário, mesmo quando nos lembramos de
algo, a palavra mnemônica vai recriando o que já ouvimos dizer e estabelecendo
outros fatos a serem vistos ou vividos, mas isso porque ela é, antes de mais nada,
um fato e um ato por ela própria.
Dizer é um fato, que se realiza no próprio ato de estarmos dizendo algo. Dizer
é assim um ato redundante, a “palavra de ordem” é redundante e ocorre
instantaneamente. Eu digo algo no exato momento em que estou dizendo. Falar,
dizer, pronunciar, são ações reais inerentes a qualquer enunciado.
Deste modo, a relação entre fala e ação não é extrínseca (ou pelo menos não
pode ser apenas extrínseca), mas intrínseca porque diz de uma intimidade primeira
e não de uma justaposição forçada a posteriori. Baseados nas teses de Austin,
Deleuze e Guattari (1995, p. 14) procuram mostrar que a fala não apenas descreve
157
ou provoca uma ação, mas também é uma ação. A descrição de uma ação pode ser
exemplificada com um verbo no modo indicativo: "o homem trabalha", "nós
trabalhamos", "tu brincas", e assim por diante. Tradicionalmente também
costumamos dizer que uma ação pode ser provocada com um verbo no modo
imperativo: "trabalhe", "brinquemos".
No entanto, existem pelo menos outras duas funções da linguagem que não
remetem a ações exteriores à fala, mas que se realizam somente e exatamente se e
enquanto falamos: o performativo e o ilocutório. O performativo implica em algo que
fazemos “enquanto o falamos", por exemplo: eu juro dizendo "eu juro". Nada se
interpõe entre o ato de eu dizer que juro e o fato de eu estar jurando, pouco importa
se eu estiver jurando em vão ou com sinceridade, o fato é que estarei jurando no
mesmo instante em que disser "eu juro".
O ilocutório, por sua vez, implica em atos que realizamos "enquanto falamos",
por exemplo: quando dizemos "será que vai acontecer tal coisa?" realizamos
imediatamente um ato de perguntar, ato que não se realiza fora da própria pergunta.
É mediante estes atos que se realizam na própria fala que Deleuze e Guattari (1995,
p. 16, grifo no original) definem o que entendem por palavra de ordem:
Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de
enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de
qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos
implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e
que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não
remetem, então, somente a comandos, mas a todos os atos que
estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social". Não existe
enunciado que não apresente este vínculo, direta ou indiretamente.
Uma pergunta, uma resposta, uma promessa, uma saudação, são palavra de
ordem, e não apenas uma ordem militar, um anúncio publicitário, um sermão, ou um
158
coro de militantes em passeata. Entendo que, em última análise, qualquer dito acaba
sendo necessariamente uma palavra de ordem, pelo simples fato de que tudo o que
se diz se está dizendo. Qualquer coisa que digamos no mínimo realiza o ato de
dizermos. Toda a fala acaba sendo uma espécie de redundância dissimulada. Se ao
dizer algo como "isto é um livro", eu explicitasse a ação que realizo nesse instante,
seria preciso dizer "estou dizendo que isto é um livro".
Não é raro que nos utilizemos desse recurso em nosso cotidiano. Quando
desejamos ser mais enfáticos quanto à veracidade de nossas falas, evidenciamos a
redundância do ato de falarmos: "ora, estou te dizendo que é um Dostoiévski". "Estar
dizendo" é estar configurando um horizonte de valores e verdades no contexto de
uma alternância entre falantes que se dirige à produção de determinados efeitos, por
meio de uma redundância constitutiva. Quando há aspas, algumas fronteiras são
mais claras e podemos visualizar as redundâncias com mais clareza, mas elas são
um recurso posterior. No princípio não temos aspas. Alguém mostra aquele homem
risonho para um bebê dizendo "olha o papai", e o bebê em breve citará esta fala sem
distinguir nem confundir o que ela significava para o outro ou para si. No entanto, de
início, não recorrerá a uma autoridade alheia "mamãe disse que é o papai". As
aspas virão depois: “minha mãe falou", "a professora falou”, "foi meu pai que me
disse".
Elas voltarão a ser marcadas, sempre que for necessário recorrer às fontes,
nas mais distintas esferas da atividade humana, na vida acadêmica, num tribunal, ou
numa igreja: "Jeremias profetiza...", "a Constituição garante...", “Vigotski postula...”.
Nunca saberemos o nome do primeiro a pronunciar qualquer uma de nossas
verdades, mas indicar a "existência" de alguma coisa sempre será falar sobre ela,
159
citando o que alguém já havia dito. Por certo, isto não quer dizer que tudo seja
sempre igual, pois sempre nos confrontamos com muitos rumores distintos e
conflitantes, e nossas palavras, por sua vez, não apenas refletem palavras alheias
como também as refratam. A grande questão é que tudo isso só se realiza no
próprio ato de constituirmos nossos enunciados na direção de alguém.
Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso indireto abrange toda a
enunciação, caracterizando-a como "palavra de ordem", ou seja, como uma relação
implícita do dito com o que se faz exatamente enquanto se diz. Relação implícita
porque não se pauta no remetimento a um real neutro, pré ou pós discursivo, mas
numa vinculação indissociável com relação ao ato social de se dizer algo, fazendo
com que a vida seja ordenada de determinada maneira. Implícita no sentido de que
o próprio ato de enunciar nos solicita participar de uma relação que nos vincula a
alguém de um modo específico, nos territórios de uma dada cultura.
Enquanto dizemos algo, sempre realizamos uma ação como tentar convencer
alguém, conquistar, irritar, seduzir, convidar, estabelecer um vínculo, mapeá-Io,
delimitá-lo, ou burlá-lo. Enquanto dizemos, estabelecemos ou rompemos limites,
territorializamos ou desterritorializamos um modo de nos relacionarmos com os
outros, com o mundo, conosco. Estes modos de nos relacionarmos operam de
dentro da própria linguagem, nas práticas sociais que somente nela se realizam.
Nesta trama de constituição do enunciado enquanto palavra de ordem, pode-
se dar mais consistência à tese vigotskiana de que é mediante nossas relações com
outros que nos tornamos nós mesmos. Segundo Guattari e Deleuze (1995, p. 16), a
análise do discurso indireto confirma as oposições de Ducrot a Benveniste, já que no
discurso indireto "as subjetivações não são primeiras, mas derivam de um
160
agenciamento complexo". O posicionamento do "sujeito" deixa de ser um ponto de
partida quando reconhecemos que sempre que dissermos "eu penso”, estaremos
apagando marcas sociais primeiras: "digo que eu penso", porque "alguém diz que
pensa”, ou ainda porque "dizem que eu penso".
A própria possibilidade de alguém se auto-definir deriva de solicitações
coletivas postas no próprio movimento de constituição dos enunciados a partir da
incorporação de palavra s alheias. A noção moderna de um "EU" maiúsculo e
singular já não pode permanecer como um fundamento absoluto para a vida
humana. O sujeito não é o fundamento primeiro das relações sociais. Pelo contrário,
os diferentes lugares dos quais um homem concreto pode se posicionar enquanto
sujeito emergem justamente em função de diferentes relações sociais, que se
configuram como agenciamentos coletivos. Tais agenciamentos, por sua vez, só são
viáveis pelo fato dos enunciados constituírem uma relação implícita com os atos que
realizam e aos quais se vinculam por uma "obrigação social".
É nesse sentido que Deleuze e Guattari (1995, p. 15) afirmam que:
É verdade que ainda não se consegue compreender bem como é
possível fazer, dos atos de fala ou pressupostos implícitos, uma
função coextensiva à linguagem. Compreende-se menos ainda tal
operação se partimos do performativo (o que é feito quando "o"
falamos) para ir, por extensão, até o ilocutório (o que é feito quando
falamos). Pois pode-se sempre evitar essa extensão e encerrar o
performativo nele mesmo, explicando-o por caracteres semânticos e
sintáticos particulares que evitam qualquer recurso a uma pragmática
generalizada. Assim, segundo Benveniste, o performativo não
remete a atos, mas, ao contrário, à propriedade de termos sui-
referenciais (os verdadeiros pronomes pessoais EU, TU..., definidos
como embreantes): de tal modo que uma estrutura de subjetividade,
de intersubjetividade prévia na linguagem, dê conta suficientemente
dos atos de fala, ao invés de pressupô-los.
Ao tentar explicar fenômenos de "sui-referência” por meio de princípios
161
intersubjetivos, Benveniste (apud Deleuze e Guattari, 1995, p. 15) acabaria
escorregando para um fundamento subjetivo da enunciação. Já Deleuze e Guattari
(1995, p. 17), simplesmente dizem que "não existe enunciação individual nem
mesmo sujeito da enunciação", de modo que a enunciação teria um caráter
essencialmente social.
Entretanto, poucos lingüistas analisaram esse caráter. Dentre eles, Deleuze e
Guattari (1995, p. 17) citam especialmente Bakhtin e William Labov, que investiram
no caráter social da enunciação, trabalhando de maneiras distintas, mas coincidindo
em sua oposição ao subjetivismo e também ao estruturalismo. Como dissemos há
pouco, Bakhtin (1992, p. 125) fala do enunciado como unidade real que se desdobra
na relação com a palavra alheia e ganha acabamento na escolha de um
determinado gênero discursivo. O gênero é uma forma social de combinar as formas
sintáticas que, por sua vez, nunca é totalmente arbitrária, já que visa uma réplica de
outrem. As repetições e os desvios do enunciado acontecem sempre diante de um
auditório social, real ou virtual.
