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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Paula Medeiros de Castro
A Possibilidade de uma Educação Transformadora em Rousseau
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Paula Medeiros de Castro
A Possibilidade de uma Educação Transformadora em Rousseau
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia, sob a orientação da
Professora Doutora Maria
Constança Peres Pissarra.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora
______________________________
______________________________
______________________________
“E bem sabes que o princípio de toda obra é o principal, especialmente nos
mais pequenos e ternos; porque é então quando se forma e imprime o tipo
que alguém quer disseminar em cada pessoa”.
1
1
Platão. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkion, 1996, Livro II, 377 a-b.
Resumo
O presente trabalho visa esclarecer o postulado político-pedagógico de
Rousseau, enquanto proposta de transformação do homem.
Já que não se pode voltar ao estado primitivo, no qual as paixões são
calmas e as necessidades quase nulas, a leitura dos trabalhos de Rousseau nos
possibilita uma reflexão acerca daquilo que constitui o “ser” do homem.
O homem em sociedade, dado os conflitos internos e as necessidades
infindáveis que esta nova vida cria, é apenas uma imagem de homem, pois este
não é livre para ser o que é e tão pouco para transformar-se modificando seu
estado de servidão a leis e a deveres que não ajudou a prescrever.
A educação é, então, a ferramenta indispensável, segundo Rousseau, para
a possível transformação do estado do homem, e é também uma reivindicação de
seu direito de ser livre que lhe foi tomado.
Aqui está a proposta de Rousseau, que ficou para as gerações posteriores
refletirem e, quem sabe, tirar da teoria, a prática.
.
Palavras chave: educação, homem, liberdade, natureza e transformação.
Abstract
The objective of this study is to clarify the political-pedagogical basis of
Rousseau’s contribution to a proposal for the transformation of man.
Since we cannot go back to the primitive state, in which passions are calm
and needs almost do not exist, Rousseau instigates us to reflect about what
constitutes the “self” of man.
Man in society with his internal conflicts and the innumerable needs that this
new life promotes is just an image of man, who is not free to be what he really is
and cannot transform himself, changing this state of submission to laws and duties
that he did not help to build.
According to Rousseau, education is an indispensable mean for the
transformation of man and is also an appeal for the right to be free, which has been
taken from him.
Here is the proposal of Rousseau for our generation to reflect upon and,
who knows, bring it to practice.
Keywords: education, freedom, nature, man and transformation.
Sumário
Introdução.........................................................................................................8
Parte I
1. As idéias que marcaram o século XVII e XVIII ...........................................12
2. Na contramão de seu tempo.......................................................................18
3. As imagens do homem ..............................................................................45
Parte II
1. Sobre a Educação .....................................................................................49
2. O conceito de liberdade na proposta de educação de Rousseau .............55
3. Conclusão...................................................................................................86
4. Bibliografia..................................................................................................94
INTRODUÇÃO
O mote deste trabalho nasceu da leitura do livro Emílio ou Da Educação, de
J.J. Rousseau, e da relação possível da proposta nele apresentada com a minha
atividade como professora de filosofia no ensino fundamental II e médio.
A relação que comumente se pode firmar em sala de aula, na maioria das
vezes, é descolada da realidade a qual se dá fora da mesma, o quê de certa maneira,
contradiz o objetivo da educação, que visa o amadurecimento das crianças e dos
jovens para a vida que acontece dentro e fora do âmbito escolar.
O que incomoda na prática é justamente a proposta de uma educação que
não leva em conta a natureza humana na experiência com o conhecimento e na
utilização desses na vida, o que implicaria na possibilidade de melhorar a discrepante
desigualdade econômica e social de todas as sociedades modernas.
Conseqüentemente, esse conhecimento do qual a criança e o jovem precisam se
apropriar para viverem melhor é para poucos e, ainda assim, há dúvidas com relação à
sua efetiva utilidade. Dessa maneira, ao me deter na leitura das obras de J.J. Rousseau
e me deparar com uma proposta de educação que vai ao encontro daquilo que entendo
que é o ser humano em suas potencialidades e, além disso, que vai ao encontro da
idéia de sociedade que considero ideal porque não desigual, senti imensa necessidade
de entender melhor seus escritos para averiguar se realmente compreendo daquilo que
defendo como educação na e para a liberdade.
No livro Emílio ou Da Educação, Rousseau faz a distinção entre o indivíduo
educado para atender às necessidades da sociedade, aqui entendida como educação
formadora, e o indivíduo educado para desenvolver o que nele está em potência
conforme sua constituição de ser livre, educação essa, aqui entendida como
transformadora. Conseqüentemente, é notória a diferença do método aplicado e do fim
almejado por cada uma das propostas. O primeiro é educado para uma época, no
9
cerceamento da liberdade, tornando-se a imagem de seu tempo; o segundo é educado
na e para a liberdade para atender suas próprias necessidades, tornando-se, assim
homem.
Com Rousseau o centro de gravidade da reflexão política se
desloca da esfera do saber para a do poder, ou da Razão para a
paixão, ou ainda do Discurso para a da Força. As vontades, as paixões,
mesmo os direitos reivindicados remetem a uma Econômica ou uma
Dinâmica onde se opõem proprietários e despossuídos, fortes e fracos,
dominantes e dominados. Não se trata mais de difundir o saber, mas de
organizar forças dadas, ou de neutralizar um conflito existente desde
sempre, contando apenas com forças (demasiado humanas)
disponíveis. É a diferença social que vem finalmente à tona, tornando
necessária a determinação dos meios de supri-la. O que há de racional
ou intolerável na organização social não lhe advém, como que de fora,
de uma administração desamparada pela razão e obscurecida pela
ignorância. Advém-lhe, sim, de seu próprio coração ou de sua natureza
íntima, já que as instituições ou as sociedades políticas nasceram
justamente da necessidade de legitimar e de garantir a permanência da
desigualdade que terminou por emergir nas sociedades pré-políticas
1
.
Para nosso autor, o homem é um ser universal, e por natureza livre, de modo
que, onde quer que tenha nascido, nasceu para ser homem e não escravo ou rei.
Dessa maneira, a crítica elaborada por ele em seus Discursos e no Emílio em especial
se volta para as educações que pretendem se adequar num determinado tempo e
numa determinada sociedade, em particular o século XVIII e os séculos que o
antecedem, para determinado fim. Isso implica, segundo o que se entende a partir de
então, que o indivíduo exposto a essa educação formadora, não seja homem no final do
processo, pois, em constante conflito entre suas inclinações naturais e os deveres
impostos pela sociedade não passará de uma imagem de homem. Daí, que a única
possibilidade de formar homens que nasceram para serem livres, em indivíduos servis,
seja através da educação. Afinal, de que outro modo, que não a força física, poder-se-ia
obrigar indivíduos a submeter-se a um modo de vida desigual, se não através de
1
JÚNIOR, B. Prado. Prefácio in Discurso sobre a Economia Política e Do Contrato Social, Petrópolis:
Vozes, 1996, p.11-12.
10
convenções as quais vissem obrigados a respeitar. Ora, se a educação tem o “poder”
de moldar o homem também tem o poder de transformá-lo.
Se a desigualdade entre os homens firmou-se sobre convenções que legítima
ou ilegitimamente se estabeleceram, trata-se de criar um novo paradigma, de tal modo,
que a partir de então, não haja submissão à vontade dos outros. Educar, nesta
perspectiva implica no conhecimento do homem, no conhecimento de suas
características peculiares e de sua natureza, tais como a liberdade e a vontade desse
ser assim constituído.
Segundo Rousseau, o saber enciclopédico dos iluministas Diderot e
D’Alembert, não torna os homens, como pensavam eles, menos servis ou menos
intolerantes, ao contrário, legitima certo poder dominante, tal como aquele que fez
nascer a sociedade instituída. Frente a esse saber racional que se pretende
emancipador, Rousseau oferece outra alternativa em sua proposta. Não se trata de
solucionar a desigualdade e todos os males advindos dela pelo saber livresco, que
“iluminaria a razão”, nem mesmo através da luta armada. Trata-se, então, de uma
“revolução” pela educação, uma vez que a condição social é, por definição, mutável.
A palavra “revolução” tem, em nosso autor, três sentidos básicos registrados
no levantamento feito por Michel Launay, em Le Vocabulaire Politique de Rousseau.
Aqui, importa, o sentido moral que B. P. Júnior retoma de M.Launay para explicar a
importância da educação nos trabalhos de Rousseau, já que segundo B.P. Júnior este
sentido é sinônimo da transformação de disposição da alma. Desta maneira, “a
revolução não é, portanto, a supressão da diferença social, mas a mudança da ordem
social ou da posição que nela ocupam os indivíduos”.
2
Assim, independente da riqueza
ou da pobreza, o indivíduo será homem e sua vontade e força de homem o fará viver
bem sob qualquer condição, desde que em liberdade.
2
IBIDEM
11
Frente a tal constatação, o trabalho aqui desenvolvido tem como problema
entender a revolução pela educação preconizada por Rousseau, ou a possibilidade de
uma educação transformadora como algo que se adequa ao homem e não o contrário.
Para tanto, é proposto o seguinte percurso: na primeira parte o leitor é situado
no contexto das idéias em que Rousseau se apresenta como crítico de uma visão
positiva acerca da razão e de seu uso; ainda na primeira parte, numa análise restrita de
seus dois Discursos, busca-se encontrar a imagem do homem que é apresentada por
ele em dois momentos – homem da natureza e homem degenerado - para caracterizá-
los a fim de distingui-los.
De posse das características que diferenciam as imagens de homem,
concluídas dessa análise, a segunda parte buscará definir a educação para o autor, e a
transformação proposta por ele em seu trabalho político-pedagógico dos escritos do
Emílio. Nesta parte, o conceito de liberdade será abordado com maior precisão, dado
este que define seu método e o thélos a que destina tal educação, cujo problema
central aqui apresentado é como transformar o homem servil que encontramos nos dois
Discursos, em um homem livre tal como nos apresenta no Contrato Social e no Emílio?
12
PARTE I
1. As idéias que marcaram o século XVII e XVIII
3
O historiador Norman Hampson
4
adverte o leitor sobre as tentativas mais ou
menos mecânicas de “talhar o devir histórico em períodos herméticos e homogêneos”
na reconstrução do passado. Conseqüentemente, torna-se difícil estabelecer a origem
ou o início de idéias ou de correntes filosóficas que se tornaram motivo de análises para
a compreensão do hoje. Deste modo, a pretexto do rigor que se espera de trabalhos
como esse, valemo-nos de sua advertência para tentar a aproximação de algumas
idéias que são de suma importância para a compreensão deste que ora se apresenta,
tendo em vista, nesta primeira parte, situar o leitor no contexto de idéias que Rousseau
se encontra, e entender se sua obra rompe ou não com as mesmas.
Sabe-se, através dos livros de história, tais como o mencionado no início, que
entre 1500 e 1800 estava aberto o caminho para mudanças radicais devido as idéias do
início do século XVI. A invenção da imprensa, no século XV, contribuiu para tornar a
Europa uma sociedade mais culta, embora, grande parte dos europeus não soubesse
ler, nem mesmo em 1800, no entanto, era comum, à época, que os mais ricos
pudessem fazê-lo
5
.
O século XVI foi uma época de profundas transformações na visão de mundo
do homem ocidental, época marcada por verdadeira paixão por descobertas. No tempo
e no espaço: eruditos redescobrem antigas doutrinas filosóficas e científicas, forjadas
3
Este item é apresentado em linhas gerais para situar o leitor no contexto em que Rousseau escreve
seus trabalhos. Não é tarefa postulada entrar com maiores detalhes ou maiores discussões a respeito de
autores ou idéias que esse período sucita, mas simplesmente preparar o solo para as sementes que
Rousseau se propõe a semear.
4
HAMPSON, N. Introdução in O Iluminismo. Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p.15.
5
ROBERTS. J.M. O livro de Ouro da História do Mundo. Da Pré Historia à idade Contemporânea. Rio de
Janeiro: Ediouro. 2001, cap.10, p.486.
13
pelos gregos, e em nome das quais se torna possível constituir uma sabedoria nova,
oposta às concepções que prevaleceram na Idade Média; simultaneamente, viajantes e
aventureiros rasgam continentes e mares, descobrindo terras e povos. A antiguidade
greco-romana renasce através de seus pensadores e artistas, enquanto se constitui
uma nova imagem geográfica do mundo.
Essa efervescência que caracterizava a atmosfera intelectual do
Renascimento traz junto de si, inevitavelmente, a rejeição das idéias até então vigentes
e que estiveram garantidas, sobretudo pelo peso de autoridades agora contestadas.
O horizonte cultural dos homens letrados ou instruídos da Europa Ocidental
dos princípios do século XVI era dominado por duas fontes de autoridade quase
indiscutíveis, a Sagrada Escritura e os autores clássicos (gregos e romanos). No
entanto, a única voz inquestionável do saber e do dever era a do próprio Deus, como se
podia ler na Bíblia, em especial no Velho Testamento. Deste modo, questões como
felicidade e justiça estavam fora da jurisdição humana, ficando a cargo como promessa,
para um “além terra”.
Herança da Idade Média, tais idéias começam, muito lenta e
cuidadosamente, a serem combatidas. As certezas “pessimistas” de que a história do
homem mudaria para pior ou não mudaria, foram gradualmente minadas por um novo
saber, por uma nova maneira de encarar a experiência que acabou suscitando
primeiramente a dúvida e depois, paulatinamente, um otimismo sem precedente
relativamente à natureza humana e à sua capacidade de modelar o ambiente material e
social segundo as suas próprias conveniências.
Tudo é sacudido ou destruído: a unidade política, religiosa e espiritual da
Europa; as afirmações da ciência e da filosofia medievais, calcadas principalmente em
Aristóteles; a autoridade da Bíblia, posta em confronto com os dados das novas
descobertas científicas; e o prestígio da Igreja e do Estado, abalado pelo movimento da
Reforma e pelas guerras motivadas por dissidências políticas ou religiosas. Além disso,
14
se o homem europeu descobre que há idéias bem diversas das que vinham docilmente
aceitando como únicas e verdadeiras, e se passa, a saber, que há outros povos
vivendo segundo padrões bem diferentes daqueles que lhes pareciam os únicos
legítimos, é natural que se espalhe certa descrença e dúvida.
Nos campos filosóficos e científicos são os que mais influenciaram as
mudanças a partir da Renascença, a superação das incertezas não poderia resultar de
correções parciais que tentassem aproveitar as ruínas da visão de mundo medieval. Ao
contrário, era preciso começar tudo do novo, encontrar novo ponto de partida e
demarcar novo itinerário que conduzisse, com segurança, a certezas científicas
universais.
Essa é a preocupação que se generaliza a partir do final do século XVI, e vai
caracterizar a investigação filosófica do século posterior.
Duas grandes orientações metodológicas surgem, então, abrindo as
principais vertentes do pensamento moderno: de um lado, a perspectiva empirista
proposta por Francis Bacon, a preconizar uma ciência sustentada pela observação e
pela experimentação, e que formularia indutivamente as suas leis, partindo das
considerações dos casos ou eventos particulares para chegar a generalizações; por
outro lado, inaugurando o racionalismo moderno, René Descartes busca na razão os
recursos para recuperar as verdades científicas.
Partindo da sociedade em que viviam os filósofos Bacon, Descartes, Locke e
Leibniz, que repensaram o Universo a partir da razão e da lógica, acabaram
naturalmente encontrando “provas” da existência de Deus. Apesar da ortodoxia cristã
desses pensadores, eles estavam mais vinculados a sistemas de pensamentos que
eram igualmente viáveis sem essa ortodoxia, de modo que, tornava-se difícil encontrar
justificação para as crenças e dogmas de quaisquer religiões.
15
Conseqüentemente, o problema posto por eles não era o da aquisição de
conhecimentos, mas como encontrar meios para distinguir a verdade do erro. É assim
que na Europa cristã, em meio a dogmas religiosos, surge uma tendência que se firma
no século posterior: a fé na razão e na ciência.
Essa ruptura não se deu sem confrontos, no entanto, conseguiu abrir
caminho para sucessivas mudanças que ocorreram no mundo.
Quando a Sorbonne começou cautelosamente a chegar a um
acordo com Descartes, na primeira metade do século XVIII, o
majestoso edifício da física cartesiana já fora abandonado. A ciência
experimental, auxiliada pelos seus novos instrumentos – o telescópio e
o microscópio -, revelara a existência de mais coisas no Céu e na Terra
do que sequer se sonhara na filosofia de Descartes.
6
A “razão” de Descartes estava justificada, mas seu método ultrapassado. A
maneira mecanicista como Descartes abordara o mundo animal e os corpos humanos,
que ofendera os espíritos religiosos com a impressão marcada de um certo
materialismo, parece dispensada da ciência. Percebido o engano, a ciência newtoniana
e a aceitação geral de uma providência beneficente, tal como essas idéias eram
entendidas no século XVIII, colaboraram para que os cientistas abandonassem
indagações metafísicas, prosseguindo suas investigações emancipadas do controle
teológico.
Ajudadas por uma língua internacional comum – o latim -, e mais tarde, pelo
francês, numerosas comunidades científicas vão se formando gerando um sistema
particular e eficaz de divulgação de descobertas e experiências. A dúvida dá lugar às
possibilidades que o conhecimento, agora com seu quinhão de certeza, pode gerar
para melhorar o mundo.
Da necessidade de conhecer os mistérios da natureza e a vontade de
dominá-la parece ter sido um passo. Da pergunta inicial, o que há e o que não há no
6
HAMPSON, N. O Iluminismo, p.73.
16
mundo, cujo conceito básico é o do “Ser”, e sua conseqüência direta, o que “deve ser”,
que implica na ação e nos critérios de ação dos homens, surge à discussão acerca do
próprio conhecimento. Se, somos capazes de conhecer tal como afirmou Descartes,
mesmo que Deus não exista, qual é o limite desse conhecimento e o que o
fundamenta?
Que contraste! Que evolução tão brusca! A hierarquia, a
disciplina, a ordem garantida pela autoridade, os dogmas que regulam a
vida com firmeza: eis o que os homens do século XVII amavam.
Sujeições, autoridade, dogmas: eis o que detestavam os homens do
século XVIII, seus sucessores imediatos. Os primeiros são cristãos, e
os outros anticristãos; os primeiros crêem no direito divino, e os outros
no direito natural; os primeiros vivem à vontade numa sociedade que se
divide em classes desiguais, os segundos sonham só com a igualdade.
7
Nota-se que, a expansão marítima seguiu, grosso modo, a expansão do
conhecimento. Todos esses avanços (que não importam tanto para o desenvolvimento
deste trabalho, mas que não devem passar despercebidos porque influenciaram o
modo de vida e pensamento do século citado) foram os suportes para o engendramento
de uma postura desbravadora, especulativa e dominadora.
Comumente chamado de Século das Luzes, o século XVIII é, sobretudo, uma
época em que a razão, através do avanço da ciência, e louvada por isso, era o estatuto
válido capaz de eliminar de vez toda a ignorância humana. Assim, a razão seria a luz
que uma vez acesa afastaria de vez as trevas da ignorância e da servidão. Não por
acaso, esta também é a época da primeira Enciclopédia. No original grego,
enciclopédia é o conjunto do saber humano em todos os domínios.
Em meados do século XVIII, Diderot é convidado a organizar uma
enciclopédia. Com a ajuda do matemático D’Alembert, convidou artistas, filósofos entre
outros para produzir um quadro dos conhecimentos humanos em todos os domínios.
7
HAZARD, P. Prefácio in A Marcha da Humanidade. Crise da Consciência Européia. Lisboa: Edições
Cosmos, 1971, p.10.
17
A Enciclopédia que apresentamos ao Público é, como seu título o
anuncia, a Obra de uma sociedade de Letrados. (...) De resto, (...) é
mais destinada a pessoas esclarecidas do que à multidão (...) Para não
remontar mais longe, fixemo-nos no renascimento das Letras. Quando
se consideram os progressos do espírito desde essa época memorável,
nota-se que tais progressos realizaram-se na ordem que deviam seguir
naturalmente. Começou-se pela Erudição, continuou-se pelas Belas-
Letras e acabou-se pela Filosofia.
8
Comprometido com as idéias iluministas, Diderot destinou a obra não só aos
letrados de sua época, mas também às futuras gerações na esperança de erradicar a
ignorância, a superstição e o fanatismo a partir da leitura do conjunto dos
conhecimentos já produzidos pela humanidade.
A certeza de que o conhecimento modificaria o futuro, cujo era o pensamento
característico da época, trouxe consigo o surgimento de um conceito que coincidia com
a postura dos conquistadores e pesquisadores, e que se tornou dominante na cultura
européia: a idéia de progresso.
