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CARLOS ROBERTO DA COSTA
A REVISTA NO BRASIL,
O SÉCULO XIX
Tese apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências da Comunicação, Área
de Concentração Teoria e Pesquisa em Co-
municação, Linha de Pesquisa Epistemolo-
gia, Teoria e Metodologia da Comunicação,
da Escola de Comunicações e Artes da Uni-
versidade de São Paulo, como exigência par-
cial para a obtenção do Título de Doutor em
Ciências da Comunicação, sob a orientação
da Profª Drª Mayra Rodrigues Gomes.
São Paulo
2007
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Resumo
Este estudo investiga e analisa as publicações periódicas brasileiras criadas no século
XIX e realiza um resgate histórico e panorâmico da trajetória da criação jornalística em
revistas, do nascimento da imprensa no país até a virada para o século XX. Elaborado
como uma grande reportagem, o trabalho acompanha o desenvolvimento histórico das
revistas no século em que trilhamos os primeiros passos de vida independente e busca
entender o processo de formação do público leitor e o papel que o jornalismo – e em
particular as revistas – desempenhou na discussão dos caminhos que o país queria trilhar.
Em sete capítulos, a pesquisa se detém em alguns periódicos que foram marcos no
aprimoramento de redatores, impressores, caricaturistas, diagramadores. As primeiras
revistas, saídas da Impressão Régia, criada em 1808; a chegada dos impressores
contratados fora ou que vinham para o Brasil “fazer a América”; os primeiros desenhistas
e ilustradores; a entrada das mulheres nas redações; a contribuição dos livreiros; o auge
das semanais ilustradas no período de estabilidade do Segundo Império – e a discussão e
os debates promovidos por elas em torno da desgastante Guerra do Paraguai, da
libertação dos escravos ou do final do Império e da implantação da República, são os
conteúdos desses capítulos que contam a trajetória das revistas brasileiras no século XIX.
Palavras-chave: História da imprensa, jornalismo em revista, caricatura,
impressores, livreiros, formação do público leitor.
Abstract
This study investigates and analyzes the Brazilian regular publications founded in
the 19th century and recovers the historic and panoramic course of the journalistic
creation in the magazines of the 19th century, from the birth of the press in the country to
the turn of the 20th century. Elaborated as a great news report, this study follows the
historical development of the magazines in the century in which we tracked the first steps
of our independence, and tries to understand the process of making up the reading public,
as well as the role that journalism – especially the magazines – has played in the discussion
of the paths the country intended to trail. In seven chapters, the research dwells on some
publications which were landmarks for the improvement of writers, pressmen, cartoonists,
designers. The first magazines, published by Impressão Régia (name of the Brazilian
official printing house), founded in 1808, the arrival of the pressmen hired overseas or
coming to Brazil with the aim of “making up America”; the first draftsmen and
illustrators; the admission of women in newsrooms; the contribution of booksellers; the
pinnacle of the illustrated weekly magazines in the steady period of the Second Empire in
Brazil – in addition to the discussion and debates promoted by them on the outwearing
Paraguay War, on the freedom of slaves or on the end of the Empire, as well as the
implementation of the Republic, constitute the contents of the chapters giving an account
of the development of Brazilian magazines in the 19th century.
Key words: history of the press, journalism in magazines, caricature, pressmen,
booksellers, configuration of the reading public.
Dedicatória
A minhas netas, Letícia e Bárbara, com a esperança
de que sejam leitoras fiéis de revistas –
e ao Rafael e Lucila, com a aposta de que
as levem para este bom caminho.
A meus alunos de História de Comunicação do 1º ano
de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero (com quem depois convivo
nas aulas de Jornalismo em Revista, no 4º ano), nos cursos de
2004, 2005, 2006 e 2007: com eles fiz muitas descobertas
bibliográficas que estão registradas nessas páginas.
Sumário
Agradecimentos ......................................................................................................................... 9
Apresentação............................................................................................................................ 11
Capítulo 1. Igualdade e diferença: formação do leitor e do brasileiro ................................ 19
1.1. No século do progresso, o fascínio pelo outro ........................................... 20
1.2. O olhar no outro na formação identitária.................................................. 29
1.3. A gestação do sentimento nacional............................................................. 36
1.4. Leitor, um público a ser criado.................................................................... 40
1.5. Um começo lento: traduções e compêndios .............................................. 44
Capítulo 2. As surpresas de um início moroso: 1812-1830 ................................................. 53
2.1. As Variedades: primeira revista – peça roubada ........................................... 56
2.2. O Patriota: imprensa áulica ou periódico didático? ..................................... 59
2.3. Os periódicos incendiários e a afirmação nacional.................................... 63
2.4. Annaes e Espelho Diamantino: tentativas pioneiras......................................... 66
2.5. O Espelho das Brasileiras e L’Écho de l’Amérique du Sud.................................... 72
2.6. O Beija-Flor, o folhetim e a primeira novela nacional ................................. 75
Anexo: Olaya e Julio ou A periquita.................................................................. 78
Capítulo 3. A vitalidade de novos rebentos: 1831-1850 ...................................................... 91
3.1. A indústria dá as cartas: os 60 anos de O Auxiliador .................................. 97
3.2. As revistas dos estudantes de Direito: O Amigo das Letras ........................ 100
3.3. Os impressores e o Museo Universal............................................................ 102
3.4. Os livreiros, o Almanak Laemmert e o Correio das Modas ............................. 106
3.4.1. O Almanak Laemmert.................................................................... 107
3.4.2. O Correio das Modas ........................................................................... 110
3.5. A atração da imagem, cultura visual: A Lanterna Mágica ......................... 113
3.6. Um novo passo: as Marmotas de Paula Brito ............................................ 119
Capítulo 4. A mulher e a ilustração entram na redação: 1850-1865................................. 127
4.1. A mulher agora escreve: O Jornal das Senhoras.......................................... 132
4.2. Elas continuam com as cartas: O Espelho .................................................. 140
4.3. A hora e a vez do traço: A Illustração Brasileira.......................................... 143
4.4. A Semana Illustrada: enfim, a maturidade editorial.................................... 147
4.5. A fase paulistana de Angelo Agostini ....................................................... 158
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Capítulo 5. Os caricaturistas se apoderam das semanais:1866-1875................................. 165
5.1. Do Bazar Volante ao Arlequim. Agostini chega ao Rio.................................170
5.2. O palco da guerra nas páginas de A Vida Fluminense .................................172
5.2.1. Vida Fluminense critica a Semana Illustrada .....................................175
5.2.2. Vida Fluminense inicia “As aventuras de Nho-Quim” ......................176
5.3. As divertidas ferroadas de O Mosquito ........................................................179
5.3.1. O Mosquito na primeira dentição: Candido Faria........................... 180
5.3.2. O Mosquito aferroa com o crayon de Agostini ................................ 182
5.3.3. O Mosquito na terceira fase: a pedra de Bordallo Pinheiro ............ 187
5.4. As chinoiseries do Ba-ta-clan e as diabruras do Mephistopheles...................... 190
5.4.1. Ba-ta-clan, humor francês sem sutileza. ......................................... 190
5.4.2. O meteórico Mephistopheles .............................................................. 192
5.5. De Minas para a Corte: a saga de O Sexo Feminino ................................... 193
5.6. As ironias da nova turma de O Mequetrefe................................................. 196
Capítulo 6. O auge das revistas semanais ilustradas: 1876 a 1878 ................................... 209
6.1. A leve pegada intelectual de O Figaro........................................................ 215
6.2. A Revista Illustrada: recordista de vendas na América Latina .................. 220
6.3. A Illustração Brasileira,... do Brazil e ... Popular ............................................. 230
6.4 Raphael Bordallo Pinheiro à frente de o Psit!!! e O Besouro....................... 234
Capítulo 7. As publicações do final de uma época: 1879 a 1900 ....................................... 243
7.1. O papel dos livreiros – e a revista A Estação.............................................. 247
7.2. Nova geração de ilustradores: Binóculo, Gryphus, A Vespa e Rataplan ........ 254
7.3. A leitora e novas revistas femininas: Mulher e A Família ....................... 257
7.4. Nova fase de A Vida Fluminense e O Álbum.................................................. 258
7.5. A Cigarra e A Bruxa .................................................................................. 260
7.6. Uma publicação paulista se firma: A Mensageira .................................... 266
7.7. A volta de Agostini: o Don Quixote.......................................................... 272
7.8. Rua do Ouvidor e a Revista da Semana: o século chega ao fim ............ 280
Conclusões............................................................................................................................. 283
Bibliografia............................................................................................................................. 289
Todas as citações PR SOR significam que o texto ou imagem têm como origem microfilme
da Biblioteca Nacional (PR SOR significa Periódico [PR] do Setor de Obras Raras [SOR]).
Assim, PR SOR 00284[1] quer dizer que o trecho citado da revista Marmota na Corte
foi retirado do microfilme 1 do rolo 284 (que corresponde à revista citada).
9
Agradecimentos
Há muito a agradecer – a professores, colegas e instituições – ao concluir esse
trabalho. Embora tenha sido um mergulho individual, muitas vezes solitário, de quatro
anos, a elaboração dessa tese contou com a contribuição de muitas pessoas, e
antecipadamente agradeço as que, por omissão, ficarem de fora.
O primeiro agradecimento é para a Universidade de São Paulo, instituição pública
de ensino onde realizei o mestrado e concluo agora o doutorado, em sua Escola de
Comunicações e Artes. Aprendi a amar essa escola, com suas instalações precárias, suas
deficiências críticas, resultado do descaso de políticas governamentais e da omissão dos
que teriam o múnus de dirigi-la para melhores patamares, mas foi ali que encontrei
pessoas dedicadas e luminares com quem muito aprendi e logo mais nomearei.
A Faculdade Cásper Líbero, onde leciono e atualmente coordeno o Curso de
Jornalismo, segue nesse agradecimento. Nessa escola vivenciei o que é a autonomia
acadêmica, pela total liberdade concedida na criação do curso de Design Gráfico e
Jornalismo em Revista, que há oito anos ministro para o 4º ano da graduação, e sobretudo
pela disciplina História da Comunicação, do 1º ano, sob minha responsabilidade desde
2004. Tive oportunidade de realizar, com os alunos ingressantes, muitas descobertas e
algumas delas estão registradas nesse trabalho. Também ao Centro Interdisciplinar de
Pesquisa da Cásper Líbero registro agradecimento: esse trabalho de recuperação histórica
das revistas do século XIX nasceu de bolsa parcial que obtive para o projeto ali
apresentado em março de 2003.
Agradeço a Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, instituição pública com
problemas semelhantes aos da Universidade de São Paulo, mas onde encontrei
profissionais competentes que me atenderam com atenção: passei ali muitas horas, papel e
lápis na mão, “folheando” revistas antigas em microfilme, tomando notas, preparando
relatório de páginas que depois pagaria para duplicação em imagens digitalizadas. A esses
dedicados funcionários da Biblioteca Nacional meu obrigado. Outro órgão de pesquisa
que entra no rol de agradecimentos é a Biblioteca Professor José Geraldo Vieira, da
Faculdade Cásper Líbero – um dos tesouros dessa escola. Meu reconhecimento pela
atenção e carinho com que fui tratado por seus bibliotecários.
Agradeço a Dra. Mayra Rodrigues Gomes, orientadora desse trabalho, pelo clima de
cordial respeito que estabelecemos desde o mestrado, quando freqüentei seu curso “Ciências
da Linguagem: A ordem simbólica, fundamentos das reflexões sobre linguagem”, em 2002. A
liberdade e a confiança com que Mayra me orientou, apoiou as mudanças de rumo, e sua
leitura atenta, foram fundamentais. À professora meu reconhecimento e admiração.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
10
Agradeço a Dra. Dulcília Helena Schroeder Buitoni, orientadora do meu mestrado:
em seu curso “Jornalismo: da imagem pré-fotográfica à imagem pós-fotográfica”, ela me
apresentou aos quadrinhos de Agostini e a leitura de sua tese sobre revistas femininas foi
um dos modelos de que me servi na criação do meu próprio caminho.
Muitos professores da Universidade de São Paulo acrescentaram a meu
amadurecimento acadêmico: agradeço especialmente ao prof. Dr. Jair Borin, in memoriam,
pelas longas conversas e sugestões quando assisti a seu curso “Media Criticism, novas
tecnologias e o fazer jornalístico”, no ano 2000. Jair me recomendou três outros cursos que
me deram a oportunidade de conviver com figuras da grandeza de Fernando Augusto
Albuquerque Mourão (“Globalização e Regionalização”, ministrado no Departamento de
Sociologia da FFLCH), Octavio Ianni (“Teorias da Globalização”), e Luiz Roberto Alves
(“Comunicação e Cultura: o popular e o alternativo”), estes dois ministrados no CCA,
Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP. Octavio Ianni teve a generosidade
de participar da banca do mestrado, que defendi em agosto de 2003.
Agradeço ainda a possibilidade de haver realizado os cursos ministrados pelos
professores Drs. Jeanne Marie de Freitas (“Ciências da Linguagem: Mídia e Mitologia do
Escandaloso”), Ismail Xavier (“Análise de Filme, Crítica de Cinema”), José Coelho
Sobrinho (“A Formação do Jornalista: Fundamentos Pedagógicos e Didáticos da
Construção Curricular”) e Rosana de Lima Soares (“Ciências da Linguagem: Mídias e
Estigmas Sociais”). A Rosana agradeço ainda a participação, com o prof. Dr. José Luiz
Aidar Prado, do exame de qualificação. Espero reencontrá-los agora na banca de defesa
deste trabalho finalizado com suas preciosas indicações e sugestões.
Agradecimentos especiais vão também para Vladimir Sacchetta, ex-colega do curso
de jornalismo da Cásper Líbero, da Companhia da Memória, fornecedor de algumas
imagens para estas páginas, e para Suzana Camargo, da Editora Abril, que dirigia o
Departamento de Documentação (Dedoc) daquela empresa quando iniciei esta trabalho e
me possibilitou acesso à pesquisa realizada pela Emporium Brasilis (atual Companhia da
Memória). Ao Carlos José Fernández, que no início do trabalho ajudou na digitalização de
textos de pesquisa, e ao José Batista Carvalho, a quem admiro desde os tempos em que foi
meu chefe na revisão da Editora Abril, em 1973, pela leitura e revisão final das provas. E a
Carlos Alberto Martins e Ricardo Azevedo Miguel, pela diagramação desse livro.
Aos alunos monitores João de Freitas e Diogo Sponchiato, pelo apoio em fotocopiar
arquivos originais enviados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e Gabriella de
Lucca, por transcrever alguns trechos e fotocopiar versões da tese em sua etapa final de
escritura e diagramação. E, last but not the least, ao José Geraldo de Oliveira, que me ajudou
na correção final de provas e imagens e me deu o maior estímulo
11
Consideremos apenas a solidão de Freud no seu tempo. Não falo da solidão
humana, pois ele teve mestres e amigos, embora tenha conhecido a pobreza.
Falo da sua solidão teórica. Pois quando ele quis pensar, ou seja, exprimir, sobre a
forma de um sistema rigoroso de conceitos abstratos, a descoberta extraordinária
com a qual deparava, a cada dia, nos encontros com sua prática, foi um trabalho
vão procurar precedentes teóricos: ele quase não achou pais na teoria.
Teve de sofrer e, ao mesmo tempo, arrumar a seguinte situação teórica: ser ele
mesmo o seu próprio pai; construir, com suas mãos de artesão, o espaço teórico em
que pudesse situar sua descoberta; tecer, com fios emprestados aqui e ali,
por adivinhação, uma grande rede com a qual capturaria, nas profundezas
da experiência cega, o peixe abundante do inconsciente, que os homens dizem
mudo, porque ele fala mesmo quando dormem.
Louis Althusser, Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio: Edições Graal, 1985, pág. 52.
A proposta de pesquisa elaborada no final de 2003 para meu ingresso no programa
de doutorado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo era um
estudo sobre os discursos ambíguos na televisão, por meio da qual eu pretendia discutir
por que todos falam mal da TV mas não resistem à sedução de acompanhar as novelas ou
os reality shows. Durante dois anos reuni extensa bibliografia em distintas viagens, li
estudos, relatórios e pesquisas, juntei anotações. Tive duas longas conversas nesse período,
uma inicial com Cristina Santamarina, outra detonadora com Beatriz Sarlo.
Cristina é uma argentina que nos anos de chumbo se instalou em Madri. Socióloga,
é professora da Universidade Complutense e proprietária de uma conceituada empresa de
análises e pesquisas de mercado – ainda guardo dois imensos trabalhos realizados por sua
empresa para diferentes emissoras de televisão espanhola. Com ela recolhi parte do que
seria a metodologia de trabalho (análise qualitativa de conversas com grupos focais) e
subsídios para elaborar o projeto apresentado na seleção para o doutorado.
No início de 2004 eu editava a revista Libero, do programa de pós-graduação da
Faculdade Cásper Líbero, e preparei um número especial sobre televisão (a proposta
inicial, um livro em parceria com conhecida editora comercial voltada também para o
público universitário, apenas atrasou o projeto): muitos dos contatos estabelecidos nesse
período resultaram em artigos para aquele número da revista (Ano VII, n. 13/14).
Aproveitando as férias de julho e uma viagem até Buenos Aires, entrevistei Beatriz Sarlo,
que considero dona de uma visão peculiar sobre televisão e cultura, para outra revista que
ainda edito, a Diálogos&Debates. Entre xícaras de chá e muito cigarro no seu escritório da
calle Talcahuano, no centro de Buenos Aires, onde há mais de vinte anos Sarlo edita a
revista Punto de Vista, ela me concedeu umas das melhores entrevistas que publiquei
(Diálogos&Debates, n. 17, setembro de 2004) e jogou um balde de água fria nas minhas
pretensões de analisar os discursos ambíguos da TV e em especial o mimetismo do Big
Apresentação
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
12
Brother Brasil. Ao saber que tinha em mãos uma pesquisa parcialmente realizada sobre
revistas brasileiras do século XIX, Beatriz ponderou que minha contribuição seria muito
maior se resgatasse o que as revistas representaram para a formação do leitor e do público
brasileiro num país que se iniciava.
Autora de uma belíssima análise das publicações semanais de novelas sentimentais –
El imperio de los sentimientos: narraciones de circulación periódica en la Argentina (1917-1927) –,
Beatriz Sarlo ponderou sobre o efêmero que seria trabalhar sobre um programa que talvez
não resistisse a mais uma temporada na telinha (o que de fato sucedeu na Argentina, não
aqui). Voltei com dúvidas.
Ao planejar os grupos focais e dimensionar o tempo que levaria armar equipes de
discussão em distintos pontos do país com diferentes cortes de participantes (gênero,
condição social, escolaridade), e com o apoio da minha orientadora, retomei a pesquisa
iniciada em 2003 com bolsa parcial da Coordenadoria Geral de Pesquisa da Faculdade
Cásper Líbero, o atual CIP – Centro Interdisciplinar de Pesquisa.
A busca da metodologia: uma grande reportagem
Do material apresentado ao finalizar a pesquisa do CIP (na realidade a pesquisa
fechada nunca foi depositada, esta tese será entregue como o resultado final da pesquisa)
havia muito a rever. Ali a proposta inicial havia sido realizar um levantamento panorâmico
da história da revista no Brasil – a partir da decepção que sentira ao ver o que a Editora
Abril apresentara na comemoração de seus 50 anos, em 2000. O prof. Dr. Laan Mendes
de Barros, na época responsável pela Coordenadoria de Pesquisa, havia passado o
comentário de um parecerista sobre o exagero da proposta, de buscar dar conta, numa
pesquisa, de um período tão extenso, de dois séculos. Assim, no meio do caminho
delimitei que me restringiria ao século XIX. Agora havia a redefinição do corpus e da
busca e consolidação de uma metodologia.
Nesse momento senti aquela solidão de Freud de que fala Althusser na epígrafe com
que abri esta introdução. Qual seria a metodologia a ser empregada? Que modelo seguir?
Que revistas destacar, no quadro que se foi armando nas pesquisas realizadas na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro? A metodologia que havia arquitetado com a ajuda de Cristina
Santamarina era para desenrolar o novelo das falas que seriam recolhidas em quinze
encontros em cinco cidades diferentes, com grupos de homens, mulheres, jovens, casados,
solteiros, que falariam sobre televisão, tentando identificar e tecer os “discursos ambíguos”.
Agora eu não iria produzir o material, mas recolher textos, recuperar imagens, exemplares
de revistas, realizaria leituras, cruzaria dados. Depois, que tipo de abordagem histórica,
visto que estaria construindo uma história das revistas? Repetiria os esquemas
comparativos utilizados na análise realizada na dissertação de mestrado entre as edições
brasileira e argentina da revista Playboy?
Formado em Filosofia e Teologia, nos tempos de seminarista eu havia cumprido
parte do curso de Ciências Sociais na Universidade Católica do Paraná. Mas a vida me
levara para o ramo de revistas. Saindo do convento, fui contratado como revisor na S.A.
Abril Cultural e Industrial. Ali me diverti e aprendi lendo e corrigindo acentos, vírgulas,
sintaxe de praticamente todas as publicações do Grupo Abril: revistas, fascículos, livros.
Revisei de tudo: fofocas e programação de televisão, tabelas de jogos do campeonato
brasileiro de futebol, receitas de culinária ou de tricô, a cobertura do golpe contra
Salvador Allende no Chile, em revistas como Contigo, Noturno, Placar, Veja, Claudia, Nova,
Manequim, Mon Tricot, Enciclopédia Abril, Conhecer, Ampère e Ohm para a coleção “Os Cientistas:
A Grande Aventura da Descoberta Científica”; Os Mandarins, de Simone de Beauvoir, para
a coleção “Clássicos Modernos”, Os Pré-Socráticos, para a coleção “Os Pensadores”. Às vezes
13
substituí algum preparador no trabalho, considerado mais nobre, de normatização de
originais, como alguns volumes da enciclopédia Nosso Século.
Fiz cursos de produção gráfica: como cortar texto para evitar estouro de pedaço de
uma linha. Orientava o trabalho de diagramadores do Departamento de Texto, que
finalizava todas as publicações da Abril. Aprendi sobre técnicas de impressão, assisti à
implantação do Photom, um computador maior que uma Kombi que gerava textos em
filme e couchê, substituindo o linotipo. Fui chamado para participar do projeto de criação
de uma revista semanal com a programação da cidade (algo similar ao que é hoje Veja São
Paulo), com o lendário Paulo Patarra, criador da Realidade. Deixava a S.A. Abril Industrial
para ingressar na Editora Abril Ltda. Com a não aprovação pela empresa dessa publicação
semanal ao estilo da Pariscope, fui acomodado em outro projeto, conhecido como OH!, que
deu origem à revista Homem, depois Playboy.
Estava ali há três anos, no que se chamava “a cozinha da redação”, quando a
pressão do sindicato pela obrigatoriedade do registro me levou a procurar uma faculdade
de jornalismo. Fiz a Cásper Líbero em três anos – eliminando todas as matérias de
formação cultural, com o aproveitamento de estudos realizados anteriormente. Nesses
trinta anos trabalhando com revista, fiz corte e costura, cerzido e bordado, preguei botão,
caseei. Aprendi que revisteiros não se aprontam comprando equipamentos. Há um longo
aprendizado na elaboração de uma publicação que caia no gosto do público. Há a
construção, número após número, daquilo que Eliseo Verón chama de “contrato de
leitura” – e sobre o qual falarei mais adiante. Demorei a sair à rua para o trabalho de
reportagem. Meu formador e guia nos quinze primeiros anos de prática, o grande
jornalista e revisteiro Mario Joaquim Escobar de Andrade, me solicitava o tempo todo no
trabalho fino da carpintaria do fechamento. O primeiro texto assinado que publiquei em
Playboy, sobre a arte da negociação, teve sua abertura (os primeiros parágrafos) “reescrita”
por Ruy Castro – meu discurso ainda ressentia o peso da formação em filosofia (tanto que
o artigo saiu com nota de rodapé!).
Nessa grande escola que foi a redação de Playboy nos anos 70 e 80 acabei
aprendendo a fazer reportagem. A ser os olhos do leitor: a anotar detalhe, a reproduzir o
clima, a recriar a cena.
Resolvi que meu trabalho de doutorado seria, então, uma grande reportagem. Iria
contar ao leitor o que vi nos arquivos microfilmados da Biblioteca Nacional, o que senti
folheando revistas, o que descobri cruzando leituras e tomando notas. A abordagem é,
portanto, a tradução de tudo aquilo que aprendi no ofício de reportar e de criar revistas.
Este não é o trabalho de um historiador, de um sociólogo ou de um semiólogo, mas o
relato de um repórter que foi a campo entender, refletir e contar para o leitor aquilo que,
na situação privilegiada de mediador, viu e entendeu.
Esclareço de entrada: esta não é uma pesquisa de análise do discurso numa vertente
foucaultiana. Li Foucault e aqui ou ali, nesta tese, há alguma referência a essas leituras e
aos dispositivos disciplinares, mas este não é um trabalho que utilize especificamente
categorias de uma análise arqueológica do discurso. A leitura de Foucault contribuiu para
pensar e problematizar esta reportagem jornalística sobre o desenvolvimento histórico das
revistas no século XIX, mas não para dialogar com seus modelos de análise da
arqueologia dos saberes e dos lugares do saber.
Li Deleuze e menciono sua expressão “palavras de ordem”, mas não quero dizer
com isso que essa análise seja tributária de uma reconstrução a partir das propostas do
autor de Mil platôs. Essas leituras trouxeram luzes para comentários e anotações sobre a
história das revistas, para entender o processo de formação de um público leitor, mas
também do longo processo de formação e habilitação de escritores, redatores, impressores,
caricaturistas, diagramadores: o quadro técnico que não veio junto com o prelo que jazia
no porão do navio Medusa, que saiu de Lisboa naquela madrugada chuvosa de 29 de
novembro de 1807, parte da esquadra que trouxe para os trópicos a família real portuguesa
– e não se sabe se mais 15 mil cortesãos e funcionários.
Apresentação
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
14
Esta tese-reportagem busca amarrar o papel que o jornalismo e em particular as
revistas desempenharam na discussão dos caminhos que este país queria trilhar quando
se viu alijado do Império Português. Nesse sentido, coloca-se o título anterior do
trabalho: a formação do leitor e do brasileiro, porque os dois processos se deram de
mãos dadas.
Os meios, o público e a produção: os contratos de leitura
Os meios formam seu público. É um dado aceito que cada nova tecnologia
introduzida nas comunicações modifica nosso modo de acesso ao saber – e, com isso, o
próprio saber – e pauta a administração de nossa memória, modelando o espaço
doméstico e o ambiente de trabalho, provocando resistências e desajustes, inércias e
acelerações incontroláveis. Mais: provoca num primeiro momento divisões de opiniões,
entre os entusiastas do novo meio e os que demoram a se desprender de conhecimentos já
adquiridos, apegados a uma atitude nostálgica. Lembro-me, enquanto escrevo esta
apresentação, da novela pública que foi, quase na metade dos anos 1990, a migração pela
então diretora da revista Claudia da máquina de escrever para o computador. Em três ou
quatro números seguidos da publicação, ela, na carta dirigida às leitoras (e essa conversa
“desarmada” com a leitora é parte da construção do contrato de leitura), se queixava de
quanto lhe custava deixar de lado sua velha Remington e lutar contra textos que
teimavam em desaparecer da telinha de seu computador.
E foi assim desde o primeiro grande salto da comunicação, o da invenção do
alfabeto fonético. Como professor de História da Comunicação, uma série de leituras
consolidou essa percepção, a de que os meios estabelecem uma relação dialogal não
apenas com seus consumidores, mas com os produtores (como o escriba que aprende a
técnica de esculpir em tábuas de argila ou a lancetar o couro do pergaminho com o
estilete, para registrar sua escrita). O meio educa seu público da mesma forma como exige
do comunicador o domínio da tecnologia. No caso da televisão, ela educou o espectador,
que hoje mostra desembaraço até ao ser entrevistado na rua: sabe que tem de ser
econômico ou telegráfico em suas observações, pois sua fala passará pelo filtro da edição –
ou não irá para o ar.
A televisão, objeto de estudos acadêmicos desde seu surgimento, contribuiu para o
aprofundamento dessa discussão, a de que os veículos formam seu público. Em 1954,
Theodor Adorno escrevia sobre o conhecimento prévio, por parte do espectador, que
identificava de imediato os gêneros (comédia ligeira, western, policiais) e sabia que atitude
de fruição adotar perante eles: “Estes gêneros se desenvolveram em fórmulas que, até
certo ponto, preestabeleceram o modelo de atitude do espectador, determinando em
grande medida o modo como se perceberá qualquer conteúdo específico” (ADORNO,
1954: 213). Beatriz Sarlo acrescenta: “Mimética e ultra-realista, a TV constrói seu público
a fim de poder refleti-lo, e o reflete para poder construí-lo: no perímetro desse círculo, a
televisão e o público estabelecem o pacto de um programa mínimo, tanto do ponto de
vista estético quanto do ponto de vista ideológico” (SARLO, 2000:83). Num passo
adiante, nessa linha de reflexão, Mayra Rodrigues comenta:
A polaridade emissor/receptor é falsa, pois na realidade o que temos é uma circularidade,
numa comunicação que se desdobra em uma rede gigante na qual tanto emissor quanto
receptor não têm autonomia alguma, funcionando conjuntamente: o sujeito emite aquilo
que ele mesmo recebe. Meios de comunicação aparecem como lugar de redundância em
que pessoas recebem informação, refratam informação e nenhum dos três elementos da
concepção clássica tem poder (GOMES, 2001: 94).
15
A formação ou formatação do público se dá pelo processo de negociação que Eliseo
Verón chama de “contratos de leitura” (VERÓN, 1989: 41-43). O contrato de leitura é o
enunciado acertado entre o editor e o leitor. Essa negociação não é tácita, mas implícita,
uma relação que se cria e alimenta no correr das edições, reforçando o pacto estabelecido
entre quem produz a publicação e quem a consome: “As regras dessa estratégia definem,
em cada título de imprensa, o que chamamos de ‘contrato de leitura’. E o leitor assíduo de
uma publicação não é outro que o receptor que aceitou o lugar de destinatário que lhe é
proposto nesse contrato” (VERÓN, 1989: 43).
Ao longo dos meses o editor tem a oportunidade de redirecionar ou reposicionar as
estratégias, reforçando aquilo que pelo retorno recebido soube que foi do agrado do leitor.
Esse diálogo é reiterado na “carta do editor”, a página onde se apresentam as ofertas de
cada edição; nas cartas que o editor seleciona para a publicação, na seleção de reportagens
e textos, no visual da publicação.
No estudo que realizou sobre as imagens de capa da revista francesa Paris Match,
Verón mostra o quanto a foto estampada na “vitrine” de uma publicação estabelece de
imediato esse contrato de leitura. “É na capa que esse contrato deve ser mostrado o mais
claramente possível”, diz ele. “Esse casal na capa, imagem dominante do Paris Match, é um
operador destinado a constituir um coletivo ao mesmo tempo restrito e conhecido do
leitor e, por conseqüência, próximo a ele. A capa estrutura, com o tempo, uma
sociabilidade de proximidade”.
As leituras e os níveis de leitura
Ao analisar as cópias xerográficas de páginas microfilmadas de revistas do século
XIX, buscava descobrir esses “nós” da tríade a que se refere Mayra Gomes, na rede ou
roda-gigante que foram as revistas publicadas ao longo do primeiro século de nossa vida
independente e impressa: do emissor sabemos alguma coisa, e pelo que ele seleciona
podemos saber quem estaria do outro lado da emissão. Não apenas o leitor real, que
algum dia folheou aqueles exemplares, mas o leitor projetado e procurado pelos editores.
Assim, num cruzamento de leituras, como recomenda Mortimer Adler (no caso, nos
referimos ao terceiro e quarto nível de leitura, a analítica e a comparativa: cf. ADLER&
VAN DOREN, 1972), quando ficamos sabendo, por um estudo de Luiz Felipe Alencastro,
que na altura do ano 1857 houve um interesse elevado pela medicina homeopática
(ALENCASTRO, 1999: 77) e logo adiante vemos que, em 1859, Francisco de Paula Brito
lançou a Revista Homeopathica, posso entender ou deduzir que o pai das “Marmotas” era um
editor antenado com o que o público queria. É certo que a Revista Homeopathica não foi
duradoura (mensal, teve apenas 9 edições), mas seu criador não brincava em serviço.
Como veremos adiante, no capítulo 4 (e será ainda Luiz Felipe Alencastro que nos
contará), anos antes, aproveitando a ansiedade gerada pela epidemia de febre amarela, o
mesmo Francisco de Paula Brito faz publicidade de sua revista médica nas páginas do
Jornal do Commercio: “Febre amarela – a questão científica entre os srs. Drs. De Simoni,
Carvalho e Pereira Rego continua nos Annaes de Medicina Brasiliense” (anúncio publicado no
de 8.11.1851).
Também sabemos, pela leitura do trabalho de Luiz Felipe de Alencastro “Vida
privada e ordem privada no Império” (in NOVAIS, Washington, História da vida privada no
Brasil), da mania que tomou conta do país nessa mesma época: o piano. Francisco de
Paula Brito é dos primeiros a dar partituras como brinde – e compõe até o discutido Lundu
da Marrequinha.
Da mesma forma que um repórter se prepara lendo grandes reportagens, realizei
Apresentação
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
16
outras leituras. De Beatriz Sarlo, o que teria sido sua tese de doutoramento, o já citado El
imperio de los sentimientos: narraciones de circulación periódica en la Argentina (1917-1927). Dessa
leitura tirei inspiração para a abordagem da análise de alguns dos textos que seleciono nos
capítulos em que analiso as revistas selecionadas. Dois outros livros fundamentais para o
encaminhamento das análises foram História da caricatura no Brasil, de Herman Lima, e
Imagem e letra, de Orlando da Costa Ferreira.
O livro de Orlando foi encontrado por acaso – lendo um artigo sem identificação de
autor na internet (uma pesquisa sobre design gráfico de um pesquisador da PUC carioca,
telefonei para a instituição, mas ninguém soube identificar do que se tratava). Nesse texto,
a cada duas linhas o autor referendava o que dizia com uma citação da pesquisa levada a
cabo por Orlando da Costa Ferreira.
2
Herman Lima e sua história sobre caricatura (em
quatro volumes) é outra referência constante. Mas o livro, de 1963, está esgotado. Um
exemplar em excelente estado foi encontrado pelo aluno João de Freitas num tradicional
sebo de São Paulo, que fechava as portas. Adquiri os quatro volumes pela metade do
preço que, meses depois, vi em oferta numa feira do Rio de Janeiro. Muitas das pérolas
que consegui foram retiradas desses livros.
Resta ainda um crédito: o início e a cartografia básica desse levantamento, com o
mapeamento de partida da pesquisa, são resultado do acesso que tive (por um favor
especial da então responsável pelo Departamento de Documentação da Editora Abril,
Suzana Camargo) à pesquisa original do livro A revista no Brasil – editado pela Editora
Abril na comemoração de seus 50 anos, em 2000. Essa pesquisa foi fundamental para a
primeira etapa do trabalho, ainda como pesquisador do Centro Interdisciplinar de
Pesquisas da Cásper Líbero. Tive acesso às duas versões da pesquisa, a entregue em 1991
(creditada para Iconographia – Pesquisa de Texto, Imagem e Som S/C Ltda) e a de 1999
(creditada para Emporium Brasilis Memória e Produção Cultural). É a esta que nos
referimos nas citações de texto.
Com esse material anotado, parti para a etapa intermediária do trabalho: a pesquisa
e leitura das revistas originais. Esse trabalho foi realizado em quatro viagens até a
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro – dias seguidos sentado a uma mesa com leitor de
microfilme, tomando nota e, depois, relacionando páginas para serem digitalizadas e
enviadas em CD. Houve tentativas de realizar a pesquisa em São Paulo – mas além das
dificuldades que encontrei em algumas instituições, como a Biblioteca Mindlin, e o fato de
no Rio estar disponível praticamente todo o acervo que interessava, a decisão foi
concentrar a pesquisa no Rio. Mesmo com duas greves intermediando os trabalhos, o
resultado foi surpreendentemente bom.
Com as cópias, passei semanas lendo e anotando, trocando as semanais de
informação dos dias atuais pelas semanais ilustradas do século XIX. Em leituras cruzadas
busquei contextualizar fatos (lendo livros de história, como a já citada Historia da vida
privada no Brasil, ou obras como A viagem incompleta, de Carlos Guilherme Mota).
Muita história e muita anotação ficaram de fora no trabalho final de edição. Como
critério de análise, escolhi dentre as revistas de um período aquelas que haviam inovado
ou apresentavam alguma proposta diferente – para isso me servi das pesquisas realizadas
por encomenda da Editora Abril e das análises de Orlando Costa Ferreira, Herman Lima e
Joaquim Marçal Ferreira de Andrade (pesquisador e funcionário da Biblioteca Nacional,
Joaquim critica algumas informações do livro da Abril com o conhecimento de quem checou
no acervo da BN). Sempre que possível, busquei analisar o número 1 da publicação e,
aleatoriamente, algum número posterior – o sétimo ou vigésimo. O número 1 costuma ser o
cartão de visitas, a proposta do que a revista pretende ser. Um número 7 ou 17 mostra o que
esse periódico, passada a euforia do lançamento, conseguiu ser realmente.
O resultado dessas leituras está nos próximos sete capítulos.
O capítulo 1 realiza a discussão introdutória da formação do leitor e do brasileiro –
imprensa e nacionalidade nascem juntas no nosso caso. Esse nascer se dá no século XIX,
17
o século da ciência e do progresso. Discute-se ali o olhar do outro na formação da nossa
identidade. Como ensinam Jancsó e Pimenta, nos descobrimos brasileiros pois foi assim
que a burocracia estatal portuguesa nos catalogou (JANCSÓ E PIMENTA, 2000: 136). O
leitor é ainda uma questão não resolvida entre nós, é público a ser criado. E o começo se
deu de forma lenta. Para criar revistas era preciso criar revisteiros e público que
consumisse as publicações.
O capítulo 2 contextualiza brevemente o período que vai da primeira revista lançada
na Bahia, As Variedades – e de que não restou um exemplar sequer, apenas alguma imagem
em livro –, às publicações inaugurais, espécie de periódicos apostilados para formação dos
alunos das academias instaladas quando o príncipe regente João VI chegara ao Brasil. O
início de trabalhos mais profissionais de impressão é abordado no perfil do francês Pierre
René François Plancher de la Noé, o criador do Jornal do Commercio. O Patriota, os Annaes, O
Espelho Diamantino, O Beija-Flor e a primeira novela ou folhetim nacional, A Periquita,
completam o capítulo.
No capítulo 3 se faz a análise das publicações surgidas entre 1830 e 1850 – com a
abdicação de Pedro I (1831) o país vive o período das regências até a maioridade de Pedro
II, o brasileiro. Vê surgir revistas de associações, como o Auxiliador da Indústria Nacional, a
Revista de História e Geografia, as publicações das Academias de Direito (as escolas de
jornalismo da época) e a introdução da imagem nas revistas (resultado dos desenhistas e
ilustradores preparados pela Academia de Belas Artes, criação da missão francesa):
Lanterna Mágica, de Araújo Porto-alegre (aluno de Debret), Museo Universal e as Marmotas,
de Paula Brito – o primeiro impressor e editor brasileiro.
