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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE
MESTRADO
PESQUISA E CLÍNICA EM PSICANÁLISE
RENATA NEPOMUCENO BUENO
CONTANDO OS SEGREDOS ATRAVÉS DOS SIGNIFICANTES
Dissertação de Mestrado
RIO DE JANEIRO, JANEIRO DE 2006
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CONTANDO OS SEGREDOS ATRAVÉS DOS SIGNIFICANTES
RENATA NEPOMUCENO BUENO
“Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do
TÍTULO DE MESTRE EM PSICANÁLISE”
Orientador: Marco Antonio Coutinho Jorge
RIO DE JANEIRO, JANEIRO DE 2006
ii
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MÚSICO
Tom Zé
Ligue-se o éden
Som e maçã
Serpentes eternas
Sobem por nossas pernas
Desatam presilhas
de estrelas e sóis
há milhões de milhas
dentro de nós
Cadeia de gens
Somos um trem, ô,ô
Um trem, que tem, que tem, que tem
A ignição de ser
lem porque além disso do
mina, insemina e se co-o-oze em
semem, semem,
semem, semem.
iii
DEDICATÓRIA
A minha mãe Iara Bueno e avós, Myriam e Nair, que através do pólem de
significantes, puderam me inserir numa cadeia cheia de amor, carinho e segurança. A idéia
de que as mulheres podem e devem vencer foi inseminada, e a todo momento, dia-a-dia,
faço valer o que me coube como herança. Fazer parte deste “trem”, repleto de mulheres
fortes e independentes, só me enche de orgulho.
iv
AGRADECIMENTOS
Claudia Passos, só você sabe o quanto foi difícil a elaboração deste trabalho:
pesquisar e, ao mesmo tempo, se deparar com sua própria história transgeracional é “barra
pesada”. Seu carinho, acolhimento e intervenções estão presentes em cada linha escrita
deste trabalho. Obrigada, obrigada, obrigada.
Nelma Martins e Luciana Cerqueira: não tenho palavras! Quantas vezes as
“aluguei” dizendo que não conseguiria cumprir o prazo de entrega? Quantas vezes
desmarquei compromissos dizendo que precisava estudar? Quantas vezes as “atropelei”
com meus segredos nada secretos? Paciência e carinho não têm preço... Obrigada, amigas.
Maria de Nazaré, você é responsável por boa parte de minha elaboração. Agradeço
por me ouvir falar das leituras, dúvidas e questões que surgiram ao longo do processo.
Imagino quantas vezes não deve ter se arrependido em pegar carona comigo: eu não parava
de falar ... Era sempre o mesmo assunto... Segredo, significantes, transmissão... que
cansaço, hein?!
Beatriz Carneiro da Cunha, obrigada pela disposição e sugestões. É difícil achar
alguém que se disponibilize a ler trabalhos “longos” sem reclamar. Do fundo do meu
coração, obrigada.
Maria Regina da Silva Roquette, sua doçura e delicadeza me encantaram. Nosso
contato recente, mas intenso, abriu novos caminhos e perspectivas em minha vida. Nossos
“papos” ao longo do caminho para Carmo têm dado frutos. Obrigada pela atenção e o
cuidado com as dicas, sugestões e críticas para este trabalho.
Leo, o “maridão”: Quantas vezes gritei dizendo que não colocaria seu nome nos
agradecimentos deste trabalho? Certamente inúmeras! Suas demandas de carinho e atenção,
principalmente nos últimos meses, quase me enlouqueceram. Pedir atenção e reclamar de
minhas ausências, no último minuto do segundo tempo, quase foi fatal. Digo quase porque
suas reclamações me faziam sentir querida e amada, apesar de ausente. Alem disso, me
davam sinal de que haveria “vida” após a defesa ... obrigada, amor.
v
Agradeço também à direção do CAPS Vila Jurandir, que compreendeu a
importância do mestrado em minha vida e, generosamente, me liberou por três meses. Esse
tempo foi fundamental para a efetivação do trabalho.
Agradeço a todos aqueles que estiveram e estão sob meus cuidados. Sem vocês as
leituras se tornariam opacas, sem vida e sem sentido. Obrigada pelo aprendizado diário.
E por último agradeço a Deus, que me fortalece e permanece presente nos
momentos mais difíceis. Sem Ele, sem chance!
vi
RESUMO
O presente trabalho tem como foco a transmissão psíquica inconsciente. Na prática
clínica, encontramos diversos casos em que crianças apresentam intenso sofrimento
psíquico cuja origem está associada a “segredos” familiares ou a um mandato inconsciente,
dos pais aos filhos, de se calar diante de “certos assuntos” indesejáveis. Estes segredos já
são conhecidos e os mandatos inconscientes são entendidos e acatados pelas crianças
também inconscientemente, havendo uma espécie de transmissão psíquica inconsciente.
Para abordar o mecanismo psíquico em jogo nessa transmissão recorro às técnicas
freudianas e lacanianas, e descrevo duas hipóteses embrionárias: a transmissão psíquica
inconsciente através dos significantes presentes na linguagem assim como no corpo do
sujeito.
Palavras-chave: Segredo - Transmissão - Inconsciente - Significante
vii
SUMMARY
This work focuses the unconscious psychic transmittal. A number of cases in which
children show intense psychic pain associated in its origin with either family secrets or an
unconscious command from parents to their children to shut up, due to some undesirable
issues, can be found in clinical practice. Both the secrets and the commands are known,
understood and accepted uncounsciously by kids as well, generating some sort of
unconscious psychic transmittal.
In order to go over the psychic mechanism in this transmission. I have made use of
both Freud’s and Lacan’s technics and I describe here two growing hypotheses: the
unconscious psychic transmittal through the significants ( or meanings ) in both the spoken
language or the body language of the person.
Key words: secret – transmittal – unconscious – significant
viii
SUMÁRIO
Contando os segredos através dos significantes
Introdução, 1
Capítulo 1: O segredo familiar e suas conseqüências psíquicas na infância, 4
1.1. O “direito ao segredo”, 4
1.2. O “barulho ensurdecedor dos segredos”, 6
1.3. O mecanismo psíquico diante da impossibilidade de falar, 10
Capítulo 2: Vida Pessoal e Ciência, 22
2.1. Os “segredinhos” de Freud, 22
2.2. Freud e o oculto, 25
2.3. As ambivalências de Freud, 31
Capítulo 3: Da transmissão de Pensamentos à transmissão de significantes. O que Freud e
Lacan têm a dizer, 37
3.1. Contando sem saber,37
3.2. O que conto sem saber?, 42
3.3. Afinal, como conto sem saber?, 47
3.4. O significante, a repetição e a transmissão, 56
Capítulo 4: Contando os segredos, 70
4.1. A transmissão transgeracional através da identificação: uma outra
perspectiva,70
4.2.Contando os segredos através da linguagem na vida cotidiana, 74
4.3. Contando os segredos através do próprio corpo, 81
4.4. O início: o corpo da mãe como “baú” de significantes, 90
Ainda, por concluir, 96
INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto de meu encontro, ainda no estágio básico da graduação
1
, com
Elena Maria Rodrigues Valle Milman (Lulli)
2
. Foi ela quem me apresentou aos textos de
Françoise Dolto. A junção deste encontro, com Lulli e Dolto, fizeram toda a diferença em
minha vida. A cada discussão de textos, meu interesse pelo atendimento de crianças ia
aumentando cada vez mais; contudo, com o passar do tempo, “ouvia” Dolto repetir algumas
histórias de casos clínicos cuja origem do sintoma era algo ligado a um segredo familiar.
Isso chamou minha atenção: algumas crianças desenvolviam sintomas como
denúncia do segredo ou como forma de demonstrar que algo não ia bem dentro de casa.
Fiquei fascinada pelo assunto e, então, minha monografia de final de curso de psicologia foi
justamente sobre as conseqüências psíquicas de um segredo familiar na infância. O título
foi: Um segredo... um sintoma...um Sofrer: as conseqüências psíquicas do segredo familiar
na infância. Na época, meu entusiasmo era grande e notório. Uma amiga havia iniciado um
atendimento no SPA
3
, e a queixa dos pais em relação à criança era relativa a problemas de
aprendizagem, mas havia um segredo de adoção por de trás de tudo. Automaticamente, esta
amiga passou o caso para mim: além das leituras de Dolto, tive a oportunidade de atender
clinicamente um caso que envolvia um segredo familiar.
Depois de formada, restavam-me algumas questões: como explicar o aparecimento
de sintomas nas crianças por conta de um não-dito? Que mecanismo psíquico era esse que
fazia com que algumas crianças e adolescentes apresentassem um sofrimento psíquico
diante da impossibilidade de verbalizar o que, inconscientemente, já sabiam? As leituras de
Dolto não davam conta desta questão. Outro ponto - e este de fato me “mordia” todo o
tempo -, era para mim um total mistério: como os segredos, ou mesmo um mandato
1
Cursei a faculdade de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e
1998.
2
Supervisora da Clínica Infantil do Serviço de Psicologia Aplicada da UERJ e psicanalista do Círculo
Psicanalítico do Rio de Janeiro.
3
SPA – Serviço de Psicologia Aplicada – UERJ.
inconsciente de não saber, de calar diante de certos assuntos, eram transmitidos dos pais
para os filhos?
Diante de minha inquietude, resolvi cursar uma especialização de base lacaniana
4
.
Foi neste espaço que iniciei meu contato com Lacan: leituras difíceis, árduas e que exigem
muita dedicação e coragem... coragem para não desistir diante da tarefa de se perceber
completamente ignorante diante de um mundo a conhecer. Foi neste período que comecei a
“descobrir os significantes” e foram eles que me acenaram para uma pesquisa voltada à
linguagem, à transmissão inconsciente. Durante um ano de “namoro com Lacan e os
significantes”, consegui rascunhar minha monografia de final de curso com o título A arte
de ouvir e a ausência de comunicação entre os sujeitos. Minhas perguntas ainda estavam
sem respostas e um “bichinho” dentro de mim não me deixava em paz, não cansava de me
perguntar: mas como esse não dito é imposto inconscientemente? Como os segredos são
transmitidos sem, por vezes, nada ter sido dito a criança sobre o assunto? Inquietude que
não cessa... Aqui estou eu no mestrado.
Durante estes dois anos, minhas leituras se intensificaram. Minha esperança de me
livrar do “bichinho” da inquietude foi por água abaixo. A cada leitura, uma nova pergunta;
a cada pergunta novos textos, novas questões. Hoje, relendo meu trabalho de qualificação,
especialmente o que havia colocado como meta de pesquisa, percebo minha ingenuidade.
Pretendia fazer uma “varredura na obra de Dolto”, pretendia responder a outras perguntas
que se faziam presentes e tão urgentes diante do mundo que Lacan vinha me mostrando.
Queria abraçar o mundo com as pernas... Definitivamente estava imersa no mundo da
ingenuidade... Aos poucos fui percebendo que o tempo de elaboração é completamente
diferente do tempo cronológico. A leitura, sua compreensão num só depois, requer tempo e
maturidade para saber esperar e não dar ouvidos à ansiedade adolescente que grita dentro
da gente: a ansiedade de querer aprender tudo na mesma hora. Minha questão não foi
respondida.
Chego perto de algumas hipóteses como a transmissão de significantes e outras que
necessitam de muita leitura e reflexões futuras. Mas, além desta questão central, outra se
fez presente: quais os efeitos da transmissão de significantes dentro do setting analítico
4
Também realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2002.
privado e fora dele, por exemplo, em instituições como CAPS, hospitais-dia etc? Apesar de,
no exame de qualificação, ter me comprometido a elaborar um capítulo sobre tais questões,
rendo-me aqui à exaustão, à noção de que, para isso, necessito de outro espaço, de outro
tempo... Elaboração à parte, preciso cumprir prazos reais, o que me força a deixar
registrado neste trabalho, não minhas conclusões, mas novas questões a serem
pesquisadas... O “bichinho” da inquietude parece não me largar mais...
Com a ajuda de Freud, Lacan e outros autores, o tema em questão foi dividido em
quatro capítulos. O primeiro diz respeito às conseqüências psíquicas na infância diante de
um segredo familiar e, também, o que consegui apreender dos ensinamentos de Miriam
Rosa
5
, em relação ao mecanismo psíquico da gênese de tais sintomas. O segundo capítulo
refere-se à história de vida de Freud quanto a seu interesse pela telepatia, que o levou, como
veremos, ao tema da transmissão de pensamentos. O terceiro capítulo gira em torno da
questão da transmissão de pensamentos e da transmissão de significantes. Este e o último
capítulo são os principais deste trabalho. No quarto, levanto algumas hipóteses quanto à
transmissão de significantes através do corpo do sujeito e através da linguagem.
5
Miriam Rosa é psicanalista, doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora da
Faculdade de Psicologia desta instituição e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
CAPÍTULO 1
O SEGREDO FAMILIAR E SUAS CONSEQUÊNCIAS PSÍQUICAS NA
INFÂNCIA
Neste capítulo inicial apresento minhas pesquisas sobre o aparecimento, em
crianças, de sintomas decorrentes da impossibilidade de se tomar ciência de um segredo
familiar, que inconscientemente, já é sabido. Apresento três casos clínicos e a visão de
alguns autores sobre o tema em questão.
1.1. “O direito ao segredo”
6
Antes da apresentação dos casos clínicos seria interessante entender melhor a
origem da palavra segredo. Segundo Jean Florence (1999), a palavra deriva do latim
secretu que significa um lugar “à parte, pensamento ou acontecimento que não deve ser
revelado, mistérios (de um culto religioso). Secretus, o adjetivo, significa solitário,
separado, isolado, recluso, dissimulado e raro”
7
. A palavra também pode designar, por
eufemismo, certas coisas ou atividades como as partes sexuais (chamadas segredo), e as
necessidades fisiológicas. É no século XVI que a palavra assume um valor psicológico, ou
seja, quando se aplica à interioridade da pessoa. O segredo passa a designar a vida íntima e
não revelada de alguém. Jean Florence nos dá alguns exemplos de expressões que parecem
dar testemunho desta acepção: “os segredos do coração”, “ter o segredo de alguém”,
“confiar um segredo”, “fazer parte do segredo”. No século XVII, referia-se ao segredo
como forma de expressar, divertidamente, que se havia soltado um peido discreto. Podia,
ainda, designar um meio, processo, método ou técnica que devem tornar-se objeto de
ensinamento particular, isto é, segredos de fabricação, segredo industrial.
6
AULAGNIER,P. “O direito ao segredo: condição para poder pensar”, p.557.
7
FLORENCE,J. “A propósito do segredo”, p.163.
O psicólogo Yves de la Taille (1996), preocupa-se em assinalar a importância do
segredo na vida psíquica tanto do adulto, quanto da criança. Afirma que, desde a infância,
nos ocupamos em tentar controlar a imagem e a informação que dizem respeito ao eu.
Tentamos controlar o acesso de outrem às diversas informações que dizem respeito ao
nosso eu. Esse controle, diz o autor, pode ser feito através da posse de segredos,
confidenciando-os a algumas pessoas e os escondendo de outras: o segredo tem um valor de
“interioridade”, de auto-conhecimento, um encontro conosco. Entretanto, pontua que o
essencial no segredo é o que ele possibilita ao sujeito - a harmonia de sua relação com
outrem: “De um lado, o segredo nos afirma, separando-nos de outro, sua revelação a
outrem marca o acesso a uma intimidade estreita”
8
. O autor, juntamente com Jean Florence,
já citado, e João A. Frayze Pereira, 1990
9
, mencionam Piera Aulagnier ao discursarem
sobre (o que também acredito ser imprescindível entender) a necessidade da existência do
segredo na vida psíquica do sujeito. Não pretendo defender o “culto a verdade a todo
custo”. Há uma diferença entre segredos e segredos, ou melhor, como se lida com o que é
secreto e Aulagnier escreve com bastante propriedade sobre a presença do segredo na vida
do sujeito como condição para pensar.
Quando a criança descobre que seus pais mentem faz-se presente uma marca
significativa. A descoberta desta mentira abre uma porta: a criança também pode mentir, o
que significa poder esconder do Outro parte de seus pensamentos. Ela passa a ter liberdade
para pensar o que o Outro não sabe e o que ele não gostaria que se pensasse
10
. A
possibilidade de se ter um segredo, de não dizer tudo, liberta o sujeito de um estado de
escravidão absoluta que o transformaria em um robô falante. Ter um segredo,
conscientemente, isto é, poder escolher expor seus pensamentos a outra pessoa ou guardá-
los secretamente, é condição para pensar.
O eu não pode se esquivar do “trabalho” de ter que pensar, de ter que duvidar do
pensamento, de ter que verificá-lo. Este é o preço que se paga pelo direito de cidadania no
campo social e pela sua participação na aventura cultural. O eu aprendeu que “pensar” é um
trabalho necessário, que envolve fontes de desprazer, não lhe dá sossego e cujas
8
TAILLE, Y. “A gênese da noção de segredo na criança”, p.246.
9
PEREIRA, J.A.F. “Áreas secretas – uma questão da modernidade”, p.109.
10
AULAGNIER, P. “O direito ao Segredo: condição para poder pensar”, p.268.
conseqüências ele não pode pré-dizer. Para que essa atividade se mantenha, há uma
condição (que não é a única): a possibilidade do eu “gozar de momentos de prazer solitário
que não caiam sob o golpe da interdição, do erro, da culpa.”
11
Dentro da neurose, a
atividade de pensar só pode ser concebida por troca de prazer conquistado pelo eu através
do pensamento secreto que o diferencia e o protege do Outro – um pensar que não é
simples repetição de um “já pensado”. Afirma Aulagnier:
“Isso pressupõe que o sujeito goze de uma liberdade de pensamento que comporta
também a liberdade de manter secretos certos pensamentos, não por vergonha,
culpa ou medo, mas simplesmente porque confirmam para o sujeito o direito a esta
parte de autonomia psíquica cuja preservação lhe é vital”
12
.
Assim, a existência do segredo, de algo particular, é fundamental à estrutura
psíquica do sujeito e é uma condição para pensar. No entanto, há nuances em relação à
forma como o segredo se faz presente. Uma coisa é escolher não comunicar algo a alguém,
outra coisa é se ver obrigado a não verbalizá-lo.
Existem os segredos mantidos voluntariamente como secretos e os segredos
inconscientes, os quais ignora-se ser detentor ou depositário. Jean Florence, 1999, chama
atenção para o que encontramos na prática analítica. Comenta o quanto podemos observar
na psicose a invasão do Outro e a necessidade em constituir algo secreto, protegido deste
Outro avassalador. A neurose nos mostra os efeitos negativos dos segredos familiares sobre
a vida do sujeito. Escreve o autor:
A experiência analítica convida-nos ainda a considerar dois aspectos
fundamentais do segredo: a psicose leva ao reconhecimento da necessidade vital
de um sujeito constituir uma parte secreta, protegida do outro onipotente, isso
conduz a uma reflexão fundamental quanto à função do recalque primário. A
neurose convida a levar em conta os efeitos negativos de certos segredos ligados
ao romance familiar ou às realidades traumáticas da vida em família”
13
E é justamente os aspectos negativos do segredo, sem desconhecer o
positivo, que pretendo destacar nos dois próximos sub-tópicos deste primeiro
capítulo.
11
Idem, p.271.
12
Idem, p.274.
13
FLORENCE, J. “A propósito do segredo”, p.166.
1.2. “O barulho ensurdecedor dos segredos”
14
Alguns segredos causam “estragos”, isto é, trazem consigo o horror do impedimento
à fala. Registro aqui três casos clínicos representando o sofrimento psíquico infantil
diante de um mandato inconsciente de calar, frente a um segredo familiar.
Thomas Cottle (1993), em seu livro “O segredo na Infância”, descreve inúmeras
histórias que registram o sofrimento diante de um segredo familiar. Uma dessas
histórias diz respeito a um rapaz de dezesseis anos chamado Joe Cross. O adolescente é
descrito como um jovem “revoltado”. Joe era fixado em “musculação”. Vivia em
academias, sabia todos os nomes de anabolizantes, os tipos de exercícios e os músculos
a serem trabalhados. Contudo, comenta o autor: “a musculação era mais que um hobby,
era a desculpa inevitável para Joe não ter tempo para estudar, fazer amigos ou
freqüentar lugares”
15
. Ao longo do relato de inúmeros encontros entre o rapaz e Cottle,
todo um leque de sofrimento vai se abrindo deixando escapar o que atormenta Joe. Este
revela a Cottle que seu pai é homossexual e que este segredo o atormenta diariamente.
Sua mãe lhe contou que o pai freqüenta bares gays, mas que “fora isso”, ele era um cara
legal. Fala da tortura de conviver com este segredo e o quanto vem se sentindo confuso
e que, por vezes, parece enlouquecer. Diz Joe: “... E então, cuido muito bem do meu
corpo, pois assim não tenho que ficar pensando na outra coisa. Talvez o meu corpo
esteja me impedindo de pensar sobre todas aquelas outras coisas que, dentro da minha
cabeça, já não soam mais como segredo
16
. Por não poder verbalizar, falar livremente
sobre o assunto, dentro de casa ou fora dela, Joe se enclausura dentro de seu próprio
corpo, não mantendo amigos, sem estudar, sem poder prosseguir e viver sua própria
vida.
Peggy Papp (1994), nos traz um caso clínico que ilustra com propriedade não só as
conseqüências psíquicas sobre o sujeito diante de um não-dito familiar, como também
sua transmissão inconsciente. Conta a história de uma mãe que procura ajuda
14
Subtítulo retirado da frase original do livro de Thomas Cottle intitulado O segredo na Infância: “Como é
ensurdecedor o barulho dos segredos silenciosos!”, p.109.
15
COTTLE, T.J. O segredo na infância, p.228.
16
Idem, p.232.
psicológica para seu filho, Rick, de vinte e um anos. Rick havia perdido o pai há dois
anos. Ele tinha uma irmã que também sofrera com a morte deste pai, mas, assim como
sua mãe, continuou a “tocar sua vida”. Rick, mesmo antes da morte do pai, não
conseguia sair de casa. Havia se matriculado em diversas universidades, mas trancava a
matrícula, abandonava o curso ou nem chegava a ir a primeira aula. Recusava-se a
trabalhar e não tinha muitos amigos. Em uma das sessões com a mãe
17
, Rick foi
questionado sobre o motivo de se matricular nas universidades, pois ele mesmo já sabia
não ter a intenção de prosseguir com os estudos, responde: “Fiz o que ela pediu, mas
não estava interessado em ir àqueles lugares”
18
.
Uma estratégia montada pelo terapeuta, a mãe e o filho
19
foi a de ajudar Rick a ir
morar sozinho. Quando a mãe do rapaz foi questionada a respeito, ela afirmou que não
tinha certeza se realmente iria agüentar a saída do filho. Passou, então, a verbalizar a
história de seu irmão Jim, que escondeu de seus filhos durante todo esse tempo. Jim, tio
de Rick, era esquizofrênico. Ficara em diversas instituições psiquiátricas, morou na casa
de vários parentes. Sempre era expulso por conta do trabalho e confusões que arrumava,
até que a mãe de Rick o acolhera em sua própria casa, quando os filhos eram
pequeninos. Contudo Jim interferia demasiado em suas vidas, quando, então, ela
decidiu mandá-lo embora. Logo depois, Jim suicidou-se. “Senti-me responsável. Acho
que jamais poderia mandar alguém embora novamente. É simplesmente isto. Não quero
mais levar algo assim comigo pelo resto de minha vida”
20
, disse a mãe de Rick. A saída
de Rick de casa era carregada de culpa e arrependimento, e, ainda, equivalente à morte.
Apesar de incentivar o filho a ter sua própria vida, a mensagem transmitida era
contrária. Rick respondia permanecendo em casa, sem andar com suas próprias pernas;
sua mãe, inconscientemente não lhe permitia ir:
“... seu temor (da mãe) de cometer o mesmo erro duas vezes prejudicava,
continuamente, suas intenções conscientes de dar a Rick uma mensagem firme e a
fazia hesitar nos momentos críticos. Rick respondia a esta hesitação sinalizando
17
É realizada uma terapia de família.
18
PAPP, P. “O Caruncho no Broto: segredos entre pais e filhos”, p.89.
19
Resguardo-me descrever o caso e a conduta tal como são descrito pelo autor, pois o que realmente é de meu
interesse é o conteúdo do segredo e suas conseqüências, e não fazer qualquer análise ou julgamento sobre a
técnica e a linha teórica utilizadas na terapêutica em questão.
20
PAPP, P. “O caruncho no broto: segredos entre pais e filhos”, p.89.
que não poderia funcionar por conta própria, e a mãe então preocupava-se com o
bem estar físico do filho”
21
Ao saber de toda a história, não só Rick, mas também sua irmã, a palavra pôde
circular livremente dentro da família. A mãe de Rick finalmente, pôde separar as duas
histórias: a de Jim e a de seu filho, liberando-o à sorte de seu próprio destino.
Como terceiro e último exemplo deste item, relato o que ocorreu em uma das tardes
de trabalho da Casa da Árvore da Ilha da Conceição, em Niterói, da qual faço parte. A Casa
da Árvore é um projeto
22
pioneiro no Brasil, que visa a prevenir problemas ligados à
socialização e à violência de crianças em situação de risco. Nosso trabalho tem como base o
modelo criado por Françoise Dolto, na França´, há mais de 25 anos. Costumamos dizer que
na Casa da Árvore não se fala de crianças, mas com crianças. Nosso trabalho é pautado na
palavra, articulando as vivências trazidas pelos pais e pelas próprias crianças. Dessa forma,
fazemos com que a palavra possa circular e, com ela, o desenlace das dificuldades surgidas.
Eis o caso clínico: Rebeca, mãe de Caio e Bárbara, chega à Casa da Árvore pela primeira
vez com seus filhos. Caio tem por volta dos nove meses e Bárbara, entre seis e sete anos de
idade. Rebeca, durante a conversa, comenta que Bárbara não é sua filha biológica. Rebeca
fala de suas dúvidas e ansiedades. Afirma que não sabe o que fazer. Bárbara é filha de seu
ex-noivo com outra mulher. Atualmente, Rebeca é casada e tem um filho, Caio, com o atual
marido. Por isso eles são tão diferentes fisicamente. “Tenho medo de contar e ela ficar com
raiva de mim, me abandonar ou crescer revoltada”, comenta Rebeca. Afirma que já tentou
falar com Bárbara, mas “todas as vezes que me aproximo dela para falar do assunto ela se
afasta. Parece, até, que ela já sabe e acaba desviando o assunto. Como não sei o que fazer,
acabo deixando para lá”. Além disso, Rebeca queixa-se da dispersão de Bárbara. Diz que a
filha não presta atenção “nas coisas”, é “avoada demais”, inclusive na escola.
Pontuo o quanto deve ser angustiante guardar um segredo que, na verdade, não é
secreto, isto é, este segredo já é conhecido inconscientemente. Afirmo que Bárbara já deve
saber, mas que seria necessário conversar com ela, pôr em palavras o que sentia sobre o
assunto. Falar que, de fato, nada mudaria, que seu amor por ela era o mesmo. Conversamos
21
Idem, p.89.
22
Projeto do Instituto de Psicologia e sub-reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), coordenado por Elena Maria Rodrigues Valle Milman.
sobre o direito de Bárbara saber sobre sua origem, a importância de poder falar livremente
sobre sua própria história - isso fazia toda a diferença. Conversamos, também, sobre a
relação de mãe e filha que ambas construíram durante estes anos. A importância desta
relação certamente era sentida também pela filha. Outro ponto foi bastante discutido: os
medos de Rebeca diante da revelação e de que suas fantasias sobre a suposta raiva ou
abandono que sofreria por parte da filha se realizassem.
Semanas depois, Rebeca volta à Casa da Árvore pela segunda vez. Afirma que
estava muito feliz, pois havia contado toda a verdade a Bárbara. “Tirei um peso das minhas
costas. Foi ótimo, sentei com ela e expliquei tudo. Ela perguntou sobre a outra mãe e
contou para o pai que agora tinha duas mamães”. Discutir sobre o assunto ajudou-a a tomar
uma decisão importante para ela e para toda a família.
1.3. O mecanismo psíquico diante da impossibilidade de falar
Françoise Dolto refere-se à criança em sofrimento psíquico como aquela que
encarna e presentifica as conseqüências de um conflito familiar ou conjugal. A criança
acaba mostrando, inconscientemente, as tensões vividas pelos pais e este fato é mais
intenso quando há uma imposição ao silêncio: “é a criança que suporta, inconscientemente,
o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional sexual inconsciente em ação nos
pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tanto mais intenso quanto mais se guarda, ao
seu redor, o silêncio e o segredo”
23
. O sintoma representa, muitas vezes, a expressão de
conflitos inconscientes parentais, principalmente durante o momento em que o mundo da
criança está, ainda, limitado ao do adulto nutriz:
“Quantas desordens orgânicas do lactante e da criança de tenra idade são a
expressão dos conflitos psicoativos da mãe, sendo estes devido sobretudo à
neurose materna, isto é, específica da sua evolução perturbada pré-marital ou à
neurose do pai, que perpetua o equilíbrio emocional da criança pelas experiências
emocionais sofridas pelo próprio pai e às quais ele submete diariamente sua
mulher, mãe da criança”.
24
Dolto afirma que uma experiência pode tornar-se patológica não pelo que é vivido,
mas pelo valor simbólico percebido. Esse valor simbólico depende, em grande parte, das
23
DOLTO, F. “Prefácio”, p.13.
24
Idem, p.14.
palavras ou da ausência destas sobre o acontecido. A ausência de palavras ou a palavra
mentirosa proferida pelo adulto não integra o mundo real com aquilo que é percebido e
sentido pela criança. Segundo ela, é um engano achar que se pode ocultar algo das crianças.
Quando alguma coisa não vai bem no triângulo familiar, a criança já sabe
inconscientemente e acaba sendo induzida, diz Dolto, a assumir um papel dinâmico
complementar regulador do equilíbrio familiar. E é isso que é patológico. Não se colocam
palavras verdadeiras na situação vivida de sofrimento.
Casos de morte, acidentes, separações, crises, tudo isso quando a criança é
envolvida e não lhe permitem falar, isto é, quando lhe é interditada a divulgação e
conseqüente verbalização dos fatos, a criança sofre, pois não lhe permitem “se reconhecer
ou conhecer a verdade que ela percebe de maneira muito sutil e cujas palavras justas, para
traduzir a sua experiência com eles compartilhada, ao lhe faltarem, levam-na a sentir-se
estranha, objeto de um mal-estar mágico, desumanizante”
25
.