O problema do Mal ainda estava presente, mas com certeza poderia ser
resolvido vinculado à tal idéia, ou seja, de que o mundo é cada vez mais controlável
pela vontade e razão humana esclarecidas. No entanto, nem todos ficaram satisfeitos
com tais mudanças no direito, nas ciências, no modo de conceber o conhecimento, nem
com a promessa de seus efeitos.
Jean-Jacques Rousseau, contemporâneo de Voltaire, Diderot entre outros,
não compartilhava com eles a idéia otimista do progresso da razão. Segundo veremos
em seus dois Discursos que serão analisados, Rousseau acredita no progresso que a
história nos revela é o progresso da desigualdade, mesmo no que concerne ao “direito”.
Segundo Rousseau, embora o uso da razão tenha trazido benefícios, estes nunca
foram distribuídos igualmente entre os homens.
8
DIDEROT e D’ALEMBERT. Discurso Preliminar in Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado Das
Ciências, Das Artes e dos Ofícios. Por uma Sociedade de Letrados, São Paulo: Editora Unesp, 1989, p.
21 e 57.
18
Ora, o ideal iluminista coincidia com a idéia de que o homem, com a
capacidade de conhecer e dominar a natureza tivesse em suas mãos o destino feliz de
sua espécie. Sobre isso, Roberto Salinas escreve que, “revalorizar o homem significa
antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino,
é esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria”.
9
Mas, de fato, para
Rousseau isso não ocorre, pois há, ainda, desigualdade entre os homens, o que implica
em uma revalorização de uns em detrimento de outros tantos. Neste sentido, e em
outros, como veremos mais adiante, Rousseau encontra-se na contramão de seus
contemporâneos, pois não vê no projeto iluminista emancipação, ao contrário, previa
um novo objeto de submissão ou de sujeição na relação saber/poder.
Desta maneira, em linhas gerais, após a “obscuridade” da Idade Média, o
homem volta a ser o centro das investigações filosóficas e científicas. O homem deste
tempo parece-nos, “medida de todas as coisas”.
10
, por influência do pensamento da
Grécia Clássica, tal como o de Protágoras nos diálogos platônicos. É deste homem que
pode tudo, do século XVIII, que se espera a bonança e a bondade; a felicidade e a
prosperidade. Mas, vejamos como Rousseau vê esse homem e o que espera dele.
2. Na contramão de seu tempo
11
A possibilidade da felicidade, através da razão e do conhecimento acumulado
está agora nas mãos dos homens. O poder de tirar a humanidade da dependência de
um Deus e da submissão de um senhor está nas mãos desses filósofos e cientistas,
homens cultos e intelectuais.
Em 1749, a Academia de Dijon
12
tentara rejuvenescer um velho debate: Se o
restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aperfeiçoar os
9
FORTES, L.R. Salinas. in O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, Introdução, 2004, p.
9.
10
GUTHRIE, W.K.C. Os Sofistas. Protágoras. São Paulo: Paulus, 1995, p.173.
11
Ao me referir aos Discursos designei a seguinte abreviação: para o Discurso sobre as Ciências e as
artes, primeiro discurso; para o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
homens, segundo discurso.
19
costumes. Rousseau se propõe responder a questão, mas a resposta que dá, embora
tenha lhe valido o prêmio da Academia, não é a esperada por seus contemporâneos
otimistas.
Logo na primeira parte de seu Discurso, escreve:
Sinto que será difícil adequar o que tenho a dizer ao tribunal a que
compareço. Como ousar censurar as ciências perante uma das mais
sábias sociedades da Europa, louvar a ignorância numa célebre
Academia e conciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos
verdadeiros sábios? Percebi essas contradições, e elas não me
demoveram. Não é a ciência que maltrato, disse comigo mesmo, é a
virtude que defendo perante homens virtuosos.
13
De fato, sua empreitada pareceria impossível não fosse seu recurso irônico e
sutil. Rousseau não considera sábia a sociedade a que se refere, pelo contrário,
segundo podemos notar no decorrer da obra, a considera fria e hostil, o que implica em
falta de sabedoria. Não obstante, a despeito de qualquer crítica que poderia fazer,
Rousseau que prefere Licurgo a Fabrício, deixa deliberadamente de lado o contexto
histórico para defender a qualidade virtuosa do homem, numa retomada da oposição
clássica entre ciência e virtude. Os padres já haviam debatido essa questão a respeito
das letras dos pagãos e da virtude cristã. O século XVI, também voltara a essa questão
exaltando a piedade em detrimento das letras antigas ou da escolástica medieval. Não
era, nesse momento, um paradoxo preferir a simplicidade evangélica aos prestígios de
uma vã curiosidade. Porém, as sucessivas revoluções, da mecânica cartesiana à idéia
de progresso, de luxo e conforto, deslumbraram ao que parece, os espíritos da época a
ponto de considerarem essa desconfiança, a partir de então, um paradoxo
insustentável.
É um espetáculo grande e belo ver o homem sair a bem dizer do
nada por seus próprios esforços; dissipar, pelas luzes de sua razão, as
12
Academia localizada em Dijon, Paris, onde Rousseau ganha o prêmio pelo Primeiro Discurso.
13
ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, Primeiro Discurso, p.9.
20
trevas em que o envolvera a natureza; elevar-se acima de si mesmo;
alçar-se pelo espírito até as regiões celestes; percorrer a passos de
gigante, assim como o Sol, a vasta extensão do universo; e, o que
ainda é maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para aí estudar o
homem e conhecer-lhe a natureza, os deveres e o fim. Todas essas
maravilhas se renovaram há poucas gerações
14
.
Todas as revoluções afastaram o homem do próprio homem elevando-o
acima da órbita terrestre. A que preço deram-se todas essas descobertas magníficas
acerca do céu e de suas leis?
Com a arte das letras seguiu-se uma série infinita de artes e, a mesma
palavra designa indistintamente os artifícios da polidez mundana, as técnicas
provedoras do luxo e da indolência, e as belas artes que preferem o bonito ao sublime.
Deste modo, os costumes que eram rústicos, mas naturais, passaram a ser rebuscados
e artificiais implicando numa sociedade de imagens e de aparência. Esse processo
culminou numa transposição de valores: no lugar do homem livre e virtuoso, a “imagem”
de homem livre e virtuoso.
Apesar de ser responsável por essas mudanças, o próprio homem não é o
foco da mudança, o foco provém de uma concepção social baseada no orgulho e na
altivez. Sobre essa sociedade formada por vícios, escreve Rousseau que, “o espírito,
como o corpo tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, as
demais são seu ornamento”.
15
Ao que parece, Rousseau define o fundamento da sociedade a partir das
necessidades humanas mais básicas. A função desta sociedade seria a de
proporcionar o suprimento dessas necessidades do espírito e do corpo. No entanto, no
decorrer do texto Rousseau acrescenta:
14
IBIDEM, primeira parte, p.11.
15
IBIDEM, p.12.
21
Enquanto o governo e as leis suprem a segurança dos homens
reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez
mais poderosas, estendem guirlandas de flores nas correntes de ferro
que eles carregam, sufocam-lhe o sentimento dessa liberdade original
para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar sua escravidão e
formam o que chamamos de povos policiados. A necessidade ergueu
os tronos, as ciências e as artes os consolidaram
16
.
O termo liberdade é usado neste Discurso pela primeira vez, e parece
significar o oposto da condição vigente que é alvo da crítica deste. A sociedade, em
todos os aspectos, tal como se apresenta para Rousseau, não passa de uma prisão e,
os homens consentem isso quando não seguem sua “índole”, mas os “hábitos
tradicionais”, quando já não se ousa “parecer o que se é”.
Diante das numerosas competições de erudição, quem quer perder? Prefere-
se perder um amigo a perder a posição que se pode alcançar neste tipo de sociedade.
Conseqüentemente podemos perguntar: quem é esse homem? Como foram levados a
ter esse tipo de atitude que degrada sua espécie quando compete com ela mesma?
A causa dessa degeneração, na análise por ora realizada, é o avanço das
artes e das ciências rumo à perfeição. A vã curiosidade fez com que os homens
desviassem seu olhar daquilo que realmente era preciso para se obter como efeito uma
sociedade feliz. Para Rousseau condenar as ciências e as artes são por destruírem a
comunidade dos homens. Para nosso autor, os primeiros homens eram bons, já os
homens dessa sociedade não são o que parecem ser quando estão juntos, reunidos em
festas, jantares, reuniões.
“Ser” e “parecer” é o paradoxo que as ciências e as artes inauguraram, e
Rousseau, no decorrer de seu Discurso, dá inúmeros exemplos de rusticidade, que
parece definir como verdadeiro “ser” versus o progresso ou o “parecer”. Um deles,
quando se refere a Roma Antiga:
16
IBIDEM, p.12.
22
Assim fora a própria Roma nos tempos de sua pobreza e de sua
ignorância. Enfim, assim se mostrou até nossos dias essa nação
rústica, tão enaltecida por sua coragem, que a adversidade não pôde
abater, e por sua fidelidade, que o exemplo não pôde corromper.
17
E continua mais adiante:
Sócrates começara em Atenas; o velho Catão continuou em Roma
a exprobrar aqueles gregos artificiosos e sutis que seduziram a virtude
e entibiavam a coragem de seus concidadãos. Mas as ciências, as
artes e a dialética continuaram a prevalecer; Roma encheu-se de
filósofos e oradores; negligenciou-se a disciplina militar, menosprezou-
se a agricultura, abraçaram-se seitas e esqueceu-se da pátria. As
sagradas palavras liberdade, desinteresse, obediência às leis, foram
sucedidas pelos nomes de Epicuro, de Zenão, de Arcesilau. Desde que
os sábios começaram a aparecer entre nós, diziam seus próprios
filósofos, eclipsaram-se as pessoas de bem. Até então os romanos
haviam se contentado em praticar a virtude; tudo se perdeu quando
começaram a estudá-la
18
.
Os esforços para avançar nesses estudos das ciências, das artes de toda
espécie, foram ao mesmo tempo em que prometiam progressos que beneficiariam a
vida social os artifícios que subverteram a liberdade em escravidão, a honra da virtude
em honra do discurso. Cultivando-se a arte de convencer, perdeu-se a arte de comover,
de atingir pelo coração.
Logo no início da segunda parte Rousseau escreve:
A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência, da ambição,
do ódio, da lisonja, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de
uma vã curiosidade; todas, até mesmo a moral, do orgulho humano. As
ciências e as artes devem, pois, seu nascimento a nossos vícios:
17
IBIDEM, p. 18.
18
IBIDEM, p. 20-21.
23
teríamos menos dúvidas sobre as suas vantagens se o devessem a
nossas virtudes.
19
Ao acreditarem que os astros influenciavam a vida no que concerne às marés
e, portanto à pesca, às secas à colheita, e assim por diante, formulou-se a
“necessidade” de estudar os astros; ao acreditarem que convencer o outro era mais
fácil do que mostrar as razões na prática de algumas questões tais como porque este
terreno é de um e não de outro ou porque se pode dizer que se sabe mais sobre um
assunto que outro forjou-se a “necessidade” da eloqüência; a medição de terrenos ou o
peso dos alimentos se deram quando se tornou “necessário” acumular riquezas; a
própria física só se verificou como “necessidade” quando a curiosidade sobre a
natureza se tornou meta de dominação. A necessidade do saber culminou em poder. É
por conta desses vícios que deram origem às ciências e as artes, segundo Rousseau,
que devemos duvidar sobre suas vantagens. A que preço se enriquece, o da mentira, o
da avareza? Qual é o preço do não saber: a submissão o desprezo? As vantagens,
quando medidas, parecem não valer a pena.
Ciência, para os gregos é o tipo de saber racional, fundado sobre o logos,
caracterizado pela incontrovertibilidade e pela certeza absoluta, tal é o tipo de saber
que alcança o fundamento último do homem
20
. É assim que, para Platão, “a ciência é
feita para o ser, para conhecer como é o ser”
21
, e, para Aristóteles, a ciência deve ser
aquela atividade que visa algum bem. Deste modo, “cumpre-nos tentar determinar,
mesmo sumariamente, o que é este bem, e de que ciência ou atividades ele é objeto.
Aparentemente ele é o objeto da ciência mais imperativa e predominante sobre tudo.
Parece que ela é a ciência política, pois esta determina quais são as demais ciências
que devem ser estudadas em uma cidade”.
22
19
IBIDEM, segunda parte, p. 25.
20
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
21
PLATÃO. República, livro V, 477b, p. 259.
22
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, livro I, 1094a,
p.18.
24
A despeito das diferentes definições, entre os antigos e Rousseau, parece
que o desenvolvimento das ciências e das artes, em teoria, tem comprometimento com
algum bem relativo ao homem, no entanto, seguindo a análise de Rousseau, a prática é
outra.
Nenhum homem nasce virtuoso, nenhum homem nasce douto, esta é a
máxima deduzida de tal análise. Ciência e virtude devem andar lado a lado
beneficiando-se mutuamente, mas de fato não é o que Rousseau reconhece em seu
uso. Para ele, o homem deixou de lado a virtude ao desenvolver as ciências, e não
poderia ser diferente já que a primeira subjugou a segunda ao invés de desenvolver-se
com ela. Assim se distingui os talentos, separam-se os homens, mas não se distingui a
boa ação do belo discurso.
A genealogia proposta por Rousseau acerca desse mal que para ele se
equipara ao desenvolvimento das ciências e das artes pelo resultado que apresentam
nos homens, se inicia neste Discurso e tem seu ponto alto no Discurso sobre a Origem
e os fundamentos da desigualdade entre os homens, dado que a primeira parte da
constatação de que a sociedade tal como se apresenta separa os homens de maneira
desigual no que tange à economia e ao saber, de modo que estas que são foco de sua
crítica estão a serviço de poucos.
Se a preocupação de Rousseau nasce do fato de ter uma sociedade que
corrompe os homens, e eles a isso se submetem, resta saber como isso é possível. É
neste sentido que escreve:
Se a cultura das ciências é nociva às qualidades guerreiras, ainda
o é mais às qualidades morais. É logo nos primeiros anos que uma
educação insensata nos orna o espírito e nos corrompe o juízo. Vejo
em todos os lugares estabelecimentos imensos nos quais, com grandes
despesas, se educa a juventude, para ensinar-lhe todas as coisas,
exceto seus deveres. Vossos filhos ignorarão a própria língua, mas
falarão outras que não são usadas em parte alguma; saberão compor
versos que mal conseguirão compreender; sem saber distinguir o erro
da verdade, possuirão a arte de torna-los mediante argumentos
especiosos, irreconhecíveis aos outros; mas as palavras,
25
magnanimidade, equidade, temperança, humanidade, coragem, eles
não saberão o que são; a doce palavra pátria nunca lhes atingirá os
ouvidos; e se ouvirem falar de Deus será menos para reverenciá-lo do
que para temê-lo.
23
As qualidades guerreiras, como a coragem e a força, não são necessárias em
um mundo letrado onde se evitam as guerras por tratados. O saber livresco, repleto de
preceitos, também não acrescenta nada às qualidades morais, mas à cultura de um
povo que exalta e enaltece determinados valores pela qual a educação é norteada.
Se a educação não corresponde à idéia de homem como guerreiro ou como
ser moral, tampouco alcança seu ideal. Assim, a educação muitas vezes usada por
interesses particulares que se fazem políticos, até este ponto da análise, é o grande
sustentáculo de uma sociedade que pode se manter tal qual se apresenta ou se
transformar por interferência dela. No entanto, a afirmação de Rousseau sobre uma
“educação insensata” nos remete a uma imagem de homem que não está nem de longe
presente nesta sociedade. A educação vigente, segundo Rousseau, ensina as modas,
aquilo que pode e deve ser esquecido com o tempo. Uma boa educação visa o
desenvolvimento do homem baseado em suas inclinações naturais. Mas qual será o
conceito e, portanto, o ideal de homem a ser perseguido, que podemos concluir de seu
primeiro Discurso?
Os Bacons, os Descartes e os Newtons, esses preceptores do
gênero humano, não tiveram outros mestres além de si mesmos, e que
guias os teriam conduzido até onde levou seu imenso gênio? Mestres
comuns só poderiam ter encolhido seu entendimento comprimindo-o na
estreita capacidade do deles. Foi com seus primeiros obstáculos que
aprenderam a fazer esforços e se exercitarem para transpor o espaço
imenso que trilharam.
24
Até aqui, tem-se a idéia de homem que com seus próprios esforços
ultrapassa seus limites, e que, por conseguinte não se limita aos ensinamentos de
23
ROUSSEAU, J.J. Primeiro Discurso, segunda parte, p.33-34.
24
IBIDEM, p.38-39.
26
pretensos sábios. Essa é a pista daquela que parece ser a imagem de homem o qual
Rousseau faz alusão quando se remete ao seu oposto presente neste Discurso.
Na sociedade que Rousseau descreve é da comparação dos talentos de uns
com os outros sem a devida consideração de suas inclinações naturais que se forja o
que chamam de sábio. É assim que se enaltecem as artes em suas mais variadas
concepções. Deste ponto de vista, não parece incorreta a insatisfação de nosso autor
dado que esta é mais uma maneira de se produzir desigualdades.
Esta é a crítica de seu tempo, e concomitantemente, do uso da razão, na
resposta negativa que dá à questão em seu primeiro Discurso. Entretanto, algumas
noções permanecem obscuras.
Se as ciências e as artes não contribuem da maneira como são, para
aperfeiçoar os costumes, mas ao contrário, os corrompe isso se dá devido a sua origem
e sua posterior consolidação. Cabe, portanto, depois de constatar na obra que a origem
está em nossos vícios, já mencionados, procurar o momento em que se deram esses
vícios, porque está pressuposto um momento no qual eles ainda não eram fortes.
Há, portanto, duas imagens de homem em Rousseau que se pode conceber
até aqui: a primeira, encontrada no primeiro Discurso, de homem degenerado; a
segunda, ainda que em esboço nesse mesmo Discurso, de um homem naturalmente
bom. A imagem de homem corrompido desenhado neste primeiro momento tem seu
fundamento em um outro momento, talvez histórico, do processo civilizatório. É o que
se nota no segundo Discurso. Neste, Rousseau remonta-se ao estado hipotético do
homem da natureza para averiguar a afirmação de seus contemporâneos, Voltaire,
Diderot, entre outros já citados, a respeito da desigualdade vigente em sociedade que,
para eles é decorrência natural, ou seja, decorre da natureza do próprio homem uns
terem mais condições – físicas, psicológicas, morais de se tornarem ricos e outros
menos. A própria razão seria uma ferramenta eficaz para a dominação ou para a luta
27
contra ela, como escreve Goldschimidt, retomando a idéia de Rousseau frente seus
contemporâneos:
O aperfeiçoamento da razão supõe, então, que a espécie se
deteriore; o conhecimento do mal (‘tornar um ser mau...’) está ligada a
esta degradação (‘...tornando-o sociável’). Nesta perspectiva
(puramente etiológica), é verdade que esta não é a única admissível, o
conhecimento do bem e do mal é essencialmente conhecimento do mal
como possível e desejável, e a razão não é nem legisladora nem
unificadora: ela constitui os indivíduos e, na rivalidade que criou a
sociabilização, serve aos indivíduos de arma de combate. E é nisso que
ela é causa de desigualdade
25
.
Para Rousseau, esta desigualdade é decorrência histórica, é decorrência das
escolhas dos homens, e, portanto, não é dada por natureza. Todas essas diferenças
entre os ricos e os pobres, burgueses e camponeses, não são nada naturais, não são
intermediadas pela razão, pelo contrário, a razão lhes serve de “arma de combate”
quando se lhes impõe, por isso, precisam acabar, pois é fonte dos males sociais e dos
males humanos. É o caso da discussão clássica a respeito da ciência e da virtude.
É por esta inversão dos valores socialmente necessários, tais como a virtude
ou moral, que Rousseau recorre ao exame dos fundamentos desta sociedade. Antes,
ele lembra que seu estudo é sobre os homens e para os homens, na busca da
compreensão de como o homem de seu tempo se submeteu à desigualdade sem se
rebelar. É o conhecimento pretensamente universal relativo ao próprio homem e de sua
natureza, que parece auxiliar nosso autor na investigação daquilo que considera como
saber mais útil e menos desenvolvido.
No início do segundo Discurso, Rousseau faz a distinção entre as formas de
desigualdade que, segundo ele, há entre os homens. A primeira, ele chama de “natural
ou física”, que consiste na diferença dada por natureza entre as idades, força, saúde, e
25
GOLDSCHMIDT, Victor. Anthropologie et Politique. Les pricipes du système de Rousseau. Paris: Vrin,
1974, p.383 (trad. Autor).
28
as qualidades do espírito ou da alma; a segunda, “moral ou política”, por depender de
uma espécie de convenção autorizada ou estabelecida pelos homens.
A gênese da primeira está em sua própria concepção de natureza, e é quase
nula, mas a da segunda, objeto desse Discurso, deve ser encontrada no exame dos
fundamentos da sociedade. Para tanto, Rousseau remontar-se-á ao estado hipotético
de natureza desses que fundou a sociedade e que chamamos de homem.