O capítulo 4 focaliza revistas do período de 1850 a 1865. Com a proibição do comércio
de escravos, os navios que antes voltavam carregados de mão-de-obra africana agora trazem
bens de consumo, como o piano – e revistas ilustradas. Impressor alemão, professor de
desenho, Henrique Fleiuss lança uma publicação semanal ilustrada com o modelo que será
seguido até o final do século: A Semana Illustrada. Surge a primeira revista feminina escrita por
jornalistas mulheres, O Jornal das Senhoras. Em São Paulo, um jovem italiano, Angelo Agostini,
faz história com duas revistas de curta duração: O Diabo Coxo e o Cabrião.
O capítulo 5 se detém na análise das semanais ilustradas surgidas entre 1866 e 1875,
nas pegadas do modelo do periódico de Fleiuss: Bazar Volante, Vida Fluminense, O Mosquito, O
Mequetrefe – e a primeira geração de caricaturistas nacionais: Candido Aragonez de Faria,
Pinheiro Guimarães, Flumen Junius. Além do português Raphael Bordallo e dos italianos
Luigi Borgomainerio e Angelo Agostini.
O capítulo 6 analisa o auge da imprensa semanal, focalizando a Revista Illustrada, de
Angelo Agostini – maior sucesso editorial da época – O Besouro, de Bordallo, com a
primeira fotorreportagem da nossa imprensa. E o final da Semana Illustrada, de Fleiuss.
O capítulo 7 encerra a pesquisa com a análise das publicações que marcaram o final
de uma época: A Estação, A Mensageira, Don Quixote, A Cigarra, a Bruxa e a Revista da Semana.
Algumas reflexões marcam as conclusões. E segue-se a bibliografia – uma relação de
livros ou artigos que contribuíram para a pesquisa, não se buscou pirotecnia.
Antes de passar para o primeiro capítulo, duas observações. A primeira é quanto à
grafia dos textos de época: há citação de trechos, alguns longos, de artigos, editoriais, e até
a reprodução de um folhetim, publicado em dois números da revista Beija-Flor. Era
possível recriar ou fazer a transliteração para o português atual, mas decidi manter a grafia
da época, pelo sabor da “descoberta”. Claro, no começo causa estranhamento ler publicão
por publicam, mãi por mãe, tinhão por tinham. Manter a grafia original abre também a
possibilidade de acompanhar o desenvolver do uso do idioma (as citações das revistas
ficam mais claras à medida que o século avança), além de perceber alguns vacilos:
“literatura” se escrevia desse modo em 1812, no subtítulo da nossa primeira revista;
depois passa a ser “litteratura”. Brasileiras era grafada com “s” no título do Espelho das
Brasileiras, de 1831, e na capa da Illustração Brasileira, de 1854, mas aparece como
Apresentação
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
18
Notas da Apresentação
1 Atitude semelhante de apego ao passado se revela em co-
mentários de alguns professores que afirmam, por exemplo,
que os estudantes de hoje lêem pouco, quando o correto
talvez fosse dizer que usam outros suportes, além da leitura,
para se apropriar de conhecimento. De fato, sei que meus
alunos hoje lêem muito mais do que eu lia em meu tempo de
estudante – e sempre fui leitor contumaz.
2 Orlando da Costa Ferreira faleceu em 1975, seu projeto ficou
inacabado, mas o livro foi publicado pela Edusp: há doze
exemplares dessa obra, de 1994, na Biblioteca da Cásper
Líbero.
“brazileira” nas páginas internas. E Illustração do Brazil, noutra revista.
Ainda no campo das grafias, o artista português Raphael Bordallo Pinheiro assinava
assim o seu nome – que depois tem a grafia modernizada para Rafael Bordalo. Para não
usar duas grafias neste trabalho, decidimos uniformizar para o modo como ele assinava:
Raphael Bordallo, mesmo em citações de autores (como Herman Lima) que o fazem ao
modo atual.
19
Capítulo 1
Igualdade e diferença:
formação do leitor
e do brasileiro
A interpretação, no século XVI, ia do mundo (coisas e textos ao mesmo tempo)
à Palavra divina que nele se decifrava; a nossa, pelo menos a que se
formou no século XIX, vai dos homens, de Deus, dos conhecimentos
ou das quimeras às palavras que os tornam possíveis; e o que ela
descobre não é a soberania de um discurso primeiro,
é o fato de que nós somos, antes da mais íntima de nossas palavras,
já dominados e perpassados pela linguagem.
Michel Foucault, As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pág. 315.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
20
1.1. No século do progresso, o fascínio pelo outro
Se o século XVIII ficou conhecido como “o século das luzes”, o que lhe seguiu é
festejado como o “século das ciências”. De fato, o século XIX viu-se a si próprio como um
momento especial da história da humanidade. Um período em que os homens chegavam
ao topo na longa caminhada pelo saber iniciada com o Renascimento. A visão de mundo
do homem ilustrado dessa época, que já se reformulava desde os tempos de Copérnico,
conheceu saltos consideráveis. Assim, os trabalhos de Charles Darwin (1809-1882), com a
teoria da evolução das espécies, revolucionaram a biologia. O homem deixava de se ver
criado à imagem e semelhança de Deus para se entender como o elo de uma cadeia em
constante progresso. O mundo da física já não era mais povoado por mitos religiosos, mas
apresentava forte conteúdo humanista e tecnicista: o homem se entendia senhor e dono do
seu próprio destino e responsável por seus atos, pensamentos e desejos.
Nesse marco em que o mundo assiste deslumbrado à sucessão de invenções e de
novidades tecnológicas trazidas pelo progresso, Sigmund Freud (1856-1939) publica seus
primeiros estudos sobre a psicanálise, mudando também a concepção que o homem tinha
sobre si mesmo.
Contrariamente ao que regia o mundo pré-Copérnico, esse período que precede a
modernidade dominava a linguagem da ciência. E esta seguia um continuum de descobertas
e de transformações, tanto na física e na química, quanto na mecânica, na botânica, na
medicina, na matemática – e sempre com o foco na aplicabilidade desse conhecimento que
se adquiria. O saber estava agora a serviço do homem e do bem-estar da humanidade: os
avanços da física, para ficar apenas em um exemplo, se traduziam na iluminação elétrica
das ruas, proporcionando conforto e novas possibilidades de convivência e de
aproveitamento do tempo.
Foi assim que se deu a concretização do antigo sonho da fotografia, tornado possível
já na primeira metade do século XIX, graças ao desenvolvimento das pesquisas e
experimentos aplicados na área da química. Rapidamente, à heliografia de Niepce e à
daguerreotipia de Daguerre se sucederam o calótipo de Talbot e a fotografia de Hercule
Florence. E o “lápis da natureza”, algo imaginado desde a câmara obscura do
Renascimento, se concretizava com a fotografia registrando o “real”. Mais adiante, poucas
décadas depois, o fenacistocópio, inventado pelo belga Joseph-Antoine Plateau em 1832,
evoluía para o praxinoscópio do francês Émile Reynaud e para o cinetoscópio de Thomas
Alva Edison, em 1890, chegando ao cinematógrafo dos irmãos Lumière em 1895.
A invenção e o aperfeiçoamento da máquina a vapor, das ferrovias, dos correios, do
telégrafo vieram encurtar as distâncias e mudar o modo de ver o mundo. A sucessão de
conquistas era vertiginosa. Assim, em 1814 o jornal londrino The Times adota a prensa a
vapor patenteada por Frederik Koening, que permite imprimir mil exemplares por hora,
alterando os horários de fechamento e proporcionando maior atualidade às notícias
publicadas. Em 1830 é inaugurada a primeira linha ferroviária ligando Manchester a
Liverpool. Em 1839 o navio Sirius completa a primeira viagem transatlântica impulsionada
a vapor, completando o trecho Bristol–Nova York em 18 dias e 10 horas. Em 1835 é
fundada a agência de notícias Havas, na França. Em 1838, Samuel Morse patenteia na
Academia de Ciências de Paris o seu código de traços e pontos, que será a base das
transmissões telegráficas, permitindo a transmissão de até 40 palavras por minuto. Em
1840 a Grã-Bretanha adota o selo postal, imprimindo nova vitalidade às comunicações por
correio, mediante uma tarifa pré-paga. Em 1849 o barão alemão Julius Reuters funda em
Londres sua companhia de despachos noticiosos telegráficos. Em 1851 é feita a ligação
telegráfica por cabo submarino no Canal da Mancha, ligando a Grã-Bretanha e a França e
o continente europeu. No Brasil, em 1852, é inaugurada a primeira linha telegráfica,
ligando o Palácio Imperial na Quinta da Boa Vista ao Quartel General no Campo de
Santana. Em 1866, após dez anos e quatro tentativas, é completada a ligação telegráfica
21
submarina entre a Europa e os Estados Unidos. Em 10 de maio de 1869 é inaugurada a
ligação ferroviária entre Nova York e San Francisco, com a primeira ferrovia
transcontinental ligando a costa leste à costa oeste. No mesmo ano, com música de Verdi,
é inaugurado o Canal de Suez, ligando o Mediterrâneo ao Mar Vermelho, revolucionando
as comunicações marítimas entre o Ocidente e o Oriente. Em 1876, durante a Exposição
de Filadélfia, comemorando os cem anos da Independência americana, o escocês-
americano Graham Bell faz demonstrações do telefone. Até no Brasil, um padre jesuíta, o
gaúcho Roberto Landell de Moura, conseguia, em 1894, transmitir sinais e sons por meio
de ondas, num esboço do que será o rádio patenteado anos depois por Marconi. (Quase
todos esses dados são copilados do cap. 4, “Processos e padrões”, escrito por Asa Briggs,
no livro Uma história social da mídia (BRIGGS&BURKE, 2004).
Embora fossem as oportunidades de novos negócios o maior propulsor de muitas
descobertas ou empreitadas
1
, como a epopéia, de uma década, do cabeamento submarino
do Atlântico para as transmissões telegráficas (COSTELLA, 1978: 121-126), o certo é que
as comunicações viviam e se beneficiavam desse momento. Assim, a máquina a vapor, que
permitia a mecanização da produção têxtil, também possibilitava a impressão de altas
tiragens de periódicos. E a eletricidade, o telégrafo, o telefone, o rádio e a fotografia
mudaram o modo e o patamar da comunicação humana. A dimensão desse otimismo
pode ser conferida na irônica crônica que Olavo Bilac publicou na Gazeta de Notícias, do
Rio de Janeiro, em 13 de janeiro de 1901, profetizando a supremacia da televisão: “É
provável que o jornal-modelo do século XX seja um imenso cinematógrafo, por cuja tela
vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida cotidiana”
(BILAC, 1996: 166).
Nas palavras de Armand e Michèle Mattelart, centrada de início na questão das
redes físicas, e projetada no núcleo da ideologia do progresso, a noção de comunicação
englobou, no final do século XIX, a gestão das multidões humanas. “O pensamento da
sociedade como organismo, como conjunto de órgãos desincumbindo-se de funções
determinadas, inspira as primeiras concepções de uma ‘ciência da comunicação’”
(MATTELART, 1999: 13). Escrevem os autores:
O final do século XIX é fértil em discursos utópicos. O imaginário de uma técnica
salvadora ganha contornos mais específicos. O geógrafo anarquista russo Piotr Kropotkin
e o sociólogo escocês Patrick Geddes vêem nas redes elétricas e suas propriedades
descentralizadoras a promessa de uma nova vida comunitária, a reconciliação entre o
trabalho e o lazer, o trabalho manual e o intelectual, a cidade e o campo. [...] A máquina
estará presente para evitar à humanidade qualquer tipo de trabalho desagradável e peno-
so. Em 1888, Edward Bellamy imaginou uma sociedade em que as grandes indústrias
fossem nacionalizadas e o rádio, “esse telefone coletivo” cuja invenção ele previu, posto
a serviço de todos no “exército industrial” que conduzirá à sociedade de abundância
comunitária (MATTELART, 1999: 27).
O mundo do século XIX celebra esses avanços, confiante nas bondades da ciência e
aprofundando seu distanciamento do teocentrismo, a sistematização realizada pela
Escolástica em que Deus ocupara o centro do universo. Essa visão místico-religiosa que
fundamentou a Idade Média acabou dando lugar a uma nova ordem, que se baseia em
um panorama mecanicista e determinista em que a ciência parecia cada vez mais ser o
ápice do saber e o caminho mais viável para o desenvolvimento humano. O lema
positivista da ordem e progresso que borda a bandeira brasileira é tradução desse
momento de confiança no lado bom do saber humano que marcou aquele século.
Tão grande foi essa crença que ao chegar ao final dos anos 1800 pensava-se que
havia muito pouco ainda para ser descoberto, em termos de ciência. E que quase tudo
o que se referisse à natureza poderia ser explicado com base nas ciências
desenvolvidas até então. Afinal, novas áreas como a termodinâmica, o
eletromagnetismo e a óptica encontravam-se desenvolvidas para dar conta da
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
22
explicação de quase todos os fenômenos conhecidos até então, e o “pouco” que não se
sabia explicar acreditava-se que seria resolvido em um futuro próximo com base nas
idéias centrais desenvolvidas até aí. Agora o homem ocupara o lugar do rei, como diz
Foucault em As palavras e as coisas:
Quando a história natural se torna biologia, quando a análise das riquezas se torna
economia, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia e se desvanece
esse discurso clássico onde o ser e a representação encontravam seu lugar-comum, então,
no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, o homem aparece com sua
posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que reconhece: soberano submis-
so, espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe desig-
navam Las meninas, mas onde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída (FOU-
CAULT, 1995: 328).
Ao chegar ao seu final, o “século das ciências” preparou um marco para celebrar
esse progresso. Esse marco foi a Exposição Universal de Paris, um fecho em grande estilo.
Essa mostra, realizada numa cidade já iluminada pela eletricidade, apresentava as novas e
grandes conquistas tecnológicas trazidas pela ciência. Montada no Campo de Marte, ao
lado da ainda controvertida Torre Eiffel
2
, a Exposição de 1900 esteve aberta durante sete
meses, sendo aplaudida por 47 milhões de visitantes curiosos por conferir tudo o que o
século aportara para o progresso da humanidade. Emblematicamente, numa quinta-feira,
dia 19 de julho daquele ano, Paris havia inaugurado o sistema metropolitano, o “metrô”,
confirmando que definitivamente a ciência viera para melhorar a qualidade de vida das
pessoas
3
.
Como conseqüência ou manifestação dessa vontade de ter o mundo sob controle, o
homem queria esmiuçar e mapear todos os recantos da terra, concretizando uma nova
catografia dos saberes. É nesse período que David Livingstone ou Roald Amundsen, entre
tantos outros, escrevem suas sagas. Livingstone se embrenha no coração da África em
busca das nascentes do rio Nilo e leva o título de primeiro europeu a ver o Lago Ngani
(1841) e as cataratas de Vitória (1855). O norueguês Amundsen sai em conquista dos
Pólos sul e norte, toma posse da Groenlândia. Há uma sede de conhecimento e de busca e
descoberta pelos mais recônditos cantos do planeta. Como se fosse urgente colocar o
carimbo: aqui pisou o homem, algo que faz lembrar a dança do astronauta americano ao
pousar na Lua, um século depois.
De algum modo, essa busca por descobertas e conquistas que toma conta desse
século das ciências e do progresso repete aquele outro momento febril, o das grandes
navegações que haviam marcado a passagem do século XV para o XVI. E se antes se
escreveram as sagas dos descobridores Cristóvão Colombo, Bartolomeu Dias, Vasco da
Gama ou Pedro Álvares Cabral, agora é a vez dos viajantes cientistas, exploradores e
pesquisadores. São estudiosos e artistas como Friedrich Heinrich Alexander von
Humboldt, o barão Georg Heinrich von Langsdorff, Auguste de Saint-Hilaire, Richard
Francis Burton, Johann Baptiste von Spix, Carl Friedrich Phillipp von Martius, Jean
Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas, entre tantos outros, que percorreram os novos
continentes com o desafio de pesquisar, cartografar, catalogar, aquarelar e registrar as
imagens dos habitantes e seus costumes e colher amostras da fauna e da flora, definindo
os contornos da geografia dos “novos mundos”.
A descoberta de novos “mundos” já havia obrigado os europeus a repensarem,
três séculos antes, sua própria cultura e rever as bases sobre as quais haviam erguido sua
visão de mundo, ensina a professora Ana Maria de Moraes Belluzzo. Nos três volumes
da coleção O Brasil dos viajantes, ela e sua equipe registram preciosas amostras desse
imaginário descoberto ou engendrado ao longo dos séculos que se seguiram aos
descobrimentos. Assim, já em 1505 uma xilogravura aquarelada ilustra um trecho da
carta Novus mundus, de Américo Vespúcio
4
, publicada em tradução alemã na cidade de
Augsburg: um grupo de oito silvícolas, quatro homens e quatro mulheres, com duas
23
crianças compondo a cena, vestidos com penas na cabeça, nos pés e nos braços,
confraterniza numa festa canibalesca, devorando pedaços de pernas e de braços
destroçados. Ao fundo, o mar e duas caravelas sugerem o olhar “do outro”
(BELLUZZO, 1994, vol.1: 19).
Nesse mesmo ano 1505, na Sé de Viseu, na Beira Alta portuguesa, a pintura
Adoração dos Magos mostrava a figura de um índio brasileiro, moreno, com cocar de
penas à cabeça, contrastando com os reis a homenagear o Menino Deus da tradição
cristã (BELLUZZO, 1994, vol.1: 23). A professora Ana Maria Belluzzo levanta
hipóteses sobre essa tela, uma das dezesseis restantes das dezoito originais que
compunham o retábulo da capela-mor da catedral, atualmente em exibição no Museu
Grão Vasco, na cidade de Viseu. O índio no centro do quadro seria um quarto rei
mago – após o reconhecimento dos quatro continentes pela Europa? Seria o índio um
emissário que vem de longe, trazendo seu testemunho de fé na verdade cristã? Poderia
o pintor pensar que estava congregando o habitante das terras distantes com os
valores da cultura européia?
Se o recurso utilizado podia parecer-lhe [refere-se ao pintor] um procedimento humanizante,
era efetivamente a completa negação da cultura indígena e a afirmação da necessidade
de catequizar os selvagens, introduzindo-os no universo de valores do cristianismo. A
acolhida e assimilação do novo personagem, nos termos de uma relação de identidade
pela qual o índio é considerado igual, teriam sempre o efeito de descaracterizá-lo
(BELLUZZO, 1994, vol.1: 22).
Capítulo 1
Xilogravura aquarelada do livro Novus mundus, de Américo Vespúcio: Augsburg, 1505.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
24
A Adoração dos Magos, de 1505: um índio na Sé de Viseu.
25
A seguir a autora analisa outro quadro, O inferno, de autor anônimo da escola
portuguesa, também da primeira metade do século XVI. Nessa obra, exposta no Museu
Nacional de Arte Antiga de Lisboa, na Rua das Janelas Verdes, e que faz lembrar as
pinturas de Jerônimo Bosch, é mostrado um grupo (de umas dezessete pessoas) de
homens e mulheres sofrendo os castigos por seus pecados. Assim, a mulher vaidosa tem
seus cabelos queimados, o maledicente tem sua língua arrancada, e ao guloso uma
estranha figura mete, goela abaixo, com a ajuda de um funil, excrementos de animais. Fica
evidente que se punem os prazeres do corpo e da sexualidade – ainda que a plasticidade
do nu exibido na tela seja em si uma contradição. Num caldeirão colocado no centro da
pintura, cinco frades estão a arder sobre o fogo. No fundo do quadro, num plano mais
elevado, um diabo sentado sobre um trono descortina toda a cena que nos é mostrada.
Percebemos então que a figura diabólica, que impera no trono, possui um cocar
indígena, da mesma maneira que outro capeta com tanga de penas, que carrega o
corpo de um religioso pecador. [...] A mescla do demônio com o índio – ambas
figuras do medo – indica que o temor do desconhecido também se misturou com a
condenação dos costumes indígenas, de acordo com a pregação dos missionários
portugueses. [A tela] ao mostrar o demônio com atributos do indígena americano,
O demônio deste quadro
O inferno, de autor anônimo
do século XVI, é representado
com um cocar indígena.
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
26
provoca inversão de sentido, fazendo com que o índio passe a ter os atributos do
demônio. Da mesma forma, não se pode deixar de assinalar outras áreas de contami-
nação, aderências, transferências de sentido e empréstimos que ecoam no quadro. É
o caso da punição dos corpos no inferno e as práticas canibais dos índios brasileiros
(BELLUZZO, 1994, vol.1: 24-25).
Se na representação da adoração dos magos o índio aparecia como um príncipe
que vem de longe, agora na tela do inferno ele se parece com o demônio. A autora
lembra, citando Foucault em As palavras e as coisas, que as figuras de semelhança e
dessemelhança, o mesmo e o outro, tiveram um papel construtivo e orientaram a
interpretação no pensamento europeu a partir de então. As duas pinturas citadas
apresentam o índio de fé cristã (o bom selvagem), à semelhança dos europeus, e os
índios diabólicos e canibais, diante dos europeus pecadores – figuras derivadas dessa
relação social de igualdade e de diferença.
Trezentos anos depois, já entrado no século XIX, com os pesquisadores-
exploradores e viajantes, há uma retomada de leituras e releituras por esse “olhar do
outro”. Esse olhar lançado por outra cultura sobre a terra e o índio os reconstrói enquanto
objetos do desejo e da cobiça. “Um misto de curiosidade e de conhecimento, que
corresponde a intenções de posse e de conquistas, e um sentimento oscilando entre atração
e repulsa, com relação ao índio americano, traduzem as ocorrências históricas em versões
fantásticas” (BELLUZZO, 1994, vol. 1: 88). Fomos vistos, olhados por esses “outros” que
deixaram registros de cenas, a magnificência da floresta, o silvícola repousando na oca, o
vendedor ambulante nas ruas do Rio de Janeiro, a mulata e o mestiço, imagens e situações
de rua. É ainda Belluzzo que escreve:
Não somos os autores e nem sempre os protagonistas. Fomos vistos, não nos fizemos
visíveis. Não nos pensamos, mas fomos pensados. Ainda assim, a contribuição dos via-
jantes forjou uma possível memória do passado colonial e povoa nosso inconsciente
(BELLUZZO, 1994, vol.1: 13).
Entre os muitos viajantes que deixaram esses registros, escreveram e desenharam
sobre o Brasil, fiquemos com Richard Francis Burton e Auguste Saint-Hilaire. Um dos
primeiros “orientalistas”, Burton (1821-1890) representa bastante esse momento do século
em que viveu: falava 25 línguas ou dialetos, escreveu numerosos livros de viagens,
tratados sobre esgrima e falcoaria, além de cometer a proeza de traduzir obras como as Mil
e uma noites e o tratado Kama Sutra para o inglês, trabalhos por muitos anos considerados
clássicos (hoje vistos como empreitadas um tanto superficiais). Em 1856, Burton fez parte
da expedição de John H. Speke em busca da nascente do rio Nilo. E, enquanto Speke
descobria o lago Vitória, Burton chegava ao lago Tanganica. Depois viajou para os
Estados Unidos para conhecer e escrever sobre os mórmons. Em 1864 foi nomeado
cônsul britânico na cidade paulista de Santos. Inquieto, Burton passou o tempo que pôde
viajando pelo país, e dessas andanças publicou o relato Viagem do Rio de Janeiro a Morro
Velho e Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.
Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) foi um dos primeiros estudiosos europeus a
percorrer os territórios do Brasil Colônia, graças à mudança da Corte portuguesa,
instalada no Rio de Janeiro desde 1808. Durante seis anos, de 1816 a 1822, visitou as
regiões do centro-sul do Brasil, recolhendo pelo caminho um farto acervo botânico e
registrando suas andanças num diário de viagem, publicado mais tarde na França em
diversos volumes. Entre descrições pitorescas, comentários de profunda benevolência (o
clima é sempre descrito como “doce”, por exemplo, e as mulheres paulistanas são
consideradas muito bonitas), vão-se destilando estereótipos, marcando as relações eu-
outro, e os discursos da dominação são vieses que a leitura desses diários de Burton e de
Saint-Hilaire nos mostra. Citemos alguns exemplos, tirados do livro Viagem à província de
São Paulo, do viajante francês.
27
À época da minha viagem, a compaixão pelos criminosos tinha sido levada ao último
grau entre os brasileiros, cujos sentimentos são talvez mais vivos e mais passageiros que
os nossos e cujos costumes, pelo menos no estado habitual, são geralmente mais relaxa-
dos. [...] Não há uma única pessoa, nas camadas inferiores da sociedade, que não seja
capaz de ajudar de bom grado um criminoso a escapar das mãos da justiça. [...] Enquan-
to eu analisava as plantas e tomava notas, um homem entrou no rancho e passou várias
horas a me observar sem dizer uma palavra. Desde Vila Boa até Rio das Pedras eu tive
diante de mim uma centena de exemplos de homens indolentes e estúpidos como esse.
Essa gente, embrutecida pela ignorância, pela ociosidade e pelo isolamento em que se
acha de seus semelhantes e provavelmente pelo gozo de prazeres prematuros, não pensa
em nada, apenas vegeta como as árvores ou o capim dos campos (SAINT-HILAIRE,
1976: 77 e 85).
A caminho de São Paulo, o viajante se hospeda nos paradores de beira de estrada,
que existiam então, e freqüentemente se queixa da sujeira e dos “bichos-do-pé” (SAINT-
HILAIRE, 1976: 94). Logo pára em Campinas e anota:
O dia seguinte ao da minha chegada a Campinas era um domingo. Vi passar diante do
rancho um grande número de agricultores, homens e mulheres, que chegavam a cavalo
para a missa. A cidade se encheu de gente. Ali, como em todo o interior do Brasil, as
mulheres montam a cavalo de modo semelhante ao dos homens. [...] Durante a missa, as
mulheres de Campinas, como as do litoral, envolviam a cabeça e o corpo num longo
manto de tecido preto (SAINT-HILAIRE, 1976: 111).
Instalado finalmente na cidade de São Paulo, o viajante comenta a qualidade das
moradas dos habitantes mais graduados, tão bonitas por fora quanto por dentro:
O visitante é geralmente recebido numa sala muito limpa, mobiliada com gosto. As
paredes são pintadas de cores claras e as das casas antigas são ornadas com figuras e
arabescos. [...] Comumente, também, as salas são ornadas de gravuras, as quais, entre-
tanto, são constituídas pelo refugo das lojas européias. Era tão pouca a noção de arte do
povo do lugar, à época da minha viagem, que eles nunca deixavam de me chamar para
admirar suas obras-primas (SAINT-HILAIRE, 1976: 128).
Compara a cidade com a capital da colônia, o Rio de Janeiro. Mas o que começa
com elogio termina com recriminação, quando a compara com Paris:
Em São Paulo não se vêem negros percorrendo as ruas, como no Rio de Janeiro, carre-
gando mercadorias na cabeça. Os legumes e outros pequenos produtos são vendidos por
mulheres negras numa rua chamada Rua da Quitanda [...] Não devemos esperar encon-
trar nessas lojas a limpeza e a ordem. São todas escuras e enfumaçadas. O toucinho, os
cereais e as carnes ficam ali atirados de qualquer jeito, misturados uns com os outros, e
os lojistas ainda estão muito longe de possuir a arte de nossos comerciantes de Paris, que
sabem dar aparência apetitosa até aos mantimentos mais grosseiros (SAINT-HILAIRE,
1976: 133).
Ao olhar do visitante, se a natureza merece sempre o elogio, a conduta humana é
reprovada. Como quando fala de médicos e de parteiras:
Todos os que então praticavam a cirurgia na cidade de São Paulo e nas suas redondezas
eram homens sem educação e sem estudo, sem falar nas parteiras, que eram ainda mais
ignorantes [...] faziam com que a mulher se sentasse sobre uma medida quadrada deno-
minada meio-alqueire. A mulher era segura por várias pessoas, que a sacudiam para
facilitar a operação, enquanto a parteira se colocava embaixo e segurava a criança (SAINT-
HILAIRE, 1976: 135).
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
28
Durante sua permanência na cidade, o visitante é convidado para jantares, festas e
apresentações de teatro. Sobre os atores diz que “eram artesãos, em sua maioria mulatos, e
as atrizes, prostitutas. O talento destas se harmonizava perfeitamente com seu grau de
moralidade” (SAINT-HILAIRE, 1976: 144). Observador atento, ele nota a ausência da
figura feminina nas reuniões a que compareceu, ambiente aparentemente reservado apenas
aos homens:
Durante minha permanência na cidade conversei com as principais autoridades locais,
fiz e recebi muitas visitas. Afora isso, porém, não fui convidado para nenhuma reunião
social, nenhum jantar e não conversei com nenhuma senhora. Em certa ocasião, ao
visitar uma das pessoas mais importantes da cidade, cheguei à sua casa no momento em
que ia sentar-se à mesa. O homem me convidou para partilhar a refeição, mas comemos
sozinhos. Sua mulher não apareceu (SAINT-HILAIRE, 1976: 136).
Terminado seu périplo pelas terras paulistas, o viajante se prepara para seguir viagem
para o sul, mas seu estoque de dezoito malas não dava conta das amostras de plantas e de
minerais que coletara até então. A saga da construção de um par de canastras (jogos duplos
de cestos para serem carregados por burros, um de cada lado) ocupa cinco páginas do livro:
Todos nos responderam que havia em São Paulo bons artesãos, mas que nenhum deles
trabalhava com rapidez e era homem de palavra [...] Parece que em nenhum outro lugar,
a não ser em São Paulo, existem artesãos tão preguiçosos, tão incorretos e, talvez mesmo,
tão pouco honestos. [...] Em sua maioria descendentes de mamelucos, eles haviam de
resto conservado toda a inconstância da raça indígena, e todos os outros que iam che-
gando adotavam logo os mesmos costumes (SAINT-HILAIRE, 1976: 146).
O cientista, pesquisador, explorador ou desenhista europeu que nos visita, perscruta,
toma nota – recolhendo amostras que irão enriquecer os acervos de muitos dos museus que
se criavam então
5
– é a melhor prova de que, se o homem do século XIX queria conhecer os
limites e os detalhes mínimos do mundo, também queria conhecer a si e ao outro. Não por
acaso, foi também nos últimos anos desse século que se consolidaram muitas fronteiras
territoriais (incluídas as brasileiras) e chegou ao final o longo processo de constituição de
algumas nacionalidades européias, com a unificação da Itália e da Alemanha. É justamente
nesse “século das ciências” que se plasmam e ganham os últimos contornos as identidades
nacionais e, sobretudo, quando se dá a gestação da identidade brasileira.
É sobre esse olhar do outro, do viajante letrado europeu que nos visita e nos
descreve com um misto de benevolência e surpresa, mas numa visada em que também
transparecem os discursos encobertos do estigma e dos estereótipos
6
, que começamos a
nos ver e a constituir as “nossas identidades”. Ou seja, a criar a visão sobre nós mesmos. E
aqui o uso da palavra “identidades” no plural não é casual: adotamos a conceituação do
historiador José Murilo de Carvalho de que é melhor falar em identidades para não usar a
estereotipia da “identidade nacional”:
Escrevi diversos artigos sobre como foi construída nossa identidade
7
. O meu ponto princi-
pal era que isso é uma construção, formulação que é dada de cima para baixo. Mas confes-
so que acabei cada vez mais me desinteressando por essa visão. Eu acreditava que era
importante, mas agora vejo de modo distinto. Em primeiro lugar, há uma imensa diversi-
dade nessa identidade. Na verdade, não temos uma só identidade. O que é a imagem do
brasileiro no exterior? É a imagem estereotipada do carioca, da boa vida etc. Basta sair do
Rio que se desmonta essa idéia. Não existe uma única identidade brasileira. Há até um
historiador inglês, Peter Burke, que prepara uma biografia do Gilberto Freyre, falando
dele como um definidor da natureza da brasilidade. Calma. Aquele Brasil descrito por
Gilberto Freyre, o da casa grande e dos mocambos, não tem nada a ver com o Brasil de
Minas onde vivi, não tem nada a ver com o Brasil de São Paulo (CARVALHO, 2006: 19).
29
Nesse ponto de partida da nossa formação identitária fica uma lacuna. Como se
sabe, os viajantes muitas vezes levavam de volta consigo alguns índios “entre as peças de
coleção”. Assim, o especialista em mineralogia Johann Emmanuel Pohl levou para a
Áustria, em 1821, juntamente com uma coleção mineralógica e botânica, um casal de
índios botocudos, que despertou a atenção dos europeus, notadamente pela marca labial
que caracteriza essa tribo (BELLUZZO, 1994, vol. 2: 109). Já o príncipe Maximilian von
Alexander Philip von Wied-Neuwed quando retorna para a Alemanha leva em sua
companhia Quack, um índio botocudo que o havia acompanhado durante a viagem pelo
Brasil (BELLUZZO, 1994, vol. 2: 99). Por outro lado, nos relatos de viagem de Mawe e
Foster, há uma curiosa menção à estranheza causada pelos ingleses em meio à população
indígena, que não está habituada aos homens claros e loiros. Ou seja, descobre-se que os
viajantes europeus também excitam a curiosidade dos habitantes do Brasil. E sobre esse
impacto causado do lado de cá não se deixou documentação.
Desequipados para realizar registros do encontro com o homem branco, de acordo com
critérios valorativos que pudessem facultar uma visão em contracampo – como se diz no
jargão cinematográfico –, resta, como se sabe, um acervo de um único e exclusivo ponto
de vista (BELLUZZO, 1994, vol. 2: 95).
Ou seja, jamais ficaremos sabendo o que Quack, o índio botocudo levado para a
Europa pelo príncipe Maximilian, sentiu ou percebeu do entorno europeu, como se
percebeu sendo exposto e exibido como peça viva do acervo desse intrépido viajante. Ou
o que as tribos ou as populações dos vilarejos visitados pelos estrangeiros entenderam ou
observaram da passagem desses “outros” que os observavam e que sobre seus costumes
deixaram tantos registros. O ponto de vista que ficou foi apenas o do estrangeiro. O
nativo observado não teve meios de registrar o que fora o seu olhar.
1.2. O olhar do outro na formação identitária
O Brasil começa sua caminhada em busca de suas identidades em 1808, bem no
início do século XIX, com a chegada da família real portuguesa, em fuga das tropas
napoleônicas. E mesmo a partir da data formal da independência, 1822, não existe ainda a
consciência do que é “ser brasileiro”. Muitos personagens de nossa história, como pode ser,
a título de exemplo, o chamado “patriarca da independência” José Bonifácio de Andrada e
Silva, não se viam como brasileiros, como ocorre hoje a qualquer um de nós.
Comemorando um feito nacional, como pode ser uma simples partida de futebol num
jogo de campeonato mundial, nenhum torcedor brasileiro se questiona, hoje, sobre sua
nacionalidade, como na anedota dos portugueses de Póvoa do Varzim
8
.
Houve um período em que se gestou esse sentimento, e, enquanto participavam deles,
as pessoas não tinham consciência de que estavam constituindo o que viriam a ser as nossas
identidades, o nosso jeito de ser brasileiros. Mesmo que, no caso de José Bonifácio, ele tivesse
nascido na cidade de Santos, na Província de São Paulo. Mas deixemos em suspenso a história
do patriarca da independência para realizar um mergulho na discussão da constituição social
do eu, uma das bases para o estudo que se pretende realizar neste trabalho.
Em seu texto Psicologia de grupo e análise do ego
9
, Sigmund Freud trata da identificação
como a manifestação mais remota do relacionamento afetivo com outra pessoa, e que
desempenha um importante papel na pré-história do complexo de Édipo – a começar pela
identificação da criança com seus pais, processo que pode se dar por mecanismos como a
imitação (capítulo VII, do livro). No desenvolvimento de sua história de vida, o indivíduo
vai repetindo esses mecanismos de imitação, até encontrar algumas dessas características
no líder. Escreve Freud:
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
30
Um dos eus percebeu no outro uma importante analogia em um ponto determinado (em
nosso exemplo trata-se de um grau de sentimentalismo igualmente pronunciado); ime-
diatamente se produz uma identificação neste ponto e, sob a influência da situação
patogênica, esta identificação se desloca para o sintoma produzido pelo eu imitado. A
identificação por meio do sintoma assinala assim o ponto de contato entre os dois eus,
ponto de encontro que deveria manter-se reprimido (FREUD, 1981: 2586).
Mais à frente, ainda no mesmo capítulo VII, ele conceitua:
Suspeitamos que o laço existente recíproco dos indivíduos de um grupo é da natureza de
tal identificação, baseada numa ampla comunidade afetiva, e podemos suspeitar que essa
comunidade repousa na natureza do laço com o líder (FREUD, 1981: 2587).
Freud, num passo adiante, elabora o conceito do eu e do ideal do eu. No final desse
mesmo capítulo ele escreve:
Já em outras ocasiões (com motivo do narcisismo, do sofrimento e da melancolia), tive-
mos de construir a hipótese de que no eu se desenvolve uma instância assim, capaz de
isolar-se do outro eu e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de ideal do
eu (Ichideal) e, a título de funções, atribuímos-lhe a auto-observação, a consciência moral,
a censura dos sonhos e a principal influência na repressão (FREUD, 1981: 2588).
Esse ideal do eu, ou Ichideal, vem a ser uma espécie de imagem projetada no espelho,
algo que perseguiremos toda a vida, na busca de plasmar o nosso eu. Mas há a introdução
do corte originário, pelo qual se instala o humano, como ensina Mayra Rodrigues Gomes
em Repetição e diferença nas reflexões sobre comunicação, ao discorrer sobre a lição da psicanálise:
ao mesmo tempo ser barrado e sujeito do inconsciente. E essa talvez represente a mais
difícil tarefa com que Freud se defrontou, pois diz respeito à divisão do eu, ou melhor, a
sua compreensão não como unidade estável, locus de razão.
A lição freudiana nos entrega um sujeito instável, marcado por um “mal-estar” constitu-
tivo, fragilizado no equilíbrio constantemente negociado e, sobretudo, múltiplo, precá-
rio. Estes, certamente, não são os atributos pensados para o sujeito do nosso
“antropocentrismo”, pelo qual se pautou toda construção de saber: esse “sujeito instá-
vel” não é o feito à imagem e semelhança de Deus e certamente não se organiza como
“receptáculo” de uma razão imaculada a iluminar o mundo (GOMES, 2001: 45).
Ainda no contexto de sua investigação sobre a psicologia do grupo, Freud escreve,
mais adiante, agora no capítulo XI:
Bastará que o líder possua, com especial destaque, as qualidades típicas de tais indiví-
duos e que dê a impressão de uma força considerável e grande liberdade de libido para
que a necessidade de um enérgico líder venha de encontro e o revista de uma onipotên-
cia que talvez não tivesse jamais aspirado. Os outros indivíduos do grupo, cujo ideal do
eu não encontra na pessoa do chefe uma encarnação por completo satisfatória, são arras-
tados com os demais por “sugestão”, isto é, por identificação (FREUD, 1981: 2600).
Ou seja, na constituição do eu, somos impulsionados pelo ideal do eu a buscar
modelos no outro, seja no líder, seja em um Outro em quem identificamos valores que
supomos fundamentais para nos constituir como indivíduos. Buscamos modelos para nos
identificar e para não nos sentirmos “fora de lugar”.
A psicanalista Maria Rita Kehl, em seu trabalho “As máquinas falantes” (KEHL,
2003), discorre sobre o corpo-máquina em sua relação com o eu e de como esse corpo
31
forma sua identidade no comércio com o outro: o corpo como objeto social. Nosso corpo
pertence muito menos a nós mesmos do que imaginamos: pertence ao universo simbólico
que habitamos. Formatado pela linguagem, ele pertence ao Outro e depende do lugar que
lhe é atribuído para se constituir
10
. Escreve ela:
Se os corpos não existem fora da linguagem, as práticas da linguagem determinam a
aparência, a expressividade e até mesmo a saúde dos corpos. [...] Nossos corpos não são
independentes da rede discursiva em que estamos inseridos, como não são independen-
tes da rede de trocas – trocas de olhares, de toques, de palavras e de substâncias – que
estabelecemos (KEHL, 2003: 245-246).