Thomas Cottle parece concordar com Dolto ao afirmar que um segredo familiar
pode se tornar potencialmente traumático quando o assunto não é permitido ser
transformado em palavras. Afirma que, ao se calar, corre-se o risco de “perder” os afetos,
de se tornar algo inconsciente, tornando-se venenoso para o sujeito, contaminando as
percepções, emoções, pensamentos e comportamentos. É preciso falar sobre o que se passa,
sobre o que “pesa” no ser. Explica:
“Quando a pessoa consegue falar sobre a experiência, diminuem sensivelmente as
possibilidades de que esta venha a se tornar o agente de um trauma. Virando este
pensamento ao contrário, podemos colocar o seguinte argumento: exigir que um
fato potencialmente grave, como a descoberta de que se tem uma mãe
ninfomaníaca, seja mantido em segredo leva o fato com o qual está lidando o
portador do segredo a tornar-se um fato potencialmente traumático. Isto é, se a
experiência não provoca suficiente dano psicológico, a existência do segredo é
capaz de gerá-lo”
26
.
Cottle acrescenta que não se pode afirmar que isto seja uma regra, mas certos
problemas familiares mantidos em segredo, isto é, sem a circulação de palavras, é algo que
equivale a “traumatizar a criança”
27
.
25
Idem, p.17.
26
COTTLE, T. J. O segredo na Infância, p.348. O grifo é meu.
27
Idem, p.348
Como vimos, Dolto enfatiza a importância de se dizer a verdade à criança, pois a
sinceridade toca o sujeito, o humaniza. Não é qualquer palavra, qualquer dito, mas aquele
que reconhece o sujeito diante de quem fala. Amina Maggi Piccini (1986), em seu texto “A
criança que ‘não’ sabia que era adotiva” expressa a importância do efeito, sobre a criança,
das palavras “certas”, isto é, palavras carregadas de afeto e de segurança por parte dos pais,
no momento de se contar sobre a adoção. Um dos pontos relevantes da discussão levantada
pela autora é a importância de não forçar os pais a confessarem aos filhos que são adotados.
Afirma que cada sujeito sabe o melhor momento e como se sentem a respeito. Não se trata
de contar pelo simples fato de informar. Se os pais não estão seguros e não conseguiram
elaborar o assunto para si mesmos, certamente não “obterão sucesso” ao contar a seu filho
toda a verdade sobre a adoção. Afirma: “Achando-se obrigado a falar sem estar
convencido, dificilmente conseguirá favorecer no ouvinte a elaboração daquilo que ele
próprio não elaborou”
28
. O contrário também pode ser observado. Quando as crianças
adotivas recebem as respostas às suas perguntas de forma sincera, firme, afetuosa abrem-se
as portas para um convívio mais seguro e saudável. Afirma: “Se quem assim informa o
fizer com sinceridade, segurança, empatia e afeto, provando a cada instante quanto é feliz
de tê-lo ao lado, possibilitará que a criança se sinta seguramente aceita e inserida, com
bases sólidas, na nova família”
29
.
Outro ponto importante e equivalente às idéias de Dolto: Amina comenta alguns
casos cujos pais contradizem a criança, quando esta “captou por intuição” que é adotada.
Perceber o não dito, por intuição, afirma a autora, e ter os pais diante de si tentando
convencê-la do contrário, isto faz com que esta criança torne-se confusa. Há uma
contradição entre aquilo que ela sente e percebe como real e aquilo que seus pais lhe dizem.
Outro ponto que pode causar sérios danos ao desenvolvimento infantil é o fato de a criança
perceber que determinados conhecimentos são proibidos. Há, aí, um mandato inconsciente
dos pais acatado pelos filhos: um mandato de calar sobre o que se sabe. Diz Dolto:
“A terapia dos filhos nos ensina que, consciente ou inconscientemente, eles sabem
tudo de sua história, e que apenas o não-dito, o mutismo dos terapeutas e dos pais,
não os autoriza a tomar a consciência dela. O não-dito, as lacunas na história
28
PICCINI, A. M. “A Criança que ‘não sabia’ que era adotiva”, p.118.
29
Idem, p.118.
pessoal engendram graves traumatismos, que muitas vezes são a base de neuroses,
até de psicoses, dessas crianças”
30
Dolto entende que os distúrbios infantis são transmitidos, não só dos pais para os
filhos, mas também de geração a geração. Comenta:
“As descobertas clínicas psicanalíticas impõem a compreensão dinâmica dos
distúrbios infantis pela análise das dificuldades encadeadas que remontam às
carências, na estruturação edipiana, não dos pais, mas dos avós e, às veze, dos
bisavós. Não se trata de hereditariedade (senão a psicanálise não modificaria as
coisas), mas de uma neurose familiar ...”
31
Pais e filhos de tenra idade participam dinamicamente de forma indissociada de
ressonâncias libidinais inconscientes. Dolto nos deixa a lição de que a palavra deve
circular, mas como dito não é qualquer palavra e sim a palavra verdadeira, cheia de afetos e
enunciações. O sintoma diante do segredo é conseqüência do não-dito, da não circulação de
palavras. Isso é o que pode fazer adoecer. A pessoa só é liberada de seu sintoma se o que
sente for transformado em palavras
32
, em palavras verdadeiras.
Lanço mão do brilhante trabalho de Miriam Debieux Rosa (2000), a respeito da
articulação entre o não-dito sobre a história do sujeito e o sintoma apresentado como
motivo para a procura de análise. Miriam Rosa discursa, com muita propriedade, e explica
com clareza o mecanismo psíquico que leva ao embotamento afetivo intelectual diante da
impossibilidade de falar sobre algo que diz respeito ao sujeito. A meu ver, os autores aqui
mencionados apontam para o efeito sintomático apresentado pela criança diante da
impossibilidade de falar, diante de um não-dito, e associam tal sofrimento psíquico à não
circulação de palavras. Mas é Miriam Rosa quem destrincha o mecanismo psíquico que
leva a tais sintomas.
Menciona um caso clínico como exemplo do que está propondo como investigação.
Ela atende uma criança em um ambulatório de saúde pública e ao ser chamada para uma
entrevista, a mãe leva a criança consigo. Esta, dentro da sala junto com a analista e a mãe,
presenciou toda a conversa realizada. Durante a sessão, a mãe conta que o filho era
30
DOLTO,F. “Da Adoção”, p.88. O grifo é meu.
31
DOLTO,F. “Prefácio”, p.23.
32
DOLTO,F. Tudo é linguagem, p.95.
adotado, pois a mãe “biológica” morrera louca após algumas internações. O curioso é que a
mãe adotiva afirmou que o filho não tinha conhecimento de tal fato. Mas como não sabia,
se o menino estava presente enquanto a história era contada? A mãe comenta que já havia
contado a vizinhos e parentes, também na presença do filho, mas julgava que este estivesse
“distraído” o suficiente para não se ligar ao que havia sido dito.
Atenção para a queixa apresentada: medos, dispersão e desinteresse pelas tarefas
escolares. Segundo Miriam Rosa, a criança, de fato, parecia desconhecer a história relatada:
“Ao atender a criança, esta realmente não demonstrava indícios de saber da adoção e dos
problemas de sua mãe de sangue. No entanto, os seus desenhos e histórias que inventava
eram alusões quase diretas aos fatos excluídos do seu relato verbal”
33
. A criança não sabe
de algo, que já ouviu diversas vezes. O sintoma é atravessado pelo não-dito dos pais, na
verdade é atravessado por um mandato inconsciente de calar e não saber.
Neste caso, torna-se necessário observar o discurso do Outro que atravessa a
criança, discurso esse que se faz presente através do não-dito dos pais. Há uma necessidade
de se articular o que é da constituição do sujeito e o discurso aqui mencionado.
Da análise subjetiva (sua constituição): supomos que a análise com crianças
“conduz à produção de significações sustentadas pela cena fantasmática”
34
. Esta cena se
constitui como a matriz imaginária do sujeito, pela relação deste com o objeto do desejo
e seu lugar nesta relação. Será através disto que o sujeito irá buscar uma realidade que o
sustente. Entretanto, depara-se com algo que se perde. A relação com o objeto não é
completa, falta. Tudo é regulado pela linguagem, que não tem a verdade toda. Essa falta
de uma realidade que sustenta sua posição não “prende” o sujeito a um só destino,
supostamente completo e único. Abre a possibilidade para outros destinos.
Do discurso (não-dito): a hipótese levantada é que o sintoma apresentado
pela criança é conseqüência de uma distorção, supressão ou interdição de significantes
fundamentais que impeçam a articulação entre significante e produção de sentido.
Quando isto ocorre, presenciamos um efeito de constituição da subjetividade. Desta
forma, certos não ditos acabam por bloquear a articulação do significante. No lugar
33
Rosa, M.D., “O não dito como operador na clínica com crianças e adolescentes”, p. 98.
34
Idem, p. 99-100.
deste significante, “instala-se” uma única versão como verdade. Só há uma
possibilidade, uma verdade. Ao invés de significantes, temos um significado que
sintetiza o ser da criança. Ela está impedida de articular seus saberes, expressando-os
através dos sintomas.
Miriam Debieux Rosa segue seu texto pontuando o poder das palavras. Aponta para
alguns elementos deste poder: o importante não é o que, de fato, é proferido em palavras,
mas sim a posição de quem fala perante o ouvinte e a enunciação que está presente. O que
fala é a posição assumida no ato mesmo de falar. Explica:
“...os enunciados não valem por si, pelo explícito, pelo fato relatado em si, mas
pela enunciação concomitante e pelo posicionamento do falante. A decorrência é
que enunciar supõe a implicação do sujeito frente ao objeto; mais do que o
conteúdo do dito é esta posição que fala – a isto Lacan se refere quando diz um
discurso sem palavras”.
35
Nomear os objetos é o que permite a estruturação da própria realidade. É aí que
intervém a relação simbólica: se a relação fosse pautada no narcisismo os objetos seriam
percebidos de forma instantânea, não haveria uma ligação, um acordo entre dois. Nomear
os objetos constitui um pacto entre dois sujeitos que concordam em reconhecer o mesmo
objeto. Daí surge uma realidade “palpável”. Se houver uma simbolização dos objetos, das
histórias, há uma produção de sentido.
Voltando ao caso apresentado por Miriam no início do texto: o menino já ouviu a
história várias vezes, sabe do que se trata, mas ao mesmo tempo não pode falar dela. O fato
de saber do que se trata traz alívio e satisfação, diz a autora, entretanto, fecha o processo de
produção de sentido. Não se pode falar ... então não há como produzir nada diferente a
partir do que é contado pelo Outro. Há, apenas, uma única versão: “não circular entre as
várias possibilidades de sentido asfixia o sujeito e institui o seu lugar social em uma
formação imaginária e fixa a posição do sujeito frente aos outros. Há inutilidade de falar,
pois tudo está sempre dito
36
.
Como outro elemento significativo do poder da fala, a autora menciona o valor que
a fala assume enquanto tal. Mais do que a vivência, o dito tem valor enquanto palavra que
35
Idem, p. 100.
36
Idem, p.101.
funda o fato e registra a história. São histórias que apresentam não o conteúdo em si, mas
suas tramas de significantes, tramas de sentido. É esta trama, é o que ocorre com a história
dita, contada, enunciada e cheia de enunciações, que possibilita um remeter à
intersubjetividade.
Se a criança não pode falar sobre sua história, não experimenta a possibilidade de
produzir sentidos, de criar outras possibilidades. Fica presa a um sentido introduzido pelo
Outro: “... é a palavra mesma, em seu caráter de testemunho, que institui a história”
37
. Mas
não a palavra, como dito, como conteúdo, e sim o que nela possibilita a articulação do
significante com a produção de sentido. Os fatos reclamam um sentido, todavia, é sempre
com a falta de sentido e a necessidade de se preencher tal falta que se pode formar o
“pressentimento daquilo que será sua história”
38
. De acordo com a autora, esta falta é uma
negação em relação ao ausente: desejo do que é impossível alcançar e desejar.
Ao dizer, ao falar, tem-se um ganho e um risco de se abrir para novos sentidos,
como já dito anteriormente. Todavia, esses novos sentidos abrem-se para o enigma do
próprio sujeito, retirando-o do refúgio narcísico. Esse enigma do sujeito o faz defrontar-se
com a equivocação. Uma vez dito, o enunciado traz ao sujeito o que ele não quer dizer. O
dito mostra ao sujeito o que ele não sabe, provocando um estranhamento de si mesmo – traz
um desconhecido no próprio ser. O dito tem um efeito sobre aquele que fala: “desta forma é
pelo dito que o sujeito se reconhece e faz reconhecer, sendo que o dito pode retornar ao que
fala como descoberta, nem sempre a esperada”
39
.
Um terceiro aspecto do poder da palavra é analisado pela autora; diz respeito à
incompatibilidade entre o desejo e a palavra: o não enunciar deixa o desejo fora da cadeia
de significantes, o que faz com que escape à simbolização. Como o desejo não é dito, então
seu acesso é feito por meio da demanda ou do sintoma. A palavra substitui a vivência, mas
nunca é suficiente para expressá-la: lançar-se na palavra é perder gozo da vivência.
Desta forma, calar parece preservar a vivência (tanto agradável quanto traumática)
e também mantê-la afastada do Outro. Para Miriam Debirux Rosa, o calar pode ter função
de alienação, pois mantém o sujeito no refúgio narcísico e submetido a uma ordem
37
Idem, p.101.
38
Idem,p. 101.
39
Idem, p.101. O grifo é meu.
instituída como condição para pertencer ao grupo. Outra função do calar é a da separação.
Calando-se o sujeito se coloca livre da realidade imposta pelo adulto, se separa e se protege
dele, escapa da opressão. Todavia, o calar também pode produzir a alienação ao dizer o que
já foi dito, apagando a produção de novos sentidos, imobilizando o sujeito num
determinado lugar social e produzindo uma imagem definitiva.
“A palavra captura o disperso pulsional para a ordem”
40
: o que dizemos
intencionalmente traz consigo o que não se sabe, traz a palavra recusada que se faz presente
nos lapsos e nos esquecimentos.
Como dito, a fala nos remete a novas descobertas, pois dizemos “coisas” que não
sabemos e que não desejamos falar. Quando os pais escolhem não dizer algo, o fazem – na
grande maioria das vezes – porque temem perder a direção, o controle e abalar os ideais
que pretendem transmitir aos filhos. Eles não sabem que efeito se fará presente:
“Não dizer é a solução encontrada para o que supõe que pode destruir a criança e a
relação da criança com eles. Há componentes morais, de culpa, frustração e de
dívida não trabalhados nos pais e que alteram a sua relação e seu discurso com o
filho. Evitam falar de sua história como forma de evitar enfrentar a ferida narcísica
e a angústia que tais temas desencadeiam neles mesmos e que , supõem, estão
poupando aos filhos”
41
.
A autora aponta para dois efeitos sintomáticos do não dito:
Atraso no desenvolvimento e empobrecimento ideativo.
Repetição, através da ação do filho, do não-dito dos pais.
Vamos abordar cada um desses dois aspectos essenciais:
Atraso no desenvolvimento e empobrecimento ideativo: Miriam Rosa aponta para
uma questão relevante: por que a criança acata o mandato de não saber dos pais? E por que
este não saber se estende a outros saberes, afetando o desenvolvimento? Inicia respondendo
que a estruturação da criança dá-se em função do desejo dos pais. Afirma : “... em função
deste desejo organiza seu Eu, quando encarna este desejo e, desta forma, divide-se,
40
Idem, p. 102-103.
41
Idem,p. 103.
fundando o sujeito do inconsciente
42
. Então, se a estruturação da criança gira em torno do
desejo dos pais, é na clínica que se toma ciência do lugar desta criança naquele desejo.
A autora cita Ricardo Rodulfo (1990), ao mencionar a importância da família. Cada
família possui uma lei imperativa e indica um certo regime desejante familiar, que faz com
que cada sujeito se situe e, conseqüentemente, perpetue tal regime. Essa perpetuação do
regime familiar é realizada por meio de mitos repletos de significantes. Impedir o dito é
impedir que esses mitos passem ao sujeito.
Alienar-se, aqui, está associado à dependência do sujeito ao Outro, lugar por
excelência dos significantes. Explica Miriam Rosa: “A criança busca, como os pais,
cooperar para preservar seja o ideal do ego, seja o próprio narcisismo ou de um dos pais”
43
.
Entretanto, a alienação ao desejo do Outro não é total, isto é, a articulação entre a
fantasia da criança e a fantasia dos pais não significa igualdade ou não supõe relação de
causa. A autora cita o exemplo de um caso clínico. Um menino, adotado com um ano de
idade, apresenta produção escolar pobre e torna-se fóbico. É lento ao responder perguntas e
responde monossilabicamente, com uma peculiaridade: antes de responder murmura “algo”
baixinho, fazendo balbucio. Este balbucio, ao qual não se tem acesso (Outro), representa
um espaço exclusivamente subjetivo e o preserva da submissão total em relação a seus pais.
Há uma preservação do eu.
Preservando o eu, a criança preserva o saber, com estatuto de fantasia. Sublinhando
o óbvio, porém não percebido, Miriam afirma que “não dizer, não é, não saber”
44
. Para
melhor compreensão, cabe um parêntese na diferenciação entre conhecimento e saber.
Ambos não coincidem. O primeiro refere-se ao eu e o segundo, ao sujeito. E ainda: o eu só
toma conhecimento da parte do saber que não o ameaça. Entretanto, o saber é tratado pelo
eu como mera fantasia, se ameaça desmoronar a identificação. Deve-se ressaltar que a
presença do saber pode lançar o sujeito no desejo de saber. Todavia este desejo de saber,
está pautado no desejo de saber o desejo do Outro. Que desejo de saber é este? A criança se
dá conta de que o amor de sua mãe é anterior a ela, então deseja saber o que causou este
desejo. O pai interdita esta busca, visto que é ele, supostamente, quem sabe sobre tal desejo
42
Idem, p. 105.
43
Idem,p. 106.
44
Idem, p.106.
materno. Se a criança não transgredir parte desta interdição paterna, corre o risco de
apresentar uma inibição intelectual – dificuldades de aprendizagem.
Aqui está o núcleo da questão: investigar e aprender caminhão juntos. Se não se
pode investigar impede-se, também, o aprender. Resumidamente: quando o acesso ao
significante fundamental é impedido, pode haver atraso no desenvolvimento e na
aprendizagem. Atendendo ao desejo do Outro de não saber, a criança mantêm-se ignorante
frente ao seu próprio saber, mesmo que tenha que pagar com o déficit de desenvolvimento.
A criança percebe que algo está sendo mascarado e, desta forma, monta uma história
fictícia para lhe dar uma ancoragem real. Acaba por misturar o que “montou” como história
fictícia com as histórias percebidas ao seu redor. A criança passa a ser cúmplice das
mentiras ou omissões parentais, para poder conviver com estas, para poder sobreviver em
família.
A criança não quer saber de si, porque se aliena no desejo do Outro, no desejo deste
de não querer que a criança saiba: “o sujeito aliena-se no próprio momento em que se
identifica com um significante, identificação necessária com o significante que se torna
linha mestra para o sujeito – define-se e comporta-se como tal, fica congelado – falta a sua
parte viva, seu gozo”
45
.
A criança não transgride parte da interdição sofrida, não se lança no desejo de saber,
mas aliena-se e vive o imaginário da mãe. Realiza o gozo materno e não seu ideal. A
separação passa pela questão dirigida à mãe: pode perder gozo? Ou “pode perder este que
pensa que eu sou?
46
Além do gozo materno, presentifica-se o gozo da criança. Esta criança se mantém
alheia à castração, que a lançaria como sujeito: “... a alienação da criança no desejo dos pais
sinaliza o fracasso da articulação dos significantes da filiação e da Lei”
47
. A escuta
psicanalítica deve centrar-se na dimensão subjetiva e nos significantes apresentados no
mito familiar. São esses mitos que determinam o acesso ou não aos significantes da
sexuação, da origem, da filiação. Miriam Debieux Rosa pontua a importância simbólica da
função paterna na “liberação” do desejo da criança de saber, ou seja, interditando a relação
45
Idem, p.107.
46
Idem, p.107
47
Idem, p. 108.
mãe-filho, retira a criança da posição de não-saber o desejo (da mãe). Isto faz com que haja
a possibilidade do desejo de saber (de poder investigar, aprender). Afirma a autora:
“Quando o pai falha em sua função o sujeito não advém. O sintoma mantém o Eu
no gozo de não saber sobre o desejo que o anima, mantém na inocência e no
desejo de que saibam por ele. Em suma, sem a substituição do desejo da mãe, pela
palavra do pai, a criança não tem acesso ao simbólico e obstrui, assim como vê
obstruído, seu acesso a investigar e aprender”
48
.
A repetição na ação do não dito dos pais:
Como mencionado, a criança aliena-se no desejo do Outro. Suas ações e ditos
acabam associando-se a este desejo. A autora pontua diversos comportamentos das crianças
que são encarados, por elas mesmas, com estranheza, indiferença ou mesmo com uma certa
impotência frente ao ato. Em algumas situações, as crianças negam suas ações dizendo que
o fizeram “sem querer”, acidentalmente. Miriam Rosa descreve a perplexidade de seu
paciente de cinco anos, ao olhar para sua própria mãozinha atirando um cinzeiro nela. O
fazer, o ato, marca a presença subjetiva. Entretanto a criança alienada no desejo do Outro é
marcada por este “Outro em si”. É como se os atos obedecessem não ao eu, ao sujeito, ou
ao objeto, mas ao Outro em si, que tudo pode, que não tem lei, que não é castrado. A
criança fica diante de um julgamento que é o do Outro, mas mesmo assim ainda é
responsável pelo ato praticado. Há aí uma distância entre intenção e gesto. Nesta fenda cabe
o desejo do Outro, repleto de significantes, que por estar alienado não produz sentido.
Impedida de dizer, de simbolizar, de saber, de produzir novos sentidos, a criança
põe em ato o “mal-dito familiar”. A autora trabalha com a hipótese de que o não-dito
aparece nas fantasias repetidas e/ou em atos. O que não foi pronunciado pela família, foi
transmitido de alguma forma, chegando ao ponto de a criança reproduzir o não-dito em
seus atos.
A palavra não dita é repleta de significantes que nos tocam, pois como afirma
Miriam Debieux Rosa: “O significante não se reduz ao terreno das palavras, não reconhece
a propriedade privada, não é próprio de ninguém; cruza, circula, atravessa gerações,
transpassa o individual, o grupo e o social”
49
. À criança chegam os significantes dos pais,
48
Idem, p.108. O grifo é meu.
49
Idem, p. 110.
que ela não pode articular com os seus e produzir novos sentidos. Desta forma, a criança
captura o significante e identifica-se com ele. Este significante não articulado irrompe na
criança como repetição. No ato, ela repete algo não elaborado nos pais, que é representado
pelo não-dito. Neste não-dito, expresso em ação, chama atenção para um entrelaçamento
entre o processo de identificação e os mecanismos de repetição: o Outro “comporta-se” em
mim, como eu. As ações, o que se vive são do Outro, pois, gozando como ele, pode-se
tomar este Outro: “A repetição é o testemunho de uma ligação que não pode ser
representada de um episódio que ficou em suspenso”
50
.
Segundo Miriam Rosa, não podemos prever os efeitos de nossos atos. Tem-se um
efeito imponderável sobre o sujeito, sobre o objeto e sobre o discurso do outro sobre si
mesmo.
Tento registrar aqui, com a ajuda da autora, o desenvolvimento de sintomas
psicológicos em crianças, quando estas estão diante de segredos familiares. Entretanto estes
segredos, na verdade, não são secretos, visto que o sujeito criança sabe do que se trata
inconscientemente. A questão levantada é: como tais segredos são transmitidos a estas
crianças? De que maneira ocorre esta transmissão? Em muitos casos, nada é dito ao sujeito,
mas o sintoma apresentado é uma repetição fiel do segredo. Em outros casos, verificamos
que, apesar do dito consciente, muitas crianças acatam o mandato dos pais transmitido
inconscientemente – o mandato de não saber, o de calar.
Minha pesquisa em relação a tais perguntas encontra o pai da psicanálise também
imerso nessas questões. O próximo capítulo traz um pouco de onde tal questionamento e
curiosidade surgem na vida de Freud. Parte de sua história de vida nos ajudará a entender
melhor o que chamou, após longo tempo de elaboração, de transmissão de pensamentos.
50
Idem, p. 111.
CAPÍTULO 2
VIDA PESSOAL E CIÊNCIA
Ao se envolver com o tema da transmissão de pensamentos, Freud “percorreu um
bom caminho”, passando por conflitos internos, nos quais se opunham suas crenças, suas
histórias pessoais e seu comprometimento científico. Este capítulo tem o objetivo de
demonstrar o interesse de Freud pelo ocultismo através de alguns de seus atos
supersticiosos e de suas próprias falas sobre o assunto, além de sua ambivalência perante o
tema.
2.1. Os “segredinhos” de Freud
Como todos, Freud também tinha seus segredos de família. Segundo o artigo “Uma
infância atormentada”, de Bernard This, alguns biógrafos de Freud cercam um mistério,
algo ainda não descoberto sobre a vida do pai da psicanálise. Apesar das pesquisas, os
biógrafos só encontraram o que o próprio Freud quis que encontrassem. Sabemos que
muitas cartas que seus amigos lhe endereçaram foram queimadas por ele, além de seus
próprios escritos. Em 1885, Freud queimou todos os seus papéis. Depois disso, passou a
repetir tal ato periodicamente
51
. Naquele ano, quis marcar a “grande virada de sua vida”,
expressão que se referia à aproximação de seu casamento com Martha e à renúncia às
pesquisas que fazia na época. Escreve ele à Martha em 28/04/1885:
“... Destruí todos os meus diários dos últimos quatorze anos, além das cartas,
anotações científicas e dos originais de meus trabalhos ... todas as minhas
reflexões e os sentimentos que me haviam inspirado o mundo em geral e eu
mesmo em particular foram declarados indignos de sobreviver. Será preciso
repensar tudo isso de novo e eu não tinha rabiscado pouco ... Quanto a meus
biógrafos, que se enfureçam! Não temos nenhuma intenção de facilitar-lhes a
tarefa: cada um deles terá razão em sua maneira pessoal de explicar o
desenvolvimento do herói”
52
.
O que queria apagar? Todos possuem um romance familiar, isto é, uma história
imaginária que toda criança forja a respeito de sua origem. Essa história imaginada passa
pelo recalcamento e, durante a vida, certos trechos afloram à consciência. Entretanto,
afirma Bernard This, o romance criado age sobre o sujeito por toda a vida, e com Freud não
foi diferente.
Gabrielle Rubin, em seu artigo O romance familiar de Freud, levanta algumas
hipóteses sobre os segredos de Sigmund. Um deles diz respeito às suspeitas do pai de
Freud, Jacob Freud, não ser seu pai verdadeiro. A analista verifica que há uma diferença
nas datas de nascimento de Freud: segundo a biografia oficial ele teria nascido em 06 de
maio de 1856; mas, conforme documento oficial, a data passa para 06 de março do mesmo
51
MANNONI, O. Freud. Uma biografia ilustrada, p.21.
52
MANNONI,O.Freud. Uma biografia ilustrada, p.21. (Correspondence 1873-1939, trad. A. Berman. Paris,
Gallimar, 1966. [citado, também, em Jones, Ernest, A vida e a Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro,
Imago, 1989, Vol.I, Prólogo]).
ano. O artigo menciona um comentário feito por Ernest Jones de que o engano na data foi
apenas um lapso do funcionário ao realizar o registro. Mas Rubin pergunta-se se, ao invés
de um lapso, este episódio não seria o anúncio de uma verdade ocultada.
Freud mantém a versão materna de que ela havia se casado com Jacob em Viena no
dia 29 de julho de 1855. Com esta nova data, confirmar-se-ia a concepção da criança antes
do casamento. Isso não seria tão relevante ou não levantaria “suspeita” se o casamento não
fosse “tão pouco equilibrado”
53
. Por que pouco equilibrado? Amália Nathansohn era jovem,
vienense, morava na cidade. Era bonita e inteligente. Ela tinha menos de vinte anos e
Jakob, quarenta. Jacob, na época, já havia casado duas vezes e era avô. Segundo relatos, os
“noivos” não se conheciam bem, pois Jacob estivera em Viena apenas quatro vezes e
mesmo assim em 1854, quando era casado com sua segunda esposa. Um autor chamado
Krull, citado no artigo, perguntava-se sobre qual seria o interesse de uma jovem como
Amália por um homem que já era avô. Levantou a idéia do casamento ter se concretizado
por conveniência. Mas, para isso, a família da noiva deveria ser mais pobre do que a de
Jakob, o que não era o caso. Teria Amália algum problema oculto? De acordo com
Gicklhorn, outro historiador citado, Amália teria sido “vendida” a Jacob, que era de uma
pobreza crônica. Na época, os romances eram recheados de histórias com pais de “jovens
desonradas” que se dirigiam a casamenteiras para encontrar um homem pronto a desposar a
filha e apagar a “nódoa”, juntamente com a ajuda de um belo dote. Parece ter sido este o
enredo da história de Amália, pelo menos é o que cogitam alguns historiadores. Ela havia
se apaixonado por alguém cuja família rejeitava a qualquer custo ou estaria grávida de um
homem com quem não podia casar-se? Talvez estas hipóteses expliquem por que Amália
aceitou tão facilmente o casamento com um homem que tinha o dobro de sua idade e,
ainda, ter que largar uma vida na cidade grande, cheia de recursos e ir morar numa
cidadezinha de província. Ser mãe solteira, naquela época, era o pior que poderia acontecer
na vida de uma mulher. Talvez Freud tivesse sentido alguma diferença no tratamento em
sua relação com Jakob. Paul Roazen (1974), cita as palavras de Freud ao lembrar do
comentário de Jakob diante do fato de ter urinado na cama quando dormia com os pais:
“... No decorrer da reprimenda, meu pai deixou escapar as seguintes palavras:
‘Esse menino nunca chegará a ser gente’. Deve ter sido um golpe terrível para as
53
THIS, B. “Uma infância atormentada”, p.30.
minhas ambições, pois em meus sonhos ocorreram constantes referências a essa
cena, sempre relacionadas com uma enumeração de minhas realizações e vitórias
como se eu quisesse dizer: ‘Está vendo? Eu cheguei a ser gente!”