William Labov (apud Deleuze e Guattari, 1995, p. 15) por sua vez, faz uma
ácida denúncia ao “paradoxo" presente em toda a lingüística estrutural de Saussure
a Chomsky, já que nela “o aspecto social da linguagem se deixa estudar na
intimidade de um gabinete, ao passo que seu aspecto individual exige uma pesquisa
no interior da comunidade". Essa cisão entre os aspectos individuais da fala e as
normas sociais da língua, é rebatida por Deleuze e Guattari (1995, pp. 17-18). Nesse
sentido é que procuram falar de uma relação íntima, intrínseca, entre o enunciado,
enquanto "palavra de ordem", e os agenciamentos coletivos que operam de dentro
dela, como seu fundamento social inalienável:
162
O caráter social da enunciação só e intrinsecamente fundado se
chegamos a mostrar como a enunciação remete, por si mesma, aos
agenciamentos coletivos. Assim, compreende-se que só há
individuação do enunciado, e subjetivação da enunciação, quando o
agenciamento coletivo impessoal o exige e o determina (...) É
precisamente este o valor do discurso indireto e sobretudo do
discurso indireto “livre”: não há, antes de tudo, inserção de
enunciados diferentemente individuados, nem encaixe de sujeitos de
enunciação diversos, mas um agenciamento coletivo que irá
determinar como sua conseqüência os processos relativos de
subjetivação, as atribuições de individualidade moventes no discurso.
Não é a distinção dos sujeitos que explica o discurso indireto; e o
agenciamento, tal como surge livremente nesses discursos que
explica todas as vozes presentes em uma voz..." (grifos no original).
Trata-se de colocar as relações sociais, os jogos políticos coletivos, as lutas
ideológicas entre classes antagônicas, não como pano de fundo para a linguagem e
a constituição dos processos subjetivos, mas como seu fundamento primeiro. Desta
maneira, entende-se que a relação entre o enunciado e os processos humanos
coletivos é tão intrínseca quanto a relação entre fala e ação. No discurso indireto
estas relações intrínsecas se mostram com maior evidência, a palavra própria é
sempre desdobramento de palavras alheias, e todas as palavras realizam, por elas
mesmas, ações sociais, propriamente humanas.
As transformações sociais que se operam com as "palavras de ordem" são
fartamente exploradas por Deleuze e Guattari (1995, p. 22). Eles falam de mudanças
instantâneas que ocorrem, por exemplo, quando um juiz sentencia a pena do réu,
que por uma única palavra deixa de ser apenas réu e passa imediatamente a ser o
culpado. A palavra não só comunica realidades já ocorridas, ela as faz acontecer.
Tais relações semióticas funcionam também no campo da economia e da política.
Deleuze e Guattari (1995, p. 20) mostram, ao analisar a questão do "rentenmark"
alemão, uma nova moeda decretada em 20 de novembro de 1923, garantida por
163
uma hipoteca que ninguém em sã consciência ousaria reivindicar mas que, mesmo
assim, funcionou. O mesmo vale para palavras de ordem importantes nos
desdobramentos da Revolução Russa, como nas deliberações de Lênin (Deleuze e
Guattari, 1995, p. 22) frente à guerra civil:
Lênin declara que a palavra de ordem “Todo poder aos sovietes” só
valeu de 27 de fevereiro a 4 de julho, para o desenvolvimento
pacífico da Revolução, mas não valia mais para o estado de guerra,
sendo que a passagem de um a outro implicava essa transformação
que não se contenta em ir das massas a um proletariado diretor, mas
do proletariado a uma vanguarda dirigente. Em 4 de julho,
exatamente, termina o poder dos sovietes. Podem-se assinalar todas
as circunstâncias exteriores não somente a guerra, mas a insurreição
que força Lênin a fugir para a Finlândia. Mesmo assim, o 4 de julho
continua sendo a data em que se enuncia a transformação
incorpórea, antes que o corpo ao qual ela será atribuída, o próprio
Partido, esteja organizado (grifos no original).
Não se trata de que não hajam circunstâncias "exteriores" à palavra , mas de
que as relações da palavra com o político, o econômico, o social, não provêm de
uma vinculação exclusivamente externa ou a posteriori. A objeção mais óbvia à
análise de Deleuze e Guattari será a de que a constituição das "palavras de ordem"
remete antes à política do que à lingüística. No entanto é justamente aí que se opera
uma cisão que omite o fato de que "a política trabalha a língua de dentro" (Deleuze e
Guattari, 1995, p. 22).
A inversão que estes autores propõem é a de deixarmos de pensar a
vinculação da palavra com o social como justaposição ou interação de instâncias
estranhas uma à outra. A maioria das análises tradicionais da linguagem vê as
determinações político-sociais como fatores exteriores ou como simples "pano de
fundo", tanto quanto a maioria das análises políticas clássicas vê as questões de
linguagem como aspectos secundários ou conseqüências posteriores. Tanto num
164
extremo quanto noutro, as vinculações reais e constitutivas das palavras com as
práticas humanas são secundarizadas. As palavras ficam aquém da estruturação
das lutas político-econômicas e as circunstâncias históricas são vistas como
exteriores às palavras, assim Guattari e Deleuze (1995, p. 21) consideram que:
Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas,
morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante
e a enunciação a um sujeito, perdendo, assim, o agenciamento,
remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da
pragmática um resíduo. Ao contrário, a pragmática não recorre
simplesmente às circunstâncias externas, destaca variáveis de
expressão ou de enunciação que são para a língua razões internas
suficientes para não se fechar sobre si. Como diz Bakhtin, enquanto
a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer
compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é
necessário um 'elemento suplementar que permanece inacessível a
todas as categorias ou determinações lingüísticas’, embora seja
completamente interior à teoria da enunciação ou da língua. A
palavra de ordem é, precisamente, a variável que faz da palavra
como tal uma enunciação.
A "palavra de ordem" é o enunciado, é a unidade real da comunicação verbal,
que só se constitui num movimento pautado em condições sociais e dirigido a elas.
Na abordagem bakhtiniana o próprio gênero discursivo, único espaço dentro do qual
a autoria individual pode se dar, é indissociável de esferas concretas da atividade
humana. Para Deleuze e Guattari (1995, p. 16) a "palavra de ordem" tem uma
relação intrínseca com a ação e com a política. A política é ação humana que
acontece dentro do enunciado, e só operando de dentro dele é que pode acontecer.
Mas isso ocorre justamente porque o enunciado não está contido no significante, na
sintaxe, muito menos subordinado a um sujeito da enunciação. O enunciado só se
realiza quando produz ou solicita uma réplica com relação a um outro, quando se
move em direção a alguém, buscando mobilizar alguém, ordenar o mundo, refazer a
165
realidade e criar novos fatos.
Em última análise, trata-se de falar da linguagem como sendo inevitavelmente
da ordem daquilo que se costumava chamar de "infra-estrutura". Como se sabe,
Bakhtin (1992, p. 31) diz exatamente que “tudo o que é ideológico é um signo”, e
que todo signo é material. Deleuze e Guattari (1995, p. 20), por sua vez, dizem que
"os enunciados não fazem parte da ideologia, mas já operam no domínio suposto da
infra-estrutura". Estes franceses trazem o enunciado, ou a palavra de ordem, para o
campo das bases materiais da sociedade afastando-o da definição clássica de
ideologia como um derivado super-estrutural. Bakhtin (1992, p. 33) vai mais além,
propondo uma nova definição de ideologia – ancorada na materialidade dos
enunciados concretos, "fragmentos materiais" que constróem a realidade social e
são constituídos por ela:
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade.
Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma
encarnação material, seja como som, como massa física, como cor,
como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse
sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto,
passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo.
As palavras de ordem, além do mais, não precisam restringir-se aos
significantes lingüísticos. Todo enunciado concreto envolve também uma
gestualidade própria ao gênero discursivo que possibilita seu acabamento. Talvez
pudéssemos falar também de "gestos de ordem" com os quais as palavras de ordem
se compõem. Gestos, indícios, incluindo aqueles feitos com a própria voz. Gritos,
sussurros, entonações, que só podem realizar-se enquanto dizemos algo. Também
dizemos quando nos calamos, rimos ou choramos, quando acenamos, empunhamos
166
uma bandeira, uma arma ou uma flor. Mesmo que estes movimentos não tenham
como dizer qualquer coisa sem que alguém tenha dito algo sobre eles. A questão é
vincular o enunciado, a palavra de ordem, o discurso indireto, às condições de sua
produção, a toda a trama inter-semiótica que a constitui e que compõe o seu sentido
num movimento dialógico. Um discurso indireto, para Bakhtin (apud Schnaiderman,
1996, p. 1388), é função de uma relação dialógica, da palavra na palavra e sobre a
palavra, da matéria na matéria e sobre ela, compondo sentidos e movendo a vida:
A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um
diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo
o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, os
lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas
ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido
dialógico da existência humana, no simpósio universal.
A palavra envolve o homem por inteiro, mas um homem inteiro não se
contém, pois é vasto e contém multidões, como dizia Walt Whitman (2006). Nós
gritamos, sussurramos, rimos, entoamos, calamos, gesticulamos, enquanto dizemos,
ou até para podermos dizer, para sermos ouvidos, amados ou temidos. Ou talvez
por nenhum destes motivos, mas simplesmente para tomarmos a palavra e sermos
tomados por ela, para passarmos a existir enquanto seres que, de algum modo,
"ordenam" sua realidade, construindo projetos, mantendo ou quebrando tradições.