Mais adiante, a autora aprofunda a relação entre o eu e o Outro, na triangulação
com o ideal do eu, essa imagem do espelho que se perseguirá por toda a vida, e conclui:
Assim, o corpo de um homem está todo impregnado do Outro. Desde a organização da
circulação pulsional pela linguagem, que barra o gozo absoluto da pulsão de morte,
passando pelo olhar do Outro, que faz a função de espelho e permite a unificação da
imagem de si necessária para a constituição do narcisismo que sustenta o Eu. O processo
de constituição de um corpo próprio capaz de desenvolver habilidades e talentos prosse-
gue então com as identificações com os corpos imperfeitos dos outros, os “semelhantes
nas diferenças”, mediante os quais o sujeito se liberta do espelho e inaugura a série de
empreendimentos pelos quais tentará corresponder aos ideais do eu. Sem a entrada do
Outro, o corpo biológico pode sobreviver, mas não se constitui como o corpo de um
sujeito que se reconhece como tal entre seus semelhantes. Sem a entrada dos outros, o
sujeito não se liberta da prisão especular e da exigência impossível de se tornar idêntico
à sua imagem (KEHL, 2003: 251).
Como pano de fundo desses textos, emerge a reflexão lacaniana do estádio do
espelho
11
: fascinada com sua imagem no espelho (que no futuro será o olhar do Outro), a
criança sucumbiria à impossibilidade de corresponder à perfeição do eu ideal se não
pudesse contar com a possibilidade de se identificar com a imagem do corpo de seus
semelhantes. E, a partir daí, seu corpo se impregnará do Outro, libertando-se do espelho e
buscando corresponder e se moldar na identificação com os corpos imperfeitos dos outros,
seja esse Outro um líder, seu grupo social, sua tribo. A identidade surgirá e se plasmará
com essa identificação.
Lacan apresenta a subjetividade como uma topologia, um oco, um lugar vazio, que
o indivíduo preenche porque simboliza e significa; a criança é um significante para seus
pais, seus semelhantes, seus outros pequenos, ensina Concepción Fernández Villanueva.
Escreve a autora:
O desejo da criança é o desejo do outro. E esta é a marca mais social do sujeito desde o
nascimento. O sujeito, que não é o eu mas o sujeito do inconsciente, está marcado pelo desejo
de seus semelhantes de dupla maneira. Não só porque deseja o mesmo que esse semelhan-
te, interioriza seu desejo, quer ser o que o outro lhe sinaliza, mas também porque (e isso é
o mais importante) o sinaliza com algumas palavras, símbolos que o sujeito fará seus. Quer
dizer, a criança capta o desejo do outro “ao pé da letra”, sendo marcada por tal letra, que se
converterá em sua primeira marca pulsional, marca do desejo, primeiro elo de sua subjeti-
vidade. O lugar que o outro lhe confere, em que o outro o posiciona com sua linguagem,
é a raiz, a primeira base de sua subjetividade (VILLANUEVA, 2001: 192).
Ao chegar ao mundo, a criança encontra seu lugar no contato com o corpo de um
outro, o da mãe, que ela de início confunde com o seu. É nesse contato que o novo ser
organizará seus circuitos pulsionais, circuitos em que as necessidades vitais e biológicas se
transformam em demandas de afeto, próprias do ser humano. A pulsão, essa mola ou
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
32
força motriz e mobilizadora que emana da fronteira entre o biológico e o psíquico e se
manifesta como uma exigência (premência) de satisfação, pode ser comparada ao instinto
animal, diz Kehl. Mas, ao contrário do instinto, que no animal tem a função de adaptar o
filhote ao seu meio, em nós a pulsão só se constitui no encontro com o significante: a
pulsão é pura força desorganizada em busca de um objeto que a satisfaça. Só que esse
objeto não existe. E o que a mãe oferece, pela intermediação da linguagem, são objetos
parciais, que aplacam temporariamente a pulsão: a canção de ninar, a chupeta, o chocalho
(KEHL, 2003: 249)
12
. O desejo não satisfeito permanecerá sempre como uma espécie de
pano de fundo, algo a ser buscado ao longo de toda a vida.
A pulsão, diz Freud, justamente pela falta do objeto, é plástica: ela se adapta, se
satisfaz setorialmente, se realiza com derivativos. A plasticidade da pulsão é que permite
que a satisfação pulsional se adapte às possibilidades que a cultura oferece. Assim, cada
cultura produz os sintomas que buscam dar conta do resto pulsional, impossível de
satisfazer no corpo, a não ser com a aniquilação.
Como não é da nossa economia buscar essa aniquilação, o objeto perdido da pulsão
se transforma, pela linguagem, em objeto do desejo inconsciente (a pulsão vira o desejo de
algo). E esse desejo, não podendo se realizar, se desloca ou desliza do corpo para o
simbólico. E pode assim ser realizado num sonho, num chiste, num objeto equivalente ao
corpo. E isso se dá pela linguagem.
Para Lacan e para a psicanálise, a palavra desborda as funções tradicionalmente a
ela atribuídas para operar como condicionante, estruturar a memória, organizar as
lembranças tanto na perspectiva individual como na perspectiva social ou do grupo. As
palavras raramente são apenas “meras palavras”. Muitas ações sociais se sustentam e se
alimentam pelos discursos, se realizam por meio deles.
É ainda Concepción Fernández Villanueva quem conceitua: a linguagem de um
indivíduo em uma situação concreta não apenas define sua posição como revela o lugar de
onde esse sujeito fala. Ao falar, as pessoas estão implicadas de algum modo no que
descrevem, estão tomando uma posição que vai além do que se afirma ou se conta.
Neste sentido, os menores e mais despretensiosos fragmentos de conversa estão cheios
de sentido, incluindo os que desde o ponto de vista da lógica não teriam sentido algum;
os silêncios, as pausas e as palavras ou frases inconclusas também estão impregnados de
significações. A linguagem estrutura a intersubjetividade, dá sentido às intervenções,
estabelece turnos, dá entrada aos atores. As palavras não são simples informações, mas
ações interativas (VILLANUEVA, 2001: 191).
Norbert Elias, citado por Kehl em seu ensaio sobre as máquinas falantes, estudou o
longo processo que separou os homens de suas funções corporais, até produzir o que se
chama “o corpo civilizado”. O corpo sob o controle da mente, separado do eu. Nesse
processo houve uma busca por normas para a convivência em sociedade, pois as pessoas
já não viviam isoladas em seu vilarejo longínquo, mas trafegavam e circulavam,
convivendo diariamente com um número crescente de estranhos, de outras regiões e
outras classes sociais. Afinal, como vimos páginas acima, no decorrer do século XIX as
distâncias foram encurtadas, os oceanos anexados, as grandes ferrovias intercontinentais
ligaram os extremos. E tal convivência só se fez suportável mediante a automatização de
um número infindável de regras de controle corporal.
Como diz Renato Janine Ribeiro na apresentação do segundo volume de O processo
civilizador, “a idéia-chave de Norbert Elias é a tese de que a condição humana é uma lenta e
prolongada construção do próprio homem”. Nesse estudo monumental Elias aborda esse
processo civilizador analisando manuais de comportamento, como o opúsculo de Erasmo
de Rotterdam, De civilitate morum puerilium. Esses manuais se copiavam e se glosavam uns
aos outros, em sucessivas edições, dando a pauta de como se portar à mesa, de como usar
33
garfos e facas, de como escarrar ou limpar as mãos, de como ter controle sobre a
expressão do olhar, a ser cortês, enfim.
Erasmo, quem sabe, podia conhecer um ou outro dos Tischzuchten rimados ou os escritos
de sacerdotes que tratavam desses assuntos [se refere aos manuais de boa conduta]. [...] Mas
com toda certeza Erasmo não compilou simplesmente esse tratado à vista de outros
livros. Tal como todos os que refletem sobre essas questões, ele tinha diante dos olhos
um código social especial, um padrão especial de maneiras. Este tratado é, na verdade,
uma coletânea de observações feitas na vida e na sociedade. E seu sucesso, sua rápida
disseminação e seu emprego como manual educativo para meninos mostram até que
ponto atendia a uma necessidade social e como registrava os modelos de comportamen-
to para os quais estavam maduros os tempos e que a sociedade – ou mais exatamente a
classe alta, em primeiro lugar – exigia (ELIAS, 1994; 83).
Não limpar os dentes com as pontas das facas é algo que não precisa ser ensinado
hoje: a sociedade não exige mais, porque essa lição foi aprendida. E não foram apenas os
manuais de boas maneiras que tiveram ampla disseminação. O historiador Peter Burke
nos fala dos manuais de conversação, a partir da popularização do livro impresso:
A arte da conversação foi influenciada, se não transformada, pela difusão do assunto em
livros impressos, já disponíveis na Itália do século XVI, como O cortesão (1528), de
Baldassare Castiglione, o Galateo (1558), de Giovanni Della Casa, e La civil conversazione
(1574), de Stefano Guazzo. Tal influência continuou com uma série de tratados em fran-
cês, espanhol e alemão e com as reflexões de Swift, Fielding e lorde Chesterfield sobre o
assunto. Esses tratados ofereciam instruções a homens e mulheres de diferentes idades e
grupos sociais, aconselhando-os quando falar ou ficar em silêncio, para quem falar, sobre
o quê e em que estilo. O número de edições, os destaques e as anotações em algumas
cópias que restaram sugerem que esses conselhos eram levados a sério
(BRIGGS&BURKE, 2004: 56).
Aprendemos a olhar respondendo a olhares que nos são dirigidos. Identificamos-nos
e nos entendemos como somos por conta desse olhar do outro. Olhar em que nos
espelhamos, que nos mostra e aponta o que devemos ser. Falamos da previsão do tempo e
de alguns dos assuntos correntes da semana, em numa reunião social, e evitamos
comentar sobre nossos achaques e doenças, dívidas e problemas de ordem pessoal, porque
aprendemos que esses não são assuntos de conversas sociais. E aprendemos isso ouvindo
os outros conversarem.
Hoje, os manuais, os impressos e as revistas foram substituídos por outro olhar, que é
o olhar da televisão. É ela, em seus seriados e peças de ficção, que funciona como elemento
civilizador e como fornecedor de modelos a copiar, temas a conversar, frases e bordões a
repetir. O que seria do jovem adolescente de hoje se não tivesse programas como o seriado
Malhação, há dez anos dando a pauta de como se vestir, de como bater mão com mão ao
encontrar os colegas, de que gírias repetir? É assistindo aos programas da televisão ou
chateando na internet que o jovem se informa sobre o novo boné da moda, da bermuda
caída na cintura ou a menina corre atrás da fivela para prender o cabelo.
Mas esse olhar do outro também nos indica o lugar que “devemos ocupar”. Em
outro livro, Os estabelecidos e os outsiders, o mesmo Norbert Elias mostra como nas relações
entre grupos ocupamos o lugar que nos é reservado ou prescrito pelo outro. Estudando as
relações entre dois aglomerados sociais, de idêntica etnia e condição socioeconômica,
numa pequena comunidade do interior inglês, Elias deixa clara a força do discurso da
diferença e de como o grupo mais fraco aceita as regras impostas pelos estabelecidos há
mais tempo na localidade.
Esse poder determinante do outro chama especial atenção quando se lê a história,
relatada nesse livro de Elias, do grupo outsider japonês, os burakumin. O mais notável
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
34
nessa camada da população é que não há nenhuma diferença física essencial entre esses
párias e os demais japoneses: apenas o fato de historicamente serem considerados e
estigmatizados com a denominação “eta”, que quer dizer “repletos de imundície”.
Normalmente vivem em casas piores, são menos instruídos, têm empregos mais árduos do
que seus conterrâneos. Mas séculos de discriminação deixaram cicatrizes na mente dos
burakumin. Cito um diálogo, recolhido por Mark Frankland e reproduzido por Elias:
Eis uma entrevista feita com um burakumin anos atrás: perguntou-se ao homem se ele se
sentia igual a um japonês comum. Resposta: “Não, nós matamos animais, somos sujos e
algumas pessoas acham que não somos humanos”. Pergunta: “Você acha que é humano?”
Resposta (depois de uma longa pausa): “Não sei... Somos ruins e sujos” (ELIAS, 2000: 30).
Essa reflexão ecoa em alguns dos textos de Stuart Hall, sobretudo em dois vieses. O
primeiro quando ele escreve que a identificação é um processo de costura e não uma
substituição, pois não há uma troca simétrica. Há sempre algo “demasiado” ou “muito
pouco”, uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo. O que faz
com que a busca seja um moto perpetuo, nunca chegando a seu fim. Em segundo, essa busca
pelo que falta também se dá em diferentes frentes: elas são incessantemente reconstituídas
e, como tal, estão sujeitas à lógica volátil da iterabilidade – ou repetição. Vou me
constituindo na soma e na amálgama dos diversos grupos a que pertenço, em que transito,
em que me plasmo. Se as identidades são constituídas e construídas por meio da diferença
e não fora dela, é apenas por meio da identificação com o Outro, da relação com aquilo
que não é, precisamente aquilo que me falta – aquilo que busco, com aquilo que se tem
chamado de “exterior construtivo”, que a identidade pode ser construída.
Justamente por se sentir um outsider – além de caribenho, no seio de sua própria
família, um diferente na sua situação de bebê coolie (HALL, 2003: 190), Stuart Hall escreve
com propriedade sobre o conceito de hibridização e de sincretismo. E de como se deram as
duplas inscrições dos tempos colonial e metropolitano, característicos das zonas de contato
das cidades “colonizadas”, muito antes de se tornarem tropos característicos das cidades
dos “colonizadores”, e as formas de tradução e transculturação que caracterizaram a
relação colonial desde seus primórdios. Escreve ele:
A própria noção de uma identidade cultural idêntica a si mesma, autoproduzida e autô-
noma, tal como a de uma economia auto-suficiente ou de uma comunidade política
absolutamente soberana, teve que ser discursivamente construída no “Outro” ou atra-
vés dele, por um sistema de similaridades e diferenças, pelo jogo da différence e pela
tendência que esses significados fixos possuem de oscilar e deslizar. O “Outro” deixou
de ser um termo fixo no espaço e no tempo externo ao sistema de identificação e se
tornou uma “exterioridade constitutiva” simbolicamente marcada, uma posição marca-
da de forma diferencial dentro da cadeia discursiva (HALL, 2003: 116).
Nessa busca de identidade, escreve Hall, chegamos a uma nova fase hoje,
transnacional, que tem seu centro cultural em todo lugar e em lugar nenhum (HALL,
2003: 36). Mas não foi assim durante o longo processo de formação e gestação das
nacionalidades. Nossas sociedades colonizadas e periféricas não são compostas, como os
países europeus que dão o tom das análises identitárias, de um, mas de diversos povos,
escreve ele, ao refletir sobre a formação das nacionalidades nos países “de fora” do
primeiro mundo ocidental. Nossas origens não são únicas, mas diversas, diz ele. Aqueles
aos quais originalmente a terra pertencia pereceram há muito tempo – dizimados pelo
trabalho pesado e pela doença, quando não foram propositadamente exterminados. Na
seqüência dessa reflexão ele escreve:
A terra não pode ser “sagrada”, pois foi “violada” – não vazia mas esvaziada. Todos que
estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir uma continuida-
35
de com os nossos passados, nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas
mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto de associação civil lentamen-
te desenvolvido, tão central ao discurso liberal da modernidade ocidental, nossa “asso-
ciação civil” foi inaugurada por um ato de vontade imperial (HALL, 2003: 30).
Hall aponta para os transtornos de uma concepção fechada da noção identitária de
tribo ou de pátria, pois possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar
“primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o
futuro e o presente, numa linha ininterrupta”.
Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é o de sua
fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. É,
claro, um mito – com todo o potencial real dos nosso mitos dominantes de moldar nossos
imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado à nossa vida e dar sentido à
nossa história. Hall relembra no que tudo isso pode dar:
É justamente essa concepção exclusiva de pátria que levou os sérvios a se recusarem a
partilhar seu território – como têm feito há séculos – com seus vizinhos muçulmanos da
Bósnia, e justificou a limpeza étnica em Kosovo. É uma versão dessa concepção da diáspora
judia e de seu “retorno” a Israel que constitui a origem da disputa com seus vizinhos do
Oriente Médio, pela qual o povo palestino tem pago um preço tão alto, paradoxalmente,
com sua expulsão de uma terra que, afinal, também é sua (HALL, 2003: 29-30).
Contra isso ele diz que as alternativas não são apegar-se a conceitos e modelos
fechados e unitários de pertencimento cultural, por se apoiarem sobre uma concepção
binária da diferença. Ao contrário, sua proposta é abrir-se e buscar abranger os processos
mais amplos do jogo de semelhança e diferença que estão transformando a cultura do
mundo inteiro. Para isso ele adota a noção de différance, proposta por Derrida:
Uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não sepa-
ram finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e
relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim. A diferen-
ça, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é essencial à cultura. Mas num
movimento profundamente contra-intuitivo, a lingüística moderna pós-saussuriana in-
siste que o significado não pode ser fixado definitivamente. Sempre há o “deslize” inevi-
tável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto que aquilo que parece
fixo continua dialogicamente reapropriado (HALL, 2003: 33).
Estudar o papel formador das revistas brasileiras no século em que se dá o início de
formação identitária de nosso país supõe um diálogo com essas visões. Foi por meio do
impresso, como ensina Peter Burke, que se impôs o discurso do ser nacional. Se na visão
do historiador os cafés e clubes inspiraram a criação de comunidades originais de
comunicação oral e socialização, foram os impressos que desempenharam esse papel de
modo ímpar. Foi por meio das páginas dos jornais e sobretudo das revistas que as
populações dos países em formação e consolidação ao longo dos séculos XVIII e XIX
aprenderam a se ver como diferentes, como possuidoras de uma nacionalidade – papel
que hoje a televisão reforça com seus discursos e sitcons.
Assim, segundo ainda Peter Burke, o famoso jornal milanês Il Caffè, que circulou entre
1764 e 1766, teve importante papel no iluminismo italiano. Ou da mesma maneira que
alguns jornais do século XVIII ajudaram a criar comunidades locais, e da mesma forma – e
Burke cita Benedict Anderson no livro Imagined communities, de 1983 – “que o jornal do século
XIX contribuiu para a formação de uma consciência nacional, por tratar de seus leitores na
condição de comunidade, um público nacional” (BRIGGS&BURKE, 2004: 41).
É sobre essa formação da consciência nacional que nos deteremos a seguir.
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
36
1.3. A gestação do sentimento nacional
Voltemos, após esse mergulho, à história e ao exemplo do Andrada, José Bonifácio,
o patriarca de nossa independência. Nascido em Santos, a 13 de junho de 1763, com 14
anos ele veio para São Paulo, cursar humanidades, seguindo para o Rio de Janeiro e,
depois, para a universidade de Coimbra, onde ingressou aos 20 anos, formando-se em
Direito e Filosofia – no que apenas repetiu um percurso corriqueiro entre os jovens da elite
colonial de então. Formando, foi residir em Lisboa, onde fez certa fama como literato,
chegando a ser aceito como membro da Academia Real de Ciências com apenas 26 anos
(mais tarde veio a ser secretário perpétuo dessa instituição).
Embora tenha recebido uma educação no estilo antigo da escola de Coimbra
(universidade que ainda repetia os velhos modelos de ensino com ranço escolástico), José
Bonifácio se interessou pelo que então se chamava “Filosofia Natural”. Para se aprofundar nesses
estudos em 1790 viajou pela Europa. Essa viagem científica, que se estendeu por dez anos, foi
patrocinada pelo governo português (isso no reinado de D. Maria I, a mãe de João VI).
Esteve um ano em Paris, onde estudou mineralogia com René-Just Haüy, botânica
com Antoine-Laurent de Jussieu, química com Jean Antoine Chaptal e minas com J. P.
Guillot-Duhamel. Ou seja, aprendeu com os maiores nomes de sua época. Elaborou e
apresentou à Société d’Histoire Naturelle de Paris o trabalho “Mémoire sur les diamants
du Brésil”, que lhe valeu a sua admissão na Sociedade de História Natural francesa e que
foi publicada nos Annales de Chimie em 1792. Seguiu depois para a Alemanha e estudou
geognosia e minas na Universidade de Freyberg. Estudou matemática com Johann
Friedrich Lempe (1757-1801), direito e legislação de minas com Köhler, química mineral
com Klotzsch, química aplicada com Freisleben e metalurgia com Lampadius. Conheceu
também Alexander von Humboldt, que viria a ser o grande reformador do ensino
universitário. Visitou minas na Áustria, Estíria, Caríntia e Tirol. Viajou ainda pela Itália e
ali conheceu Alessandro Volta e realizou estudos geológicos que deram origem a uma
memória escrita em 1794 mas apenas publicada em 1812, “Viagem Geognóstica aos
Montes Eugâneos”.
Seguiu depois para a Suécia, Noruega e Dinamarca, onde freqüentou cursos de
mineralogia na Universidade de Upsala e em Copenhague. Visitou diversas minas e
jazidas escandinavas, realizando pesquisas que deram origem à identificação de 12 novos
minerais, quatro novas espécies e oito variedades de espécies conhecidas. Publicou o
resultado desse estudo sob o título “Kurze Angabe der Eigenschaften und Kennzeichen
einiger neuen fossilien aus Schweden und Norwegen, nebst einigen chemischen
Bemerkungen über dieselben” no jornal alemão Allgemeines Journal der Chemie (1800) –
trabalho depois traduzido e publicado no Journal of Natural Phylosophy, Chemistry and the Arts
(1801) e no Journal de Physique, de Chimie, d’Histoire Naturelle et des Arts (1800). Esse estudo
teve grande repercussão na Europa e revelou um trabalho rigoroso de determinação dos
pesos específicos dos minerais, com repercussões na identificação de elementos químicos.
Bonifácio esteve ainda na Bélgica, Holanda, Hungria, Boêmia, Turquia e Inglaterra.
Uma viagem que lhe proporcionou um conhecimento enciclopédico na nascente área das
ciências da natureza, além de contatos criados nos ambientes acadêmicos.
De volta a Portugal, em 1801, foi lecionar Metalurgia na Universidade de Coimbra,
sendo o fundador da disciplina ali. Nos sete anos seguintes será um ativo funcionário do
governo, típico homem da elite portuguesa, e chegou a ocupar onze cargos e funções
(apenas três delas remuneradas): Intendente-Geral das Minas e Metais do Reino;
administrador das minas de carvão de Buarcos e das minas e fundição de ferro de Figueiró
dos Vinhos; inspetor das matas e sementeiras florestais; direção da sementeira de pinhais
na orla marítima; desembargador ordinário e efetivo da Relação e Casa do Porto;
superintendente do rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra; diretor hidráulico das
obras de encanamento do Mondego.
37
Em 1807, quando Portugal é invadido pelas tropas francesas, o que motivou o
traslado da família real portuguesa para o Brasil – dando início a nosso processo de
independência –, José Bonifácio se alista no Corpo Voluntário Acadêmico, um batalhão de
estudantes e professores de Coimbra, parte do movimento de resistência ao invasor.
Chega ao posto de comandante, destacando-se pela sua capacidade de liderança na luta
contra as tropas napoleônicas que ocupavam o país.
Regressa ao Brasil em 1819 e é convidado por D. João VI para ser reitor do
Instituto Acadêmico, cargo que não aceitou, preferindo realizar diversas viagens
científicas pelo país. Só dois anos depois deixa de lado essas pesquisas científicas
para ingressar na política, iniciando carreira como vice-presidente da Junta
Governativa de São Paulo
13
.
Essa longa digressão sobre a biografia do “patriarca” tem apenas o sentido de
refletir o que deveria ter se passado com esse acadêmico netamente português, embora
nascido na colônia, na cidade de Santos. Para a historiografia portuguesa ele é um ilustre
cidadão português, como outros dois “santistas”, o padre e inventor Bartolomeu de
Gusmão e o diplomata Alexandre de Gusmão – este o mentor do vantajoso tratado de
Madri, pelo qual Portugal ganhou todo o terreno das Sete Missões, o que é hoje Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, em troca da cessão à Espanha da Província de
Sacramento. Província do Sacramento ou Cisplatina, onde, na cidade de Colônia, nascera
um outro português, Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, que ninguém
diria hoje que é uruguaio como tampouco ele se via como um brasileiro. Naquele tempo,
nascido em Santos ou em Colônia do Sacramento, atual Uruguai, era-se um cidadão
português, e ponto. E José Bonifácio de Andrada e Silva, que se queixava da falta de
equipamentos para dar aulas em Coimbra, e da precariedade dos laboratórios para suas
aulas práticas, não era exceção. Ser brasileiro ou português não era uma questão em que
investia seu tempo
14
.
Há nesse período de nossa história, que vai de 1808 até 1840, uma falta de clareza e
perspectiva histórica sobre o momento que se estava vivendo. Esses anos compõem as três
décadas que vão da chegada da família real, com o país deixando a seguir a condição de
colônia, ao ano em que Pedro II é considerado maior e assume o trono. A clareza sobre o
“ser brasileiro” é uma constatação a posteriori, e isso é normal na formação histórica de
qualquer país. Nesses trinta anos que separam a vinda de Dom João VI à coroação de seu
neto, nascido no Brasil, convivem aqui os portugueses de alma lusa, os portugueses de
alma brasileira e os brasileiros com a consciência portuguesa ou com consciência de que
havia algo diferente a ser gestado.
É preciso entender como pensava o homem do século XIX, ainda afeito à
idéia de um rei e soberano como um dos núcleos essenciais de uma visão de mundo.
Tanto foi assim que na Argentina, país que levou quase cinco décadas até se dar
conta de que formava uma nação
15
, andou-se à busca de um rei. E a princesa Carlota
Joaquina, esposa de Dom João VI, vivendo então no Rio de Janeiro, chegou a ser
sondada para ocupar um hipotético trono como soberana rio-platense. Afinal, ela era
irmã de Fernando VII, o rei de Espanha. Um dos pais da pátria Argentina, Manuel
Belgrano, sugeriu que se escolhesse um “rei inca” para presidir o novo país
(COSTA, 2003: 78) – idéia que hoje pode nos parecer tão bizarra quantos os “incas
venusianos” do velho seriado televisivo japonês Nacional Kid. Mas não era assim
naquelas primeiras décadas do século das independências e da consolidação das
nacionalidades. A busca de um rei fazia parte da visão de mundo de um homem da
primeira metade do século XIX. Tanto era assim que até os gregos, quando se
independentizavam da dominação turca em 1829, vão buscar fora um rei. No caso, o
príncipe Otto da Baviera ocupa o trono grego.
Essa busca por uma identidade é algo bastante específico da realidade dos países
colonizados da América Latina. Como bem pontuou Kenneth Maxwell, o movimento
ocorrido aqui na primeira metade do século XIX foi único:
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
38
A persistência colonial das nações da América Latina era diferente daquela herdada
pelos Estados pós-coloniais que emergiram dos impérios europeus na Ásia e na África a
partir de meados do século XX. O impacto provocado pela Espanha e Portugal nas
Américas havia sido muito mais profundo e, portanto, mais permanente do que foi o
impacto dos europeus que se impuseram, temporariamente, sobre outras sociedades
mais antigas do Oriente Médio até a China, onde as populações, as religiões e as estrutu-
ras sociais e os padrões de comportamento nunca foram desenraizados ou destruídos da
maneira catastrófica como foram nas antigas civilizações da América pré-colombiana.
[...] africanos e asiáticos alcançaram a independência formal negociando a retirada ou
tomando em armas e expulsando um punhado de soldados, capatazes e administradores
brancos. Na América Latina foram precisamente os soldados, capatazes e administrado-
res europeus que expulsaram os representantes das coroas de Espanha e Portugal e a
uma só vez usurparam a soberania de uma grande massa de população indígena e de
escravos africanos (MAXWELL, 2000: 182).
Naqueles primeiros anos de gestação do sentimento da nossa nacionalidade, na
confusão do “calor da hora”, havia no país correntes diversas e conviviam diferentes
concepções identitárias. De um lado estavam os portugueses-portugueses e de outro os
portugueses-brasileiros. Alinhados com os primeiros, os brasileiros-portugueses; e na outra
ponta os brasileiros-brasileiros. E depois os excluídos de toda sorte (os negros, os
mamelucos, aquela parte da população a que o jornalista Elio Gasperi chamou de “a
turma do andar de baixo”, os que não “escrevem” a história).
Os primeiros, os portugueses-portugueses, eram os que, desde sempre, nascidos na
metrópole, se viam como portugueses e eram contra a formação de uma nova nação –
sobretudo os funcionários do Estado, membros da nobreza, militares e burocratas, padres
e capelães, bibliotecários, escreventes, que corriam o risco de, com a nova ordem, perder
soldo e condição social
16
. Esses, em algum momento, desejaram que o país agora
independente voltasse à condição de colônia, e sem dúvida o jornalista Luís Augusto May,
o criador de A Malagueta (1821-1822), pertenceu a esse grupo, apesar dos elogios que a ele
dedica o historiador Nelson Werneck Sodré.
Os segundos, os portugueses-brasileiros, eram os que, embora nascidos em Portugal,
aqui viviam e aqui queriam escrever sua história, longe das contradições e mesquinharias
de um dos governos considerados mais retrógrados da Europa
17
. O jornalista João Soares
Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro, que circulou entre 1822 e 1823, foi um típico
português-brasileiro. Considerado o primeiro jornalista a ser processado por “abuso de
liberdade de imprensa”
18
, é chamado pelo historiador Nelson Werneck Sodré de “a maior
figura da imprensa brasileira de seu tempo” (SODRÉ, 1999: 73).
No terceiro grupo, composto pelos brasileiros-portugueses, ficavam os cidadãos
nascidos aqui nos tempos do Brasil colônia, como os já citados Hipólito José da Costa ou
Alexandre Gusmão – Hipólito, nascido na então província Cisplatina, era funcionário de
carreira do governo português. O próprio padre Antonio Vieira, mesmo nascido em Lisboa,
fora considerado um “brasileiro” por haver sido educado na Bahia, antes de se tornar orador
na metrópole e um dos protegidos do papa. Mas, nesse período da formação da
nacionalidade, a expressão brasileiros-portugueses designa os membros da elite
conservadora, que demoraram a adotar a causa nacional, como o funcionário, economista
e jornalista José da Silva Lisboa, depois conhecido como Visconde de Cairu. Nascido na
Bahia, José da Silva Lisboa era um brasileiro que se considerava cidadão português – e
Werneck Sodré não dissimula o mau humor com que menciona o polêmico editor do
Conciliador do Reino Unido (1821), de Reclamação do Brasil (1822) e da Atalaia (1823), entre outros
periódicos criados pelo prolífico periodista e intelectual, que hoje chamaríamos de “baiano”.
Já o quarto grupo, o dos nascidos aqui e que abraçaram a causa nacional de
primeira hora, seriam os brasileiros-brasileiros. Nascidos no Brasil Colônia, eles nutriam a
forte convicção de que havia um país e uma identidade a serem criados, como brasileiros.
O baiano Cipriano José Barata de Almeida, autor das Sentinelas da Liberdade, foi, sem
39
dúvida, um legítimo brasileiro-brasileiro. Mas o mais notável dentre esses brasileiros de
primeira hora foi o frade carmelita pernambucano Joaquim do Amor Divino Caneca, o
“frei Caneca”, jornalista e editor do Tífis Pernambucano (1823). Personagem original e
imaginando um país que até os dias de hoje não conseguimos plasmar, o frade
pernambucano chegou a ser um nome pensado, quando se buscou um herói para
simbolizar os ideais da República, ao se abolir a monarquia. Os mentores do movimento
republicano precisavam criar símbolos e alimentar o “imaginário” do novo tempo. Mas,
por causa do viés separatista e por seu caráter demasiado revolucionário, o frade
pernambucano teve de ceder lugar a um outro “Joaquim”, o José da Silva Xavier,
Tiradentes. O mineiro atendia mais ao modelo de herói quando os pais da República
saíram à busca de um nome para o panteão simbólico do país – como conta o historiador
José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas. A seguir se construiu a
iconografia e a própria história ou “lenda” do mártir Tiradentes, retratado de modo a
lembrar outro mártir, o do Gólgota. A semelhança da iconografia criada para o mineiro
com o nazareno não é uma mera coincidência.
O fato é que nos primeiros anos do Brasil independente houve um sentimento
muito forte de brasilidade, que se traduziu na valorização da variedade racial, na exaltação
da beleza e das riquezas naturais e na grandeza territorial do país. Na criação desse
imaginário houve forte contribuição das imagens e dos relatos que iam sendo publicados
pelos viajantes que visitaram o país nessa primeira metade do século, e a que nos
referimos no começo deste capítulo.
A historiadora Isabel Lustosa conta que até José Bonifácio, no discurso de
despedida da Real Academia de Ciências de Lisboa, em 1819, ano em que regressou ao
Brasil, revelava que o ufanismo dos brasileiros já se construía com base nas dimensões
continentais do país e em suas supostas e/ou evidentes riquezas naturais. Mesmo que
Bonifácio se referisse ao país como “Nova Lusitânia”: “Que terra para um grande e vasto
império! Riquíssimo nos três reinos da natureza, com o andar dos tempos, nenhum outro
país poderá correr parelhas com a nova Lusitânia”, discursou o secretário perpétuo da Real
Academia de Ciências de Lisboa (LUSTOSA, 2000: 51).
A exaltação das peculiaridades nativas se refletiu em um dado bastante concreto: as
pessoas adotaram a prática de trocar de nome. Abandonavam os patronímicos lusitanos,
como Souza, Ferreira ou Muniz, para adotar nomes de árvores ou de animais nativos.
Nessa época, por exemplo, um jovem pintor gaúcho e futuro ilustrador de que se falará
em capítulos adiante resolveu mudar seu nome de Manuel José de Araújo para Manuel de
Araújo Porto-alegre (com hífen seguido de letra minúscula), após um breve período em
que se fez chamar por Manuel José Pitangueira. Isabel Lustosa é quem nos conta:
Muito significativamente, um grande número de pessoas tiraria de seus nomes os patro-
nímicos portugueses e adotaria, em seu lugar, nomes indígenas de árvores e animais
silvestres brasileiros. Em outubro de 1822, o jornal O Volantim publicava uma série de
anúncios onde pessoas afirmavam ter trocado o nome. [...] O cirurgião Francisco de
Sousa Muniz, num sábado, dia 18 de outubro de 1822, anunciou, por meio daquele
jornal, que “querendo imitar honradamente a seus patrícios e possuído de igual patriotis-
mo”, declarava que seu nome daquele dia em diante seria “Francisco Paulo de Sousa
Malagueta” (LUSTOSA, 2000: 54).
É assim que José Maria Migués se tornou Migués Bentevi, Pedro Antonio de Souza
passa a se chamar Pedro Antonio Cabra-Bode, e José Caetano de Mendonça vira José
Caetano Mendonça Jararaca (LUSTOSA, 2000: 55-56). Esse viés patriota durou décadas.
Tanto que, mais de trinta anos depois, outro ilustre personagem, Quintino Antonio Ferreira
de Sousa, aos 15 anos, em 1857, mudou seu nome para Quintino Bocaiúva. E da amálgama
desses elementos – imagem idealizada o índio, mestiçagem, orgulho das riquezas naturais,
brios intelectuais feridos – ia se concretizando, no dizer de Isabel Lustosa, um esboço de
identidade nacional, combustível onde cozia o processo político.
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
40
O que chama atenção é o fato de as pessoas recorrerem à imprensa para avalizar
essa troca identitária, como a reiterar que “vale o impresso”. Ocupemos-nos, então, da
imprensa e da formação do leitorado nesse momento de gestação da nacionalidade.
1.4. Leitor, um público a ser criado
Em seu livro A cultura popular na idade moderna
19
, o historiador Peter Burke
desenvolve uma concisa reflexão a respeito da relação quase causal entre a invenção da
imprensa (cerca de 1450), a Reforma Luterana (1517 foi o ano em que Martinho Lutero
fixou, na porta da catedral de Wittenberg, suas famosas 95 teses) e a formação do público
leitor nos países europeus do norte. Consideradas como “religião do livro” (tanto que
ainda hoje, em lugares como o Rio de Janeiro, o termo “bíblia” é um designativo para o
fiel de uma igreja “crente”), as denominações protestantes marcaram sua diferença na
adoção da livre leitura e interpretação dos livros sagrados. Assim, tornar-se seguidor de
uma das igrejas reformadas implicava (e implica), como primeiro passo, alfabetizar-se.
20
Tanto que, ao chegar ao final do século XVII, quase toda a população da Suécia, para
ficar apenas num exemplo, estava alfabetizada e em 1 em cada 5 lares havia um exemplar
da Bíblia ou do Catecismo com o Hinário. Escreve Burke:
Na Suécia, faziam-se sermões sobre o catecismo e leituras dele durante o ofício. No
século XVII, o clero começou a percorrer casa por casa, para testar os leigos sobre sua
capacidade de leitura e conhecimento do catecismo, visita conhecida como husförhör. Em
outros lugares, a capacidade de responder corretamente as perguntas do catecismo por
vezes constituía pré-requisito para a admissão à Ceia do Senhor, o principal ritual litúrgico
das igrejas protestantes (BURKE, 1989: 248).
Em contraponto com os países do norte europeu, como se sabe, ainda hoje é
possível encontrar, em alguns bolsões da Itália, da Espanha ou de Portugal, pessoas
analfabetas. Esses países europeus mediterrâneos, de população quase que totalmente
católica, não contaram com o estímulo da religião para aprender a ler. Ao contrário, a
Igreja Católica criou os entraves possíveis para o acesso da população a livros e
publicações, pelo temor, sempre presente, dos “desvios da heresia”. Paradigmaticamente,
enquanto os países do norte aderiam à leitura
21
, a hierarquia católica impunha as severas
penas e processos da inquisição aos fiéis que se aventurassem pelos caminhos dos livros e
da reflexão. Dois trabalhos desenvolvem muito bem esse viés e ambos estudam processos
inquisitoriais contra leitores rebeldes à diretriz católica.
Em O queijo e os vermes, o historiador Carlo Ginzburg narra a história do moleiro
Menocchio, que ao reunir uma dezena de livros sente-se confiante de enfrentar de igual
para igual o inquisidor da diocese de Udine, no norte da Itália, e defender sua teoria de
que o mundo tinha sua origem na putrefação. Terminou executado pela Inquisição em
1601 (GUINZBURG, 1998).
No livro Confissão, poesia e inquisição, o professor Luiz Roberto Alves resgata a história
do poeta Bento Teixeira (1561-1600), morto poucos meses antes de Menocchio, também
nas mãos da inquisição – com a diferença de que o poeta luso-brasileiro não chegou a ser
queimado, como o moleiro italiano, mas morreu de pneumonia pelas más condições do
cárcere lisboeta (ALVES, 1983).
Cristão-novo formado pelos jesuítas nas escolas do Rio e de Salvador, Bento
Teixeira vivia de fazenda em fazenda, ensinando os rudimentos da gramática a membros
da nascente elite açucareira que iriam depois tirar o bacharelado em ciências jurídicas em
Coimbra. Autor do primeiro poema épico brasileiro, A prosopopéia, Bento Teixeira deixou,
nos relatos de seu processo inquisitorial, visões e vieses desse Brasil em que livros
41
proibidos circulavam às escondidas, outros eram encomendados e chegavam de além-mar,
camuflados entre sacos de farinha
22
. Havia uma sede de conhecimento, coibida pela sanha
do colonizador, e isso fica patente entre as muitas pistas que nos dá o livro do professor e
pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da USP Luiz Roberto Alves.