54
.
É bem capaz que Freud tivesse mais consciência de seu drama de criança
desvalorizada, rejeitada, não reconhecida por seu eventual genitor do que desejam crer seus
biógrafos, pelo menos é a visão de alguns historiadores.
55
Para Paul Roazen (1974), a figura
de Jakob para Freud era algo considerado por ele a ser superado, para que pudesse
“avançar”. Paul Rozen afirma que Freud achara seu pai omisso ao deixar de lhe dar uma
orientação mais prática sobre sua carreira
56
, além de considerá-lo um homem passivo diante
das pressões sociais
57
, percepções estas que lhe causavam desapontamentos.
Outro ponto encoberto na história de Freud diz respeito a seu tio Josef. Este, quando
Freud tinha seus nove anos de idade, foi preso por tentativa de fazer circular rublos falsos.
Os documentos familiares sobre esse episódio catastrófico são de acesso proibido. O que se
sabe sobre o assunto é através de recortes da imprensa da época e de relatórios oficiais. As
crianças da família souberam do ocorrido, mas talvez certos detalhes não tenham sido
revelados por conta do “perigo de uma investigação que estabelecesse a culpa dos dois
irmãos – Emanuel e Philipp
58
. Devia-se calar às crianças o horror, com a justificativa de
não colocar a perder toda a família Freud.
A necessidade e a intensidade da análise de Freud em entender seu próprio caso o
ajudou, indo pelo mesmo caminho, a extrair ensinamentos úteis para os outros: entender
como os sonhos revelam um drama familiar recoberto pelo silêncio. O tio Josef apareceu
algumas vezes de forma direta e indireta, em alguns sonhos de Freud. Um deles foi o sonho
do Conde Thun, em agosto de 1898, depois da morte do tio. Neste sonho, Freud traz à tona
sua ambição. Ele vê o conde Thun chegar de carro ostentando um “ar majestoso”. Pensa,
então, que o trabalho destes senhores consiste apenas em nascer e descenderem. Interpreta
Freud: “... É absurdo glorificar-se pelos ancestrais. Prefiro ser eu mesmo meu antepassado,
meu ancestral”
59
. É preciso libertar-se dos ancestrais embaraçosos e vergonhosos para
54
MANNONI, O. Freud. Uma biografia ilustrada, p.21. (Interpretação dos Sonhos, Vol. IV)
55
THIS, B. “Uma infância atormentada”, p.32.
56
ROAZEN, P. Freud e seus discípulos, p.63-64.
57
Idem, p.51.
58
THIS, B. “Uma infância atormentada”, p.33.
59
Idem, p.32.
atingir a glória. O desejo de grandeza de Freud se traduziria pelo desejo de apagar a
vergonha da família pelo brilho do sucesso pessoal.
Será mesmo que Jokob não era o pai biológico de Freud? Freud era rejeitado pelo
pai? Temos relatos, como veremos adiante, de que Freud era tratado como um rei dentro de
casa. O melhor cômodo da casa era para ele. Havia muita expectativa positiva em relação a
seu futuro. Esses dados contradizem os dados acima. De todos esses relatos nada podemos
provar, são apenas suposições. No entanto, o que parece estar evidente é esta nuvem de
mistério que ronda alguns pontos da vida do pai da psicanálise. Neste capítulo, não tenho a
pretensão de esclarecer tais mistérios, apenas desejo pontuar a presença dos segredos na
vida de todos nós.
2.2. Freud e o oculto
Vamos abordar nesse ponto o envolvimento de Freud com o oculto em alguns
momentos de sua história: durante a infância e antes e durante seu casamento com Martha
Bernays.
A família Freud tinha a idéia de que seu primogênito seria especial, como
demonstrarei adiante. Tal fato não comprova qualquer relação com o oculto, mas nos
“conta” que Freud foi criado em uma família cuja crença no oculto estava presente.
Histórias sobre previsões e declarações proféticas foram contadas e re-contadas a Freud
como uma certeza em seu futuro brilhante. Desta forma, não podemos deixar de considerar
tais influências sobre as idéias de Freud quanto ao assunto.
De acordo com Peter Gay, em seu livro Freud- uma vida para nosso tempo, 1989,
quando Freud fez 35 anos, seu pai lhe deu sua Bíblia com dedicatória iniciada desta forma:
“Foi no sétimo ano de sua vida que o espírito de Deus começou a conduzi-lo ao saber”
60
.
Tal afirmação remete a uma expectativa precoce da família quanto ao sucesso de seu
primogênito – Sigmund Freud. Ele mesmo lembra, em sua interpretação dos sonhos,
algumas histórias que eram repetidas diversas vezes pela família como, por exemplo, a
60
GAY, P., “Freud. Uma vida para nosso tempo”, p. 29.
profecia lançada por uma velha camponesa. Esta mulher havia dito à mãe de Freud, na
época de seu nascimento, que ela dera ao mundo “um grande homem”.
Quanto a este fato, da suposta realização da profecia, Freud afirma que muitas mães,
alegres com o nascimento de seus filhos, criam as melhores expectativas a respeito do
futuro de seus filhos, assim como existem muitas velhas camponesas voltadas para
adivinhações. Afirma ele:
“... tais profecias devem acontecer com muita freqüência; existem muitas mães
cheias de alegres expectativas e muitas velhas camponesas ou outras anciãs cujo
poder no mundo passou, e por isso voltaram-se para o futuro. Mas isso não terá
sido em prejuízo da profetisa
61
.
Freud fez menção a esse episódio em virtude de uma de suas histórias sobre
ambição e comenta que o clima de tão grande expectativa familiar certamente alimentaria o
seu “desejo de grandeza”. Os Freud mantinham a convicção de que seu filho mais velho era
um gênio e seria um homem de muito sucesso. Freud sempre desfrutou de mordomias e
privilégios, não importando a situação econômica dos pais: “Sua irmã Anna afirma que ele
sempre teve um quarto para si, por maiores que fossem as dificuldades financeiras de seus
pais”
62
. Em certa época, esta mesma irmã, Anna, tinha aulas de música em casa, mas
tiveram de ser interrompidas porque para Freud, eram um aborrecimento e uma
interferência em seus estudos
63
. Outra história mencionada por Freud, reforçara a convicção
dos Freud sobre a genialidade do primogênito da família. Em um restaurante, no famoso
parque de Viena, Freud, então com 11/12 anos, estava acompanhado dos pais quando um
poetastro ambulante estava passando de mesa em mesa, recitando versinhos em troca de
moedas. Os pais mandaram Freud chamá-lo. O ambulante mostrou-se muito agradecido à
criança e, antes de recitar os versinhos, declarou que algum dia, provavelmente, Freud se
tornaria um ministro. De acordo com Peter Gay, no clima liberal que dominava a Áustria
nos anos de 1860, a profecia parecia bastante sensata. Freud atribuiu seu projeto de estudar
direito a impressões desse gênero.
61
Idem, p. 29.
62
GAY, P., “Freud. Uma vida para nosso tempo”, p. 29.
63
ROAZEN,P. Freud e seus discípulos, p.59-60.
Em “A vida e a Obra de Sigmund Freud. Última fase (1919-1939)”, Ernest Jones
(1989), nos conta que na época em que estava noivo de Marta, Freud comentou que
“escolhera o número 17 em uma loteria que pretendia revelar o caráter das pessoas”
64
: a
palavra que saiu foi “constância”. O dia 17 foi o escolhido para o noivado de Freud.
Segundo Jones, entender este fato seria supor, literalmente, que a loteria previra a
característica de seu futuro noivado. Questionado sobre o assunto, Freud, provavelmente,
negaria a suposta ligação. Entretanto, devemos levar em consideração que o número
escolhido na loteria “esteve presente em sua mente durante pelo menos dez anos e de que
ele o mencionou, ainda que apenas por brincadeira, como talvez tendo alguma significação
...”
65
. E, como muito bem lembrou Jones, por mais que tenha sido uma brincadeira, o
comentário não deixou de ser um fato psicológico e, desta forma, não pode ser
desconsiderado, como aquelas “declarações aparentemente involuntárias”.
Outro fato digno de nota: um mês após o noivado, sem querer, Freud quebrou o anel
que Marta lhe dera. Freud passou a ser “assolado” por inúmeras dúvidas misteriosas.
Escreveu para a noiva e perguntou-a se “estivera gostando menos dele às onze horas da
última quinta-feira”
66
. A respeito disto, o pai da psicanálise afirmou que era uma boa
oportunidade para se acabar com uma superstição. O fato é que a superstição existia e
mexia com ele.
Durante sua estada em Paris, Freud reagiu de forma inesperada frente a
determinadas experiências. Na época, sozinho naquela cidade, achava difícil compreender a
língua estrangeira. De acordo com Jones, é comum os turistas apresentarem alucinações:
“... as palavras incompreensíveis dos nativos são ´assimiladas´, por meio de mecanismo de
realização de desejo, em expressões mais familiares e agradáveis”
67
. Foi o que ocorreu a
Freud. Em sua obra “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, na edição de 1910, relatou que
com freqüência ouvia a voz de sua noiva lhe chamando. Diante disso, anotou o exato
momento de cada uma dessas ocorrências e escreveu à Marta perguntando o que lhe
acontecia naquele exato instante. Parece que Freud mantinha uma crença na possibilidade
de alguma mensagem ser transmitida à longa distância.
64
JONES, E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Última fase (1919-1939), p.373.
65
Idem, p.373.
66
Idem, p.373.
67
Idem, p.373.
Nos anos anteriores à I Grande Guerra, Jones conversou com Freud diversas vezes
sobre ocultismo. Jones afirma que Freud gostava de lhe contar algumas experiências
estranhas ou misteriosas com pacientes. Falava, especialmente depois da meia-noite, sobre
infortúnios ou mortes ocorridas muitos anos após um desejo ou premonição. Quando ouvia
os protestos de Jones diante das histórias mais exageradas respondia: “Há mais coisas entre
o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”
68
. Algumas das histórias tinham um tom de
coincidência e outros tomavam um “ar” de motivação inconsciente.
Freud registrou vários “atos mágicos” realizados inconscientemente. Em 1905, viu-
se dando um golpe com o chinelo em uma pequena Vênus de mármore, que se despedaçou
logo em seguida. Tal ato tinha como objetivo ser uma oferenda sacrificial para preservar a
vida de sua filha mais velha, pois esta corria perigo, após grave cirurgia. Mencionou outros
“atos mágicos inconscientes”. Quebrou uma estatueta egípcia que acabara de comprar, em
prol de uma amizade que lhe era valiosa e que julgava estar por acabar. Um outro episódio
também foi digno de nota. Em 1925, estava à espera de sua filha Anna, que vinha de
viagem e há pouco tinha acabado de ocorrer um acidente de trem. Para que o fato não se
repetisse durante a viagem dela, Freud perdeu seus óculos e uma caixa no bosque. Conta-
nos Ernest Jones: “A contrapartida desses atos apotropáicos para afastar o mal é a fé na
significação sinistra de presságios”
69
.
Em outra ocasião, Freud se encontrou com uma pessoa fisicamente parecida com
ele. A pessoa era tão parecida que chegou a pensar estar vendo seu “duplo”. Imediatamente
pensou, também, que tal episódio poderia ser um presságio de sua morte.
Outro fato, digno de nota, quanto à crença de Freud no oculto, diz respeito a seu
sonho de 8 de julho de 1915. Sonhou que seu filho havia morrido em batalha durante a
guerra. Ele já havia sonhado com o mesmo conteúdo várias vezes, mas julgou que este, em
especial, havia sido muito vívido. A partir daí esperou, com ansiedade, notícias do filho.
Três dias depois, recebeu um cartão postal que mencionava um ferimento leve, mas que já
estava curado. Freud perguntou sobre a data exata em que seu filho se feriu, mas não obteve
resposta. O mestre de Viena comentou que tal transmissão de mensagens não podia
distinguir entre ferimentos leves e fatais. Considerando o ocorrido, afirma que seu cérebro
68
Idem, p.374.
69
Idem, p.375.
tinha a capacidade de perceber algo a 300 milhas de distância ou que alguém (seu filho, no
caso) ferido conseguia transmitir mensagens através da mesma distância. Tal forma de
comunicação transcende os métodos comuns utilizados. Ferenczi, diante do relato de Freud
sobre o episódio, afirma que a telepatia e a clarividência estavam dentro do reino da ciência
e ainda ousa dizer que a capacidade de pré-dizer o futuro através deste tipo de comunicação
também fazia parte da ciência.
Apesar de Freud ter ficado bastante impressionado com o sonho e o desenrolo
seguinte, guardava, também, uma atitude crítica em relação à possibilidade oculta
implicada
70
. Jones comenta que o sonho aconteceu numa noite em que Freud lera um livro
de Putnam sobre motivações humanas. Durante a leitura, Freud se aborrecera com a
insistência de Putnam para que se adotasse uma atitude mais favorável em relação às
crenças religiosas
71
. Segundo Freud, “um significado do sonho era um desafio aos poderes
ocultos para verificar se podiam ser tão destrutivos como com freqüência ele temia”
72
.
Apesar de suas tentativas de se mostrar cético quanto ao ocultismo, à telepatia, etc.,
era supersticioso. Peter Gay relata que o mestre de Viena tinha superstições com os
números. Em 1886, recém casado, Freud mudou-se para um prédio construído no lugar do
Ring-Theater de Viena, onde cinco anos antes, mais de 400 pessoas haviam morrido por
causa de um incêndio. O que levou Freud a residir em tal lugar foi o desejo de superar seus
sentimentos supersticiosos e deixar “de lado os temores comuns”
73
.
Freud, durante um tempo, manteve a crença supersticiosa de que morreria aos 61 ou
62 anos, ou seja, em 1917 ou 1918. Explicou a Jung a origem de tal superstição. Contou
que, em 1899, dois acontecimentos importantes haviam coincidido. O primeiro foi a
publicação de sua obra “A interpretação dos sonhos”, datada incorretamente de 1900, de
acordo com Jones. Freud tinha 43 anos quando esta obra foi publicada. A segunda
coincidência foi seu número novo de telefone – 143612. Na época, após romper com seu
amigo Fliess, Freud, subitamente reuniu os números e estes adquiriram significação. A
publicação de sua obra mais importante foi aos 43 anos e este mesmo número aparecia no
70
Idem, p.382.
71
Idem, p.382.
72
Idem, p.382.
73
GAY, P. Freud uma vida para nosso tempo, p. 69.
número de telefone. Restavam, apenas, 61 e 62. Seguiu a seguinte lógica: com a
“Interpretação dos sonhos” a obra de sua vida “estava concluída, de modo que nada mais
precisava se esperar dele e ele podia morrer em paz ...”
74
Em outra ocasião, contou mais uma “misteriosa” experiência a Jung. Relatou sua
visita à Grécia, em 1904. Disse que havia ficado impressionado com a freqüência com que
os números 61 e 62 apareciam, ou ainda com a conexão do número 60 com o número 1 ou
2 que surgiam em todos os objetos que tinham números, como por exemplo, bilhetes de
trem. Anotou, durante a viagem, cada caso e, chegando ao hotel, assustou-se ao perceber
que o número de seu quarto era 31, metade de 62. Durante os seis anos seguintes, Freud
sentiu-se perseguido pelo número 31. Freud explicava tal sensação como resultado de uma
“atenção fortalecida motivada pelo inconsciente”
75
e, também, pela existência de uma
condescendência por parte do acaso.
Nas proximidades do aniversário de Freud (de 65 anos) em 6 de maio de 1921, suas
queixas quanto a estar ficando velho apresentavam um novo conteúdo. Freud transmitia
uma espécie de certeza de proximidade da morte diante de sua “entrada na velhice”, ou
melhor, diante de sua “sensação de entrada na velhice por meio de suas impressões
pessoais”
76
. Afirmou Freud:
“Em 13 de março deste ano repentinamente dei um passo em direção à verdadeira
velhice. Desde então o pensamento da morte não me abandonou e às vezes tenho
a impressão de que sete de meus órgãos internos estão lutando para ter a honra de
levar minha vida a um fim. Não houve ocasião adequada para esse passo,
excetuando-se o fato de que Oliver se despediu nesse dia ao partir para a Romênia.
Todavia, não sucumbi a essa hipocondria, mas a encaro friamente, tal como faço
as especulações em “Além do Princípio de Prazer”
77
.
Por meio de tais relatos, entendo que Freud estava imerso em uma crença
ambivalente no oculto. Em parte, parecia acreditar em superstições e na transmissão de
mensagens via telepatia. Como visto, sua família também acreditava em profecias e, ao
74
JONES, E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Última fase ( 1919-1939), p.383.
75
Idem, p.383.
76
Idem, p.93.
77
Idem, p.93.
longo de sua vida, apesar de sua brilhante capacidade crítica, não abandonou tais crendices
no oculto.
Desta forma, acredito que Freud deve ter travado uma luta interna muito grande
para que seu espírito científico não se deixasse abater. Seus textos “Psicanálise e Telepatia”
e “Sonhos e Ocultismo” mostram-nos algumas das ambivalências apresentadas pelo mestre
de Viena, assim como algumas histórias relatadas sobre o assunto.
2.3. As ambivalências de Freud
Em 1908, Freud apresentou três casos que podiam ter sido interpretados como de
transferência de pensamentos à Sociedade Psicanalítica de Viena. Todavia, a análise
relatada trouxe a impressão de causas naturais, excluindo, assim, a idéia de telepatia.
Comenta Jones: “Aqui também, como no último exemplo, o ceticismo e as capacidades
críticas de Freud superaram qualquer tentação que pudesse haver de acreditar em
clarividência ou telepatia”
78
.
Acredito que Freud tenha travado dentro de si uma luta constante entre suas crenças
e histórias pessoais e seu espírito cientificista até entender, de fato, o “cunho inconsciente”
existente por trás dos relatos sobre ocultismo e, desta forma, compreendê-los pelo prisma
psicanalítico.
Freud tinha noção do quanto era difícil se livrar por completo das crenças
irracionais da infância e da vergonha que se sente quando tais idéias retornam. Afirmou em
seu livro sobre Gradiva, de 1907:
“Considerem agora o fato de que a crença em espíritos, aparições e retorno de
almas, que encontra tanto apoio nas religiões a que, pelo menos quando crianças,
estivemos todos ligados, não desapareceu, de modo algum, por inteiro entre todas
as pessoas cultas e instruídas e de que muitas pessoas, sensatas em outros
aspectos, acham o interesse pelo espiritismo compatível com as exigências da
razão. Mesmo alguém que se tornou imparcial e incrédulo por perceber com
vergonha com que facilidade, quando comovido e desnorteado por alguma
emoção, pode por um momento, retornar a uma crença em espíritos”
79
.
Freud menciona uma experiência pessoal em que, ao encontrar a irmã de um
paciente já falecido, ficou surpreso com a semelhança entre os dois e pensou por um
78
Idem, p. 376.
79
Idem, p. 376.
instante: “Então, afinal é verdade que os mortos podem voltar
80
. De acordo com Jones, a
este pensamento seguiu-se de imediato um sentimento de vergonha diante dessa fraqueza
momentânea.
Pouco tempo depois, Freud conheceu dois de seus principais discípulos, Jung e
Ferenczi, ambos eram muito inclinados ao oculto. Em 25 de março de 1909, em suas
primeiras visitas a Viena, Jung impressionou Freud com espantosas histórias de suas
experiências e poderes, como poltergeist, fazendo os objetos da sala baterem na mobília.
Apesar de ter ficado impressionado com o fato, Freud descobriu as razões físicas que
faziam os objetos tilintarem sobre os móveis, desaparecendo assim, sua credulidade.
Ferenczi também influenciou o pai da psicanálise quanto ao oculto. Após a viagem
em 1909 aos Estados Unidos, as correspondências entre eles pouco traziam sobre o
ocorrido na casa de Jung. Todavia, continham comentários sobre uma experiência que
tiveram em Berlim na viagem de volta. Foram visitar uma vidente chamada Frau Seidler,
que afirmava ter o dom de ler cartas com os olhos vendados que, segundo Jones, é um dos
truques mais simples, conhecido pelos médiuns. Mesmo percebendo o truque usado por
Frau Seidler, Freud e Ferenczi julgaram que a advinha tinha poderes telepáticos e que lera
os pensamentos deles. Acharam que ela havia conseguido entender que Freud estava
insatisfeito com seu ambiente, e outras adivinhações “óbvias”
81
. Mostraram a ela uma carta
de Freud a Ferenczi e a vidente adivinhou que era proveniente de Viena, o que
impressionou Freud, mas logo depois lembrou que a palavra estava escrita na carta e que,
sem dúvida, ela havia lido. Depois de refletir por alguns dias, Freud enviou uma carta a
Ferenczi concluindo que a mulher tinha um “dom fisiológico” com o qual podia perceber os
pensamentos de outra pessoa, apesar das distorções que ocorrem normalmente durante a
passagem de um cérebro a outro. No entanto, apesar de tal conclusão, Freud negou sua
crença no oculto:
“...certamente não; é apenas uma questão de transferência de pensamento. Se isso
é demonstrado, tem se de acreditar nisso. Não é um fenômeno psíquico, mas um
fenômeno puramente somático – é verdade que do primeiro nível de importância
(...) Temo que você tenha começado a descobrir algo grande, mas haverá grandes
dificuldades para fazer uso disso”
82
.
80
Idem, p. 376.
81
Idem, p. 377.
82
Idem, p. 378.
Outras visitas foram feitas por Ferenczi a diversas videntes, mas não obteve
resultados que, de fato, o satisfizessem. Entretanto, meses depois, enviou a Freud várias
anotações sobre “curiosas coincidências” entre ele e um paciente. Estas anotações
continham detalhes de algumas poucas palavras ditas pelo paciente no início da sessão, que
lembravam a Ferenczi pensamentos que ele próprio tivera nas 24 horas precedentes.
Segundo Ernest Jones, os pensamentos em questão não foram reproduzidos por Ferenczi,
mas foi deixado claro que eram de cunho pessoal e não faziam referência ao analista
83
.
Freud ficou extremamente impressionado chegando a dizer que tal experiência punha “fim
a qualquer possível dúvida restante sobre a realidade da transferência de pensamento
84
.
De acordo com Ernest Jones, tais assuntos pessoais, não descritos por Ferenczi,
facilmente seriam descartados por um cético como coincidências ou mesmo como podendo
ter sido comentados ou referidos ao paciente anteriormente.
Ferenczi continuou a enviar a Freud exemplos de telepatia com o mesmo paciente.
Ele relatou que este adivinhava, de forma aproximada, o pensamento de Ferenczi (analista
do caso) e que isso representaria uma diferença revolucionária na técnica da psicanálise.
Além desta, Ferenczi anunciou a descoberta de que também ele era um excelente adivinho
ou leitor de pensamentos. Tentou em algumas ocasiões, adivinhar os pensamentos de Ernest
Jones. Este relata que era constrangedora a forma como Ferenczi fazia para aproximar seus
pensamentos não expressos das associações de Jones. No entanto, uma efetiva conexão era
muitíssimo remota. Nesta época, 1910, Ferenczi manifestou vontade de se apresentar como
“Astrólogo da Corte dos Psicanalistas”, em Viena, e também de publicar seus dados e
conclusões acerca do assunto. No entanto, Freud estava atento para as conseqüências de tais
atos e o alertou para uma possível associação da psicanálise com algo não científico.
Sugeriu, então, um adiamento de uns poucos anos e, em 1913, publicou o assunto.
Freud comentou sobre uma “astróloga da corte” chamada Frau Arnold. Um de seus
pacientes a consultou dando a data de aniversário de seu cunhado. Parece que a previsão da
astróloga, na verdade, foi uma projeção do passado no futuro. Em dezembro do mesmo ano,
83
Idem, p.378.
84
Idem, p.378.
1910, Freud foi a Munique com Breuer e Jung. Pretendiam visitar a tal astróloga, mas
Freud só lembrava do nome da rua e não do nome dela. Considerou, então, tal
esquecimento como um sinal de sua “fraqueza”
85
. Ernest Jones infere que Freud tenha se
sentido um pouco envergonhado com a expedição ou que “significasse um atiçamento de
suas capacidades críticas. Não foi essa de modo algum a única ocasião em que Freud fez
uso de uma parapraxia inconsciente para interferir em sua investigação do ocultismo”
86
.
Ficou claro para Freud que tanto Ferenczi quanto Jung estavam fascinados pelo
tema do ocultismo e que não conseguiria detê-los. Preocupava-se todo o tempo com a
“imagem da psicanálise”. Referindo-se às pesquisas de seus amigos, Freud acrescentou:
“Pelo menos, prossigam em colaboração mútua; trata-se de uma expedição perigosa e não
posso acompanhá-los”
87
. Nesta época, o próprio Ferenczi começou a se questionar sobre a
precocidade das pesquisas; sentiu que tal caminho poderia abalar o movimento
psicanalítico.
Em novembro de 1914, diante da morte do meio-irmão de Freud, Ferenczi tentou
comprovar uma suposta predição de Jung. Este havia mencionado que, neste mesmo ano,
ocorreria um grande infortúnio na vida de Freud. Mais uma vez, o pai da psicanálise com
um ar cético e, ao mesmo tempo, crédulo, disse:
“Você parece mais em dia com o ocultismo do que eu supunha. A guerra sozinha
seria infortúnio suficiente. Se durar muito e de algum modo levar à minha morte,
então minha própria superstição quanto aos números, de que você tem
conhecimento, se tornaria verdadeira”
88
Freud foi convidado a ser co-editor de três periódicos diferentes sobre o estudo do
ocultismo, no verão de 1921, porém recusou os três convites. Um destes foi de um homem
chamado Hereward Carrington, de Nova York. Carrington conta que Freud, ao recusar o
convite, escreveu a seguinte frase: “Se fosse viver de novo, eu me dedicaria à pesquisa
psíquica em vez da psicanálise”
89
. Carrington contou tal citação a outro homem chamado
George Lawton que, por sua vez, procurou Freud, dizendo que não acreditava que ele havia
feito tal afirmação. Em resposta a George Lawton, Freud negou a afirmativa de Carrington.
85
Idem p.379-380.
86
Idem, p.380.
87
Idem, p.380.
88
Idem, p.382.
89
Idem, p.384.
Entretanto, o fundador da psicanálise estava enganado. Em fotocópia da carta de Freud à
Carrington, comprova-se a passagem em questão devidamente registrada.
Neste mesmo ano, 1921, Freud leu para o comitê seu artigo “Psicanálise e
Telepatia” que foi publicado após sua morte. Desejou lê-lo, novamente, no congresso
seguinte, mas foi freado por Eitingon e Jones. Acabou publicando “Sonhos e Telepatia”, em
1922.
Alguns anos depois, escreveu para seus amigos (Jones e Eitingon) um Relatório
sobre Experiências Telepáticas, com um professor chamado Murray. Afirma,
categoricamente, que a impressão produzida nele sobre tais experiências “foi tão forte” que
ele estaria pronto a abandonar sua oposição à existência de transferência de pensamento
90
.
Comenta que deveria expor ao mundo o apoio da psicanálise à questão da telepatia. Mas,
logo a seguir, expõe a impossibilidade de tal fato. Argumenta que, para tal,
inevitavelmente, acabaria expondo a vida de dois pacientes seus e isso não seria aceitável,
por conta da limitação da discrição médica. Em 1923, Freud escreve a Jones:
“Ferenczi esteve aqui recentemente em um domingo. Nós três (os dois e Anna)
91
fizemos experiências com transferência de pensamento. Foram notavelmente boas,
em especial aquelas em que atuei como médium e a seguir analisei minhas
associações. A questão se torna urgente para nós”
92
.
Entretanto, apesar da “empolgação”, Freud afirma que não poderia compartilhar a
idéia de Ferenczi de usar a telepatia como prova objetiva das contendas da psicanálise.
Afirmou ser perigoso pois, na Inglaterra, tem-se a idéia imaginária de que a psicanálise
opera com agentes considerados independentes do corpo. Tal idéia, adicionada ao
preconceito contra a telepatia, causaria o efeito de retardar a assimilação da psicanálise.
Jones parecia extremamente preocupado com os efeitos deste assunto sobre a
aceitação da psicanálise no resto do mundo
93
. O que se mostrou justificado após algumas
publicações de Freud sobre o assunto _“Sonhos e Telepatia” e “O significado oculto dos
Sonhos”_ nos quais indica sua aceitação pela telepatia. Na época, de acordo com Jones,
muitos outros artigos confusos apareceram na imprensa popular. Passaram a declarar que a
90
Idem, p.384.
91
Acréscimo meu.
92
JONES, E., A vida e a Obra de Sigmund Freud. Última fase (1919-1939), p.385.
93
Idem, p.386-387.
psicanálise era um ramo do ocultismo
94
. Jones, então, escreveu a Freud, de forma
explosiva. Comentou o efeito dos artigos na Inglaterra e sua completa insatisfação.
Escreveu: “De qualquer modo, deu-me uma nova e inesperada experiência na vida, a de ler
um artigo de sua autoria sem sensação de prazer e concordância”
95
. Freud, então, respondeu
declarando o efeito sobre ele de suas experiências e convicções a respeito da telepatia e o
quanto “algo gritava” dentro dele como uma necessidade de expressão. Escreveu à Jones:
“... Além do mais, minhas próprias experiências com testes que fiz com Ferenczi e minha
filha, adquiri uma força tão convincente para mim que as considerações diplomáticas, por
outro lado, tiveram de abrir caminho ...”
96
. Em conclusão, terminou a carta “insinuando”
como Jones poderia “se defender” dos ataques sofridos :
“Quando alguém expõe minha queda no pecado, apenas respondo calmamente que
a conversão à telepatia é assunto particular meu, tal como meu judaísmo, minha
paixão pelo fumo e muitas outras coisas, e que o tema da telepatia é em essência
estranho à psicanálise”
97
.
Em 1938, Freud recebeu um manuscrito de um livro de Nandor Fodor, intitulado
Haunted People: the story of the poltergeist down the centuries”. Em resposta ao material
enviado, Freud incentivou o autor a publicá-lo. Pontuou que este desvia o interesse da
questão em saber se os fenômenos observados são ou não reais para o estudo psicológico
do médium, pesquisando inclusive, a história prévia deste
98
. Este foi o último “elemento
informativo” obtido, segundo Jones, antes da morte do mestre de Viena.