Uns não hesitaram em supor no homem nesse estado a noção do
justo e do injusto, sem se preocupar em mostrar que ele deveria ter
essa noção, nem sequer que esta lhe fosse útil. Outros falaram do
direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem
explicar o que entendiam por pertencer. Outros, conferindo de início ao
mais forte a autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o
governo, sem pensar no tempo que deve ter passado antes que o
sentido das palavras autoridade e governo pudesse existir. Enfim,
todos, falando incessantemente de necessidade, de avidez, de
opressão, de desejos e orgulho, transportaram para o estado de
natureza idéias que haviam tirado da sociedade: falavam do homem
selvagem e descreviam o homem civil.
26
A crítica aos filósofos jusnaturalistas, tal como Hobbes
27
, que remontaram ao
estado de natureza para explicar a desigualdade tem seu ponto chave nesta passagem.
Segundo Rousseau, nenhum deles reportou-se de fato a outro momento na história
mesmo que hipotético, porque falaram do homem tal como o concebem em sociedade.
No entanto, embora as pesquisas de Rousseau não se baseiem em dados históricos,
seus raciocínios condicionais lhe parecem apropriados para esclarecer a natureza das
coisas e não sua verdade, de maneira ao que tudo indica, suprimirá dos primeiros
homens aquilo que se encontra neles na ordem social para que se possa tirar uma
“imagem” de homem natural.
26
ROUSSEAU, J.J. Segundo Discurso, p.160-161.
27
A comparação com o pensamento de Hobbes ficará mais clara num segundo momento deste trabalho
quando será abordada uma passagem do Leviatã.
29
Conhecer sua natureza é o único meio de reconhecer aquilo que lhe é próprio
daquilo que lhe foi acrescentado. Então, dado seu método, perguntamos: como o
homem se constitui e se diferencia dos outros animais?
Rousseau divide esse estudo em três planos: físico, metafísico, entendido
como alma ou psicológico, e moral.
No plano físico, Rousseau nos apresenta o homem em sua condição animal
como ser vivo sensível, como espécie biológica, como corpo constituído.
A terra, abandonada à sua fertilidade natural e recoberta de
florestas imensas jamais mutiladas pelo machado, oferece a cada
passo reservas de provisões e refúgios aos animais de qualquer
espécie. Os homens, dispersos entre eles, observam, imitam-lhes o
engenho e elevando-se assim ao instinto dos animais, com a vantagem
de que, enquanto cada espécie tem apenas seu próprio instinto, o
homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, apropria-se de
todos, alimenta-se igualmente com a maioria dos diversos alimentos
que os outros animais dividem entre si e, por conseguinte, encontra
subsistência com mais facilidade do que pode conseguir qualquer um
deles.
28
Observando outros animais o homem levava vantagens naturais sobre eles
por conta de sua própria constituição. Não tendo instinto, poderia se valer de todos os
que se apresentavam; tendo memória, poderia, mesmo que depois de muito tempo,
valer-se dela para adequar-se à ocasião.
Acostumados desde a infância às intempéries do clima e do rigor
das estações, exercitados na fadiga e forçados a defender, nus e sem
armas, sua vida e sua presa dos outros animais ferozes, ou a escapar-
lhe correndo, os homens formam um temperamento robusto e quase
inalterável. As crianças, trazendo ao mundo a excelente constituição
dos pais, e fortalecendo-a pelos mesmos exercícios que a produziram,
adquirem assim todo o vigor de que é capaz a espécie humana.
29
28
ROUSSEAU, J.J. Segundo Discurso, primeira parte, p.164.
29
IBIDEM, p.164-165.
30
O corpo é seu instrumento único. Sabe valer-se dele em todas as
circunstâncias em que necessitar. Sente pouco ou nenhum medo já que cresce e
envelhece sem que as coisas se alterem de forma contínua. É mais fraco, mas mais
esperto. Vale-se de outros recursos para suprir suas necessidades: se não possui pele
peluda para proteger-se do frio, apropria-se da pele de animais que venceu a “disputa”.
Solitário, ocioso e sempre em eminência de perigo, come o necessário e dorme o
suficiente. Adoece pouco porque não comete abusos. Como seu principal cuidado é
com sua conservação, “suas faculdades mais exercitadas devem ser aquelas cujo
objetivo principal é o ataque e a defesa”.
30
Até aqui, consideramos o homem da natureza, segundo a digressão de
Rousseau, apenas em seu aspecto físico, vejamos seu lado metafísico e moral.
Vejo em todo animal somente uma máquina engenhosa, a quem a
natureza deu sentidos para funcionar sozinha e para garantir-se, até
certo ponto, contra tudo quanto tende a destrui-la ou a desarranjá-la.
Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a
diferença de que a natureza faz tudo sozinha nas operações do animal,
ao passo que o homem concorre para as suas qualidades de agente
livre. Um escolhe ou rejeita por instinto e o outro, por um ato de
liberdade; é por isso que o animal não pode afastar-se da regra que lhe
é prescrita, mesmo quando lhe for vantajoso fazê-lo, e o homem afasta-
se dela amiúde para seu prejuízo.
31
A liberdade diferencia os homens dos outros animais, e não sua capacidade
de ter idéias. Conseqüentemente, essa mesma liberdade, somada a faculdade de
aperfeiçoar-se que desenvolve todas as outras faculdades assim que as circunstâncias
as solicitam, é que afasta os homens da natureza. Enquanto o animal só responde aos
apelos da natureza, o homem responde aos apelos de sua vontade.
30
IBIDEM, p.171.
31
IBIDEM, p.172.
31
Perceber e sentir são suas primeiras funções, e nisso coincidem com outros
animais. Querer e não querer, desejar e temer são as primeiras operações de sua alma
até que novas circunstâncias solicitem outras que nele está em potência.
As paixões, que aperfeiçoam a razão, originam-se das necessidades. Como o
homem selvagem só deseja o que conhece seus desejos não ultrapassam as
necessidades físicas. Sobre isso, escreve:
Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente ao
alcance da mão e ele está tão longe do grau de conhecimentos
necessários para desejar adquirir outros maiores, que não pode ter nem
previdência, nem curiosidade.
32
Segundo Rousseau, foram necessários muitos anos para que as faculdades
pudessem chegar a ser como se encontram nos homens atuais. Como escreve ele,
“que progressos poderia fazer o gênero humano disperso nos bosques entre os
animais?”.
33
Como num salto, temos a origem das línguas. Primeiro, o grito da
natureza.
A partir do momento que as idéias dos homens começaram a estender-se e a
multiplicar-se, a comunicação, então, aperfeiçoa-se e estreita-se. Cada objeto recebe
um nome particular; as idéias gerais só puderam introduzir-se no espírito, segundo
Rousseau, com o auxilio das palavras.
34
Não tendo entre si deveres conhecidos, nem vícios, nem virtudes, mas
somente simples impulsos da natureza, não poderiam ser bons nem maus,
conseqüentemente a questão da moralidade do homem selvagem não tem sentido
para Rousseau.
32
IBIDEM, p.176.
33
IBIDEM, p.178.
34
Rousseau não polemiza, neste Discurso, a respeito da origem das línguas, mas constata que somente
através da aproximação entre os homens que elas são possíveis.
32
A “calma das paixões” dos primeiros homens lhes permitia bastar a si
mesmos. Não necessitavam de mais do que podiam ter por si, e por não precisarem de
nada e ninguém, não podiam ser “maus”, dado que a maldade vem da vontade
reprimida de alguma coisa e não da liberdade. Da liberdade podemos esperar o “bem”,
mesmo que inconscientemente.
Desta maneira, diferentemente do posicionamento, na citação abaixo, de
Hobbes, Rousseau não considera o homem natural como indivíduo da guerra, pelo
contrário.
Tendo assim deitado estes alicerces, demonstro em primeiro lugar
que a condição dos homens fora da sociedade civil (condição esta que
podemos adequadamente chamar de estado de natureza) nada mais é
que uma simples guerra de todos contra todos, na qual todos os
homens têm igual direito a todas as coisas; e, a seguir, que todos os
homens, tão cedo chegam a compreender essa odiosa condição,
desejam (até porque a natureza a tanto os compele) libertar-se de tal
miséria.
35
Hobbes, como já mencionado sobre os jusnaturalistas, imputa ao homem
natural as condições do homem civil, o que implica, para Rousseau, na desqualificação
de seu discurso a respeito da “maldade” do homem natural.
Para desenvolver a razão, segundo o percurso de Rousseau, foi preciso
ultrapassar os desafios da natureza na luta pela preservação. Assim, a “liberdade de tal
miséria” não pode ser pensada por estes homens, nem o “estado de guerra” pode por
eles ser deliberado.
Ora, gostaria muito que me explicassem qual pode ser o gênero
de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com
35
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Prefácio do Autor ao Leitor. São Paulo: Martins Frontes, 1992, p.18.
33
saúde. Pergunto qual delas, a vida civil ou natural, é mais sujeita a
tornar-se insuportável àqueles que a usufruem
36
.
É somente no estado civil degenerado que o homem delibera acerca de seu
estado; é somente neste estado que conhece a palavra miséria. O homem natural não
se debruça sobre seus pensamentos para agir, ele age “instintivamente” a partir do que
a própria ordem da natureza lhe concede.
Assim, escreve ele sobre a idéia do homem selvagem de Hobbes:
O mau, diz ele é uma criança robusta; resta saber se homem
selvagem é uma criança robusta. Mesmo que se concordasse com isso,
o que concluiria ele? Que se esse homem, quando é robusto, fosse tão
dependente dos outros como quando é fraco não haveria um tipo de
excessos que não praticasse; bateria na mãe quando ela demorasse
muito para dar-lhe o seio; estrangularia um de seus irmãos mais jovens
quando este o incomodasse; morderia a perna do outro quando este o
contrariasse ou perturbasse. Entretanto, ser robusto e dependente são
duas suposições contraditórias no estado de natureza; o homem é fraco
quando é dependente e é emancipado antes de ser robusto.
37
.
A maldade é característica do fraco, daquele que depende dos outros para
alcançar o desejado; a bondade é que é característica do forte. Somente quem basta a
si mesmo ou que de pouco precisa é que pode tudo e, por isso, não tem a menor
necessidade de cometer maldades. Dessa maneira, o homem natural seria
essencialmente bom e, seguindo seu raciocínio, somente em sociedade e mediante
determinada educação de valores é que a maldade se faz possível e desejada. Sobre
isso, escreve Goldschmidt:
Em Rousseau, não há nenhuma referência ao pecado original; há
preliminarmente as paixões, um simples “princípio ativo”. Este princípio,
mais tarde, poderá provocar como em Hobbes, paixões e, mais
precisamente um espírito de “dominação”. Não a título de defesa
necessária (legítima defesa), mas simplesmente ao contato dos adultos
por esta breve experiência que basta “para sentir o quanto é agradável
36
ROUSSEAU, J. Jacques. Segundo Discurso, primeira parte, p.186.
37
IBIDEM, p.188.
34
agir pelas mãos de outrem, e de ter necessidade apenas de mexer a
língua para fazer mover o universo”. Mas uma tal “evolução”, para
Rousseau, não tem nada de necessária: basta, para a criação de um
meio favorável, prevenir uma tal “experiência” e, para evitar que a
fraqueza infantil não busque dominar os adultos, de re-direcionar esta
fraqueza equilibrando nas crianças seus desejos e suas faculdades.
Também a educação, nesta idade, não consiste em expor a “más”
experiências, mas torná-las fortes. Pois a fraqueza, aliada ao princípio
ativo, não é somente, como em Hobbes, uma desculpa absolutizadora;
ela (ou, antes o sentimento de sua fraqueza) constitui na criança uma
fonte possível do mal: primeiramente para “se provar a si mesmo seu
próprio poder”, em seguida, como vimos, para tomar império sobre os
outro, e isto, não pela força que precisamente faz falta, mas pela
astúcia.
38
A única virtude natural que Rousseau admite no homem selvagem, e cuja
utilidade é visível por seus fins é a “pitié” ou piedade. Ela precede o uso de qualquer
reflexão, assim como toda e qualquer virtude, no homem social. A compaixão, ou
piedade, capacidade de compartilhar o sofrimento alheio modera em cada indivíduo a
atividade do “amor de si” que, na filosofia de Rousseau é a paixão responsável pela
conservação de si.
Assim como o amor de si leva à conservação do indivíduo, a compaixão ou
piedade leva à conservação mútua da espécie. É por causa desses sentimentos que o
homem, em seu estado de natureza, tende a negar prejudicar o próximo em benefício
próprio. São essas paixões que substituem, no estado de natureza, leis, costumes e
virtude, “com a vantagem de ninguém ficar tentado a desobedecer a doce voz”.
39
O amor de si é o oposto do amor próprio. O primeiro sentimento do homem
primitivo; o segundo presente somente em sociedade e ausente do coração do homem
primitivo é uma perversão do amor de si originário.
Ao lado dessas duas paixões centrais, piedade e amor de si, que levam os
homens à proteção da espécie, há ainda o instinto de reprodução que no estado
38
GOLDSCHMIDT, Victor. Anthropologie et Politique. Lês pricipes du système de Rousseau. p.328 (trad.
Autor).
39
ROUSSEAU, J.J. Segundo Discurso, primeira parte, p.192.
35
primitivo é puramente físico. Sobre isso, o que importa saber aqui, neste trabalho, é de
que, com o passar do tempo, segundo Rousseau, estas relações se transformaram no
que hoje conhecemos como família, pois é somente com o desenvolvimento dos
vínculos sociais e com o desenvolvimento da linguagem na passagem para a
sociedade, que essa paixão adquirirá uma extraordinária intensidade.
Como visto anteriormente, são as paixões que engendram movimentos que
levam ao progresso da razão, e estas, por sua vez, se não forem nunca estimuladas
permanecem em potência sem jamais nascer. Portanto, os primeiros e únicos
movimentos exercidos pelas paixões do homem selvagem são aqueles capazes de
conservar o homem na vida.
No plano metafísico, acompanhamos o raciocínio de Rousseau em sua
descrição acerca da diferença entre o homem e o animal; sua capacidade de
aperfeiçoar-se e sua liberdade para fazê-lo; no plano moral, como o próprio nome
indica, aquilo que podemos chamar de bons ou maus comportamentos e, sobretudo, o
que pode ser fundamento da moral
40
no homem em sociedade.
Para encerrar a primeira parte de seu Segundo Discurso, Rousseau explica
os motivos pelos quais acreditou ser necessário todos os pormenores acerca desse
homem denominado “homem selvagem”.
Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condição primitiva,
foi porque, tendo de destruir antigos erros e preconceitos inveterados,
achei que devia escavar até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro
estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe
40
A moral para Rousseau é uma virtude social. Para essa virtude existir se faz necessária uma
educação. Uma educação para a força. O amor ao próximo se afirma como elemento fundamental da
moral proposta por Rousseau. “Meu filho, não existe felicidade sem coragem, nem virtude sem luta. A
palavra virtude vem de força; a força é a base de toda virtude. A virtude só pertence a um ser fraco por
natureza e forte pela vontade; é apenas nisso que consiste o mérito do homem justo, e, embora digamos
que Deus é bom, não dizemos que seja virtuoso, porque ele não precisa esforçar-se para agir bem. (...)
Governa teu coração, Emílio, e serás virtuoso”.Rousseau, J.Jacques. Emilio ou da Educação. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, livro V, p.626-627.
36
de ter nesse estado tanta realidade e influência como pretendem
nossos escritores.
41
E continua num belo discurso na defesa de sua tese:
Com efeito, é fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os
homens, passam por naturais muitas que são unicamente obra do
hábito e dos diversos gêneros de vida que os homens adotam em
sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força e a
fraqueza que daí decorrem, provém amiúde mais da maneira rude ou
efeminada pela qual se foi educado do que da constituição primitiva do
corpo. Dá-se o mesmo com as forças do espírito; e a educação não só
introduz diferença entre os espíritos cultos e aqueles que não o são,
mas também aumenta a que existe entre os primeiros em proporção da
cultura, pois, quando um gigante e um anão caminham na mesma
estrada, cada passo que um e outro derem propiciará uma nova
vantagem ao gigante. Ora, se compararmos a prodigiosa diversidade de
educações e de gênero de vida que reina nas diferentes ordens do
estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e
selvagem, em que todos se nutrem com os mesmos alimentos, vivem
da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas,
compreenderemos quanto deve ser menor a diferença de homem para
homem no estado de natureza do que no de sociedade e quanto deve
ser aumentada a desigualdade natural da espécie humana pela
desigualdade de instituição.
42
Diante tal discurso, fica evidente a intenção de Rousseau em provar, através
do exercício imaginário de digressão ao estado de natureza, quão pequena é a
desigualdade entre os homens nesse estado. Pode-se concluir, através dessa defesa,
que a desigualdade criticada no primeiro Discurso, do uso das ciências e das artes por
poucos e para poucos, é fundamentalmente, desigualdade social, ou seja, desenvolvida
em sociedade. Resta saber, em que momento isso se dá, porque, até então, só
constatamos que em estado de natureza ela não existia.
Outra pista acerca da condição do homem degenerado no estado civil que os
dois discursos oferecem, é a referência à educação. Parece-nos, da análise até aqui
realizada, que a educação exerce papel de ferramenta para a retificação do estado de
41
ROUSSEAU, J.J. Segundo Discurso, primeira parte, p.197.
42
IBIDEM, p.198.
37
desigualdade. Contribuindo e acentuando-a, a educação como instituição mostra-se
importante para a continuidade de certo projeto que se pretende hegemônico.
Conquanto, palavras como “dominação” e “servidão”, segundo Rousseau, só existem
no vocabulário do homem civil, já que, somente a dependência mútua dos homens é
que produz tal situação.
Já na segunda parte do segundo Discurso, Rousseau refaz o caminho do
homem selvagem até o momento inaugural do conceito de propriedade privada.
O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, seu
primeiro cuidado, o de sua conservação. As produções da terra lhe
forneciam todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizá-los.
Como a fome e outros apetites o faziam experimentar sucessivamente
diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar
sua espécie; e essa inclinação cega, desprovida de qualquer
sentimento do coração, não produzia mais que um ato puramente
animal. (...) Tal foi a condição do homem nascente.
43
Submetidos, hipoteticamente, as mudanças climáticas - inundações, tremores
de terra, fenômenos que alteram as condições de vida -, na medida em que as
dificuldades de sobrevivência se apresentaram, precisaram aprender a vencê-las, ou
seja, aquilo que permitia uma vida solitária, cercada de paixões primitivas, modifica-se,
modificando também a forma de organização.
Eliminada a abundância primitiva, dada às mudanças da condição de vida, o
indivíduo passa a ser abandonado às próprias forças. Assim, viu-se obrigado, dada sua
natureza, a extrair do meio circundante os bens necessários que outrora eram
gratuitamente colocados à sua disposição.
Mediante as exigências externas, novas luzes resultam dessa necessidade
de desenvolvimento aumentando-lhes a superioridade sobre os outros animais ao
torná-los cientes delas.
43
IBIDEM, segunda parte, p. 204.
38
Exercitou-se em preparar-lhes armadilhas, ludibriou-os de mil
maneiras e, embora muitos o superassem em força no combate, ou em
velocidade na corrida, daqueles que podiam servir-lhe ou prejudicá-lo,
tornou-se com o tempo o senhor de alguns e o flagelo de outros. Foi
assim que o primeiro olhar que dirigiu a si mesmo produziu-lhe o
primeiro movimento de orgulho; foi assim que, mal sabendo ainda
distinguir as categorias, e contemplando-se como o primeiro de sua
espécie, preparava-se de longe para pretender-se o primeiro como
indivíduo.
44
Embora, o homem no estado primitivo, não considerasse seu semelhante
como considera em sociedade, com a consciência de si se inicia também o olhar para o
outro. Os outros animais já não implicavam grandes esforços para a “dominação”, e o
orgulho, já hipoteticamente formado, fazia do homem um ser superior. Assim, os
eventos subseqüentes os fizeram perceber e distinguir as ocasiões em que o “interesse
comum” e a “concorrência” deveriam ser o mote de suas ações. Foi mediante tal
percepção que puderam adquirir certa idéia, ainda grosseira, dos “compromissos
mútuos” e da “vantagem” de cumpri-los. Longe de ocupar-se com o futuro, agiam no
imediatismo, não pensavam sequer no dia seguinte, e a linguagem que essa relação
exigia não era mais refinada do que a dos pássaros.
Pode-se concluir, com o movimento exigido para a manutenção da vida em
condições adversas, que, quanto mais se solicitava dos esforços dos homens, mais
progrediam suas luzes. Criaram alguns engenhos vendo-se obrigados a exercitar sua
criatividade e iniciativa mediante as dificuldades que surgiam na ocasião.