Lançamo-nos de corpo inteiro numa grande luta pela palavra, com ela, dentro dela
e ao seu redor. A palavra nasce da carne, desprende-se dela para assim
contradizer-se. Sendo pedaço de nossos próprios corpos e de corpos alheios, nela
nos ampliamos enquanto nos fragmentamos, como gladiadores em duelo, como
legiões em luta, como a própria arena ou campo de batalha. Assim nos fazemos
seres políticos e sociais, compondo versos para uma grande peça que não tem
167
começo nem fim.
As idéias bakhtinianas certamente não são idênticas às de Deleuze e
Guattari, pois ancoram-se em utopias distintas e dirigem-se a diferentes
interlocutores. Mas elas podem trançar-se aqui numa trama interconstitutiva, tal
como eles mesmos sugerem, marcando que a multiplicidade do signo não se aliena
de sua gênese histórica. O fato de uma palavra ser sempre citação de outrem, no
mesmo instante em que se dirige a alguém para produzir transformações
propriamente sociais, possibilita enxergar sua materialidade numa dimensão aberta
e multifacetada. Se a palavra é vista como este movimento amplo, a unidade de
análise vigotskiana pode ser revisitada, possibilitando nos caminhos produtivos para
repensarmos e refazermos a vinculação material entre a história das lutas sociais e
a constituição das personalidades individuais
Constituição de sentido
O fato de encararmos a palavra como movimento material nos possibilita
produzir uma vinculação concreta e não mais formal entre a vida de cada ser
humano singular e as relações sociais em que ela se caracteriza enquanto
constituição de sentido. Mas, neste mesmo movimento, a matéria se contradiz
enquanto devir de uma unidade múltipla. O vínculo material, privilegiado por Vigotski
(1997f, p. 9) em sua virada paradigmática, configura-se no interior de uma unidade
de análise que é simultaneamente uma multiplicidade de intervenções. A palavra
não é só unidade nem só movimento de análise, pois nela se dão múltiplas lutas
168
sociais, confrontos entre sistemas de valores, que materializam diferentes modos de
construir, manter ou transformar realidades humanas. Nenhuma palavra, enquanto
enunciado, e nenhum enunciado, enquanto "palavra de ordem", pode escapar à
produção de múltiplas intervenções. Cada palavra significativa funciona, assim,
como ação política, num confronto entre muitas vozes.
Dentre as obras de Vigotski às quais temos acesso, um dos textos que mais
evidenciam a luta entre forças sociais na arena da palavra é o conjunto de suas
anotações de 1929, coligidas sob o signo de "Psicologia Concreta do Homem".
Ouvindo as vozes de Bakhtin, Deleuze e Guattari, é possível lançarmos um outro
olhar para a proposta vigotskiana de uma nova psicologia. Daquelas notas de 1929,
podemos resgatar mais alguns fragmentos para nossa composição aberta sobre a
constituição da condição humana. Tais fragmentos dizem respeito à tensão entre
múltiplas e contraditórias ações significativas imbricadas num enunciado concreto,
às quais poderíamos nos referir como componentes do conceito vigotskiano de
"drama".
A psicologia do homem concreto produz, fundamentalmente, uma noção de
que homens e mulheres não se reduzem à sua complexidade orgânica ou
neurofuncional. Por mais aberto e dinâmico que seja o fluxo de nossas articulações
cerebrais, na constituição e entrelaçamento de múltiplos sistemas funcionais, não se
pode definir uma pessoa pelas vicissitudes de suas características orgânicas.
Justamente porque nossa própria constituição biológica solicita que nos ampliemos
para além dela. Fatores orgânicos, como uma doença, um sintoma, ou mesmo um
metabolismo específico, jamais poderiam ser fundamentos para definir como é uma
pessoa ou aquilo que ela produz. A especificidade da obra de Dostoiévski, por
169
exemplo, não pode derivar diretamente do fato dele ter sido epiléptico, pois a
epilepsia em si nunca será um critério concreto para definir o que há de específico
no caráter de uma pessoa. Em última análise, não importa que doença uma pessoa
tem, mas que pessoa tem essa doença, qual o sentido que ela toma no conjunto de
sua personalidade, a partir dos múltiplos significados sociais atribuídos para tal
doença.
Do mesmo modo, para Vigotski (2000b, p. 32) não importa o cérebro que uma
pessoa tem, mas que pessoa tem este cérebro, pois "em verdade, é impossível
entender o funcionamento de qualquer aparelho nervoso sem a pessoa. Isto é
cérebro – do homem. Isto é a mão do homem. Nisto está a essência" (grifos no
original). Rubinstein (1968, p. 10) também trabalha com esta noção de que a
materialidade dos processos psíquicos não pode resumir-se ao funcionamento do
cérebro, por mais complexo e dialético que seja:
O cérebro é somente órgão da atividade psíquica; o homem é o
sujeito dessa atividade. Os sentimentos, como os pensamentos do
homem, surgem na atividade do cérebro, mas quem ama ou odeia,
quem entra no conhecimento do mundo e o transforma, é o homem,
não seu cérebro (grifos no original).
Mas então, como definir materialmente o que é o homem? O que é uma
pessoa?
Na nossa abordagem, como temos dito, a questão da consciência é crucial
para a definição daquilo que é propriamente humano. A consciência, por sua vez,
emerge das relações sociais materiais intrinsecamente vinculadas à constituição da
palavra significativa. O humano é um ser que fala, brinca e trabalha, podendo
tornar-se consciente de sua própria condição e capaz de projetar-se para além dela
170
Somos vistos, assim, como estes seres que se distinguem dos outros animais,
porque nossas ações não são mais apenas uma realidade em si, mas uma realidade
que se toma para si.
Isso já estava em Hegel quando dizia que se um animal realiza sua essência
em seu ser, o homem a realiza em seu tornar-se (apud Kozulin, 2001, p. 28). Mas
esse conceito também estará presente em pensadores materialistas como Wallon
(apud Dantas, 1983, p. 137), para quem a humanização não se reduz a
hominização, pois o homem se faz homem quando, na passagem do processo de
hominização ao processo humanização, passa a compreender e a admirar o mundo,
conservando-se no mundo, despreende-se dele, objetivando-o e transformando-o.
A hominização é um movimento próprio à evolução das espécies que
engendra o Homo sapiens, enquanto a humanização diz respeito a uma conquista
refeita por cada geração em vias inusitadas. Temos que conquistar nossa condição
humana, mesmo já tendo herdado a condição de Homo sapiens ao nascermos, tal
conquista só é possível no âmbito de uma dada cultura, com todos os seus aparatos
construídos historicamente.
Em Vigotski (2000b, p. 33) o paradigma hegeliano parece ser
redimensionado, não só pelo fato de que a palavra emerge da ação, mas também
porque o caminho que vai do em si ao para si passa inevitavelmente por um para o
outro. Este outro é porta-voz das tradições e contradições de uma cultura, e um ser
humano concreto define-se como a "personalidade social da pessoa. Da pessoa
como membro de um grupo social definido. Como unidade social definida. Como ser
em si – para os outros e – para si" (Vigotski, 2000b, p. 32, grifos no original).
O devir que nos define enquanto humanos é um tornar-se indivíduo a partir de
171
um fluxo de relações sociais e somente dentro dele. Toda a trama da psicologia
concreta se relaciona a esse movimento que vai do para o outro ao para si, na
medida em que este para si deriva de relações sociais, sendo ao mesmo tempo uma
transformação a partir delas. Esta transformação foi tratada por Vigotski (1998a, p.
86) como um processo genético, que se desdobra durante toda nossa vida e que
vincula experiência, sentido e significado em relações de composição múltiplas e
desviantes. Como vimos, as transformações no trânsito entre diferentes níveis são
relacionadas a mudanças funcionais e estruturais na transformação da palavra para
o outro em palavra para si, ou melhor da fala exterior desdobrada em fala interior
predicativa. Bakhtin, Deleuze e Guattari nos permitem amplificar a multiplicidade
dessa palavra que se torna para si, radicalizando a noção de que ela nunca deixa de
ser para um outro e para muitos outros.
Vigotski (2000b, p. 23) aponta aspectos dessa alteridade. Ocorre que cada
homem concreto só passa a existir como função de uma relação real com alguém.
Só podemos nos relacionar conosco do mesmo modo e pelo mesmo processo pelo
qual nos relacionamos com outras pessoas, já que é impossível relacionar-se
diretamente consigo mesmo, pois "eu sou a relação social de mim para comigo
mesmo" (Vigotski, 2000b, p. 34).
Em Bakhtin (apud Todorov, 2000, p. 8), isso se coloca de um modo bastante
claro e muito profundo, posto que cada ser humano singular está inevitavelmente
limitado quanto à percepção que tem de si próprio no tempo e no espaço.
No espaço não podemos nos captar por nós mesmos, porque não podemos
nos enxergar por inteiro, a não ser indiretamente – pelo olhar de alguém, por um
espelho, por uma montagem de fragmentárias imagens alheias. No tempo também
172
não temos a dimensão direta de toda nossa vida, porque as experiências diretas de
nosso nascimento e de nossa morte nos escapam. Mas podemos ver outras
pessoas nascerem e morrerem, e mediante elas criamos uma noção aproximada da
temporalidade de nossa existência. Questões tidas como tão íntimas quanto a
extensão de nossos próprios corpos e a duração de nossas próprias vidas só nos
são acessíveis de um modo incompleto e indireto, mediante os olhos dos outros,
mediante suas ações, movimentos e vozes.