Enfim, de acordo com a análise de Jones, é fácil selecionar citações de Freud que
ora ilustram seu ceticismo crítico quanto à telepatia, ora sua intensa credulidade no tema.
Paul Roazen também aponta para o interesse de Freud na telepatia e sua preocupação com a
possibilidade das pessoas associarem a psicanálise a algo não científico
99
. De qualquer
forma, o que se pode perceber em seus textos é a menção à presença da passagem de
desejos inconscientes de uma pessoa a outra; e, a isso, Freud nomeou de transmissão de
94
Idem, p.386.
95
Idem, p.387.
96
Idem, p.387.
97
Idem, p.387.
98
Idem, p.388.
99
ROAZEN, P. Freud e seus discípulos, p.268-269, 277.
pensamentos. No próximo capítulo, tal afirmação poderá ser percebida com clareza através
da análise de alguns de seus textos.
CAPÍTULO 3
DA TRANSMISSÃO DE PENSAMENTOS À TRANSMISSÃO DE
SIGNIFICANTES: O QUE FREUD E LACAN TÊM A DIZER?
“Há milhões de milhas dentro de nós”
100
“Ser dois e ser dez e ainda ser um”
101
3.1. Contando sem saber
No capítulo um deste trabalho, tive a oportunidade de mostrar como algumas
crianças acabam sofrendo psiquicamente por serem impedidas de verbalizar algo que se
supõe ser um “segredo” familiar. Entretanto, como visto, os sintomas apresentados
denunciam um saber inconsciente, por parte da criança, do segredo que não lhe foi contado
pelos pais ou por qualquer outra pessoa. Elas não sabem, mas, ao mesmo tempo, sabem do
que se trata. As suposições de Freud nos levam a crer que o segredo em questão é contado à
criança através de uma espécie de “comunicação inconsciente”.
Em “Totem e Tabu” (1912-1913), Freud faz um levantamento das hipóteses
construídas sobre a íntima relação existente entre o totemismo e a exogamia (a proibição de
se manter relações sexuais com pessoas do mesmo clã). Alguns antropólogos assumem a
visão de que o totem surgiu antes da exogamia, outros que a exogamia veio primeiro que o
totem. Contudo Freud afirma que, para a psicanálise, o totemismo e a exogamia estavam
100
“Músico”, 1994, de Tom Zé.
101
“Dos Margaritas”, 1994, de Herbert Viana.
intimamente ligados e tiveram sua origem simultaneamente
102
. Freud cita Frazer
argumentando sobre a existência de um instinto natural em favor do incesto e alega que não
há necessidade de haver leis que proíbam os homens de colocar as mãos no fogo ou que os
ordene a comer e beber. Evitar o fogo e alimentar-se ocorrem naturalmente. A necessidade
de se proibir, de se impor a lei feita pelo homem, é para coibir certos instintos. Este
argumento reforça a idéia da psicanálise de que não existe uma aversão inata à relação
sexual incestuosa. Freud endossa a conclusão de Frazer de que, na verdade, ignora-se a
origem do horror ao incesto. Nenhuma das soluções propostas a esse enigma parece
satisfatória, até o momento.
Foi a partir da teoria darwiniana sobre o estado social dos homens primitivos, que
Freud elaborou uma hipótese nomeada por ele de “histórica”. Darwin deduziu, através dos
símios superiores, que o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia que os outros
machos tivessem relações sexuais com as fêmeas do grupo. Quando o macho novo cresce,
há uma disputa com o mais forte e líder até então. O vencedor mata ou expulsa o
adversário. O perdedor, vagueando por outros lugares, ao encontrar uma companheira
forma um novo grupo e estabelece uma endogamia muito estreita. Com o passar do tempo,
estabelece-se uma lei consciente de não poder ter relações sexuais com alguém dentro do
totem. Certo dia, dois ou três membros expulsos pelo pai, pelo mais forte da horda, se unem
e voltam, para juntos, eliminarem seu opositor. Matam e devoram o pai, realizando o que
seria impossível realizar individualmente. O temido e invejado pai era devorado e, com este
ato, realizavam uma identificação com ele, cada um adquirindo uma parte de sua força –
estabelecendo-se a refeição totêmica.
Freud situa aqui uma ambivalência emocional também encontrada nos neuróticos.
Os filhos odiavam o pai por impedi-los de ter acesso ao poder e aos desejos sexuais, mas
também o amavam e o admiravam. Ao eliminar o pai, há uma satisfação no ódio sentido e
põem-se em prática os desejos de identificação, mas o afeto surge com força total através
do remorso. Este sentimento vem do fato de os membros não terem alcançado, com o
assassinato, a satisfação completa que imaginavam. Nenhum dos filhos pôde realizar seu
desejo original – ocupar o lugar do pai. De certa forma, o pai morrera em vão. Um
102
FREUD, S. “Totem e tabu”, Edição Standard Brasileira, p.149. FREUD, S. “Totem y tabu. Algunas
concordâncias em la vida anímica de los salvajes y de los neuróticos”, Amorrortu Editores, p.126.
sentimento de culpa surgiu, o que coincidiu com o remorso sentido por todo o grupo.
Perceberam que aquele que se colocasse no lugar do pai acabaria morto, haveria uma luta
de todos contra todos. Desta forma, a saída era abrir mão das mulheres, instituir a lei contra
o incesto e proibir a morte do totem, isto é, o assassinato de um membro do clã. O pai
torna-se mais forte morto do que vivo. Através deste ato memorável e criminoso, propicia-
se o início de muitas coisas: a organização social, as restrições morais e a religião.
Em uma tribo menos primitiva, podemos entender, à luz de tal teoria, o significado
do tabu estabelecido. Um clã que mata seu animal totêmico e o devora, só o faz mediante
celebração de ocasião cerimonial e com a participação de todos os seus membros. O ato
proibido só é executado nestas circunstâncias, pois é justificado pela participação de todos.
O animal morto é lamentado e pranteado, sendo o luto obrigatório, por conta do temor de
sofrerem uma desforra por parte do totem assassinado. Entretanto, o luto é seguido de um
regozijo festivo, um sentimento de felicidade permitido. No festival permite-se o excesso
que, fora dele, é rigidamente proibido. Sendo assim, os membros do clã pranteiam e, ao
mesmo tempo, se alegram com a morte do totem.
A psicanálise revela que o animal totêmico é, na verdade, um substituto do pai
primevo. Daí decorre a ambivalência presenciada na morte do animal. O totemismo e os
tabus subseqüentes presenciados nos povos primitivos surgem do assassinato do pai
primevo. Como dito, o totem é o substituto inconsciente do pai. Podemos observar,
também, a ambivalência emocional nos neuróticos, caracterizando o complexo edípico em
nossos filhos e que, com tanta freqüência, persiste na vida adulta. Afirma Freud:
“Se o animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do totemismo,
as duas proibições de tabu que constituem seu âmago – não matar o totem e não
ter relações sexuais com os dois crimes de Édipo, que matou o pai e casou com a
mãe, assim como os dois desejos primários das crianças, cujo recalque insuficiente
ou redespertar formam, talvez, o núcleo de todas as psiconeuroses”
103
.
Ao final de “Totem e Tabu”, Freud pontua como base de sua teoria uma importante
suposição para o tema que levanto neste trabalho: a existência de uma mente coletiva, em
que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo e,
ainda, de um sentimento de culpa gerado pelo assassinato do pai primevo que persistiu por
103
Idem, p.137. Idem, p.134.
muitos milhares de anos, permanecendo ativo em gerações que não poderiam ter tido
conhecimento do fato. Diz ele: “Supus que um processo emocional, tal como se poderia ter
desenvolvido em gerações de filhos que foram maltratados pelos pais, estendeu-se a
gerações novas livres de tal tratamento, pela própria razão de o pai ter sido eliminado
104
.
Aqui, minha questão iguala-se às dúvidas de Freud em relação à transmissão
inconsciente: “Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para
transmitir seus estados mentais à geração seguinte?”
105
. E eu me pergunto: como os
segredos ou não ditos familiares são transmitidos às crianças? O que ocorre no ambiente
familiar?
Freud pontua que a questão dos meios e maneiras empregados na transmissão de
acontecimentos de geração a geração é muito complexa e que certamente palpites como o
da transmissão pela comunicação direta e pela tradição não são suficientes para explicar o
processo. Afirma que parte deste problema pode ser respondido pela “herança de
disposição psíquica”
106
, que precisa receber uma espécie de ímpeto na vida do sujeito antes
de se tornar presente no funcionamento real. Freud cita o poeta Goethe que resume sua
suposição com a seguinte frase: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo
teu”
107
.
Apesar do espaço temporal existente entre uma geração e outra, os acontecimentos
são transmitidos de forma inconsciente. Todo recalque deixa um vão para os impulsos
substitutivos e para os resultados de suas reações. Cada sujeito possui, em seu aparelho
psíquico, a capacidade de interpretar as reações das outras pessoas, por mais disfarçadas e
escamoteadas que possam estar. Desta forma, esta capacidade inconsciente, de interpretar a
reação do outro, possibilita a transmissão, também inconsciente, de uma herança
emocional. Freud nos ensina que:
“Mesmo o mais implacável recalque tem de deixar lugar para impulsos
substitutivos deformados e para as reações que deles resultem. Se assim for,
portanto, podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar à
geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a
psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um
apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a
104
Idem, p.159. Idem, p.159.
105
Idem, p.159. Idem, p.159.
106
Idem, p.160. Idem, p.159.
107
Idem, p.160. Idem, p.159.
desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios
sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimoniais
e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às
gerações posteriores receberem sua herança de emoção”
108
.
Em “Tratamento Psíquico ou Anímico”, Freud deixa claro que através de
determinadas expressões faciais ou gestos acaba-se deixando escapar, sem se perceber, o
que está presente na vida anímica. As expressões das emoções diante do outro acabam por
“denunciar” o que pensamos ou deixam escapar a idéia do que se pensa sobre o assunto em
pauta. Afirma o mestre da psicanálise:
“Quase todos os estados anímicos de um homem exteriorizam-se nas
tensões e relaxamentos de seus músculos faciais, na focalização de seus
olhos, no afluxo de sangue para sua pele, no emprego [variável] de seu
aparelho vocal e na postura de seus membros, sobretudo as mãos. Essas
modificações físicas concomitantes em geral não trazem nenhum benefício
à pessoa em questão, mas ao contrário, são amiúde obstáculos às suas
intenções, quando ela quer ocultar dos outros seus processos anímicos;
para esses outros, no entanto, servem como sinais fidedignos pelos quais é
possível inferir os processos anímicos, e nos quais se deposita maior
confiança do que em qualquer das expressões intencionais feitas
simultaneamente em palavras
109
.
O corpo participa, de forma direta, do que nos ocorre na vida anímica. Diante do
medo, da cólera, da dor psíquica ou do deleite sexual, a expressão corporal, a facial, a
circulação sangüínea etc. acabam por expressar o mais sincero afeto proveniente de nossos
pensamentos. Freud menciona, também, outras expressões físicas como os estados
depressivos, o emagrecimento do corpo ou seu inverso, o embranquecimento dos cabelos e
outras formas, que já não são tão sutis quanto as primeiras expressões das emoções.
Forma-se aqui a dupla de emissor e receptor, que também encontramos na
comunicação consciente usual. Como dito, nossos processos anímicos são expressos
inconscientemente por meio das emoções. Levamos ao outro o que, de fato, nos habita
internamente. Do outro lado, tem “alguém” que é capaz de interpretar, também de forma
inconsciente, a mensagem emitida através de nosso “apparatus mental”, como demonstrado
em “Totem e Tabu”.
108
Idem, p. 160. Idem, p.160.
109
FREUD, S., “Tratamento psíquico ou anímico”, ESB, p.274. FREUD, S. “Tratamiento psíquico
(tratamiento del alma)”, AE, p.118. O grifo é meu.
Em 1913, em seu artigo “A disposição à neurose obsessiva. Uma contribuição ao
problema da escolha da neurose”, Freud cita um caso clínico que pode servir como
exemplo de transmissão de mensagens de forma inconsciente. Uma mulher vivera feliz e
satisfeita com seu marido por anos. Tinha planos de ter filhos, mas caiu doente quando
soube que não poderia tê-los do marido. Reagiu à notícia com uma histeria de angústia. Na
ocasião, fez de tudo para que o amado marido não percebesse que sua doença ligava-se à
frustração de não poder lhe dar um filho. Contudo, o marido, apesar do esforço da esposa,
entendeu do que se tratava e reagiu, também inconscientemente. Passou a falhar em suas
relações sexuais com a esposa. A mensagem, emitida inconscientemente, foi entendida,
recebida pelo marido. Diz Freud no decorrer da análise do caso: “... tenho boas razões para
asseverar que todos possuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem
interpretar as elocuções do inconsciente das outras pessoas”
110
.
Para encerrar com chave de ouro a hipótese de Freud sobre a existência de uma
comunicação inconsciente, reproduzo fielmente suas palavras proferidas em 1915, no texto
“O Inconsciente”: “constitui fato marcante que o inconsciente de um ser humano possa
reagir ao outro, sem passar através do consciente. Isso merece investigação mais detida,
principalmente com o fim de descobrir se podemos excluir a atividade pré-consciente do
desempenho de um papel nesse caso, descritivamente falando, porém, o fato é inegável”
111
.
Desta forma, tomo de Freud a idéia de que transmitimos inconscientemente aos
outros nossos sentimentos e processos anímicos mais intensos: contamos sem saber!
3.2. O que conto sem saber?
No capítulo dois deste trabalho, pontuo o interesse de Freud em relação aos temas
da telepatia e do ocultismo. Passou parte de sua vida ocupando-se em analisar sonhos ou
afirmações proféticas de adivinhos com o intuito de obter uma resposta mais clara sobre a
existência destes fenômenos. Preocupou-se, sempre que estava diante de tais sonhos ou
110
FREUD, S., “A disposição à neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema da escolha da neurose”,
ESB, p.344. FREUD, S. “La predisposición a la neurosis obsesiva. Contribuición al problema de la elección
de neurosis”, AE, p.1340.O grifo é meu.
111
FREUD, S., “O inconsciente", ESB, p. 199. FREUD, S. “Lo inconciente – VI El comercio entre los dos
sistemas”, AE p.191. O grifo é meu.
revelações, em analisar com real rigor o teor dos relatos. Seus principais textos ligados ao
assunto foram “Sonhos e telepatia”, “Sonhos e ocultismo”, “Psicanálise e telepatia” e “Uma
premonição onírica realizada”.
Em sua análise, propõe-se a examinar a relação de ocorrências supostamente
telepáticas com a teoria dos sonhos elaborada por ele. Comenta que ele mesmo nunca havia
tido um sonho telepático, mas apenas aquele tipo de sonho que deixa a impressão, a quem
sonha, de que seu conteúdo está acontecendo ou acontecerá em algum lugar distante. Cabe
ao que sonha, afirma ele, acreditar ou não na impressão sentida
112
. Além disso, em vinte e
sete anos de profissão, jamais havia observado um verdadeiro sonho telepático trazido por
um de seus pacientes, apesar dos inúmeros relatos oníricos baseados em crenças misteriosas
como essas.
Em “Uma premonição onírica realizada” (1899), Freud faz uma análise de um
sonho supostamente profético trazido por uma de suas pacientes. Analisando-o ponto a
ponto, o sonho se refere a desejos não realizados do passado de tal paciente. Um amor
antigo que não pôde ser vivenciado, apesar de correspondido, constitui a base do sonho.
Freud deixa claro que o sonho em questão “contava” sobre os desejos e sobre o passado
do sujeito, não se relacionando com uma previsão onírica. O sonho pareceu profético,
porque somente desta forma poderia vir à consciência. Freud termina o texto explicando:
“Assim, a criação do sonho a posteriori, única coisa que torna possíveis os sonhos
proféticos, nada mais é do que uma forma de censura, graças à qual o sonho pode irromper
na consciência”
113
.
Em “A interpretação dos sonhos”(1900), Freud afirma que está fora de cogitação a
existência de sonhos proféticos
114
. Na verdade, esses sonhos só nos informam sobre o que
já ocorreu, retratando apenas nossos desejos como realizados, nos transportando para o
futuro, para uma expectativa ansiada e nada mais. Também em “Sonhos e telepatia” (1921),
Freud chega à mesma conclusão da análise de sonhos supostamente proféticos que tomou
conhecimento através de dois correspondentes da Alemanha, interessados em saber se seus
112
FREUD, S., “Sonhos e telepatia”, ESB, p.210. FREUD, S. “Sueño y telepatía”, AE, p.189.
113
FREUD, S., “A interpretação dos sonhos”, ES, p.648. FREUD, S. “La interpretación de los suemos”, AE,
p.611.
114
FREUD, S., Idem, p.645. Idem, p.608.
sonhos eram ou não previsões futurísticas. O suposto sonho telepático, na verdade, trouxe o
conhecimento de conteúdos inconscientes, já existentes na vida mental do sujeito e não
informações inéditas ou futurísticas. Se houver telepatia, não haverá manifestações mentais,
nem informações inconscientes. Para ser telepático, o sonho deve ser algo que venha de
fora, tendo a mente um “papel” passivo e receptivo
115
.
Em “Psicanálise e telepatia” (1941[1921]), Freud descreve alguns casos não
relacionados a sonhos proféticos, mas a encontros e previsões proféticas vindas de médiuns,
grafologistas e cartomantes. Demonstra, na análise dos casos, que a previsão feita pelos
adivinhos estava diretamente referida aos conteúdos, aos desejos inconscientes de quem
interroga o analisando
116
.
Desta forma, inconscientemente, “contamos” aos outros algo que é da ordem de
nossos desejos inconscientes. A comunicação inconsciente nos revela também o que é
oculto até para nós mesmos. Respondendo à pergunta feita no presente subtítulo: conto sem
saber o que sei sem saber, conto meus desejos inconscientes.
Outra questão faz-se necessário pontuar aqui. Algumas destas previsões, sonhos
supostamente proféticos, parecem de fato ter se realizado. Em “Determinismo, crença no
acaso e superstição – alguns pontos de vista” (1901), Freud afirma que os sentidos parecem
captar “coisas” de uma forma mais rápida do que nossa consciência. Assim, o inconsciente
tira suas conclusões estimativas também rapidamente. Damo-nos conta disso, às vezes pela
análise um pouco mais precisa dos fatos. Freud nos conta um desses acontecimentos,
aparentemente mágicos, no texto mencionado. Comenta que andava pelas ruas, alguns dias
depois de ter recebido o título de professor, quando uma fantasia de vingança contra um
casal conhecido lhe ocorreu. Este casal, meses antes, o havia chamado para ver sua filha
que tinha desenvolvido um sintoma obsessivo. Contudo, não quiseram tratar a filha com
Freud, deixando-o entender que a tratariam com uma autoridade estrangeira que trabalhava
com hipnose. A fantasia de vingança ocorrida a Freud foi de que o tratamento com o tal
estrangeiro houvesse fracassado e, desta forma, pediriam ajuda a Freud, agora com o título
de professor. Com isso, Freud imaginou-se recusando atender à criança. Ao findar tal
pensamento, Freud foi interrompido por um sonoro “Bom dia, professor”, vindo justamente
115
FREUD, S., “Sonhos e telepatia”, ESB, p.220 FREUD, S. “Sueño y telepatía”, AE, p.200.
116
FREUD, S., “Psicanálise e telepatia”, ESB, p.196. FREUD, S. “Psicoanálisis y telepatía”, AE, p.180.
do casal de seus pensamentos. A impressão de algo milagroso é desfeita a partir da seguinte
análise: Freud estivera andando por uma rua larga, reta e deserta. Andava em direção ao
casal. A certa altura, erguera os olhos, vira-os de relance, mas afastara essa percepção –
seguindo o modelo de uma alucinação negativa. A aparente coincidência notável pôde ser
explicada por uma percepção sensorial negada momentaneamente
117
.
Há uma participação por parte do sujeito na “concretização” desses atos,
aparentemente mágica. Freud descreve, em “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”
(1909), o “homem dos ratos” como alguém altamente supersticioso, apesar de perspicaz,
esclarecido e muito instruído. Afirma que este paciente ora mostrava-se aferrado a suas
convicções supersticiosas, ora as ignorava. Sabia que sua superstição estava associada a seu
modo de pensar obsessivo. Não acreditava, por exemplo, na maldição do número treze ou
das sextas-feiras, mas acreditava em premonições e sonhos proféticos. Relatou a Freud
alguns acontecimentos “mágicos” como o de encontrar com alguém que acabara de pensar
ou o de receber a carta de alguém que acabara de lembrar depois de esquecê-lo por anos.
Quanto a esses acontecimentos, Freud não poderia fornecer-lhe nenhuma explicação
racional, mas arriscou-se a explicar acontecimentos semelhantes ocorridos durante seu
tratamento. Mostrou ao “homem dos ratos” que ele mesmo ajudava a “fabricar” os milagres
por meio de seus esquecimentos, erros de meria e por meio de visão e leituras periféricas
(usando partes externas da retina, em lugar da mácula)
118
. Além disso, quando criança,
ouvia sua mãe, com freqüência, dizer ao fixar uma data: “Em tal e tal dia não vou poder,
vou ter de ficar de cama, nesse dia”
119
. Com efeito, no dia mencionado ela ficava de cama.
O paciente sentia uma necessidade de encontrar experiências deste tipo atuando como
sustentação de suas superstições. Quando estas não bastavam, lançava mão de suas
atividades inconscientes. Freud afirma que tal fato é comum na neurose obsessiva, pois o
recalque não se efetua através da amnésia. O que ocorre é a ruptura de conexões causais por
conta da retirada de afeto. Resta à consciência o conteúdo ideativo, considerado sem
117
FREUD, S., “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, ESB, p.258-259. FREUD, S. “Psicopatología de la
vida cotidiana”, AE, p.255-256.
118
FREUD, S., “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, ESB, p.200. FREUD, S. “A propósito de um
caso de neurosis obsesiva”, AE, p.180.
119
Idem, p.201. Idem, p.180.
importância pelo sujeito. Portanto, o paciente conhece seu trauma, mas não o conhece ao
mesmo tempo, por não estar ciente de sua significação
120
.
Em “O estranho” (1919), Freud faz um paralelo entre o que, de fato, se define para a
psicanálise como estranho e os pensamentos mágicos, premonições e outros. Discorre sobre
o fato de a maioria das definições da palavra estranho estar associada à idéia de algo novo,
diferente; atrelando, ainda, a idéia de horror, de medo, de algo assustador. Entretanto, nem
tudo o que é novo é assustador por não ser conhecido e familiar, isto é, ao nos depararmos
com algo não familiar, nem sempre nos sentimos horrorizados ou amedrontados.
Resumindo: nem tudo que é novo é estranho, mas este novo pode tornar-se facilmente
assustador e estranho. “Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para
torná-lo estranho”
121
.
Freud mostra que o estranho provém de algo familiar que foi recalcado. Todo afeto
pertencente a um impulso emocional, quando recalcado, transforma-se em angústia. Assim,
dentre as coisas que amedrontam, algo do recalcado pode retornar. Isso caracterizaria o
estranho
122
. Desta forma, o estranho não é nada novo, mas sim algo familiar, de muito
tempo, alojado no inconsciente. É estranho, porque algo do inconsciente surge
desconectado e, aparentemente, sem sentido, fora de contexto por conta de estar deslocado,
mas é íntimo e familiar por ser nosso velho conhecido. Ainda em “O Estranho”, Freud
pontua a existência do fenômeno do “duplo”, que aparece em todas as formas e em todos os
graus de desenvolvimento. Quando alguém mantém uma relação com outro alguém
considerado idêntico, semelhante, pode ser marcado por processos mentais que saltam de
um para o outro “através do que chamaríamos telepatia”
123
. Na verdade, há uma
identificação de tal forma que se tem dúvida de qual é o seu próprio eu e qual é o do outro.
Freud chama a atenção, então, para o fato de haver uma duplicação, divisão e intercâmbio
do eu (self). Há o retorno constante da mesma coisa: a repetição dos mesmos aspectos ou
características, vicissitudes, crimes e nomes através de diversas gerações.
120
Idem, p. 172 - 201. Idem, p.181.
121
FREUD, S., “O estranho”, ESB, p.239. FREUD, S. “Lo ominoso”, AE, p.220.
122
Idem, p.258. Idem, p.240-241.
123
Idem, p.252. Idem, p.234.
A partir daí, Freud analisa o animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos
pensamentos, a atitude do homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo
de castração a partir da idéia de que estes fazem parte dos fatores que transformam algo
assustador em algo estranho
124
. Descreve alguns fatos, claramente ligados à compulsão à
repetição, como algo que assume um ar de estranheza. Um desses fatos é a persistência do
aparecimento do número sessenta e dois ao longo do dia, como, por exemplo, no ticket de
trem, na cabine do navio, endereços etc. Essas “coincidências”, quando repetidas, num
certo espaço de tempo, assumem um caráter estranho. Isso faz com que a pessoa atribua um
significado secreto a tal ocorrência obstinada. Essa atribuição secreta (a sensação de
estranho) acontece em virtude do retorno de algo recalcado. Tal passagem refere-se à figura
do próprio Freud, que durante alguns anos, acreditava que sua vida se findaria com sessenta
e dois anos de idade. Fato contado por Roudinesco e Jones e já mencionado no capítulo
dois.
Quanto à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos
poderes secretos e ao retorno dos mortos, a ligação com o estranho é explicada por Freud
através do animismo, isto é, do retorno à crença animista primitiva. Os nossos primitivos
antepassados acreditavam na possibilidade do retorno dos mortos, na força de pensamentos
maléficos e outros. Atualmente, superamos esses modos de pensamentos. Porém, as antigas
crenças ainda existem dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer sinal
confirmatório. Quando algo nos acontece que parece confirmar as velhas crenças temos a
sensação do estranho. Então, é estranho porque nos deparamos com o velho e antepassado
sistema animista de crenças recalcado
125
.
Quando somos invadidos pela crença de que algo profetizado, por sonhos, adivinhos
ou pensamentos mágicos, foi, de fato, concretizado, há de se fazer uma análise minuciosa
de todo o processo, visto que, como mencionado, inconscientemente acabamos por “fazer”
com que tais acontecimentos se realizem. Em “Totem e Tabu”, Freud afirma que a prática
da “magia” foi adotada tomando como base o desejo humano, isto é, desejar algo
impulsiona o sujeito, e este desejo é acompanhado de um impulso motor – a vontade que
124
Idem, p. 260. Idem, p.247.
125
Idem, p. 264-265. Idem, p.249.
predispõe o sujeito a alterar a terra, se preciso for, para satisfazer seus desejos
126
. Desta
forma, o que foi predestinado a se realizar por meios “mágicos” tem grande probabilidade
de acontecer.
3.3. Afinal, como conto sem saber?
Até aqui, entendemos com Freud a existência de uma espécie de comunicação
chamada “comunicação inconsciente” e que, segundo ele, este fenômeno é inegável. Por
isso, “contamos” às outras pessoas algo que nos habita, sem ao menos tomarmos ciência de
tal ato. Mas o que contamos? “Contamos”, transmitimos algo da ordem de nossos desejos
inconscientes, da ordem do recalque. Mas como a comunicação inconsciente acontece? De
que forma é efetivada? Freud também se fez esta pergunta.
Faz-se necessária uma rápida menção ao conteúdo do texto escrito pelo pai da
psicanálise sob o nome de “Psicanálise e telepatia” (1941[1921]), sobre a sua hipótese
quanto à transmissão de conteúdos inconscientes e, principalmente, ao que chamou de
“modo de indução”, como supostamente ocorre a comunicação inconsciente. Comento aqui
os dois relatos iniciais que dizem respeito a profecias que não se realizam, mas, mesmo
assim, causam um verdadeiro impacto nas pessoas a quem foram anunciadas. Eis o
primeiro caso:
Um estudante de filosofia procurou Freud com o intuito de ser analisado. Dizia-se
incapaz de trabalhar, queixava-se de ter esquecido sua vida passada e de ter perdido todo o
interesse. Durante o processo analítico conseguiu descobrir que o colapso apresentado tinha
origem em um “grande ato de autodisciplina mental de sua parte”
127
. O estudante tinha uma
irmã, de quem gostava muito. Ambos chegaram a se perguntar por que não poderiam se
casar. Entretanto tal relação nunca ultrapassou o que é esperado entre irmãos.
Um jovem engenheiro se apaixona pela irmã do paciente e é retribuído. Todavia, os
pais da moça não aprovam o namoro. O paciente resolveu ajudá-los e interceder junto aos
pais, que acabaram cedendo. O jovem casal acabou noivando. Porém, disse Freud, “durante
126
FREUD, S., “Totem e tabu”, ESB, p. 95. FREUD, S. “Totem y tabu. Algunas concordâncias em la vida
anímica de los salvajes y de los neuróticos”, AE, p.87.
127
FREUD, S., “Psicanálise e telepatia”, ESB, p.193. FREUD, S. “Psicoanálisis y telepatía”, AE, p.173.
o tempo de noivado, houve uma ocorrência altamente suspeita”
128
. O irmão levou o futuro
cunhado para escalar o pico mais alto dos Alpes bávaros. Neste passeio, ambos,
envolveram-se em dificuldades e por pouco conseguiram evitar uma queda. Tal
acontecimento foi interpretado por Freud como uma tentativa de assassinato e suicídio. Foi
justamente após o casamento da irmã que o jovem filósofo procurou ajuda analítica. Com
seis ou nove meses de análise, o paciente já havia recuperado sua “vida normal”, visto que
sua queixa inicial havia desaparecido. Resolveu, então, interromper o trabalho analítico
para prestar seus exames finais e escrever sua dissertação. Retornou um ano ou mais
depois, no mês de outubro e contou a seguinte história: existia, em Munique, uma adivinha
de grande reputação. Seu trabalho consistia em predizer o destino de uma pessoa através,
somente, da data de seu nascimento. Consultava, então, seus livros de astrologia e fazia sua
profecia. O relato do paciente foi feito em outubro, sua visita à adivinha foi em março do
mesmo ano. O paciente cedeu a data de aniversário do cunhado e recebeu como profecia a
seguinte frase: “A pessoa em causa morrerá no próximo julho ou agosto, de envenenamento
por lagosta ou ostras”
129
.