A “primeira revolução”, segundo Rousseau, se dá com a construção das
primeiras moradias - cabanas revestidas de lama. É assim, com a aproximação entre
os homens, que formaram-se as primeiras famílias e uma espécie de pequena
sociedade. Tal é o momento que tudo começa a mudar já que novas relações
começaram a surgir.
44
IBIDEM, p.205-206.
39
Nasce um vínculo mais duradouro que se opõe à dispersão que até então
vigorava entre os indivíduos. Os novos sentimentos e o posterior desenvolvimento da
linguagem fazem nascer, segundo Rousseau, a etapa caracterizada como a da
sociedade começada.
Surge, então, do animal limitado às puras sensações um indivíduo novo com
conhecimento maior de si mesmo e de seu semelhante capaz de estabelecer relações
entre as coisas e agir com previdência. É nesse período que visualiza-se o germe de
uma sociedade, embora, ainda, muito longe de um vínculo efetivo.
Nesse novo estado, desfrutando de tempo para o lazer, as novas gerações
empregavam seu tempo criando novas comodidades que até então eram
desconhecidas e é segundo nosso autor, que nasce a primeira fonte de males para os
descendentes.
(...) além de enfraquecerem o corpo e o espírito ao se habituarem
com essas comodidades, estas perderam quase todo o atrativo e ao
mesmo tempo degeneraram em verdadeiras necessidades. Assim, a
privação delas tornou-se mais cruel do que doce era sua posse, e
sentiam-se infelizes por perdê-las, sem serem felizes por possui-las.
45
Reunidos por situações fortuitas e vivendo numa permanente vizinhança,
esses homens acabam por formar uma nação particular, unida por costumes e não por
leis. É com a introdução da propriedade que esse estado, ainda de igualdade, segundo
Rousseau, é destruído.
Enquanto se dedicavam à subsistência, os selvagens viviam não só felizes,
mas se bastavam. No entanto, com o desenvolvimento das faculdades e
conseqüentemente das paixões, percebeu-se que era útil a um só ter provisões para
dois.
45
IBIDEM, p.209.
40
Desaparece, então, a igualdade; uns se impuseram a outros e formaram o
que se conhece por propriedades. Os outros se submeteram por medo, fraqueza ou
simplicidade. Este foi o início de toda a desigualdade social.
A moralidade já permeava as relações. “Cada qual começou a olhar os outros
e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública teve seu preço”.
46
E, eis que a
desigualdade natural se desdobra insensivelmente com a desigualdade de combinação.
Novas artes surgem com o aumento da população. Para as novas
necessidades demandam novas relações. O novo vínculo se constitui mediante a troca
de produtos que são objetos de uma apropriação exclusiva. Alguns, por conta disso,
serão capazes de acumular riquezas.
Eis, portanto, todas as faculdades desenvolvidas (...) Eis todas as
qualidades naturais postas em ação (...) Ser e parecer tornaram-se
duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção provieram o fausto
imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes formam o
cortejo. Por outro lado o homem, de livre e independente que era antes,
passou a estar, em virtude de uma profusão de novas necessidades,
por assim dizer sujeito a toda a natureza, sobretudo aos seus
semelhantes, de quem num sentido se torna escravo, mesmo em se
tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços; pobre, precisa de
seu auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem
eles.
47
Nesta etapa, segundo Rousseau, o homem deixou de ser selvagem e não
pode voltar atrás, a despeito de interpretações como as de Voltaire que julga que
“j
amais se empregou tanto espírito em querer tornar-nos animais; sente-se vontade de andar de
quatro patas, quando se lê vossa obra”.
48
As guerras generalizam-se ameaçando a vida. Todos são constantemente
ameaçados diante daquilo que têm: talentos, engenhosidade, bens. Com o intuito de
46
IBIDEM, p.211.
47
IBIDEM, p.217-218.
48
IBIDEM, Carta de Voltaire a J.J. Rousseau, p.245.
41
protegerem-se dos diversos tipos de ameaças, alguns homens inventaram razões para
conduzir os restantes aos seus objetivos: “Unamo-nos”, disse-lhes,
Todos correram ao encontro de seus grilhões, acreditando
assegurar a liberdade, pois, com razão suficiente para perceber as
vantagens de um estabelecimento político, não tinham experiência
suficiente para prever-lhes os perigos (...).
49
Segundo Rousseau, estes que queriam proteger seus “bens” materiais não
precisaram de muitos esforços para arrastar os homens mais simples e rústicos para
esta associação.
Seguindo sua lógica, este momento não pode ser o momento legítimo de um
“pacto social”, pois, a instituição de uma ordem legal que, ao mesmo tempo em que
promove a paz legítima à propriedade privada, e dá respaldo às desigualdades
existentes, não pode ser encarada como verdadeiro pacto. E é por ter sido instituída
dessa maneira desigual que Rousseau nega sua legitimidade.
Para ele, somente um pacto onde todos estivessem de acordo e mediante o
qual ninguém estivesse em posição de desigualdade, é que seria o verdadeiro pacto
social e que, portanto, ainda estaria por vir.
Em suma, a desigualdade natural, quase imperceptível, Rousseau descreve o
nascimento da desigualdade social instituída. E em resposta àqueles – Locke,
Pufendorf, entre outros - concordam que o momento do verdadeiro pacto social já
ocorrera, reserva pelo menos dez páginas onde resgata elementos históricos para dar
ênfase a sua tese. Em fim, foram as qualidades morais que levaram os homens às
instituições: a ambição, a mentira e o medo.
49
IBIDEM, Segundo Discurso, segunda parte p.221-222.
42
Conclui-se desta exposição que a desigualdade, sendo quase
nula no estado de natureza, extrai sua força e seu crescimento do
desenvolvimento de nossas faculdades e dos progressos do espírito
humano e torna-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da
propriedade e das leis.
50
A distância entre o homem selvagem e o homem civil é muito grande.
Entretanto, ainda que uma longa estrada separe um do outro, ainda se trata do homem.
Novas necessidades, novo tipo de vida e, agora, de projetos. Os olhos dos homens
civis sempre atentos às glórias dos semelhantes. “Poder” e “reputação”, tal é o valor da
nova sociedade; assim é o homem social que só sabe viver com vistas na opinião dos
outros.
Rousseau pretendeu provar que o estado do homem civil não é o mesmo do
homem original, ou seja, é somente uma aparência, ou ainda, utilizando o termo do
início da análise, o homem no estado civil é apenas uma imagem de homem. É o tipo
de sociedade e a desigualdade que ela engendra que muda e altera as inclinações
naturais dos homens.
Embora inicie a segunda parte do segundo Discurso, logo na abertura, com
uma eloqüência ardente acerca da propriedade, não é ela, mas a moral do homem que
inaugura a degradação política.
Ora, de que fala Rousseau em seus dois Discursos? Da aparente igualdade
encontrada pelos homens em sociedade. Segundo ele, ser homem simplesmente, não
basta para este tipo de sociedade.
Para terem valor, os homens necessitam de bens materiais, de
conhecimentos livrescos e do reconhecimento, dos outros, pelas qualidades citadas. E,
para alcançarem tal reconhecimento são capazes de mentir, de perjurar, enfim, são
capazes de tudo para sentirem-se aceitos. A isso se restringi a figura do homem civil:
ao mero simulacro.
50
IBIDEM, p.243.
43
Segundo Salinas, Rousseau, nos dois Discursos atacava a “civilização” de
um lado, e, de outro, a própria organização da sociedade atual. Ambas, para Rousseau,
continua Salinas, “degenerativas para o homem”.
51
O progresso da razão é, então,
simultâneo ao do mal entre os homens, o que leva a conclusão que pensar o homem
selvagem é pensar previamente naquilo que o homem não é e, então observar o que
lhe foi acrescentado.
Não resta dúvida sobre a visão negativa de Rousseau com relação à história
do homem, não obstante, não podemos considerá-lo antiiluminista, dado que os males
que sobrepujam os homens não são conseqüências necessárias do progresso da
razão. Para reforçar esta idéia Rousseau escreve duas obras complementares. Trata-se
Do Contrato Social publicado em 1762, o qual concebe, mesmo que teoricamente, os
pressupostos de uma sociedade justa e legítima, e do Emílio o qual trata do
desenvolvimento da razão de seu aluno com base no princípio de liberdade e
autonomia, ao mesmo tempo, e em dois planos que se inter-relacionam: político e
pedagógico.
Os dois livros pretendem responder a questão, aqui reformulada, de “como
dar novas bases para a vida dos homens eliminando os males da vida social e
política?”.
No Contrato Social Rousseau escreve, em outras palavras, que só serão
soberanos e livres e, portanto, felizes, na medida do possível, os homens que
estabelecerem entre si um contrato de tal forma cujas diferentes soberanias e
liberdades se unam e permaneçam indefinidamente livres e soberanas. Segundo suas
teses, o poder político legítimo não vem da natureza, mas se funda no acordo entre os
homens, que, voluntariamente decidem.
51
FORTES, L.R. Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos, p.67-68.
44
Ao fazerem o pacto, os indivíduos, antes isolados, se unem num só corpo: o
povo. O indivíduo que antes só prestava contas de seus atos a si mesmo, torna-se
agora cidadão e obedece à vontade coletiva do povo, em forma de leis. Desse modo, o
cidadão é livre na medida em que obedecem as leis que ele mesmo ajudou a
estabelecer.
Poderíamos perguntar, mas como essa sociedade seria possível dado o grau
degenerativo que o homem se encontra? Neste sentido, o Contrato Social não
corresponderia às expectativas, pois não pretende ser uma fórmula a ser aplicada.
Entende-se que, a teoria está, neste caso, a serviço da prática, isto é, serve de medida
para julgar em que distância está o povo, da situação ideal. É, então, que passamos ao
plano pedagógico.
No percurso das obras faz-se necessário retomar algumas idéias que se
repetem e se fortalecem. Aqui, remontasse novamente a idéia do homem da natureza;
àquele que não se submete a nada senão a si próprio, e perguntamos, onde
encontraríamos esse homem que não leva em consideração a opinião dos outros e
que, por conseguinte, não se deixa depravar?
Esse homem não existe, parece responder Rousseau. No entanto, Rousseau
não escreveria um tratado político-pedagógico se não acreditasse na possibilidade da
existência, mesmo que longínqua, de homens não depravados. Se eles não existem,
trata-se de criar um. São lançadas, então, as bases para uma educação que assegure
o crescimento de um homem livre
52
.
Nessa parte do trabalho, retomou-se o estudo dos primeiros homens depois
de constatada a desigualdade social cuja fonte de males é a inversão dos valores
fundamentais à existência dos homens. A virtude fora substituída pela ciência dos
doutos; as necessidades fundamentais, tal como conhecimento do próprio homem,
foram substituídas pelas “necessidades” forjadas, o luxo e a aparência. O homem do
52
Mais adiante explicitarei o significado do conceito de liberdade para Rousseau.
45
estado de natureza, simples e ignorante, que não causava mal, a revelia fora
substituído pelo homem social culto e cruel. No lugar do homem livre, o homem que
depende da opinião dos outros.
Como já mencionado, este problema de inversão de valores parece reversível
através de uma mudança da concepção de homem e, conseqüentemente de educação.
Vejamos como isso é proposto.
3. As imagens do homem
Até aqui, podem-se tirar algumas noções importantes que ajudam a entender
melhor os preceitos político-pedagógicos presentes na obra “Emílio”, de Rousseau, e
no que se refere a este trabalho, naquilo que se propõe apresentar acerca do homem,
tendo em vista como ele “é” e “como” deve ser.
Segundo Agnes Heller, há várias definições de homem na história da filosofia.
Durante a antiguidade, o ideal de homem coincidia essencialmente com o conceito de
homem, exceto para Roma no período de sua decadência. É assim, por exemplo, que
em Platão, quando Sócrates diz: o homem, conhecendo o bem, poderia praticá-lo, dizia
igualmente que o ideal é aquele que, conhecendo o bem, o aplica. Em Aristóteles, o
homem era um animal social, e, portanto, o seu ideal era social. Desta maneira, os
homens que não atingem seu ideal, não atingem sua completude enquanto homem –
conceito.
Mas, no fim do Império esta unidade dissolveu-se:
O conceito de homem e o ideal de homem continuaram a
coincidir, mas os próprios conceitos e ideal tornaram-se pluralistas. Na
46
cristandade medieval o conceito de homem fundamentava-se na idéia
de perversão, e o seu ideal na idéia de graça
53
.
Mais tarde, o conceito cristão medieval de homem foi deslocado
gradualmente pelo conceito dinâmico renascentista de homem. A pluralidade de ideais
revela-se no aparecimento de um sistema pluralista de valores morais. O primeiro
passo nesta direção, consistiu numa interpretação secular das virtudes e pecados
tradicionais, no segundo momento, a fase decisiva, para Agnes Heller, foi a dissolução
do sistema medieval unitário de valores.
Nascem novos valores em substituição dos tradicionais: patriotismo,
tolerância, integridade, entre outros. Mas, ainda há outro aspecto: surge uma
pluralidade de ideais humanos no interior de um mesmo conceito de homem.
A primeira tentativa importante no sentido de desenvolver um
conceito histórico do homem, um conceito do homem na história, e de
superar a identificação de “homem” com “homem burguês” –
formulação de Hobbes – está ligada ao nome de Rousseau; verificou-se
sob o signo de uma nova unificação do conceito de homem e do ideal
de homem.
54
A primeira noção de homem, encontrada no primeiro Discurso de Rousseau é
a de “homem degenerado”. No contexto apresentado, a imagem desse homem é
descrita por Rousseau de maneira irônica, denunciando a invalidade da noção de
“progresso” e “civilidade” tidos como senso comum a respeito da sociedade e dos
homens da época referida. Rousseau refere-se a estes homens como “povos
policiados”, como “felizes escravos”, presos por uma “mansidão de caráter” e uma
“urbanidade de costumes” numa vida de aparências.
Acabaram-se as amizades sinceras; acabou-se a confiança
fundamentada. As suspeitas, as desconfianças, os temores, a frieza, a
53
HELLER, Agnes. O Homem Do Renascimento, Introdução in. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p.20-
21.
54
IBIDEM, p.24.
47
reserva, o ódio, a traição se ocultarão continuamente sob esse véu
uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão louvada que
devemos às luzes do nosso século. (...) Tal é a pureza que nossos
costumes adquiriram. Foi assim que nos tornamos pessoas de bem.
55
Fruto da vaidade, as ciências e as artes aprisionam os homens no sofrimento
daquilo que o conhecimento fez nascer. As várias guerras, frutos desse nascimento, do
orgulho, da escravidão, do social, são os “benefícios” trazidos pelo esclarecimento
louvado. Afirma Rousseau que, ao sair da ignorância, este homem, condenou-se. As
artes nascidas de seus vícios e por isso, de origem negativa, deterioram a virtude e
degeneram o homem.
Afinal, pergunta ele, “o que mais importa aos Impérios, serem brilhantes e
momentâneos, ou virtuosos e duradouros”. Os costumes foram substituídos por um
“gosto” que se torna vulnerável ao tempo. Nascem, assim, as modas.
Ao tirar o véu da ignorância, o homem afastou-se de si mesmo e não
conseguiu mais ser o que é. Esta é a questão principal da degeneração dos homens.
Suas luzes foram despertadas sem que soubesse lidar com os males advindos delas. A
desigualdade é conseqüência direta dessa ignorância a respeito de si mesmo. Tal é a
imagem de homem social: um refém de suas próprias luzes.
Mas esta imagem de homem não é a única encontrada nos Discursos. Neles,
encontra-se também a imagem de homem natural; a imagem de um tipo de homem
anterior a este descrito. Uma imagem de homem que é anterior a esta que Rousseau
considera como degenerado.
No Segundo Discurso, na descrição do desenvolvimento da desigualdade
entre os homens, Rousseau nos sugere uma imagem primária de homem natural,
“rústico” em seus hábitos e seus costumes. Neste, as luzes desenvolvem-se na medida
55
ROUSSEAU, J. J. Primeiro Discurso, primeira parte, p.14.
48
do necessário à sua própria conservação. Esta imagem de homem natural, quando
deslocada para a vida em sociedade aparece na imagem de sábio, daquele que só
busca o necessário.
A questão que deve ser notada é que as ciências e as artes não são nocivas
aos homens em particular, mas aos povos que a cultivam. Quando se trata de um
grande número de homens, moldados e educados para serem todos “iguais”, a estes as
ciências e as artes são nocivas porque deixam de ter o sentido para a qual se destinou
em sua origem que era a de melhorar qualitativamente a vida em sociedade. Ao homem
particular, àquele sábio cujo saber só o ensina sobre sua própria necessidade de
aprender mais, educado para inventar a ciência e a arte a que se deve dedicar, elas
têm sentido já em sua prática no auxílio que presta para a preservação da vida. Ciência
e virtude neste homem são compatíveis, e por sua vez, no homem selvagem são
desnecessários.
O trabalho de conhecer o homem, tal como Rousseau descreve no Prefácio
de seu Segundo Discurso, é um trabalho que se desloca, reportando-se a três imagens:
a do homem selvagem, a do homem degenerado, e a de homem ideal para a formação
de uma sociedade feliz porque ideal.
As pistas sobre o que vem a ser a discussão do Emílio vão ainda mais longe
quando Rousseau descreve como viviam os primeiros homens e como sob
determinadas circunstâncias desenvolveram suas luzes.
A esse respeito, escreve Rousseau em seu Segundo Discurso:
(...) a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas
incessantemente renascentes, pela aquisição de um grande número de
conhecimentos e de erros, pelas mudanças ocorridas à constituição dos
corpos e pelo choque contínuo das paixões, mudou, por assim dizer, de
aparência a ponto de ficar quase irreconhecível; e, em vez dessa
celeste e majestosa simplicidade com que seu autor a marcara, não se
49
encontra mais do que o disforme contraste da paixão que crê raciocinar
e o entendimento delirante.
56
Primeiramente, alterou-se a constituição dos corpos; depois, as paixões
postas em choque, trataram de alterar o restante. As causas que levaram a essas
mudanças são contínuas em sociedade, mas na história do homem selvagem ao
homem social, essas mudanças não se deram continuamente como pudemos perceber
na análise de seu Segundo Discurso.
Depois que “as leis sucederam a natureza” empregou-se muito esforço para
mantê-las, o que ocasionou uma sucessão de mudanças de gosto nos homens, num
eterno movimento voltado para a mesma busca de sentido já que a sociedade
“corrompida” não cessa de criar necessidades. No entanto, é nessa sucessão de
mudanças que levou o homem à vida social e que se encontra a resposta principal ao
movimento da natureza, àquilo que pode fazer o homem social um homem mais
próximo de sua natureza. Esse “vir a ser” possível numa realidade já há muito
modificado é o trabalho da educação do Emílio, e este percurso é moldado, para chegar
ao seu ideal, por marcas indeléveis da natureza humana, aquilo que lhe é próprio e que
basta sua boa aplicação para um bom resultado.
PARTE II
1. Sobre a Educação.
Esta parte tem como objetivo primeiro, apresentar uma idéia de educação
encontrada na filosofia, depois, definir o conceito de educação para Rousseau a partir
dos pressupostos extraídos da análise que até aqui foi feita de seus escritos –
56
IBIDEM, Segundo Discurso, Prefácio, p.149-150.
50
Discursos - e a partir de agora será relacionada com a análise do livro Emílio, para que,
num segundo momento, ainda nesta segunda parte haja o entendimento acerca do
conceito de liberdade que é posto ora como meio, ora como fim de sua proposta de
educação.
Da família à comunidade, a educação existe difusa, em todos os mundos
sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro, sem classes
de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas,
professores e métodos pedagógicos.
A educação pode livremente percorrer todos os lugares para tornar comum,
saberes, idéias e crenças. Ela pode ser imposta por sistemas centralizados que usam o
saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os
homens, na divisão dos bens, do trabalho e dos símbolos.
Assim, quando são necessários, guerreiros ou burocratas, a educação é um
dos meios de que os homens lançam mão para criá-los. Foi pensando desta maneira,
ao que parece Sócrates, no livro A República de Platão, diz que “haverá, então, que se
criar e educar aos guardiões”
57
.
Segundo Rousseau, “a República não é uma obra meramente política, mas o
mais belo tratado de educação”.
58
A educação ajuda a pensar tipos de homens. Mais do
que isso, ela constrói tipos de sociedade, e esta é a sua força.
Desde a Grécia Antiga pensadores se debruçam sobre a educação. Para
muitos destes, educação não é meramente conteúdo curricular, mas formação do
indivíduo em sua completude, incluindo mais do que saberes e fundamentos na busca
por princípios norteadores, mas a formação física e moral deste indivíduo.
57
PLATÃO. A República, II 376c.
58
IBIDEM, livro I, p.12.