Em Vigotski (2000b, p. 25), fica claro que para haver uma relação é preciso
que existam pelo menos duas instâncias relacionando-se, uma relação é uma
função que vincula realidades distintas. Relações sociais são funções que
estabelecem ou invertem lugares, papéis, posições humanas. No entanto, para uma
pessoa real não se tratam apenas de duas possibilidades, mas de múltiplas: filho e
pai, senhor e escravo, mestre e discípulo, locutor e ouvinte. Muitas relações e
entrelaçamentos, lugares que se alternam, alguns que se apagam e outros que
emergem, milhares de vozes, paixões e razões. É no fluxo de estabelecimento
dessas relações que vamos experimentando o mundo e a nós mesmos, pois, de
acordo com Vigotski (2000b, p. 24):
A personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através
daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros. Este
é o processo de constituição da personalidade. Daí está claro,
porque necessariamente tudo o que é interno nas funções superiores
ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é
para si. Isto é o centro de todo o problema do interno e do externo"
(grifo no original).
O estabelecimento de relações com os outros reside no ato de assumirmos
papéis diante de alguém, enquanto este alguém vai assumindo papéis diante de
173
nós. Um papel implica uma palavra como ação significativa dirigida a alguém, dentro
de um gênero que proporciona o acabamento de um enunciado real. Então, não se
trata só de uma palavra, mas de todo um complexo semiótico, uma pequena obra de
arte, um conjunto ético-estético, uma materialidade sensível, valorativa, móvel e
movente.
Os papéis dos outros diante de nós vão configurando e solicitando um
possível lugar para nós diante deles, tanto quanto nosso posicionamento diante
deles vai nos possibilitando um posicionamento diante de nós mesmos, num
horizonte cultural. E assim vamos constituindo nossas visões de mundo, o conjunto
de nossas personalidades enquanto tramas de sentidos.
O jogo de um papel envolve sentidos e significados. Quando Vigotski (1989,
p. 125) fala da brincadeira das crianças na gênese da imaginação e da consciência
isso fica bastante claro. No jogo opera-se a constituição de um conceito, uma
generalização que possibilita fazer de uma vassoura um cavalo, sem que este se
confunda com aquela. Um conceito permite às irmãs descobrirem o que é "ser irmã"
enquanto brincam de serem irmãs e não confundem "ser irmã" na brincadeira com
"ser irmã" em outras situações sociais. Não confundem mas relacionam, e
relacionam porque num signo isso se faz possível. Ainda que um jogo possa
também realizar um desejo ou dar prazer, sua essência não reside nessas
características mas em criar uma situação imaginária, pois trata-se, antes de tudo,
da emergência de um novo processo sígnico.
O jogo é um movimento que nos desloca de nossas experiências imediatas,
de nossas palavras e ações, ou dos objetos ao nosso redor. Ainda que nunca nos
dissocie totalmente de tais funções no jogo emerge um símbolo, um signo arbitrário,
174
uma opção e uma substituição definidas culturalmente. Recorrendo às notas de
Vigotski enviadas à Elkonin em abril de 1933, encontramos uma conclusão mais
direta "no jogo ecce homo" (Vigotski, 1998c, p. 426, grifos no original). Deste modo,
pode-se dizer que a leitura vigotskiana concebe o jogo de papéis, que cria as
personalidades individuais, como um movimento semiótico que gera funções
conscientes a partir de enunciados reais. A consciência constitui-se como diálogo e
a personalidade como drama. O diálogo e o jogo, por sua vez, são vistos como
alternância e constituição de posicionamentos, papéis, apreciações e intervenções.
Dentro dessa concepção, uma contribuição fundamental das notas de 1929 é
a de marcar tensões que são constitutivas do jogo de papéis sociais, e portanto das
personalidades individuais que delas se desdobram na palavra. Se a vida social é
luta, nossas personalidades também o são, tanto quanto todos os signos mediante
os quais elas se constituem.
Pode ser que se trate de um exemplo um tanto formal ou artificial, mas não
deixa de ser uma alegoria produtiva, da qual podemos desdobrar outras
multiplicidades. Ser militante, acadêmico, ou ter família, ser operário, cristão,
ou jogar futebol, ser atleticano, músico, amante, ou garçom, ser sartreano,
marxista ou pós-modemo, são realidades que não estão separadas nem unidas de
antemão. São papéis sociais que, via de regra, sobrepõe-se e misturam-se ainda
com muitos outros em uma mesma pessoa concreta, socialmente situada. Nunca
poderão estar totalmente dissociados nem plenamente conciliados, de modo que as
diferentes funções assumidas nestes papéis, numa direção ou noutra, acabam
solicitando opções conflitantes, subordinando algumas vozes a outras.
As tensões entre nossos signos, confrontando-se na composição do sentido,
175
seriam assim tão vivas e tão reais quanto as tensões que emergem de qualquer
posicionamento político concreto, frente a outras pessoas a quem nossos
enunciados se dirigem.
Esta tensão faz da palavra um drama, um acontecimento que inevitavelmente
envolve lutas, opções, supressões, erros, multiplicidades e incompletudes. Tal
palavra é propriamente humana tanto quanto o conflito que dentro dela se
estabelece, já que "o drama realmente está repleto de luta interna impossível nos
sistemas orgânicos: a dinâmica da personalidade é o drama" (Vigotski, 2000b, p. 35,
grifos no original). De dentro de sua multiplicidade, configuram-se jogos de força
entre processos semióticos, vetores e estratificações que territorializam a arena do
sentido. Jogos que configuram relações de predominância e subordinação mas não
de superação nem de exclusão, pois neles não há etapas lineares onde estruturas
se superam de modo definitivo ou irreversível, e nada pode ser excluído de uma vez
por todas.
Tais lutas e conflitos não têm paralelo entre os outros animais, não se
reduzem aos nossos aparatos neurofuncionais, nem podem se restringir ao
equilíbrio ou desequilíbrio de nossas energias endógenas, de modo que a psicologia
se humaniza. Ao desprender-se da "zoopsicologia" na qual buscou sua legitimidade
enquanto discurso científico, o conhecimento psicológico poderá tornar-se
"psicologia concreta".
As funções psíquicas confrontam-se em cada pessoa singular tanto quanto as
pessoas reais confrontam-se em suas relações, uma vez que "por trás de todas as
funções superiores e suas relações estão relações geneticamente sociais, relações
reais das pessoas" (Vigotski, 2000b, p. 26). As funções psíquicas passam a estar em
176
luta em cada um de nós, tanto quanto os diferentes agentes sociais no curso de
seus embates.
No entanto, o vínculo fundante entre as funções psíquicas superiores, ou seja,
propriamente humanas, e as relações sociais não se pauta num mero paralelismo,
nem se reduz uma simples comparação formal. Não se trata apenas de que uma
função como a memória inverta sua relação de predominância frente a outra como o
pensamento, tanto quanto um escravo pode inverter sua posição tornando-se
senhor. A concepção vigotskiana quanto ao entrelaçamento das linhas biológica e
cultural no desenvolvimento humano enfatiza a transição genética do predomínio de
funções imediatas ao predomínio das funções mediadas. E um exemplo disso é o de
que no início, para uma criança, "pensar é lembrar", mas posteriormente "lembrar
será pensar", em função de um movimento que transforma tanto a memória quanto o
pensamento mediante a palavra.
Mas tal exemplo ainda não configura uma psicologia concreta, pois a questão
não pode se esgotar na idéia de que a luta entre pessoas implica uma luta entre
funções. Não se estas funções forem tomadas de um modo tradicional. Trata-se
antes de atribuir um significado novo para as funções psíquicas, pois elas não se
dão no vazio, não são formas universais às quais os conteúdos sociais se encaixam
de um modo ou de outro.
Pelo contrário, tudo que no humano é função de sua consciência, ou seja tudo
que no seu psiquismo passa a ser mediado, voluntário e consciente, é por
conseguinte função de relações sociais, já que este é o estrato da realidade do qual
a consciência é função, mediante a materialidade da palavra. As palavras, por sua
vez, transcendem as relações sintáticas e os contornos morfológicos, pois não
177
existem sem conteúdo semântico e ideológico, nem sem uma atuação pragmática
sobre alguém. O conteúdo é critério inalienável de constituição de uma palavra,
tanto quanto o estabelecimento de relações, posições e papéis sociais, na medida
em que nela materializa-se um movimento que mobiliza um outro em alguma
direção, ao mesmo tempo em que nos posiciona diante deste outro e diante de nós
mesmos.
As palavras significativas, os enunciados, as palavras de ordem, estabelecem
ou invertem papéis, estabilizam ou desestabilizam áreas do sentido, solicitam
réplicas e apreciações, são atos de coerção ou de libertação, constituindo o drama
da vida humana. Para darmos um lugar tão central à palavra, dizendo que o homem
concreto reside nela e apenas nela, é preciso tomá-la em toda sua materialidade,
nas tramas inter-semióticas que a constituem num horizonte de sentido e numa
enunciação concreta. Mas, uma vez que o façamos, torna-se necessário radicalizar
a questão da vinculação entre os conteúdos das relações sociais e a estruturação
das funções psíquicas propriamente humanas.
Deste modo, não há só um paralelo entre as relações sociais e as funções
mentais, mas uma relação concreta de interconstituição, na medida em que os jogos
de papéis estão amalgamados aos próprios conteúdos das palavras, e estas por sua
vez passam a estruturar as funções mentais. Para Vigotski (2000b, p. 34), não há
pensamento puro ou sem conteúdos:
Se por pensamento puro se entender a atividade do intelecto livre de
quaisquer percepções sensoriais, então o pensamento puro é ficção,
porque o pensamento, livre de todas as representações, é um
pensamento vazio... (grifo no original).