Segundo Freud, após ter contado o fato, o jovem filósofo demonstrou estar
maravilhado. Seu analista perguntou o motivo da admiração, visto que o prazo já havia se
esgotado e a profecia não havia se realizado. O paciente relatou que o notável foi em agosto
do ano anterior, o cunhado haver tido uma crise de envenenamento por lagostim, pois era
apaixonado por frutos do mar. O que a adivinha havia previsto, na verdade, já havia
ocorrido.
ANÁLISE DE FREUD: Em primeiro lugar, Freud faz questão de descartar a
possibilidade do paciente ter mentido ou desejado lhe enganar. Afirma que a história foi
incidental e que não serviu a intuitos posteriores, além disso, o paciente não tinha qualquer
intenção de persuadi-lo da existência de fenômenos mentais ocultos
130
. Em segundo lugar,
afirma ser impossível saber através da data de nascimento se uma pessoa irá morrer de
envenenamento por lagostim. Como saber tantos detalhes de uma pessoa completamente
128
Idem, p.193. Idem, p.174.
129
Idem, p.193. Idem, p.174.
130
Idem, p.194. Idem, p.175.
desconhecida, apenas por meio da data de nascimento? Conseguiria tal informação por
intermédio de tábuas astrológicas e cálculos?
Todavia, Freud afirma que o conteúdo profético estava na mente do jovem filósofo.
Era ele quem sabia do ocorrido no ano anterior: que seu cunhado, dono da data cedida à
advinha, havia quase morrido por envenenamento de lagostim. Esta informação, conta-nos
Freud, foi transmitida à advinha:
“... O fato torna-se completamente explicável se estivermos preparados
para presumir que o conhecimento foi transferido dele para a suposta
profetisa, por algum método desconhecido que exclui os meios de
comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de inferir que existe
algo como a transmissão de pensamento”
131
.
Acrescenta, ainda, que o que foi transmitido não constitui qualquer fragmento, algo
indiferente, mas pelo contrário, o que foi passado de uma pessoa a outra diz respeito a um
“desejo extraordinariamente poderoso”
132
. Este desejo foi reconstruído por Freud através da
possível seqüência de pensamento do jovem após a doença e melhora do odiado cunhado
rival. Eis a reconstituição: “Bem, ele escapou desta vez, mas não abandonará seu perigoso
gosto por causa disso; esperemos que a próxima vez seja o seu fim. Foi esse “esperemos”
que foi transformado na profecia”
133
. Freud faz, ainda, uma ressalva quanto ao caso.
Comenta que o que foi transmitido à advinha não foi de um desejo inconsciente, mas sim,
suprimido, visto que tal desejo tornara-se consciente no ano anterior, durante a primeira
etapa do tratamento.
Outro ponto a ressaltar é o comentário do pai da psicanálise de como tal conteúdo
foi passado à advinha. De que forma ocorreu? Freud chama este processo de um “modo de
indução”.
134
Acredita que as forças psíquicas da advinha foram desviadas de tal forma que
a tenha tornado receptiva e acessível aos efeitos causados pelos pensamentos do cliente,
podendo adivinhar seus conteúdos. Freud afirma:
“As atividades astrológicas da advinha, nesse caso, teriam desempenhado a
função de desviar suas próprias forças psíquicas e ocupá-las de maneira
inócua, de modo a poder tornar-se receptiva e acessível aos efeitos sobre
131
Idem, p.195. Idem, p.175-176.
132
Idem, p.196. Idem, p.176.
133
Idem, p.196. Idem, p.176.
134
Idem, p.196. Idem, p.176.
ela causados pelos pensamentos do cliente, podendo assim, tornar-se uma
verdadeira médium”
135
.
Seguiremos ao segundo caso relatado. Neste, também, trata-se de previsões e
adivinhos. Uma jovem senhora, já seriamente doente, procurou por Freud. Tinha uma
neurose grave. Segundo relatos, Freud concluiu que ela desenvolveu uma neurose de
angústia, durante certo tempo, para defender-se contra várias tentações. Posteriormente, tais
sintomas transformaram-se em graves atos obsessivos
136
. Esta jovem senhora era a mais
velha de uma prole de cinco crianças, todas meninas. A mãe era mais velha que o pai. Este,
admirado pelas filhas, era incompetente nos negócios e precisava de ajuda de parentes para
sustentar a família. Desde cedo, a paciente tornou-se a “agregadora” de todas as
preocupações referentes às dificuldades financeiras. Aos dezenove anos, a jovem recebeu a
visita de um primo de sua mãe, um homem mais velho que ela e bem sucedido na vida. Este
encantou-se por ela e pediu-a em casamento. A jovem não foi forçada a nada, mas entendia
os desejos dos pais a favor do casório. Sentiu-se que esta era a chance de resgatar o pai de
seu estado de necessidade. Após o casamento, o primo ajudaria sua família
financeiramente. Desta forma, apaixonou-se por ele e se casou logo depois. Sua nova vida
era muito boa e não tinha queixas; entretanto, não conseguia engravidar. Foi a um
ginecologista e, após exames, este lhe disse que seu problema seria resolvido com uma
operação. Às vésperas de tal processo cirúrgico, comentou com o marido a respeito. Este
contou-lhe que, na verdade, o problema não era dela e, portanto, não deveria operar.
Durante um congresso médico, há dois anos, o marido soubera que certas moléstias
deixavam os homens estéreis e que ele se incluía neste caso. Diante da notícia a paciente
sofreu um colapso. “Só pudera amá-lo como um pai substituto e agora soubera que ele
nunca poderia ser pai. Três caminhos estavam abertos para ela, todos igualmente
intransponíveis: a infidelidade, a renúncia ao desejo de um filho ou a separação do
marido”.
137
Um de seus sintomas era o de prender os lençóis aos cobertores com alfinetes
de segurança, quando estava na cama. Desta forma, interpreta Freud, revelara o segredo do
contágio de seu marido.
135
Idem, p.195. Idem, p.176.
136
Idem, p.198. Idem, p.178.
137
Idem, p.198. Idem, p.178.
Aos quarenta anos de idade, já em análise com Freud, a paciente conta um episódio
que ocorrera quando tinha vinte e sete anos. Acompanhou o marido em uma viagem de
negócios e, no hotel onde ficaram hospedados, estava um famoso professor adivinho. Este
não fazia perguntas, mas pedia à pessoa interessada para imprimir a mão em um prato cheio
de areia para, assim, poder prever seu futuro por meio da impressão deixada. A paciente
retirou o anel de casada e foi consultar-se com o tal professor. Obteve como resposta: “No
futuro próximo, você terá de passar por severos conflitos, mas tudo sairá bem. Casar-se-á e
terá dois filhos quando estiver com trinta e dois anos de idade”.
138
A paciente mostrou-se
impressionada ao contar o relato a Freud, mesmo sem compreender o que tinha acontecido.
No entanto, ela já era casada e já contava quarenta anos, não tinha filhos, o que obviamente
demonstrara a expiração do prazo dado pelo professor e a não realização da profecia. O
comentário de Freud a este respeito não abalou a surpresa da paciente com o adivinho.
ANÁLISE DE FREUD: O fato de o professor ter previsto conflitos com final feliz
já faz parte do repertório de todos aqueles que se dizem médiuns, adivinhos, mas o que lhe
chamou atenção foram os números mencionados: 32 anos e 2 filhos. Tais comentários não
poderiam ter saído da interpretação das linhas da mão
139
. Freud desejou saber se realmente
o famoso adivinho falou do caso dela, e não do de sua mãe. Isto porque, através da análise,
encontrou uma explicação completamente satisfatória para os dois números mencionados.
Os números se ajustavam à história de vida da mãe da paciente. A mãe teve dois filhos aos
trinta e dois anos de idade e só se casou aos trinta anos, idade considerada tardia para se
casar. Tradução da profecia dada por Freud: “Não há necessidade de preocupar-se com sua
atual esterilidade. Isso não tem importância. Você ainda pode seguir o exemplo de sua mãe,
que ainda nem se achava casada em sua idade e, não obstante, tem dois filhos aos trinta e
dois anos de idade”.
140
De acordo com o pai da psicanálise, a profecia se relacionava à
identificação da paciente com a mãe, um segredo de sua infância. É como se o adivinho lhe
tivesse dito: “Você se libertará de seu esposo inútil pela morte ou encontrará forças para
separar-se dele”.
141
A espera pela morte do marido, segundo Freud, se ajusta melhor a sua
neurose obsessiva, mas a luta sugerida pela profecia é encontrada através da “força” para se
138
Idem, p.199.Idem, p.179.
139
Idem, p.200. Idem, p180.
140
Idem, p.200.Idem, p.180.
141
Idem, p.200.Idem, p.180.
separar com êxito. Aqui, mais uma vez, o conteúdo profético estava presente na mente de
quem interroga. Os números e a história de vida estavam presentes no inconsciente da
paciente, que foram transmitidos ao professor.
142
Todavia, Freud ressalta a possibilidade da paciente ter formado uma paramnésia, ao
longo dos anos. O professor pode ter lhe enunciado qualquer coisa, de cunho bem geral e
incolor, e ela, inconscientemente, pode ter acrescentado os números. De qualquer forma, o
desejo inconsciente mantém-se presente.
Freud finaliza seu texto apontando para a existência da transmissão de pensamento e
deixando claro que nada tem a dizer sobre o oculto.
Nos dois casos apresentados, há dois pontos em comum. O primeiro diz respeito a
sentimentos de “surpresa” e “admiração” diante de profecias lançadas e não realizadas.
Mesmo quando Freud questionava sobre a não realização das afirmações, tais sentimentos
não eram abalados. O segundo ponto liga-se ao fato de que o conteúdo profético já estava
na mente de quem o recebeu. Conteúdo este ligado a desejos inconscientes. No caso do
jovem alemão, desejos suprimidos, como já explicado.
Apesar de Freud não ter feito uma ligação direta entre estes dois pontos
supracitados, acredito que a “surpresa e admiração” diante de profecias não realizadas só
foram possíveis de ser sentidas justamente por dizerem respeito a desejos inconscientes, a
desejos poderosos, como disse Freud, particulares e intransponíveis, isto é, foram
“mordidas” por algo que, de fato, lhe dizem respeito. Daí a admiração com o que,
normalmente, seria caso de total descrédito diante da não realização profética.
Ao longo do texto, Freud faz menção a outros dois pontos igualmente importantes.
Afirma que tais desejos inconscientes foram transmitidos de uma pessoa a outra, isto é, de
quem interroga para o adivinho. Entretanto, tal transmissão exclui os meios de
comunicação que nos são familiares – chamou tal processo de transmissão de pensamento.
Para explicar como isto ocorreu, Freud afirma ter sido por uma espécie de “modo de
indução”. Como dito, tal processo seria capaz de desviar as forças psíquicas presentes na
mente de quem é interrogado, deixando “espaço livre” e receptível aos pensamentos de
quem interroga. Em seu relato, Freud associa o “modo de indução” às atividades
142
Idem, p.200.Idem, p.180.
astrológicas da advinha. Tal fato, acrescenta, pode transformá-la em uma verdadeira
médium.
Em “Sonhos e ocultismo” (1932), Freud afirma existir a “transmissão de
pensamentos”, fazendo alusão à telepatia. Acredita que as profecias lançadas pelos
adivinhos, que como visto, nada mais são do que a repetição de algo do passado, dos
desejos inconscientes de quem os interrogou, primeiramente lhes foram “contadas” via
transmissão de pensamento e, a seguir, só reproduziram a mensagem em questão. Afirma:
“... Existe, por exemplo, o fenômeno da transmissão de pensamento, que tem tão estreitas
relações com a telepatia e pode, na verdade, sem deturpação demasiada, ser considerado a
mesma coisa”.
143
Afirma que os processos mentais numa pessoa – idéias, estados
emocionais, impulsos conativos – podem ser transferidos para uma outra pessoa através do
espaço vazio, sem o emprego dos métodos conhecidos de comunicação que usam palavras
e sinais e mais adiante completa: “No decorrer do tratamento psicanalítico de pacientes,
formei a concepção de que as atividades dos adivinhos profissionais escondem uma
oportunidade de fazer observações especialmente irrefutáveis sobre a transmissão de
pensamentos”
144
.
Em relação à efetivação da transmissão, Freud supõe que o “modo de indução”,
mencionado anteriormente, seria uma espécie de distração mental da atenção com alguma
atividade sem sentido, como forma de liberar um processo mental inconsciente. No entanto,
em “Sonhos e Ocultismo” tenta esquematizar tal transmissão de pensamentos / telepatia:
“Supõe-se que o processo telepático consiste num ato mental que se realiza numa
pessoa e que faz surgir o mesmo ato mental em uma outra pessoa. Aquilo que se
situa entre esses dois atos mentais facilmente pode ser um processo físico, no qual
o processo mental é transformado, em um dos extremos, e que é reconvertido,
mais uma vez, no mesmo processo mental no outro extremo”
145
.
Já em “Moisés e o Monoteísmo”, 1939, referindo-se à ligação feita entre a alusão ao
pai primevo e a história de Moisés (religião monoteísta), Freud se pergunta: como algo tão
arcaico pode ser transmitido de geração a geração? Com sua coragem e ousadia, Freud
questiona neste texto o mais sagrado dos livros – a Bíblia. Escolhe a história de Moisés e,
143
FREUD,S. “Sonhos e ocultismo”, ESB, p.47. FREUD, S. “Sueño y ocultismo”, AE, p.37.
144
Idem, p.47. Idem, p.37. O grifo é meu.
145
Idem, p.60-61. Idem, p.51.
ponto a ponto, levanta algumas questões e fatos que foram omitidos e deformados pelos
historiadores ao longo da narrativa bíblica. Para alcançar seu objetivo, lança mão do
próprio livro sagrado e de várias pesquisas realizadas por diversos antropólogos e
estudiosos do tema. Levanta a hipótese de que Moisés, na verdade, não era judeu e sim,
egípcio. De acordo com suas hipóteses, Moisés também havia guiado “seu povo” com mão
de ferro e imposto sua religião monoteísta que herdara do falecido faraó. Diante da forma
ditatorial, os seguidores de Moisés, judeus, levantaram-se contra seu líder, mataram-no e
livraram-se da religião imposta por ele. Esses judeus, segundo historiadores, uniram-se com
outras tribos locais entre a Palestina, a Península de Sinai e a Arábia em uma localidade
chamada Cades e lá fundaram uma nova religião – a adoração a um deus vulcânico Javé.
Houve, então, um período de latência, uma lacuna entre a legislação de Moisés e a
religião judaica posterior. Esta lacuna diz respeito à época de adoração a Javé. O
interessante é que os registros e escritos históricos judaicos apontam para a idéia da
existência de um deus único trazido por Moisés. A narrativa sacerdotal busca fazer uma
ligação direta de seu período contemporâneo com o remoto passado mosaico. Busca, ainda,
omitir, repudiar a existência desta lacuna, mencionada, entre um período e outro, como a
“vergonhosa” adoração a Javé
146
. Este período, chamado por Freud de período de latência,
foi por ele caracterizado como “um longo período durante o qual não se detecta sinal algum
da idéia monoteísta, do desprezo pelo cerimonial, ou da grande ênfase dada à ética”.
147
Assim como, segundo hipótese freudiana, não há um registro explícito de que
Moisés não era judeu e de que sua religião remontava à antiga religião de Aten, o período
de latência foi expurgado do relato histórico, de acordo com o que era mais cabível e
oportuno à época. O texto bíblico sofreu alterações, fatos foram suprimidos ou mesmo
alterados. Entretanto, tais alterações podem ser “contadas” por intermédio das contradições
existentes na própria narrativa. Alerta Freud:
“... o texto, contudo, tal como o possuímos hoje, nos dirá bastante sobre
suas próprias vicissitudes. Dois tratamentos mutuamente opostos deixaram
suas marcas nele. Por um lado, foi submetido a revisões que o falsificaram
no sentido de seus objetivos secretos, mutilaram-no e amplificaram-no e,
até mesmo, o transformaram em seu reverso. Por outro lado, uma piedade
146
FREUD, S. “Moisés e o monoteísmo”, ESB, p.79. FREUD, S. “Moisés y la religión monoteísta esquema
Del psicoanalisis y otras obras”, AE, p.59-60.
147
Idem, p.82. Idem, p. 65.
solícita dirigiu-o e procurou conservar tudo tal como era, pouco
importando se era coerente ou se contradizia. Assim, em quase toda parte
ocorreram lacunas observáveis, repetições perturbadoras e contradições
óbvias, indicações que nos revelam coisas que não se destinavam a serem
comunicadas. Em suas implicações, a deformação de um texto assemelha-
se a um assassinato: a dificuldade não está em perpetrar o ato, mas em
livrar-se de seus traços”
148
Freud explica que em muitos casos de deformação textual o que foi suprimido está
oculto em outro lugar, mesmo estando modificado e despojado de seu contexto. Durante
milhares de anos, a existência do pai primevo foi esquecida, mas retorna sob a história de
Moisés. Como foi mantida no “esquecimento” por séculos e retorna desta forma? Responde
Freud: existe uma conformidade entre o indivíduo e o grupo – “também no grupo uma
impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes”.
149
O que se esquece não desaparece como fumaça, apenas é recalcado. Os traços
mnêmicos estão presentes, mas isolados por anti-catexias. Entretanto, certas partes do
recalcado podem ter escapado do processo de recalque, por isso tornam-se acessíveis à
lembrança e, ocasionalmente, emergem à consciência. Quando isso acontece, aparecem
como corpos estranhos isolados, sem conexão com o restante
150
. Segundo Freud, há uma
espécie de herança arcaica dos seres humanos que abarca traços de memória da
experiência de gerações anteriores. A tradição de um povo e também seu caráter, diz Freud,
são transmitidos através desses traços de memória inconscientes. Assim, os homens sempre
souberam do pai primevo e de seu assassinato.
Outras perguntas fazem-se presentes: como uma recordação ingressa na herança
arcaica? Quando se torna consciente, mesmo que sob forma alterada e
deformada?Segundo Freud a recordação é levada à herança arcaica, isto é, é transmitida
de geração a geração quando for algo suficientemente importante e /ou for repetida com
bastante freqüência. Quando retorna? Quando há uma repetição real e recente do
acontecimento. O caso do parricídio atende a idéia de ser um fato marcante e repetido
148
Idem, p.55. Idem, p.42.
149
Idem, p.108. Idem, p.90.
150
Idem, p.109. Idem, p.91.
inúmeras vezes. A história de Moisés, seu assassinato especificamente, constitui uma
repetição do assassinato do pai primevo, assim como o assassinato de Jesus Cristo
151
.
Creio que Freud tocou na ponta de um iceberg. Conseguiu descobrir que elementos
inconscientes podem ser transmitidos de uma pessoa a outra. Entretanto, talvez tenha se
enganado ao afirmar que isto não é realizado pela via dos meios de comunicação já
conhecidos. A todo momento, acredito, ouvimos e percebemos coisas que registramos sem
ao menos nos darmos conta, mas que ficam armazenados, como vimos em “Moisés e o
monoteísmo”. Apesar do engano de Freud ele nos deixa outras tantas pistas para minha
investigação. Toca na questão da insistência na repetição de algo importante para o sujeito
como sendo uma das peças do modo de transmissão inconsciente de pensamentos. Outra
pista relaciona-se à transformação de “atos mentais” em um processo físico, também como
mais uma peça da transmissão. Minha pesquisa pretende indicar que Lacan introduz tais
idéias através da linguagem e de seu conceito de significante.
3.4. O significante, a repetição e a transmissão
Faz-se necessário, aqui, entender o que é o significante e, ainda, entender a ligação
de sua própria definição com a questão da transmissão de segredos ou não ditos familiares.
Para isto, lanço mão da ajuda do próprio Lacan e de alguns autores que percorreram sua
obra, na tentativa de nos ajudar a compreender um conceito complexo e imprescindível à
teoria psicanalítica lacaniana. Antes, gostaria de iniciar este item citando Lacan: “Para
interpretar o inconsciente como Freud, seria preciso, como ele, ser uma enciclopédia das
artes e das musas (...)”
152
e, mesmo assim, conclui ele, não nos facilitaria tanto reproduzir
tal missão. Esta frase, vinda de quem veio, isto é, de um homem cuja imagem é vinculada a
um saber extenso, não só em relação à psicanálise, mas à cultura em geral, fez aguçar em
mim uma angústia sentida ao percorrer os textos lacanianos aqui utilizados. Quero
expressar a sensação de não ter conseguido aproveitar a leitura tanto quanto deveria. A
leitura é densa, árdua. Exige dedicação, insistência e muito trabalho. Exigências às quais,
certamente, não me furto, entretanto, como sabemos, há um limite. E este limite é subjetivo.
151
Idem, p.115. Idem, p. 97.
152
LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, p.526.
Caminhei até onde, no momento, consegui chegar em minha análise pessoal, em minhas
leituras e prática clínica. Por isso, acredito, não consegui tirar o proveito ideal das palavras
sábias de Doutor Lacan, mas fiz o máximo que pude. Apesar de meu desapontamento
diante de minha limitação, tomo fôlego para prosseguir ao ler o que disse Lacan a respeito
dos comentários proferidos sobre a amplitude de seu saber e cultura: “... perguntam-me
onde arrumo tempo para reunir tudo isso. Vocês omitem que tenho alguns anos a mais do
que vocês na existência ... enfim, estou mais perto disso do que vocês, e tive tempo de
esquecer várias vezes as coisas das quais lhes falo
153
. Assim, permitam-me esquecer,
equivocar-me e não compreender as palavras proferidas pelo mestre. Acredito que terei
tempo, assim como ele teve, para poder caminhar mais longe e aproveitar um pouco mais
seus ensinamentos. Enfim, desejo lembrar que o que escrevo neste trabalho está restrito ao
que me foi possível entender e extrair como útil ao tema em questão.
Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, 1960,
Lacan afirma “...um significante é aquilo que representa o sujeito para outro
significante”
154
. Definição enigmática que precisa ser destrinchada. Em um de seus
seminários,
155
Lacan cita um fato interessante com o intuito de explicar a noção do belo e
que aqui lanço mão para poder chegar um pouco mais perto do conceito de significante.
Comenta que um dia ficou hospedado em Londres em uma espécie de “Home”, como
chamam os ingleses. Estava na companhia de sua esposa. Pela manhã, esta lhe informa que
um certo professor também se encontrava na mesma Home que eles. Lacan pergunta como
sabia do fato. Responde sua esposa: “Vi seus sapatos”. Lacan achou difícil identificar
alguém por um par de sapatos em frente a uma porta. Não deu importância. Entretanto, logo
depois, encontrou o tal professor pelos corredores do lugar. Essa experiência reúne o que é
universal, presente em todos os sapatos e o que é particular ao dono deles. O que desejo
pontuar é a potência do significante, a marca que ele imprime em qualquer pessoa, em
qualquer coisa, até mesmo num par de sapatos, que não fala, mas que contou à esposa de
Lacan a quem pertenciam. Explica Doutor Lacan: “Esse significante não é nem mesmo aí
significante da marcha, do cansaço, de tudo que vocês quiserem, da paixão, do calor
humano, ele é apenas significante do que significa um par de botinas abandonadas, isto é,
153
LACAN, J. “O seminário, livro 7. a ética da psicanális”e, p.345.
154
LACAN, J. “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, p.833.
155
LACAN, J. “O seminário, livro 7. a ética da psicanálise”, p.355.
ao mesmo tempo, de uma presença ausência pura – coisa, se podemos assim dizer, inerte,
feita para todos, mas coisa que, por certos aspectos, por mais muda que seja fala –, cunho,
impressão, que emerge na função do orgânico e, em suma, do dejeto, evocando o começo
de uma geração espontânea”
156
.
Entendo que o significante não tem paradeiro certo, pois ele pode “colar” até em
um par de sapatos, no entanto, parece que particulariza o que é universal. Não há uma
“encarnação” do significante e, por isso, talvez seja tão difícil defini-lo. Atrelado ao signo e
completamente distinto deste, o significante não tem um significado. O signo, fechado num
sentido, nomeia e dá significado geral a quem sabe lê-lo.O signo, segundo E. Roudinesco e
M. Plon (1998), “une um conceito a uma imagem acústica, e não uma coisa a um nome”
157
.
O signo é uma unidade indissociável tal qual uma folha de papel. Para um marceneiro a
expressão “cadeira de balanço” pode significar um objeto de madeira que assume tal forma
mediante aplicação de determinada técnica para sua elaboração. O seu significado define o
signo – a imagem da cadeira de balanço. No entanto, esta mesma expressão pode assumir,
associada à imagem do objeto, outro aspecto, particular e único da idéia geral atrelada a ela.
“Cadeira de balanço” pode estar ligada a sensações de saudades, lembranças, expectativas,
a uma história singular. O significante não se inscreve em um saber a priori. Ele é
significante para um único sujeito. Juan David Nasio parece concordar com essa abstração
conceitual de significante, ao afirmar que este é uma categoria formal, não descritiva. Mas,
ao mesmo tempo, afirma que o significante “pode ser um lapso, um sonho, o relato do
sonho, um detalhe deste relato, ou mesmo, um gesto, um som, ou até um silêncio ou uma
interpretação do psicanalista”.
158
Tais manifestações podem ser tomadas como
acontecimentos significantes, contudo, devem seguir três critérios
159
:
1. Ser caracterizado como algo da ordem de uma expressão involuntária, não
consciente;
156
LACAN, J. “O seminário, livro 7. a ética da psicanálise”, p.355-356.
157
ROUDINESCI, E., PLON, M. Dicionário de psicanálise, p.709.
158
NASIO, J.D. “Primeira lição. Os dois grandes conceitos:o inconsciente e o gozo”, p.13.
159
Idem, p.17-18.
2. Deve ser desprovido de sentido. Não entra na qualidade de ser explicável ou
inexplicável. O sintoma na posição de acontecimento significante não invoca
suposições por parte do analisando nem por parte do analista;
3. O significante só é assim caracterizado se estiver ligado a um conjunto de
outros significantes. Refere-se à idéia de que “um significante representa o
sujeito para outros significantes”. O significante um pode ser percebido pelo
analista ou pelo analisando, mas os outros passam desapercebidos. Completa
Nasio: “estes são significantes virtuais, atualizados no passado ou ainda não
atualizados. A articulação entre um e os outros é tão estreita que, ao se
pensar no significante, nunca se deve imaginá-lo sozinho”
160
.
O significante só o é para outro significante e isto quer dizer que, quando surge um
significante, ele lembra dos outros significantes do passado ou anuncia a chegada de um
próximo. Os sintomas, do ponto de vista de seu valor formal e significante, se repetem, pois
aparecem, um por um, no lugar do significante um. Resume Nasio: “como vemos, o aspecto
significante do sintoma é o fato de ele ser um acontecimento involuntário, desprovido de
sentido e pronto para se repetir. Em suma, o sintoma é um significante, se o considerarmos
como um acontecimento do qual não domino nem a causa, nem o sentido, nem a
repetição”
161
.
Entretanto Michel Arrivé, em seu livro “Linguagem e psicanálise, lingüística e
inconsciente - Freud, Saussure, Pichon, Lacan” (1999), nos lembra que, para Lacan, um
significante pode ser uma palavra particular trabalhada pelo inconsciente, ou uma palavra
totalmente banal da língua. Pontua, também, que para Lacan não é obrigatório que o
significante seja uma palavra. Estende, assim, o conceito de forma que englobe tudo que se
possa estruturar sobre o modo do significante lingüístico. Afirma: “... isto é, tudo, pois a
própria natureza do elemento estruturável não tem que ser levada em conta. Tudo. Até um
cadáver, que decerto, [...] é um significante”.
162
160
Idem, p.18.
161
Idem, p.19.
162
LACAN, J. Escritos, p.833, In:ARRIVÉ, M. Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente. Freud,
Saussure, Pichon,Lacan, p.96. O grifo é meu.
Michel Arrivé faz uma crítica a J. D. Nasio. Afirma que este se pergunta sobre o que
é um significante, tal qual o faz Lacan. Entretanto, ao contrário do mestre, Nasio responde à
pergunta realizada. Michel alega que Nasio começa bem seu discurso sobre o significante
afirmando que este assume uma característica formal e não descritiva, pouco importando o
que designa. Entretanto Nasio, como já mencionado, enumera objetos na qualidade de
significantes como sintomas, sonhos, relatos de sonho, lapsos e outros. Pergunta Michel
Arrivé: se o significante é não descritivo, se não importa o que designa, como se pode
enumerá-lo?
E. Roudinesco e M. Plon também podem nos ajudar a esclarecer o que venha a ser o
significante, sem nomeá-lo, seguindo os passos de Lacan. Escrevem eles: “... o significante
transformou-se, em psicanálise, no elemento significativo do discurso (consciente e
inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e a
maneira de uma nomeação simbólica”.
163
Concluo que o significante diz respeito ao que
não tem significado: ele “cola”, atrela-se a “algo”, tornando-o particular e único. Ele está
presente na linguagem, no inconsciente, se faz presente repetidas vezes determinando os
atos e o destino do sujeito. O significante nunca está só sempre faz parte de uma cadeia,
representando o sujeito para outro significante.
O que desejo ressaltar é a importância, para o meu trabalho, da repetição e do
movimento presente na cadeia de significantes, assim como sua determinação sobre a vida
do sujeito. Lanço mão do conto de Edgar Allan Poe sobre a carta roubada analisado por
Lacan. Este conto traz contribuições importantes ao tema da transmissão de segredos.
Trata-se de duas cenas. A primeira desenrola-se na alcova real. A rainha encontra-se
sozinha e recebe uma carta. Logo depois é surpreendida pela entrada do rei, o que lhe
confere um sentimento de embaraço. Fica no ar a sensação de que caso o rei encontrasse a
carta a idéia de que faria desta, comprometeria a honra e a segurança da dama. A cena se
inicia com a entrada de uma terceira pessoa – o ministro D. Neste momento, não há outra
coisa a se fazer, a não ser jogar com a desatenção do rei e deixar a carta sobre a mesa. A
rainha deixou a carta virada para baixo, com o subescrito para cima. Contudo, o ministro D.
capta o desarvoramento da rainha e entende seu segredo – esconder do rei a carta.
163
ROUDINESCO, E., PLON, M. Dicionário de psicanálise, p.708.