51
Os sofistas, por exemplo, foram educadores profissionais. Eles teorizaram
sobre o sentido e o valor da educação. Entre eles, Antifonte, em um fragmento
conservado, diz que “a educação é o principal para os seres humanos e que quando se
semeia em um corpo jovem uma nobre educação, esta floresce para sempre, com ou
sem chuva”.
59
Não obstante, a prática destes sofistas visava simplesmente atender aos
ensejos da moda, o que, de certa maneira, também era uma atitude política.
Na visão de Platão há uma conexão direta entre as qualidades da “polis” e as
dos indivíduos que a compõem, qualidades essas que não são dadas, mas que
dependem do contexto a qual se desenvolvem. Essa visão está apoiada na percepção
da história política que o precedeu, durante a qual, segundo seus escritos, notamos
naturezas juvenis como as de seus companheiros aristocratas Alcibíades e Crítias
tornaram-se políticos inescrupulosos e insanos. Assim, parece se questionar Platão,
como enfrentar o problema da degradação dos jovens? O que fazer para canalizá-las
para o melhor projeto político? A resolução do problema parece, em Platão, a
educação: estes jovens se corromperam porque não receberam a atenção e o cuidado
que mereciam. Seria necessário pensar outra criança, outra educação, que preserve e
cultive o que nessas naturezas há de melhor e o ponha a serviço do bem comum.
Pensando assim, a educação tem intencionalidades políticas claras, tal como em
Rousseau.
É assim que, entendendo a educação com intenções políticas sérias, pois o
resultado desta é a sociedade em que se vive, Rousseau critica seu tempo, mas acima
de tudo percebe a possibilidade de um devir.
Sobre a possibilidade do novo há educação, porque nascem seres humanos
novos num mundo velho, o que implica numa reformulação daquilo que “é” para aquilo
que “deve ser”. A educação não é um problema menor, porque “o exame da questão
59
DIELS, Hans, KRANZ, Walter. Apud, KOHAN, Walter O. Infância. Entre Educação e Filosofia. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003, p.26.
52
educacional poderá determinar a gênese, o ponto de partida, causa da justiça ou
injustiça da cidade”
Na cultura grega a palavra “paidéia” se refere ao pleno efeito da educação:
formação harmônica do homem para a vida da “polis”, através do desenvolvimento de
todo o corpo e toda consciência, e no latim, ‘educere’, significa extrair, tirar,
desenvolver, dependendo da ação consciente do educador e da vontade livre do
educando. Pensada a partir de sua etimologia, a educação não pode ser confundida
com o simples desenvolvimento ou crescimento, nem com a mera adaptação do
indivíduo ao meio. A educação é atividade criadora; não se reduz à preparação para
fins imediatos da sociedade como aconteceu em Florença, Itália, pelos ditames da
burguesia de mercadores.
E como Rousseau vê a educação, como adequação ou como transformação?
Todo interesse de Rousseau e toda sua paixão fazem parte de um
modo ou de outro da doutrina do homem, mas ele compreendeu agora
que a questão ‘o que o homem é’ não pode ser separada da questão ‘o
que ele deve ser
60
.
Para Rousseau, a educação tem dois aspectos: o metodológico respeitando o
“ser” - educar o indivíduo na liberdade (princípio da natureza) para que seja autônomo
e a finalidade na busca de seu “dever ser” - para a liberdade, para que seja livre
(obedecendo às leis que ele mesmo criou).
Embora nos deparemos com o homem degenerado denunciado em seus dois
Discursos, Rousseau buscava em seu estudo sobre o homem, numa digressão histórica
hipotética para seu estado de natureza, as características fundamentais que
possibilitaram a mudança funesta do estado de natureza para o estado de sociedade.
Esse estudo não é de caráter meramente antropológico, mas, com vistas na política, na
intenção de encontrar pistas para a educação de homens futuros, pois para ele, como
60
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p.64.
53
escreve no Emílio, “é preciso estudar a sociedade pelos homens e os homens pela
sociedade”.
61
O gênero humano é o único que pode ser influenciado tanto pelo meio em
que vive como por sua liberdade em escolher e, por isso, pode ser analisado pelas
possibilidades desenvolvidas e pelas escolhas que faz com elas; a sociedade é o
reflexo do homem e os homens podem ser frutos de uma sociedade.
No estudo da sociedade pelo homem elaborado em seu Segundo Discurso,
Rousseau percebe nas paixões primitivas, a origem do tipo de vida que levavam. Os
primeiros desenvolvimentos desses homens, descritos neste trabalho, dão as bases
para a elaboração mais demorada, porém mais envolvente, das ciências e das artes,
gerando o gosto e a necessidade do luxo e da opinião dos outros. Então, para voltar a
olhar para si mesmo e aprender a fazer as escolhas certas para o bem estar de si
mesmo e de seu semelhante, depois de todo o desenvolvimento e adestramento, o
indivíduo precisa ser educado no princípio já anunciado: a liberdade.
A educação tem sempre duas finalidades: desenvolver no homem os
progressos que a natureza vos preparou a distância e, atingir certo grau de humanidade
na sociedade em que se vive para poder nela viver com dignidade.
Ora, parece que a segunda está subordinada à primeira finalidade, ou seja,
só se atinge essa certa humanidade se desenvolver algumas habilidades do e no
homem; educa-se a criança do século XVI e XVII com vistas no comércio e, para isso, a
instrução é desenvolvida com métodos de cálculos e escrita/retórica, que se tornam as
marcas do cidadão mercador ou ainda educa-se para se formar um nobre.
Assim como em Platão, temos a figura do denunciador de seu tempo e de um
protagonista da transformação deste, temos na figura de Montaigne, um autêntico
representante do século XVI, quando em um ensaio acerca da educação de um fidalgo,
61
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou Da Educação, livro IV, p.309.
54
projeta a figura de homem que se enquadra perfeitamente ao seu século numa
adequação à sociedade vigente.
Assim, escreve ele:
(...)
os próprios jogos e o exercício serão uma boa parte do
estudo: a corrida, a luta, a música, a dança, a caça, o manejo dos
cavalos e das armas. Quero que as boas maneiras externas, e a
conduta social, e o desembaraço de sua pessoa sejam moldados
juntamente com a alma
62
.
A preocupação de Montaigne é de acomodar os ensinamentos de seus
discípulos aos “requisitos” sociais da sociedade em que vive n
uma preocupação em
agradar e obter reconhecimento que não é a mesma de Rousseau, embora concordem com a
importância do exercício do corpo. Montaigne se preocupa que seu aluno se porte bem no
âmbito social; deseja acomodá-lo na conduta vigente da sociedade em questão. Não se
preocupa em dar lições que fujam à ordem estabelecida, e que, ao mesmo tempo sirva, em
qualquer lugar e tempo, de aparato vital a seu aluno caso as modas da época se alterem.
Em outra passagem, Montaigne aproxima-se da idéia renascentista da
educação fora das escolas, quando se refere, de forma negativa e severa, aos
ensinamentos livrescos.
Censuravam a Diógenes como, sendo ignorante, aventurava-se
na filosofia. ‘Aventuro-me’, disse ele, ‘com ainda maior razão’. Hegésias
pediu-lhe que lhe lesse algum livro. ‘Sois engraçado’, respondeu-lhe
Diógenes: ‘escolheis os figos verdadeiros e naturais, não os pintados;
por que não escolheis também as exercitações naturais, verdadeiras e
não escritas?
63
E continua, dizendo que, o mundo é apenas tagarelice
(...)
64
.
Há uma preocupação com a educação ou instrução pela própria experiência,
de forma que seu aluno aprenda na prática as lições que deve saber. Os livros, neste
62
MONTAIGNE, Michel. Os Ensaios. Brasília/São Paulo: Ed. UNB/Hucitec, 1987 Livro I, cap. XXVI,
p.247.
63
IBIDEM, p.251.
64
IBIDEM, p.252.
55
caso, só servem para formar tagarelas que repetem as palavras, mas não sabem o que
dizem.
Montaigne tinha preocupações políticas em seu trabalho pedagógico, no
entanto, não visava uma transformação de tipo de homem, mas, meramente uma
transformação social de ignorante a educado.
Já para Rousseau, o princípio gerador, cuja idéia de educação é
conseqüência é o desencadeamento forçado das faculdades do homem, porque é a
partir de suas qualidades imanentes, que estavam em potência, e desenvolveram-se
em liberdade, ou coercitivamente, que foi possível a história dos homens. Fora, a partir
de elementos singulares da espécie, que a barbárie foi possível e instituída em forma
de lei, e será, a partir destes elementos bem processados, que se fará um novo
homem.
Desenvolver no homem, suas faculdades, sem que elas tratem de degenerá-
lo, é a missão do tratado político pedagógico do Emílio. É o trabalho de uma educação
que tenta se adequar ao homem e não o contrário.
2. O conceito de liberdade na proposta de educação de Rousseau
Há como foi visto, em Rousseau, duas imagens de homem natural: aquele do
Segundo Discurso e aquele do Emílio. Ora, desses dois tipos de homens, só o
segundo, o homem natural que vive em sociedade, é um homem no sentido pleno da
palavra, só ele será ‘elevado ao estado de homem’. O selvagem do Discurso sobre a
Desigualdade é apenas um “animal limitado às puras sensações”.
65
É sobre o segundo homem que trataremos, mas com vistas no primeiro. São
as capacidades em potência, como diria Derathé, desse segundo homem, que fornece
65
DERATRHÉ, Robert. “L ‘homme selon Rousseau”, In: BÉNICHOU, Paul, (org). Pensée de Rousseau.
Paris, 1984, p.110-111(trad. autor).
56
a Rousseau os princípios da educação do primeiro. Como ponto de partida e contraste
temos a natureza como princípio norteador. Antes, faz-se necessário explorar um pouco
um princípio que tem conexão estreita com o da natureza humana em sua antropologia,
e que está presente no livro IV do Emílio.
Há, em nosso autor o sentimento
66
da existência de um universo criado e
cuidado por Deus. Existe um Deus, onipotente, onisciente, benfeitor e que é a fonte da
verdade
67
. Essa crença está presente em outras passagens, como por exemplo, no
estabelecimento dos dogmas da religião civil no Contrato Social:
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno
número, enunciados com precisão, sem explicações ou comentários. A
existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e
provisora; a vida futura; a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a
santidade do contrato social e das leis – eis os dogmas positivos.
68
Deus é, portanto, um ser que abrange tudo, que dá movimento e forma aos
sistemas dos seres, inacessível aos nossos sentidos, porém, evidente por sua obra.
“Ignoro por que o universo existe, mas não deixo de ver como ele
é modificado, não deixo de perceber a íntima correspondência pela qual
os seres que o compõem prestam-se auxílio mútuo”.
69
Rousseau desconhece o fim a que esse ser supremo se dirige, mas pode
enxergar no Universo, a obra de seu artífice. Daí, conclui que o mundo está sujeito a
movimentos regulares, uniformes as leis constantes – como são descritas pela física – e
que esse movimento não tem origem no próprio universo, isto é, não está na matéria
66
“Acredito, pois, que o mundo é governado por uma vontade poderosa e sábia; vejo-o, ou melhor, sinto-
o, e isso me importa saber”. ROUSSEAU, In: Emilio ou da Educação, livro IV, p.371.
67
ROUSSEAU, J. Jacques. Resposta ao Rei da Polônia. São Paulo: Abril Cultural, p.376 (Col. Os
Pensadores)
68
IDEM, Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1983, livro IV, capítulo VIII, p.468.
69
IDEM, Emílio ou Da Educação, livro IV, p.369.
57
sua causa. Assim, diz Rousseau, “não há verdadeira ação sem vontade”.
70
As leis
físicas descritas por Descartes ou Newton expressam os efeitos e não as causas do
movimento. “Creio, portanto, que uma vontade move o universo e ainda a natureza,
71
conclui Rousseau.
72
Para ele, esta causa, distinta da própria matéria, que a move e a organiza é
vontade: causa imanente a todos os movimentos espontâneos que atua nos animais e
nos homens. Querer e não querer, portanto, são sentimentos que não se podem
explicar por leis mecânicas, logo, não são próprios da matéria.
O princípio da ação de um ser livre reside na vontade e, o homem, como tal,
é animado de uma substância imaterial
73
. Assim, a primeira constatação que ocupa
praticamente toda a primeira parte do Segundo Discurso, é de um homem cuja
natureza é boa por estar de acordo com a ordem universal, mas no desenrolar do
discurso é a própria vontade deste ser livre que o leva a agir mal, degenerando-se. A
liberdade sem direção daquele que só faz o que mandam, ou, a liberdade sem direção
do indivíduo conflituoso, é uma liberdade falsa, e por isso, não pode ser boa. Só, pode
agir bem, aquele que é livre de desejos desnecessários, e a natureza não nos dá nada
desnecessário.
“O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que
eles”.
74
Assim, aquele que depende dos demais para ter alguma coisa, aquele que
depende dos demais para ter “poder” é tão escravo de seus desejos vãos quanto quem
só não tem a liberdade entre os homens, que é o caso da escravidão.
Conseqüentemente, os males sociais não podem, então, ser imputados a Deus, mas ao
resultado da livre vontade do homem.
70
IBIDEM, p.366.
71
IBIDEM, p.367.
72
Esta argumentação remete-nos a um intenso debate a esse respeito, no século XVIII, mas que não
abordarei.
73
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, livro IV p.365.
74
IDEM, Do Contrato Social, livro I, capítulo I, p.22.
58
Constatada a eminência do social diante dos “progressos” de suas luzes, o
homem não mais se faz por si mesmo e ou para si mesmo, mas com vistas na
sociedade criada e edificada pela aparência. A educação, então, está para a
manutenção deste engodo que é a sociedade tal como apresenta Rousseau, e não
para o crescimento do homem, quem dirá do cidadão – tanto um como outro,
impossíveis nesse estado de degradação político e moral.
A despeito da entrada do homem na sociedade e de sua conseqüente
degradação, Rousseau acredita na possibilidade da transformação desse homem
desde que a educação siga a rota da natureza, que é lenta e gradativamente edificada
na e para a liberdade e que se realiza sem malefícios a nenhum de sua espécie.
O objetivo de Rousseau, ao final do Emílio é fazer com que este homem
natural educado sob seu método saiba, através de seu aperfeiçoamento moral, viver
em sociedade, sem se corromper. Para tanto há de educar um indivíduo para a virtude:
fraco por natureza e forte por vontade.
Que é, então, o homem virtuoso? É aquele que é capaz de vencer
suas afeições, pois então ele segue a razão, a consciência; faz seu
dever, mantém-se na ordem e nada o pode afastar dela. Até agora só
eras livre em aparência; tinhas somente a, liberdade precária de um
escravo a quem nada foi ordenado. Sê agora livre de fato; aprende a te
tornares teu próprio senhor (...).
75
A virtude consiste no domínio que o indivíduo exerce sobre suas paixões
desenvolvidas por meio da sociedade, em função de seus princípios naturais. Este
domínio sobre si representa sua liberdade moral, por meio da qual o indivíduo se
emancipa da determinação exterior das paixões, ou se quisermos, das necessidades
forjadas em sociedade.
75
IDEM, Emílio ou da Educação, livro V, p. 627.
59
Esta determinação exterior das paixões é produção dos homens, tal a idéia
de comodidade, já mencionada, então, estar livre das opiniões, ou melhor, das paixões
produzidas em sociedade, é ser governador de si mesmo.
Segundo a composição de ordem cósmica de Rousseau, a natureza por si
mesma, sem interferências, tende ao crescimento e a ordem, cabe, portanto, à
educação, apoiar este impulso livre dando-lhe mais força e orientando-o. Só assim não
será preciso renunciar a liberdade e a qualidade de homem, direito da humanidade
76
,
que o homem dos Discursos parece ter renunciado.
Guiar a vontade da criança para que ela não seja enganada pelas vontades
subjugadoras é a primeira tarefa do educador. Forte e equilibrada, quando lhe aprouver,
por ser homem, saberá dirigi-la por si mesmo com sabedoria.
O livro I do Emílio começa com a frase, “tudo está bem quando sai das mãos
do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos dos homens”.
77
O autor das coisas,
como visto, Deus.
78
Das mãos dos homens têm-se como resultado a construção da história do
“progresso”, da desigualdade.
Ao longo do processo de afastamento da natureza em busca do progresso, o
homem se deixou policiar por outros homens e perdeu totalmente as rédeas de sua
existência fazendo escolhas que comprometeram sua liberdade quando se deixou levar
pelas opiniões. Deste modo, pode-se concluir que não é qualquer homem o foco de sua
crítica, mas o homem social tal como o vê (degenerado). O homem desta sociedade
ilegítima; o homem que aceitou ou imputou os outros este tipo de sociedade. Este
homem, “não quer nada da maneira como a natureza o fez, nem mesmo o homem; é
76
IBIDEM.
77
IDEM. Emílio ou Da Educação. Livro I, p.7.
78
A este respeito veja-se livro IV do Emílio, onde Rousseau fala sobre religião em geral, e sobre a
religião natural como única possível na educação que ele propõe.
60
preciso que seja domado por ele, como um cavalo adestrado; é preciso apará-lo à sua
maneira, como uma árvore de seu jardim”.
79
Desta maneira, o homem não pode, desde
então, ser entregue a qualquer um. Ele precisa ser bem educado, dado que a
sociedade já está edificada, para voltar a ser o que era antes da intervenção desses
que o pretendem como coisa.
Pode-se inferir que Rousseau se afasta da intenção dos pensadores citados
neste trabalho que buscavam adequar o indivíduo à sociedade. Não há neles a
denúncia da sociedade como há em Rousseau que, na contramão das convenções e
das idéias geradoras destas, pretende educar um homem que possibilite mudança. Sua
intenção primeira não é moldar o homem segundo as normas postas, mas segundo sua
necessidade natural. Essa intenção se expressa bem na frase: “Toda a nossa
sabedoria consiste em preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam de
sujeição, embaraço e constrangimento”.
80
E nessa outra frase: “Ela estava menos apertada, menos embaraçada, menos
comprimida no âmnio do que entre os cueiros; não percebo o que ela ganhou ao
nascer”.
81
Se Rousseau não concorda com esta educação que não provoca mudanças,
que educação ele propõe?
No início do Emílio, Rousseau distinguiu os tipos de educação aos quais, o
homem está submetido durante sua vida.
O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos
órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse
desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa
própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das
coisas.
82
79
ROUSSEAU, J.Jacques. Emílio ou Da Educação. Livro I, p. 7.
80
IBIDEM, p.16.
81
IBIDEM.
82
IBIDEM, p.37.
61
Assim, a educação se dá por intermédio destes três mestres a natureza, os
homens e as coisas
e, esses três mestres, de acordo com o raciocínio de nosso autor,
são, em estado de natureza, capazes de trazer a tona o homem, como já visto na
exposição feita.
Entretanto, o homem de sua época é, segundo Rousseau, educado de tal
maneira que seus três mestres são postos em oposição e por não estarem de acordo,
não formam o homem, mas um sujeito que se debate nas contradições. No entanto,
para Rousseau, somente aquele que for educado de acordo com seus três mestres
estará bem formado e poderá se dizer um bom homem. Mas, como fazer?
Escreve Marilena Chauí:
“Num primeiro momento o processo educativo preconizado por
Rousseau é negativo, limitando-se àquilo que não deve ser feito. A
educação positiva deve iniciar-se quando a criança adquire consciência
de suas relações com os semelhantes. Passa-se, assim, do terreno da
pedagogia, propriamente dito, aos domínios da teoria da sociedade e
da organização política”.
83
Isso quer dizer que, nos primeiros anos de vida de Emílio, a tarefa de
Rousseau será de impedir que preceitos ou hábitos sejam introduzidos em seu
cotidiano e em sua educação. Nesta fase, nada deve ser feito para que a natureza
possa agir. Quando suas forças, físicas e de vontade, forem suficientes para que a
relação com o outro seja compreendida em sua complexidade, a tarefa do preceptor
não se restringirá aos requisitos da boa educação, mas passará ao estudo dos tipos de
sociedades e as conseqüências destas na vida dos homens
.
Deste modo, educar requer optar entre fazer um homem, tal qual a natureza
assim os destinou, e fazer um escravo das instituições, dado que a manutenção destas
requer a escravidão deste. Ser homem e ser cidadão, na sociedade em questão é
impossível já que para fazer o primeiro nega-se o segundo. Ora, o intuito de Rousseau,
83
CHAUÍ, Marilena. Vida e obra in ROUSSEAU. São Paulo: Abril Cultural, 1983, Vol I, p. XVI.
62
como já mencionado, não é educar para obter o mesmo resultado que se vê nas
instituições dos colégios, criando um homem que está em constante conflito consigo
mesmo, mas, o contrário, formar um homem pleno.
Segundo o próprio Rousseau, houve um tempo em que os homens tinham
pátria e eram cidadãos, são seus exemplos os homens de Roma, de Esparta, de
Lacedônia.