O pensamento é sempre preenchido por uma dimensão semântica e sensível,
178
por um vínculo fundante com um universo social materialmente tangível, de onde as
palavras surgem e para onde elas se dirigem, conforme aponta Vigotski, (2000b, p.
34):
Pois os conceitos são nada mais do que representações e
percepções re-elaboradas. Em uma palavra, ao pensamento
precedem sensações, percepções, representações, etc., mas não o
contrário. Até o próprio pensamento, no sentido de sua capacidade
superior de formação de conceitos, categorias, é o produto do
desenvolvimento histórico.
O conteúdo das relações reais entre as pessoas passa assim a compor a
própria dinâmica da personalidade, e as formas do pensamento são também
criações sociais. Por um lado, cada relação entre as pessoas produz posições e
papéis reais marcados na construção dos enunciados que entre elas se alternam,
num determinado gênero e, por conseguinte, numa determinada esfera da atividade
humana. E tais papéis, vividos em diferentes esferas por uma mesma pessoa real,
vão se sobrepondo e se atravessando, tanto quanto os gêneros pelos quais ela
transita, criando assim as tensões constitutivas do drama de sua personalidade.
Por outro lado, mesmo as formas lógicas, ou os modos mais estáveis de
articulação entre as palavras e os signos de um modo geral, também são invenções
sociais, tanto quanto os diferentes artefatos culturais cujos modos de confecção são
criados, transmitidos e refeitos socialmente. Deste modo, a abordagem vigotskiana
radicalmente postula relações interconstitutivas entre os conteúdos ideológicos e as
estruturas psicológicas, não sendo estas um pressuposto para a constituição das
pessoas reais, mas um produto histórico materializado nas formas culturais de
construir e transformar o mundo.
As próprias formas do pensamento encontram-se em procedimentos que não
179
nascem dentro dos homens, em nossas estruturas neurofuncionais, mas são criados
para além de nossos cérebros nas formas materiais de mediação cultural, na fala, na
escrita, na arquitetura, na física, na matemática, no mundo do trabalho e das artes,
na filosofia, na política e nas religiões. Em todas as esferas da atividade humana
com todos os seus artefatos, signos, instrumentos, e seus correspondentes gêneros
discursivos, também socialmente agenciados. Não há como o Homo Sapiens
garantir sua existência sobre este planeta sem aquelas materialidades artificialmente
criadas, compostas por inumeráveis e anônimos artífices. São materialidades que
ainda não puderam se inscrever em nossos códigos genético-moleculares, nem
tornarem-se um a priori de nosso desenvolvimento individual.
Da perspectiva que vimos defendendo não há tais estruturas a priori para as
funções propriamente humanas. Tudo que se faz propriamente humano deriva
justamente de nossa radical abertura ao que há de vir e compõe-se em tramas de
sentido historicamente produzidas dentro da palavra material.
Daqui podemos rumar para a questão da dialética entre os conteúdos em luta
que configuram a dinâmica da personalidade e os chamados processos psíquicos.
Nas notas de 1929, Vigotski (2000b, p. 41), pretende propor uma psicologia que opte
pelos conteúdos concretos e não por processos abstratos. Por mais que tratemos
dos processos mentais como sistemas funcionais abertos e intercambiantes, isto
não é suficiente para definir o que é um homem. Mas como falar dos processos
psicológicos e de seus conteúdos ideológicos, se aqueles são constituídos por
estes, mas estes também não existem fora daqueles. Uma saída pode residir no fato
de que o modo dos processos se constituírem não precisa ser tratado como
estruturação lógica.
180
Não precisaríamos cair nem num reducionismo semântico nem num
reducionismo sintático, mas pensaríamos num movimento integrado entre sintaxe,
semântica e pragmática. A quem se dirige a palavra concreta? A alguém concreto.
De onde vem a palavra concreta? De alguém concreto. Quem primeiro valoriza ou
desvaloriza o sonho, a neurose ou o ato falho, não é um "eu" fora do mundo, mas
um mundo repleto de relações que solicitam ou inventam a presença e a existência
de um "eu", a palavra "eu" vem depois. Isto não quer dizer que ela seja desprovida
de importância ou que não exista, mas de qualquer modo não é um fundamento
primeiro para a vida social, nem se opõem ontologicamente a ela, mas se alimenta
dela e dela se constitui. Trata-se de uma relação intrínseca.
Os papéis, personagens, envolvem solicitações sociais. E viver cada um
deles implica assumir um gênero, um estilo, um tipo. Mas ocorre que uma única
pessoa é arena de todas as suas lutas, todas as alternâncias de papéis. Não há uma
chave que desligue as diferentes posições e faça com que ela assuma uma posição
isolada de cada vez. Assumir um papel é apenas subordinar outros, mas não deixar
de tê-los em confronto. Mas se quisermos tratar este confronto em sua materialidade
não basta imaginá-Io como um palco de representações em nossos cérebros ou
para além dele, é preciso entendê-lo como um confronto de signos reais em luta e
em composição.
Aí reside a questão do que constitui a arena de luta, o palco, cenário, atores,
personagens, iluminação, maquiagem, platéia, muitas peças, muitos estilos, muitos
gêneros, é o horizonte aberto e interconstitutivo do sentido. A palavra, enquanto
enunciado, não é mais apenas um palco de representações, lugar onde a cena se
monta ou onde o drama se reflete ou refrata, ela é a própria materialidade dos
181
papéis em luta. Podemos dizer que a palavra é antes uma usina de produção do que
um palco de representações. Se é na materialidade do signo que a luta passa a se
produzir, podemos pensar a vinculação entre os conteúdos das relações sociais e a
organização das funções mentais como algo muito além de uma analogia abstrata,
ou de certo um paralelismo psico-sociológico.
A consciência enquanto diálogo solicita uma alternância onde pelo menos
duas vozes são mobilizadas. Nessas alternâncias dialógicas é que os papéis se
configuram, e vamos nos compondo por uma dança de muitos alter cambiando
posições, lutando por um lugar. Mas o que prevalecerá? Não se pode dizer de
antemão, mas provavelmente o que puder ser suportado diante de solicitações
alheias, ou o que for necessário para solicitarmos uma réplica de alguém,
configurando uma palavra de ordem numa relação concreta. Tal resposta pode ser
confundida com uma concessão a um determinismo social. No entanto, é preciso
não esquecermos de que há o erro, há o desvio, e há desde sempre o múltiplo
desde fora, e portanto desde dentro daquilo que funda o homem: a linguagem. A
contradição não é apenas da palavra com o mundo, a contradição é da palavra
consigo própria e do mundo consigo próprio, sendo que a palavra sempre será
mundo, mesmo que nem sempre o mundo seja palavra. As contradições não são
apenas discrepâncias entre discurso e realidade, são discrepâncias da realidade
consigo mesma e os discursos são inevitavelmente realidades.
Desta forma há muitos conflitos, há muitos rumores e muitas lutas. Mas
muitas delas são silenciadas, umas dominam sobre as outras no campo da história
da humanidade tanto quanto no campo da história do indivíduo. Não é a toa que
Bakhtin (2004, p. 86) fala do inconsciente como o campo das consciências não
182
oficiais pois, como diz Vigotski (2000b, p. 37), os papéis estão em luta. Os sentidos
que concorrem numa mesma e polissêmica palavra, estão em luta tanto quanto as
classes sociais no curso da história. E a luta não é só interna, não se dá apenas
como um conflito interior entre instâncias estruturais.
A luta se configura concretamente na construção de algo que se dirige a
alguém, e numa pragmática que não pode mais ser tomada como resíduo. Se
nossos papéis em confronto configuram a construção de algo que se dirige para
alguém, nossos conflitos haverão de constituir-se para além de nossas peles, e
muito além das paredes de um triângulo edípico qualquer.
Para Deleuze e Guattari (2000, p. 15) há rizomas e para a perspectiva
bakhtiniana dialogia, polifonia, carnaval, assembléias e auditórios.
Na abordagem vigotskiana, o normal não é um caso mais ou menos derivado
do patológico. Normal e patológico envolvem uma trama maior, pois os sentidos
sociais concretos são diferentes para diferentes pessoas em diferentes culturas. Um
sonho nunca será o mesmo, porque as relações sociais serão outras. O que vale
não é um sonho, um delírio, ou um chiste em si, mas o papel que tomam na
dinâmica da personalidade, sendo esta entendida como drama concreto. Deste
modo não cabe à psicologia restringir-se a uma hermenêutica. Pelo contrário, mais
do que interpretar os fatos, ela os recompõem, reconstrói, a partir de indícios
materiais, fragmentos ou fósseis.
O método vigotskiano não é apenas analítico mas construtivo, já que o que
constitui o homem concreto não são relações orgânicas universais mas criações
culturais construídas por inumeráveis artífices ao longo da história das diferentes
sociedades. Como ele mesmo diz, “o método construtivo tem dois sentidos: 1)
183
estuda não as estruturas naturais, mas construções; 2) não analisa, mas constrói
processos” (Vigotski, 2000b, p. 23).
Sendo assim, vemos que já em 1929, Vigotski (2000b, p. 25) esboçava a
proposição de uma nova psicologia, um novo modo de explicar e efetivar a
constituição do humano, que não remeteria a processos, estruturas, ou funções
abstratas, mas a jogos concretos de constituição de sentido que configuram um
drama real. Jogos em que o próprio pesquisador também passa a participar, tirando
as luvas, ampliando potenciais e pronunciando uma palavra em que é responsável
pelo que diz.
No entanto, naquele mesmo texto, Vigotski (2000b, p. 35) assume que “minha
história do desenvolvimento cultural é a elaboração abstrata da psicologia concreta”.