Repetindo crenças eclesiásticas sobre os perigos da leitura e da livre interpretação, a
Metrópole portuguesa não apenas colocava entraves para a criação de cursos e para a
formação de uma elite local, como proibia e perseguia tentativas de implantar aqui
equipamentos de impressão.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo em setembro de 1999, o sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos discorre sobre as diferentes visões do processo colonizador –
estávamos às vésperas das comemorações dos 500 anos do descobrimento. E ele se
perguntava: teria sido o colonizador português, como queria Gilberto Freyre, menos
truculento? – como se houvesse uma categoria ética do “menos mau”? E o próprio Sousa
Santos conclui: “Todo o colonialismo foi mau e só uma ideologia histórica dominada pela
idéia do progresso permite justificá-lo nos termos dúbios de que os fins justificam os
meios” (SOUSA SANTOS, 1999). Nenhum colonizador foi bom, como no mundo
globalizado em que vivemos nenhum país “faz o bem sem olhar a quem”. O que Sousa
Santos não aprofunda é a insistência católico-romana de Portugal em manter suas colônias
num obscurantismo quase total, sem cuidar da formação das elites locais – algo que, de
resto, aconteceu também em suas antigas “províncias ultramarinas” de Angola ou
Moçambique, para citar apenas as duas maiores. Hoje, um dos países-membros da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)
23
, Moçambique, para ainda ficar
no exemplo, talvez nem possa ser considerado país de fala portuguesa. Ali o idioma é
desconhecido por mais de 90% da população, que, além de dialetos locais, usa cada vez
mais, como língua comum, o inglês. Porque também naquelas paragens Portugal não se
preocupou em criar escolas e formar um público leitor. O colonizador, como se sabe, não
estava ali para isso, mas para explorar e tirar proveito
24
.
Convém lembrar: na América espanhola, universidades foram criadas nas décadas
seguintes ao Descobrimento. E “talleres” de impressão funcionaram ainda nos primeiros
séculos da colonização, tanto no México como na Argentina. Uma das primeiras gráficas
do cone sul teria funcionado nas missões jesuíticas, a segunda no colégio da Companhia
de Jesus na cidade de Córdoba, em 1658
25
. Antes disso, no entanto, em 1583
26
, a Real
Audiência de Lima, em nome do rei da Espanha, autorizava o funcionamento da primeira
casa impressora da América do Sul – e ali se iniciou a publicação dos primeiros livros, de
doutrina da igreja católica, os catecismos e livros de devoção. Além das cartilhas, de
considerável tiragem, e de papel selado para documentos oficiais e avisos soltos
(MENDOZA, 1997: 58). Mais tarde surgiam as relações e os noticiários (espécie de
clipping), e nos primeiros anos do século XIX os periódicos propriamente ditos.
Em contraponto, os trezentos anos do período colonial brasileiro foram anos de
escuridão. Não apenas era proibida a impressão de textos, livros, publicações, como não
houve uma política de formação e de ensino por parte dos governantes. As poucas escolas
existentes em volta das igrejas e dos conventos levaram o rude golpe com a expulsão dos
jesuítas, em 1759. Diferentemente da América inglesa, aonde os “peregrinos” chegavam
com o objetivo de construir uma pátria futura, criando instituições sólidas, como foi o caso
da própria imprensa (alguns dos pais fundadores da democracia americana, como
Benjamim Franklin, eram tipógrafos), à América ibérica se vinha para buscar a fortuna
fácil e retornar, depois, aos povoados de origem
27
. Era o famoso desafio de “fazer a
América”, que tanta fantasia criou entre os deserdados da Península Ibérica.
28
A Metrópole portuguesa nunca vira com bons olhos a disseminação dos livros e
jornais, considerados perigosos agentes de subversão. Desde o século XVI, a censura se
abatera sobre Portugal e seus domínios, tendo como principal instrumento a Santa
Inquisição, que começou a censurar livros em 1539, três anos depois de instalada. Obras
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
42
escritas sobre o Brasil enfrentavam severo controle, fosse como forma de impedir
qualquer movimento autonomista que ameaçasse a próspera colônia, fosse para evitar a
cobiça de outras nações. Por esse motivo, o livro de André João de Antonil, Cultura e
opulência do Brasil por suas drogas, e minas, com várias notícias curiosas do modo de fazer o açúcar;
plantar e beneficiar tabaco; tirar o ouro das minas; e descobrir as de prata; e dos grandes emolumentos,
que esta conquista da América Meridional dá ao Reino de Portugal com estes, e outros gêneros, e
contratos reais, publicado em 1711, teve sua edição apreendida e destruída. A obra só seria
reimpressa mais de um século depois.
Mesmo debaixo desse crivo rigoroso, sucediam-se as iniciativas para
implementação de tipografias no Brasil, algumas até sob a proteção dos governadores. A
primeira de que se tem registro instalou-se em 1706 no Recife, para imprimir papéis
comerciais e orações religiosas. Uma Carta Régia, porém, determinou o seu seqüestro, a
8 de junho do mesmo ano. Em 1747 uma nova Carta Régia poria fim a outra tentativa
similar. No dia 6 de junho o governo portugs ordenou ao conde de Bobadela, governador
da Capitania do Rio de Janeiro, que seqüestrasse e remetesse a Portugal a oficina tipográfica
de Antonio Isidoro da Fonseca. Seguramente o tipógrafo não seria nenhum panfletário
problemático, apenas um pacato cidadão empreendedor. A mais citada das obras que ele
editou foi a Relação de Entrada, do bispo D. Antonio do Desterro, redigida por Luis Antonio
Rosado da Cunha. Considerada a primeira obra impressa no Brasil, a “relação”
29
descrevia as
festas e cerimônias por ocasião da chegada do bispo à cidade e fora escrita sob licença do
próprio bispo.
Historiadores como Carlos Rizzini e Antonio Costella mencionam uma outra
tentativa de instalação da imprensa ocorrida ainda na primeira metade do século XVII,
durante o período do domínio holandês no Nordeste. O príncipe Maurício de Nassau
haveria tentado implantar uma tipografia no Recife, mas o projeto não foi adiante por
falta de um tipógrafo para substituir o artesão holandês que morrera em viagem antes de
chegar ao Brasil. Citam ainda uma outra ocorrência, nos lados das Minas Gerais
(RIZZINI, 1946).
Ali, em 1806, dois anos antes da criação da Impressão Régia, um padre mineiro,
José Joaquim Viegas de Menezes, publicou na cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto) um
folheto de 18 páginas, com um texto em louvor a Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo,
governador da Capitania de Minas Gerais. Mas sua impressão não foi realizada em uma
tipografia nos moldes da invenção de Gutenberg e seus tipos móveis. O padre Viegas de
Menezes utilizou a experiência adquirida no tempo em que trabalhara na Oficina
Tipográfica, Calcográfica e Literária do Arco do Cego, em Lisboa, gravando em metal,
letra por letra, a poesia – num processo semelhante ao da fabricação das cartas de
baralho. Supõe-se que, para esse fim, tenha utilizado os equipamentos da Casa da Moeda
de Vila Rica (COSTELLA, 1978: 88-92).
Apenas com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, esse
panorama começaria a mudar. De fato, essa data é vista, por alguns historiadores, como
a da verdadeira independência do país, muito mais do que o grito do Ipiranga, de 7 de
setembro de 1822. Foi a partir da vinda da Corte que a Colônia passaria a Reino Unido
sete anos depois, ingressando num outro período de sua história. Diz o cronista:
A agitação tomou conta da cidade que, transformada em sede da monarquia de um dia
para o outro, viu-se na contingência de abrigar cerca de 15.000 fidalgos e funcionários
vindos da Metrópole. Surpresas ainda maiores aguardavam a outrora pacata colônia. No
dia 1° de abril, um alvará de D. João liberou a instalação de manufaturas, suspendendo
proibição datada de 1785. Aos poucos, a vida da cidade começou a mudar. Foram criados
o Horto Real, a Academia Militar e a Marinha, o Hospital e Arquivo Militar, e a Fábrica
de Pólvora. Fundaram-se, ainda, a Junta do Comércio, o Banco do Brasil, a Escola Médi-
co-Cirúrgica e a Biblioteca Real, a princípio aberta apenas a estudiosos e depois ao públi-
co, com um rico acervo de preciosidades reunidas na Europa, constituindo, posterior-
mente, o fundo da Biblioteca Nacional (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 6-7).
43
O Brasil, desde a Restauração Portuguesa (com o fim da União Ibérica, em que
Portugal fizera parte do reino espanhol, de 1580 a 1640), ganhara destaque nos interesses
da metrópole, que fora perdendo suas possessões asiáticas e algumas da África para a
Holanda, Inglaterra e outros países europeus
30
. Além disso, era mais fácil para Portugal
contar com a proximidade do Brasil. O sucesso do cultivo da cana e da produção do
açúcar, do tabaco e finalmente a descoberta das minas de ouro vieram reforçar esse
interesse, ausente nos primeiros anos da colonização. Foi no período que vai de 1777 a
1808, chamado pelo historiador Ciro Flamarion Santana Cardoso de “a última fase
verdadeiramente colonial”, que o Brasil passa por um processo real de ocupação e de
povoamento. Escreve o historiador:
Em vinculação, primeiro, com a extração do ouro, mais tarde com uma economia agríco-
la revitalizada e em função, também, do empobrecimento da metrópole, a maior colônia
portuguesa recebeu, no final do século XVIII, uma verdadeira invasão de pessoas –
homens, sobretudo – vindas de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Açores,
Madeira. Paralelamente, intensificavam-se a imigração forçada de africanos e os proces-
sos internos de crescimento, sendo impressionante o rápido aumento da população mes-
tiça livre. A população passou de um milhão e meio em 1754 para dois milhões e meio
em 1808 (CARDOSO, 2000: 120).
É nesse ano de 1808 que o país ganha de uma cartada os 15 mil novos habitantes, a
Corte que se traslada para o Rio de Janeiro, em fuga da invasão das tropas napoleônicas. E
nos porões de uma das naus da frota, a Medusa, veio de Lisboa um jogo de prelo com seus
pertences. Era uma tipografia completa encomendada na Inglaterra por D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, futuro conde de Linhares, para servir a sua Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra. Não tendo sido usada, encontrava-se ainda encaixotada na ocasião
do embarque para o Rio de Janeiro (MORAIS, 1993). Era o fim desse longo período de
escuridão, como escreveu, laudatoriamente, o cronista Luiz Gonçalves dos Santos,
conhecido como o Padre Perereca:
O Brasil, até ao feliz dia 13 de maio de 1808 não conhecia o que era tipografia: foi
necessário que a brilhante face do Príncipe Regente Nosso Senhor, bem como o reful-
gente sol, viesse vivificar esse país, não só quanto à sua agricultura, comércio e indústria,
mas também quanto às artes, e ciências, dissipando as trevas da ignorância [...]. Sua
Alteza Real foi servido mandar que se estabelecesse nesta Corte a Impressão Régia, para
nela se imprimirem exclusivamente toda a legislação, e papéis diplomáticos, que emana-
rem de qualquer repartição do real serviço, e também todas, e quaisquer obras. Conceden-
do a faculdade a seus administradores para admitirem aprendizes de compositor, impressor,
batedor, abridor e demais ofícios que lhe sejam pertencentes (SANTOS, L.G. Memórias para
servir à história do Reino do Brasil, apud LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 124).
Ou seja, mesmo com todo o entusiasmo do cronista Luiz Gonçalves Santos, a
imprensa chegava ao Rio de Janeiro exatamente 215 anos depois de haver sido instalada
na capital peruana. Também o missionário americano Robert Walsh, de passagem pelo
Brasil no final dos anos 1820, escreveu:
Naquele primeiro ano também foi introduzida essa poderosa máquina de conhecimento
e poder, a impressora. Durante três séculos esse instrumento estivera proibido no Brasil
por causa de seus efeitos supostamente perigosos, e só em 1808, segundo fui informado,
é que esse grande país teve permissão de imprimir a página de um livro. Talvez nada
possa ser mais indicativo do deplorável estado de ignorância em que esse lindo país se
encontrava, ou do rápido progresso que o povo fez desde a difusão do conhecimento,
que esse fato (WALSH, 1985: 81-82).
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
44
Esse medo dos possíveis danos provocados pela imprensa já havia estabelecido
políticas rígidas de controle sobre importação de livros e papéis – o pouco que chegava
vinha escondido em sacos de farinha e outras mercadorias, como já se referiu dos relatos
deixados por Bento Teixeira em seu processo na inquisição.
1.5. Um começo lento: traduções e compêndios
A tipografia, no entanto, era naqueles primeiros anos uma exclusividade do governo,
que detinha o poder de censura: só se publicaria o permitido e aprovado, visto que
particulares não tinham acesso à imprensa. Assim, a segunda impressora a funcionar no país,
na Bahia, abriu suas oficinas em 1811, tendo à frente o patrício Manuel Antonio da Silva
Serva, indicado para essas funções pelo governador e pelo bispo diocesano. Silva Serva criará
no mesmo ano o jornal Idade d´Ouro do Brasil e de suas oficinas gráficas sairá, em 1812, o que
se considera a primeira revista do Brasil, As Variedades ou Ensaios de Literatura.
Essa censura oficial a que a imprensa esteve submetida em seus primeiros anos
será abolida em 1821, por decorrência da Constituição imposta a Dom João VI após
a Revolução do Porto, de 1820. Com o final da censura, foi abolido também o
monopólio estatal, possibilitando o funcionamento de outras tipografias, que aos
poucos vão se abrindo em distintas províncias do Império. Mas esse processo seria
lento, sobretudo se comparado com o que ocorria nos Estados Unidos. Segundo
Peter Burke, em 1775 já havia em circulação nos Estados Unidos 42 jornais
diferentes. Por volta de 1800, chegavam a 178 semanários e 24 jornais diários
(BRIGGS&BURKE, 2004: 104-105).
Nem mesmo o fator da novidade mudou as perspectivas: a tipografia não se
revelou de entrada um negócio rentável entre nós. Afinal, num país de analfabetos não
havia demanda por obras impressas, periódicos ou livros, pois a leitura não fazia parte do
cotidiano do brasileiro. Não se formara, como ainda não se formou até hoje, um público
leitor estável. A leitura é um hábito que se cultiva no marco de outros hábitos. O filho lê
porque viu o pai lendo, por ser estimulado no ambiente familiar e escolar – e como se
daria isso num país sem escolas? A leitura, como se sabe, gera novas leituras. Como diz
Ítalo Calvino:
Os clássicos são livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que
precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram [...] Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer
tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não
posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são
incrustações, deformações ou dilatações (CALVINO, 1994: 11).
Também por causa desses fatores, a Impressão Régia sempre se debateu com
problemas financeiros, tanto que para aliviar o orçamento e proporcionar alguma renda
extra o governo anexou-lhe, em 1811, a Fábrica de Cartas de Jogar, contando com um
lucro mais certo e seguro com a venda de baralhos. E nisso a história se repete: não por
acaso na origem dos sistemas de impressão, nos tempos pré-Gutenberg, estava
justamente a demanda por baralhos como a parte rentável do negócio de impressão.
Mas, ainda que nascida à sombra do governo e dependendo de “nihil obstat” e de
“imprimatur”
31
não apenas de censores governamentais como dos eclesiásticos, a
Impressão Régia não se limitou a publicar os atos e as proclamações do Estado,
tornando-se um centro impressor de relativo peso. No mesmo ano de sua criação, em
1808, foi lançada a Gazeta do Rio de Janeiro, uma espécie de diário oficial, o primeiro
periódico brasileiro. Era editado por um funcionário do corpo diplomático, Frei Tibúrcio
José da Rocha, de quem pouco se sabe.
45
Falam-se muitas generalidades sobre essa publicação, quase sempre citando
informações de terceira-mão, nos manuais de história da imprensa, mas o periódico seguia
grosso modo o que era o padrão dos periódicos de sua época: um clipping de notícias. Esse
era o formato dos jornais em quase todo o mundo, dar conta das notícias que chegavam por
navio, de outros jornais, da correspondência, diplomática ou não.
32
A Impressão Régia também patrocinou a publicação de livros didáticos – esses uma
espécie de apostila e de traduções condensadas de livros didáticos franceses, sobretudo nas
áreas das ciências exatas –, além de compêndios de gramática e até um livro infantil, o
Leituras para meninos, de autoria de José Saturnino da Costa Pereira (irmão de Hipólito José
da Costa). Publicado em 1818, o livro terá diversas reimpressões até 1824 e é considerado
o primeiro exemplar brasileiro de literatura infantil. A preocupação com leitura infantil
também pode ser documentada pela publicação, em 1814, pela mesma Impressão Régia,
das Aventuras pasmosas do célebre Barão de Munchausen.
Segundo Belo Oliveira, em seu levantamento Imprensa Nacional, 1808-1908, entre
1808, quando é implantada, e a data oficial da Independência do Brasil, a Impressão Régia
publicou 1.173 títulos, sendo que 532 obras apareceram entre os anos de 1821 e 1822
(LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 126).
Uma espécie de resenha, publicada no primeiro número da revista O Patriota, em
1813, relaciona alguns desses livros: “Obras publicadas no Rio de Janeiro no presente mês
de janeiro” é o título da seção. A resenha começa com o comentário do “Tratado elementar
de mechanica, por Mr. Francoeur, por ordem de S.A.R., traduzida em portuguez, e
augmentadas de doutrinas extrahidas das obras de Prony, Bossut, Marie &c.: para uso dos
alumnos da Real Academia Militar desta Corte; por José Saturnino da Costa Pereira,
Cavaleiro da Ordem de Christo, Bacharel formado em Mathematica, Capitão Real do
Corpo de Engenheiros, e lente do 3º anno da mesma Academia. 4ª parte, Hydrodynamica”
(segue uma breve resenha elogiosa, de 13 linhas). O livro seguinte a ser comentado é o
Tratado Elementar de Physica, de R.J. Hany, traduzido para uso da Academia Militar. Não tem
seu tradutor nomeado, como no caso anterior, mas o comentarista diz que “pronunciar o
nome do author he fazer o elogio da obra”
33
.
O leitor é um vitorioso, dizem, otimistas, Marisa Lajolo e Regina Zilberman no livro
A formação da leitura no Brasil. Nessa obra em quatro eixos, as autoras mapeiam a) as etapas
da construção do leitorado brasileiro, esse leitor rarefeito e aprendiz; b) a formação do
escritor e do cronista/jornalista, o autor que impulsiona e alimenta a atividade da leitura; c)
a produção do livro escolar e das cartilhas, porta de entrada para o mundo do leitor (e é
notável constatar o verdadeiro parto que foi o país tomar conta da instrução básica); e a
formação dos professores e a criação das bibliotecas; e d) a leitora no banco dos réus: pois
sabidamente é a mulher a força do leitorado que faz a diferença.
Mas as autoras, otimistas, não se iludem, pois sabem:
Não que a leitura seja uma prática sólida no Brasil; nem que as instituições culturais e
pedagógicas encarregadas de sua difusão tenham a consistência ou estejam a salvo das
críticas que, desde o século XIX, a elas são dirigidas. Desde a separação de Portugal,
reclama-se (e com razão) uma atuação mais positiva e competente do Estado, no sentido
de melhorar a educação e a cultura do país; nada indica que hoje essas reivindicações
tenham perdido legitimidade e razão de ser (LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 10).
Estudo realizado por Maria Beatriz Nizza da Silva, e citado pelas pesquisadoras
Lajolo e Zilberman, reproduz anúncios de livreiros cariocas que ofereciam no século XIX
as obras estrangeiras mais modernas de seu tempo: as traduções de Bocage de O consórcio
das flores, epístola de Lacroix, Os jardins, poema de Dellile, e As plantas, poema de René-
Louis Richard; as Fábulas escolhidas, de La Fontaine; Os mártires, ou o triunfo da religião, poema
de Chateaubriand, traduzido e impresso em Paris, em 1816. Bernardin de Saint-Pierre,
criador de Paulo e Virgínia e de A choupana indiana, era o grande preferido, objeto de
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
46
publicação tanto em Portugal como no Brasil, aqui por intermédio da Impressão Régia
(LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 132)
34
.
Como foi dito, a pouca e incipiente rede de ensino que chegou a existir nos tempos
da Colônia entrou em colapso com a expulsão dos jesuítas em 1759 e a chamada Reforma
Pombalina apenas desmantelou o que poderia ter sido um princípio de educação de base.
Apenas bem entrado no século XIX é que algumas iniciativas serão tomadas, como a
criação, em 1837, no antigo Seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro, do Imperial
Colégio de Pedro II. Amigo de literatos, o próprio monarca se considerava um intelectual,
mas pouco fez de concreto para a formação das massas. Ao menos nada que se compare à
cruzada de alfabetização nacional implantada pelo presidente Domingo Sarmiento na
Argentina, formando as bases da escola nacional daquele país.
35
Carência docente, precariedade da formação do magistério e improvisação
presidiram por todos esses anos o ensino da língua materna, no interior da qual começa
a ocorrer a familiaridade do estudante com a leitura
36
. Mesmo assim, entre 1808 e 1816
o número de livrarias no Rio de Janeiro subiu de 2 para 12, e elas se abasteciam
sobretudo em Lisboa, além das obras fornecidas pela Impressão Régia (o papel dos
livreiros será amplamente abordado no capítulo 7).
Essa caminhada foi lenta. Lajolo e Zilberman dão conta de que, em 1855, o
português Emilio Zaluar, proprietário de uma escola localizada em Botafogo, no Rio,
realiza um levantamento no interior de São Paulo. Seu relato mostra magros resultados.
Na cidade de Guaratinguetá, por exemplo, encontrou duas escolas primárias,
freqüentadas por 115 alunos. E mais duas escolas particulares, uma com 48 estudantes e
a outra, para meninas, com 30 assistentes, mais colégios particulares de latim e francês,
totalizando 225 estudantes em toda a cidade. Ali perto, em Pindamonhangaba, depois
em Sorocaba, os números recolhidos pelo pedagogo carioca repetem essa média de duas
escolas por cidade, com uma centena de alunos em cada uma. E duas ou três pequenas
escolas secundárias, com duas dezenas de estudantes. Outro dado apontado pelas
autoras: em todo o atual Estado do Rio Grande do Sul, na altura do ano de 1847,
apenas 1860 meninos e 749 meninas seguiam os estudos primários. Em 1877 havia 14
mil alunos em todo o Rio Grande, que contava na época com uma população em idade
escolar de 52 mil crianças. Ou seja, em uma das províncias mais alfabetizadas do país,
apenas 26% da população em idade escolar era atendida. Daria para projetar uma massa
de mais de 80% de analfabetos na população total do país. Diante desse quadro, é quase
inevitável a pergunta: para quem os romancistas escreviam? E a que público leitor eles
se dirigiam? Que motivação teria um livreiro para levar adiante o seu negócio?
A tomada de consciência da real situação de analfabetismo crônico em que o país
estava mergulhado foi um choque. Esse tema, do susto provocado quando se descobriu
o estado real iletrado em que se encontrava o povo brasileiro, já bem entrada a segunda
metade do século XIX, é um dos melhores momentos de um trabalho recente, Os leitores
de Machado de Assis – o romance e o público de literatura no século 19, resultado da tese de
doutoramento de Hélio de Seixas Guimarães.
A obra aponta o constante interesse do escritor Machado de Assis na recepção e
aceitação de sua obra – o que se nota nas advertências, prefácios e diálogos que ele
estabelece com o leitor, além dos jogos que arma para ele, passando-lhe tarefas de
imaginar cenas e tirar conclusões. Machado chega a pedir licença para interromper a
história ou deixar a cena em suspenso e discutir algum detalhe, no que é uma de suas
características mais notáveis. Com que leitor dialogava ele?
O autor mostra ainda como os romances da época, de Joaquim Manoel de
Macedo, José de Alencar ou do próprio Machado em sua primeira fase, refletem e
espelham esse suposto público leitor, tendo como personagens jovens estudantes e
mulheres leitoras – espelhamento já apontado por Werneck Sodré e Antonio Candido.
De Antonio Candido, Hélio de Seixas Guimarães resgata e comenta certo tom de
47
oralidade que permeia a prosa ficcional brasileira, resquício das leituras realizadas em
voz alta em saraus e reuniões, “o que constituía estratégia importante para aumentar o
alcance da produção literária numa sociedade de analfabetos” – e isso faz lembrar o
clássico texto em que José de Alencar, ao escrever sobre o que o levou a ser romancista,
rememora sua própria experiência como leitor nessas reuniões familiares.
Seixas Guimarães analisa as condições de circulação e recepção da produção
literária no Brasil oitocentista, em que o autor pagava a impressão da obra e depois
enviava à venda porta a porta, por meio dos escravos de ganho ou de serventia, que os
levava em balaios sobre a cabeça
37
. Mas façamos o corte sobre o “susto” provocado pelo
censo geral do império, de 1872.
Uma conjunção de fatores marcou esse período da história brasileira, a década de
70 do século XIX. Esse primeiro recenseamento geral do Império, ocorrido em 1872, foi
um desses fatores. Os outros são constituídos pela progressiva abolição da escravidão
(pela implantação das leis do tipo “ventre livre”, votada em 1871 pelo governo
conservador do visconde do Rio Branco), pelo final da guerra do Paraguai, em 1870,
com a batalha de Cerro Cora, em que morria Solano López. Terminava um conflito
desgastante e que ninguém previra tão longo, deixando um pesado saldo de mortos:
estima-se que morreram 50 mil brasileiros, 35 mil argentinos e 80 mil paraguaios. Mas o
que mais interessa ao nosso estudo foram mesmo as surpresas do Recenseamento Geral
do Império, primeiro censo demográfico realizado no Brasil.
Por um lado os números mostravam que os escravos, que um dia haviam sido
maioria, agora constituíam apenas 15% do total da população (o país contava com
8.419.672 homens livres e 1.510.806 escravos, somando uma população de 9.930.478
pessoas)
38
. Em compensação, destes apenas 54,4% eram de cor branca. O segundo
grupo mais populoso era o dos pardos (16,5%), seguidos dos pretos (14,6%) e dos
caboclos, mestiços de brancos e índios (14,5%). Mas isso não era tudo: o censo havia
introduzido outras categorias a serem mensuradas, como o grau de instrução e de
alfabetização. Quem conta é Seixas Guimarães:
Há muito se sabia da restrição e precariedade da instrução no país, mas os dados do
recenseamento caíram como uma bomba sobre o Brasil letrado. O recenseamento
geral, iniciado em agosto de 1872, teve os trabalhos concluídos quatro anos mais
tarde, quando tiveram ampla divulgação na imprensa. Todos os principais jornais da
corte trouxeram na edição de 5 de agosto de 1876 o texto do ofício [...] com os dados
coletados. No dia 14 do mesmo mês, O Globo, jornal mais progressista em circulação e
sem vínculo direto com qualquer partido político, reproduziu em sua primeira página
texto originalmente publicado em A Província de S. Paulo, intitulado “Algarismos eloqüen-
tes”, que apresentavam alguns dados sobre o índice de analfabetismo, seguidos da cons-
tatação inexorável: “Somos um povo de analfabetos!” (GUIMARÃES, 2004: 88).
Em resumo, os números desmistificavam a visão romântica e nacionalista vigente
até então. Uma parcela muito pequena da população sabia realmente ler. “Os analfabetos
correspondiam a 84% do total apurado pelo censo, que dava uma população de 9 930 478
pessoas, somando livres e escravos”, conta Seixas Guimarães (2004: 103).
Os números e dados são escassos, mas, pelos comentários que se pode ler aqui e
ali, dá para criar algumas cifras. A revista O Mosquito, citada por Seixas Guimarães,
afirma que apenas 550.981 mulheres sabiam ler. Como os dados do Censo apontaram
uma população feminina de 4.806.609 mulheres, pode-se concluir que apenas 11,46%
do público feminino tinham acesso à leitura. Pior, da população em idade escolar,
apenas 17% estavam assistindo às aulas, o que permitira projetar uma taxa de
analfabetismo que passava da casa dos 84%. Isso prevendo que todas as crianças em
idade escolar que assistiam às aulas estariam de fato aprendendo e não engrossando o
percentual dos analfabetos funcionais – ainda hoje uma praga nacional, cravando
praticamente os mesmo percentuais de analfabetos da década dos 70 do século XIX.
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
48
Nada muito discrepante, também, do tema da palestra proferida pelo republicano
Olavo Bilac, conforme citado no estudo de Lajolo e Zilberman:
Em todo o Brasil, de 1.000 habitantes em idade de cursar escolas primárias, em 1907
somente 137 estavam matriculados e somente 96 freqüentavam as aulas; para 10.000 de
todas as idades, havia somente 6 escolas com 7 professores, com 294 alunos de todas as
idades – o que quer dizer que englobadamente, estimando-se toda a população, a relação
de todos os alunos era de 20 por 1.000 (LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 155).
O ensino se torna obrigatório no Brasil em decorrência do Decreto de 19 de abril de
1879, data da última reforma educacional do Império. Seguramente esse decreto é
conseqüência do amplo debate ocorrido entre os letrados a partir da divulgação dos
números do censo, e reflexo do susto e da dura descoberta de que o país não era tão
dourado como se quisera acreditar. Mas sabe-se que decretos não têm eficácia na solução
de problemas. E essa marca analfabeta nos perseguirá até praticamente a segunda metade
do século XX, com os resquícios do analfabetismo funcional que é ainda preocupante.
Mas o acesso à informação e à reflexão e debate de idéias nem sempre passou
apenas pela leitura direta. No livro Uma história social da mídia, Peter Burke faz um
contraponto entre o público letrado e o que ele chama de “letramento mediado” – o uso
do letramento em benefício dos iletrados. Algo que ocorre ainda hoje, aponta ele, em
cidades como Istambul ou México, em que o escrevinhador, em seu escritório na rua,
escreve cartas, faz petições a serem entregues à Justiça, para aqueles que não sabem
escrever. Uma realidade também brasileira, retratada no filme Central do Brasil.
Considerando o público leitor a que se destinavam os romances, folhetins e revistas
do Brasil do século XIX, cabe lembrar ainda, como parte desse letramento mediado, as
sessões de leitura em grupo, como se refere Dulcília Buitoni. Era comum as “senhoras” se
reunirem para a execução de trabalhos manuais enquanto uma delas lia trechos de livro
ou reportagem de revistas. Como era também costume nos países europeus, como nos dá
conta Peter Burke:
A prática medieval de ler alto durante as refeições, nos monastérios ou nas cortes, persis-
tiu nos séculos XVI e XVII. Ler alto em família era comum no século XIX, pelo menos
como ideal, como atestam muitas imagens. É provável que os textos da Biblioteca Azul
39
,
que circularam em regiões onde o analfabetismo era alto, fossem lidos em voz alta nas
villées, ocasião em que vizinhos se encontravam para passar parte da noite trabalhando
ou ouvindo esses textos (BRIGGS&BURKE, 2004: 74).
Ao lado dessas sessões de leitura coletiva houve ainda a convivência e superposição
das tradições orais, das narrativas que se transmitiam de boca em boca, com a leitura dos
textos escritos – esta alimentando aquela, no que o mesmo Burke denomina como
“comunicação multimídia”. A senhora que na reunião de leitura ouvia um conto ou
tomava conhecimento de uma nova prática ou ensinamento contaria mais tarde a suas
comadres e vizinhas a novidade ou as peripécias do herói. Provavelmente muitas das
proezas narradas nos folhetins se disseminavam entre o público e se tornavam populares
nesse recontar, em que a oralidade ainda contava com um peso específico. Sem dúvida
essa será uma das explicações para a grande popularidade que gozaram as revistas
ilustradas do último quartil do século XIX. O próprio Monteiro Lobato, ao fazer o elogio
de Angelo Agostini, reporta que seus desenhos circulavam de mão em mão e deliciavam
os leitores, na cidade e no campo, do chefe de família à petizada:
Era de ver o magote de guris em redor da folha descobrada no assoalho, á noite, á luz do
lampeão de querozene, o mais taludote explicando a um crioulinho, filho da mucama,
como é que o Zé Caipora espaçou ás unhas da onça (LOBATO, 1956: 19).
Foi nesse contexto e para esse rarefeito público leitor que surgiram as nossas
49
revistas. A começar pela efêmera experiência de nosso periódico pioneiro, As Variedades
ou Ensaios de Literatura, na Bahia de 1812. E, no ano seguinte, O Patriota, publicado entre
janeiro de 1813 e dezembro de 1814, pela Impressão Régia do Rio de Janeiro – as
primeiras revistas brasileiras
40
. A partir do próximo capítulo passaremos a analisar seus
conteúdos e discursos – e o quanto elas foram fundamentais no processo da criação das
identidades nacionais. Mas, antes de nos lançar a essa tarefa, cabe ainda uma reflexão.
Discorrendo sobre a etnologia religiosa e a estrutura dos mitos, Claude Lévi-Strauss
escreve, em seu trabalho “Magia e religião: a estrutura dos mitos”,
41
que Saussurre, ao
distinguir entre língua e palavra, mostrou que a linguagem oferecia dois aspectos
complementares: um estrutural e o outro estatístico. A língua pertence ao domínio de um
tempo reversível – a palavra ao do tempo irreversível. Assim também o mito se define por
um sistema temporal que combina as propriedades dos dois. Um mito sempre se refere ao
passado (“antes da criação do mundo”... “no começo dos tempos”), mas seu valor
intrínseco provém de que esses acontecimentos formam uma estrutura permanente que se
articula simultaneamente com o passado, o presente e o futuro.
Lévi-Strauss exemplifica essa ambigüidade fundamental comparando o mito com a
ideologia política: hoje, quando o historiador evoca a Revolução Francesa se refere a uma
seqüência de fatos passados que impactam ainda uma série não reversível de
acontecimentos. Para o político, a Revolução Francesa é uma realidade de outra ordem. É
uma seqüência de fatos do passado mas com um esquema dotado de eficácia permanente,
permitindo interpretar a estrutura social da França atual, com seus antagonismos e suas
discussões sobre direitos de trabalhadores e previdência social, e prever desdobramentos
futuros. Lévi-Strauss cita o historiador francês Jules Michelet: “Naquele dia, tudo era
possível... o futuro esteve presente... ou seja, mais tempo, um relâmpago de eternidade”
(LÉVI-STRAUSS, 1989: 241).
Essa dupla estrutura, diz Lévi-Strauss, ao mesmo tempo histórica e não histórica,
explica que o mito pode pertencer, simultaneamente, ao domínio da palavra (e ser
analisado como tal) e ao domínio da língua (na qual é formulado) e ainda oferecer, num
terceiro nível, o mesmo caráter de objeto absoluto. A partir dessas premissas, o pensador
desenvolve uma grande reflexão (LÉVI-STRAUSS, 1989: 245-251) sobre o mito de
Édipo, decupando suas muitas versões em quatro colunas que deixam expostas as relações
e invariâncias – como podem ser as relações (incestuosas ou de afeto) entre parentes
próximos (coluna a); as relações de conflito (incluindo assassinato) entre esses parentes
próximos (coluna b); o extermínio do inimigo ou adversário (coluna c); e até a incidência
vocabular revelando dificuldades de locomoção (Laio quer dizer “torto” ou “coxo”, Édipo
quer dizer “pé inchado”). Analisar um mito propõe desafios, escreve Lévi-Strauss, e ele
objeta: as distintas e inúmeras versões de um mito poderiam tornar impraticável a tarefa
de analisar seu conteúdo: “O que aconteceria se uma nova versão desordenasse os
resultados obtidos?”, pergunta ele. Pelo contrário, garante, a dificuldade existe realmente
quando se dispõe de poucas, não de muitas versões:
Ao contrário, não se insistirá jamais demasiado sobre a absoluta necessidade de não
omitir nenhuma das variantes que tenham sido recolhidas. Se os comentários de Freud
sobre o complexo de Édipo fazem – como o cremos – parte integrante do mito de Édipo,
a questão de saber se a transcrição feita por Cushing do mito de origem dos Zuni é
bastante fiel para ser conservada, não tem mais sentido. Não existe versão “verdadeira”,
da qual todas as outras seriam cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem
ao mito (LÉVI-STRAUSS, 1989: 252).
O antropólogo conclui: muitos estudos sobre os mitos fracassaram porque os
comparatistas quiseram selecionar versões privilegiadas em vez de considerar todas elas.
Sem querer parafrasear ou comparar, as análises e descrições que serão realizadas pelo
autor deste trabalho nos capítulos a seguir serão novas versões que se somarão a uma
visão panorâmica da história da comunicação no Brasil do século XIX.
Capítulo 1
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
50
Notas do Capítulo 1
1 Segundo o historiador Asa Briggs, nesse período o mercado
de ações era responsável por metade do fluxo de informa-
ções transmitidas por telégrafo, os negócios familiares por
13%; a imprensa por 4% e o governo por 2% (BRIGGS&BURKE,
2004: 145).
2 Roland Barthes dá conta do manifesto de repúdio à torre,
assinado por artistas como Guy de Maupassant, Alexandre
Dumas, filho, Charles Gounod, entre outros. Cf. “La Torre
Eiffel”, in La Torre Eiffel, textos sobre la imagen. Barcelona:
Paidós, 2001, págs. 55-79.
3 Os dados sobre a Exposição Universal são tirados do catálo-
go da mostra Paris na Bela Época, do Museu Solar Mario
Soares, Cortes, Leiria, Portugal, 2000.
4 Como se sabe, Amerigo Vespucci (1454-1512), navegador e
cosmógrafo genovês, realizou duas viagens ao continente
americano, uma em 1499, integrando a expedição espanhola
de Alonso de Hojeda, e outra, a serviço de Portugal, na expe-
dição comandada por Nicolau Coelho. Hábil, Vespucci se
apressou a escrever sobre o “novo mundo”, pois foi o pri-
meiro a intuir que as terras descobertas por Colombo não
eram as Índias. Essa carta Novus Mundus, dedicada a Lo-
renzo de Medici, em que fantasia até o número de suas via-
gens (que ele aumenta para quatro) e seu papel nas mesmas,
foi um dos best-sellers da imprensa que, inventada por
Gutenberg, então engatinhava. Traduzida para quase todos os
idiomas europeus, a obra Novus Mundus acabou fazendo com
que o novo mundo ganhasse o nome de seu autor, América.
5 Os museus são outras das criações do século XIX e as expe-
dições científicas às colônias alimentavam os acervos e os
transformaram em instituições de pesquisa científica. O inte-
resse de governantes em patrocinar expedições estava tam-
bém ligado a essa busca de criar e ampliar o acervo dos
museus que se formavam. O príncipe Maximilian von Alexan-
der Philip von Wied-Neuwed, que visitou o Brasil entre 1815 e
1817 em companhia do naturalista Friedrich Sellow, tinha o
respaldo do recém-criado Museu de Berlim. A missão austrí-
aca de 1817, de que fizeram parte Johann Baptiste Spix e
Carl Friedrich von Martius, foi montada com o objetivo de
coletar material para o acervo de um futuro museu brasileiro
em Viena e para o jardim botânico do imperador austríaco.
Georg Wilhelm Freyriss, que participou da expedição do barão
de Langsdorff, vinha contratado para organizar coleções para
o Museu de Estocolmo. Cf. BELLUZZO, 1994, vol. 2: 96 e 102.