84
A formação destes, era pensada para que o bem de cada um e de todos
fossem defendidos, o que não parece estar de acordo com a educação a que vem se
referindo.
“Na ordem social, onde todos os postos são marcados, cada um deve ser
educado para o seu”.
85
Neste caso, “a educação só é útil na medida em que a fortuna
se harmonize com a vocação dos pais”,
86
mas, antes da vocação dos pais, segundo
Rousseau,
a natureza o chama para a vida humana”,
87
pois,
“na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua
vocação comum é a condição de homem, e quem quer que seja
bem educado para tal condição não pode preencher mal as
outras relacionadas com ela”
88
.
Nessas passagens há uma crítica a determinados ditames da educação
propostas por Platão em sua obra República, ou mesmo em Montaigne em Os Ensaios.
Se para cada tipo de homem há uma função definida na “polis, e, em função desta
diferença, são necessárias diferentes educações, então estabelecem de antemão as
diferenças sociais. Ora, para Rousseau todos nascem homens e assim devem ser
educados para cumprir bem esta função em sociedade, no entanto, embora Rousseau
considere a República o mais belo tratado político já produzido, isso não quer dizer que
não tenha críticas a lhe proferir, pelo contrário.
84
ROUSSEAU, J.Jacques. Emilio ou da Educação, Livro I, p.11-12.
85
IBIDEM, p.14.
86
IBIDEM.
87
IBIDEM, p.14.
88
IBIDEM, p.14.
63
A infância representa condição, não só necessária para Rousseau, como
indispensável no processo do devir humano. A hipótese de um homem natural, da qual
ele se utiliza em seus dois Discursos para determinar o que é natural do que é artificial
no homem, e deduzir, assim, o que tem contribuído para sua decadência e corrupção,
contribuiu, do ponto de vista da gênese da criança, para compreender a infância como
estado natural de inocência, carente de maldade, perfectível, e que necessita ser
educada.
Começamos a nos instruir quando começamos a viver; nossa
educação começa junto conosco; nosso primeiro preceptor é a nossa ama
de leite.
89
Tudo instrui conforme Rousseau, e esse deve ser o primeiro cuidado a ser
tomado, pois a característica marcante da sociedade moderna é a desigualdade entre
os homens. Desigualdade marcada pela posse de bens materiais, por uma dominação
intelectual que há tempos tem sido marca do Ocidente. Por isso, a criança escolhida por
um mestre que a guiará, deverá ser educada no método da natureza, para o
desenvolvimento de todas as habilidades que sejam úteis à vida de uma criança
primeiramente, mais tarde, de um homem.
Faz-se necessária uma apresentação resumida do quadro rigoroso do livro
Emílio, de acordo com a introdução escrita por Michel Launay, para entender melhor
sua composição. A seguir, como mencionado anteriormente, mediante a seleção de
algumas passagens presentes nos livros do Emílio, pretende-se explicitar aqui a tese
que Rousseau defende e desenvolve com maior rigor, a saber, que o homem nasce
livre e deve manter-se livre para preservar sua humanidade.
Esta tese permeou seus dois Discursos, como visto anteriormente, e tem seu
aprofundamento no Contrato Social e no Emílio. No entanto, é no Emílio, na
89
IBIDEM, p.14.
64
possibilidade de educar um homem na, e para a liberdade, que esse recorte me parece
mais pertinente.
No livro I, temos a idade da natureza – o bebê (infans). É nele que
encontramos o primeiro momento de instrução de Emílio
90
: as sensações do corpo
(segurança do colo, conforto da fome saciada, etc.).
Assim, tomei o partido de tomar um aluno imaginário, de supor em
mim a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos
convenientes para trabalhar em sua educação e conduzi-la desde o
momento do seu nascimento até que, já homem, não mais precise de
outro guia que não ele mesmo
91
.
Esse aluno imaginário é Emílio. A condução de Emílio se diferencia da mera
instrução porque isso não basta, ele deve sentir a necessidade das coisas, o educando
deve ser conduzido por sua vontade (sem despotismo). O professor dessa ciência,
como chama Rousseau, é um “gouverneur”, que tratará de fazer com que os preceitos
que devem servir para Emílio sejam encontrados.
Rousseau discorre as primeiras páginas não só justificando o porquê de sua
escolha metodológica, mas anunciando o princípio que a natureza nos oferece para a
educação do homem: a liberdade. Neste sentido, o uso do termo governante vem ao
encontro com seu intuito: o homem que se pretende educar é governado por alguém
que não lhe impõe nada, mas mostra as possibilidades de escolha.
Preparai a distância o reinado de sua liberdade e o uso de suas
forças, deixando em seu corpo o hábito natural, colocando-a em
condições de sempre ser senhora de si mesma e de fazer em todas as
coisas a sua vontade, assim que a tiver
92
.
90
De agora em diante, ao ler Emílio, entendamos educando.
91
ROUSSEAU, J.J. Emilio ou Da Educação. Livro I, p.28.
92
IBIDEM, p.47.
65
Ser senhor de si é ser governante de si. Somente quem sabe se governar
pode ser senhor de si mesmo sem sofrer com a opinião alheia. Esta é a conclusão de
uma boa educação.
Por isso, nada de convenções, e sim, raciocínios a partir da experiência,
aquilo que poderia chamar de empirismo em Rousseau. É neste sentido que ele
escreve em várias passagens como:
Observai que as crianças raramente têm medo de trovão, a
menos que os estouros sejam horrendos e firam realmente o órgão do
ouvido. (...) Quando a razão começa a assustá-los, fazei com que o
hábito as tranqüilize.
93
É, nesta idade, chamada de “idade da natureza”, que Rousseau fornece os
indícios da formação daquele que deverá ser um homem, mas que por ora, deve ser
tratado como criança.
Antes da vocação dos pais, a natureza o chama para a vida
humana. Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas
mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem
padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser,
ele será capaz de ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro; e,
ainda que a fortuna o faça mudar de lugar, ele sempre estará no seu.
94
É a vida como ela é que será a escola de Emílio. É no mundo e para o
mundo, que Emílio será educado. Sua liberdade o fará escolher sempre o melhor, pois
será educado segundo a natureza.
No livro II, ainda, “idade da natureza” – de 2 a 12 anos (puer) – a instrução é
exercida em função de algumas habilidades que vão se desenvolvendo: a sensibilidade,
a moral, o intelectual, o sensorial e o corpo. “Eis a segunda fase da vida, aquela onde
93
IBIDEM, p.48.
94
IBIDEM, p.14.
66
acaba propriamente a infância, pois a palavra “infans” e “puer” não são sinônimas. A
primeira está contida na segunda e significa quem não pode falar (...)”.
95
É nesta etapa que Rousseau faz a crítica a La Fontaine
96
, escritor de fábulas
que se mostram como forma de instrução moral. Ora, nesta idade Emílio não tem
experiência daquilo que as palavras contam, portanto, as palavras não fazem o menor
efeito sobre ele dado que sua razão ainda não é capaz de fazer inferências. Contar-lhe
sobre a importância do trabalho não é o mesmo que fazê-lo sentir tal importância. De
acordo com Rousseau é sobre o corpo do infante a primeira lição. A fase que Emílio
está é a das brincadeiras, dos jogos, do bem estar e da liberdade; nada de livros antes
dos doze anos. Seu interesse é sobre aquilo que o rodeia, e é essa a lição que deverá
tomar a partir das máximas gerais que Rousseau apresenta: os exemplos; a noção de
propriedade – o que é seu e o que é do outro; sobre a verdade; sobre a caridade. Aqui,
o amor de si se revela na criança e deve ser estimulado, mas, ainda não é entendido
por ela, pois ainda não é capaz de estender “seu eu” formando a idéia de alteridade.
No livro III, na idade da força – de 12 a 15 anos – a educação intelectual vai
do interesse sensível às experiências. Nesta etapa, o aluno, ainda chamado de criança
“na falta de um termo apropriado para designá-lo, pois está próxima à adolescência,
sem ser ainda a da puberdade”
97
, desenvolve suas forças bem mais do que
necessidades. Com o desenvolvimento da intelectualidade será capaz de inferir através
da experiência, algumas lições que lhe serão úteis para a vida prática. E eis aqui o
momento em que será oferecido ao Emílio um livro, pelo qual poderá identificar suas
reais necessidades com vista à educação manual (escolha de um ofício) e social. Sua
experiência com as coisas, segundo Rousseau, o fará conhecer-se, e reconhecer-se
melhor.
Ao tratar do trabalho, ou, educação manual, Rousseau insere sua teoria do
conhecimento em concerto com seu método. Para Rousseau, essa época em que a
95
IBIDEM, livro II p.65.
96
FONTAINE, Jean de La. Fables. Paris: Presses Pocket. 1989.
97
ROSSEAUE, J.J. Emilio ou Da Educação, livro III, p. 201.
67
própria natureza indica ser a época do saber útil, é a do trabalho e a da instrução. Há,
portanto, a necessidade importante da escolha das coisas a serem ensinadas dado
que, dos conhecimentos que estão ao nosso alcance, alguns são falsos, outros são
inúteis e outros servem para alimentar o orgulho de quem os têm. Os poucos
conhecimentos que realmente contribuem para o nosso bem estar são os únicos dignos
das pesquisas de um homem sábio e, portanto, de uma criança que queiramos tornar
sábia. “Não se trata de saber o que existe, mas apenas o que é útil”
98
. Por isso a
educação intelectual a partir dos livros é dispensada.
A idade da razão e das paixões – dos 15 aos 20 anos – é apresentada no
livro IV, capítulo que Rousseau se preocupa em deixar de lado a autoridade
99
que
exercia sobre seu aluno para travar uma nova relação: a autonomia para o
reconhecimento da autoridade. É nesta fase, quando as amizades e o sexo aparecem
com mais intensidade para Emílio, que Rousseau propõe uma educação moral e uma
educação religiosa. Tem a intenção de retardar – ainda educação negativa - algumas
paixões que são precocemente inseridas nas etapas de seu desenvolvimento, segundo
as convenções da sociedade, para poder deixar agir a natureza, que se manifesta
harmonicamente, afim de que Emílio, ao ter determinadas experiências, reconheça-se
forte e seguro de si.
E, por fim, o livro V, idade da sabedoria e do casamento – de 20 a 25 anos -,
quando Emílio, exposto às paixões do mundo, vai decidir por si mesmo, “segundo sua
luz interior”, que consiste em sua vontade livre.
Nota-se que: enquanto os livros I, II e III privilegiam o princípio de utilidade,
pela autoridade do preceptor os livros IV e V baseiam-se no despertar da consciência
moral e religiosa para guiar Emílio, que no livro é representado pela mudança de
98
IBIDEM, p, 203.
99
Deve-se entender autoridade, aqui, como a necessidade que temos de sermos guiados pela
experiência de outrem, no caso dos primeiros passos, quando ainda não falamos; das primeiras palavras
e seus significados, quando ainda não conjeturamos; enfim, do auxílio imprescindível que temos que
servir nossos pequenos seres em desenvolvimento para poderem chegar a ser homens.
68
método do preceptor que deixa de exercer autoridade passando assim do âmbito da
pedagogia ao âmbito da política propriamente dita.
Fundamental em toda a obra de Rousseau, e que convém ressaltar, é sua
convicção de que os seres humanos possuem uma natureza inata que, se lhe for
permitida liberdade adequada para o desenvolvimento, poderá torná-los úteis, felizes e
bons, para si próprios e para os outros, diferentemente dos homens delineados pelo
autor em seus dois Discursos, que estão em constante contradição consigo mesmo e,
por isso, infelizes.
“Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo,
precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo”.
100
Eis a
justificativa da educação e dos cuidados relativos à infância.
Ao contrário do homem que se “encontra sob grilhões”, o homem da
natureza, neste caso, Emílio, precisa de forças para que “saindo das mãos do autor das
coisas”, possa desenvolver suas disposições. Deste modo, a criança deve ser
considerada como criança, e como tal, imperfeita; destituída do pleno desenvolvimento
de suas habilidades e faculdades, e necessitada de cuidados. Entre esses cuidados, o
mais importante, conforme Rousseau, seguindo o método da natureza, é não deixar
que contraia nenhum hábito; não deixar que o mundo artificial a cerque com os
preceitos da boa vida. Assim, a primeira tarefa de seu governador é a de deixá-lo o
mais próximo de sua realidade natural, livre das amarras físicas que cedo lhes impõem.
Depois do estudo sobre o selvagem, e do homem em sociedade, depois
da análise dos acréscimos, do conforto, já citado, Rousseau verifica a importância de
uma educação que visa a experiência das condições que o homem enquanto espécie
pode suportar. Nada de acostumar-se com as coisas; nada de acostumar-se com
conforto eis a educação negativa que preserva a regra da natureza tal como foi para o
homem selvagem.
100
ROSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, livro I, p. 8.
69
Observai a natureza e segui a rota que ela vos traça. Ela exercita
continuamente as crianças, enrijece seu temperamento com provas de
toda espécie e cedo lhe ensina o que é sofrimento e dor (...). Quase
toda a primeira infância é doença e perigo (...).
101
Se, se educa um homem para chegar a ser homem, como poderá ter êxito
aquele que prepara este indivíduo para a prisão das vontades vãs, das comodidades e
do luxo? Ora, se, se quer educar um homem para ser livre, deve-se, segundo
Rousseau, educá-lo para e na liberdade, para a independência das coisas inúteis. O
homem sobrevive sem almofadas e suéters, mas não sobrevive à exposição contínua
ao sol ou chuva. Deste modo, nesta primeira fase da vida a criança deve ser exposta às
intempéries e não confinada. Deve-se prepará-la para a vida e para aquilo que a
compõe, não para as convenções que podem mudar ou desaparecer. “Eis a função que
confiais aos mercenários”.
102
A educação deve ser, então, em sua primeira etapa, uma educação de
cuidados, não de mimos; e deve basear-se naquilo que não devemos fazer para que
ela possa desenvolver-se forte e rígida. Tal é a liberdade de movimentos que ela deve
experimentar nesta primeira etapa.
Passa-se, assim, à idade que dá início à vontade livre, presente na
criança, assim como no homem selvagem. É essa vontade que permitirá à criança
escolher entre aquilo que lhe dá prazer ou repulsa. Ora, até então, segundo a história
dos homens, o que fazem com as crianças é justamente o contrário. Vêem-na como
adultos pequenos
103
e as cercam com instruções que só lhe serão úteis no futuro, se
chegarem ao futuro. Enquanto criança precisa aprender a escolher aquilo que lhe é
pertinente; quando chegar a ser adulto terá que fazer outras escolhas que, por ora, não
precisam saber.
101
IBIDEM, p. 22.
102
IBIDEM, p.26.
103
Ver, Philippe Áries in. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986..
Neste livro, o autor faz um levantamento da idéia de infância na história Ocidental.
70
Seguindo o método da natureza, Rousseau pretende que Emílio conheça-se
a partir de seu corpo; ele saberá até onde consegue chegar exercitando seus membros
e suas próprias forças.
O único que faz a sua vontade é aquele que não precisa para
tanto colocar o braço de outrem na ponta dos seus. Segue-se daí que o
primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade. O
homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe
agrada. Eis a minha máxima fundamental
(grifo meu). Trata-se apenas
de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação decorrerão
dela.
104
E então Rousseau reforça como a criança deve ser educada: “Ela não deve
ser um animal, nem um homem, e sim criança. É preciso que ela sinta a sua fraqueza e
não que a sofra; é preciso que ela dependa, e não que obedeça; é preciso que ela
peça, e não que mande”.
105
A questão da sujeição reaparece. A criança, e também o homem, não devem
seguir os preceitos que lhes são apresentados, mas suas próprias forças é que devem
orientá-los. Não é a prescrição da medicina, nem os saberes dos mais velhos, as
normas a serem seguidas, mas a noção de suas próprias capacidades que só adquirem
em liberdade.
Antes que os preconceitos e as instituições humanas tenham
alterado nossas inclinações naturais, a felicidade das crianças e dos
homens consiste no uso de sua liberdade. Mas, nos primeiros, esta
liberdade é limitada pela fraqueza. Quem faz o que quer é feliz quando
basta a si mesmo: é o caso do homem que vive no estado de natureza.
Quem faz o que quer não é feliz quando suas necessidades
ultrapassam suas forças: é o caso da criança no mesmo estado. As
crianças, até mesmo no estado de natureza, só gozam uma liberdade
imperfeita, semelhante àquela de que gozam os homens no estado
civil.
106
104
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da Educação, livro II, p.76.
105
IBIDEM, p.77.
106
IBIDEM, p.77.
71
Segue-se daí que, não portando força suficiente para dar curso a sua vontade
a criança naturalmente é submetida a outrem, no entanto, deve desde então aprender
que dependendo do outro sua vontade sempre será limitada. É por isso que Rousseau
questiona os adultos sobre podar as escolhas das crianças se estas não lhes oferecer
verdadeiro risco. Antecipar a recusa de suas escolhas é antecipar a situação atual do
homem civil, e como ainda não é homem, deverá se acostumar a fazer as escolhas e a
sofrer as conseqüências delas.
Já que com a idade da razão começa a servidão civil, por que
antecipá-la com a servidão privada? Deixemos que um momento da
vida não carregue esse jugo que a natureza não nos impôs, e
entreguemos à infância o exercício da liberdade natural, que pelo
menos por algum tempo a afasta dos vícios que se contraem na
escravidão.
107
Ao modo rousseauísta: Ela quer brincar na neve? Que vá. Que sinta o frio; a
queimação; que resfrie. Como poderia optar se não conhece seus resultados? Então,
que aprenda por si mesma as conseqüências de suas escolhas. Só assim será livre e
boa, já que ainda não é capaz de deliberar a respeito. É sabendo fazer suas escolhas
que se sentirá livre, sem ainda sê-lo.
Ficais alarmados por vê-la consumir seus primeiros anos sem
nada fazer. Como! Não é nada ser feliz? Não é nada saltar, brincar,
correr o dia todo? Em toda sua vida, nunca estará tão ocupada. Platão,
em sua República, considerada tão austera, só educa as crianças em
festas, jogos, canções, passatempos; dir-se-ia que ele terminou quando
lhes ensinou a se divertirem bem, e Sêneca, falando da antiga
juventude, disse: ela estava sempre de pé; não lhe ensinavam nada
que ela devesse aprender sentada. Teria por isso valido menos, quando
chegou à idade viril?.
108
Rousseau volta a criticar os iluministas que pretendem que um arcabouço de
saber recaia sobre a criança. Ora, esta é a idade onde as forças devem ser exercitadas
a fim de possibilitar mais liberdade para a criança, ou, então, não é isso que se
pretende. Se, o que se pretende é ensinar uma criança a viver, que a deixem viver a
107
IBIDEM, p.83.
108
IBIDEM, p.113.
72
sua época de criança, cujos seus únicos interesses são os de suas brincadeiras.
Brincar é tarefa da criança, não de adultos. Imputar a criança outros deveres é destituí-
la do direito de ser o que é.
Quereis, então, cultivar a inteligência de vosso aluno; cultivai as
forças que ela deve governar. Exercitai de contínuo seu corpo; tornai-o
robusto e sadio, para torná-lo sábio e razoável; que ele trabalhe, aja,
corra e agite, esteja sempre em movimento; que seja homem pelo vigor,
e logo o será pela razão.
109
No entanto, o que costumeiramente se vê é a imposição dos “mestres” sobre
a natureza infantil. As crianças nada sabem, e por isso devem aprender com seus
mestres. Ora se seus mestres lhe falam apenas sobre coisas que não vêm a menor
utilidade na vida prática atual de criança, o que querem eles ensinar senão a sujeição
da infância à autoridade imposta na figura de mestre. Sobre isso, escreve Rousseau
comparando Emílio a outros alunos:
Submisso em tudo a uma autoridade sempre a ensinar, o vosso
nada faz a não ser quando lhe dizem; (...) não ousará respirar a não ser
de acordo com vossas regras. Em que quereis que ele pense, se
pensais tudo por ele? (...); seu juízo repousa sobre o vosso; tudo o que
não lhe proíbe ele faz sem pensar (...). Por mais que amoleçais seu
corpo na inação, não tornareis seu entendimento mais flexível. Pelo
contrário, acabais de desacreditar a razão em seu espírito, ao fazê-lo
usar o pouco de razão que possui nas coisas que parecem mais
inúteis.
110
E continua:
Quanto ao meu aluno, ou antes, o aluno da natureza, desde cedo
treinado a bastar a si mesmo tanto quanto possível, ele não se habitua
a recorrer continuamente aos outros, e muito menos a lhe exibir seu
grande saber. (...); cedo adquire uma grande experiência, toma aulas
da natureza e não dos homens; por não ver em nenhuma parte a
intenção de instruí-lo, instrui-se melhor. Assim seu corpo e seu espírito
exercitam-se ao mesmo tempo. Agindo sempre de acordo com seu
pensamento, e não com o de outra pessoa, une continuamente as duas
operações; quanto mais forte e robusto se torna, mais sensato e
judicioso fica. Esse é o meio de um dia obter o que acreditamos ser
incompatível e o que quase todos os grandes homens reuniram, a força
109
IBIDEM, p.129.