Diante de tal percepção, em meio a conversas de negócios com o Rei, o ministro
retira de seu bolso outra carta com timbre parecido com a que está sobre a mesa. Finge lê-la
e a coloca sobre a mesa ao lado da primeira. Um tempo depois, com firmeza, pega a carta
real como se fosse a sua e a coloca no bolso. A rainha, por sua vez, assiste a tudo sem nada
a dizer para que não levante suspeitas do rei. A rainha sabe que foi furtada, sabe quem foi e
tem noção que o fez não de forma inocente.
A segunda cena passa-se na mansão do ministro.Antes, dá-se a entender que um
inspetor de polícia foi acionado, pela rainha, com o objetivo de recuperar a carta. Várias
buscas infundadas foram feitas à mansão do ministro durante sua ausência. Por fim, o
inspetor contrata Dupin que é considerado uma pessoa com talentos especiais para resolver
enigmas. A segunda cena se desenrola com a chegada de Dupin a mansão do ministro. Este
recebe Dupin com um ar de displicência ostensiva e tédio romântico. Dupin percebe é uma
aparente despreocupação e percorrendo os olhos pelo recinto, avista um bilhete esgarçado
que parece abandonado no vão de um porta-cartas no meio do painel da lareira. Entende
que achara o objeto a que procurava. Sua convicção é reforçada por alguns detalhes que
parecem servir para forjar a descrição que possui da carta real.
Dupin “esquece” sua tabaqueira para que no dia seguinte possa voltar. Ao retornar,
desta vez munido com carta semelhante à forjada na lareira (que é a carta real), Dupin
aproveita-se da distração do ministro ao ir até a janela verificar um incidente de rua
(forjado previamente por Dupin), e troca as cartas. Logo depois despede-se amigavelmente,
sem levantar suspeitas, do ministro.
Percebemos na história que há uma mudança na posição das personagens de acordo
com a posição da carta. Na primeira cena, a rainha usa o artifício de esconder a carta
mostrando-a ao mesmo tempo, tentando exalar um “ar” de despreocupação e cotidianidade.
O rei é tomado pela cegueira que nada vê, enquanto o ministro entende a importância da
carta para a rainha, mas percebe que não é a carta em si, e sim, seu conteúdo que pode ser
descoberto pelo rei. Ao se apossar da carta, o ministro assume outra posição – a da rainha.
A posição de quem deseja esconder a carta, deixando-a a mostra de todos. Os policiais
assumem o papel do rei, que não a encontram em lugar algum. Ocupam o lugar da cegueira.
Mas o ministro comete um erro e é pego pela trapaça de avestruz: escondeu a cabeça
enquanto seu adversário depenava seu traseiro. Repete o mesmo erro que a rainha cometeu
e que havia sido descoberto por ele mesmo. Diz Lacan: “Pois, ao entrar no jogo como
aquele que esconde, é do papel da rainha que ele tem que se revestir, inclusive nos atributos
da mulher e da sombra, tão propícios ao ato de esconder”
164
. O ministro, ao perceber que
não encontram a carta, mesmo expondo-a, acaba desconhecendo a situação real. Quando
Dupin o vê, não vendo, isto é, o ministro não percebe que Dupin conseguiu ver, perceber a
situação simbólica instalada, como o próprio ministro percebeu com a rainha. Que situação
simbólica é esta? O clima de tédio e despreocupação que o ministro tenta instalar, com a
chegada de Dupin, é uma tentativa de despistá-lo do que veio procurar: a carta exposta,
amassada, jogada num medíocre porta cartas.
“Dupin faz-se anunciar ao ministro. Este o recebe com uma displicência ostensiva
e frases afetando um tédio romântico. Mas, Dupin, a quem esse fingimento não
engana, com os olhos protegidos por óculos de lentes verdes, inspeciona o recinto.
Quando seu olhar recai sobre um bilhete esgarçado que parece abandonado no vão
de um medíocre porta cartas de cartolina que, atraindo o olhar por um brilho falso,
está pendurado bem no meio do painel da lareira, ele já sabe que está diante do
que procura”
165
.
Quando Dupin entrega a carta ao chefe de polícia, vê-se que o significante cai sem
significação. Que importância tem a carta neste momento? E a que serve este conto? É a
partir dele que Lacan nos assinala a ligação entre o automatismo de repetição de Freud e
seu princípio de insistência da cadeia de significante.
O conto nos mostra um deslocamento dos sujeitos. Há uma repetição intersubjetiva.
Esse deslocamento dos sujeitos ocorre de acordo com o significante puro, que é a carta
roubada. A carta tem um trajeto que lhe é próprio e é isso que marca sua incidência de
significante. Lacan explica que o significante se sustenta dentro de uma cadeia de
deslocamento comparável ao de faixas de letreiros luminosos. O significante deixa seu
lugar, nem que seja para retornar a este lugar circularmente. Este movimento é o que
acontece no automatismo de repetição. O sujeito segue o veio do simbólico. É o que
acontece no conto, os sujeitos mudam de lugar de acordo com o significante puro, que é a
carta. Acabam repetindo tais papéis, como o ministro assumindo o lugar da rainha e os
policiais assumindo o lugar do rei. Os sujeitos, tomados por sua intersubjetividade,
164
LACAN,J. “O seminário sobre a carta roubada”, p.35.
165
Idem, p.16.
modelam seu ser de acordo com a cadeia significante que estão percorrendo
166
. Isso nos
recorda dos ensinamentos de Freud:
“Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado, tem
algum sentido, é que o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus
atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não
obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou
sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como armas e
bagagens, tudo aquilo é da ordem do dado psicológico”
167
.
Há, assim, uma dominação do significante sobre o sujeito. A música tocada pela
cadeia significante será a trilha sonora seguida pelo sujeito.
Outro ponto abordado no texto, por Lacan, nos é útil. Diz respeito à comunicação.
Lacan afirma que esta pode dar a impressão de só comportar um único sentido. Ensina que
há uma comunicação intersubjetiva no qual o emissor da mensagem recebe do receptor sua
própria mensagem de forma invertida. Ilustra tal comunicação intersubjetiva com a história
de um menino que ganhava com freqüência no jogo do “par ou ímpar”. Lacan comenta que
o menino segue todo um raciocínio do jogo em função da atitude de seu adversário e em
relação à primeira e à segunda jogada realizadas por este e tira algumas suposições sobre
suas possíveis próximas jogadas. “Depois de um lance ganho ou perdido por mim, diz-nos
o menino, sei que, se meu adversário for um simplório, sua esperteza não irá além de mudar
de jogada em sua aposta, porém, se ele for um pouquinho mais esperto, ocorrer-lhe-á a
idéia de que é contra isso que estarei prevenido, e de que, portanto, será conveniente ele
fazer a mesma jogada”
168
. É através de uma imitação interna que o menino pretende fazer
suas suposições e ganhar o jogo. Mas se o adversário é tão inteligente quanto ele para
acompanhar seu pensamento, não haverá tempo válido de raciocínio, repetindo-se uma
oscilação inquieta. Desta forma, o raciocínio do jogador encontra-se para além da relação
dual, encontra-se em alguma lei presidida pela sucessão de lances que são propostos
durante o jogo. Que leis são estas?
“... essas leis são precisamente as da determinação simbólica. Pois está claro que
elas são anteriores a qualquer constatação real do acaso, assim como se vê que é
166
LACAN, J. “O seminário sobre a carta roubada”, p.33.
167
Idem, p.34.
168
LACAN, J. “O seminário sobre a carta roubada”, p.62.
conforme sua obediência a essas leis que se julga se um objeto é apropriado ou
não para ser utilizado para obter uma série ...”
169
.
Voltemos à dominação do significante sobre o sujeito. Nada pode ser escondido,
aliás, é na obscuridade que melhor podemos analisar o objeto, tanto na descoberta da carta
roubada quanto na suposta seqüência, que o adversário realizará na próxima jogada. Não se
trata do acaso, mas do simbólico, do movimento da cadeia de significantes – assinalando
para o automatismo de repetição. A insistência repetitiva de algo inconsciente e realmente
relevante para o sujeito, encontrada na obra de Freud, aqui ilustrada através de “Totem e
Tabu”, “Moisés e o monoteísmo” e outros, é representada na teoria lacaniana pela cadeia de
significantes: “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em
algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que
lhe oferece o discurso efetivo e na agitação a que ele dá forma”
170
. Mas onde a transmissão
de segredos ou não-ditos entra nesta história?
Nasio em seu livro Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan
171
(1993), relata
que o significante surge em momentos exatos, momentos que facilitam o esclarecimento do
que, até então, era totalmente desconhecido. Por exemplo, o significante pode ser um
chiste. O chiste faz rir por seu senso de oportunidade e tamanha exatidão no momento em
que é dito. O sintoma também pode ter a mesma virtude. Ele surge, através da dor
psíquica, como uma força faltante que com sua descoberta revela nossa vida sob outro
prisma. O sintoma surge num momento em que nos faz compreender. Mas, pergunta-se
Nasio, quem sabia que tal palavra ou sintoma surgido neste exato momento poderia tornar-
se esclarecedor? A resposta está no “saber inconsciente”. É o inconsciente que coloca a
palavra certa na hora certa, como também é ele que ordena a repetição desta palavra, ou
significante, mais tarde e em outro lugar. O inconsciente é o saber da repetição. Um
acontecimento ocupa a casa do significante Um, enquanto os outros acontecimentos,
ausentes e virtuais, ficam à espera
172
.
Pois bem, Nasio, com o objetivo de introduzir esclarecimentos sobre o lugar do
inconsciente no tratamento analítico, toca no âmago da questão fundamental deste trabalho.
169
Idem, p.65.
170
LACAN,J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, p. 813.
171
NASIO,J.D. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, p.19.
172
NASIO,J.D. Idem, p.21.
Afirma que o significante pode se repetir “ricocheteando” de um sujeito para outro, isso é,
reaparece não só no sujeito, mas este mesmo significante pode aparecer em outro sujeito
com quem se mantém um vínculo de transferência. Menciona como exemplo a relação
analista-analisando. Quando o analista enuncia uma interpretação na análise tomamos a
idéia de que a interpretação exprime o inconsciente do psicanalista. Contudo, tomando a
idéia da repetição do significante em outro lugar, podemos entender a interpretação do
analista como a “interpretação repete hoje, no dito do analista, um sintoma que se
manifestou ontem no dito do analisado”.
173
A interpretação do analista atualiza o
inconsciente do analisando. Ocorre uma reedição do significante ou do sintoma em outro
sujeito sob uma relação de transferência bem estabelecida. Afirma Nasio:
“Vamos imaginar que, neste momento, eu manifeste um sintoma sob a forma de
uma palavra que me escape. Sem dúvida, esse sintoma aparece inicialmente em
mim, mas da próxima vez, poderá repetir-se não apenas em mim, mas também em
outro lugar, na fala de um outro sujeito com quem eu mantenha um vínculo
transferencial”
174
.
Segundo Nasio, o significante se repete ocupando a casa do Um. Essa casa do Um
pode ser encontrada indiferentemente numa pessoa ou noutra. O dito anunciado,
inadvertidamente, pelo sujeito (e que atualiza a cadeia inconsciente dos ditos) pode ser
retomado, numa análise, tanto pelo analista quanto pelo analisando. O que é dito pelo
sujeito é tomado como sintoma, lapso ou chiste e o que é dito pelo analista é tomado como
interpretação. Desta forma, “o inconsciente liga e ata os seres”.
175
Nasio faz questão de
reforçar que este processo de “ricocheteamento” dos significantes só se inicia sob relação
transferencial bem estabelecida e acrescenta: “o inconsciente não é individual e nem
coletivo, mas produzido no espaço entre-dois, como uma entidade única que atravessa e
engloba ambos os atores da análise”.
176
Entretanto, sabemos que o fenômeno da transferência não é exclusivo da análise.
Freud já nos advertiu que a transferência ocorre no dia-a-dia, entre pessoas comuns fora do
setting. A relação mãe e filho, aluno e professor, entre amigos e outros, também está
173
Idem,p.22.
174
Idem,p.22. O grifo é meu.
175
Idem,p.23.
176
Idem, p.23-24.
sujeita à transferência, e conseqüentemente, aoricochetear” dos significantes. A diferença
é que as pessoas não se dão conta disto e não sabem como usá-la.
Referindo-se ao tempo de duração de uma sessão, Antonio Quinet pontua que o
inconsciente não se “localiza” nem dentro nem fora do sujeito, mas em sua própria fala.
Cabe ao analista, ensina o autor, fazer com que esse inconsciente exista
177
. Afirma que o
analista deve, com o intuito de fazer com que o inconsciente exista, pontuar a fala do
analisando. Entre alguns meios está a suspensão da análise, obedecendo, não ao tempo do
relógio, mas sim ao que se traz como discurso. A suspensão vem como resposta a “um
esquema de comunicação evidenciado por Lacan e que é encontrado não só na análise
como também na experiência comum do dia-a-dia”
178
. Aqui, Quinet refere-se ao axioma de
Lacan de que o inconsciente é estruturado como linguagem. E é o inconsciente, presente na
linguagem, que vai ditar o tempo de duração da sessão. Mas o que acontece fora do setting?
Se o inconsciente é estruturado como linguagem, se ele é o que dizemos, como afirma
Lacan, não podemos encontrá-lo em outro lugar senão na própria linguagem repleta de
significantes. No advento do sentido, para Lacan, trata-se da inclusão do sujeito
representado entre significantes e esta idéia implica precisamente a inclusão do sujeito do
inconsciente
179
. Se o inconsciente é estruturado como linguagem, então o que dizemos é o
inconsciente. Afirma Marco Antonio Coutinho Jorge: “... o inconsciente não se encontra
num suposto mais-além da linguagem, nem em qualquer profundeza abissal ou oculta. Ele
se acha nas palavras, apenas nas palavras e é nas palavras enunciadas pelo sujeito que ele
pode ser escutado. Estruturado como uma linguagem, é nela que o inconsciente se acha
profundamente enraizado”
180
. Desta forma, fora do setting, o inconsciente também se
presentifica via linguagem.
Como visto, podemos apontar para uma capacidade humana de transmitir
inconscientemente seus processos anímicos, assim como possuímos a capacidade de
interpretar inconscientemente a mensagem emitida por outra pessoa. Ao mesmo tempo,
entendemos que diante de tantas percepções a que estamos sujeitos, acabamos por filtrar
177
QUINET, A. As 4+1 condições da análise, p.51.
178
Idem, p.52.
179
JORGE, M.A. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan. As bases conceituais, p.81.
180
JORGE, M.A. Idem, p.80.
informações de que não nos damos conta. Informações estas que dizem respeito ao que nos
é íntimo e singular. Diz Lacan:
“Só que temos aqui, da mesma forma, a noção de uma profunda subjetivação do
mundo exterior – alguma coisa tria, criva de tal maneira que a realidade só é
entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma
profundamente escolhida. O homem lida com peças escolhidas da realidade”.
181
Estes pontos importantes conciliam-se com as características fundamentais do
conceito de significante. A repetição de algo realmente relevante ao sujeito, juntamente
com o “ricochetear” dos significantes, marca a possível transmissão deste significante, sem
sentido, inconsciente e que determina a ação do sujeito. Um segredo, ou mesmo uma
espécie de “padrão de funcionamento psíquico”, se repete dentro de uma família, e isso
acontece de tal forma que seus membros acabam sendo mordidos pelo significante. A
mensagem transmitida via significante é lida, também, de forma inconsciente.
Lacan pontua a força simbólica que os laços familiares exercem sobre os traços de
linhagem a se seguir. Aponta para os efeitos de devastação sobre o sujeito quando o meio
familiar insiste em sustentar uma mentira. Refere-se ao efeito repetitivo, passado de
geração a geração. Trata-se de marcar a força simbólica, a insistência repetitiva dos
significantes sobre o sujeito e seus efeitos. Afirma Lacan:
“Pois nenhum poder sem as denominações do parentesco está em condições de
instituir a ordem das preferências e tabus que atam e tramam através das gerações,
o fio das linhagens (...) sabemos com efeito da devastação, que chega até mesmo à
dissociação da personalidade do sujeito, que pode exercer uma filiação falseada,
quando a pressão do meio se empenha em sustentar-lhe a mentira”
182
.
A essa repetição, Lacan se refere como uma identificação simbólica, “pela qual o
primitivo supõe reencarnar o ancestral homônimo”
183
. Pontua que os símbolos envolvem a
vida do sujeito numa rede total que conjugam aqueles que irão gerá-lo. O sujeito vem ao
mundo já com um traçado de seu destino. Explica: “... forneceu as palavras que farão dele
um fiel ou um renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para
além de sua própria morte ...”
184
. Contudo, esta servidão total e sufocante aniquilaria o
181
LACAN, J. O seminário. Livro 7. a ética da psicanálise, p.63.
182
LACAN, J. “Função em campo da fala e da linguagem em psicanálise”, P.279.
183
Idem, p.279.
184
Idem, p.280.
sujeito se o desejo não interferisse e se não preservasse seu papel “nas pulsões que fazem
convergir para ele os ciclos da linguagem, quando a confusão das línguas mistura-se a eles
e as ordens se contrariam nas dilacerações da obra universal”
185
Um dos papéis primordiais da família, afirma Lacan, é o papel da transmissão da
cultura. É, também, a família que rege os processos fundamentais do desenvolvimento
psíquico e a organização das emoções segundo o ambiente. A família transmite ao sujeito
“regras” e um certo aparato a ser seguido, e tudo isso é transmitido inconscientemente: “em
termos mais amplos, ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo
funcionamento ultrapassa os limites da consciência”
186
. É através da transmissão que se
estabelece entre as gerações uma “continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem
mental”
187
. Ao fazer menção ao processo do complexo de Édipo, Lacan pontua que a
criança adquire uma certa intuição de que seu “envolvimento”, tal como deseja, com um
dos pais, é proibido. Esta intuição é adquirida através da captação de sinais mais ou menos
descritos e difusos transmitidos pelos pais: “Por outro lado”, diz ele, “ a criança adquire
uma certa intuição da situação que lhe é proibida, tanto pelos sinais discretos e difusos que
traem à sua sensibilidade as relações parentais quanto pelos acasos intempestivos que as
revelam a ela”
188
. Chama atenção para o que os psiquiatras nomeiam como “ninhos de
paranóicos”. Aponta para a constância com que podemos observar anomalias da
personalidade dentro da família do paranóico. Comenta haver uma transmissão entre os
membros da família:
Convém assinalar, com efeito, as anomalias da personalidade cuja
constância na parentela do paranóico é sancionada pela (...) freqüência da
transmissão da paranóia na linhagem familiar direta, muitas vezes com um
agravamento de sua forma para a parafrenia, e pela precisão temporal,
relativa ou até absoluta, de seu aparecimento no descendente.”
189
O que coloca no primeiro plano das causas de neurose é a neurose parental, pois o
sujeito forma seu super-eu e seu ideal do eu conforme as instâncias homólogas da
personalidade de seu genitor, isto é, no processo de identificação que resolve o complexo
185
Idem, P.280.
186
LACAN, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, p.31.
187
Idem, p.31.
188
Idem, p.52.
189
LACAN, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, p.74.
de Édipo: “a criança é muito mais sensível às intenções da pessoa parental que lhe são
efetivamente comunicadas do que aquilo que podemos objetivar do comportamento
dela”
190
. Há uma espécie de transmissão em razão da penetração afetiva que torna o
psíquico infantil receptivo ao sentido mais oculto do comportamento parental. No âmbito
familiar, pode ser formado um círculo vicioso, por exemplo, dos desequilíbrios libidinais
presentes nos pais e que são transmitidos aos filhos. Lacan comenta que o destino
psicológico da criança depende da relação que mostram entre si as imagens parentais. O
desentendimento ou a harmonia da união parental serão captados pela criança influenciando
o processo identificatório
191
.
Maria Cecília Pereira da Silva cita em seu livro
192
a saga da família Kennedy, isto é,
sua história repetitiva e marcada por acidentes fatais. Joseph Patrick Kennedy fez fortuna
de forma nebulosa e sempre desejou ter um filho que fosse presidente dos EUA. Levantam-
se suspeitas de que a vitória apertada de JFK nas eleições foi obra de Joseph, trapaceando
na contagem das urnas do Texas e de Ilinois. Joseph Kennedy Jr. morreu em 1944, num
acidente de avião durante a Segunda Guerra. Em 1948, Kathleen Kennedy, já viúva,
também morreu num acidente de avião aos 28 anos de idade. John F Kennedy, o presidente,
morreu assassinado em 1963. Três anos depois, o senador Robert Kennedy foi assassinado
e dois de seus filhos já morreram, um com 28 anos de overdose e o outro com 29 anos num
acidente de esqui. Edward Moore Kennedy, o irmão caçula, passou por dois acidentes
sérios (um de avião e o outro de carro). Seus dois filhos ainda estão vivos, mas um perdeu a
perna por causa de um câncer e o outro tem problemas com drogas. JFK Jr., o filho do
presidente Kennedy morreu num acidente de avião aos 38 anos. Segundo a autora, entre
outras histórias selecionadas por ela em seu livro, encontramos uma espécie de “compulsão
à repetição e a transmissão de representações vivenciadas ao longo de cinco gerações ...”
193
.
Refere-se, neste ponto, à uma herança psíquica transmitida através das gerações. Entendo
que devemos ser cautelosos e analisar os casos profundamente. Será que a família Kennedy
vem seguindo uma lógica inconsciente de acidentes fatais ou são apenas coincidências? São
destinos diversos e diferenciados: acidentes de avião, overdose, assassinato, acidente de
190
Idem, p.85.
191
Idem, p.87.
192
SILVA, M.C.P da. A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo, Casa do Psicólogo FAPESP,
2003.
193
SILVA, M. C. P. da. A herança psíquica na clínica psicanalítica, p.17.
esqui ... Pretendo ressaltar o cuidado que devemos ter em analisar cada caso, diferenciar a
escolha única e particular do sujeito e o que, de fato, se repete como herança psíquica
transmitida através de gerações.
A transmissão de um segredo familiar ou mesmo de um padrão a ser seguido,
guiado pelo desejo, parece ser realizada via dos significantes. Essa transmissão
inconsciente talvez possa se realizar através de dois meios que, até aqui, consegui enxergar:
através da linguagem e através do nosso próprio corpo. São apenas hipóteses que tento
discutir no último capítulo deste trabalho.
CAPÍTULO 4
CONTANDO OS SEGREDOS
“Não sou tão tolo a ponto de pretender que minhas
conclusões sobre essas difíceis questões sejam finais.
Já mudei minhas opiniões repetidamente e estou
resolvido a mudá-las novamente com cada mudança
de provas, pois como um camaleão, o pesquisador
honesto deve mudar suas cores de acordo com as
cores ambientes do chão que pisa”
194
. Frazer,
1887,1,XIII.
Fazendo minhas as palavras de Frazer, neste último capítulo, apresento duas
hipóteses quanto à transmissão de significantes e, conseqüentemente, dos segredos
familiares. São apenas hipóteses que necessitam de muitas leituras, muitas idas e vindas,
não só teoricamente, como também um amadurecimento maior de minha própria clínica.
4.1. A transmissão transgeracional através da identificação: uma outra perspectiva.
Antes de expor tais hipóteses, registro a visão de Maria Cecília Pereira da Silva a
respeito da “transmissão transgeracional”, à qual tive acesso somente quando me
encontrava prestes a encerrar esta dissertação. O livro de Pereira da Silva contribui, e
muito, para a discussão do presente tema. Ela investe sua posição na questão da
identificação mórbida, não fazendo uso da teoria lacaniana, como veremos a seguir.
Contudo, acredito que sua perspectiva poderá acrescentar pontos importantes à continuação
de minha pesquisa sobre a transmissão de significantes, possibilitando-me “olhar” com
maior cautela as questões identificatórias na relação dual. Outra importante autora que não
pode deixar de ser mencionada nesta questão da transmissão transgeracional é Olga B. Ruiz
Correa, 2000. Seu livro O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica
toca na questão das identificações como um dos elementos que fazem parte da transmissão
inconsciente. Além das identificações, também menciona a repetição e a transferência
como um dos elementos que podem ser encontrados na transmissão. Contudo, limito-me,
neste trabalho, a abordar a questão da transmissão psíquica inconsciente através dos
significantes, não ignorando, no entanto, a importância das identificações neste processo.
Pereira da Silva é psicanalista e seguidora da teoria kleiniana. No entanto, toma
como referência, na teorização sobre a concepção do psiquismo, as visões de Winnicott e
Bion, articulando-as com o referencial apresentado pela escola francesa sobre os fenômenos
194
Freud cita esta frase de Frazer retirada de seu livro publicado em 1887, referindo-se à importância de poder
entender que nada é conclusivo e que devemos estar receptivos a mudanças de opiniões.
transgeracionais. Sua teoria surgiu a partir da prática clínica. Começou a perceber que os
sintomas apresentados por seus pacientes em análise pareciam ser fruto de fenômenos
transgeracionais ou intergeracionais. A estes Maria Cecília definiu, respectivamente, como
fenômenos resultantes da transmissão de uma herança psíquica através das gerações e
transmissão mais direta, que ocorre entre gerações, por exemplo, de pai para filho.
195
A autora começou a perceber que o sujeito portava uma história, uma carga que não
lhe pertencia, mas que mesmo assim, era tomada e carregada como se fosse. Os sintomas
apresentados eram verdadeiros registros, repetições de histórias vividas por gerações
precedentes. Menciona alguns casos como a de um bebê que apresentava transtornos do
sono. Durante as consultas com os pais, pôde-se perceber a angústia da mãe e seu desespero
ao ouvir a filha chorar durante a noite. Ao menor sinal de choro do bebê, a mãe se
levantava e ia ao seu encontro. Eram noites longas, sem que a família pudesse dormir. No
relato do pai, percebeu-se que ele não dormia sozinho com a esposa. Ele mantinha a filha
mais velha e o bebezinho no quarto do casal. Ele não ficava sozinho, não gostava e isso se
repetia em outros ambientes, como no trabalho. Nunca ficava só no escritório. Durante o
processo analítico, constataram-se os medos infantis, do pai, em relação à morte. A mãe,
por sua vez, falou de situações que lhe geraram intensa angústia. Contou que quando
pequena era muito apegada a duas de suas tias (que eram anãs). Estas moravam com sua
avó, portanto mãe de suas tias. Na época da morte de sua avó, as tias entraram em total
desespero, pois eram cuidadas por esta mulher, choravam de forma intensa e compulsiva.
Os adultos da casa a afastaram das tias com o intuito de protegê-la. No entanto, a angústia
sentida ficou registrada ao ouvir o choro das tias e não poder ter acesso a elas para acalentá-
las. O sintoma do bebê expressava tanto o sintoma do pai como o da mãe. Era preciso que o
bebê não dormisse, que não parecesse morto, para o pai não vivenciar seu temor infantil
pela morte. Chorar era sinal de que estava vivo. Todavia, o choro fazia com que,
inconscientemente, a mãe experimentasse toda a angústia sentida ao ouvir o choro das tias e
não poder ajudá-las. O casal não percebeu que a queixa apresentada reeditava questões
inconscientes da família.
195
SILVA, Maria Cecília Pereira da. A herança psíquica na clínica psicanalítica, p.30.
Por que isso acontece? Pereira da Silva afirma que os objetos externos acabam por
ocupar a vida mental dos pacientes, ou seja, por habitar o self (“self como uma organização
dinâmica que possibilita ao indivíduo tornar-se uma pessoa e ser ele mesmo”
196
) do
paciente. É como se a pessoa fosse um receptáculo de excessivas projeções de aspectos
inconscientes dos objetos parentais, como se fosse um self sem berço. É um self que, uma
vez habitado pelas excessivas projeções inconscientes, não era capaz de diferenciar e
digerir essas projeções que são tão típicas no momento de desenvolvimento emocional.
Afirma a autora diante dos casos clínicos: “parecia uma vida e uma não vida mental, com
um destino traçado por outrem, ou que havia recebido um mandato, uma missão a cumprir,
imposta, determinada, sem pedir licença ou autorização”
197
.
O mandato inconsciente passado de geração a geração é conseqüência, do que a
autora denominou de identificações mórbidas, ou seja, identificações projetivas patológicas,
identificações intrusivas ou alienantes, que facilitam a um self ser habitado por outro,
possibilitando a experiência de identificação de ser o outro e de ter o destino do outro,
havendo a presença de atividades mentais psicóticas. Há a possibilidade do self ser
“parasitado” muito precocemente por outro self nefasto e doentio, assim, não surge uma
estrutura psíquica própria e autônoma – é a presença da psicose
198
. Tanto o self habitado
quanto o parasitado, a pessoa parece não ter autonomia para diferenciar o que é seu, seguir
e contar sua própria história, digerindo o que vem do outro. Acaba seguindo o que lê como
mandato inconsciente de acordo com as identificações mórbidas ditadas de forma
inconsciente através das relações parentais. O paciente fica impedido de “fundar uma
psique própria”
199
.
Pereira da Silva levanta a hipótese de que elementos transgeracionais são
transmitidos via identificações mórbidas, pois carregam elementos que não foram digeridos
por mais de uma geração. Aquilo sobre o que não foi possível encontrar uma inscrição
psíquica, uma figuração imaginária nos pais, abre uma porta para que haja um retorno sobre
o outro, sobre os filhos, havendo uma reprodução sem compreensão, sem sentido. Herança
que se perpetua de uma geração a outra, desafiando o tempo.
196
Idem, p.28.
197
Idem, p.30.
198
SILVA, Maria Cecília Pereira da. A herança psíquica na clínica psicanalítica, p.151.
199
Idem, p.39.
Olga B. Ruiz Correa analisa a influência dos legados familiar e cultural, na
configuração da subjetividade humana. Segundo a autora, o processo de transmissão
transgeracional implica um trabalho de ordem singular e de ordem grupal. A transmissão
ocorre de uma pessoa a outra, como também através de gerações, o que inclui um número
maior de pessoas. Afirma: “transmitir é transvasar um objeto, uma história, os afetos, não
só de uma pessoa para outra, como também de uma geração para outra, configurando certa
distância entre transmissor e receptor”
200
. Ela pontua a importância de se compreender que
o sujeito pode ser pensado como um lugar de encontro de múltiplas determinações, ou seja,
como o encontro de uma trama entre as inscrições desejantes, familiares e culturais. Em
suma, afirma Olga Correa:
“deste modo, cada sujeito deve realizar uma dupla aprendizagem: de um lado, as
regras do grupo cultural, do outro, as regras que se organizaram em sua família e
seu modo peculiar de intercâmbio com os demais agrupamentos. A cultura,
portanto, é ao mesmo tempo algo externo ao sujeito e algo interiorizado na
configuração de seu psiquismo a partir de sua relação com os outros”
201
Olga Correa já parte do princípio de que há uma transmissão inconsciente, a que
todos estão submetidos. O receptor da mensagem inconsciente deve acolher, apropriar-se e
transformar o que lhe foi transmitido. Contudo, tal processo pode falhar e, ao invés de ser
um processo estruturante do sujeito, pode transformar-se em um processo que aliena o
sujeito, atravessando gerações, impondo-se, em estado bruto, sem simbolização. O que
Olga Correa defende é a idéia de que os discursos parental e social sustentam a transmissão
psíquica configurando uma rede de significações carregadas de afeto que podem interferir
no processo de subjetivação, dando margem a patologias transgeracionais.