Segundo Puzirei (in Vigotski, 2000b, p. 43), em suas notas à Psicologia Concreta do
Homem, esta autocrítica de Vigotski é:
Incrível para o leitor moderno de Vigotski, que contém a avaliação
direta por Vigotski da sua concepção, como ela se formou no início
dos anos 30, isto é em sua forma clássica e madura – apenas como
a forma de passagem e ainda em muito compromissada, da
realização da idéia da psicologia concreta da pessoa, não apenas
testemunha sobre como ele foi livre e crítico na avaliação do seu
trabalho (pela profundidade e caráter radical do pensamento, ele
deixaria bem atrás seus críticos contemporâneos e que se seguiram
a ele, até mais "avançados").
Puzirei (in Vigotski, 2000b, p. 43) considera que tal pensamento configurou
um projeto no qual “viu Vigotski a ‘linha principal’ e perspectiva do futuro
desenvolvimento da psicologia histórico-cultural. Esta tendência poderia denominar-
se como a superação radical do ‘academicismo’ na psicologia tradicional”.
Este projeto, conforme aponta Puzirei (in Vigotski, 2000b, pp. 43-44) –
184
enquanto salto para uma dimensão do possível – solicitava:
A transferência para um tipo de pesquisa inteiramente novo, o qual a
força das especificidades fundamentais do seu "objeto", objeto
histórico-cultural e que está em desenvolvimento, e exigências
principais (as quais partem disso) do seu método, – exteriorização e
análise, o qual deveria realizar-se por si mesmo nos limites da
organização de uma ou outra atuação psicotécnica, ou até possível,
– em algum sistema regular da prática psicotécnica, aparecendo na
qualidade de seu órgão essencial, que garante o projeto, realização,
reconstrução e desenvolvimento planejado desta prática. Este
projeto de reconstrução radical da psicologia em toda a história da
psicologia posterior permaneceu em essência não realizado.
A psicologia concreta proposta solicita uma mudança de atitude radical. Algo
que vem se construindo como um convite a uma busca, em nome de uma psicologia
concreta do homem. Uma psicologia não mais pautada numa lógica neutra que se
preste a toda e qualquer constituição do sentido, mas na constituição do sentido
como movimento múltiplo e interventivo. Movimento que pode mesmo dar à lógica
um lugar importante, mas por conta de uma trama social mais ampla e não por
necessidades primeiras da própria “lógica”, enquanto razão que concede à paixão
um lugar periférico ou idossincrático. Não haverá de continuar sendo assim que
buscaremos construir nossos discursos em busca de verdades “mais elevadas e
mais profundas” (Deleuze, 1994, p. 197), mas antes tomando a paixão como atuante
junto à razão, de dentro da palavra e, conseqüentemente, de dentro de nossas
próprias consciências.
O que ocorre não é uma luta entre razão e paixão, como prega a precedência
ontológica do logos, ou como sugere um certo irracionalismo biologizante. As lutas
são entre as próprias paixões, paixões contra paixões, razões contra razões. Pois
cada palavra é já um amálgama entre paixão e razão e não deixará de ser, a não ser
185
que se converta em pura energia atômica decompondo mundos ou que se congele
em traços indecifráveis lançados em sondas espaciais em busca de ninguém. Em
quanto houver palavra será emoção e significado, tal como amalgamados pelo
sentido. E as lutas não lhes serão exteriores mas interiores. Pois cada palavra
envolve já um drama, cada palavra é uma obra de arte, uma peça, uma composição,
uma construção. Trata-se de um ato estético, um modo de sentir o real e de
construí-lo, e também de um ato ético porque político, envolto numa coletividade e
para ela dirigido quer saibamos ou não. Cada palavra de ordem, enquanto drama e
enunciado real, é um movimento múltiplo, interventivo e construtivo.
Conteúdos ideológicos fundam os processos mentais numa luta social, de
modo que as estruturas lógicas não são pressuposto para a constituição do sentido
mas uma estabilização provisória que deriva de sua composição dialética e poética.
Já que “existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma
voz, todo um rumor, glossolalia: isto porque o discurso é indireto, e a translação
própria à linguagem é a do discurso indireto” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 13).
Deste modo podemos evidenciar contradições próprias à materialidade da palavra. E
talvez assim encontremos mais densidade na unidade proposta pela análise
vigotskiana para o estudo da consciência e cheguemos a uma leitura produtiva
quanto às suas conseqüências no campo da composição da subjetividade humana.
186
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tudo o que dissemos e diremos aqui não foi nem será suficiente para
materializar uma densa psicologia concreta do homem. Mas podemos falar em
nome de um projeto que vá em sua direção, enquanto tateamos um livro raro em
busca de palavras mais vivas, cujo caráter múltiplo e interventivo mobilize-se em
defesa da vida. Em nossos tempos, de infinitas linguagens e de extremos
contrastes, torna-se eticamente insustentável nos abrigarmos sob os escudos da
neutralidade e da indiferença. Para Guattari (1989, p. 21) é necessário o
engajamento "de todos aqueles que estão em posição de intervir nas instâncias
psíquicas individuais ou coletivas". As palavras de uma nova psicologia haverão de
atuar justamente nessas instâncias e, como diz Vigotski (1997a, p. 406) ao citar
Espinosa, serão tão parecidas com o discurso psicológico atual quanto a
constelação do Cão se parece com o cachorro que ladra. Tal dissemelhança marca
um duelo entre o que sonhamos e o que vivemos, mas não nos impede de buscar
mais consistência ao que vimos discutindo até aqui.
Deste modo, as palavras não são peças arbitrárias a preencherem arquétipos
universais ou a serem capturadas por estruturas neutras, elas trazem em sua
materialidade as marcas estéticas (sensíveis e construtivas) dos sentidos que elas
constituem em nosso cotidiano. O peso material e estético das palavras intervém
sobre a própria constituição das estruturas sígnicas.
Por outro lado, as estruturas lógicas não são formas universais a serem
preenchidas por um ou outro conteúdo ideológico concreto. Pelo contrário, os
187
conteúdos concretos marcam as palavras de tal modo que a atitude diante de uma
"mesma" estrutura pode tornar-se totalmente distinta. O papel que ela joga poderá
ser totalmente outro, e em última análise, não se tratará mais de uma mesma
estrutura.
Um exemplo das relações estreitas entre a composição de sentidos e a
estruturação de formas lógicas de pensamento, pode ser encontrado nos trabalhos
cross-culturais de Luria (1988, pp. 39-58). Dentre os vários trabalhos realizados
pelo grupo de Luria com camponeses do Uzbequistão, uma das peças mais
interessantes foi o seu estudo das avaliações que eles faziam quanto aos
silogismos. Apresentava-se aquelas pessoas uma premissa maior como “no extremo
norte onde há neve, todos os ursos são brancos” (Luria, 1992, p. 83) e uma menor
como “Novaya Zemlya fica no extremo norte e lá sempre há neve” (idem), mas
quando perguntava-se “que cor tem os ursos lá?” (idem) eles criavam saídas para
não responder, dando respostas evasivas como “existem diferentes tipos de ursos”
(idem). Pensamos que resgatando as relações culturais daqueles camponeses com
as formas lógicas estabilizadas nos procedimentos silogísticos, consagrados pelos
homens letrados ocidentais, possamos compor comparações produtivas. Após a
repetição do mesmo silogismo descrito acima, Luria (1992, p. 83) obteve os
seguintes diálogos:
‘Não sei. Já vi um urso marrom; nunca vi outros... Cada localidade
tem seus próprios animais: se é branca, eles serão brancos; se é
amarela, eles serão amarelos’.
‘Mas que tipo de urso há em Novaya Zemlya?’
‘Nós sempre falamos daquilo que vemos, não falamos sobre o que
não vimos’.
‘Mas no que implicam minhas palavras?’ O silogismo foi repetido.
‘Bem, é assim: nosso tsar não é como o de vocês, e o de vocês não
é como o nosso. Suas palavras só podem ser respondidas por
188
alguém que tenha estado Iá, e se uma pessoa nunca foi lá, não pode
dizer nada como base em suas palavras’.
‘Mas, com base nas minhas palavras, ‘No norte, onde há sempre
neve, os ursos são brancos’ você pode concluir que tipo de ursos
existem em Novaya Zemlya?’
‘Se um homem tivesse sessenta ou oitenta anos, tivesse visto um
urso branco e falado sobre isso, poderíamos acreditar nele, mas eu
nunca vi um, então não posso falar. Esta é minha última palavra. Os
que viram podem contar, e os que não viram não podem falar coisa
alguma!’
Neste ponto um jovem uzbek falou, voluntariamente:
‘De suas palavras, quer dizer que os ursos Iá são brancos’.
‘Bem qual de vocês esta certo?’
O primeiro sujeito replicou: ‘O que o galo sabe fazer, ele faz. O que
eu sei, eu falo, e nada além disso!’
Estas pesquisas no Uzbequistão procuraram mostrar que as próprias formas
de pensamento são determinadas culturalmente, mas ao mesmo tempo também
estavam marcadas por uma necessidade de levar à construção de um sistema de
educação que atingisse a todas as repúblicas soviéticas. Tinha-se como objetivo a
socialização de um conhecimento sistemático ao qual muitos daqueles povos foram
impedidos de ter acesso durante séculos, devido a estrutura social feudal e desigual
na qual viviam antes da implantação do socialismo. Sem dúvida tratava-se de uma
intencionalidade legítima e sincera por parte de muitos dos pesquisadores que
viveram e produziram naquele período pós-revolucionário, dentre os quais podemos
incluir nomes como os de Vigotski e Luria.