110
IBIDEM, p.130-131.
73
do corpo e a força da alma, a razão de um sábio e o vigor de um
atleta.
111
A criança que nada sabe já está a mercê de outras vontades. Tomai com ela,
diria Rousseau, o caminho oposto ao da sujeição. Deixai que ela indique o que quer
aprender, fazendo-se mestre. Assim, para Rousseau, “se cativa a própria vontade”.
112
Ora a vontade, como dito anteriormente, é o que move o mundo. Se, se
destitui um ser de vontade própria, certamente não será sujeito de movimento, mas de
reprodução de um movimento já iniciado por outra vontade. Como nesta fase são os
sentidos que oferecem as primeiras lições, vindas pelo prazer e pela dor, são eles que
servem de base para a vontade e para a razão intelectual: nossos primeiros mestres de
filosofia são nossos pés, nossas mãos, nossos olhos”.
113
“Substituir tudo isso por livros não equivale a nos ensinar a raciocinar, mas
sim a nos ensinar a nos servimos da razão de outrem; equivale a nos ensinar a
acreditar muito e a nunca saber nada”.
114
Tal é a marca das educações comuns; tal é o
ponto que nos afastamos delas com o método da natureza. Emílio não cederá à
autoridade, mas à necessidade do que lhe é útil; não fará nada porque o mandam, mas
porque quer, precisa ou pode fazer.
Supondo, pois, que o método seja o da natureza e que não se tenha
enganado em sua aplicação, Rousseau leva Emílio pelo país das sensações até as
fronteiras da razão pueril; “o primeiro passo que dará adiante deve ser um passo de
homem”.
115
Deixai-o sozinho em liberdade, vede-o agir sem nada lhe dizer;
considerai o que fará e como se arranjará. Não precisando provar a si
mesmo que é livre, jamais faz nada por travessura e apenas para fazer
111
IBIDEM, p.131-132.
112
IBIDEM, p.133.
113
IBIDEM, p.140-141.
114
IBIDEM, p.141.
115
IBIDEM, p.192.
74
um ato de domínio sobre si mesmo; não sabe ele que é senhor de si
mesmo? É alerta, rápido, disposto; seus movimentos têm toda a
vivacidade da idade, mas não verá um só deles que não tenha um fim.
Seja o que for que ele queira fazer, jamais tentará nada que esteja
acima de suas forças, pois as colocou à prova e as conhece; seus
meios serão sempre bem apropriados a seus planos e raramente agirá
sem estar certo do sucesso.
116
A criança deve ser assistida e não vigiada. O vigiado, não sabendo lidar com
a liberdade por nunca ter tido oportunidade de ser livre, não sabe fazer nada além do
que lhe mandam. Este, assim que se vê sozinho diante das escolhas, não sabe fazê-
las. Já Emílio, é sempre observado em suas ações. Suas escolhas são sempre
resultado de suas vontades e, já sabendo lidar com elas por ter tido liberdade para
tanto não precisa de ninguém lhe dizendo o que deve ou não fazer, mas de alguém
para protegê-lo caso haja necessidade para tanto.
Aos doze ou treze anos
117
(...) nenhuma necessidade imaginária a
atormenta; nada pode sobre ela a opinião; seus desejos não vão mais
longe que seus braços; não apenas pode bastar a si mesmo como
também tem mais forças do que precisa; é o único tempo de sua vida
em que isso acontecerá.
118
Nesta etapa, Emílio já possui experiência suficiente para empreender bem
suas escolhas e a opinião dos outros em sua educação, nunca tivera espaço suficiente
para fazer-se respeitada. Sua vontade é seu guia e seus braços os executores.
Passados os primeiros movimentos que são possíveis de se obter, tanto pelo corpo,
como pela razão ainda jovem, evitando o desenvolvimento da imaginação e de outras
faculdades que a natureza conserva adormecida até lhe sejam úteis, Emílio está apto a
conhecer melhor a natureza que o circunda. E estas lições, como dito anteriormente,
devem se realizar na prática.
Que nada ele saiba porque lho dissestes, mas porque ele próprio
compreendeu; não aprenda ele a ciência, mas a invente
119
. E continua,
116
IBIDEM, p.197.
117
IBIDEM, livro III, p.202.
118
IBIDEM.
119
IBIDEM, p.206.
75
dizendo, se alguma vez substituirdes em seu espírito a razão pela
autoridade, ele não raciocinará mais e não será mais do que um joguete
da opinião dos outros.
120
Segundo nosso autor, a primeira idade foi norteada pela negação dos
acréscimos costumeiramente “despejados” na criança pelas educações vulgares de sua
sociedade, tais como, obediência e por conseqüência, sujeição; aprendizagem das
coisas “úteis” para a vida de um adulto, mas inúteis para a vida da criança e, por isso,
indesejáveis, etc. Agora a situação se modifica, e “não há tempo suficiente para fazer
tudo o que seria útil”
121
. Os estímulos que Emílio recebera da liberdade é suficiente
para suas perguntas com relação às coisas que o cerca e o leva às respostas.
Primeiramente, vede bem que raramente cabe a vós propor o que
ele deve aprender; cabe a ele deseja-lo, procura-lo, encontra-lo; cabe a
vós coloca-lo ao seu alcance, fazer habilmente nascer esse desejo e
fornecer-lhe os meios de satisfazê-lo. Segue-se daí que vossas
perguntas devem ser pouco freqüentes, mas bem escolhidas; e, como
ele terá mais perguntas a vos fazer do que vós a ele estareis sempre
menos a descoberto e mais vezes em condições de lhe dizer: Em que
isso que me perguntas é útil de saber?
122
Emílio está pronto para aprender aquilo que só pela razão lhe é possível, é o
caso da ciência. Aos quinze anos, Rousseau lhe oferecerá o livro que lhe acompanhará
por muito tempo: Robinson Crusoé. Como seu método é baseado na medida das
faculdades dos homens, nas diferentes idades e na escolha das ocupações que a estas
convém, resta, agora, imprimir em seu discípulo a vontade de descobrir e fazer as
coisas por si mesmo, e neste caso, Robinson Crusoé lhe é de muita valia, afinal, não há
nada melhor do que colocar-se no lugar de um homem que, para viver, necessita criar
aquilo de que precisa. Emílio deverá aprender a julgar o que é necessário a este
homem, e o que, de maneira universal é necessário a todo e qualquer homem.
120
IBIDEM, p.206.
121
IBIDEM, p.211.
122
IBIDEM, p.224.
76
Mais uma vez, meu objetivo não é dar-lhe a ciência, mas ensiná-lo
a adquiri-la quando necessário, fazer com que a estime exatamente o
quanto ela vale e fazer com que ame a verdade acima de tudo. Com
esse método, avançamos pouco, mas nunca damos um passo inútil e
não somos obrigados a voltar atrás.
123
Mais uma vez Rousseau critica os doutos. Sua resposta a eles é a educação
que prescreve. Das mãos de Rousseau não sairá nenhum especialista, mas um homem
que diante de qualquer necessidade saberá recorrer a si mesmo em busca da resposta,
mesmo que resulte em uma descoberta científica já posta, será por si mesmo
encontrada, não restando dúvidas sobre seu resultado.
A autoridade médica, científica, etc., nunca será procurada por Emílio sem
que antes, tenha ele mesmo se colocado na busca. Como ser livre, e bastando a si
mesmo, confiará em sua razão. Sua busca será sempre um movimento de vontade.
Depois de ter começado por exercitar o seu corpo e os seus
sentidos, exercitamos seu espírito e seu juízo. Finalmente reunimos o
emprego de seus membros ao de suas faculdades; fizemos um ser
ativo e pensante; para terminar o homem, só nos resta fazer um ser
amoroso e sensível, isto é, aperfeiçoar a razão pelo sentimento.
124
É tempo de mudar de método.
125
Neste momento, a passagem à puberdade corresponde a uma mutação
brusca de motivação da educação. A estrutura do livro IV, como já mencionado, não
está baseada na distinção das “faculdades”, posto que estas, a essa altura, já atingiram
seu grau de desenvolvimento, mas no despertar da consciência de Emílio.
Emílio, já sofrera as sucessivas transformações que a natureza lhe imprimiu
e, por isso está pronto para relacionar-se com outros homens. É então que o estudo
que lhe convém é o destas relações.
123
IBIDEM, p.269.
124
IBIDEM, p.262.
125
IBIDEM, livro IV, p.277.
77
Enquanto ele só se conhecer pelo seu ser físico, deverá estudar-
se pelas suas relações com as coisas; é o trabalho de sua infância.
Quando começar a sentir seu ser moral, deverá estudar-se por suas
relações com os homens; é o trabalho de sua vida inteira, a começar do
ponto a que acabamos de chegar.
126
Não obstante, Rousseau adverte seus leitores para os abusos da imaginação
que são freqüentemente estimulados nesta idade e ao invés de contribuir para o
aperfeiçoamento do indivíduo são nocivos na medida em que, ultrapassando suas
faculdades, a imaginação faz com que vosso aluno não tenha mais controle sobre elas.
Forja-se, então, um homem, antes que verdadeiramente tenha se formado um.
A educação negativa, proposta por Rousseau, tende ao contrário, quando
pretende retardar ao máximo as paixões sociais.
Tudo o que é lento é mais forte por duração. Emílio desenvolveu-se lenta e
gradativamente, conforme a natureza. No momento que decidir fará parte do mundo.
Diante disto, a mudança de tom adotada por Rousseau nesta etapa é fundamental.
Antes de tudo, Emílio já basta a si mesmo, por isso, já não pode seguir seu governador,
mas acompanhá-lo. O coração, já pronto para amar só recebe leis de si mesmo, as
paixões tumultuosas devem acalmar-se. É o momento de sua liberdade racional.
127
No
entanto é, ainda, preciso protegê-lo dos apelos sociais para os quais é facilmente
aclamado na etapa em que se encontra. Algumas crianças, ou jovens, não gozam nem
dessa liberdade imperfeita rumo à liberdade, dado que vivem numa espécie de
escravidão em relação às suas necessidades e paixões. Essa escravidão não deve ser
atribuída à natureza, mas é fruto de uma educação deficiente que não distinguiu a
necessidade natural da fantasiosa.
“Para torná-lo dócil, deixai-lhe toda a liberdade; esquivai-vos para
que ele vos procure; elevai sua alma até o nobre sentimento do
reconhecimento, falando-lhe sempre apenas do seu interesse”
128
.
126
IBIDEM, p.276.
127
IBIDEM, p.307.
128
IBIDEM, p.307
78
É o momento da ordem moral; do segundo passo de homem,
129
seguindo
o método de Rousseau. Nessa ocasião “é menos a força dos braços do que a
moderação dos corações que torna os homens independentes e livres”
130
. Entramos,
assim, no campo da moral e da religião, pois é tempo de fazer Emílio dominar suas
paixões.
Seguindo seu método é pela experiência que Emílio aprenderá sobre
essas lições. O primeiro sentimento de que um jovem educado com esmero é
suscetível, não é o amor, mas a amizade
131
. O primeiro ato de sua imaginação
nascente é ensinar-lhe que existem semelhantes, e a espécie antes do sexo
132
. O
sentimento de Emílio deverá se sobrepor à imaginação, e a razão deverá falar mais alto
do que a opinião. Esta será a tarefa desta etapa da educação.
Aqui Rousseau retoma a noção do amor de si inata ao homem, fonte de
nossas paixões doces e afetuosas e parte principal de nossa conservação e
desenvolvimento – como sentimento nascente dos primeiros contatos afetuosos e mais
adiante em seu desenvolvimento fonte do amor próprio – das paixões sociais. O
primeiro - amor de si de acordo com nossa natureza nos preserva na simplicidade
fazendo-nos negar o mal; o segundo - amor próprio artificial, resultado do orgulho e da
ambição, desenvolve-se na medida em que nos aproximamos e adentramos a vida
social. É tempo de prevenir a depravação que nasce dessa relação. Por isso, para
Rousseau, a sensibilidade é a faculdade que mais deve ser excitada.
A pretexto de educar Emílio para o julgamento a respeito das relações que
se estabelecem na vida em sociedade, que será o exercício eterno de sua vida como
homem, Rousseau apresenta a educação religiosa. Para tanto, ele retoma a crítica do
livro II, já mencionada, das fábulas que se pretendem lições de moral.
129
IBIDEM, p.308.
130
IBIDEM, p.309.
131
Tema filosófico amplamente discutido por Aristóteles na obra Ética a Nicômacos e que tem no livro Emílio um
aspecto relevante, mas que não será tratado no presente trabalho.
132
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da Educação. Livro IV, p. 285.
79
As fábulas – ou lições morais -, assim como as religiões, são introduzidas
na infância, segundo as convenções sociais. Ora, nesta etapa as crianças são
incapazes de compreendê-las, dado que não podem formular idéias a partir de seus
exemplos. O resultado dessa inflamada intenção é a formação de seres
preconceituosos. Ensinar aquilo que nada influi sobre a vida de uma criança é, segundo
o método de Rousseau, prepará-las para a mentira e para a crença na autoridade dos
homens. Assim, é preciso ensinar, primeiramente a criança a agir, depois, a agir bem e,
em seguida instrui-la na busca que a convém. Quando Rousseau percebe que Emílio já
está ciente de suas capacidades físicas, o incita a pensar o mundo, que lhe é objeto de
afetação.
A necessidade de apresentar a Emílio o gênero de crença e obediência
religiosa que lhe é apropriado faz com que Rousseau narre a história da Profissão de
Fé do Vigário Saboiano. Nesta narrativa estão contidas as idéias de cosmologia de
Rousseau, bem como um aprofundamento de sua teoria do conhecimento que permeou
todos os livros do Emílio. No livro IV, defini-se a religião natural como a única possível
na educação de seu discípulo. A religião natural do Vigário constitui a religião ideal do
cidadão ideal.
133
A liberdade é mais uma vez apresentada como ação do ser de
vontade. Essa vontade livre deve saber escolher para não se corromper.
Falando a Emílio sobre os homens, Rousseau escreve:
Sem dúvida, já não depende deles não serem nem maus nem
fracos, mas depende deles não se tornarem tal. Oh! Como
permaneceríamos facilmente senhores de nós e de nossas paixões,
mesmo durante esta vida, se, quando nossos hábitos ainda não foram
adquiridos, quando nosso espírito começa a se abrir, soubéssemos
ocupá-los com objetos que deve conhecer para apreciar os que não
conhece; se quiséssemos sinceramente esclarecer-nos, não para
brilhar aos olhos dos outros, mas para sermos bons e sábios conforme
133
TROUSSON, Raymond e EIGELDINGER, S.Fréderic. Dictionnaire de Jean Jacques Rousseau. Paris:
Honoré Champion, 1966, p.794.
80
a nossa natureza, para nos tornarmos felizes praticando nossos
deveres.
134
Como Deus não pode ser a causa do mal, como já mencionado, cabe aos
homens discernirem aquilo que os faz serem ou causarem o mal. Está no próprio
homem a causa do bom ou mau uso das paixões dependendo única e exclusivamente
do modo como desenvolveram suas faculdades. Se guiados pela natureza, não há o
que temer; se guiados pelas vãs educações há de observar a autoridade dos homens
se sobrepondo às inclinações naturais. O remorso é assim, para Rousseau, prova da
liberdade de vontade.
Quando me entrego às tentações, ajo conforme o impulso dos
objetos externos. Quando me censuro por tal fraqueza, só ouço a minha
vontade; sou escravo por meus vícios e livre por meus remorsos; o
sentimento de minha liberdade só se apaga em mim quando me
depravo e enfim impeço a voz da alma de se elevar contra a lei do
corpo.
135
Desta maneira, a essência do indivíduo é portadora de uma liberdade de
vontade, mas do ponto de vista da existência ela é relativa, pois encontra nos desejos
um obstáculo. Aquele que é realmente livre sabe usar seus próprios braços para
alcançar o objeto de desejo; sabe reconhecer suas forças para tal empreendimento.
Como a sociedade não cessa de criar objetos de desejo tornando-os ilimitados, só pode
ser livre, segundo Rousseau, quem bastar a si mesmo, pois “a miséria não consiste na
privação das coisas, mas na necessidade que sentimos delas”.
136
Querer satisfazer-se
às necessidades forjadas em sociedade é submeter-se, inevitavelmente, à vontade dos
outros e, nisso não consiste liberdade alguma. Assim, ser livre não é fazer o que se
quer, mas não estar submetido a nenhuma vontade que não a sua.
134
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, livro IV, p.397.
135
IBIDEM, p.377.
136
IBIDEM, Livro II, p.71.
81
“A necessidade enfraqueceu o homem não apenas lhe tolhendo o direito que
tinha sobre suas próprias forças, mas, sobretudo tornando-as insuficientes”.
137
É para
não confundir a real necessidade que Emílio é educado para a força: para compreender
e perseguir suas verdadeiras necessidades segundo suas próprias condições porque
todas as outras lhes são funestas. Tudo o que os homens fizeram os homens podem
destruir; os únicos caracteres indeléveis são os que a natureza imprime, e a natureza
não faz nem príncipes, nem ricos, nem grandes senhores
138
. É por este princípio que
Emílio se reconhecerá em qualquer lugar, com qualquer homem. Da aprendizagem
sobre a verdadeira necessidade resulta à disposição de sua alma. Ser livre é ser
obediente a si mesmo e não o contrário. Compreender a lei da necessidade das coisas
morais é o último passo na direção da formação desse ser livre.
Não eduquei Emílio para desejar nem para aguardar, mas para
gozar; e, quando ele deseja algo para além do presente, não o faz com
um ardor bastante impetuoso para ser importunado pela lentidão do
tempo. Ele não gozará somente do prazer de desejar, mas também do
prazer de ir ao objetivo que deseja, e suas paixões são de tal modo
moderadas que ele está sempre mais no lugar onde está do que onde
estará.
139
Emílio já é homem, mas ainda é o mesmo indivíduo que passou a infância
e a primeira juventude se relacionando com as coisas em liberdade. Suas faculdades
estão todas desenvolvidas; suas forças já foram medidas em certa proporção e, agora,
lhe são apropriadas para buscar aquilo que lhe aprouver. Sua vontade, que move e
guia suas ações são temperadas por uma sensatez que nunca o faz perder o prazer por
aquilo que, por ora, não tem e, se contentar na busca por aquilo que quer. Tanto o lugar
que escolherá para ser seu lar, quanto a mulher que lhe será companheira, ainda não
foram encontrados. Sua escolha dependerá de atributos incomuns na sociedade
degenerada e, por isso, difícil de encontrar.
137
IBIDEM, p.76.
138
IBIDEM, livro III, p.248.
139
IBIDEM, livro V, p.576.
82
Tal como as cidades que se diferenciam por razões diversas como clima e
solo, e são constituídas de maneira diferente, as mulheres diferem dos homens em
caráter e temperamento. Uma vez que isso é demonstrado por Rousseau, segue que a
educação de ambos também deve ser diferente
140
. No entanto, os valores morais se
assemelham: a simplicidade, a compaixão pelo outro e a responsabilidade pela
comunidade em que se vive são marcas da boa educação, independentemente do
sexo.
Nesta etapa da obra, Emílio viaja muito e encontra Sofia. Apaixona-se por
ela e deseja desposá-la. Rousseau, prevendo o acontecimento, responde a tal ensejo
com mais lições, dado que esta fase final da educação é aquela que dará as bases
para sua vida como homem.
Os bons hábitos da infância, de não contrair hábito nenhum socialmente
posto, deverá seguir com Emílio e, será por isso e pelo fato de não se deixar levar por
opiniões vulgares que se apaixonará pela moça simples e pobre que é Sofia. Será
neste mesmo tom que escolherá a sociedade mais apropriada para viver.
A escolha faz parte de toda a educação sugerida por Rousseau. Escolher
bem, mesmo na infância, é atributo de liberdade e de boas razões, pois, os resultados
destas sempre são esperados como desejados (positivos). A busca da felicidade
consiste em boas escolhas. Como Emílio crescera livre para escolher, quando adulto só
acrescenta o domínio do hábito às doçuras da liberdade.
Até agora só eras livre em aparência; tinhas somente a liberdade
precária de um escravo a quem nada foi ordenado. Sê, agora, livre de
fato; aprende a te tornares teu próprio senhor; governa teu coração,
Emílio, e serás virtuoso.
141
140
Não abordarei neste trabalho a educação que a menina deve receber uma vez que ambos devem
seguir a rota da natureza e, por conseguinte, as diferenças já facilmente observadas, devem ser
respeitadas.
141
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, livro V, p.627.