De qualquer modo, ambas as autoras sustentam a existência da transmissão psíquica
inconsciente, ressaltam a identificação como um dos elementos importantes e acabam se
detendo nas conseqüências psíquicas quando algo que não foi simbolizado é transmitido
através das gerações. Contudo, não se perguntam sobre o mecanismo da transmissão
inconsciente.
4.2. Contando os segredos através da linguagem na vida cotidiana
200
CORREA, Olga B. R. O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica, p.15.
201
Idem, p.61.
Desde muito cedo, Freud nos ensina sobre a incrível habilidade inconsciente,
presente na fala, de “dizermos” coisas que não havíamos previsto dizer, ou seja, de
deixarmos “escapar” algo inconsciente e, portanto, não sabido por nós mesmos de modo
consciente.
Em “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”(1901), Freud pontua extensamente o
caráter inconsciente inerente aos atos falhos. Enumera, entre outros, os lapsos da fala, da
escrita e da leitura, como a troca de nomes, de letras, a formação de palavras inexistentes e
aparentemente sem sentido que demonstram, a um ouvinte mais atento, a existência de
intenções ocultas na fala. Afirma Freud: “... tanto nas perturbações mais grosseiras da fala
quanto nas mais sutis, que ainda podem ser classificadas sob o título de ‘lapsos da fala’
penso”[...] que é a influência “de pensamentos situados fora do dito intencionado, que
determina a ocorrência do lapso e fornece uma explicação adequada para o equívoco
ocorrido”
202
. Tais lapsos, de origem inconsciente, ocorrem dia-a-dia, sem que algumas
pessoas tomem ciência do ocorrido. No entanto, alguns desses lapsos são tão nitidamente
denunciadores que o ouvinte logo se apercebe do que, de fato, permeia os pensamentos de
quem proferiu o dito.
Freud dá o exemplo de duas irmãs. Uma delas pede a outra, que é dentista, para
avaliar um problema que havia surgido em seus dentes. No entanto, passou-se muito tempo
desde o pedido e, diante da demora, a irmã comentou gracejando: “Agora ela (a dentista)
203
talvez esteja tratando de uma colega, mas sua irmã tem que continuar esperando”. Enfim, a
dentista resolveu examinar a irmã e constatou um orifício num dos molares. Neste
momento disse à irmã: “Não pensei que fosse tão sério. Achei que você só não tivesse
kontant (moeda corrente) ... quero dizer kontakt”. De imediato, a outra irmã retrucou: “ Está
vendo? Foi só por avareza que você me fez esperar mais tempo de que seus pacientes que
pagam”
204
. O ato-falho em questão não deixou dúvidas à ouvinte sobre o que aconteceu. O
lapso transforma-se num meio de expressão de algo que não se queria dizer: torna-se um
202
FREUD, S. “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, ESB, p.92. FREUD, S. “Psicopatología de la vida
cotidiana”, AE, p.82.
203
Acréscimo meu.
204
FREUD, S. “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, ESB, p.101. FREUD, S. “Psicopatología de la vida
cotidiana”, AE, p.92.
meio de trair a si mesmo. Não é preciso ser psicanalista para entender o que alguns atos-
falhos comunicam.
A forma hilária ou irônica como as pessoas encaram qualquer ato-falho é sinal de
que elas percebem haver um significado psicológico oculto. Diz Freud: “... até o leigo se
apercebe de que o esquecimento no tocante as intenções não pode ter a pretensão de ser
considerado um fenômeno elementar irredutível, mas autoriza a conclusão de que existem
motivos inconfessados”
205
. Os atos-falhos, em geral, como os lapsos da fala, da escrita, da
leitura, os atos sintomáticos, os esquecimentos, os equívocos na ação e outros trazem à
tona, à revelia do sujeito, conteúdos inconscientes que não passam desapercebidos nem por
leigos. Há uma “confissão por um ato-falho”
206
. Para o psicanalista, estes atos-falhos são de
grande valia no trabalho analítico, mas para um “observador da natureza humana revelam
tudo – e às vezes até mais do que ele desejaria saber
207
.
Luiz Alfredo Garcia-Roza, em seu texto “A função significante da palavra: Lacan e
Santo Agostinho” faz um paralelo entre Santo Agostinho e Lacan a respeito da articulação
existente entre palavra e verdade. Como veremos, tal articulação nos remete à verdade
inconsciente “contada” através dos atos-falhos.
No ano de 389, num escrito intitulado Do mestre, cuja primeira parte intitula-se
“Diálogo sobre a significação da palavra”, Santo Agostinho discorre sobre a verdade e a
linguagem. O escrito baseia-se em um diálogo com seu filho – Adeodato. Agostinho
pergunta ao filho sobre o que pensa que pretendemos ao exercitar a fala. Adeodato
responde que pretendemos ensinar ou aprender. A partir daí, Agostinho teoriza e chega à
conclusão de que ao falarmos propomo-nos somente a ensinar. Afirma que mesmo quando
perguntamos algo, ensinamos ao outro o que queremos saber. O ensino se faz, afirma, por
relembranças. Fala-se para relembrar, para suscitar recordações nos outros e em nós
208
.
As palavras são signos que nos remetem a outros signos e não às coisas. Desta
forma, a significação se faz pela articulação signo-signo.
205
Idem, p.158. Idem, p.151.
206
Idem, p.201. Idem, p.196.
207
Idem, p.200. Idem, p.196. O grifo é meu.
208
Roza, L. G., “A função significante da palavra: Lacan e Santo Agostinho”, p. 93.
Ao comentar tal escrito, Lacan afirma que Santo Agostinho não coloca a questão em
função de comunicação por sinais. O que ocorre é uma troca inter-humana da palavra. O
que está em jogo é a intersubjetividade. Santo Agostinho inscreve a função significante da
palavra no domínio da verdade, ou seja, não faz menção à lingüística e nem à teoria da
informação. A verdade, para Santo Agostinho, ou já a possuímos ou, se não, não podemos
adquiri-la por meio das palavras. Isto porque com as palavras aprendemos apenas palavras.
E, mesmo assim, estas são apenas sons e só sabemos que são palavras porque já
conhecemos previamente seu significado. Não é a palavra em si que “guarda” a verdade. A
verdade, através da nossa interioridade, é que possibilita a palavra. O que compreendemos
através das palavras só é possível porque existe um além-linguagem. É algo exterior aos
próprios signos e exterior à própria linguagem que se faz presente, que “se faz entender”.
Agostinho articula a interioridade humana com a verdade, mas remete ao registro do
erro, do equívoco e da mentira. E estes ícones apontam para a questão do sujeito, interesse
de Lacan na análise que faz de tal escrito agostiniano. É a mentira do outro que nos faz
entender que estamos diante de um sujeito. A relação intersubjetiva, a subjetividade se faz
presente por intermédio do enganar, do mentir, do ocultar. É um “equivoco-me, logo sou”
ou “minto, logo sou
209
.
Segundo Lacan, a palavra se instaura e se desloca na dimensão da verdade, mas não
sabemos se é verdadeira ou não, pois as palavras também estão situadas no registro da
equivocação, da mentira. Para Agostinho, o signo é enganador porque não mantém relação
natural com a coisa em si. Eles não servem para aprender. Desta forma, a função
significante da palavra não se relaciona com a coisa significada, mas com a relação que a
própria palavra tem com as outras palavras que giram em torno da coisa. Diz Lacan: “a
linguagem só é concebível como uma rede, uma teia sobre o conjunto das coisas, sobre a
totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui de o
plano simbólico”
210
.
Garcia Roza segue o texto explicando a relação do nome das coisas com a não-
verdade. Afirma que as coisas têm o nome que têm por conta das definições, ou seja, por
209
Idem, p. 94.
210
LACAN, J. “A verdade surge da equivocação”, p.298-299.
conta das relações entre os signos. As definições são equívocas e enganadoras, assim, a
verdade só pode ser encontrada fora da linguagem na interioridade do sujeito.
Vejamos: se chamarmos a mesa de cadeira e passamos a falar que colocamos a
comida, os talheres na cadeira e que guardamos objetos na gaveta da cadeira etc., deixamos
transparecer, através do discurso, que estamos falando de uma mesa ao invés de cadeira. O
todo do discurso é que faz o sentido, faz a diferença. Afirma Lacan: “O saber absoluto é o
momento em que a totalidade do discurso se fecha sobre si mesma numa não-contradição
perfeita, até e aí compreendido o fato de que ele se coloca, se explica e se justifica”
211
. A
via da verdade para a psicanálise se faz através do caminho das equivocações, dos lapsos,
dos tropeços, das ambigüidades da palavra. A verdade do desejo está aí.
Referindo-se a Freud, Lacan explica que a verdade contida no discurso do sujeito se
desenvolve na ordem do erro, do desconhecimento. Refere-se à equivocação, ao tropeço na
fala, ao que chamam, impropriamente, de falha. Impropriamente, pois, é na falha, nesta
fenda que se abre, que emerge a verdade do sujeito. Os atos-falhos contam o que estava
escondido. Verdade e erro andam juntos, ou seja, “não há erro que não se coloque e não se
ensine como verdade”
212
. São estas palavras falhadas no discurso do sujeito que nos
mostram a verdade. Diz Lacan: “Nossos atos-falhos são atos que são bem sucedidos, nossas
palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas revelam uma verdade de
trás”
213
. O ato-falho é o inconsciente que emerge pela linguagem. Linguagem repleta de
significantes que nos traz a verdade do sujeito.
Vejamos as formações do inconsciente de Freud como o chiste, o sonho, o ato falho
e o sintoma. Comecemos pelo chiste (witz). Primeiro devemos distingui-lo do que é
cômico. O cômico liga-se ao que é da ordem do imaginário, é o que faz rir, pois há uma
“quebra” da imagem ideal, da rigidez da imago. Por exemplo o sujeito que cai deve ser
alguém bem vestido ou elegante, pois não se acha graça de um velhinho ou mendigo caindo
no chão
214
. O chiste é da ordem do simbólico. Refere-se ao que está proibido e recalcado
nas relações sociais. O sujeito do inconsciente faz-se presente por algum momento, como
211
Idem, p.301.
212
Idem, p.300.
213
Idem, p.302. O grifo é meu.
214
JORGR, M.A.C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan. As bases conceituais, p.116.
que driblando o recalcamento. As quatro grandes tendências do chiste são: a obscenidade, a
agressividade, o cinismo e o ceticismo. Estas quatro tendências são recalcadas por nós e o
chiste vem como uma forma de expressão social do sujeito do inconsciente, ao contrário do
sonho que é algo privado ou do lapso e do ato-falho que são da ordem do sintoma. O chiste
é compartilhado com outras pessoas demonstrando seu aspecto social. Afirma Roudinesco e
Plon (1998): “Quando atingem seu objetivo, os chistes, que requerem a presença de pelo
menos três pessoas (o autor da piada, seu destinatário e o espectador), ajudam a supor os
desejos recalcados, fornecendo-lhes um modo de expressão socialmente aceitável”
215
. Na
verdade o chiste é a expressão do inconsciente, assim como com o sonho, o ato-falho e o
sintoma.
Em seu livro, Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905),Freud nos dá um
belo exemplo de como o sujeito do inconsciente pode ser “pinçado” através do chiste e
conseqüente aparição dos processos inconscientes através da linguagem. Trata-se de um
rico chiste de Heine, que fez um de seus personagens chamado Hirsh-hyacinth, que é um
pobre agente de loteria. Este agente vangloria-se de que o grande barão Rothschild tratou-o
como um igual dizendo ter sido bastante “familionariamente”. Além da brevidade ser o
corpo e a alma do chiste, este se caracteriza por apresentar o que foi ocultado ou escondido.
Esta palavra “familionariamente” remete a duas frases embutidas nesta palavra fundida: “R.
tratou-me quase como seu igual, muito familiarmente” e, como um pós-scriptum, “isto é, na
medida em que isso é possível a um milionário”
216
. Com o chiste “R. tratou-me como seu
igual – bastante familionariamente”, a segunda frase desaparece, deixando mais evidente o
tratamento familiar, isto é, a segunda frase é omitida do texto, mas é “denunciada” através
da junção, em uma única palavra, de familiar com milionário. Aqui há uma liberação de um
“pensamento subsidiário suprimido”
217
.
O sonho, isto é sua interpretação realizada pelo sonhador, também revele o que é
íntimo e singular de cada um através da linguagem. Segundo Roudinesco e Plon (1998), o
sonho é um “fenômeno psíquico que se produz durante o sono [...] é predominantemente
constituído por imagem e representações cujo aparecimento e ordenação escapam ao
215
ROUDINESCO, e. PLON,M. Dicionário de psicanálise, p.112.
216
FREUD,S, Os chistes e sua relação com o inconsciente, ESB p.27. FREUD,S.El chiste y su relación com
lo inconciente, AE,p.18.
217
Idem, p.29. Idem, p.21.
controle do sonhador”
218
. Estas imagens, afirma Marco Antonio Coutinho Jorge (2002),
tem um valor de significante
219
. Há uma ordenação simbólica singular fazendo com que o
conteúdo do sonho tenha que ser transferido para a linguagem dos pensamentos do
sonhador. Deve haver uma interpretação feita pelo próprio sonhador através da linguagem,
repleta de significantes e não uma interpretação vinda de terceiros e com base em símbolos
universais. È através não da palavra em si mas do que ela traz como singularidade que,
também com os sonhos, podemos “pinçar” o sujeito do inconsciente. Afirma Coutinho
Jorge: “Como afirma Lacan de modo impactante, se quisermos ouvir o que Freud
apresentou em suas teses, ‘o inconsciente é o que dizemos’, ele se manifesta nas palavras
mesmas que são enunciadas, não estando situando nem aquém nem além delas, mas na
potência significante que lhes é inerente”
220
.
A interpretação do sonho através da linguagem do sonhador também mostra o que
era para ser velado mas que acaba por escapar do recalque. Vejamos o exemplo descrito por
Freud em “Conferências Introdutórias sobre psicanálise” (1916[1915-1917]): como parte de
um longo sonho, um dos pacientes de Freud afirma ter sonhado que diversos membros de
sua família estavam sentados em volta de uma mesa de formato especial. Em sessão, ao
emitir comentários sobre o sonho associou que havia visto este móvel quando visitava uma
determinada família. Nesta família, completa, existia entre pai e filho, uma relação peculiar.
Esta lembrança o fez associar a sua relação com seu próprio pai. Sem estas associações
vindas do sonhador jamais poderíamos saber que uma mesa de formado especial
representaria algo tão importante. Freud afirma que nada é casual ou indiferente no sonho e
que devemos obter informações a partir das explicações dos detalhes trviais e
despropositados que aparecem. Algo trivial como uma mesa só pôde ser remetida a algo tão
importante quanto a relação pai e filho porque o sujeito pôde, através da linguagem,
associar livremente mostrando o que há de único e singular.
O ato-falho também tem a característica de estar relacionado aos motivos
inconscientes de quem o comete. Há um compromisso entre a intenção consciente do
218
ROUDINESCO, E.PLON, M. Dicionário de psicanálise, p.722.
219
JORGR, M.A.C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan. As bases conceituais, p.126.
220
Idem, p.131.
sujeito e seu desejo inconsciente
221
. Como exemplo, descrevo um ato-falho cometido por
uma vendedora de doces presenciado por mim.
Estava na rua em companhia de uma criança de 8 anos. Ela resolveu comprar um
chiclete numa barraquinha de doces. Retirou do bolso uma moeda de um real e pediu o
doce desejado. Ao receber o tal doce, fez menção de ir embora quando a vendedora a
chamou para pegar o troco. Esta fez o seguinte comentário, com algumas amigas que
estavam ao seu lado: “Deus me livre e guarde! Tem gente que se aproveita para tirar
vantagens de crianças ... eu não faço isso! Em seguida deu de troco uma moeda ao menino.
Mais adiante, a criança me mostra a moeda pedindo-me para comprar outro doce em outra
barraca. Ela deveria ter uma moeda de cinqüenta centavos, já que o chiclete comprado
custou cinqüenta centavos e ela havia dado um real. Quando peguei a moeda, percebi que
se tratava de cinco centavos e não de cinqüenta centavos. Este ato fala por si só, fala dos
desejos inconscientes da vendedora de doces em questão.
O sintoma também representa o que é singular ao sujeito do inconsciente. Conta-nos
a respeito do que desejamos esconder, até de nós mesmos. Como exemplo, lanço mão do
caso de Miss Lucy contado por Freud. Ela tinha trinta anos e era governanta na casa de um
diretor-gerente de uma fábrica nos arredores de Viena. Tinha como queixa a perda do
sentido do olfato e de uma alucinação olfativa que a perseguia com freqüência, além de
fadiga e desânimo. A alucinação olfativa tratava-se de cheiro de pudim queimado. Freud,
então, passou a investigar o que poderia estar por detrás desses sintomas.
Miss Lucy conta que sentiu esse cheiro de pudim queimado na ocasião em que
recebera uma carta de sua mãe, próxima a data de seu aniversário. Distraída com a carta e
com o carinho recebido pelas crianças que cuidava (filhas do diretor) acabou esquecendo o
pudim no fogo, exalando cheiro de queimado. Questionada por Freud, miss Lucy afirma
que na época vivia um período de incertezas. Havia pedido para ser mandada embora, pois
não estava se entendendo com os outros empregados da casa. Seu patrão, diante do pedido,
deu-lhe três semanas para que pensasse se era isso que realmente queria fazer. A carta de
sua mãe lembrou-a de tal indecisão pois, caso decidisse ir embora voltaria para a casa
materna. Disse a Freud que se sentia culpada de deixar as crianças, pois a mãe delas havia
221
ROUDINESCO, E.PLON, M. Dicionário de psicanálise, p.40.
morrido e Miss Lucy havia prometido devotar-se com todas as forças às crianças e ocupam
o lugar de mãe.
Segundo Freud havia, por detrás, uma representação intencionalmente recalcada da
consciência e excluída das modificações associativas
222
. Inferiu, ao longo das associações,
que Miss Lucy estava apaixonada pelo diretor e que esta nutria uma esperança secreta de
assumir de verdade o lugar da mãe das crianças. O desentendimento com os outros
empregados vem do receio de que eles suspeitem de suas esperanças. A própria paciente
diz a Freud que não queria saber sobre seus sentimentos e que vinha tentando tirá-lo de sua
cabeça. Ela sabia e ao mesmo tempo não sabia sobre seus sentimentos. O cheiro do pudim
queimado a remetia a algo inconsciente: a seus verdadeiros sentimentos em relação ao
patrão, ao seu receio de que descobrissem seu segredo e a seu possível retorno para casa.
As formações do inconsciente, particularmente aquelas que se presentificam na
chamada psicopatologia da vida cotidiana, como o chiste, o sonho, o ato-falho e o sintoma,
nos mostram e contam o que não desejamos saber, nos contam o que é inconsciente. De
Santo Agostinho a Lacan, a verdade de que se trata é a dos significantes, que dá vida, cor e
sentido às palavras. Aqui, a transmissão ocorre através do “todo do discurso”, que é
percebido por meio das palavras, mas não por conta delas, e sim, por conta do que é
subjetivo e manifesto através do caminho das equivocações.
O dia-a-dia, a relação íntima estabelecida dentro de uma família, ou entre duas ou
mais pessoas próximas, proporciona inúmeras oportunidades para que esses atos-falhos
possam surgir, possam se fazer presentes repetidas vezes. Como dito no capítulo três, Freud
supõe que as pessoas possuam a capacidade de emitir e captar mensagens inconscientes. Os
atos-falhos emitem, comunicam o que está oculto, o que é inconsciente, deixando a
interpretação para quem ouve. A troca de palavras, um bilhete “inocente” preso na
geladeira com lapso de escrita, a repentina troca de nomes, tudo isso pode “contar” um
segredo familiar ou emitir um sinal inconsciente de que não se pode saber ou falar sobre
determinado assunto que deveria permanecer secreto.
4.3. Contando os segredos através do próprio corpo
222
FREUD,S, Estudos sobre a histeria,ESB, p.143. FREUD,S Estúdios sobre la histeria, AE, p.124.
Inicio este subtópico fazendo referência a um caso relatado por Freud em seu texto
“Sonhos e ocultismo”, que deveria ter sido incluído em “Psicanálise e telepatia”. O motivo
da omissão deste artigo já foi explicado no capítulo dois deste trabalho. Este caso nos serve
não só para apontar a eficácia dos atos-falhos na “comunicação” de pensamentos
inconscientes, como também para apontar a importância da expressão corporal no processo
de transmissão de significantes. Eis o caso:
Freud recebera a visita de um amigo, Doutor Forsyth, em seu consultório, numa
manhã de outono de 1919. Não pôde atendê-lo como gostaria, pois estava com um de seus
pacientes. Apenas o saudou e marcou um encontro para mais tarde. Este amigo suscitava
bastante interesse em Freud, visto que ele era o primeiro estrangeiro a retomar os
“encontros psicanalíticos internacionais” depois da interrupção causada pela guerra. Quinze
minutos depois da saída do Doutor Forsyth, um outro paciente, chamado Herr P., chegou ao
consultório para ser atendido. Este homem procurou Freud por ter dificuldades com
mulheres, mas Freud não via nenhum êxito terapêutico, propondo a interrupção do
tratamento. Entretanto, Herr P. insistia em continuar com os encontros, por se sentir à
vontade em uma transferência paterna em relação a Freud. Por sua vez, Freud gostava das
sessões com Herr P., permitindo que seus encontros prosseguissem até a data em que os
estrangeiros chegassem para a retomada das discussões psicanalíticas, pois isto ocuparia em
demasia o seu tempo. Nas sessões com Herr P., Freud acabava por negligenciar algumas
regras da clínica médica
223
.
Iniciada a sessão com Herr P., este logo se refere à intenção de se relacionar com
uma jovem, que já havia mencionado diversas vezes a Freud. No entanto, desta vez, disse
que ela costumava chamá-lo de ‘Herr Von Vorsicht’ , que significa ‘senhor cuidado’. Freud
surpreendeu-se e mostrou o cartão de visitas do Doutor Forsyth. Retomarei a explicação
dada por Freud, do que acabo de relatar, mais adiante. Por hora, registro duas outras
associações ocorridas na mesma sessão. Após mencionar ‘Herr Von Vorsicht’, Herr P.
pergunta a Freud se Freud-Ottorego, que estava dando um ciclo de conferências sobre
inglês, era sua filha. Contudo, cometeu um lapso de linguagem ao pronunciar “Freund” ao
invés de Freud. No final da sessão, Herr P. conta um sonho que o fez acordar com pavor e
223
FREUD,S. “Sonhos e ocultismo”, ESB, p.54. FREUD, S. “Sueños y ocultismo”, AE, p.45.
diz que tinha sido um verdadeiro “alptraum”. Completa dizendo que havia muito tempo
esquecera a palavra inglesa que representava “alptraum”. Quando perguntado, dizia que a
palavra inglesa era “amare’s nest”. O que é absurdo, pois esta palavra significa algo
incrível, um conto policial. A tradução correta seria “nightmare”.
Associações quanto ao lapso de linguagem: Freud comenta que na semana anterior à
tal sessão ele havia esperado em vão por Herr P. Diante de sua ausência, Freud foi visitar
um amigo, chamado Doutor Anton Von Freund. Durante a visita notou que ele morava no
mesmo prédio que Herr P. Em outro momento, Freud conta o ocorrido a Herr P. dizendo
que, em certo sentido, havia lhe feito uma visita. Contudo, Freud acredita não ter dito o
nome de seu amigo ao paciente.
Associações quanto ao ato-falho de esquecimento: um mês antes, enquanto Freud
atendia Herr P., recebeu a visita inesperada de Ernest Jones. Chegara de repente, após longo
período de separação. Freud pede que Jones o espere na sala contígua. Herr P., sem dúvida,
o reconhecera, pois havia uma foto de Jones na sala de espera. Herr P. expressara o desejo
de conhecê-lo. Jones é autor de uma monografia sobre o Alptraum – o pesadelo. Freud não
sabia que Herr P. tinha conhecimento da obra, pois evitava ler literatura analítica.
Associações quanto ao nome ‘Vorsicht’: quando jovem, Herr P. havia morado
alguns anos na Inglaterra, tendo se interessado pela literatura deste país. Costumava levar
alguns livros para Freud e um destes continha um romance de autoria de Galsworthy,
intitulado The man of property. A história girava em torno de uma família chamada
“Forsyte”. Este romance deu origem a várias outras histórias que envolviam a família.
Recentemente, Herr P. havia levado a Freud mais um exemplar com histórias da família
Forsyte. Os diálogos entre Freud e Herr P. passaram a conter palavras e expressões que
faziam alusão ao romance. Diz Freud: “o nome ‘Forsyte’ e tudo o que de típico o autor
havia procurado incorporar nele, tinha desempenhado um papel, também, em minhas
conversações com P. e se tornara parte da linguagem secreta que tão facilmente se
desenvolve entre duas pessoas que se vêem muito”
224
. O nome Forsyte é bem parecido com
o do visitante de Freud, que havia saído de seu consultório quinze minutos antes da chegada
de Herr P. (Forsyth). Pronunciado por um alemão dificilmente poderia ser distinguido. No
224
Idem, p.55. Idem, p.45.
entanto, há uma palavra inglesa – ‘Foresight’ – que tem pronúncia muito parecida com os
dois nomes cuja tradução é ‘voraussicht’ ou ‘vorsicht’. Esta última foi usada por Herr P. no
início da sessão (‘senhor cuidado’). Desta forma, Freud afirma que o paciente selecionou de
suas preocupações pessoais o nome exato que ao mesmo tempo ocupava seus pensamentos.
Segundo Freud, este nome (Forsyte) apareceu, pouco depois de ele ter assumido um
valor especial para Freud, com a visita que acabara de receber. E o mais importante, o
nome apareceu, não de forma direta, mas inconscientemente juntou esse nome a suas
experiências pessoais. Isso poderia ter acontecido antes, quando teve inúmeras
oportunidades, mas só ocorreu naquele momento, após a visita.
De acordo com a análise de Freud, seu paciente estava às voltas com sentimentos de
exigência ciumenta e de auto-desvalorização melancólica. O comentário de Herr P. é
interpretado por Freud como “também eu sou um Forsyth: é como a namorada me chama!
e completa: “para mim é doloroso que os pensamentos do senhor se ocupem tão
intensamente com essa nova chegada. Volte para mim, afinal, eu também sou um Forsyth –
embora, é verdade, eu seja apenas um Herr Von Vorsicht [cavalheiro do cuidado],
conforme diz a namorada”
225
. Esta seqüência de pensamentos inconscientes repletos de
ciúme acabou culminando nas duas outras associações. Com o lapso de linguagem, o
pensamento, diz Freud, deve ter sido equivalente a: “uns dias atrás o senhor fez uma visita a
minha casa – que pena, não a mim, mas a ‘Herr Von Freund’”
226
. O nome Freud-Ottorego
ligado à professora de inglês trouxe-lhe a lembrança inconsciente de outro visitante – Jones
– que, também lhe suscitara ciúmes e com o qual sabia que não podia competir, afinal,
Jones escrevera uma monografia sobre o pesadelo, enquanto ele mesmo só os sonhava.
Esses sentimentos e o ciúme faziam todo o sentido, pois Herr P. sabia que seu
tratamento se findaria com a chegada dos estrangeiros. Mas a questão de Freud é em
relação a saber se Herr P. sabia sobre a visita do Doutor Forsyth, se sabia o nome de quem
visitara na semana anterior ou se suas associações provinham da transmissão de
pensamentos (já que somente Freud, a princípio, sabia dos nomes). A partir daí, Freud vai
tentando elucidar tais dúvidas. Afirma que são explicações pensadas que não podem ser
provadas, mas que também não podem ser refutadas. No caso da troca de nomes, ‘Freund’ é
225
Idem, p.57. Idem, p.47.
226
Idem, p.57. Idem, p.47.
a palavra alemã para amigo, então ele poderia desconhecer o nome de quem Freud visitou,
mas associar a um ‘amigo’, que por casualidade é o mesmo nome. Quanto ao pesadelo,
poderia Herr P. saber que Jones havia publicado sua monografia? Freud afirma que sim,
pois Herr P. possuía livros da editora que publicou o trabalho de Ernest Jones e, assim, ter
visto o título. Quanto ao nome Vorsicht: Freud afirma que poderia ter dito ao paciente que
estava esperando a visita de um médico vindo da Inglaterra. Supõe, mesmo que pouco
provavelmente, tenha dito o nome do Doutor Forsyth e, assim, associado ao nome da
família do romance. Contudo, e este é o ponto que, de fato, interessa neste sub-tópico,
Freud cogita a possibilidade de Herr P., ao chegar, tenha observado “um especial estado de
excitação”
227
nele, mesmo sem o próprio Freud ter percebido e então tirou sua própria
conclusão: de que o tal estrangeiro havia chegado. Mais adiante, Freud comenta a respeito
de um posvel meio arcaico de comunicação. Aponta que os insetos se comunicam através
de uma transmissão psíquica direta
228
. Supõe-se que os humanos também se comunicavam
desta forma, e com a evolução filogenética, o método foi substituído pelo
“método melhor de dar informações com o auxílio de sinais captados pelos
órgãos dos sentidos. O método anterior, contudo, poderia ter persistido nos
bastidores e ainda ser capaz de se pôr em ação sob determinadas condições – por
exemplo, em multidões de pessoas apaixonadamente excitadas. Tudo isso ainda é
incerto e pleno de enigmas não solucionados, não há, porém, razão para temê-
lo”
229
.