6 Ana Maria de Moraes Belluzzo discorre sobre esse tópico
quando fala do viés com que os viajantes europeus viam e
retratavam o índio, quer do ponto de vista da técnica das
artes plásticas e das convenções da representação (o índio
idealizado, combatendo as forças da natureza), quer da pró-
pria visão de mundo daquela época, em que a etnologia ain-
da estava sob influência do pensamento da escola de Frederich
Creuzer, que tomava os indígenas por degenerações dos po-
vos superiores (BELLUZZO, 1994, vol.2: 96, 99 e 138-139).
7 Além de trabalhos clássicos como Os Bestializados (1987),
Teatro de Sombras (1988) e A Formação das Almas (1990),
entre outros, Murilo de Carvalho é autor do belo ensaio O
motivo edênico no imaginário social brasileiro, sobre a for-
mação identitária brasileira (Revista Brasileira de Ciências
Sociais, 1998).
8 Em seu livro A Identidade Nacional, em que discorre sobre a
formação do sentimento nacional de Portugal, José Mattoso
conta uma singela história: quando o rei Dom Luís, já che-
gando ao final do século XIX, num passeio pelo mar cruza
com seu iate um barco de pescadores, pergunta-lhes, aos
bardos, se eram portugueses. “Nós outros? Não, meu senhor,
somos de Póvoa do Varzim”, foi o que obteve em resposta.
Ou seja, sete séculos de vivência da “nacionalidade” percor-
ridos, e o sentimento de ser “local” era ainda o que mais
pesava para aqueles pescadores do norte de Portugal – ape-
sar dos mitos fundadores e da lírica de Luís de Camões can-
tando a saga nacional (MATTOSO, 1998: 14).
9 Para todos os efeitos, nos remeteremos ao texto espanhol da
edição Obras completas de Sigmund Freud, T III. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981.
10 Stuart Hall trabalha esse tema da identidade inserida na lin-
guagem em seu estudo “Significação, representação, ideo-
logia. Althusser e os debates pós-estruturalistas”. Diz ele
que “também nós somos falados ou falam de nós nos dis-
cursos ideológicos que nos aguardam desde o nosso nas-
cimento, dentro dos quais nascemos e encontramos nosso
lugar” (HALL, 2003, 189).
11 Essa experiência foi relatada por Lacan em 1936: ele obser-
vava como seu filho se reconhecera ao ver sua imagem no
espelho. O “estádio do espelho” foi apresentado por ele no
congresso de Marienbad, naquele ano, e reaparece na co-
municação “O estádio do espelho como formador da fun-
ção do eu”, realizada no XVI Congresso Internacional de
Psicanálise em Zurique, em 1949. Esse texto foi incluído em
Écrits, de 1966. Cf. Lambotte, M.C., “Espelho, estádio do”,
in KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psica-
nálise. O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, págs. 157-161.
12 Aqui convém lembrar a restrição feita por Stuart Hall de que
“a teoria do discurso insiste unilateralmente que uma expli-
cação da subjetividade em termos de processos inconscien-
tes lacanianos constitui, por si mesma, toda a teoria da ideo-
logia”. Escreve ele: “Certamente, a teoria da ideologia deve
desenvolver uma teoria dos sujeitos e da subjetividade como
não fizeram as primeiras teorias marxistas. Ela deve explicar
o reconhecimento do eu dentro do discurso ideológico e
expressá-lo espontaneamente como seus autores. Mas isso
não é a mesma coisa que tomar o esquema freudiano, relido
sob a perspectiva lingüística de Lacan, como uma teoria ade-
quada da ideologia nas formações sociais” (HALL, 2003: 185).
13 De onde se tirou todas essas informações? De fontes por-
tuguesas: os coletados foram coletados do site do Instituto
Camões (
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/
p18.html), de Portugal, e do Novo Milênio (http://www.novo
milenio.inf.br/santos/h0184e.htm),jornal eletrônico da cidade
de Santos. Todas são corroboradas em Os juristas na for-
mação do Estado-Nação brasileiro, de Carlos Guilherme
Mota (2006).
14 Carlos Guilherme Mota cita carta escrita por José Bonifácio
ao Conde de Funchal, onde se define como “português cas-
tiço” – mas observa que ele sentiu na pele o lugar que o
“outro” lhe reservava, pois sendo “uma das personalidades
mais prestigiosas do mundo português, não foi convidado
a vir participar do ministério de João VI no Brasil, pelo sim-
ples argumento, nunca explicitado, de que ‘brasileiro’”
(MOTA, 2000: 218-220).
15 A independência argentina se iniciou com o levante de 25
de maio de 1810, mas o país se consolidou como tal apenas
em 1862, quando Urquiza se deixa vencer na batalha de Pavón
e Bartolomeu Mitre assume a Presidência do que passa a se
chamar República Argentina (Cf. COSTA, 2003? 78-80).
16 Soldo e posição que muitos deles haviam perdido, quase
duas décadas antes, quando a Corte se trasladou ao Brasil,
como narra muito bem Patrick Wilcken em Império à deriva:
a corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio: Ob-
jetiva, 2005.
17 É interessante o comentário que escreve Marcus Cheke a
respeito da monarquia portuguesa no contexto desse início
do século XIX e da folclórica esposa de Dom João VI, a
hispano-italiana Carlota Joaquina, em seu livro Carlota
Joaquina, a rainha intrigante. Rio de Janeiro: José Olpympio
Editora, 1949.
18 João Soares Lisboa teve ativa participação no debate que
se estabelecia na imprensa no período da Independência.
Condenado por enfrentar em seus artigos a autoridade do
imperador, foi anistiado por Pedro I com a condição de que
deixasse o país. Em março de 1824 Soares Lisboa embar-
ca para a Europa, mas na parada que o navio faz em Per-
51
Capítulo 1
nambuco desce e adere à Confederação do Equador, lutan-
do ao lado de Frei Caneca. Ali edita seis números de um
periódico de cunho republicano, o Desengano dos Brasilei-
ros. Morre em plena luta em 29 de novembro desse mesmo
ano de 1824.
19 BURKE, Peter. A cultura popular na idade moderna, Europa
1500-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, sobretudo o
capítulo “A vitória da quaresma: a reforma da cultura popu-
lar”, págs. 231a 265.
20 A revista Educação, da Editora Segmento, publicou, em fe-
vereiro de 2002, uma entrevista com o pedreiro Evando dos
Santos. Migrante sergipano, Evando “veio tentar a sorte no
Rio de Janeiro. Como muitos migrantes em condições iguais
à dele, Evando começou a trabalhar como pedreiro na cons-
trução civil. Enquanto construía casas, tijolo a tijolo, sub-
verteu a lógica e transformou um sonho em realidade, livro
a livro. Batizou esse sonho de Biblioteca Comunitária Josias
Barreto e o incrustou na dura realidade dos moradores da
Vila da Penha. Os primeiros 50 tijolos em forma de livros
foram levantados em 1998. Hoje, esse muro de arrimo já
conta com um acervo de 19 mil exemplares e ampara, além
da vizinhança, qualquer pessoa que só não entra em biblio-
tecas públicas porque se intimida com ‘as regras’ que o
pedreiro se diverte em demolir”. O próprio Evando conta:
“Na minha terra eu só tive contato com literatura de cordel.
No Rio, me converti à Igreja Batista e fui incentivado a ler por
um pastor. Lendo a Bíblia, comecei a me interessar pelos
impérios e lugares nela citados e passei a comprar livros”.
21 É quase impossível não estabelecer uma relação entre esse
tema da formação de um público leitor por meio da religião
com a famosa tese de Max Weber sobre o capitalismo e a
ética protestante.
22 Manuel Mujica Lainez, brilhante escritor argentino, relata,
em um dos contos de seu Misteriosa Buenos Aires, como
teria chegado à capital portenha a primeira edição de Don
Quijote de la Mancha, de Cervantes: escondida numa cai-
xa, em meio a mantimentos e utensílios, num carregamento
aportado à cidade no mesmo ano de 1605 (Buenos Aires:
Editorial Sudamericana, 1999, pág. 39-43).
23 A CPLP é formada por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-
Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Ti-
mor Leste.
24 E países como Angola, independente de Portugal apenas
em 1975, repetem e vivenciam, três séculos depois, a mes-
ma falta de cursos superiores que ocorrera no Brasil dos
inícios de sua vida independente: é aqui em São Paulo, na
Escola Paulista da Magistratura, que muitos juízes angola-
nos vêm completar sua formação. Portugal não havia aber-
to cursos de direito na sua colônia africana.
25 A gráfica da cidade de Córdoba recebeu autorização oficial
apenas em 1761, mas há obras catalogadas na Biblioteca
da Universidade de Córdoba com data de 1733 (a própria
universidade local obteve autorização do papa Gregório XV
para, a partir de 1622, conferir graus). Após a expulsão dos
jesuítas das colônias espanholas em 1767, o centro im-
pressor de Córdoba ficou um tempo abandonado até que,
em 1780, o vice-rei Vértiz y Salcedo a trasladou para a Casa
de los Niños Expósitos de Buenos Aires, onde seguiu ativa
por muitas décadas e foi peça fundamental para a impres-
são dos primeiros jornais argentinos.
26 A primeira impressora da América espanhola foi instalada
na Nova Espanha (México) em 1539, durante o governo de
Antonio de Mendoza, com a colaboração do primeiro bispo
do México, Frei Juan de Zumárraga (MENDOZA, 1997).
27 Um desses povoados, a cidade de Trujillo, na Extremadura
espanhola, é uma boa amostra. Ali se pode ver os imponen-
tes palacetes construídos por alguns desses “conquistado-
res” que fizeram a América, como Francisco Pizarro (1475-
1541), um guardador de porcos que saqueou o Peru, con-
quistando Cuzco em 1533. Ou Francisco de Orellana, o “des-
cobridor” do rio Amazonas.
28 A diferença do enfoque e da perspectiva entre a migração
ibérica e a anglo-saxônica foi devidamente abordada por
Viana Moog em seu livro clássico Bandeirantes e pionei-
ros, paralelo entre duas culturas (Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 1969).
29 Como explica a historiadora peruana María Mendonza
Michilot, as “relações” eram relatos em que se contavam,
em folhas soltas e sem periodicidade, fatos, acontecimen-
tos, sucessos – da chegada de um membro da nobreza à
tragédia de um naufrágio. A primeira relação redigida na
América Latina foi a “Relación del espantable terremoto que
agora nuevamente ha acontecido en la ciudad de Guatema-
la”, publicada em 1541 na cidade do México (MENDOZA,
1999: 24).
30 Portugal foi perdendo terreno em seu projeto de globaliza-
ção por causa da baixa densidade demográfica: houve mo-
mentos, conta Gilberto Dupas, em que os navios lusitanos
tinham um comandante e um ajudante-de-ordem portugue-
ses, todos os demais tripulantes eram contratados em al-
gum canto, incluindo escravos (DUPAS, 2003: 17).
31 Expressões latinas (que significam “nada contra” e “impri-
ma-se”) com que os censores eclesiásticos aprovavam e
permitiam a impressão de textos, livros e folhetos.
32 Não cabe neste estudo alongar comentários sobre a Gazeta
do Rio de Janeiro. Tampouco nos deteremos em análises
sobre o Correio Braziliense – considerado por quase todos
os historiadores o primeiro jornal nacional, quando nem era
editado aqui, não refletia temas locais nem era jornal (o for-
mato e a extensão de mais de 100 páginas por exemplar,
contra as quatro da Gazeta, além do tom didático e doutri-
nário de suas longas matérias, remete a uma revista).
33 Anotações realizadas pelo autor dessa pesquisa, sobre cópia
microfilmada de O Patriota, na Biblioteca Nacional: PR-SOR 24.
34 A popularidade do romance Paulo e Virgínia não é exclusiva
do Brasil. Mujica Lainez, no já citado livro Misteriosa Bue-
nos Aires, faz a própria edição castelhana do livro, exem-
plar impresso em 1816, contar sua história nos momentos
de agonia, quando está sendo destruído pelas traças num
bordel portenho, em 1852. O conto revela as peripécias por
que poderia passar um livro naquela época. Não é só: Emma
Bovary, personagem de Flaubert, era leitora de Paulo e Vir-
gínia. E Lúcia, protagonista de Lucíola, de José de Alencar,
também havia lido o romance de Bernardin de Saint-Pierre.
Machado de Assis também menciona o romance em seu
romance Helena.
35 Escritor e presidente da Argentina, Domingo Sarmiento
(1811-1888) foi contemporâneo de D. Pedro II. Exilado po-
lítico no Chile, organizou, em 1842, o primeiro centro de
formação de professores da América Latina, a Escuela Nor-
mal de Preceptores de Santiago de Chile. Como presidente
da Argentina, pôs em prática muitas das propostas que vira
durante o tempo em que fora embaixador nos EUA: foi de lá
que importou as 50 professoras para formar novos docen-
tes para o ensino básico da Argentina. Cf: Edmundo
Lafforgue. La Escuela Popular. Buenos Aires: Eudeba, 1980.
Dessa base histórica vem o comentário com que a Folha de
S.Paulo abria seu editorial de 4 de março de 2001: “Desgra-
çadamente, o brasileiro quase não lê. Segundo o Anuário
Editorial Brasileiro, existe no país uma livraria para cada 84,4
mil habitantes. A vizinha Argentina tem uma para cada 6.200”.
36 Lajolo e Zilberman realizam um panorâmico levantamento
do livro e da escola, vasculhando os modelos de escola
retratados na literatura e as atitudes do leitor que se espe-
lham nas obras de escritores como Machado de Assis, José
de Alencar ou de Raul Pompéia – e seu Ateneu, que tem
como cenário justamente uma escola. As autoras nos intro-
duzem no mundo do livro didático e dos centros de estu-
dos: ficamos sabendo que Pompéia satiriza e retrata um
educador famoso da época e seu colégio. O educador, Abí-
lio César Borges, que fora diretor de Instrução Pública na
Bahia em 1856, publicava manuais de ensino e dirigia o
Colégio Abílio, matriz de O Ateneu da ficção.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
52
37 Nota-se em muitas gravuras feitas pelos viajantes a presen-
ça do negro carregando o cesto com livros, como nos de-
senhos de Henry Chamberlain – mostrado no livro de Seixas
Guimarães (pág. 58).
38 “Em 1818, de seus 3.817.900 habitantes, 1.887.900 eram
livres (sendo 1.043.000 brancos, 585.500 mestiços e 259.400
índios) e 1.930.000, escravos” (CARDOSO, 2000: 125).
39 Biblioteca Azul é a expressão utilizada para designar as bro-
churas populares, vendidas por ambulantes no interior dos
países europeus. O nome vem da encadernação, em um pa-
pel áspero azul. Essas brochuras circularam até o final do
século XIX e, em alguns lugares, até o início do século XX.
40 A palavra “revista” foi utilizada pela primeira vez no título de
uma publicação nacional em 1828: a Revista Semanária
dos Trabalhos Legislativos Câmara dos Senhores Deputa-
dos, lançada naquele ano no Rio de Janeiro. Mas coube aos
ingleses o pioneirismo do uso do termo “revista”, com o
periódico criado por Daniel Defoe em 1704, chamado A
Weekly Review of the Affairs of France, rebatizado três anos
mais tarde como A Review of the State of British Nation.
Jornalista panfletário, o autor do clássico Robinson Crusoé
registrava na Review as suas opiniões políticas, ao lado de
artigos enfocando temas amenos, como bodas e jogos.
Escrita quase que somente por Defoe, a publicação queria
“pôr o leitor em contato com o conhecimento do mundo”,
que de outra forma “se contentaria com sua própria igno-
rância, sem nada fazer para erradicá-la”.
41 LÉVI-STRAUSS, Claude. “Magia e religião: a estrutura dos
mitos”, in Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989.
53
Capítulo 2
As surpresas de um
início moroso: 1812-1830
A idéia contemporânea de Brasil se funda quando se consolida na
historiografia uma idéia de nação. Nação que, na construção de seu imaginário,
teve seu “embrião” na colônia, depois uma origem precisa entre 1817 e 1824,
uma guerra (em verdade duas: contra os portugueses de Avilez e Madeira,
e a Cisplatina), um lugar de nascimento (no riacho do Ipiranga; depois,
o “berço esplêndido”), mais os traumas de nascimento, uma família com o avô liberal
(d. João VI), um pai jovem e impulsivo (o príncipe d. Pedro),
uma mãe austríaca e sábia (d. Leopoldina), um inimigo conspirador
na família (d. Miguel, lembrando a velha estória dos irmãos inimigos),
um hino com uma letra fantástica, o padrinho velho e sábio José Bonifácio, o Patriarca,
que em época de crise volta a ser chamado para cuidar do neto-menino Pedro II.
E, complementando o quadro, Domitila, a marquesa de Santos,
além do amigo boêmio Chalaça. Claro que existem problemas, sobretudo
com a tutela estrangeira (inglesa) e com a escravidão (de negros africanos),
reforçando o paternalismo duro de Pedro e a “bondade” do avô Andrada...
Imaginário que se sustenta com a continuidade bragantina, suavizada com o
segundo Pedro, jovem, sábio e – sobretudo – já brasileiro.
Carlos Guilherme Mota, A viagem incompleta. São Paulo: Senac, 2000, pág. 233.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
54
1813 O Patriota: jornal litterario, politico,
mercantil, do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ: Impressão Régia,
1813-1814 (18 números)
1821 O Espelho
Rio de Janeiro, RJ: Imprensa
Nacional, 1821-1823 (168 números)
1822 Annaes Fluminenses de Sciencias,
Artes e Literatura
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Santos
e Sousa, 1822 (1 único número)
Redator: Jose Vitorino dos Santos
e Sousa
1823 O Mosquito Brasileiro
Rio de Janeiro, RJ: Imprensa
Nacional, 1823 (2 números)
1826 Jornal Scientifico, Economico e Litterario
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Torres,
1826 (3 números)
Redatores: José Vitorino dos Santos
e Sousa e Felisberto Inácio Januário
Cordeiro
1827 O Espelho Diamantino: periódico de
política, litteratura, bellas artes,
theatro e modas
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de
Plancher-Seignot, 1827-1828
(13 números)
Editor-responsável: Chevalier
Redator: Julio Floro das Palmeiras
O Propagador das Sciencias Medicas
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de
Plancher-Seignot, 1827-1828
(12 números)
Redator: J.F. Sigaud
1828 Revista Semanária dos Trabalhos
Legislativos da Câmara dos
Senhores Deputados
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do Diario,
1828 (19 números)
1830 O Beija-Flor: annaes brasileiros de
sciencia, política, litteratura, etc.
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Gueffier
e C., 1830-1831 (8 números)
O Amigo das Letras
São Paulo, SP: Typ. do Farol
Paulistano, 1830 (24 números)
Redator: Josino do Nascimento Silva
55
A
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ARIEDADES
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PRIMEIRA
NOVELA
NACIONAL
: A P
ERIQUITA
.
Os inícios do Brasil independente foram tempos conturbados, pois não houve um
projeto ou esboço claro de nação, aquele acordo plebiscitário de que nos fala Ernest
Renan
1
. Eram interesses e visões diferentes e muitas vezes antagônicos e em conflito.
Assim, aclamado imperador e defensor perpétuo do país, Dom Pedro I passa rapidamente
a ocupar o locus de inimigo público número 1, como se lerá adiante, numa inflamada
página do periódico recifense Espelho das Brasileiras – a imprensa será, por sua vez, a arena
privilegiada onde se travam muitas dessas pelejas.
É nas páginas dos jornais e pasquins que se discutem então os diferentes projetos de
país, como era pela imprensa que se sabia das discussões e insucessos dos representantes
ou deputados das províncias do Brasil nas Cortes portuguesas de 1821, que debatiam
sobre a Carta Magna que seria também a nossa. Nesse sentido, o jornalismo foi um
amarrador e um detonador dessas reflexões e tomadas de consciência que estão nas
origens de nossas identidades.
As primeiras revistas brasileiras foram surgindo aos poucos, após a liberação do uso
da imprensa com a chegada da família real portuguesa em 1808 e a elevação, sete anos
depois, do Brasil à condição de Reino Unido. Durante muitos anos O Patriota, periódico
mensal de cunho didático e cultural lançado pela Impressão Régia do Rio de Janeiro no
início de 1813, foi considerado nossa primeira revista. Mas a pioneira havia sido a
publicação baiana As Variedades ou Ensaios de Literatura.
Já se abordou, no capítulo anterior, sobre a imprecisão ou anacronismo em utilizar o
termo “revista” para esse período, pois ainda não estava delimitado o que era constitutivo
de uma revista ou de um jornal, tanto que algumas revistas se referiam a si próprias como
jornal. A melhor palavra para nomear as publicações dessa época seria “periódico”,
deixando os termos “revista” ou “jornal” para designar apenas os impressos surgidos no
último quartil do século XIX. Foi a partir de 1870, quando o telégrafo, o telefone, a
fotografia e a prensa a vapor haviam sido implantados, que se delimitou muito bem o
campo das publicações. Com a rapidez da chegada das notícias, cabe ao jornal e à
imprensa diária dedicar-se ao que se convencionou chamar de hard news: a tragédia, a
catástrofe, o fato ocorrido na véspera. E às revistas, sobretudo as ilustradas, estariam
reservadas a informação em profundidade, a análise, a crítica, o entretenimento
2
.
No começo do século XIX essa delimitação de competências não é clara. Tanto é
assim que o periódico Correio Braziliense ou Armazem Literario, lançado por Hipólito José da
Costa Pereira Furtado de Mendonça em Londres, em 1808, impresso por W. Lewis,
Paternoster Row, considerado por muitos historiadores como “nosso” primeiro jornal, era
na realidade uma revista de periodicidade mensal. Seu primeiro número, aparecido em
junho de 1808, teve 80 páginas, o número 2, de julho, chegou a 72 páginas (indo, na
numeração crescente comum no período, da página 81 à 152) e o 3, de agosto, subiu para
102 páginas (ia da página 153 até a 254). Como se sabe, os “jornais” da época tinham
uma média de 4 páginas, com periodicidade de duas vezes por semana, como foi o caso da
Gazeta do Rio de Janeiro.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
56
Por não ser editado ou publicado no Brasil, o Correio não será objeto de nossa
análise
3
. Já foi, ademais, objeto de exaustivos estudos. Assim, neste capítulo, além do
periódico baiano As Variedades, e do carioca O Patriota, analisaremos o período da
efervescência dos pasquins e nos deteremos numa análise dos Annaes Fluminenses, publicação
de um único número, e do que teria sido a primeira revista feminina, O Espelho Diamantino,
editado no Rio de Janeiro e que circulou entre 1827 e 1828. Faremos, ainda, uma rápida
análise de uma publicação surgida na capital do Império e que circulou no idioma francês,
o L’Écho de l’Amérique du Sud. O capítulo se encerra com a abordagem da revista O Beija-Flor
e o início dos folhetins na imprensa nacional. E, num anexo, reproduzimos na íntegra a
primeira “novela brasileira”, a história de Olaya e Julio, ou “A Periquita”.
2.1. As Variedades: primeira revista – peça roubada
Nascida como um filhote do jornal Idade d´Ouro do Brazil, na cidade de São
Salvador, o primeiro número da revista As Variedades ou Ensaios de Literatura apareceu em
janeiro de 1812. A Idade d’Ouro foi o segundo jornal a ser publicado no Brasil, fundado e
publicado pelo tipógrafo português Manuel Antonio da Silva Serva, sob o patrocínio do
governador da Bahia, Dom Marcos de Noronha e Brito, o oitavo Conde dos Arcos
4
. O
primeiro número de Idade d´Ouro do Brazil apareceu a 14 de maio de 1811, sendo editado
por mais de uma década: o último número circulou em 24 de junho 1823 (segundo a
ficha catalográfica da Biblioteca Nacional). Entre os redatores desse primeiro jornal
baiano estiveram o padre e funcionário Ignácio José de Macedo e logo depois o bacharel
desterrado Diogo Soares da Silva Bivar, o responsável por nossa primeira revista.
O português Manuel Antônio Silva Serva chegara à Bahia no final do século
XVIII, estabelecendo-se como comerciante. Protegido do governador da capitania, o
conde dos Arcos, ele conseguiu, em fevereiro de 1811, autorização para a instalação, em
Salvador, de uma tipografia. Três meses mais tarde, a 14 de maio de 1811, saía o
primeiro número do jornal A Idade d’Ouro do Brazil. Além do jornal, a tipografia chegou a
editar alguns livros, que eram vendidos sobretudo em Salvador e no Rio de Janeiro
5
. Sua
pequena empresa editorial continuou ativa, mesmo após sua morte, ocorrida em 1819,
sobrevivendo até a década seguinte, quando o jornal termina logo após a independência
do Brasil e num período em que muitos prelos começavam a funcionar.
O periódico de Silva Serva se encarregou de fazer propaganda da nova publicação
de sua casa tipográfica, avisando os leitores: “Saiu à luz o primeiro folheto do periódico
pertencente ao mês de janeiro, que se denomina As Variedades ou Ensaios de Literatura”.
Vendida por assinatura, como serão vendidas quase todas as revistas brasileiras do século
XIX, a publicação conclamava seus leitores a “concorrer para a subscrição que há de se
abrir na Loja da Gazeta”, já que “sem a antecipada certeza de uma pronta saída, não é
possível que semelhante empresa se leve avante”.
O periódico As Variedades se propunha, segundo informava o jornal A Idade d’Ouro
do Brazil, a publicar
“discursos sobre costumes e as virtudes morais e sociais; algumas novelas de escolhido
gosto e moral; extratos de história antiga e moderna, nacional ou estrangeira; resumos
de viagens; pedaços e autores clássicos portugueses – quer em prosa, quer em verso –
cuja leitura tenda a formar gosto e pureza na linguagem; algumas anedotas e (...) algu-
mas vezes oferecerá artigos que tenham relação com os estudos científicos propriamen-
te ditos e que possam habilitar os leitores a fazer-lhes sentir a importância das novas
descobertas filosóficas” (VIANA, 1945: 13-14).
Com a aparência de um livro, a revista trazia, numa massa densa de texto, artigos
57
como: “Sobre a Felicidade Doméstica”, “Costumes e usos no México”, “Instrução
Militar”; “Quadro Demonstrativo ou Cronologia da Filosofia Antiga”; “Teoria Nova e
Curiosa sobre a Origem dos Gregos”; “Da Ciência e das Belas Artes”; “Anedotas e Bons
Ditos”. Segundo Inocêncio Francisco da Silva, citado por Hélio Viana em sua Contribuição
à história da imprensa brasileira (1812-1869),As Variedades – Bahia. Na Tipografia de
Manuel Antônio da Silva, 1872 (sic, quis dizer 1812). O número 1 compreende 30 páginas,
e os números 2 e 3, reunidos, continham 67. Com artigos políticos, históricos e morais,
anedotas, etc.” (VIANA, 1945: 11).
Garantem alguns historiadores: todas essas matérias publicadas teriam saído da
pena de Diogo Soares da Silva e Bivar, um dos raros homens cultos da Bahia no início do
século XIX. Para Bivar, não era fácil editar a revista, em virtude das circunstâncias
“difíceis e espinhosas” em que o fazia – um eufemismo para dizer que o redator escrevia
e editava a revista numa cela da Fortaleza de São Pedro, onde se encontrava preso.
Diogo Soares da Silva e Bivar era filho do Dr. Rodrigo Soares da Silva Bivar (1722-
1809), médico formado em Coimbra. Nascido em Portugal, no dia 6 de fevereiro de
1785, na vila de Abrantes, na fronteira com a Espanha, Diogo diplomou-se em Direito
também em Coimbra e se estabeleceu na sua Abrantes natal, onde exerceu cargos
públicos, como inspetor de plantação de amoreiras, diretor da fiação de bichos de seda da
cidade e administrador de tabacos.
Durante a ocupação francesa, hospedou o general Andoche Junot, o chefe das tropas
invasoras de Napoleão. Dele aceitou o cargo de juiz-de-fora na vila de Abrantes. Foi por
isso processado e condenado quando terminou a ocupação francesa. Assim, Bivar saíra de
seu país aos 24 anos, a caminho do exílio em Moçambique, onde deveria cumprir pena de
degredo perpétuo por haver colaborado com as tropas napoleônicas durante a invasão a
Portugal. Acabou aportando na Bahia, numa das costumeiras escalas que faziam os navios,
para renovar suprimentos e seguir viagem para o outro lado da África.
Na passagem pela Bahia, durante a escala do navio, o jovem bacharel despertou a
atenção do tipógrafo Silva Serva, que, com o beneplácito do governador da capitania,
Dom Marcos de Noronha e Brito, consegue que Diogo Bivar fique na cidade, passando a
redigir com o padre Ignácio José de Macedo o jornal Idade d’Ouro do Brazil. Bivar
trabalhava e escrevia no cárcere, e só viria a ser anistiado em 1821, por um decreto de
Dom João VI, recuperando todas as “suas honras e direitos” (LUSTOSA, 2000: 302-
303), e transferindo-o para o Rio de Janeiro. A empreitada de editar a revista As
Variedades ou Ensaios de Literatura ficou praticamente por sua conta.
A revista foi anunciada na edição de Idade d’Ouro do Brazil de 7 de fevereiro de 1812
com este texto:
Até 10 do corrente há-de sair do prelo e pôr-se em venda ao público o 1
o
folheto,
pertencente ao mês de janeiro, do periódico denominado As Variedades ou Ensaios de
Literatura. As pessoas que quiserem subscrever para a sua compra podem dirigir-se à
Loja da Gazeta (VIANA, 1945: 13-14).
A 11 de fevereiro o jornal voltava à carga: “Saiu à luz o 1
o
folheto do periódico
pertencente ao mês de Janeiro, que se denomina As Variedades, ou Ensaios de Literatura.
Vende-se na Loja da Gazeta pelo preço de 500 Réis”. A revista deveria aparecer
mensalmente, mas já em março o jornal alertava:
O redator do periódico denominado As Variedades ou Ensaios de Literatura prévine o res-
peitável público desta cidade e em especial os senhores assinantes, que benignamente
teem prestado para a compra do mesmo periódico, que tendo sido atacado de grave
enfermidade, que por ora o tolhe da menor aplicação e cuidado literário, há-de por tal
sofrer alguma demora a publicação dos folhetos pertencentes aos meses de fevereiro e
março, que contudo se acham redigidos e acabados. No entretanto que o redator se
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
58
Reprodução das capas de As Variedades, publicadas no livro Contribuição à história da imprensa
brasileira (1812-1869), de Hélio Viana. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.
restabeleça completamente, espera ele que o número das assinaturas, até aqui muito
limitado, se aumentará consideravelmente, a fim de que se indenize ao menos as despe-
sas de impressão (VIANA, 1945: 14).
Em 28 de julho de 1812 a Idade d’Ouro irá anunciar o aparecimento simultâneo dos
fascículos de fevereiro e março, ao preço de 1$120. Com esse número duplo a publicação
encerrava sua trajetória. Os baianos, ao que parece, não se entusiasmaram com a
novidade, certamente porque o editor da publicação utilizava uma linguagem séria
demais
6
. Em sua alentada História da imprensa no Brasil, Nelson Werneck Sodré faz o
seguinte comentário:
As Variedades tirou dois números, no início de fevereiro e nos fins de julho de 1812, este
duplo. Propunha-se a divulgar discursos, extratos de história antiga e moderna, viagens,
trechos de autores clássicos, anedotas, etc. Suas características de jornal, assim, eram
muito vagas. Foi ensaio frustrado de periodismo de cultura – destinava-se a mensário –
que o meio não comportava. Tanto assim que, apesar de todos os esforços, durou dois
anos apenas (SODRÉ, 1999: 30).
Não restam exemplares de As Variedades ou Ensaios de Literatura – segundo
depoimento do pesquisador Vladimir Sacchetta, da Casa da Memória, que realizou o
alentado levantamento sobre história das revistas para a Editora Abril (base do livro A
59
Revista no Brasil, edição comemorativa dos 50 anos daquela editora). Vladimir recebera a
incumbência expressa de fotografar o número 1 de nossa primeira revista. Missão
impossível, conta ele. O último exemplar teria sido roubado do Museu onde se
encontrava, na Bahia.
2.2. O Patriota: imprensa áulica ou periódico didático?
Fundada por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, que substituíra Frei
Tibúrcio da Rocha na redação de A Gazeta do Rio de Janeiro (o primeiro jornal
brasileiro), a revista O Patriota circulou de 1813 a 1814, sendo mensal no primeiro ano
e bimestral no segundo. Foi considerada, por muito tempo e por muitos autores, a
primeira revista brasileira, até o resgate da existência de As Variedades, a publicação
pioneira da Bahia.
Espécie de revista cultural, em seus dezoito números de circulação O Patriota contou
com colaboradores ilustres. Segundo Carlos Rizzini, escreviam para a revista os mais
distintos literatos do tempo, como Domingos Borges de Barros, que veio a ser o visconde
da Pedra Branca; Mariano José Pereira da Fonseca, futuro marquês de Maricá; Saldanha
da Gama, Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Além de funcionários ilustres da
administração imperial, como José Bonifácio de Andrada e Silva, Alexandre de Gusmão,
José Saturnino da Costa Pereira, este o irmão de outro editor, Hipólito José da Costa
(RIZZINI, 1946).
O redator da revista, o baiano Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, era
matemático e latinista, lecionara na Academia de Marinha de Lisboa, tornando-se
professor nas Academias Militar e da Marinha com a transferência da Corte para o
Rio de Janeiro. Além de criar O Patriota, ele lançou, anos depois, em 1822, o periódico
O Espelho.
Em sua História da Imprensa no Brasil, Nelson Werneck Sodré destina apenas duas
citações a O Patriota. A primeira delas aparece sob a rubrica “imprensa áulica”, e é também
nesse contexto que faz sua segunda citação. Escreve Werneck Sodré:
O Patriota, do mesmo gênero [que Ensaios de Literatura, apareceu] – entre janeiro de 1813
e dezembro de 1814 – fundado por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, que suce-
dera frei Tibúrcio na redação da Gazeta do Rio de Janeiro, nela permanecendo até
1821. Foi mensário em 1812, passando a bimestral em 1813, vendido o número
avulso a 800 e depois a 1200 réis, ascendendo a assinatura de 4$000 a 6$000 o
semestre. Ostentava por epígrafe os versos de Ferreira: “Eu desta glória só fico con-
tente, / Que a minha terra amei e a minha gente”. [...] Não foram estes os únicos
exemplos da imprensa áulica que o governo joanino forjou ou amparou aqui e fora
daqui (SODRÉ, 1999: 30).
Werneck Sodré reforça que os principais colaboradores, já citados acima por
Rizzini, eram funcionários do governo de Dom João VI. O autor, ao criticar a
periodicidade da publicação, não percebe que a proposta era justamente de ser o que
hoje chamamos de uma revista. E o esforço da Impressão Régia em formar um público
leitor é notável, sendo a publicação áulica ou não. Afinal, onde Nelson Werneck Sodré
queria que o diretor de uma publicação daquele período fosse buscar colaboradores, se
não entre os pouquíssimos cidadãos letrados com que contava o país? Centros
formadores como será a escola de Direito de São Paulo, com sua agitada produção de
panfletos e revistas, só surgirão na segunda metade do século – e mesmo por seus
bancos passarão apenas os membros da elite. Falar em imprensa áulica, como faz
Werneck Sodré, é apenas um anacronismo fruto de uma visão simplista e simplificadora
da história
7
.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
60
Não deixa de ser sintomático que o nome de uma publicação desse período seja O
Patriota. Um reflexo desse momento de afirmação de uma identidade nacional, sem
dúvida, num Brasil que vive seus primeiros passos após o período colonial. Mais um
reforço à idéia de que a imprensa e o jornalismo foram espaços amarradores das
discussões identitárias. Mas analisemos o conteúdo do primeiro número dessa publicação
pioneira.
A revista O Patriota tem apenas um cabeçalho com o seu nome a título de “capa” e,
logo abaixo desse logotipo, vêm as “informações técnicas”:
O Patriota: Jornal litterario, político, mercantil, &tc. do Rio de Janeiro.
Eu desta gloria so fico contente, Que a minha terra amei, e a minha gente.
Ferreira.
Nº 1 – Janeiro.
Rio de Janeiro. Na Impressão Régia. 1813. Com licença.
Vende-se na Loja de Paulo Martin, filho, na Rua da Quitanda, nº 34, por 800 reis. Na
mesma loja se faz a subscripção a 4000 Reis por semestre.
Esses são os dizeres da capa. No miolo da publicação, no formato 18x13 cm, o texto
segue o padrão de livro, ocupando uma única coluna, criando uma mancha tipográfica
forte. A revista começa diretamente com um artigo. No primeiro número esse texto é o de
Acima, foto da capa do nº 1
de O Patriota; à direita,
cópia do microfilme da
Biblioteca Nacional
(PR SOR 42-1).
Abaixo, uma ilustração da
edição 1: um alambique.
61
apresentação com a proposta da publicação. A revista coloca sua missão e suas ambições
para os meses seguintes. “Sem as letras, o progresso seria pífio”, diz, lembrando as
vantagens de se poder ler, nos dias atuais, autores como Arquimedes, Homero, Cícero,
entre outros clássicos. O redator reconhece que o primeiro número não será abrangente,
mas uma publicação se faz completa em sua coleção.
Essa introdução é longa, uma folha de princípios, e ocupa 6 páginas do periódico.
Nas páginas seguintes vão desfilando outros textos. Na página 9, sobre “Artes”, é
apresentado o artigo “Memória sobre o emprego do assucar combinado com a pólvora,
extrahida do Repertorio das Artes, Manufacturas e Agricultura”. No final desse texto há o
crédito da publicação de onde se copiou o artigo: Repertory of Arts, &c nº 125.
Ainda na rubrica “Artes”, o periódico publica o ensaio “Novo methodo para refinar
assucar, por Luiz Honoré Henry Germain Constant, premiado à 27 de Fevereiro de 1812”.
Esse longo tratado começa na página 10 e termina na página 21.
A seguir, sob a rubrica “Agricultura”, a revista publica dois textos, o artigo
“Memoria sobre a cultura do Algodoeiro” (página 22), a que se segue “Memoria sobre a
plantação e fabrico do urucú” (páginas 34 a 39).
Sob a rubrica “Hydrografia” aparece na continuação o artigo “Methodo, que se
seguio no trabalho Hydrografico da Planta do Porto do Rio de Janeiro, no anno de 1810”
(páginas 40 a 59).
A retranca Medicina, que vem a seguir, traz “Proposta da Camara desta cidade
sobre as doenças endemicas e epidemicas, e meios de remedia-las. Resposta do Doutor
Manoel Joaquim Marreiros” (página 60).
A seção “Litteratura”, página 68, abre com uma “Ode á partida de S.A.R. de
Portugal para o Brasil, por B.. E lhe segue a “Ode do Dr. Antonio Ribeiro dos Santos”, à
página 74. Na seguinte aparece uma “Resposta de Francisco de Borjão Garção de
Stockler”, a que se segue uma “Ode de Diniz a Affonso de Albuquerque” (página 79).
A revista, então, dá um refresco ao leitor, com um singelo “epigrama” (pág. 88):
Essa feliz abelha, que imprudente
Tua boca mordeu tão cruelmente,
Digna de perdão, lilia formosa,
Pois ao vê-la julgou que era uma rosa
A esse epigrama se segue, na mesma página 88, a “Lyra inédita de T. A. Gonzaga,
Author da celebre Marilia de Dirceo. (Cabe lembrar que Tomás Antônio Gonzaga havia sido
um dos inconfidentes mineiros, algo a se destacar numa publicação sob censura do príncipe
real.)
Ainda sob a rubrica “Litteratura”, temos na página 91 as “Máximas, pensamentos e
reflexões moraes por hum brasileiro”, a que se segue a “Questão grammatical sobre as
Syllabas, por S. P.. Na página 95, a correspondência.