No entanto, por conta deste compromisso, os psicólogos soviéticos, por
vezes, acabavam enfatizando mais as vantagens da escolarização e do trabalho
coletivo, do que outros aspectos psicológicos relevantes para a constituição de uma
psicologia do homem concreto. Segundo Luria (1992, pp 83-84), aquelas pessoas
apresentavam “excelentes juízos sobre fatos que os tocavam diretamente, e tiraram
todas as conclusões implicadas de acordo com as leis da lógica, revelando muita
189
inteligência prática”. Contudo, isso mudava quando tinham que passar para um
sistema de pensamento teórico, onde as normas silogísticas tivessem que ser
aplicadas em situações fictícias. Para Luria (1992, p. 84), três fatores principais
faziam com que os camponeses tivessem dificuldade com os silogismos:
O primeiro era uma desconfiança de premissas iniciais que não
fossem oriundas de suas experiências pessoais. Isto tornava
impossível que usassem tais premissas como ponto de partida.
Segundo, não aceitavam tais premissas como universais. Ao invés,
as viam como uma afirmação particular que refletia um fenômeno
particular. E terceiro, como resultado desses dois primeiros fatores,
os silogismos se desintegravam em três proposições isoladas e
particulares, sem lógica unificada, e não havia canal pelo qual
pudessem se integrar ao sistema.
Se o pesquisador insistisse, alguns dos camponeses diziam que de suas
palavras poderia se concluir que os tais ursos eram brancos, mas no jogo de forças
de suas formulações prevaleciam outras vozes que não a da lógica formal. Talvez
não se tratasse de que os camponeses tivessem simplesmente se tomado inaptos
para a lógica, a questão maior pode ter sido o papel que uma lógica abstrata jogava
no conjunto de sua personalidade. Eles não poderiam afirmar nada sobre os ursos,
já que nunca estiveram lá. Ora, não se tratava de uma incapacidade, mas de uma
questão de princípios morais diferentes daqueles postos numa cultura ocidental
letrada, que privilegia a lógica formal.
Por certo, o olhar de um pesquisador também é norteado por um jogo de
vozes em luta. Aquilo que pretendemos provar direciona nossas palavras e elas, por
sua vez, criam novas solicitações. É interessante que Luria (1992, p. 83) não tenha
atentado, por exemplo, para os indícios de lógica formal presentes na própria fala do
camponês que se negava a falar dos ursos mas fazia uso de complexos argumentos
190
para comprovar seus valores. Um desses indícios é o uso de uma forma
praticamente silogística, quando ele diz que “suas palavras só podem ser
respondidas por alguém que tenha estado lá, e se uma pessoa nunca foi lá, não
pode dizer nada como base em suas palavras”.
Só pode responder quem esteve lá. Nós não estivemos lá. Logo, nós não
podemos responder. Trata-se de uma conclusão óbvia a partir de determinadas
premissas, discutir sua validade seria o mesmo que discutir a existência ou não de
ursos brancos no extremo norte. Em qualquer silogismo, a dedução a partir de
premissas é praticamente óbvia, o problema maior está na aceitação tanto da
premissa maior quanto da menor. Qual tribunal decidirá por sua validade, se em
última análise, ninguém esteve já para ver, e se o que dissemos sempre vem de
algo que ouvimos dizer? A questão, por fim, não é a de haver ou não modos
sintáticos de organização lógica, mas sim a de como eles surgem e se confrontam
no campo mais amplo da configuração de um enunciado que vai em direção de
alguém.
Para aqueles uzbeks, não havia apenas um esquema lógico em jogo, ele era
apenas um processo dentro de um movimento concreto muito mais amplo. Havia
todo um sistema de valores culturais configurando um horizonte de sentido dentro
do qual os significados mais importantes poderiam se estabilizar. Aqueles
camponeses preocupavam-se, antes de mais nada, em falar a verdade, e a verdade
se apresentava para eles como uma correspondência com sua experiência de vida.
Nós mesmos não sabemos se de fato há ursos em Novaya Zemlya, muito
menos se são todos realmente brancos, mas isso simplesmente não nos incomoda,
não atrapalha nosso sistema de valores. O foco de nossa atenção é o próprio
191
processo e não seu conteúdo enquanto tal. Mas, o foco da consciência pode tomar
rumos diferentes. Podemos entrar em crise a partir da palavra de um outro e fugir as
determinações cartesianas egocêntricas, logocêntricas ou etnocêntricas.
Seria preciso resgatarmos a contribuição mais radical de Luria (1992, p. 85),
ou seja, sua ênfase na questão de que determinados modos de produção
encaminham diferentes construções cognitivas. Esta ênfase não deixava de
encaminhar um tom valorativo em suas análises, em função de sua adesão a
proposta de uma nova sociedade, e seu franco desejo de construção de um homem
socialista. Mas, em que pese o intelectualismo que possa ter derivado de tais
análises, sua virada metodológica é radical, pois trata-se de dar à cultura um outro
lugar na constituição das formas de pensamento. É por isso que Luria (1992, p. 84)
e seus companheiros apelidaram seus experimentos de “anticartesianos”, pois
constataram “ser a autoconsciência crítica o produto final de um desenvolvimento
psicológico socialmente determinado, e não seu ponto de partida, como as idéias de
Descartes nos levariam a acreditar”.
Pensamos que esses episódios nos dão elementos suficientes para pensar
de modo mais literal a idéia de que a significação se constitui enquanto drama,
enquanto modos de ação num conflito do qual advém relações de subordinação e
predominância na constituição de qualquer enunciado e da própria dinâmica da
personalidade de um conjunto de ações em confronto dentro de uma mesma ação
significativa voltada a interlocutores reais, configurando sistemas de valores, que
para cada pessoa dizem respeito ao conjunto de forças que constitui sua
personalidade. As próprias estruturas lógicas ou os próprios processos psicológicos,
passam a ser vistos e encaminhados como invenções humanas, historicamente
192
situadas, culturalmente valoradas, materialmente amalgamadas à experiência das
pessoas em seus conteúdos ideológicos concretos.
Tais conteúdos não apenas escapam à lógica formal, como também
possibilitam que ela se construa como uma das áreas possíveis do sentido, ou antes
como um dos modos possíveis de sua estabilização. Um modo de estabilização que
nunca poderá ser neutro, mesmo que o artificializemos ao máximo. Mesmo uma
equação matemática de alto grau de abstração tem seu valor estético, ético e
político.
Um bom exemplo são as tão celebradas funções fractais
18
que, operando
com dimensões fracionárias, foram além da geometria euclidiana representando
uma significativa virada paradigmática. Além disso, com o desenvolvimento de
microprocessadores mais velozes, os fractais puderam ter sua representação gráfica
delineada em imagens belas e complexas. Um fractal então não é apenas uma
fórmula abstrata aplicável a inúmeras situações distintas, é também um modo de se
revisitar paradigmas tradicionais a partir de uma nova ótica, tanto quanto um signo
de muitos outros sentidos, de beleza, de caos e de complexidade.
Nenhum signo poderá estar imune aos seus conteúdos, no caso da criança
aprendendo um modo cultural de ordenar as realidades, uma mesma forma lógica já
não é mais a mesma quando realizada numa outra dimensão material vinculada a
outros conteúdos e outra sensibilidade. No caso dos camponeses de uma cultura
mulçumana numa república recém anexada a um sistema socialista, a própria
18
As funções fractais se colocam de modo mais abrangente em comparação com a geometria
euclidiana. Estas funções implicam na geometria fractal, introduzida em 1975 por B. Mandelbrot.
Mandelbrot caracterizou as funções fractais como funções especiais que não são deriváveis em
nenhum ponto. Um objeto fractal, segundo Mandelbrot, é um objeto que apresenta rugosidades que
aparecem em qualquer escala de comprimento e sua estrutura invariante é denominada de
autosimilaridade (Mandelbrot, 1982).
193
compreensão do que se pode deduzir das palavras de alguém não é critério
suficiente para dizer-lhe que elas estejam corretas, muito menos que passem a
assumir tal procedimento como um modo universal para chegarem à verdade sobre
as coisas. Nesse sentido, a materialidade do signo torna-se critério fundamental
para pensarmos a constituição da subjetividade humana. Na medida em que ela só
pode desdobrar-se na palavra com amálgama de experiências, sentidos e
significados, dirigida a alguém num enunciado concreto, e ordenando realidades em
relações intrinsecamente políticas, históricas e culturais.
Carlos Drummond de Andrade (2005) compôs um poema intitulado ”canção
amiga” que foi posteriormente musicado por Milton Nascimento. Pensamos que
preparar uma tal canção onde “todas as mães se reconheçam” seria como que o
próprio ideal estético de uma psicologia concreta ao gosto de Politzer ou de Vigotski
(2000b, pp. 21-44). Falamos demasiado de processos e nossas abstrações acabam
soando vazias, desvinculadas da vida das pessoas. Falamos sobre crianças, mas o
que ali está é muito diferente daquilo que as crianças de fato são em todos os
movimentos significativos que produzem. Falamos sobre homens e mulheres de
carne e osso mas poucos destes se reconheceriam em nossos textos.
Para um homem concreto, que não transite pelo gênero acadêmico, um texto
como o que estou escrevendo neste momento não fala exatamente sobre ele, mas
sobre “signos”, “significados”, “sentidos”, “predicação”, “pragmática” e, diversas
vezes, sobre a “materialidade do signo” como algo que, de algum modo, viria a
contribuir para compreendermos melhor a constituição da subjetividade humana.