83
A liberdade referida por Rousseau nesta passagem, é, segundo o
desenvolvimento da educação, uma liberdade assistida que envolve pouco ou nenhum
risco na escolha; liberdade de criança que quer brincar na neve; liberdade de escolher o
estudo das plantas e dos animais antes do estudo dos homens. A liberdade de agora,
que também envolve escolhas, é uma liberdade de fato porque não será mais assistida;
não dependerá do consentimento de seu preceptor, pois o único capaz de comandar o
coração de um educando é ele mesmo.
Conforme Rousseau, as afetações que os homens sofrem em sociedade
derivam muito mais de seus afetos do que de suas necessidades. Como ele não quer
que Emílio sofra nem por amor, nem pela falta dele, motivo de uma educação que o
preservou das necessidades falsas e das manipulações sociais as quais provocam a
imaginação sensualista, Rousseau procura fazer com que ele mesmo tome as rédeas
de suas paixões. Segundo sua teoria, não depende dos homens ter ou não ter paixões,
mas depende deles reinar sobre elas,
142
motivo pelo qual não colocou regras para a
escolha das paixões de Emílio.
Meu filho, não existe felicidade sem coragem, nem virtude sem
luta. A palavra virtude vem de força; a força é a base de toda a virtude.
A virtude só pertence a um ser fraco por natureza e forte pela vontade;
é apenas nisso que consiste o mérito do homem justo, e, embora
digamos que Deus é bom, não dizemos que seja virtuoso, porque ele
não precisa esforçar-se para agir bem.
143
Como visto anteriormente, todas as paixões são boas se elas não nos
comandam. A natureza colocou os homens em condições de serem senhores de suas
paixões, desejando-as segundo suas forças e condições. Ser feliz, neste estado é não
depender de ninguém para satisfazê-las; ser forte para suprimi-las se necessário. Nisso
consiste a virtude.
142
IBIDEM, p.628.
143
IBIDEM, p.626.
84
As escolhas que Emílio fará de agora em diante serão escolhas de coração,
de força, por serem baseadas na relação entre suas paixões e sua liberdade. A mulher
que escolherá o modo de vida e o lugar que morará serão resultados da escolha de um
homem livre que se formou a partir de uma educação para a liberdade. Entre os
animais, como visto anteriormente, o homem é o ser mais fraco, mas mais bem provido
por ter razão e sentimento para comandar sua vontade. Razão e sentimento são seus
guias; esses possibilitam uma vontade forte se a eles obedecer. Como homem, Emílio
está pronto para governar-se; como marido e pai - terá outras obrigações: para com a
família e para com o Estado. Ainda, assim, será livre?
Que farei, então, com a fortuna que meus pais me deixaram?
Começarei por não depender dela; afrouxarei todos os laços que me
prendem a ela. Se a deixarem a mim, ficará comigo; se a tirarem de
mim, não me levarão junto com ela. Não me atormentarei por retê-la,
mas permanecerei firme em meu lugar. Rico ou pobre, serei livre. Não o
serei apenas em tal país, em tal religião; sê-lo-ei por toda a terra.
144
Tal é a resposta de Emílio. E continua:
Que me importa minha condição na terra? Que me importa onde
estou? Em toda parte onde há homens, estou junto a meus irmãos; em
toda parte onde não há homens, estou em casa. (...) Se eu não tivesse
paixões, eu seria, em minha condição de homem, tão independente
quanto Deus, já que, querendo apenas o que existe, nunca teria de lutar
contra o destino.
145
Emílio considera-se livre. Escolhe e age segundo sua própria vontade, tal
como quando era criança. Assim, está concluída a formação de um indivíduo que não
se altera mediante as convenções humanas, e, que, por isso, não está acorrentado às
opiniões e à força dos outros. Agora Emílio está pronto para enfrentar as contradições
existentes em sociedade e levará consigo as palavras de seu antigo preceptor e melhor
amigo.
144
IBIDEM, p.668.
145
IBIDEM, p.669.
85
Caro Emílio, fico contente por ouvir saírem de tua boca palavras
de homem, e ver os sentimentos delas em teu coração. (...) Antes de
tuas viagens, eu já sabia qual seria o efeito delas; sabia que, ao
considerar de perto nossas instituições, estarias longe de dar-lhes a
confiança que não merecem. É em vão que aspiramos à liberdade sob
a salvaguarda das leis. Leis! Onde elas existem e onde são
respeitadas? Em toda parte só viste reinar sob esse nome o interesse
particular e as paixões dos homens. Mas as leis eternas da natureza e
da ordem existem. Para o sábio, são como uma lei positiva; são escritas
no fundo do seu coração pela consciência e pela razão; é a elas que
deve sujeitar-se para ser livre, e só é escravo quem age mal, pois fá-lo
sempre contra a vontade. A liberdade não está em nenhuma forma de
governo, ela está no coração do homem livre; ele a carrega consigo por
toda parte. O homem vil arrasta a servidão por toda parte. Um seria
escravo em Genebra, e o outro, livre em Paris
146
.
Esta é a tarefa de educador a qual Rousseau se propôs: educar um homem
para viver em qualquer lugar, da maneira mais rústica se fosse necessário, mas em
liberdade. Ora, o que vem a ser esta liberdade?
Rousseau buscou em todo seu trabalho de educação demonstrar o quanto o
homem pode se tornar servil e escravo se não souber lidar com os atributos que a
natureza lhe dispôs. A razão e os sentimentos de paixão e solidariedade são abafados
por educações que visam o governo de uns sobre os outros de maneira desigual e
totalitária. Quando se quer comandar a outrem, quando se quer que o outro tenha este
ou aquele desejo, torna-se escravo de uma vontade que depende da adesão, mesmo
que inconsciente, dos outros para a realização de sua vontade fraca. Nesse caso, não
se é governador de si mesmo porque não se consegue nada pelo próprio braço. Não
bastando a si mesmo, e dependente em tudo dos outros, aí está o escravo, aí estão as
leis que regem tais governos.
Emílio foi habituado a fazer suas escolhas e a sofrer as conseqüências por
elas. Sabe que não pode depender de ninguém para ser feliz ou ter o que quer. Age
conforme as leis de seu coração. Tal os primeiros homens da natureza, não pretende
fazer o mal e nem se compráz com o mal que outrem cause a seu semelhante; faz
somente aquilo que lhe possibilite viver tranqüilo e, com suas necessidades saciadas e
146
IBIDEM, p.669.
86
algumas luzes já desenvolvidas é capaz de se unir a outro semelhante de sexo oposto
constituindo uma família. É bom por natureza e assim se mantém. Tem a mente e o
coração livre, e por isso é livre.
Conclusão
Ao lermos os textos de J.Jacques Rousseau percebemos que as idéias e
conceitos apresentados no decorrer de suas obras tratam de um “grande princípio
único”.
147
Para ler o Emílio nos valemos de alguns elementos estruturais dominantes: o
primeiro desses elementos – raiz de toda a filosofia rousseauniana – encontra-se no
Discurso sobre as Ciências e as Artes e no Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens. Trata-se da construção de conceitos que mais tarde
Rousseau aprofunda, tal como o desenvolvimento da antítese fundamental entre a
natureza do homem e os acréscimos da civilização que nas obras posteriores, Emílio e
o Contrato Social, são levadas às últimas conseqüências. Deste modo, as imagens de
homem, deslocadas entre os dois ambientes apresentados, natural e social, acabam
por formar o próprio conceito de homem: um “ser” que possui um “dever ser” já
“preparado” a priori por seu “criador”, tendo por princípio norteador a natureza, que se
desenvolve de acordo com as circunstâncias, e que também, por causa delas, pode
deformar-se.
Retomando: Os Discursos iniciais são, assim, protestos contra todas as
sociedades até então existentes, cujos males eles expõem; o Emílio aponta o caminho
para a reforma do indivíduo nas esferas da moralidade pessoal, das relações familiares
e da educação; os escritos políticos posteriores sublinham o tipo de sociedade na qual
o homem bom pode viver apropriadamente.
148
147
GAY. Peter. Prefácio in A questão Jean-Jacques Rousseau, p.21.
148
IBIDEM, p.23.
87
A discussão a respeito dessa imagem de homem degenerada realizada a
princípio nos Discursos e retomada no livro sobre educação, Emílio, também é a
discussão a respeito do modo pelo qual ele se degenera, ou seja, como ou o que o faz
degenerar. A maneira como se cria ou se educa um homem é o fio condutor desta
continuação da história do homem, desta história da decadência. Assim, a sociedade
do século XVIII não é mais do que uma imagem do desenvolvimento desse modo de
vida que possibilita a degradação crescente daquele que deveria “vir a ser” homem.
Para Rousseau, este processo que é o desenvolvimento da degeneração tem relação
direta com o modo que seus contemporâneos, Diderot, entre outros pensam a história
e, o próprio homem, ou seja, a história de um ser que através da ambição chegou a
conquistar novas terras e submeter outros povos a seu poder de dominação. Poder e
dominação são as palavras chaves desse modo de ver a história.
Assim, o conhecimento derivado da capacidade da razão, reafirmado em seu
século, se torna poder de dominação sobre os modos de vida. Deste modo, a
enciclopédia se torna o grande investimento que marca a forma de operar tal poder, e o
esclarecimento, entendido pelos criadores da enciclopédia como acesso aos
conhecimentos acumulados pela história da humanidade estaria, por assim dizer,
garantindo as “luzes” que marcam seu século e a liberdade tão almejada.
No entanto, é perceptível no decorrer deste trabalho, que para Rousseau este
resultado pretendido, do esclarecimento e da liberdade, não é alcançado e tão pouco
está perto de ser, tanto pelo meio que se dá, como pelo modo. Aquilo que é entendido
por seus contemporâneos, Diderot, entre outros, como conhecimento útil e necessário,
não passa de um intelectualismo pedante a guisa de poder sobre outros, é o que se
entende quanto à crítica do desenvolvimento das ciências, das artes e da própria idéia
de educação em seu tempo e que tem a desigualdade como seu resultado. Entretanto,
se a realidade é esta, ou seja, se o conhecimento e a razão estão sendo “mal”
entendidos e “mal” utilizados, há de se fazer algumas mudanças, e, para isso, há de
conhecer o homem, que é a primeira proposta de estudo de nosso autor.
88
Para tanto, Rousseau refaz o percurso da humanidade, de forma hipotética,
para, a partir daquilo que o homem “era” em estado de natureza poder inferir o que nele
foi acrescentado gerando, então, seu estado atual de degenerescência, e como escreve
Ernst Cassirer que, “o plano educacional de Emílio pretende impedir essa decadência
espiritual e moral”.
149
Em posse das informações acerca das características primárias dos homens,
Rousseau propõe uma educação para e na liberdade, de acerto com o tempo e com o
método da natureza. Aqui, é importante ressaltar a noção de tempo utilizada por ele nas
entrelinhas de seu trabalho segundo a interpretação de Cassirer:
Rousseau sempre considerou esse esquema fixo do tempo, que
determina e domina completamente o dia de trabalho habitual do ser
humano, e essa divisão da vida imposta e estabelecida de fora como
uma amarra insuportável desta
150
.
Essa invenção do tempo convencional não está de acordo com o tempo que
a natureza parece ter concedido ao homem para se desenvolver. O tempo da natureza
é mais lento e, mais seguro. É neste sentido que Rousseau propõe uma educação
negativa, a qual visa um prolongamento dos estados do homem para que este possa
amadurecer completamente, diferentemente das educações que pretendem acelerar
esse processo. E este não é o único diferencial em sua proposta.
Outro diferencial está no papel que dá aos sentimentos do homem. “Para nós,
existir é sentir; nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência, e
tivemos sentidos antes de ter idéias”
151
, Segundo Rousseau, antes de desenvolver a
razão o homem tem sentimentos, e são eles que determinam, na idade mais avançada,
como a razão deve se portar, e não o contrário, como se vê comumente.
149
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau, p.117.
150
IBIDEM, p.43.
151
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da Educação, livro IV, p.392.
89
De acordo com Rousseau, o estado de degradação da espécie humana só se
modificaria se o homem fosse livre e autônomo em seu pensamento e seu agir
seguindo leis que ele mesmo prescrevesse. No entanto, parece que de fato isto não se
realizou, o que implica, seguindo seu raciocínio, que este processo de decadência
permanece. Segundo Cassirer, “neste caso, apenas um, viu clara e corretamente a
conexão interna de suas idéias, apenas Kant tornou-se exatamente nesse ponto um
discípulo e admirador de Rousseau”
152
.
Este processo de queda da humanidade é entendida como um processo às
avessas, ou seja, para que os homens realmente viessem a “progredir” em suas
investidas deveriam tomar outro rumo; rumo ao conhecimento de si mesmo, ou, como
escreve Kant, rumo ao “esclarecimento”
153
.
Segundo Foucault, Kant expõe no texto “o que é esclarecimento” uma
questão filosófica do presente e define a Aufklärung de uma maneira quase
inteiramente negativa, como uma Ausgang, uma “saída”, uma “solução”.
Em seus outros textos sobre a história, ocorre a Kant colocar
questões sobre a origem ou definir a finalidade interior de um processo
histórico. No texto sobre Aufklärung, a questão se refere à pura
atualidade
154
.
E continua:
Kant indica imediatamente que a “saída” que caracteriza a
Aufklärung é um processo que nos liberta do estado de “menoridade”. E
por “menoridade” ele entende um certo estado de nossa vontade que
nos faz aceitar a autoridade de algum outro para nos conduzir nos
domínios em que convém fazer uso da razão. Kant dá três exemplos:
estamos no estado de menoridade quando um livro toma o lugar do
entendimento, quando um orientador espiritual toma o lugar da
152
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau, p.58.
153
KANT, Immanuel. Resposta á pergunta: que é <esclarecimento>? <Aufklärung>, Petrópolis: Vozes,
1974, p.100.
154
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de
Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, vol.II, p.337.
90
consciência, quando um médico decide em nosso lugar a nossa dieta
(...). Em todo caso, a Aufklärung é definida pela modificação da relação
preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da razão
155
.
Pode-se inferir que a única diferença entre este pensamento e o de
Rousseau, é que, para o segundo este processo de adestramento a uma autoridade
qualquer é realizado na educação e, portanto, não é de responsabilidade daquele que
assim foi moldado, e sim, é de cunho político esta responsabilidade já que a educação
em grande parte é pensada e orientada por estatutos públicos. É também por este
motivo que Rousseau propõe uma educação particular ou doméstica para defender
Emílio das intenções coercivas da política. No entanto, para que a liberdade, entendida
como direito e dever da condição de homem possa ser garantida para as próximas
gerações, é preciso que o homem já feito tenha isso como “tarefa” e como “obrigação”,
tal é a condição do preceptor de Emilio.
A modernidade criticada por Rousseau e descrita por Foucault a luz do texto
de Kant seria então “caracterizada por uma atitude, ou seja, um modo de relação que
concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma
maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir (...)”
156
.
Conseqüentemente, resta àqueles outros tantos que não pensam a modernidade como
produto do progresso e das luzes proporcionar aos seus uma educação que possibilite
a liberdade, como meio e como fim, para mudar ou modificar sua condição atual. Mas,
resta a pergunta, será que os homens percebem sua condição? De acordo com Kant,
décadas depois de Rousseau, este estado permanece inalterado.
A liberdade, condição primeira do homem, parece, em sociedade, sempre
subordinada à vontade dos que pensam a educação como ferramenta de formação do
homem, negando categoricamente sua natureza, tratando, então, por deformá-la. A
educação de Emílio, nosso aluno imaginário, faz-nos viajar por caminhos ainda não
trilhados. A educação nestes termos propostos por Rousseau parece impossível, tanto
155
IBIDEM.
156
IBIDEM. p. 342.
91
por ser doméstica, ou particular, quanto por requerer da parte do educador uma
sapiência que parece depender de uma disposição de alma.
Como nos ensina Rousseau, “o coração só recebe leis de si mesmo;
querendo prendê-lo, soltamo-lo; acorrentamo-lo deixando-o livre”.
157
Difícil lição para
quem está preso em um tempo fixo de trabalho; para quem a subsistência depende do
outro. A vida na sociedade moderna, e depois dela modificou os homens e suas
relações. Isso não se pode negar. Para alguns estas mudanças foram positivas, para
outros tantos, não.
Tão importante e tão difícil quanto os conceitos já referidos é a ausência de
autoridade. A liberdade natural não é outra coisa senão a ausência de submissão a
qualquer tipo de autoridade seja a vontade particular de um indivíduo, seja uma lei.
Essa ausência de autoridade é apenas relativamente positiva: na hierarquia de valores
de Rousseau, a liberdade civil e moral, como submissão à lei e esforço em direção à
virtude é superior à independência natural. Mas o que a faz superior é justamente o fato
de que a eleva a um grau sublime e a liberdade natural é a submissão exclusiva à
vontade própria, acompanhada da insubmissão a qualquer outra vontade particular. É
possível dizer que a concepção que Rousseau tem de autonomia do cidadão reflete ou
recupera a idéia de independência natural que gozava o homem no estado de natureza,
apenas acrescentando-lhe o que para Rousseau concerne propriamente um valor
moral, a relação à lei e ao esforço da virtude.
Se o homem natural não existe mais, e nem pode mais existir, podemos, à luz
de Rousseau, que descreveu as etapas da humanidade que conhecemos hoje pelo
trabalho dos arqueólogos, buscarmos referências daquilo que o homem realmente é
para fazê-lo mais humanamente feliz. Essa é a busca da filosofia, desde a Grécia
clássica até os dias de hoje.
157
ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, livro IV, p.307.
92
Ao fim, e ao cabo, pode-se tirar como conclusão desta análise que se
pretende elucidadora, que segundo Rousseau, o homem enquanto espécie deve ser
educado e orientado na liberdade, ferramenta sem a qual não se obtém o resultado que
a natureza reserva ao homem desde a concepção da espécie humana. Neste sentido
escreve Groethuysen:
O pensamento de Rousseau é revolucionário antes de tudo por
nascer de uma oposição elementar e irredutível a uma ordem existente.
Não há maneira de conciliar o que é com o que deve ser, não há
maneira de fazer reformas que, salvaguardando o adquirido permitiriam
evoluir a um melhor estado de coisas. (...) Isto é o que Rousseau não
poderia admitir. Sua crítica se dirige ao conjunto da sociedade. Pede
uma mudança total das condições morais da vida. Rousseau se lança
contra um estado de coisas, contra o “espírito” de um século, contra as
maneiras de pensar e de sentir que estão na base dos abusos, contra
uma mentalidade.
158
E é a isso que chego como conclusão. O projeto da modernidade não foi
realizado. A liberdade, a igualdade e a fraternidade inscritas na bandeira da Revolução
Francesa continuam como projeto. Ao homem culto ou inculto da modernidade não foi
delegado poder algum e prossegue o estado de submissão pela sobrevivência. O poder
“legítimo” da política continua cerceando a liberdade em todas as esferas, desde a
educação das crianças. As guerras, as desigualdades sociais continuam via de regra. O
que pode um professor em sala de aula, imerso em uma sociedade perversa, senão
esperar de seus alunos uma rebelião contra a autoridade e contra a imposição daquilo
que “podem” e “devem” fazer?.
A postura crítica bem como a proposta inovadora de Rousseau são
contribuições para pensar o hoje, pois, o saber tomado em excesso, sem verdadeiro
interesse não contribui nem para o esclarecimento, tal como pretendia Kant, nem para a
formação de uma sociedade mais justa.
158
GROETHUYSEN, Bernhard. J. J. Rousseau. México: Fondo de Cultura Econômica, p. 245-246 (Trad.
do autor).
93
A educação, entendida como ação intencional para moldar o homem de
acordo com um ideal ou com modelo social, não toma a natureza como suficiente e boa
em princípio e, por isso, faz-se necessária. Entretanto, para Rousseau, é a importância
e o valor da educação como ferramenta para a formação do homem que faz-se
desnecessária do ponto de vista da própria natureza, ou seja, na medida que a
natureza pode encarregar-se do desenvolvimento do homem a educação não passa de
convenção arbitrária. Nesse sentido, somente a educação na e para a liberdade pode
ser a ferramenta para a transformação do homem social em homem.
A pedagogia começa na Grécia Antiga.
Por trás do trabalho de cada professor, em qualquer sala de aula do mundo,
estão séculos de reflexões sobre o ofício de educar. Mesmo os profissionais de ensino
que não conhecem a obra de Aristóteles, Rousseau entre outros trabalham sob a
influência desses pensadores, na forma como foi incorporada à prática pedagógica, à
organização do sistema escolar, ao conteúdo dos livros didáticos, ao currículo de
formação dos professores. Como desconhecem as fontes que deram origem a tais
práticas pouco ou nada questionam a esse respeito e conseqüentemente produzem ou
reproduzem uma má interpretação que fica explícita na prática em sala de aula.
A busca por um mundo mais tolerante quanto às diferenças culturais e
religiosas, e mais humanizado, continua.
94
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