Sob a rubrica “História”, um texto de viagem pelo sertão de Angola é apresentado
na página 97: “Extrato da viagem, que fez ao sertão de Benguela o Bach. Joaquim José da
Silva”. Bach, como se sabe, é a abreviatura de bacharel.
Um texto sobre “Política” segue na página 101: “Calculo sobre a perda de dinheiro
no Reino, por Alexandre de Gusmão”.
O tratado de paz entre o rei da Suécia e o da Inglaterra é a análise apresentada a
partir da página 108. Na página 110 começa um texto sobre o “Tratado de amizade entre
a Rússia e a Espanha”. Um “Balanço sobre a situação da Europa” abre a página 112. E,
finalmente, na página 124 há uma relação com resenha das publicações da Impressão
Régia: “Obras publicadas no Rio de Janeiro no presente mês de janeiro”.
A primeira obra a ser resenhada é o “Tratado Elementar de Mechanica, por M.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
62
Francoeur, por Ordem de S.A.R
8
., traduzido em Portuguez, e augmentado de doutrinas
extrahidas das Obras de Prony, Bossut, Marie &co: para uso dos Alumnos da Real
Academia Militar desta Corte; por José Saturnino da Costa Pereira, Cavalheiro na Ordem
de Christo, Bacharel formado em Mathematica, Capitão do Real Corpo de Engenheiros, e
lente do 3º anno da mesma Academia, 4ª parte, Hydrodynamica”.
Segue uma breve resenha encomiástica, de treze linhas, sobre esse texto, espécie de
apostila acadêmica, traduzida por José Saturnino da Costa Pereira, com alguns acréscimos
de textos de outros autores. A necessidade de prover de livros didáticos as academias
criadas pelo príncipe regente é uma das missões da Impressão Régia.
O livro seguinte a ser resenhado, “Tratado Elementar de Physica, por R-J Havy,
traduzido para uso da Academia Militar”, não tem seu tradutor nomeado e apenas se diz
que “pronunciar o nome do author he fazer o elogio da obra”.
A revista O Patriota termina seu primeiro número com a seção “Commercio” (pág.
125), com o mapa das embarcações portuguesas e espanholas chegando ao Rio e dali
partindo para os portos ibéricos, com a relação de mercadorias (algodão, tabaco, açúcar).
O índice geral, na página 127, fecha o volume.
Nota-se, na leitura dos textos publicados em O Patriota e sobretudo na montagem da
grade ou do “espelho” de suas edições, a genuína preocupação do editor com o ritmo e com a
variedade das informações. Há artigos (longos) que podem interessar a estudantes e
profissionais de medicina, de engenharia, de agronomia. Há ainda informação de fundo sobre
diplomacia e história. Além disso, o texto do periódico é de fácil leitura, numa linguagem que
surpreende ainda hoje por não cometer construções rebuscadas e preciosismos, sobretudo nos
artigos de formação (como nos ensaios sobre o novo modo de refinar açúcar ou no artigo
didático sobre a plantação do urucu). Não há os floreios e divagações que veremos adiante, na
análise de algumas publicações. A revista transparece uma proposta de formação e didatismo, e
do ponto de vista da linguagem pode ser comparada ao Correio Braziliense em seus artigos
doutrinários e formadores. Não é difícil supor que os leitores das duas publicações se
sobrepusessem, ou seja, que fossem mais ou menos os mesmos. Com a diferença de que O
Patriota seria com segurança leitura recomendada nas escolas que estavam sendo então
implantadas por João VI na nova capital do Reino.
Há uma outra reflexão possível sobre o público leitor dessa publicação, que é a
escassa elite letrada dessa época – público que em nosso país continuará escasso por todo
esse século XIX. A lista de nomes de assinantes, publicada mais adiante pela revista, em
seu número de junho de 1813, abre com a “sereníssima senhora princeza do Brasil, dona
Carlota Joaquina, e a sereníssima senhora infanta D. Maria Izabel”. Muitos nobres que
vieram com a corte, funcionários, professores das academias que começavam a funcionar,
como a Academia Militar, e os alunos dessas escolas, recheiam essa lista de assinantes
publicada pela revista.
A resenha das obras editadas pela Impressão Régia leva a pensar no esforço de
municiar os estudantes dessas escolas com apostilas e publicações técnicas, num país ainda
sem um mercado editorial formado. Tanto que o Tratado Elementar de Mechanica, de M.
Francoeur, fora traduzido e aumentado com outros conceitos tirados de obras de distintos
autores, num trabalho realizado por José Saturnino da Costa Pereira – que, já se disse, era
irmão de Hipólito da Costa, o criador do Correio Braziliense. Daí o papel da Impressão
Régia, em editar manuais para os alunos desses novos cursos. E a divulgação – chapa-
branca ou não – que o redator de O Patriota faz desse incipiente movimento editorial não
deixa de ser uma espécie de incentivo à leitura.
Escrevem Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros: “Voltado para a divulgação
das ciências e das letras, O Patriota reserva um espaço maior para a manifestação de uma
vida intelectual brasileira. Nele encontramos publicadas obras de Cláudio Manuel da
Costa e Tomás Antônio Gonzaga” (MOREL e BARROS, 2003: 52). Sem dúvida, esse
periódico foi mais do que um simples representante da imprensa áulica.
63
2.3. Os periódicos incendiários e a afirmação nacional
Por contraditório que possa parecer, os anos anteriores à Independência foram mais
efervescentes e criativos para a nascente imprensa brasileira do que o período em que já
éramos uma nação independente, após 1822. O movimento liberal conhecido como a
“revolução do Porto” (e que buscava modernizar a metrópole, convocar uma assembléia
constituinte e criar uma constituição para o Império, levando de volta para Portugal a
família real) acabou tendo muitas repercussões na antiga colônia. Pois a modernização
pleiteada pelos “revolucionários” portugueses, se saberia depois, não incluía o Brasil, que
eles queriam ter novamente na condição de colônia. A intenção era não apenas levar de
volta a capital do Império, transferindo a Corte do Rio de Janeiro para Lisboa, mas de
recolonizar o país.
O que interessa é que o fim da censura prévia de publicações, em 1820, uma das
decisões aprovadas pela Junta de Governo da revolução constitucional portuguesa
9
, teve
vigência também para o Brasil. E aqui gerou seus frutos, pois esse foi um período rico em
discussões políticas e no que seria a gestação da consciência de nacionalidade da antiga
colônia.
Como já se disse, haviam ficado aqui os funcionários portugueses, identificados em
tudo com a metrópole. Havia ainda os brasileiros, filhos de portugueses nascidos aqui, que
se beneficiaram com a vinda da família real, e em tudo identificados com a metrópole,
pensando em um Brasil integrante do Reino Unido. Havia os portugueses que adotaram o
país e queriam a sua independência. E havia finalmente os brasileiros que defendiam a total
emancipação dos laços com a metrópole, com posições claramente republicanas, como fora
a idéia dos rebeldes mineiros da Inconfidência.
10
Nesse contexto de discussão e de debates que se seguiu ao momento histórico da
volta da família real para Portugal, e no marco da liberdade de imprensa, há o aparecimento
de muitas publicações em todo o país, mas notavelmente no Rio de Janeiro. Como escrevem
Morel e Barros (2003: 23), “O momento crucial para a emergência de uma opinião pública
começa nos anos 1820 e 1821, contexto que antecede a independência do Brasil e marca
mudanças significativas na estrutura política da Península Ibérica e de seus domínios na
América”. Afinal, tanto Espanha como Portugal, a reboque das transformações provocadas
pelas ocupações napoleônicas, debutarão no mundo dos países regidos por uma
constituição.
Em tal contexto de efervescência política apareceram, só no Rio de Janeiro, em 1821,
os jornais O Amigo do Rei e da Nação (de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, circulou entre
março e junho de 1822), O Bem da Ordem (redigido pelo cônego Francisco Vieira Goulart,
entre março e dezembro de 1821), O Conciliador do Reino Unido (criado por José da Silva
Lisboa, depois Visconde de Cairu, circulou de 1
o
de março a 28 de abril de 1821), O
Despertador Brasiliense (pasquim do mesmo José da Silva Lisboa, publicado em dezembro), o
Diário do Rio de Janeiro (que será comentado dois parágrafos a seguir), O Espelho (fundado
por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, o segundo editor da Gazeta do Rio de Janeiro e
criador de O Patriota, e que circulou de 1
o
de outubro de 1821 até 27 de junho de 1823), o
Jornal de Anúncios (5 de maio a 16 de junho de 1921), A Malagueta (de Luís Augusto May,
periódico publicado de 18 de dezembro de 1821 a junho de 1822, com posteriores edições
“extraordinárias”
11
), O Reverbero Constitucional Fluminense (periódico de Joaquim Gonçalves
Ledo e Januário da Cunha Barbosa, que circulou entre 15 de setembro de 1821 e 8 de
outubro de 1822, exercendo grande influência no movimento pela independência), A
Sabatina Familiar dos Amigos de Bem Comum (redigido por José da Silva Lisboa, o Cairu, entre 8
de dezembro de 1821 e 5 de janeiro de 1822).
E no ano seguinte, o da proclamação da independência, surgiram outras publicações,
como Compilador Constitucional Político e Literário Brasiliense (de Joaquim Gaspar do Nascimento
e João Batista de Queirós, teve 15 números, circulando de 5 de janeiro a 26 de abril de
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
64
1822), Annaes Fluminenses de Sciencias, Artes e Literatura (resenhado à parte, no final deste
capítulo), O Constitucional (de José Joaquim da Rocha e do padre Belchior Pinheiro de
Oliveira, foi editado entre 5 de julho e 31 de setembro de 1822), Correio do Rio de Janeiro
(redigido pelo português-brasileiro João Soares Lisboa, circulou entre 10 de abril e 21 de
outubro de 1822, retornando de 1
o
de agosto a 24 de novembro de 1823), A Heroicidade
Brasileira (pasquim editado por Cairu em 14 de janeiro de 1822), O Macaco Brasileiro
(redigido por Manuel Zuzarte e Pedro da Silva Porto entre junho e agosto de 1822), O
Papagaio (de Luís Moutinho Alves e Silva, apareceu de 4 de maio a 8 de agosto), Reclamação
do Brasil (outra criação de José da Silva Lisboa, o Cairu, publicada entre 9 de janeiro e 22
de maio de 1822), O Regulador Brasílico-luso, que depois mudaria o nome para Regulador
Brasileiro (escrito por frei Francisco de Sampaio e Antônio José da Silva Loureiro, apareceu
entre 29 de julho de 1822 e 12 de março de 1823), O Republicano Liberal, A Verdade
Constitucional e O Volantim (1
o
de setembro a 31 de outubro)
12
.
Mas tal profusão de títulos não era sinal de longevidade. De todos esses periódicos,
somente o Diário do Rio de Janeiro teria uma longa trajetória, sendo publicado por 57 anos,
até 1878, e passando por diversas fases. Criado pelo português Zeferino Vito de Meireles,
formado nas oficinas da Impressão Régia, onde fez carreira, ascendendo de impressor a
vice-administrador (SODRÉ, 1999: 50), o número 1 desse que foi o primeiro jornal
realmente informativo do país circulou em 1
o
de junho de 1821. Buscava fornecer ao leitor
o máximo de informações e de notícias locais. Três décadas depois teve como redator
chefe José de Alencar, que publicou sob a forma de folhetim seu romance O Guarani
(1857), grande alavancador de vendas da publicação. Em 1859 o jornal, até então
conservador, sai de circulação, sendo relançado no ano seguinte com uma postura mais
liberal. Sob a direção de Saldanha Marinho e de Quintino Bocaiúva, o Diário do Rio de
Janeiro entra então numa fase mais empresarial, que dará o tom a ser seguido por quase
todos os periódicos: a imprensa aos poucos passará a ser vista como um negócio, não
como uma causa. Nessa fase, Machado de Assis é convidado a redigir o noticiário,
responsabilizando-se também pela cobertura política como repórter do Senado. O Diário do
Rio de Janeiro deixa de circular em 31 de outubro de 1878 (LUSTOSA, 2000: 485).
Das outras publicações acima nomeadas, poucas chegariam ao ano de 1823. Como
ensina a profª. Dulcília Buitoni (1981), essas eram publicações de vida curta, quase sempre
projetos voluntaristas, sem nenhum planejamento econômico. Em muitos casos, o próprio
dono da pequena empresa tipográfica tinha de vender os equipamentos comprados para
saldar as dívidas contraídas com seu projeto, geralmente doutrinário. Um outro entusiasta
herdava o negócio para, na maior parte dos casos, passá-lo adiante para saldar as dívidas e
assim sucessivamente.
A curta duração dessas publicações, no entanto, não diminui a importância desses
jornais no processo de proclamação e de consolidação da independência brasileira, além de
criar novos espaços e hábitos de leitura. Muitas desas folhas eram lidas em voz alta, em
reuniões, dando lugar a animadas discussões, como se viu no capítulo anterior.
Como escreve Joaquim Marçal Ferreira Andrade, em seu estudo História da
fotorreportagem no Brasil, “só a partir da campanha da independência é que os jornais
proliferam e se alcança a liberdade de imprensa, iniciando-se o verdadeiro processo de
desenvolvimento da imprensa periódica local, com a criação de inúmeros jornais por todo
o país” (ANDRADE, 2004: 31). Atrás de todos esses jornais consolidavam-se as condições
para a formação de um incipiente público leitor. Os frutos virão com o tempo.
Por causa dessa expansão e desse momento de discussões e debates outras
tipografias são instaladas fora da Corte, abrindo novas frentes nas províncias. Entre 1821 e
1822 são lançados periódicos no Pará, Maranhão e Pernambuco, além dos já existentes na
Bahia. Anos depois, Ceará, Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul inauguraram suas
publicações locais. São Paulo demorará a se situar nesse clube. O primeiro diário a circular
na província, O paulista, fundado por Antônio Mariano de Azevedo Marques em 1823, era
65
manuscrito. Teve vida curta, apenas 3 meses, e nenhum exemplar sobreviveu. Em 1827
surgiu na capital paulista O farol paulistano, primeiro jornal impresso (SODRÉ, 1999: 87).
Seu organizador foi José da Costa Carvalho, diretor da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco. Em 23 de outubro de 1829 o italiano Giovanni Baptista de Líbero Badaró
criava O observador constitucional.
Havia nesse período uma circulação significativa de impressos da Corte e das
províncias pelo território brasileiro, criando uma espécie de rede que interligava os círculos
letrados. Por meio desses impressos as pessoas se aliavam, se insultavam e se conheciam,
manifestando-se publicamente. A imprensa foi um dos aspectos constitutivos do novo espaço
público que se construía na nação recém-independizada. Alguns órgãos na Corte colocaram-
se à frente da luta pela oficialização da independência nos anos 1821 e 1822. Nessa linha
militavam o Revérbero Constitucional Fluminense, de Gonçalves Ledo e do cônego Januário da
Cunha Barbosa; o Correio do Rio de Janeiro, de João Soares Lisboa, um dos que morreriam à
frente das guerrilhas na Confederação do Equador e cujo jornal fazia longas e elogiosas
transcrições do periódico Sentinela da Liberdade, do baiano residente em Pernambuco Cipriano
José Barata de Almeida; e ainda A Malagueta, do já comentado Luis Augusto May.
É nessa época, final dos anos 20 e primeira metade da década de 30 do século XIX,
que surgem os pasquins. Considerado pela historiografia oficial como de certo caos, esse
período das regências é visto por autores como Werneck Sodré como de caminhada de
afirmação dos valores nacionais, com uma imprensa peculiar em que se aprendia a exercer
o direito à opinião (SODRÉ, 1999: 85). Foi o caso do Simplício, de 1831, marco inicial de
uma “família” numerosa, da qual fizeram parte outros periódicos, como O Neto do Simplício,
O Simplício da Roça, Verdadeira Mãe do Simplício, A Mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada.
A eles vão se juntando muitos outros, no calor das disputas em torno do jovem e
irrequieto imperador Pedro I
13
, que finalmente se vê forçado a abdicar e deixar o país no
episódio de 7 de abril de 1831. Pode-se nomear, entre pasquins famosos, Enfermeiro dos
Doidos, Médico dos Malucos, Velho Casamenteiro, A Cegarrega, O Ferrabraz, A Bobaza, O Burro
Magro, O Caolho, O Esbarra, O Maçado ou Palhaço da Oposição, O Par de Tetas, O Rusguentinho, A
Mutuca Picante (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 14).
O pasquim era redigido por uma pessoa, que compunha o original em um texto
manuscrito e o enviava à tipografia, que servia não só como impressora mas quase sempre
como ponto de venda, assim como as boticas, já que as livrarias eram raras nessa época.
Werneck Sodré dedica ao pasquim o mais longo capítulo de sua História da imprensa no
Brasil, um ensaio primoroso em que estabelece algumas das características desse tipo de
publicação que proliferou pelo país com a disseminação das tipografias nas décadas de 20
a 50 do século XIX. O estilo panfletário dava a tônica dessas publicações, algumas de
duas páginas (frente e verso), outras de quatro páginas (uma lâmina dobrada) e que
muitas vezes não passavam do primeiro número.
Segundo Nelson Werneck Sodré, uma das marcas dos pasquins era ser composto de
um só artigo ou tema, geralmente uma discussão de idéias ou uma diatribe contra alguma
atitude do governo ou do grupo adversário. Como se disse, era um texto autoral, quase
sempre de caráter doutrinário. Mesmo assim, freqüentemente o autor se ocultava ou no
anonimato ou no uso de um pseudônimo, embora recheasse o texto de referências para
ser facilmente identificado. O uso da epígrafe é outra característica dessas publicações de
nosso nascente “mercado editorial”. “Não havia pequeno jornal que fugisse ao gosto de
estampar, em prosa ou em verso, um motivo qualquer com relação ao programa ou
princípio ou propósito a que obedecia” (SODRÉ, 1999: 160).
Algumas curiosas amostras dessas epígrafes, algumas em francês, outras em latim.
Ou mesmo em linguagem corrente, como a do pasquim O Enfermeiro dos Doidos: “Não
cabem no hospício os que conheço. Que remédio senão curá-los fora?” Ou esta, de O
Precursor das Eleições, de Ouro Preto, 1828: De quelque manière, les citoyens s’occupent de leurs
interêts, la chose important c’est qu’ils s’en occupent.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
66
Uma outra característica dos pasquins e dessa primeira fase da imprensa brasileira
era a veemência da linguagem, beirando muitas vezes o viés ofensivo, com invasão da
vida particular e íntima. Nas suas disputas com o jornalista português Luís Augusto May,
o príncipe Dom Pedro I teria escrito uma famosa diatribe, “O calmante da e no
Malagueta”, publicada em O Espelho de 10 de janeiro de 1823. Por sua linguagem quase
escatológica, em que retrata maldosamente o desafeto e se refere a suas preferências
sexuais menos ortodoxas com termos chulos, é considerada por Isabel Lustosa como
notável peça jornalística, talvez única em seu estilo publicada no Brasil, atribuída por
muitos historiadores a D. Pedro I. E, de fato, quem ousaria escrever de maneira tão
desabrida num cenário onde as leis ainda estavam por se fazer e onde jornalistas estavam
sendo julgados por abuso da liberdade de imprensa? O príncipe se abalançaria a tanto. É
bem seu estilo, presente em suas cartas, nos outros artigos que publicou e no anedotário
que se criou em torno dele (LUSTOSA, 2000: 305).
Outra das características foi a vida efêmera de quase todos os pasquins: “a maior
parte deles ficou mesmo na edição inicial, que se tornou única” (SODRÉ, 1999: 164).
Eram, enfim, o produto de uma imprensa artesanal, empregando prensas
tipográficas rudimentares. E foi assim que a imprensa deu seus passos iniciais entre nós, e
muitos artesãos iam aprendendo o ofício. O público se acostuma a comprar o periódico –
ou a se reunir para ouvir alguém que o lê – e o editor vai aprendendo o que cai no gosto
de seu leitor, reforçando um ciclo.
Fugindo a esse modelo de provocação e pouco fôlego, foram lançados nessa mesma
época os dois diários de maior duração na historia da imprensa brasileira: O Diário de
Pernambuco (1825), no Recife, e o Jornal do Commercio (1827), no Rio de Janeiro. Ambos
circulam ainda hoje. O diário carioca foi criado pelo tipógrafo francês Pierre François René
Plancher de la Noé e por seu filho Émile. Donos de uma impressora, eles compraram o
título do Diário Mercantil e o transformaram no inventivo Jornal do Commercio. O periódico
teve um lado inovador, como a circulação da primeira folha solta com caricaturas e sátiras
(com ocorreu na edição de estréia dessa modalidade de suplemento, em 14 de dezembro de
1837: as provocações eram contra o jornalista Justiniano José da Rocha).
Como na época ainda não havia se desenvolvido e introduzido aqui a técnica da
impressão simultânea de texto e de imagem (tipografia e litografia, esta sendo o
desenho realizado com um lápis de cera em uma base de pedra), muitos periódicos,
sobretudo as revistas, optavam por apresentar as imagens encartadas no texto,
gravadas geralmente em talho-doce ou então litográficas (ANDRADE, 2004: 37). Só
já adiantada a segunda metade do século se descobrirá e se aperfeiçoará não apenas a
impressão simultânea de imagem e texto, como a técnico do meio-tom ou fototipia,
que permitirá a impressão de fotografia diretamente
nos periódicos, sem o recurso do clichê:
Nesse processo, a gravura de folha solta trans-
forma-se numa arte popular, vendida em feiras e
negociada nas ruas, não só pelos comerciantes
de arte, mas também pelos próprios artistas. Ha-
via a estampa de crítica social, a religiosa, a de
feitos históricos e heróicos, a de comemorações,
os retratos, as edições especiais referentes às fes-
tas, etc. Além da venda popular, o editor era
muitas vezes patrocinado pelo governo e pelos
grandes senhores (ANDRADE, 2004: 44).
A protocaricatura satirizando o jornalista e político
Justiniano José da Rocha (ver no próximo capítulo o item 3.5).
67
O certo é que uma cultura da imagem também se criará aos poucos, entre o público
leitor, desenvolvendo uma forte demanda pela informação visual. A estampa de moda,
brinde das publicações femininas, será valorizada pela informação visual que fornece e se
constituirá num dos sucessos de publicações como O Jornal das Senhoras e sobretudo de A
Estação, como veremos nos capítulos 4 e 7.
2. 4. Annaes e Espelho Diamantino: tentativas pioneiras
Foi nesse marco de interesse por novas idéias que surgiu os Annaes Fluminenses de
Sciencias, Artes e Literatura, revista lançada no Rio de Janeiro em janeiro de 1822 e que se
anunciava como publicada por uma Sociedade Philo-Technica. Publicação de um único
número, Annaes foi redigida por José Victorino dos Santos e Souza, professor da Real
Academia Militar. O exemplar em arquivo no acervo da Biblioteca Nacional tem em sua
página de rosto uma dedicatória manuscrita, do próprio redator, oferecendo o exemplar à
“Biblioteca Imperial e Publica”. De algum modo inspirada em O Patriota, a publicação era
de tamanho maior (23x17 cm, contra os 18x13 cm de seu predecessor), embora com
alentado número de páginas, chegando às 120.
Esse número único dos Annaes tinha uma proposta editorial bastante ampla, ao
tentar mapear diversos campos do conhecimento, como as ciências naturais, tecnologia,
agricultura, metalurgia, indústria e comércio, além da política, filosofia e das artes em geral
– seguindo, de algum modo, a receita do já comentado O Patriota. Não por acaso, a
idealização dessa nova publicação é atribuída a José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos
colaboradores de O Patriota. Segundo o levantamento realizado pela equipe de
pesquisadores de Vladimir Sacchetta:
A extensa relação de temas procurava abarcar vários campos do conhecimento humano.
Era um sinal dos novos tempos. De um lado, refletia os movimentos modernizantes que
floresciam na Europa desde o século XVIII. De outro, espelhava as novidades que a
Corte portuguesa havia transplantado de além-mar quando se transferiu para o Brasil. A
Corte precisava de médicos, engenheiros, militares e cientistas. Para tanto criara institui-
ções de ensino e pesquisa, como a Academia Militar, a Academia da Marinha, a escola
Médico-Cirúrgica, o Museu Real e o Horto Real. Annaes Fluminenses pretendia suprir as
necessidades da incipiente vida intelectual com artigos que dessem respaldo a esse redu-
zido grupo de homens empenhados em construir o arcabouço
econômico, científico e cultural para um novo Brasil
(EMPORIUM BRASILIS, 1999: 21 e 22).
Com essa pauta ampla, a revista, com vinhetas adornando as
páginas 18, 20, 48 e 115, trouxe ricos documentos para eventuais
pesquisas sobre o que pensava a elite de então. Um artigo fala do
pioneiro estabelecimento financeiro, o Banco do Brasil; outro,
comentando uma nova divisão eclesiástica, efetua um dos raros
levantamentos estatísticos da população brasileira da época. Um
outro ensaio traz o resumo de documentos espanhóis, explicando a
incorporação de Montevidéu e da Província Cisplatina ao Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A última parte da revista, que
vai das páginas 57 a 114, publica o extenso trabalho de Antonio
Rodrigues Veloso de Oliveira “A igreja do Brasil ou Informação
para servir de baze”. O periódico vinha acompanhado por oito
mapas desdobrados, no final do volume (PR SOR 00272).
Capítulo 2
1812-1830
Capa da Annaes: um único número, um caminho mostrado.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
68
Nos anos seguintes aparecerão diversas revistas, quase todas repetindo o mote já
apontado por Dulcília Buitoni: tentativas amadoras e de vida curta. Entre elas podem ser
citadas o Jornal Scientífico (1826), o Espelho Diamantino (1827), O Propagador das Sciencias Medicas
(1827), a Revista Semanaria dos Trabalhos Legislativos da Camara dos Senhores Deputados (1828).
O Jornal Scientifico, Econômico e Litterario – ou Colleção de Varias Peças, Memorias, Relaçoens,
Viagens, Poesias, Anedotas, era publicado pela Typographia de Torres, no formato de 23 x 16 cm,
e circulou três números nos meses de maio, junho e julho de 1826. Tinha como epígrafe a
frase: “Em nenhum estudo pode haver vício. As artes entre si”. Era ligado à maçonaria e tinha
como redatores o mesmo José Vitorino dos Santos e Sousa, que capitaneara os Annaes
Fluminenses de Sciencias, Artes e Literatura, e Felisberto Inácio Januário Cordeiro.
Já o O Espelho Diamantino: periodico de política, litteratura, bellas artes, theatro e modas.
Dedicado as senhoras brasileiras é considerado por Dulcília Buitoni a primeira publicação com
temas voltados para o público feminino (BUITONI, 1981: 12). Com 14 números, teve
periodicidade quinzenal, circulando entre 20 de setembro de 1827 e 28 de abril de 1828.
Saía das prensas da moderna Imperial Typographia de Plancher-Seignot, montada pelo
francês Pierre-René François Plancher de la Noé.
Famoso impressor de Paris, que desembarcara nos trópicos fugindo de perseguições
após a reviravolta política ocorrida na França, Plancher de la Noé nasceu em Mans, em 19
de janeiro de 1764. Mestre em artes gráficas, consolidou-se em Paris como editor de
autores consagrados, como Voltaire e Benjamin Constant, entre outros nomes de
destaque. Com um histórico liberal, se viu em maus lençóis na época da restauração, com
a França sob comando de Luís XVIII. Sofrendo perseguição política por causa dos autores
que publicara, se vê obrigado a sair do país. Depois de uma passagem por Madri, vem
para o Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro em 1824, com um grande estoque de
livros e equipamentos. Conta-se que, ao desembarcar na alfândega carioca, foi preso. Não
é informação segura, pois se sabe que sua esposa, Jeanne Seignot, era detentora de uma
licença para exercer a função de livreiro. Tanto que no mesmo ano de sua chegada
Plancher de la Noé instalou a oficina tipográfica, a Seignot-Plancher & C.°, em que
passaria a imprimir folhetins, leis, papéis avulsos, e a vender livros e calendários.
Certamente seus planos não eram publicar folhetos e encomendas de terceiros. Ele
pensara em se instalar como editor, pois trouxera modernos equipamentos de impressão e
operários especializados para montar uma casa tipográfica. Pôs sua oficina em
funcionamento na Rua da Alfândega 47, e soube tirar partido da amizade com o jovem
imperador Pedro I. Logo sua empresa ganhava o privilégio do nome de Imperial
Tipografia, sendo a escolhida para imprimir a controvertida Constituição de 1824.
Além do acervo de autores que representava como editor, com obras de D’Alembert,
Diderot e Montesquieu, Plancher publicou livros como o Guia da conversação brasileira e
francesa, de G. Harmonière, o Anuário Histórico Brasiliense e o Almanaque Plancher, espécie de
anuário que organizava informações sobre vendas de mercadorias e meios de transporte –
e que abrirá um filão em que depois brilhará o famoso Almanak Laemmert. Também lançou
as chamadas “folhinhas”, calendários de bolso e de parede que foram um dos seus
sucessos de vendas (VAINFAS, 2002: 420).
Mas os planos de Plancher apontavam para novos alvos. E ele partiu para a
publicação de seus próprios títulos e revistas. Seu primeiro periódico foi O Spectador Brasileiro,
que circulou de 1824 até maio de 1827. Escrevia no jornal sob o pseudônimo de “Hum
francês brasileiro”. Em outubro de 1827 adquiriu o Diário Mercantil, que pertencia a Francisco
Manuel Ferreira & Cia., e relançou-o com o nome de Jornal do Commercio. Menos voltado para
as discussões identitárias do período (quase todas as publicações discutiam o que se deveria
fazer, que rumo e feições dar ao novo país), e mais voltado para a informação de negócios, a
idéia de Plancher, nos moldes de uma folha homônima parisiense, era criar um veículo que
superasse o monopólio exercido até então pelo Diário do Rio de Janeiro, ainda um “jornal à
moda antiga”, espécie de clipping de outras publicações estrangeiras, algumas charadas e
69
epigramas, o que era uma espécie de padrão. O periódico de Plancher inovava ao apresentar
um número maior de “editorias”, com seções de interesse econômico, como “Preços
Correntes” e “Movimentos de Importação e Exportação”, além de notas sobre política e
comércio. A proposta deu bons resultados e, a partir de meados do século, o jornal será um
dos periódicos de maior circulação no país (VAINFAS, 2002: 419-421).
Na primeira página do número 1 do Jornal do Commercio (encontrada na seção de
raridades da Biblioteca Nacional) é possível ler o seguinte editorial:
De hoje por diante, continuar-se-há a publicação deste JORNAL DO COMMERCIO.
Esta folha exclusivamente dedicada aos senhores Negociantes conterá diariamente tudo
o que diz respeito ao Commercio, tanto em Anúncios como em preços correntes exactos
de Importação e Exportação, entrada e sahida de Embarcações, etc., etc.. Os proprietári-
os bem ao facto de todos os ramos mercantis desta Capital não pouparão nem despezas
nem zelo para tornar esta empreza digna da aceitação pública, e rogão para melhor
desempenho dos seus deveres a proteção e assistência do honrado Corpo do Commercio.
As Assignaturas se fazem na Rua d’Alfandega, Nº 47, onde igualmente se recebem, antes
do meio dia, todos os Annuncios mercantis, que devem sem falta ser inseridos no dia
seguinte. O preço da Assignatura he de 64 réis por mês, pagos adiantados.
Os primeiros redatores do Jornal do Commercio, além do próprio Plancher, foram
Emile Seignot, João Francisco Sigaud, Júlio César Muzzi, Luís Sebastião Fabregas Surigué
e Francisco de Paula Brito – Paula Brito aprende com esses franceses muito do que depois
aplicará na condição de primeiro e maior editor e publisher brasileiro (veja adiante o item
3.6, sobre A Marmota).
Mas voltemos a O Espelho Diamantino. O periódico tem texto em uma coluna. Antes
da publicação do primeiro número o editor lançou um “prospecto”, com a aclaração sobre
o que o periódico tratará e a que ele se dedicará. Assim inicia essa peroração:
A influencia das mulheres sobre as vontades, as acções, e a felicidade dos homens, abran-
ge todos os momentos, e todas as circunstancias da existencia, e quanto mais adiantada
a civilisação, tanto mais influente se mostra este innato poder...[...] Mas querer celebrar
os merecimentos das mulheres seria huma tarefa tão árdua como inútil (PR SOR 00299).
Segundo a ficha catalográfica da Biblioteca Nacional, O Espelho Diamantino era
redigido por Julio Floro das Palmeiras, tendo como editor responsável Chevalier. Cada
número tinha na capa e na contracapa ornamentos visuais, as “cercaduras”. Apresentava
numeração de páginas continuada (ou seja, o número 2 inicia com a página 17, e assim por
diante, o que faria supor uma publicação de 16 páginas, mas esse número é variável: o
número 2, por exemplo, termina na página 34). O terceiro número tem a capa
emoldurada com motivos florais. Inicialmente O Espelho Diamantino teve periodicidade
quinzenal, e assim foram dois os números publicados em outubro (os números 2 e 3) e
outros dois em novembro (os 4 e 5, lançados nas quintas-feiras 1 e 15 desse mês). Mas em
dezembro aparece apenas uma edição, a de número 6. O número 7 circula com data de
sábado, 5 de janeiro de 1928. Faremos, a seguir, uma análise desse número 7 (a Biblioteca
Nacional não tem em seu acervo o número 1).
Após a introdução (página 117), esse número 7 de O Espelho Diamantino sumariza seu
conteúdo (na página 118):
Noticias políticas (isto he huma mui succinta relação dos factos principaes e mais dignos da
publica attenção). Depois Negócios Nacionaes (n’esta divisão encontrará o leitor resumos
imparciaes das sessões legislativas; das leis mais importantes. De tudo quanto em fim póde
mais especialmente interessar os leitores brasileiros); Litteratura e Theatro (basta o título
para indicar as matérias que pertencem á esta divisão). Em fim: Chronica e Anecdotas
(n’esta derradeira divisão procurarão os redactores offerecer ao leitor alguma coisa que o
possa alegrar, fazendo compensação ao serio das materias políticas) (PR SOR 00299).
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
70
Embora a publicação se apresente como dirigida às senhoras brasileiras, não há na
revista um cuidado de linguagem ou uma escolha temática que revele a preocupação, por
parte do senhor Chevalier, que se apresenta após o sumário como o editor do periódico,
em criar uma revista feminina. A seção (ou divisão, como se refere o periódico) de
“Notícias políticas” começa com um longo artigo, “Memórias históricas”, que ocupa o
rodapé da página 118 e as duas páginas seguintes, historiando a libertação da Grécia do
domínio turco e narrando as marchas e contramarchas da batalha naval de Navarinos, um
dos marcos da guerra da independência grega. O artigo seguinte, ainda da seção de
notícias políticas, “Negócios do Oriente”, continua com o mesmo tema da aliança entre
Inglaterra e Rússia para combater o império turco otomano, na campanha de
independência da Grécia. Mais quatro páginas confusas dão conta das peripécias de
personagens ingleses, como o mercenário Lorde Cochrane, que também vendeu seus
serviços na América Latina.
A seguir, as “Notícias Nacionais”, na metade inferior da página 125 (a nona das 16
páginas desse exemplar), dá conta de um edital do Thesouro Nacional, que tomará
empréstimo de mil contos de réis “para occorrer ao déficit do próximo quartel do anno
seguinte, e que no dia 8 de janeiro próximo futuro ás 10 horas da manhã receberá no
Thesouro as propostas de todos e qualquer capitalista nacionaes ou estrangeiros, que
quizerem emprestar dinheiro”. O referido edital leva data de 29 de dezembro de 1827 e
tem assinatura do escrivão José Procópio de Castro.
Na página seguinte segue um comentário não assinado, de meia página, criticando o
edital do governo e da legislação vigente, por não seguir o modelo de captação de recursos
adotado em outros países: “Sentimos muito que não tenha a Câmara dos Deputados
refletido melhor n’aquella importantíssima matéria, nem querido conformar-se com o
exemplo das grandes Nações financeiras como a Inglaterra e a França”.
Reprodução da capa do primeiro número de O Espelho Diamantino, e uma página avulsa, tiradas da cópia
microfilmada da coleção da Biblioteca Nacional – PR SOR 00299-1.
71
A metade inferior da mesma página 126 (a décima desse número) publica um artigo
sobre “Falta de cobre”:
Não ha trocos, tal he a voz geral que o povo escuta nas loges de commercio; nos armazéns;
nas vendas; nas padarias, nos açougues &c. &c. &c. quando leva notas do Banco para remir
suas necessidades. Onde vão pois parar tantos contos de réis em cobre, que sahem diaria-
mente da caza da moeda? [...] Nas mãos dos cambistas, verdugos da pobreza; assassínios
dos commerciantes; verdadeiros flagellos da sociedade Brasileira.
A arenga contra os guardadores de moedas se prolonga na página 127 e
termina no 1/3 superior da página 128. A revista então passa à seção de “Litteratura
e Theatro”, dando conta do sucesso da atriz Madame Barbieri nos palcos do Rio de
Janeiro. No final da página seguinte começa a seção de notas curtas, sob o título de
“Chronica e Anedoctas” (que no sumário fora chamada de anecdotas), que ocupa as
quatro páginas seguintes, até a 135, que encerra o número, com o anúncio de
algumas atrações da próxima edição, como uma obra intitulada “Instrucções secretas
dos jesuítas”.
A tônica das crônicas é relatar os acontecimentos do mês anterior: “O mez de
dezembro foi fecundo em successos de todo o genero; nós vamos contar algumas das
espertezas, que tiverão lugar na secena escandaloza”, avisa o redator, na introdução.
É a história de um larápio que aplica o golpe em diversas firmas do Rio de
Janeiro e escapa para Minas Gerais. Mas a Justiça entra em ação para “metter o
passaro na gaiolla” e finalmente o prende. Outra nota curta comenta a publicação de
uma nova peça de poesia sobre a morte do judicioso e prudente macaco que “tem feito
tanta bulha na Corte e nas circunvisinhanças. De certo este macaco mereceria huma
analise digna da pena do grande Buffon. O ourang–outang que dava partidas de chá
no seu gabinete não foi tão celebre”. Outra nota curta dá conta de que “Hum
desgraçado suspirante, ou suspirador de certa Senhora B*** recebeu ha dias huma
carta fexada com obrêa preta contendo estas palavras – se continuares á namorar a
Mad.*** receberás hum tiro de pistolla. Não há um laconismo mais expressivo. D.
Quixote não foi tão resumido em desafios”.
Páginas de O Espelho Diamantino: leituras densas.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
72
Outra dessas notas, de 5 linhas: “Falla-se de grandes reformas na Typografia
Nacional: que serão demitidos dois directores: hum terá mais tempo para consultar os
astros; não sabemos quando cahirá o raio[...]”. Um cidadão inglês que na noite de
reveillon, a caminho de sua casa em Mata Porcos, foi assaltado por dois negros armados
com facas: “O Inglez não tendo mais que hum pequeno xicote, sérvio-se com tudo desta
arma com tanta dextreza que conseguio lançar por terra hum dos assassinos e segurar o
outro, que elle conduzio ao corpo da guarda mais próximo”.
Novamente a Madame Barbieri é destaque: por conta de uma disputa, a soprano se
recusou a se apresentar no espetáculo lírico e os oficiais da Marinha, em polvorosa, pedem
que ela retorne aos palcos. Um jovem da alta sociedade do Rio de Janeiro, ao se preparar
para ir á caça nas montanhas, no período natalino, acidentalmente disparou a espingarda e
matou um colega, indo entregar-se espontaneamente à Justiça. A publicação (que não dá o
nome dos personagens) conclui: “O Publico espera com impaciencia e com o mais vivo
interesse a decizão dos juizes, que não poderá deixar de ser favorável a hum moço que
goza do maior conceito e estima”.