Certamente muitos homens e mulheres não irão reconhecer-se no presente
texto. Mesmo quando tudo o que ele pretende dizer é que quando falo com minha
194
esposa-companheira e lhe digo ”te amo”, não estou simplesmente “moldando um
signo material”, ou “constituindo uma palavra de ordem”, mas estou concreta e
redundantemente dizendo que a amo. Tudo o que pretendo fazer é marcar o fato
inegável de que é ali, e exatamente ali, que o “te amo” acontece, quando pronuncio
aquelas palavras, em toda sua concretude e de corpo inteiro. Mas mesmo assim, é
possível que, justo quando nos aproximamos de mover melhor os sentidos da vida,
acabemos criando categorizações, tendendo, por um instante, a congelar as coisas
novamente. Mas como cumprir nossa tarefa sem uma tal sina? Como nos aliarmos
ao poeta, e encaminhar “por uma rua que passa em muitos países”? Talvez a única
saída seja encarar todo o texto como enunciado pronto para ser refeito, recomposto,
em busca de criar novos sentidos, novas situações, novas palavras.
Vigotski (1997a, pp. 398-401) dizia que seria preciso buscar novas palavras
em psicologia, mas falava no sentido de que esta jovem ciência era ainda uma
composição sincrética de palavras da biologia, do senso comum e de outros tantos
saberes, sem configurar um gênero que lhe fosse típico.
Além disso, o que temos chamado de concreto certamente não se refere aos
conceitos piagetianos. “Concreto”, em Vigotski (2000b, pp. 21-44), diz respeito ao
que é socialmente situado e, em última análise, àquilo que é significativo para cada
ser humano socialmente situado. Deste modo, uma psicologia concreta talvez venha
a ser o signo de um discurso que se constrói no diálogo com as pessoas reais,
contribuindo simultaneamente para a produção de novos sentidos para suas vidas e
suas lutas.
Pensamos que a obra vigotskiana continua sendo um paradigma alternativo
em psicologia e uma proposta real para as ciências humanas contemporâneas que
195
estejam compromissadas com os destinos da vida humana sobre o planeta. A
abordagem vigotskiana preserva sua força não só por ser um projeto irrealizado,
mas também por tudo que ela efetivamente é no cenário contemporâneo, e por
todas as pistas que nos dá de sua vocação ético-estética.
Ao abordar as características que envolvem o livro Psicologia da Arte de
Vigotski, Lane e Camargo (1995d, p. 117) argumentam que ele:
Uma parte significativa da obra está voltada para a crítica das teorias
que ele caracteriza como reducionistas ou unilaterais no que se trata
de especificar a função humana e social da arte. Posiciona-se
contrário a definir a arte como conhecimento e reduzi-la a sua função
cognoscitiva. Identifica como intelectualismo unilateral a postura dos
teóricos que reconhecem na arte unicamente o esforço da
inteligência, do pensamento, e que consideram as outras funções
como casuais, acessórios da psicologia da arte.
Toda obra vigotskiana parte de preocupações estético-literárias e acaba
transitando, de algum modo, pela poesia e pela literatura. Além das obras
diretamente dedicadas à análise e crítica literária, enunciados poéticos e metafóricos
são recorrentes em muitos de seus textos, e nos dão fortes indícios de vínculos
intrínsecos entre arte e ciência, enquanto processos sígnicos. O que não apaga seu
compromisso com a composição da vida humana em vias mais igualitárias e que
explorem ao máximo os potenciais daquilo que há de humano no homem. Pelo
contrário, as aspirações estéticas vigotskianas são indissociáveis de um forte
compromisso ético e político.
Nesse diálogo entre arte e vida, parece residir uma vertente importante, na
busca de viabilizarmos uma psicologia concreta, um saber engajado, pulsante,
compromissado.
González Rey destaca esse processo de viabilização de uma psicologia
196
concreta que esteja vinculada à compreensão da subjetividade, pois segundo ele
(2004, p. 133):
a subjetividade representa um sistema aberto, que se expressa de
forma permanente através da ação, seja a de sujeitos individuais ou
a das diferentes instâncias e instituições sociais. Portanto, ela se
caracteriza por seu caráter processual e em nenhum momento
representa um conjunto de entidades estáticas, situadas em uma
essência que atua como determinante dos comportamentos do
sistema.
Ou seja, a contribuição dada também por escritores como Dostoievski, Walt
Whitman, Henry Miller, Machado de Assis ou Clarice Lispector, podem nos
apresentar a ambivalência ou plurivalência da vida humana em todo seu processo
subjetivo. Eles não se ocupam de dissecá-la em esquemas explicativos, nem de
reduzi-la a um discurso monologizante.
Podemos aprender com eles a arte de não domesticar as contradições, para
que enxerguemos a composição do humano como um processo mais vivo. Trata-se
de uma aspiração utópica, de uma tensão entre o desenvolvimento real e potencial
da própria psicologia, mas cabe assumi-la justamente enquanto tal. Outros
paradigmas cercaram-se de equipamentos e sonharam com a psicologia como uma
“física do pensar”, ou então revestiram-se de aventais e luvas e quiseram tornar-se
médicos da alma. Mas o fato de suas aspirações serem irrealizáveis não os impediu
de se constituírem enquanto discursos que inventaram novas e importantes
realidades para a humanidade, como o condicionamento operante ou o complexo de
Édipo.
Uma abordagem vigotskiana não procurou suas bases paradigmáticas na
física nem tampouco na biologia, pelo contrário seu projeto é o de tornar-se uma
197
psicologia humana. Vigotski (2000b, p. 39) parte do que há de humano no homem e
para este lugar é que se projeta, a linguagem, a cultura, a história, o conhecimento,
a brincadeira, as artes, “eis o homem”. Eis a necessidade de um psicologia concreta,
que trate do drama como tal, e que assuma que participa dele como uma de suas
forças em luta, no jogo da composição dos sentidos e de construção da vida. Não se
trata de uma tarefa fácil, as relações entre psicologia, poética e vida não são simples
nem imediatas.
O que escrevemos ou falamos compõe o mundo, mas não o faz senão no
curso de múltiplas e desviantes mediações e transições. Não adiantará substituir um
academicismo cientificista por um outro esteticista. O ato político de produzir novas
palavras é tenso, pois se dá no interior de práticas sociais complexas. Reler,
reescrever, redizer, refazer a palavra e nela a vida e o mundo, não é algo tranqüilo
nem automático, não será tarefa apenas acadêmica, por mais artísticos que nossos
trabalhos possam se tornar.
Sendo assim, um projeto promissor será o de irmos mais a fundo nas lutas
cotidianas de homens e mulheres reais, em suas dores e alegrias, nas suas utopias
e desânimos. Será preciso falar mais sobre e com gente de verdade. Porque o
sentido da vida é certamente mais largo e mais profundo que os significados
teóricos, e provavelmente também mais móvel e movente. É preciso pensarmos
nisto se queremos caminhar na direção de algumas saídas contemporâneas para a
questão da subjetividade enquanto dimensão possível de construção e realização de
utopias coletivas.
E um caminho para esta construção e realização é postulado por González
Rey (2002a, p. 36) ao abordar o processo qualitativo que envolve a subjetividade:
198
A construção da subjetividade é, por definição, um processo
qualitativo, portanto, as definições metodológicas para seu estudo
têm que responder à natureza de sua definição ontológica. O estudo
da subjetividade apresenta uma característica que nenhum sistema,
por complexo que seja, manifesta: a subjetividade se constitui em um
sujeito, cuja ação, por sua vez, é constituída e constituinte do próprio
desenvolvimento do sistema subjetivo. Neste sentido, uma das
exigências que marca profundamente o estudo da subjetividade é
sua forte orientação à singularidade
.
Assim, tornaremos nossas palavras mais eficazes quando seu sentido vital
puder dialogar com a subjetividade da vida humana concreta, refeito então em sua
materialidade, em seus muitos sentidos, vozes, entonações, cores e sabores. Não
que não haja o mundo concreto da academia ou que ele não nos seja constitutivo,
de fato ele não pode deixar de sê-lo.
Talvez tenhamos muito a ganhar quando nos deixarmos contagiar por outras
vozes; e quando estivermos de fato ocupados em fazer com que os outros possam
nos ouvir e dialogar conosco de lugares menos vulneráveis. De fato isto exigiria de
nós um rigor ético-político muito maior do que aquele fácil rigor formal com que
catalogamos nossas referências bibliográficas. Mas talvez também nos
proporcionasse uma alegria muito maior, no sentido que Espinosa (1997a, p. 107)
dá para a palavra alegria, enquanto movimento pela qual nos compomos com o
mundo.
Caberá buscarmos saídas que não sejam de simplificação nem de
reducionismo. Será saudável e desejável construirmos e aprendermos novas
palavras, enquanto vamos tropeçando nelas. E novas palavras serão sempre
citações tanto quanto aquelas que já nos são próprias, pois mesmo estas também
foram novas um dia. O desafio fundamental permanecerá sendo o de torná-las mais
199
belas, tal como Drummond (2005) em sua “canção amiga”:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo segredos
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Tal canção pode ser acolhida como um manifesto a todos aqueles que
trabalham no campo da criação verbal. Por conseguinte, trata-se de um enunciado
que no limite diz respeito a todos os seres humanos. Neste momento, restaria
apenas dizer que seria preciso traduzi-lo como um convite à composição de uma
psicologia concreta, buscando tornar-se algo que ainda não é. Deste modo, o
presente trabalho, como qualquer enunciado, fecha seus contornos procurando
novas réplicas e, lembrando Joyce (2006), “termina na hora de recomeçar”.
200
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