Este caso reforça a hipótese da transmissão de algo inconsciente via ato-falho, já
mencionado anteriormente, mas acrescenta um dado novo, algo, também inconsciente, que
pode ser transmitido através da expressão corporal. Lembremos que Freud afirma ter sido
possível ter “deixado escapar um certo ar de excitação” e que podemos receber informações
através dos órgãos dos sentidos. Algum gesto, o modo de olhar, o tom de voz, alguma
expressão percebida inconscientemente por Herr P. pode ter sido transmitida, também
inconscientemente por Freud, através de seu próprio corpo. Os pensamentos inconscientes
de Freud podem ter “tomado forma”, via significantes, através de seu corpo. Parece-me que
o significante cola no corpo, materializa-se no gesto, no olhar, no tocar ...
227
Idem, p.59. Idem, p.50. O grifo é meu.
228
Refere-se, aqui, ao método telepático.
229
FREUD,S. “Sonhos e ocultismo”, ESB, p.61. FREUD, S. “Sueño y ocultismo”, AE, p.51.
Já em “Tratamento Psíquico ou anímico” (1880), Freud nomeou de “expressão das
emoções” a influência de processos anímicos sobre o corpo físico do sujeito, isto quer dizer
que a vida anímica exterioriza-se, sem que o sujeito perceba, através do corpo. Os músculos
faciais, o movimento e a focalização dos olhos, o rubor ou empalidecer da pele, os
movimentos dos membros, a mudança no tom da voz, a própria postura corporal, todas
essas nuances estão de acordo com o que é mais íntimo e singular da vida anímica. São
nuances inconscientes na qual não temos controle e que acabam “denunciando” nossas
verdadeiras emoções diante do dito. Comenta Freud:
mesmo enquanto se está tranqüilamente pensando por meio de ‘representações’,
correspondem ao conteúdo destas representações vária excitações constantes,
desviadas para os músculos lisos e estriados, estas, mediante o reforço
apropriado, podem tornar-se claras e fornecer a elucidação de muitos fenômenos
estranhos e até supostamente sobrenaturais”
230
.
Em “Notas sobre um caso de Neurose obsessiva” (1909), Freud nos oferece um bom
exemplo de como as expressões das emoções, pela vida anímica, fazem-se presentes no
corpo, deixando escapar o verdadeiro sentido, oculto na vida anímica, de nossos
pensamentos. Durante uma sessão, o homem dos ratos, diante da dificuldade em relatar a
Freud sua história, reluta para não contar o que passa em sua mente. No momento em que,
finalmente, descreve a Freud o castigo com ratos mencionado pelo capitão, há uma
modificação em sua face. Esta alteração mostrou a Freud o verdadeiro motivo do horror ao
castigo, isto é, o horror quanto ao gozo sentido pelo próprio homem dos ratos. Afirma: “em
todos os momentos importantes, enquanto me contava sua história, sua face assumiu uma
expressão muito estranha e variada. Eu só podia interpretá-la como uma face de horror ao
gozo todo seu do qual ele mesmo não estava ciente”
231
. A expressão facial do homem dos
ratos acabou por expressar o que era para ele inconsciente, mas que pôde ser percebido,
interpretado por Freud.
Eu mesma tive a oportunidade de ser surpreendida ao ver meus pensamentos e
sentimentos serem “lidos” através da expressão corporal. Já passavam das 14h e eu ainda
230
FREUD, S. “Tratamento psíquico ou anímico”, ESB, p. 275. FREUD, S. “Tratamiento psíquico
(tratamiento Del alma)”, AE, p.119-20. O grifo é meu.
231
FREUD, S. “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, ESB, p.150. FREUD, S. “A propósito de um
caso de neurosis obsesiva”, AE, p.133.
não tinha almoçado. A equipe com quem trabalho
232
, em sua maioria, havia faltado ao
serviço por diversos motivos. Havia apenas eu e mais uma funcionária que trabalhava junto
à chefia lidando com questões burocráticas que a instituição exige. Justo esse dia era um
dos mais cheios de atividades. Era dia de grupo de recepção e do grupo de família com
marcação prévia de horário. Durante meus atendimentos, fui interrompida diversas vezes,
por conta de atendimentos de emergência que chegavam do PAM da região. Só neste dia, já
haviam chegado uns seis casos graves e de difícil intervenção. Já exausta, com fome e com
muito calor, fui atender mais uma destas emergências. A cena era a seguinte: um jovem,
por volta dos 19-20 anos, chegou acompanhado do pai e de três bombeiros. Estava sujo,
visivelmente transtornado, amarrado nas mãos. Gritava com fervor e horror, ora que era o
diabo em forma de gente, ora que era Deus e ia salvar o mundo. O pai estava assustado,
nervoso e sem entender o que acontecia. Era o primeiro surto do rapaz. Dirijo-me ao
paciente que se nega a conversar, apesar de minha insistência. Pergunto ao pai o que havia
acontecido e como poderia ajudá-los. O pai, muito nervoso, não conseguia me contar o
ocorrido de forma clara, ou de algum jeito que eu pudesse entender o que estava
acontecendo. Eu perguntava uma coisa e ele me respondia outra. Eu não me encontrava,
sem dúvida, no lugar de quem ouve para além-linguagem ... fazia-se presente meu sujeito
faminto e cansado. Não conseguia ouvi-lo e a cada resposta “sem sentido” que recebia, ia
ficando com raiva e sem paciência. Sem perceber, meu tom de voz mudara, minhas
perguntas passaram a ser mais objetivas, diretivas e focadas no sintoma (Que horror!!!). De
repente, o paciente à minha frente interrompe sua pregação delirante, olha para mim e diz
em tom baixo e quase sereno: “olha aqui trate bem o meu pai, sem perder a paciência,
viu?!”, e voltou à cena anterior, entregue aos gritos.
Meu corpo, nitidamente, contava a respeito de minha inquietude e impaciência
diante do caso. Senti-me completamente desnuda, sem jeito, pois ele havia transformado
em palavras meus próprios pensamentos. Só me coube pedir desculpas e recomeçar.
Entro em contato com o livro de Ivanise Fontes que, apesar de seguir rumos
diferentes dos aqui trabalhados, pontua a importância da expressão corporal na elaboração
psíquica do sujeito na análise. Ivanise Fontes é psicanalista e toma como base em seu
232
Refiro-me ao CAPS de São João de Meriti.
trabalho as teorias de Freud e Ferenczi. Em Memória corporal e transferência.
Fundamentos para uma psicanálise do sensível, a autora procura investigar como o analista
daria conta de experiências corporais que se encontram presentes na transferência. Sua
questão é: “Como se dá a manifestação do corpo na atividade de interpretação do analista e
em suas intervenções?”
233
Ao elaborar esta questão, ela aponta para o fato de as primeiras
transações entre mãe e bebê terem lugar numa atmosfera pré-lingüística. As experiências
vividas nesta época são registradas, são sentidas pelo bebê através do corpo, pois ainda não
há um meio de representação, não há linguagem. Suas reações ao prazer ou ao desprazer
são, num primeiro momento, de ordem corporal. O corpo é que vai exprimir o que foi
vivido, como, por exemplo, um trauma. Essas sensações ficam registradas no corpo durante
este período arcaico de vida. Tomando Ferenczi como referência, a autora afirma que o
trauma vivido neste período é tomado como algo que não poderia se inscrever, não poderia
ser recalcado, pontua que o trauma estaria fora do espaço psíquico da representação pela
impossibilidade de rememoração. Existiria uma outra memória – uma memória corporal,
em que este trauma ou sensações experimentadas estariam registradas, ou seja, a autora
afirma que, no período anterior à linguagem vivido pelo bebê, as experiências deste são
registradas no corpo, porque é apenas deste corpo que o bebê dispõe. Cada indivíduo
registra sua história em seu próprio corpo e, só mais tarde, a linguagem é incorporada às
lembranças. Afirma: “cada indivíduo marca diferentemente seu corpo, segundo as
impressões de sua infância precoce. Essa história pessoal é registrada, de início, por meio
das sensações, dos movimentos. Somente muito mais tarde, as lembranças incluirão a
linguagem”
234
.
Essas marcas no corpo podem ser posturais, lembranças de cheiros, sabores,
imagens ... e que podem ser usados como materiais na análise. Isto porque guardamos a
memória das primeiras sensações do corpo-a-corpo mãe-bebê ligadas ao prazer ou à dor.
Um trauma experimentado antes da constituição de um envelope psíquico será inscrito,
como dito, no corpo e não no psiquismo. Essas sensações são irrepresentáveis, inacessíveis
à linguagem, mas constituem nossa maneira de ser
235
e na análise a memória corporal pode
233
FONTES, Ivanise. Memória corporal e transferência. Fundamentos para uma psicanálise do sensível,
p.13.
234
Idem, p.56.
235
Idem, p.63.
se manifestar no lugar da linguagem verbal. É neste momento, pontua, que o analista deve
estar atento, pois o corpo e sua expressão contam a história do sujeito através de uma
sensação tátil, de um suspiro, de uma câimbra, um espasmo. São partes do corpo que
vibram, que falam sem palavras. Afirma Ivanise Fontes: “expressões usuais como
‘tremendo de medo’, ‘frio na espinha’, ‘sufocando de raiva’, ‘dor de cotovelo’ revelam o
quanto as emoções estão enraizadas na sensação corporal, predominante na primeira etapa
da vida”
236
. Aponta, então, para uma comunicação não-verbal para qual o analista deve
estar atento para ter acesso à vida psíquica inconsciente do paciente.
Ivanise Fontes toca em dois pontos importantes de meu trabalho, corroborando o
que até aqui pesquisei: a existência de uma comunicação inconsciente e a participação do
corpo do sujeito neste processo. Aponta para algo que aparece no corpo que chega como
um anúncio, como algo que grita, contando a história do sujeito. Ivanise traz a idéia da
transferência como meio de “transporte”, como um meio onde essa história pode ser lida e
trabalhada na análise. Como visto, em meu trabalho desejo pontuar essa comunicação não-
verbal via expressão corporal fora do setting terapêutico, no dia-a-dia onde
inconscientemente todos nós podemos ler o que nos é transmitido. Afirma ela:
O essencial, nesse caso, não está na evocação de palavras, de cadeias associativas,
de deslocamentos e condensações, mas na irrupção de uma sensação similar ao
advento de um ato falho. Só que , desta vez, no campo perceptivo. Sensação
corporal inesperada, que adentra o espaço analítico, indicando uma experiência já
vivida”
237
Assim como o ato-falho, as expressões corporais contam o que não se sabe, contam
algo sobre o sujeito, sobre sua história.
Maria Cecília Pereira da Silva, já citada neste capítulo, parece concordar com a
idéia de haver um tipo de transmissão inconsciente através de mecanismos “não-verbais”,
ligados ao corpo. Comenta que os desejos inconscientes e as fantasias parentais podem ser
transmitidos dentro de um jogo de contradições, em que palavras e comportamentos se
contradizem, isto é, se diz algo que é contrário à expressão corporal emitida pelo outro.
Afirma:
236
Idem, p.128.
237
Idem, p.71.
“a tirania dessas funções dá-se por meio da maneira de falar mais do que a fala
em si mesma, pelo não verbal, pelo comportamento, pelas atitudes,pelos gestos,
pelos sinais que compõem a comunicação e aos quais a criança é muito sensível.
Assim se transmitem os objetos de desejo e as fantasias inconscientes de um pai a
um filho via mecanismos de identificação mórbida. O inconsciente transmite-se
particularmente quando a mensagem não-verbal contradiz a mensagem verbal. A
comunicação é paradoxal quando não há um acordo entre o que é dito e o que é
sentido, tanto pelo pai como pelo analista. O outro seja o filho, seja o paciente,
introjetará uma imagem dissociada. O sintoma pode ser considerado como
indicador de transmissão, pois denuncia e é testemunha de uma aliança
inconsciente, um pacto assinalando a transmissão de algo impensado”
238
.
Olga Correa(2000), sem se deter no tema, supõe haver um meio de expressão que
aponta para um certo tipo de identidade familiar, por vezes escondida ou secreta. Comenta
que cada família tem um modo de “estar junto” que é particular. Este modo repousa sobre
as várias “modalidades sensoriais de encontro (gestos, proximidade corporal) tão
significativas quanto as palavras”
239
. Os rituais familiares, como o comunicar afeto, a
maneira de se cumprimentar, de trocar objetos e lembranças, tudo isso inclui mensagens
secretas, não verbais. Afirma: “Como hipótese, aventamos a possibilidade de uma
transmissão inconsciente realizada por meio de linguagem não-verbal, gestual ...”
240
. Essa
transmissão pode se dar através do nível afetivo-motor, por meio de condutas e emoções de
prazer e/ou dor que se transmitem no período da relação simbiótica com a mãe.
O significante presente na linguagem, também, pode se repetir no corpo, marcando
a fogo o que é inconsciente. Vemos-nos traídos pela linguagem e, parece, traídos também,
pelo próprio corpo, que, tomado pelo significante, conta ao outro o que é íntimo, singular e
“supostamente secreto”.
4.4. O início: o corpo da mãe como “baú” de significantes
Ricardo Rodulfo em seu livro O brincar e o significante. um estudo psicanalítico
sobre a constituição precoce, 1990, pontua a importância da pré-história na psicanálise com
crianças. Devemos não só estar atentos para o que é intra-psíquico, mas também à história
238
SILVA, Maria C. P. da. “A herança psíquica na clínica psicanalítica”, p.38.
239
CORREA, Olga B. R. O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica, p.66.
240
Idem, p.102.
da família em que esta criança se insere. Como esta criança foi esperada, como nasceu, que
expectativa fez surgir, que “folclore” a rodeia. Faz questão de salientar o “peso” desta pré-
história na constituição subjetiva da criança e o quanto marca sua relação com o Outro, com
o mundo. Seu livro nos fala sobre a importância de se levar em consideração, na análise
com crianças, as perspectivas familiares, o mito e toda a história que rodeia a criança. Ao
longo de seus argumentos, Rodulfo escreve sobre o mito familiar e acaba, de certa forma,
entrando “no mundo” da transmissão de significantes. Note-se que seu foco é reforçar o uso
do mito familiar na prática clínica com crianças, não fazendo menção direta à transmissão
dos “segredos familiares”.
Relata um caso clínico que, a meu ver, é de significativa ilustração para o que
propõe: uma mulher chega à consulta procurando ajuda para seu filho adolescente, viciado
em drogas e com antecedentes penais. Após infindáveis reclamações e descrições dos
sintomas apresentados, a mãe comenta, “desapercebidamente”: “Os segundos filhos varões
da família têm problemas ou vão presos”
241
. Relata, então, a história de um tio-avô e um tio
de outro ramo da família, que também eram segundos filhos varões. As histórias eram
permeadas pelos mais diversos delitos. Aqui fica clara a ineficiência de se levar em
consideração, em uma análise, somente o intrapsíquico. “Há algo marcado a fogo como
repetição: em seu calor, uma frase pesa com o peso do significante: ‘os segundos filhos
varões da família sempre vão presos”
242
. Há algo que atravessa o sujeito, uma história
permeada de significantes que surgiram antes mesmo de seu nascimento. Esta imagem é
quase um mandato, é perpassada por gerações. A mãe não informa com causalidade penosa
o fato, não está relatando apenas uma coincidência. Na verdade, ela representa um porta-
voz de uma lei no registro do inconsciente. Repassa um imperativo, “seja preso, se é o
segundo”
243
, imperativo este que veicula um mau desejo para os segundos varões, que se
liga ao desejo de que fracasse e ainda se destrua. Isto se repete. Isto é o significante que
realmente pesa e faz diferença na história deste sujeito.
Não se trata, em todos os casos, de se acreditar que uma única frase resuma a
história e a condução da análise do sujeito. No entanto, uma frase como a do exemplo
241
Rodulfo, R., O brincar e o significante.um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce, p. 20.
242
Idem, p. 20.
243
Idem, p. 20.
acima indica onde o regime desejante familiar coloca o sujeito e onde ele se perpetua. Além
da forte presença do significante, há a escolha do sujeito em aceitar ou não o lugar que lhe
colocam. O significante não tem poder automático: “O sujeito não é uma maquininha que
reage, segundo soe um significante ou outro; por isso mesmo, alguém psicotiza em certas
condições, enquanto outro resiste a colocar-se neste caminho, mesmo em condições
piores”
244
. O que está em questão é não só o peso que um significante pode assumir, mas o
que o sujeito faz com ele. Deixa-o conforme está? Introduz algum retoque? Ignora-o?
Como mencionado, Rodulfo leva em consideração a pré-história da criança na
análise e, para tal, deve-se fazer algumas perguntas que vão além de seus sintomas, como:
onde vive esta criança? O que ela representa para seus pais? Afinal, como é desejada? Que
lugar ocupa no mito familiar?
Mas o que caracteriza o mito familiar, segundo o autor, é o que a criança respira,
onde é colocada, é o que vivencia, por meio de uma série de práticas cotidianas, que são
compostas por atos, ditos, normas e regulações do corpo. Explicitando: quando se diz “é
feio uma menina fazer isso”, isto coloca em ação um mito familiar concernente à diferença
sexual. Apesar do exemplo claro, o mito familiar não é facilmente verificável, não é algo
acabado, congruente. Ele deve ser deduzido, filtrado. Às vezes o reconhecemos através de
frases ou fragmentos repetidos em análise. A concepção de mito familiar passa pela idéia
de uma rede de pequenos mitos, podendo ser localizados no percurso de suas
incongruências, contradições, lacunas e dissociações. Desta forma, um mito familiar pode
bem ser conceituado como um punhado de significantes
245
.
O mito familiar, definido por Ricardo Rodulfo, abarca a transmissão de significantes
através da linguagem e através do corpo físico. A junção, a combinação de atos, ditos e
expressões corporais vão construindo histórias, vão recontando e transmitindo ao sujeito
criança o contexto no qual está inserido.
De acordo com Rodulfo, a tarefa originária de um bebê é “encontrar” significantes
que o representem, pois seu nome e sobrenome não são suficientes para tal. Esses
244
Idem, p. 23.
245
Idem, p. 31-32.
significantes são encontrados dentro do discurso familiar, em seu mito, ou seja, no desejo
que ronda a família. Esse “encontrar” os significantes requer uma posição ativa, de arrancar
os significantes que o representam: “Conseguir um lugar para viver depende dos
significantes que se encontra
246
. Na verdade, devemos ocupar um lugar no desejo do Outro
e, para isso, é preciso que alguém doe lugar. Este lugar é característica essencial do desejo.
Explica o autor:
“O bebê tem de trabalhar e ainda lutar para adquirir significantes. As funções,
parentais e outras, devem auxiliá-lo fornecendo-lhe as condições mínimas, mas
não se pode apresentá-lo com fatos; melhor dito, se houvesse imposição de
significantes, se não se permitisse a ele achá-los, falharia o essencial. O mesmo
acontece no tratamento analítico. O sujeito acorre, em busca de significantes que o
representem, ou por certas mudanças nos significantes que o representam, ou
freqüentemente, desfazer-se de algum. É para isso que requer nossa ajuda, ele não
pode fazer a análise sozinho”
247
.
Inicialmente, a criança retira os significantes do mito familiar. É como um arquivo,
um tesouro de significantes. Rodulfo se faz uma pergunta: como os significantes são
escolhidos? Por que, por exemplo, no caso mencionado, o significante foi “segundo varão
preso”? Poderia ser outro significante. O que assume a categoria de significante é o que está
atrelado ao Outro materno. Está atrelado à ordem do desejo do mito que circula em seu
meio. Não é qualquer palavra, gesto ou ato, mas o que estiver atrelado ao investimento
desejante.
Entretanto, outra pergunta se faz relevante: onde “achar” os significantes? O autor,
em seu livro, muito preocupado em pontuar a importância do mito familiar na conceituação
de sujeito criança em psicanálise, afirma que, num primeiro momento, os significantes são
“buscados” no corpo materno. Este é o lugar de origem, de abertura para o mundo. Assim,
o corpo da mãe é o mito familiar. O corpo materno é atravessado por sua história, por
vários mitos familiares, que foram contados e recontados através de gerações.
Mãe e filho possuem uma intimidade indescritível, em que os mínimos detalhes são
de extrema importância. Através, não só do olhar, dizemos algo que não é só de nossa
ordem fantasística, mas também fazem parte do arquivo familiar:
“O ponto específico é que isto possa aparecer em seu olhar, no estilo de dar-lhe o
peito, nas dificuldades para fazê-lo, ou ainda na maneira de banhá-lo e de vesti-lo.
246
Idem, p. 34.
247
Idem, p. 35.
O mito familiar não é exterior, sobretudo não é um discurso exterior. Acha-se no
corpo materno, identidade que convoca o conceito de espaço de inclusões
recíprocas”
248
.
Tudo o que uma criança recebe do mito familiar é através do corpo da mãe, através
de intervenções concretas como infinitas carícias, por entonações repetidas que acabam
tornando-se significantes, através de músicas táteis, auditivas, o calor, a distância do
contato, “é assim, como e onde se enlaça o mito familiar”
249
. Não é necessário esperar
palavras. Rodulfo afirma que o mito familiar está em ação na maneira como se levanta uma
criança, por exemplo. Há aí um encontro. O encontro do mito com o corpo da mãe e deste
com o corpo do bebê que se prepara para viver. O mito familiar infiltra o bebê, marca suas
atitudes, suas posições, seus ditos e fantasias. Há uma preparação diante do corpo
imaginado.
No primeiro caso clínico apresentado, o significante “os segundos varões da
família” anula qualquer tipo de subjetividade. As três gerações, tio, tio-avô e sobrinho são
colocados no mesmo patamar, como se fossem apenas um único homem, com um único
destino a seguir.
Até aqui, Rodulfo nos fala sobre uma tarefa do ser humano ao nascer: encontrar um
significante para elevar-se à ordem simbólica da intersubjetividade. Este encontro se dá
através do mito familiar, que é também materiais do corpo da mãe. O Outro deve oferecer
os significantes a serem escolhidos pelo bebê. Este oferecimento pode ser restrito e terrível
como “os segundos varões sempre vão presos”, ou pode ser oferecida uma gama maior de
significantes presentes no mito familiar. Os significantes oferecidos ao bebê pelo Outro
estão diretamente relacionados a sua posição predominante na família
250
.
Para concluir, segundo Rodulfo, o mito familiar é passado ao bebê por meio de seu
corpo, através de pequenos e múltiplos feixes de significantes. A história da mãe e suas
vivências são contadas através do calor, do toque, da maneira de se colocar o bebê no
braço. Junto com o mito familiar, os segredos também são contados.
248
Idem, p. 56.
249
Idem, p. 56.
250
Idem, p. 76.
O bebê ao nascer não se reconhece como tal, não se constitui, ainda, como sujeito.
Não há uma diferenciação entre o eu e o mundo. O outro não é diferenciado e, desta forma,
os significantes que invadem o bebê ao nascer, vão aos poucos marcando-o diante do
desejo do próprio Outro. A forma como a mãe se “apropria” do bebê, como o toca, como se
dirige a ele, como o trata, suponho, pode ser transmitida através da linguagem e através da
expressão das emoções via corpo físico. O bebê, o que é seu e o que é do outro, apenas
necessita das “mordidas” significantes para, aos poucos, se constituir como sujeito e poder
existir enquanto tal. É preciso haver este contato, este reconhecimento de si no outro. Neste
momento em que o “próprio eu se encontra completamente alienado de si mesmo na outra
pessoa, o sujeito permanece no estado de ambigüidade que precede à verdade”
251
. Os
significantes, marcados a fogo no corpo da mãe e em sua linguagem, são tomados pelo
bebê como seus, como verdade absoluta, para mais tarde “decidir” o que fazer com o que
lhe foi transmitido.
Olga Correa (2000), já citada, parece concordar com a idéia de Ricardo Rodulfo.
Ela aponta o grupo familiar e, mais especificamente, a relação dual entre mãe e filho, como
matriz na transmissão psíquica inconsciente. Afirma que o bebê, ao nascer, apresenta total
desamparo criando um vínculo de dependência em relação ao grupo familiar (ou primário).
Esse vínculo de dependência é expresso através de diferentes níveis como a alimentação, os
afetos, a proteção. A forma como esses cuidados diários são construídos articula-se a um
sistema de significações que são fornecidos ao bebê. Impõe-se, constantemente, um poder
modelador exercido pela função parental e pelo grupo familiar. Comenta Olga Correa:
“entre outras funções, o casal parental serve como porta voz das crenças, ideais e
proibições que fazem parte de um discurso social amplo, ao qual também estão
assujeitados. A mãe e o pai serão os primeiros a veicular inconscientemente
significações culturais introjetadas em um determinado contexto histórico, por
exemplo, as modalidades de alimentação do recém nascido, o período do
desmame, o controle de esfíncteres e a permissividade ou controle diante do
mundo
252
.
251
LACAN,J. “Algumas reflexões sobre o eu”, p.37.
252
CORREA, Olga B. R. O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica, p.58.
A autora pontua a existência de incorporados culturais, regras, mensagens em geral
que foram transmitidos a partir de uma comunicação inconsciente presente na relação dual
mãe-bebê
253
Dentro do seio familiar os segredos perpassados de uma geração a outra parecem,
segundo Rodulfo e Correa, ter sua origem no corpo da mãe. Corpo como um baú repleto de
histórias, de segredos, de significantes que “contam”, que apontam para o desejo, que
marcam sua posição dentro da família. Além disso, este baú conta o que não se deseja
contar, conta o que se deve calar diante de certos assuntos ..., conta desde o berço, desde o
início.
253
Idem, p.62.
AINDA POR CONCLUIR
Ao escrever o final deste trabalho sou tomada pelo incômodo do título “conclusão”,
que usualmente utilizamos ao findar uma pesquisa. Naturalmente fazemos uma
retrospectiva de tudo o que foi lido e estudado, como também revemos nossas expectativas
do início do trabalho. Esperava responder minhas perguntas sobre a transmissão de
significantes, entender exatamente como são transmitidos e descrever o mecanismo
psíquico que a envolve. Deparo-me, neste momento, não com respostas, mas com novas
questões. A bibliografia em relação ao tema é escassa e a cada leitura surge uma nova
pergunta ... não me sinto à vontade em seguir “o protocolo” e colocar no título “conclusão”.
Portanto, representando minha real sensação de que ainda falta, de que não concluí o
trabalho, mas apenas interei-me um pouco mais sobre o assunto, registro minhas últimas
palavras como “Ainda por concluir”.
Algumas crianças acabam apresentando um sofrimento psíquico intenso,
representado por sintomas, diante de um não-dito familiar. Este não-dito pode ser
representado por um “segredo” qualquer, como a criança ser adotiva, ter uma doença grave,
ou este não-dito pode representar um mandato inconsciente dos pais à criança, de
“proibição” de falar sobre certos assuntos que geram ansiedade dentro da família.
Diante dos sintomas, percebemos que o “segredo” não é secreto ou que o mandato
inconsciente de calar é sabido e percebido, também inconscientemente, pela criança. Como
visto, a impossibilidade de falar impede a circulação da cadeia de significantes. A criança
se aprisiona num único sentido, na única versão trazida pelos pais do segredo não secreto.
Isto impede a produção de sentidos, impede a simbolização. Mas, como este não-dito é
transmitido à criança?
O bebê ao nascer necessita de um outro para sobreviver, na verdade, precisa de um
outro que o humanize através da palavra dirigida a ele. Resume Maria Lúcia Araújo,
(2001): “A única possibilidade desse infans, isto é, aquele que não fala, se reconhecer como
sujeito é pelo investimento que o outro possa fazer sobre ele”
254
. Como sabemos, essa
254
ARAÚJO, M. L. “O discurso dos pais na clínica psicanalítica com crianças: significantes transgeracionais
em questão”, p.1.
“transformação” se dá não pela palavra em si, mas pelo que é regida. O sentido só é
apreendido a partir do significante que situa o sujeito em relação a seu desejo. Assim, a
estrutura familiar e singular de cada membro é apreendida através da produção de
linguagem. Esses significantes, que se remetem e que circulam dentro do âmbito familiar,
apontam para a criança qual é o lugar em que é reconhecida pelos pais. A criança vai se
apropriando dos significantes fundamentais: filiação, nomeação e sexuação, como também
das apreensões, dúvidas, angústias que se fazem presentes na circulação dos significantes.
Inconscientemente vai aprendendo o que o outro “conta” sem saber. Lembrando Freud, em
“Moisés e o Monoteísmo” e “Totem e Tabu”, todos nós possuímos em nosso apparatus
mental a capacidade de emitir e captar mensagens inconscientes. O que é emitido e
recebido é o que se repete, o que é importante para o sujeito, isto é, o desejo. Afirma Maria
Lúcia Araújo:
“Ao falarmos em significantes transgeracionais, referimo-nos à transmissão
simbólica, ou seja, à linguagem que atravessa gerações, inserindo marcas no
sujeito do inconsciente fazendo com que esse sujeito posicione-se no discurso a
partir de um lugar no qual vai se relacionar com o outro. Estas marcas podem ser
traumáticas ou não, ficam no imaginário da família anterior e vão se inscrevendo
no psiquismo da próxima geração, são marcas que se repetem. Torna-se
importante, ainda, acrescentar que os significantes transgeracionais são inscrições
que estão no campo do real, sem significação. Muitas vezes trazendo mal-estar
onde algo não pode ser verbalizado”
255
.
No entanto, venho me perguntando, de que forma esses significantes atravessam
gerações. Levanto duas hipóteses embrionárias: através da linguagem e através do próprio
corpo. Os lapsos de linguagem, de escrita, os esquecimentos ... “contam” não só aos
analistas, mas a qualquer ouvinte atento, o que habita em nossos pensamentos mais íntimos.
Assim, como nosso corpo, nossa expressão corporal (face, movimentos das mãos, tom de
voz, o movimento dos olhos ...) denunciam nossos sentimentos e pensamentos dos quais,
por vezes, não nos damos conta. Os segredos que habitam a vida anímica acabam por serem
contados, transmitidos às crianças através dos significantes, portanto, de forma
inconsciente.
Tudo isso, são hipóteses, são questões que levanto neste trabalho e que a cada dia,
impulsionada pelo “bichinho da inquietude”, pergunto-me sobre os efeitos desta
255
Idem, p.2.
transmissão dentro do setting psicanalítico e fora dele (como nos CAPS, hospitais-dia ...).
Novas leituras, novas questões ... requerem aí mais alguns anos de pesquisa e dedicação às
leituras e à prática clínica.
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