Mas, antes de fechar esse número, o editor coloca uma nota estratégica: “No
nomento de hir este numero ao prelo, somos informados que as pequenas desavenças que
tem havido á respeito da Mad. Barbieri desvenecérão, com mutual satisfação d’aquella
excellente cantora e do illustrissimo sr. Empresário do Imperial Theatro” (PR SOR, 299:
133). Os oficiais da Marinha devem ter respirado aliviados.
São típicas fofocas, notícias do mundo do teatro, da própria imprensa que
prenunciam um gênero jornalístico que florescerá e dará lugar ao chamado colunismo
social e chegará às publicações nossas conhecidas, do tipo Tititi ou Contigo!
Como se disse, a não ser por essas quatro últimas páginas da publicação, pouco há
de revista feminina na proposta de O Espelho Diamantino, que se apresentava como o
periódico dedicada às senhoras brasileiras. Mesmo supondo que apenas as mulheres da
elite tinham acesso à leitura, é difícil imaginá-las tão interessadas na independência grega
ou no sistema de captação financeira praticado pelo Tesouro Nacional.
Chama atenção, no entanto, a atualidade da linguagem. Quer no uso de expressões
como “matéria”, em alguns ditados, quer na grafia de algumas palavras (typografia e não
typographia).
2. 5. O Espelho das Brasileiras e L’Écho de l’Amérique du Sud
Diferentemente de O Espelho Diamantino (que era quinzenal), uma outra revista,
lançada fora da Corte, chegou a se aproximar mais do que hoje consideramos linguagem
de uma publicação feminina. Foi O Espelho das Brasileiras
14
. Editada no Recife em 1831, era
de propriedade do tipógrafo Adolphe Garin, da Impressora Fidedigna. Esse periódico, ao
contrário de tantos outros que devem ter aparecido na época nas províncias, ganhou fama
por nele haver estreado nas letras a batalhadora Nísia Floresta Brasileira Augusta,
considerada a nossa “protojornalista”, escrevendo artigos sobre as mulheres e sua condição
nos trinta números da publicação
15
.
A análise de uma edição completa de O Espelho das Brasileiras (a Biblioteca Nacional
dispõe em seus arquivos de apenas três edições, as de 27 a 30, justamente os três últimos
números da revista) mostra uma linguagem não muito diferente da apresentada por seu
antecessor carioca, O Espelho Diamantino. Mas há um tom mais dirigido a uma provável
leitora (a publicação era escrita por homens). Vamos nos deter rapidamente no número
28, publicado na sexta-feira, 6 de maio de 1831.
A revista é editada em apenas uma coluna, num formato relativamente pequeno (18
73
x 25 cm, aproximadamente), em quatro páginas (esse exemplar número 28 segue a
numeração 109 a 112, o que coincide: 28 números multiplicado por 4 páginas dá como
resultado 112). Um formato mais de “jornal” do que de “revista”, portanto.
16
A capa tem o
título em maiúsculas, três linhas centralizadas em tipografia serifada, entre fios duplos.
Abaixo do título, a epígrafe: “A virtude, os talentos, e não a vaidade, te guiarão, Perilla”,
retirada da Elegia VII de Para Perilla, de Ovídio. Sob o fio, a aclaração: Na Typ. Fidedigna.
R. das Flores, Nº 18. 1831.
Imediatamente a seguir, sem título ou preâmbulo, a revista inicia um texto que
ocupará metade de suas páginas. É um discurso comemorando a abdicação de Dom Pedro
I ao Trono, em favor de seu filho Pedro de Alcântara, o futuro Pedro II. O tom é
veemente, inflamado.
Parabens, Brasileiras em geral! Parabens, parabéns, Pernambucanas! Quem intentava
perder-nos ja naõ existe em nosso territorio, ja naõ respira o ar de nossa athmosfera.
Pedro I°, esse homem caviloso, cuja maldade tanto abusou da nossa paciencia, cessou
para sempre de ser nosso Imperador, ou antes nosso Oppressor. No dia 7 de abril deste
venturoso anno elle abdicou a coroa em seo filho D. Pedro 2.°. [...] Ja podemos hombrear
com os mais Americanos: ja podemos dizer que somos livres: o Chefe da naçaõ é um
Brasileiro nato: parabens Brasileiras em geral (PR SOR 4848-1).
O texto segue nesse ritmo, e faz um resumo crítico da história recente do país, da
chegada de Dom João VI (“esse monarca voluvel, perjuro, froxo e hypocrita”) à esperteza
de Pedro I em proclamar a independência para não perder contra as aspirações
republicanas. Critica acidamente o jovem imperador renunciante (“queria ser divino; e era
um homem corrupto: todos sabem que a morte de sua virtuosa esposa foi causada por
elle: o esposo que por concubinas espanca sua consorte prova a malvadeza de seo
coração”)
17
e conclama as leitoras à eterna vigilância, para que alguns “momentos de
descuido não venham a perder o bem que no tem custado tantos sacrifícios, oppressões e
tyrannias”. Esse libelo termina com um “Viva a Liberdade!”
Seguem-se três notas curtas, duas das quais repetem o tema da abdicação do
imperador, e a revista finaliza com um poema, enviado por uma leitora, professora de
“primeiras letras” na cidade de Olinda. O poema se chama “Quadrinhas dedicadas ás
brasileiras”, e a autora não é citada, permanecendo no anonimato. É um poema longo, de
25 quadras de nove sílabas, que rimam ciúmes com queixumes, razão/consolação;
corações/grilhões; deveres/prazeres; sorte/consorte. De algum modo, retomam o tema da
epígrafe: “Saõ própria do vosso
18
sexo/ Os enfeites e os ornatos; /Porem d’alma os
ornamentos/ Estimaõ mais os Sensatos [...] O varaõ sàbio e cordato/ Foge com razao’ de
ser/ Espozo d’uma Senhora,/ Que poem no luxo o prazer”.
Sem tampouco haver conseguido uma linguagem nitidamente feminina, o fato é que
esse periódico foi um dos pioneiros na imprensa feminina, ainda que fundado e dirigido
por homens. Como veremos adiante, esse final dos anos 20 marcou o surgimento de uma
série de publicações. Caberia mencionar ainda uma delas. A L’Écho de l’Amérique du Sud,
Journal Politique, Commercial et Litteraire – um periódico publicado em francês pela
L’Imprimerie de R. Ogier, Rue d’Ouvidor, nº 156, Rio de Janeiro (embora a ficha
catalográfica da Biblioteca Nacional cite como casa publicadora a L’Imprimerie Imperiale
de Plancher-Seignot, o que se lê no exemplar é R. Ogier, que no número 74, o último da
publicação, está instalada na Rua da Quitanda 63).
L’Écho é uma entre tantas publicações em francês que circularam nos primeiros anos
do nascente Império. O primeiro número circula no sábado (Samedi, 30 juin, 1827).
Ocupa 4 páginas e traz como epígrafe “Il n’y a qu’un echo en Amerique, lorsqu’on
prononce les mots de Patrie et de Liberte”, frase atribuída ao General Foy. O primeiro
número abre com notas locais (chamadas de Intérieur), segue as internacionais (Extérieur),
com notícias sobre Espanha, Grécia (ali está em andamento o processo da independência
do domínio turco, já mencionado), França, seguido de notas sobre variedades e teatros e
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
74
Reprodução das capas do número 28 de O Espelho das Brasileiras, e do número 2 de l’Écho de l’Amérique du Sud,
realizada a partir da cópia microfilmada da coleção da Biblioteca Nacional – PR SOR 4848-1 e PR SOR 298.
os “avis”. É assim que na edição do “samedi, 23 septembre 1827” ficamos sabendo que
Monsieur M. Blanc, farmacêutico formado pela Faculdade de Montpellier, autorizado pela
aprovação legal do médico-chefe do Império brasileiro após se submeter ao exame
determinado pela lei, “vient d’ouvrir une pharmacie dans la rue d’Ouvidor, nº 217, à cote
du magazin de M. César” (anúncio publicado na página 4).
O número 2 do periódico abre com um aviso ao público, dando conta de que após
acerto realizado entre o impressor M. P. Plancher e o editor, o L’Independant deixa de
aparecer e que os assinantes receberão em troca os dois primeiros números do Écho, para
completar o primeiro trimestre da assinatura. E os novos assinantes que queiram receber
os dez números do L’Independant podem encontrá-los com o Sr. Plancher. E deixa claro: “Je
saisis cette occasion pour déclarer que M. Plancher est entièrement étranger à la rédaction
de l’Écho de l’Amerique du Sud, qui paraîtra lês Mercredi et Samedi de chaque Semaine,
et dont je suis Editeur-Proprietaries et Rédacteur seul Responsable”. E assina: E. Sevene.
Muitas outras publicações surgiram no período, como O Propagador das Sciencias Medicas
– Annaes de Medicina, Cirurgia e Pharmacia para o Imperio do Brasil, lançado pela Imperial
Typographia de Plancher-Seignot em 1827. Editado por João Francisco Sigaud, era bimestral
e circulou por dois anos, de janeiro de 1827 a dezembro de 1828, num total de 12 fascículos
no formato 23 x 14, de numeração continuada (como já se disse, os números de página do
fascículo 2 não começavam pelo 1, mas continuavam a numeração do anterior, algo comum
na época: o que importava era a numeração do “volume”, com as edições de um ano inteiro
formando uma espécie de livro ou anuário). Plancher lançou ainda outros periódicos em
francês, além do acima citado Independant. Quase uma década depois, em maio de 1839,
aparecerá uma Revue Française, que trazia entre outros atrativos uma imagem sobre o
logotipo, onde se destacam uma arpa, duas serpentes, símbolo da medicina, e elementos de
agricultura, para justificar o subtítulo de Littérature, Sciences, Beaux-Arts, Politique,
75
Commerce. A revista, anunciada ao preço de 2$000 réis a subscrição por quatro meses, 600
réis o exemplar avulso, oferecia como atração extra uma gravura, veiculada na primeira
edição de cada mês. O número 1 tinha, entre seus assuntos, uma poesia de Lord Byron,
“Zuleika”, tema da gravura que circulou com o periódico.
Houve ainda uma série de publicações de colorido feminino (mas poucos com uma
visão feminista), de títulos que sugeriam a fragilidade, segundo Maria Luiza Martins em
Revistas em revista, e Dulcília Buitoni, em Mulher de papel. Entre eles, A Camélia, A Borboleta, A
Crisálida, O Lírio, A Grinalda, O Leque, O Recreio das Bellas, O Brinco das Damas, A Grinalda. Foi
justamente por essa época, no final da década anterior, que apareceu a Beija-Flor: Annaes
brasileiros de sciencia, politica, litteratura, &c. Curiosamente, como recolhe Werneck, a própria
Beija-Flor, em seu quarto número, realizava um balanço sobre a imprensa brasileira.
Escrevia o redator dessa revista:
Se os progressos da imprensa fossem os degraus certos de um termômetro para o adian-
tamento da civilização, podíamos nos felicitar de nosso avançamento, pois que de quatro
anos para cá o número de publicações periódicas tem quadruplicado no Brasil. Em 1827,
apenas se contavam 12 ou 13 e hoje, conforme a conta tirada do Aurora de sexta-feira, 26
do corrente [ou seja, 1830], 54 saem à luz do Império. Destas, 16 pertencem à Corte. Em
1827, apenas haviam 8, portanto o número dobrou” (SODRÉ, 1999: 116).
Ou seja, devagar se estava indo longe. Analisemos, então, O Beija-Flor.
2. 6. O Beija-Flor, o folhetim e a primeira novela nacional
Os editores, de revistas ou de publicações diversas, sabem que a mulher sempre foi
leitora mais fiel do que o homem. “A mulher leitora, desde o Império, fora presença
assídua no contexto do impresso”, diz a pesquisadora
Maria Luiza Martins (2003: 371). Claro, como
observa a própria autora, essa presença foi limitada
em número, além de circunscrita às classes sociais
mais abastadas. De leitora a colaboradora ou a
produtora de publicações, o passo foi dados aos
poucos pelas mulheres. Um desses passos
importantes foi o aparecimento da revista O Beija-Flor.
Há certa confusão sobre essa publicação nos livros
que historiam as publicações do século XIX. Nelson
Werneck Sodré afirma que a revista circulou dos fins
de 1830 a princípios de 1831 e foram tirados oito
números. Mais adiante, o mesmo autor se refere à
revista como tendo circulado entre 1849 e 1852
(SODRÉ, 1999: 116 e 183). Em Morel & Barros
(2003: 39) se lê que o periódico encerrou suas
atividades no oitavo número, em 1840, acusando a
falta de compreensão de seus compatriotas. De fato,
os arquivos da Biblioteca Nacional (PR SOR 83)
esclarecem que a revista teve oito edições, todas
circulando no ano de 1830.
Capítulo 2
1812-1830
Capa do nº 1 da revista O Beija-Flor.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
76
Seguramente as discrepâncias quanto às datas se devem ao fato de que existiram
várias publicações com o nome de O Beija-Flor e a Biblioteca Nacional tem em seu acervo a
coleção de dez diferentes periódicos que adotaram esse nome. Há O Beija-Flor, “jornal de
instrucção e recreio”, semanário publicado pela Typografia de J. Villeneuve, de abril de
1849 a 1852, do qual a BN possui em acervo 77 números. Há ainda O Beija-Flor de Recife
(lançado em 1883), o de Campos-RJ (lançado em 1881), o de Goiás (lançado em 1886), o
de Caçapava-SP (1914), entre outros.
Mas o que nos interessa aqui é o primeiro deles, O Beija-Flor: Annaes brasileiros de
sciencia, politica, litteratura, &c., lançado pela Typografia de Gueffier e C., da Rua da
Quitanda 79, em janeiro de 1830. Dele, sim, foram publicados oito números, no formato
19 x 13 centímetros. Paginado em uma coluna, com uma mancha tipográfica que sugere
mais um livro do que um periódico, trazia notas soltas sobre ciência política,
generalidades, extratos de outras publicações estrangeiras e literatura. E é nesse campo, o
da literatura, que O Beija-Flor merece destaque, por haver publicado o primeiro folhetim
brasileiro, ou “novella nacional”, como a revista se refere ao texto, em sua seção
“Litteratura”. Assim, em seu número 4, sem maiores preâmbulos, a revista inicia a história
de Olaya e Julio ou A periquita, que se segue pelas páginas seguintes, ficando a conclusão
para o número 5. E nesse número 5, no meio da página 170 (a numeração era contínua),
terminada uma nota retirada do Correio Mercantil, aparece a retranca “Litteratura”, e na
linha seguinte inicia a segunda parte da novela nacional, que se estende por treze páginas,
até chegar ao final desse quinto número (pág. 184). No total a novela ocupa 35 páginas.
Faltou o trabalho do editor, de explicar ao leitor que ali concluía a narrativa iniciada no
número anterior. Esse aprendizado virá com o tempo.
Mas O Beija-Flor trouxe novidades para os leitores já a partir do número 2. Em meio
a artigos sérios, os assinantes puderam se entreter, no segundo e terceiro números, com a
leitura da novela O Colar de Pérolas, ou Clorinda, texto de ficção de autoria do escocês Walter
Scott. Na época, Scott era um dos grandes nomes do folhetim, o hit literário da Europa.
De origem francesa, esse tipo de texto romanesco, publicado em capítulos, ou “entregas”,
se transformaria rapidamente em moda também no Brasil. Mas isso acontecerá a partir da
década de 1840, ou seja, dez anos depois dessa ousadia inicial de O Beija-Flor.
Chegando à metade do século XIX, a literatura ganha prestígio e cai no gosto do
público. Valorizada e apreciada, sua contribuição foi decisiva para a formação da
nacionalidade, afirmam os pesquisadores Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros
(2003: 54). Essa influência vai se encorpando por meio dos folhetins, dos livros e das
poesias recitadas em público, consolidando a tíbia indústria editorial. Há um crescendo no
número de exemplares de periódicos vendidos anualmente: de uma média de 5.000
exemplares em 1840, se passa a 20.000 duas décadas depois, alcançando 30 mil
exemplares vendidos na década de 70, segundo o pesquisador Reinaldo Carlos Montoro
(MOREL&BARROS, 2003: 54). São números um tanto questionáveis, caso se leve em
conta a informação corrente de que a Revista Illustrada, de Angelo Agostini, chegava a
tiragens de 4.000 exemplares por edição (mesmo que se calculasse uma tiragem média de
apenas 2 mil cópias semanais, o resultado seria cerca de 100 mil exemplares anuais apenas
dessa publicação).
Sem dúvida um dos fatores que fizeram com que as tiragens e o número de
periódicos aumentassem significativamente foi o folhetim, termo que designava o largo
rodapé da primeira página do jornal: espaço nobre destinado a piadas, charadas, receitas,
novidades, historietas e cartas. O tamanho e formato dos rodapés sofreu transmutações
sucessivas (MOREL&BARROS, 2003: 55), até que passou a comportar trechos de uma
narrativa fatiada, obra publicada aos pedaços, em progresso, fazendo com que o leitor,
instigado pela curiosidade e pelo suspense das histórias, adquirisse diariamente o jornal ou
acompanhasse as peripécias dos personagens nas edições semanais ou quinzenais de sua
revista preferida.
Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros relatam que, entre 1830 e 1854, foram
77
publicadas em periódicos brasileiros 74 traduções de obras de ficção. Importava-se
literatura sem qualquer autorização dos autores. Foi assim que obras como O conde de Monte
Cristo, de Alexandre Dumas, ou Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo (com tradução de
Machado de Assis para publicação no Diário do Rio de Janeiro) apareceram aqui ao mesmo
tempo em que eram publicados em Paris. Foi tal o sucesso de O conde de Monte Cristo que o
diretor do Jornal do Commercio encomendou uma versão com novas peripécias do
personagem, contratando para isso o jornalista português Alfredo Passolo Hogan. “No papel
de ghost-writer de Alexandre Dumas, ele escreveu A mão do finado” (MOREL&BARROS,
2003: 56). Em outubro de 1853, o próprio Alexandre Dumas, que conheceu a versão
francesa dessa “continuação de sua obra”, enviou uma veemente carta de protesto ao jornal,
que não lhe deu caso, continuando a publicação da saga de Edmond Dantes.
19
Sensibilizados pelo sucesso do folhetim na conquista de novos leitores, que
acompanhavam avidamente as histórias, os jornais e as revistas daqui adotaram o modismo
europeu. E os escritores nacionais, igualmente convencidos, ingressaram no elenco de
autores de folhetins, até ali dominado por nomes estrangeiros como Eugène Sue,
Chateaubriand, Fenimore Cooper e Walter Scott, além de Alexandre Dumas. Assim, na
década de 1850 os autores nacionais começam a exercitar-se no gênero. Um dos grandes
sucessos dessa ficção fasciculada foi O guarani, de José de Alencar, publicado no Diário do Rio
de Janeiro entre fevereiro e abril de 1857. A propaganda boca a boca fez não apenas subir as
tiragens do jornal, como a história era republicada em diversos periódicos das províncias,
para delírio dos leitores que acompanhavam o desenrolar das histórias como hoje muitos
seguem as peripécias da novela das 8. Após esse sucesso, José de Alencar, que era redator-
chefe do Diário do Rio de Janeiro, publicou no mesmo jornal A viuvinha (1860). Sem dúvida,
um caso de “contrato de leitura” pactuado entre editor e leitor.
Outros clássicos da literatura surgiram como folhetim, escritos em capítulos para
alavancar a leitura das publicações. Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio
de Almeida, foi publicado entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho de 1853 no Jornal do
Commercio. Machado de Assis publicou o seu Quincas Borba entre 15 de junho de 1886 e 15
de setembro de 1891 na revista quinzenal A Estação. Foi assim que nomes como Joaquim
Manuel de Macedo, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia se popularizaram e lançaram histórias
fasciculadas que depois, reunidas em livro, se tornaram clássicos de nossa literatura.
Pegando carona nessa vertente, dada a demanda dos periódicos pelas histórias
seriadas, imprensa e literatura passaram a caminhar juntas, e não raro os escritores
publicavam suas obras primeiro em folhetins. Além dos autores já citados, muitos outros
iniciaram na literatura pelas portas da imprensa diária. Transitando com desenvoltura pelo
gênero, aos poucos os folhetinistas passaram a cultivar também a crônica. Machado de
Assis escreve em uma delas, em 1859, O Folhetinista:
O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério,
consorciado com o frívolo. [...] O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na
esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules
suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence, até mesmo a
política [...] Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz neste mun-
do, exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos
para admirá-lo e a bas-bleus
20
para aplaudi-lo. O Espelho, 30/10/1859 (ASSIS, 2004: 3-959).
Por tudo isso, fica evidente a importância da primeira novela escrita no país, A
periquita, uma das atrações dos números 4 e 5 da revista O Beija-Flor. De autoria atribuída a
Charles Auguste Taunay
21
, a história da rica menina Olaya e do pobre garoto Julio se
passa no Nordeste brasileiro. Um folhetim curto, Olaya e Julio, ou A Periquita, se divide em
duas partes. Na primeira o leitor é apresentado aos personagens, que se conhecem na
infância. Olaya é uma menina bem-nascida. Julio é um dos “deserdados da sorte”. De
passagem pela fazenda dos pais de Olaya, o garoto é maltratado pelos irmãos da menina e
alguns outros rapazes. Com pena do garoto, Olaya afugenta os agressores e dá de comer
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
78
ao pobre Julio. Ao se despedir, ela lhe entrega uma pequena quantia em dinheiro e uma
periquita. A pequena ave será a lembrança que Julio leva da menina Olaya, por quem se
apaixonara. Quando a periquita morre, ele a manda empalhar, para manter a recordação.
Na segunda parte da história, Julio, agora um comerciante rico, retorna ao seu
Ceará natal, devastado pela seca, e reencontra sua amada. Pouco resta do brilho da
menina rica de outrora. Olaya, envelhecida e recolhida a um pobre casebre, não reconhece
no comerciante próspero aquele menino a quem atendera...
No final desse capítulo reproduzimos, sem alterar a grafia (mantendo inclusive os
erros tipográficos), a versão integral de nosso primeiro folhetim, recuperado por meio da
cópia microfilmada da Biblioteca Nacional.
Prologo
Quando eu visitava as Provincias do nor-
te de Brasil, aconteceo que huma medonha tro-
voada já armada, me obrigou á correr com os
olhos ao campinhas vizinhas á estrada, para
buscar azilo. O Districto era dos mais pingues
do Brasil, e varios engenhos ou fazendas
estavão a vista: escolhi, como era de razão, o
edificio de melhor aspecto, e huma carreira e
huma avenida tirada á cordel, que não desme-
receria-se a comparassem com as melhores da
Europa, seja pela perfeição do nivelamento,
seja pelo amado das nogueiras da Índia, nova-
mente prantadas, e igoais no sizo, e viçoso me
levou até o patamal da casa do dono, de nova
construcção, e tão elegante no desenho, e
symetria das proporções, que se avantajava á
muitos chamados palacios, no mesmissimo
instante que as primeiras pingas começavão a
cahir. Hum preto de maduro, e agravel sem-
blante, bem vestido, e calçado, appareceo
immediatamente, e chamando hum lacayo para
A nossa protonovela
LITERATURA
__________
OLAYA, E JULIO, OU A PERIQUITA.
NOVELLA NACIONAL
__________
que tomasse conta da cavalgadura, pedio poli-
damente que me sentasse na varanda, até que
fosse dar parte ao dono da casa da chagada de
hum hospede. Não tardou que o dono me vis-
se receber. Era hum Jovem de menos de 26
annos, de grande ar, bella presença, e
physionomia tão expressiva, e aberta, que des-
de o primeiro momento chamava a confiança,
e sympathia. Depois de me offerecer a casa, e
de mandar vir refrescos, com a costumada hos-
pitalidade patricia, travámos a conversação que
virou naturalmente sobre os interesse politicos
do paiz. Meu hospede se expressava com gran-
de facilidade, e eloqüente singeleza: a confor-
midade das nossas opiniões sobre a politica,
estreitou em bem pouco tempo o conhecimen-
to de tão fresca data; quando nos vierão cha-
mar para jantar, já eramos intimos. Achámos
na salla, digna da casa, e da lauta, e delicada
meza que nos esperava, huma jovem senhora
que o dono me apresentou como sua mulher.
Devo confessar que fiquei mudo com a admi-
ração; jamais vi hum par tão bem sortido. A
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lindeza, e mimosidade das feições da Jovem
senhora eram realzadas pro huma expressão
de modestia que tirava á suavidade, e como
dizem os Italianos, morbidezza dos gestos,
prensa privativa das Brasileiras; hum
caracteristico, assáz raro nos paises quentes,
augmentava o valor d’huma physionomia que
respirava a candura, e benevolencia. Seus olhos
do azul mais fechado, obombravão-se por lon-
gas palpebras pretas, sendo as sobrancelhas, e
cabello da mesma cor em abono da brancura
transparente da pelle, que a mais fina lady
houveria de invejar, se as faces fossem algum
tanto mais coradas. Eu achei que esta mesma
palidez a tornava mais interessante: e não
supponhão que a riqueza dos ornatos ajudas-
sem para a illusão, pois que o traje era demasi-
adamente simples, e constava unicamente de
hum vestido cor de rosa esmorecida, com
huma cinta azul claro: por única joya ella tra-
zia ao pescoço hum cordelzinho de cabellos,
com hum coraçaozinho de corallina. Eu noto
estas circumstancias porque soube ao depois
que não erão devidas ao descaso.
Durante o jantar as attenções e desvelos
dos dois esposos se dirigirão ao hospede: elles
se tratavão hum á outro com grande respeito,
e reserva; mas hum observador menos experto
do que eu, não poderia deixar de notar o pro-
fundo sentimento que os unia. Qualquer movi-
mento, olhada, palavras o patenteava. Particu-
larmente a senhora, quando pensava que a não
observarão, deixava de comer para contemplar
o marido: a voz dete quando se dirigia á mu-
lher, respirava huma inseffavel ternura. Em fim
o meu appetite de viajante nos sertões, desafia-
do por iguarias que hum cozinheiro francez
tinha apurado o talento, cedia á admiração, e
eu de vez em quando esquecia o meu prato para
o espectaculo de huma união tão perfeita.
Com a sobremezza, huma ama de leite,
robusta, sadia, e risonha appareceo levando ao
collo huma criança de quazi dois annos, fruto
de hum tal sorteio. A criança com as gracinhas
de terna idade encantava o pai, e a mai, e pas-
sava á cada instante dos braços de hum, para
os d’outro. Eu também lhe fiz os meus affagos,
e esta circumstancia não me mereceo pouco
com ambos os esposos.
Quando deixámos a meza a trovoada tinha
sido rendida por huma chuva desmedida. Sen-
do pois impossivel sahir fóra á visitar o Enge-
nho, meus hospedes me mostraão a Casa, á
cuja construcção ornato, e commodidade, o
bom gosto, a opulencia, e o asseio, de maos
dadas , tinhão cooperado.
Chegados ao sallão das visitas, cuja mo-
bilia era de grande magnificencia, observei no
centro huma meza requissima de mosaica, so-
bre a qual via-se debaixo de vidro hum vaso
cheio de grande quantidade de flores de pennas
da Bahia, no tope das quaes huma periquita
destas de cabeça vermelha, muito bem enchida,
pousava com a cabecinha no ar, o biquinho
meio aberto, e as azas algum tanto afastadas
do corpo, como se ensayasse o vôo; os olhi-
nhos erão de brilhantes; mas outras singulari-
dade chamou logo a minha attenção. O vaso
longe de ser de procelana, como os mais que,
com grande profusão, ornavão a salla, era de
simples barro acinzentado, e não se
differenciava no feitio, e qualidade de qualquer
outro pote de buscar agoa, sendo o tamanho
proprio para as forças d’hum moleque de dez
para 12 anos. – Aqui, disse eu, dirigindo-me
ao dono da casa, a anomalia não vai sem
mysterio, e a humildade do vaso, em pedestal
tão precioso, encerra sua enigma. – Ah!
Excalmou o hospede, todos os diamantes do
Tejuco não me pagarião este pote de barro.
Nelle nossas reliquias hão de dormir jun-
tas........ e virando-se para a mulher: Este anjo
que vedes carregou agoa á cabeça neste mes-
mo pote..... “ Ella corou, e deitou para o mari-
do hum olhar demorado ao qual o pejo, e a
ternura davão hum attractivo irresistivel. O
Jovem ficou algum tempo absorto na contem-
plação da encantadora consorte, até que se
dirigio outra vez á mim – Seria, disse elle, falta
de generosidade, e de criação, o querer
dispertar a curiosidade d’hum hospede, sem
dar-lhe satisfação – hoje mesmo estareis ao
facto da nossa historia; minha Olaya, conti-
nuou elle, não cores outra vez; a narração da
boa acção á qual devemos nossa felicidade, he
digna de ser publicada, e de servir de prova
que algumas vezes a virtude recebe na terra o
seu premio.
Com effeito, ás horas de se deitar, o meu
hospede me confiou hum manuscrito assáz
volumoso, que devorei durante a noite, e do qual,
com licença do dono, eu tirei huma copia. Não o
posso dar por enteiro ao publico, sendo compri-
do em demasia; mas julgo que o resumo que delle
fiz será digno de attenção, dos meus leitores.
_____________
OLAYA , E JULIO
Vamos laçar o Sapo, gritava um menino
de 12 para 13 annos, montado n’hum
cendeirinho muito esperto. – Vamos laçar o
Sapo, ecoavão outros doi smeninos mais mo-
ços, á pé, e meia duzia de muleques de todos
os tamanhos, em quanto sete, ou oito rafeiros
magros accompanhavão esta nova especie de
caça, com horrenda ladraria.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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A miseravel criatura, assim acommetida,
não era bicho, mas sim huma criança; verda-
deiramente ella dava alguns ares de Sapo. A
barriga muito inchada, a cabeça quase pegada
aos ombros, e igualmente entumecida, as per-
nas, e os braços nimiamente descarnados, e
terminados por delgadissimos dedos, fazião
lembrar a grosseira construcção do tal bicho,
ajudando a cor livida, e os olhos escanchados
com o medo, para a semelhança.
Isto se passava no largo d’huma grande,
e opulenta Fazenda, nos sertões do Ceará. O
menino caçado, hydropico, e obstruido, as-
sim mesmo tinha, no seu terror, achado for-
ças para fugir até se encostar á parede da casa;
mas lá cahíra no chão arquejando; o estado
da fortuna não se avantajava muitoi ao da
saude: huma camiza d’algodão de tecido ser-
tanejo, e ciroulas do mesmo panno
completavão o seu traje, assaz sujo. Entretan-
to todos os inimigos, rapazes, e cães, o
cercavão com grande alarido, e já o chefe do
bando endiabrado dava ordens á hum
pardinho de lhe ir buscar o seu laço.
Este chefe, montado no cendeirinho, era
menino bem parecido, mas sua physionomia,
denotav soberba, e atrevimento. Elle estava
completamente vestido de preto, como em dia
de funcção, com sua casaquinha, collete, cal-
ças, botins, e pesadas esporas de prata; não
lhe faltavão a tira de renda patricia, e a grava-
ta de cambraia. Os outros dois meninos, ir-
mãos daquelle, ainda estavão de timão, e os
muleques, nús em couro, de cor negra, ou
acafuzada, como a natureza lhos pintára, a
excepção que os mais velhos trazião crioulas
langotins.
Neste comenos huma menina de onze
para doze anos sahio pela porta da cozinha,
pois que a scena tinha lugar nos fundos da
casa, cuja entrada principal se achava no lado
opposto. – a Maninho, gritou ella ao pequeno
cavalleiro, Papai já está em sella, e procura
vosse para marchar, que já he tarde. E vós,
continuou ella, fallando aos meninos mais
moços, ide vos vestir, a Mai os chama ha huma
hora; o carro já está a Porta nos levar todos ao
casamento da prima. – Vai bugiar, tola.... foi a
primeira resposta que deu o Irmão: assim mes-
mo elle parou, e fallando á sua tropa em tom
de general absoluto: – “pois bem. Não há tem-
po de acabar hoje. A manhã o hei de de laçar.
Maninhos vão se vestir. Muleques retirai os
cães, e ninguem lhe toque senão quer ter nego-
cio commigo: Vamos. – E elle á todo galope
disparou para dar a volta á casa; os irmanzinhos
entrarão pela porta da cozinha; e o bando de
muleques, e cães correo apoz o cendeiro, n’huma
nuvem de poeira, com bramidos, e latidos.
Quem he vosse, disse então em meiga voz
á pobre victima, a tal menina. Mas o menino,
quazi desfalecido com medo, e cansaço, mal
pôde responder com ais, e gemidos. – “Coita-
dinho, proseguio ella, em que estado está! fi-
que sem susto. Vosse há de ter sede. Quer
beber algum leite. – O menino respondeo com
a cabeça que sim; e a pequena, correndo para
a cozinha, voltou bem depressa, segurando,
com ambas as mãos huma grande cuia, toda
cheia de leite, com farinha, e rapadura. O pe-
queno pareceo resuscitar á vista do leite, e ati-
rando-se á elle, bebeo, e comeo juntamente a
bemfazeja mistura. A menina o considerava
com ar de satisfação, e interesse. Tendo acaba-
do o leite até a última pinga, o pequeno já vol-
tado em si, levantou os olhos para encarar a
bemfeitora que o salvára dasmãos dos cruéis
perseguidores, e o restaurava com a deliciosa
beberagem. Mas huma superstição bem
propria de quem tinha sido educado por huma
mai beata, e hum Padre santarão, fez-lhe imagi-
nar que hum socorro, vindo tanto á tempo, e o
ente amavel que o levára, tinhão alguma cousa
sobre-natural, e pondo-se de joelhos, exclamou:
– “O meu anginho bom, tende piedade de
mim!” Verdadeiramente os anjos não se pintão
mais bonitos, e de physionomia mais affagavel
do que o era tal menina, com a sua carinha re-
donda, sua boquinha risonha, seus olhos azues
com sobrancelhas pretas, e cabellos da mesma
cor que cahião nos ombros; esta circunstancia
não ajudou pouco para a illusão do menino,
pois que na casa da mai havia hum quadrinho
que representava hum anjo neste traje, e a crian-
ça de manhã, e de noute tinha sido ensinada a
rezar de joelhos perante aquella imagem.
A pequena sorrindo-se, e suspirando ao
mesmo tempo, lhe disse: – “Alas, eu não sou
anginho, sim huma desgraçada menina, pois
que minha mai não gosta de mim! – Ah
respondeo elle, vós ainda tendes pai, mai, ir-
mãos, e huma bella Fazenda com muito gado,
e muito leite. Eu já perdi tudo: sou hum pobre
menino orphão abandonado, que não conhe-
ce ninguem; que ninguem ama; que morre de
fome e de doença. Elle então principiou a lhe
contar que se chamava Julio da...... que seus
pais habitávão a villa de...... arredada mais de
trinta legoas nos sertões, aonde erão assás abas-
tados, com seus escravos, e boa porção de
gado. Mas as seccas, a morte dos escravos, e
as demandas pouco a pouco os tinhão feito
definhar, até que o pai morréra de magoa, e a
viuva ficou com o filhinho em um estado bem
perto da miseria. O Vigario do lugar, homem
ancião e de conduta evangelica, tinha a socor-
rido até a época em que as saudades do mari-
do a levárão á sepultura, passando então o
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menino para a casa do bom Padre, que lhe
consagrou todo o amor de Pai. Mas as repeti-
das seccas tendo feito desertar a villa, e o ve-
lho padre tendo ficado cego elle no fim da vida
não teve para viver junto com o pupillo senão
as esmolas d’algumas familias de caboculos, e
pretos libertos, que não tinhão ainda desam-
parado o lugar; mas o Padre não durou mui-
to, e os ausentes passárão mão dos pobre tras-
tes do defunto, feicharão a casa á chave e
puzerão na rua o menino, atacado de sezões, e
já com princípios d’hypisia. Este tinha ido á
graça de Deos, atravèz os sertões queimado,
sustentando-se com aquillo que lhe davão por
caridade nas choupanas que topava, e com
cóquinhos de lycoriseiras, frutinhas de pom-
ba, alguns cajús, e outras cousinhas que en-
contrava; porem cada vez mais as doenças
peioravão, de forma que chegou á fazenda
aoned achou os pequenos cazadores, em grao
d’inchação quazi desesperado. – Ah! coitadi-
nho! coitadinho! exclamou a menina torcen-
do as mãozinhas: e o maninho ainda por cima
o ia laçar! ah se eu não chego Você morria de
certo. – E o peior accrescentou ella, com tom
triste, he Você aqui não está seguro; a manhã
ou depois, havemos de voltar, e o mano o ha
de laçar, poisque elle faz tudo o que quer, e he
muito máo! Por força Você ha de se ir embo-
ra! mas assim! sem nada para comer, e tão
doente! E eu que não tenho nada para lhe dar.
O mano tem muito dinheiro, e muita cousa
bonita.... mas eu.... entretanto espere hum pou-
co.... E ella foi correndo para a cozinha, e vol-
tando no fim d’alguns minutos com huma
periquita, d’essas de cabeça vermelha, no
hombro, huma pataca na mão, e um saquinho
de chita dependurado no brasso. – “Aqui tem,
disse ella, neste saco, farinha e rapadura: de-
pois de come-lo esta pataca servirá para com-
prar mais alimento durante muito tempo; e por
fim poderá vender esta periquita tão bonita.
As emoções das crianças são mui fortes, mas
instantaneas; ellas sem transição passão dos
choros ás gargalhadas, do último desespero, á
maior satisfação. Isto he o que aconteceo ao
menino ao ver tantos presentes dados por uma
menina tão caritativa como bonita. Mas hum
sentimento de boa criação, o fez recuzar o
dinheiro, e a ave. A menina insistio: “Esta
pataca, disse ella, não me faz falta: papai ma
deu para comprar doce, e fita, e hão de me dar
tanto disto na boda! a respeito da Periquita a
noiva ma mandou ha dois dias e ainda não lhe
criei muito amor: tome sem pejo, coitado, ella
o fará lembrar de mim.” – Ah! gritou o peque-
no enthusiasmado, não preciso disto para ja-
mais vos esquecer. Eu me lembrarei de vós
como do meu bom anjo, que me salvou, e me
encheo de beneficios; eu juro que jamais lar-
garei esta periquita em quanto fôr vivo: mas
vos haveis de esquecer brevemente o
miseravel orphão que lhe deve este restinho
de vida.......e que vai expirar n’hum cantinho,
abençoando a sua protectora.....ao menos se
tivesse alguma prendinha que lhe deixar! ah!
Disse elle, desamarrando hum cordelzinho de
cabello com hum coraçãozinho da corallina
que levava ao pescoço, eis tudo quando me
fica de minha mai; este cordel he do seu
cabello; digne-se aceital-o. Eu logo morrerei:
este cordel vos fará lembrar que a existencia
d’hum desgraçado foi prolongada por vossa
angelica bondade; vós haveis de viver muito
tempo, e muito feliz; poisque minha mai me
ensinou que quem fazia boas acções jamais
havia de ser desgraçado!”
A doença tinha desfigurado o menino,
mas antes que as feições inchassem, elle tinha
sido mui galante. Neste momento a força dos
sentimentos de gratidão, e admiração fornavão
á dar aos olhos a antiga expressão de candura,
e vivacidade, á bocca o sorriso engraçado, e á
voz o som agradavel, e penetrante dos seus de
saude. A menina sentio outra emoção do que
a simples compaixão que hum menino pobre
lhe poderia inspirar! hum instincto inexplicavel
de sympathia, e de ternura lhe mostrava na
criança tão miserável, e maltratada da doença,
hum ente que merecia ser correspondido com
toda a delicadeza de procederes, e attenções. –
Pois bem, disse ella enternecida, e com lagrimas
nos olhos, eu aceito esta prenda, e jamais a
largarei. Ella me lembrará que os bens da for-
tuna são incertos, e que Deos, como o disse
outro dia o Padre que orou, nunca abandona
os infelizes, e lhes manda socorros imprevis-
tos; não me posso demorar mais, accrescentou
ella, já tudo está pronto, e se fazia esperar minha
mai, tinhamos função; vá, que o menino Jesus, e
sua Santissima Mai nossa Senhora das sete do-
res o emparáráõ. aqui está seu caminho; nós va-
mos em rumo opposto; creio bem que ficaremos
estes dois dias, e você pode neste tempo ir tão
longe, que maninho o não saberá achar; adeos
Julio!...adeos! E ella se foi correndo, e o menino
ficou immovel, e sem falla no mesmo lugar, acom-
panhando-a com os olhos, e quando a vio desapa-
recer, sentio huma nuvem negra esconder-lhe a
vista, e huma oppressão no coração, como se a
vida o desemparava. Elle ficou n’este estado até
que o chiar do carro o fez tornar em si!!!
Elle então entrou com passos vacillantes
no caminho que a menina lhe mostrára. O ter-
reno ia subindo por hum declive pouco
sensivel, e tendo caminhado por hum espaço
de tempo, elle já por cima dos tectos pôde di-
visar o carro, que ascendia o outeiro opposto,
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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pois que a fazenda era edificada num fundo
regado por huma ribanceira que, se bem que
muito reduzida, ainda lutava contra os ardo-
res da secca. Oito juntas puxavão a pesada
maquina abrigada contra o sol por couros, e
toda ornada de ramos verdes, e folhagems. Esta
vista cativou a attenção do pequeno que
accompanhou o carro com os olhos, saudan-
do-o com a mão até que o vio desapparecer no
outro vertente do outeiro. Adeos, exclamou
elle todo choroso! adeos anjo de paz e
caridade!...e virando a cabeça para a periquita,
que tinha tomado posse do seu hombro: -
pobrezinha, mudastes huma ama tão bonita, e
tão rica, por hum companheiro tão miseravel
como eu!...mas esteja quieta! em quanto eu
viver não te há de faltar cajú, cuparosa,
mangaba, ou outro qualquer manjar do teu
gosto....Eu de noite e de dia hei de te mimar, e
te afagar.....e não sentirás saudades da tua se-
nhora, porque hei de te fallar sempre della....e
eu que não sei do seu nome!....diga-me minha
rica periquita, como se chama tua
amazinha!....Olaya! Olaya! Pronunciou a
perriquita, que talvez fôra ensinada pela pri-
ma que queria darmais valor ao seu presente.
O prazer que transportou o coração de Julio
não se póde expressar! – Isto he hum milagre!
ah! Perriquita, meu bem, minha joya, repita
sempre este nome engraçado; has de tornar a
vel-a tua, e minha Olaya!!! E elle para não es-
quecer o caminho, que já dava suas voltas lem-
brou-se de quebrar alguns raminhos dos ar-
bustos, que a secca tinha despido das folhas, e
de depositar algumas pedrinhas nas beiras;
persuadido como criança que era, que sinaes
tão passageiros havião de durar eternamente.
A fortuna que principiavaa favorecer o orphão
fez com que logo topasse com hum preto que
se dirigia á fazenda, levando hum grande ces-
to, cheio de mandioca á cabeça, e humas espi-
gas de milho verde na mão. O tal preto trazia
por único vestido hum cobertor de riscas ao
redor da cintura. A physionomia cheia de ale-
gria, e de bondade do negro animou o meni-
no á que lhe fallase, e lhe perguntasse o nome
da fazenda; o Preto parou, e antes de respon-
der fez tambem a sua pergunta: - Esta peliquita
não he da senola moça Olaya? Sim
he!...respondeo logo o menino, que principiou
á contar tudo quanto lhe acontecera: - como
os mevinos lhe derão caça, como a menina o
salvára, e lhe déra tudo quanto trazia. O bom
preto ao ouvir a historia, ficou todo enterneci-
do, e depositando o cesto no chão travou huma
comprida conversação com o pequeno, con-
tando-lhe as particularidades da fazenda, e da
familia, os nomes de todos os sitios, e de to-
dos os individuos; como o Sr. Moço, Joze Fre-
derico, de ..... era soberbo, ouzado, sem entra-
nhas para bichos, e gente; como pelo contra-
rio a senhora moça mostrava-se meiga,
afagavel, e caritativa. Ella dava quanto tinha
aos pobres, e se achava sempre pronta á orar a
favor dos escravos, e disculpa-los; que ella
poupará á pareceira delle Domingos, mocamba
da senhora velha, huma tremenda sova, a cus-
ta de duas duzias de palmatoadas que a mai
assentára sem piedade nas mimosas mãosinhas,
por cauza d’huma rica porcelana da chuna que
a preta tinha quebrado; mas da qual Olaya to-
mou a culpa; que desde então elle Domingos
estava pronto á dar o sangue, e á morrer de-
baixo do chicote por Olaya; que elle levava
todos os recados, e prezentinhas della ás me-
ninas pobres da vizinhaça; entretanto huma
menina tão perfeita não estava DILOSA, por-
que a mai, que não tinha olhos senão para o
filho mais velho, não gostava della; e se bem
que o pai não participasse da preocupação, elle
não era muito ouvido na caza, porque todos
os bens erão da Senhora que tinha casado com
hum filho do Reino, que principiara por ser
feitor na Fazenda.
Cada palavra do pai Domingos grava-
va-se na memória de Júlio como sobre aço,
nestes riscos indeleveis das primeiras noções
da meninice que ainda persistem no cérebro
do velho que caduca, quando todas as lem-
branças da mocidade, e da idade madura já
ficão apagadas.
Ao despedir-se o preto offerecendo-lhe a
mão de milho lhe disse: - isto vem da minha
lossa; ela pala a senola moça Olaya. Como foi
ao casamento da plima, há de se para meu
senozinho. – Domingos foi-se com mil
recommendações para Olaya, e noticias da
Periquita; e Julio com seu accressimo de rique-
zas proseguio sua marcha, com as demoras, e
paradas que o estado da sua saude causava,
até que tendo andado mais de huma legoa,
chegou ao pôr do sol nas beiras da ribanceira,
da qual pouco se apartára, e achando nella hum
rancho de boyadeiros, havia pouco tempo de-
socupado, com algumas estacas, e tições ainda
accesos, elle o escolheo para o pouso da noute.
Duas espigas torradas fornecerão á elle á cara
periquita, huma ceia frugal, e sadía, e ambos
adormecerão profundamente, no seio da na-
tureza, e da innnocencia.
Ambos acordarão com o raiar do sol. Ju-
lio entrou na estrada indicada pelos rastos da
boyada. O aspecto do paiz era assaz uniforme,
com pequenas ondulações iguaes que se
succedião sem interrupção. Hum vapor
avermelhado, offuscava o azul do firmamento,
sem nada tirar ao ardor do sol; alguns truncos
acanhados de cajueiros, levantavão seus bra-
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ços despidos de folha, acima das tocas de sapê
meio torradas pela annuaes queimadas desti-
nadas a limpar o terreno, para favorecer a ger-
minação do capim novo; porém debalde
naquelle anno os Piões não tinhão esquecido
este cuidado. As noutes tinhão negado o seu
orvalho; a estação das chuvas tinha passado,
e apezar de que algumas trovoadas tivessem
roncado, ellas se tinhão desfeito sem dar huma
pinga de chuva; e não havia sinal algum de
verdura na immensa planice que todo ente
dotado de vida abandonára para se refugiar
nos lugares aonde se podia ainda achar algu-
ma agoa; huma poeira sutil, e absorvente,
affligia os olhos, e resecava a pelle, e a gargan-
ta; apenas o canto d’algumas cigarras
interrumpia o silencio de morte desta solidão,
que teria assombrado o nosso pequeno viajan-
te se elle, quando chegava no cume d’algumas
das ondulações do terreno, não tivesse reen-
contrada com a vista a ribanceira, cujas voltas
no immenso campo pulverulento, se
assemelhavão ás d’huma fita de prata com duas
orlas verdes.
Brevemente a calma que, á proporção que
o sol subia, ganhava em intensidade, o obri-
gou á cortar para a ribanceira, dirigindo-se á
hum bosquezinho de algodoeiros do matto,
Jaquapirões, e Imbaibás aos quaes a proximi-
dade d’agoa conservava sua vicosidade.
Elle, neste azilo, já encontrou primeiros
occupantes. A companhia era numerosa, e se
compunha d’especies d’individuos, gentes, e
bichos, pertencentes á muitas nações. Na oca-
sião em que Julio chegou, o grande negocio
do almoço occupava á todos. As bestas
descarregadas fartavão-se do viçoso capim, cuja
frescura, defendida pela sombra, e a humodade
contrastava com a nudêz do campo; não havia
precisão de as piar para as conservar no pe-
queno recinto da parada. Os donos comião,
com grande vontade, varias carnes assadas de
Pácas, Catitús, Jacús, Zebelês, e outras caças,
com bolaxa,e boas garrafas de vinho, não fal-
tando o café preparado na sua competente ma-
quina de folha. A Personagem principal era
homem já de idade madura, de physionomia
risonha, e agradavel, com olhos azues, vivos,
e expressivos, e rosto avermelhado: da cabe-
ça, algum tanto calva na sommidde, descendião
sobre os hombros, compridos cabellos bran-
cos que chamavão o respeito: calça, e nisa bran-
cas, botims de couro, e chapeo do Chili
formavão seu traje: quatro jovens, no mesmo
uniforme, estavão sentados á direita, e esquer-
da do chefe. Dois piões no traje sertanejo, fei-
to tudo á custa do couro, hum Caboculo em
ciroulas, e dois pretos que servião, completavão
o numero dos entes racionaeis. Os bichos, além
das bestas de carga e cavalgaduras, fazião ain-
da hum maior numero; dois caens perdiguei-
ros, hum catitú manso, hum tatú em huma
gaiola: hum grande mono, dois micos, cinco
ou seis papagayos esperavão com grande
impaciencia, soltos, ou amarrados nos coffres,
que repartissem com elles da abundante comi-
da, e por saltos, ou vozes da linguagem priva-
tiva da sua especie, chamávão sobre si a
attenção dos que convivião.
No chão jazião vaizas peças da caça, en-
tre aves raras, quadrupedes, e reptis, em quan-
to muitos couros de toda bixaria estavão ao
sol extendidas a secar, e entre elles o recente
d’huma giboya de monstruoso tamanho, que
se matára, e se esfolára no dia antecedente.
Os instrumentos da caça, descançávão aos la-
dos dos individuos, ou encostados ás árvores
vizinhas; em fim varias redes de apanhar bor-
boletas, thermometros, caixotes de guardar
prantas, e papelões para as seccar, e outras
mil miudeza indicavão que a busca dos
objectos d’historia natural fazia a principal
occupação daquelles rancho.
Com effeito essa expedição era feita á cus-
ta de hum Soberano d’Allemanha, amigo, e
protector das Sciencias, que não poupára des-
velos, nem despezas para que desse os resulta-
dos mais satisfatorios. O D. Willians S..... ce-
lebre naturalista, grande medico, e autor de
varios tratados estimados, tinha sido escolhi-
do para a dirigir, e os quatros jovens
collaboradores, que elle mesmo elegêra para
pintor, zoologista, botanico, e astronomo,
tinhão já dado, cada hum na sua repartição,
provas indubitaveis de hum talento superior.
Se hum espetaculo tão novo aos olhos de
Julio lhe causou muita admiração, a companhia
perante a qual elle apparecia, com a sua
piriquita no hombro, não ficou menos
attonita...Já pintámos o aspecto que a doença
lhe tinha dado. O Doutor, entre todos esqueceo
o bocado que levava á boca para o considerar,
e logo exclamou. – “Genus homo; especie,
americana; varietas...incognita.....” e com a ima-
ginação toda cheia dos phenomenos, e mons-
tros que as novas regiões que explorava havião
de fornecer á sua sede de descubertas, cuidou
que sua boa fortuna lhe trazia hum ente mara-
vilhoso; porém hum dos piões, homem sizudo,
e cuja pratica do paiz muitas vezes desafiava a
sciência theorica do Doutor, o desenganou
logo, quando interrogado, declarando com
muito sangue frio, que era hum menino bran-
co, muito obstruido, e hydropico. – “Oh!
pauvre petit, disse o Doutor, eu pode curar
com a chioccoca racemosa (vulgarmente cainca
ou rais preta). Primeiro convida a comer: - O
pião deu ao menino hum bom pedaço de lom-
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
84
bo assado, com huma bolaxa, e não foi preci-
so instar para que este participasse da
appetitosa refeição; porem de cada bocado que
comia, elle dava com muito carinho huma
porçãozinha á perequita, o que chamou a
attenção do bom Doutor sobre o bichinho: -
Ordo, picae; genus, Spittacus; varietas,
pullarius; exclamou elle; e como o passaro, se
bem que assaz conhecido, não existia ainda na
sua colleção, elle sentio grande desejo de o pos-
suir, e perguntou ao menino: - Vocë quer ven-
der – Não! não! respondeo este, já muito ansi-
oso. – Mi da á Voce muito dinheiro, replicou
o Doutor, cujo desejo se incendeia com a re-
pulsa: não posso! não quero. – Huma pataca
(Sinal negativo do menino) tres patacas, qua-
tro mil reis, e pensando que á vista determina-
ria a criança que se conserváva sobre a negati-
va, fez luzir o metal amarello aos olhos do
menino. Mas este escondendo a avezinha en-
tre ambas as mãos, e dando-lhe muitos beijos,
com lagrimas nos olhos, respondia: - Nada!
não a venderei por ouro, nem prata; meu bom
anjo, minha Olaya ma deu; não, periquita da
minha alma, jamais te largarei.
O Pião sobre a vizão do qual o rico metal
não exercia pouca influencia, e que ardia a cada
momento de ver prodigalisar tantas riquezas
para adquirir bagatellas das quaes elle não da-
ria dez reis, não se pôde conter e exclamou –
V.m., quero dizer, V. S. está muito bom em
demasia, esta cousinha não merece dois
vintens; os sertões estão cheios disto. Eu vou
assentar dois pontapés n’este bragerete e to-
mar-lhe o passaro que não vale a quarta parte
do que comeo! – Oh no, no! disse o Doutor,
isto estar injusto: - o esforço da sua magnani-
midade talvez fosse neste instante igoal á de
Frederico o Grande, quando deixou existir o
moinho de Sans-souci no recinto do seu pala-
cete, ou de Napoleão quando na occasião de
se comprar as propriedades que devião dar
lugar ao Paço do Rey de Roma, soffreo que
hum proprietario teimoso, que nenhuma
offerta pôde reduzir, guardasse sua casinha.
(o resto para o proximo numero.)
Parte 2
Não era a tenção do bom velho mandar
seu filho d’adopção sem que fosse bem provi-
do, e portanto além de lhe remetter o emporte
de todos os ordenados que se tinhão
accumulado até huma soma já assaz avoltada,
e de lhe fazer adiantar dez anos da pensão,
elle o dirigio com as mais poderosas recomen-
dações á huma das principaes casas
d’hamburgo que se propunha commenditar
huma casa em Pernambuco. As proteições de
Julio, suas boas maneiras, grandes talentos,
qualidade de Cidadão Brasileiro, e os
consideraveis fundos com que entrava, fizerão
que obtivesse as maiores vantagens na nova
associação: o prazer de tornar para sua patria,
a occupação para se abilitar na sua profissão,
e a viagem do mar, restaorarão completamen-
te a sua saude.
A fortuna accompanhou a nova casa que
trabalhava com potentes meios, e tão bem
sustida pela de Hamburgo, cujas especulações
com o Brasil forão feitas nestes inicios sobre
escala mui grande, que apenas tinhão passado
trez annos, e já Julio não teria dado o que lhe
tocava por cem contos de reis, e como a ambi-
ção, e o amor das riquezas não o dominavão,
elle já se lembrava de liquidar pois que Per-
nambuco não era senão o primeiro pouso para
sua volta a seu paiz, e não lhe offerecia aquella
felicidade para a qual seu coração anhelava, e
que suppunha sómente encontraria nos seus
caros sertões. Elle já chegára á idade das pai-
xões, e com huma alma tão terna, como ar-
dente ainda não tinha achado o ente que de-
via fazer o destino de sua vida: alguns namo-
ros passageiros tinhão terminado em frieza, ou
desgosto; a antiga melancolia o assaltava; e os
tête-à-têtes com a perequita embalsamada já
erão frequentes. Elle não amava a pequenina
Olaya que vira; mas não podia amar outra:
muitas vezes a sua imaginação lhe representa-
va os sitios natalicios, e no seio d’elles huma
figura encantadora, dotada de quantas perfei-
ções podem existir, e sempre esta figura vinha
vestida de cor de rosa com cinta azul, em huma
palavra, tal qual a engraçadinha menina da
Fazenda promettia que havia de vir a ser, e
quando Julio acordava d’estas illusões. “ – Ah!
dizia elle á Periquita, e ella existiria ainda? e
com tantas prendas? e com seu coração libre?
e os pais á não obrigarião a casar?” – Tantas
duvidas, e sonhações findavão por huma
abundancia de lagrimas.
Entretanto elle não ousava se abrir a
ninguem, e menos indagar d’aquillo que tanto
o interessava. Era hum cuidado que não queria
fiar senão de si mesmo: mas a liquidação de
huma casa de commercio de grandes, e
longinquas especulações he obra assaz compli-
cada. Julio esperava para as realizar o resultado
de varias espedições, e o tempo corria quando
huma manhãa, estando ainda na cama, elle vio
entrar o seu socio, homem já maduro, e consu-
mido na sciencia commercial, com certo ar de
preocupação, inusual em hum homem que se
conservava quasi sempre impassivel,” – “ Julio,
disse este, A secca que afflige nossa provincia
castiga com inaudito furor as do norte. O Cea-
rá entre todas está perdido: os sertões ficarão
85
desertos, todo fugio para o Beira-mar e amon-
toou-se na Cidade; huma horrenda fome decima
a infeliz população: o Governo se lembrou de
recrutar entre a mocidade esfaimada, e eu julgo
que não pode haver melhor occasião para huma
especulação que estou já calculando ha hum
mez, de mandar para lá huma embarcação com
mantimentos da terra: venho tomar o seu pa-
recer – Todos os sentimentos concentrados no
coração de Julio rebentarão com inaudita for-
ça ao ouvir esta proposição. – Sim, gritou elle
pulando da cama, sim não pode haver melhor
especulação! He huma mina d’ouro! Eu mes-
mo a quero dirigir e accompanhar.” – O socio
ficou passado com tamanha impetuosidade;
elle não estava accustumado a ver Julio tão
aspero para o ganho, mas o interesse que, á
seu ver, este tomava, no bem da casa, não lhe
podia desagradar, e portanto elles em breve
decidirão, e aprontarão a espedição que se fez
em ponto maior, como dirigida por hum dos
Chefes da casa.
Os ventos favorececerão a impaciencia de
Julio cuja preoccupação chegava a ponto de
delirar; o instante decisivo da sua existencia
tinha chegado; o seu coração arquejava; o ar
lhe faltava; imagens fantasticas escurecião-lhe a
vista; as noutes passavão em longos pesadelos
aonde as scenas dos sertões se confundião com
mil quimericas visões de perigos, de fogos,
d’abismos, de combates, e huma tal excitação
mental poderia lhe ser funesta, se a embarca-
ção não desse fundo no terceiro dia de noute.
Ao outro dia Julio embarcou com o capi-
tão do seu navio, no escaler da saude, como
fora de si pelo gosto de ver o solo natalicio, e
o receio do que ia apprender, ou achar sobre
o vital interesse do seu coração.
Ao saltar em terra elles toparão com huma
companhia de recrutas que alguns soldados
conduzião á bordo; era na occasião de se fazer
a chamada: não podia haver aspecto mas
deploravel: todos estavão em farrapos, tão des-
feitos pela fome, sezões, e bexigas, que mas se
parecião com hum comboi de doentes que vão
para algum hospital, do que com qualquer ou-
tra cousa. Julio commoveo-se profundamente
á vista dos seus infelizes comprovincianos, e
avançava para lhes destribuir alguma gratifi-
cação, quando o nome de José Frederico de.....
pronunciado pelo sargento que fazia a chama-
da, ferio seus ouvidos – Presente – respondeo
com tom assaz energico hum vulto alto, e que
fóra robusto antes que as privações, e doença
lhe tivessem dado as apparencias de hum es-
queleto – Sois José Frederico de....... filho de
fulano.... dono da Fazenda de.... perguntou-
lhe rapidamente Julio que correo para elle –
Sim, respondeo com alguma hesitação o recruta
– Ceos em que estado vos venho achar. – Não
tenho conta que dar a ninguem do meu esta-
do, tornou aquelle, com hum resto de sober-
ba; vou servir minha Patria, e meu Impera-
dor! e esta phraze foi pronunciada em tom que
a ironia, e o desespero se disputavão – Deos
me livre de vos offender contestou Julio; an-
tes quero vos ser util que hé feito de vosso
pai? – Está feliz: morreo. – E vossa mai..... –
Ella vive... coitada. – Onde está? que he feito
d’ella? – O recruta, ainda que com assaz
reluctancia, respondeo... está aqui... que lhe im-
porta?... – muito! tudo! devo-lhe tudo, vamos
aonde está.... – Não posso.... Vou embarcar –
Não seja isto obstaculo.... – E Julio dirigindo-
se immediatamente ao alferes que
commandava o destacamento obteve facilmen-
te que elle, e o commandante da sua embarca-
ção, já conhecido daquelle official, ficassem
ambos fiadores do jovem cearence.
– Agora vamos disse Julio... – não podeis ir
tão longe.. não posso.... dê-me alguma cousa para
comer.... o almoço que o Imperador me dá, está
a bordo, e fallecem-me as forças – “não seja por
isso” – interrompeo Julio, e puxando por huma
mão cheia de patacões elle lha entregou. José Fre-
derico mostrou-se assombrado com a dadiva, e
como sua alma, se bem que prostrada pela má
educação, e os vicios, éra ainda susceptivel
d’alguma generosidade. – Não quero, não mere-
ço tanto, disse elle com a cabeça baixa; basta hum
patacão; guardai o resto para minha mãi e minhas
manas!..... coitadas!..... e huma lagrima rompeo
nos torvos, cavados olhos. – Não tenha cuidado
disse Julio haverá muito mais para vossa mãi...
corra almoçar. – “Em quanto este devorava na
venda proxima alguma cousa Julio, incumbio ao
Capitão do seu navio que repartisse huma boa
quantia entre seus infelizes compatriotas, e como
José Frederico, já estava de volta, gritou: – va-
mos! vamos! – senhor disse este, já todo respei-
toso, e subjugado pela vontade irresistivel de
Julio, olhai que he demasiadamente longe em ca-
minho ariento, e sem sombra; não seria melhor
para evitar a areia, e a calma? ..... – Que areia!
que calma! replicou Julio: vamos! vamos! isto he
negocio de vida e morte. – O outro não replicou
palavra, e foi adiante á mostrar o caminho. Elles
atravessarão, a Cidade, e entrarão em huma com-
prida estrada de areia movadiça, e abraçada por
hum Sol devorador.... mas Julio nada sentia; nada
via..... vamos! vamos! dizia elle de quando em
quando ao guia, que a fraqueza retardava; estas
erão as unicas palavras que pronunciava, e ain-
da que fosse natural indagar do Irmão alguma
cousa da familia, não quiz, nem póde articular
huma só expressão sobre este particular; elle
queria ver por seus olhos! ultimamente, depois
de deixar a traz muitas casas isoladas, e paredões
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
86
de chacaras, elles chegarão a hum descampado,
e avistarão cinco ou seis chupanas, ou sanzalas,
grupadas de hum, e outro lado da estrada, che-
gados que forão á ellas. – Eis, disse José Frederi-
co, apontando pela mais humilde, a residencia
de minha familia! ..... ide vós.... não tenho ani-
mo de as ver.... Coitadinhas! e em parte por mi-
nha culpa!..... – ao dizer isto elle se abafou em
huma das chopanas, e Julio foi ter á casinha que
se lhe indicára. A porta, que constava de huma
simples esteira, neste instante estava aberta. So-
bre hum banco, algum tanto sabido para fóra,
huma garrafa e hum copinho indicavão que ali
se vendia cachaça.... Julio bateo as mãos, e huma
cafuça já idosa, algum tauto nutrida, de cara
risonha appareceo. – “Faça-me favor de hum
bocadinho d’agoardente.” – disse Julio, atiran-
do com hum patacão encima do banco. A mu-
lher apresentou-lhe o copinho – “não tenho tro-
co para tão grosso dinheiro, observou ella. –
Que importa! guardai todo.
A mulher admirada encarou a pessoa que
pagava com tanta grandeza hum caliz de ca-
chaça; mas vendo-o tão exhausto, e com a
pallidez da morte no rosto: – “Maria! Jesus!
exclamou ella, meu bom senhor está
incommodado! sirva-se descançar hum boca-
do nesta pobre chopana. – “Elle entrou com
as pernas tremulas, e se deixou cahir encima
de huma cadeira de páo, única que havia. A
casa era de páo a pique com reboque de barro,
mas varrida e aceiada. Não se vião outros
moveis senão a tal cadeira, dois bancos, huma
banquinha com hum pequeno oratorio, e no
fundo da salinha huma giraol de varas, á moda
de marqueza, sobre a qual huma mulher bran-
ca de mediana idade, já entrevada, estava dei-
tada encima de huma esteira. No chão ao pé
do girol, e sobre outra esteira, jazia huma me-
nina de 10 ou 12 annos, envolta n’hum
cobertôr, e que parecia moribunda. no centro
da casa havia uma almofada de fazer renda. A
mulher do girol, cuja phisionomia estava alte-
rada pelo soffrimento, e o cuidado, dava de
quando em quando alguns ais, e gemidos, e
dirigindo-se a cafuza disse em tom d’agonia.
Tão tarde, e ainda não voltou! – ..... Já vem....
– Já, “respondeo a boa da cafuza, que ficára na
porta á vigiar; com effeito huma moça branca,
com hum pote d’agoa á cabeça, e hum embru-
lho de roupa molhada debaixo do braço,
appareceo no solar da porta. Julio em hum
indicivel estado d’ansia, fitou os olhos nella, e
a pezar da mudança que os annos, a infelicida-
de, e a doença tinhão feito, reconheceo Olaya...
Erão ainda os mesmos olhos azues, com so-
brancelhas, e cabellos pretos; embora a fome,
e as sezões tinhão á porfia apagado as rosas da
boca, e das faces, e emmagrecido as feições!
talvez a expressão da phisionomia se tivesse
tornado ainda mais tocante. Ella era esbelta
de mais, mas tão direita, e engraçada como a
cana do brejo, e seu andar, e movimentos erão
suaves como os balanços da Angelica, ao
assopro das viraçôes. Huma simples camisa de
algodão, e huma saia de chita côr de rosa,
compunhão todo o traje, mas a maior limpeza,
e aceio o realçavão. O cordelzinho de cabellos,
e o coraçãozinho de corallina era o seu único
enfeite. Ella entrou na cosinha para depositar
o pote que certamente fazia hum peso grande
para as diminutas forças, e voltou á tomar
benção á mai, que com tom assaz aspero lhe
disse – Quanto tardastes!... ah! mai, respondeo
ella, a fonte está tão longe, e tão escassa? E
appresentando-lhe huma cuiazinha com ciris,
e camarões; – Eu procurei isto para fazer hum
quitutezinho, a vêr se tira o fastio de minha
mai – Esta não respondeo, mas demorou so-
bre a filha piedosa hum olhar no qual a ternu-
ra, a anxiedade maternal, a antiga severidade,
e o remorso se podião divisar á hum tempo.
Olaya dirigio-se logo á criança doente –
Chiquinha, minha vida, como te sentes. Toma
este cajúzinho para refrescar a boca – e sem
mais demora, ella, saudando o estrangeiro sem
levantar os olhos, pegou da Almofada, e as-
sentou á fazer renda. – “Olaya, meu bem , dis-
se a boa Cafazuça, tu te queres matar. Chegas
tão cançada; não comestes nada hoje, e pegas
na renda. Vá tomar hum caldinho da minha
pobre panella: – Jesus! respondeu Olaya, he
bem preciso trabalhar: já lhe devo mais de
quatro mezes da casa, e a renda vende-se tão
mal e tão barata! alas! ha por aqui tanta
pobresa a viver disto!.. Nunca fallas no que
deves, criança, respondeo a mulher, estamos
nesta vida para nos soccorrer huns aos ou-
tros; em quanto eu tiver hum bocado have-
mos de parti-lo. Vá tomar hum caldo, e dar
outro á tua mai. Julio immovel, e silencioso
olhava, e escutava qual o réo que escruta as
disposições dos Juizes; cada prova da miseria
em que huma familia, outrora tão opulenta,
estava abysmada, traspassava-lhe a alma. Mas
de cada prova destas, surgia hum testemunho
da bondade, da piedade filial, da resignação
d’Olaya. Aliás huma duvida, e a mais terrivel,
ficava a resolver, e o Jovem fez-se violencia
para esperar alguns instantes mais.
Olaya tinha por fim cedido ás instancias
da boa mulher, e esta, virando-se para Julio –
meu bom Senhor, isto he hum ango! Coitadi-
nha! Ella nasceo para grandezas, e hoje não tem
huma escrava para a servir, e de mais a mais tem
a seu cargo a mai, e a mana doentes! Ella faz
todo o serviço de casa, e de dia, e de noute tra-
balha na almofada; e assim mesmo está achacada
87
de sezões! entretanto jamais se lhe ouve huma
queixa! he docil como hum cordeirinho; até acha
meio de fazer beneficios ás nossas vezinhas ain-
da mais pobres do que nós! e tão galente que
he: ah se ella quizesse, não estaria nesta pobresa;
ella teria chado hum bom arranjo; mas he
donzella; e tão esquiva, e honradinha!
Cada expressão da boa mulher ia retum-
bar no coração de Julio; parecia-lhe que huma
mão de ferro lhe apertava a garganta; elle já
queria fallar e não podia; por fim ao ouvir a
ultima revelação, o choque de satisfação que
findava tautas emoções, e ansias foi acima das
suas forças; elle perdeo a vista dos olhos, em
hum vago, e a não ser o costado da cadeira
cahiria no chão “ – Maria! Jesus! que tendes,
meu rico senhor da minha alma! Santo nome
de Jesus!.... as mãos estão frias! quer alguma
cousa? Julio voltado em sim, com voz
esmorecida, respondeo, “ – hum copo daquella
agoa que aquella moça trouxe” – Olaya que
chegava ás exclamações da velha, ouvio a res-
posta de Julio. Ella trouxe hum côco cheio
dessa agoa; e offerecendo-a com pressa, mas
não sem pejo, disse “ – O senhor deve perdo-
ar, não temos copo – Julio bebeo algumas
bochechas d’agoa, e fitando os olhos sobre a
linda cara toda animada por hum sentimento
de compaixão, e da sympathia que qualque
ente que soffria excitava nella, já se não pode
conter. A paixão trasbordou “ – Olaya! gritou
elle, minha Olaya!.... sou eu.... sou teu Julio.....
teu esposo... não me conheces.... e puxando
do seio a Periquita.... eis a nossa Periquita....
Olaya.... A pobre donzella, fóra de sim com o
assombro, não se pôde ter em pé, e toda tre-
mula, e convulsa foi cahir encima da cama da
mai.... mas quem poderia expressar os senti-
mentos de semelhante situação. O coração
humano não tem forças para os aturar, e ha-
veria de quebrar se a suspensão momentanea
das faculdades, o não subtrahisse aos seus
mais agudos golpes.
Fica quasi excusado dizer que a melhor
casa da Cidade recebeo a Familia já ditosa, e
que os quatro mezes do aluguel da pobre sen-
zala forão pagos a maior preço do que aquelle
que dez annos da dita casa emportarião.
Entretanto Julio tinha ainda que passar
por hum terrivel lance, antes de se achar ao
auge da felicidade, casando com sua Olaya. A
antiga scena do sertão tinha feito sobre Olaya
huma impressão inexplicavel; certamente, ella
tinha menos razões para criar amor ao meni-
no de aspecto hediondo que socorréra, do que
este tivéra de se lembrar della com apaixona-
da gratidão, e entretanto a entre-vista tinha
decidido da sorte de ambos elles; hum cho-
que de sympathia os tinha ferido á hum tem-
po, e neste instante incommensuravel, suas
almas se tinhão consagrado huma á outra,
para a eternidade. Olaya, como bemfeitora,
conservava lembranças menos vivas, e de cer-
to não dava fé do fermento depositado no
escondrijo de sua alma; assim mesmo o ape-
go que tinha á prenda que a pobre criança lhe
deixára, e que ella jámais largou, mostrava o
quanto aquella scena influira nella, e quando
a idade do himyneo chegou, seu coração fi-
cou mudo; os jovens que lhe rendião home-
nagens tormavão-se-lhe odiosos, e ella
engeitou quantos partidos se offerecerão. Aliás
áquela epoca a desventura principiou á casti-
gar sua família: o pai, e os irmãos mais moços
morrerão. O mais velho, com paixões
indomaveis, e sem o freio da educação, e do
respeito tyrannisou a mai, e irmãos, e
dilapidou os bens; a fazenda foi penhorada;
os escravos forão vendidos: a secca deo o ul-
timo golpe. Os gados morrerão: os habitan-
tes do sertão forão obrigados á fugir para a
Cidade. A venda das joias e trastes, susteve
alguns mezes a mai e ambas as filhas, até que
tendo apurado todo o recurso, ellas terião
morrido á fome, e ao desamparo, se a boa
dona da senzala, que os recolheo, não as ti-
vesse ajudado: os soffrimentos, phisicos e
moraes tinhão debilitado a compleixão deli-
cada d’Olaya, e a explosão da faisca escondi-
da no seu peito, á vista do seu Julio que seme-
lhante na figura, e nos beneficios a hum men-
sageiro celeste, lhe trazia todas as bençãos do
amor, da honra, e da salvação da família, não
achou o corpo com forças para resistir á hum
tal abalo: huma febre ardente a assaltou; ella
esteve muitos dias entre a vida, e a morte.
Em fim hum milagre da arte, da nature-
za, ou do amor a salvou, e o consorcio dos
dois amantes do sertão foi celebrado com toda
a pompa e satisfação que a triste situação do
paiz admittia. Ambos os esposos comboyando
huma immensa colleição de toda bixaria, forão
pagar huma visita ao bom Doutor que os re-
gou com as suas lagrimas e os abençoou. Mas
o clima não convinha a nenhum delles. De
volta á sua Patria Julio realisou seus fundos, e
se dedicou a Agricultura.
Antes de deixar Ceará, elle segurára a
sorte da sogra, e da cunhada que sarou, de-
terminando-lhes huma pensão annual muito
sufficiente.
José Frederico de..... tendo melhorado à es-
cola dos revezes, e animado com os conselhos,
e socorros do cunhado que lhe avançou trinta
mil crusados, applicou á restauração da sua for-
tuna a energia do seu caracter, e viveza do seu
espirito. Elle hoje he hum dos homens mais
abastados, e mais estimados da sua comarca.
Capítulo 2
1812-1830
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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Notas do Capítulo 2
1 Alusão à conhecida conferência ministrada por Renan na
Sorbonne em 11 de março de 1882, “O que é uma nação”,
que se tornou um texto clássico (cf. RENAN, 1990).
2 Essa divisão de campo deu estabilidade aos meios de comu-
nicação ao longo de quase todo o século XX. O papel do
jornal de relatar os fatos deu origem, nos anos 30 e 40 do
século passado, às edições matutinas, vespertinas e até no-
turnas dos jornais (os “Diários da Noite”). Na segunda meta-
de do século, os jornais noturnos desapareceram, substituí-
dos pelos telejornais das emissoras de TV, e os vespertinos
se transformaram em matutinos (como foi o caso de O Glo-
bo, do Rio de Janeiro, para ficar num exemplo). Mas a partir
dos anos 1990, com a consolidação da internet e dos meios
eletrônicos, esse panorama mudou ainda mais rapidamente,
provocando a crise dos meios: o jornal perdeu sua vocação
de relatar os fatos da véspera, que o leitor já conhece pelo
noticiário online da internet. Aos poucos o jornal vai ocupan-
do o lugar das revistas semanais de interpretação, sem saber
ao certo se deve continuar dando manchetes sobre a morte
de um papa ou a ocorrência de um tufão, para se tornar ape-
nas um registro histórico e não mais informativo.
3 No entanto, cabe o registro: há um anacronismo na posição
ufanista de acadêmicos e jornalistas como José Marques de
Mello ou Alberto Dines, que apresentam Hipólito da Costa
como o primeiro jornalista brasileiro, e que acabaram por
influenciar (em 1999, no governo de Fernando Henrique, e
sob iniciativa do deputado gaúcho Nelson Marchesan) a tro-
ca do dia da imprensa, de 10 de setembro (data de apareci-
mento do jornal Gazeta do Rio de Janeiro, em 1808) para 1º
junho (lançamento do Correio Braziliense, no mesmo ano).
Como já se disse no capítulo anterior, nem Hipólito da Costa
era “brasileiro” nem o Correio era jornal, e nem editado no
Brasil para brasileiros. Era uma revista editada em Londres
por um funcionário português de carreira sob patrocínio da
maçonaria para doutrinar as elites do império português.
4 Marcos de Noronha e Brito, nobre com longa carreira admi-
nistrativa no governo português, foi um empreendedor. Veio ao
Brasil como governador do Grão Pará, sendo promovido em
1806 para o cargo de vice-rei, no Rio de Janeiro. Com a che-
gada da família real, dois anos depois, é transferido para a
Bahia, como governador. Ali, além de abrir a primeira tipografia
fora da Corte, com os serviços do tipógrafo português Silva
Serva, cria uma biblioteca pública, urbaniza a cidade, constrói
o teatro São João, conclui as obras do cais do porto. Volta
anos depois ao Rio, como ministro da Marinha e Ultramar.
5 Até 1810 Salvador foi a maior cidade brasileira, com quase
100.000 habitantes. Em 1819 o Rio de Janeiro contabilizava
113.000 habitantes (cf. CARDOSO, 2000: 125).
6 Além de suas atividades ligadas à imprensa, Diogo exerceu
advocacia na capital baiana. Casou-se com D. Violante de
Lima, moça de uma família tradicional de Salvador, com a
qual teve filhos. Alguns deles, de certa forma, herdaram o
dom que o pai tinha com a escrita. O mais velho, Rodrigo
Soares Cid de Bivar, era médico e escreveu tratados sobre
medicina. O segundo, Luiz Garcia Soares de Bivar, tornou-se
jornalista e escreveu para vários jornais do Rio de Janeiro. Já
sua filha Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco é con-
siderada a primeira mulher a exercer funções de direção na
imprensa brasileira. Na Bahia ainda, ao ser imposta a censura
à imprensa, Diogo foi nomeado censor. Em 1821 muda-se para
o Rio de Janeiro, aderindo à campanha pela independência. A
partir de 1828 exerceu funções em diversas comissões e ins-
tituições, como o Conservatório Dramático Brasileiro, de que
foi um dos criadores em 1843. Cabia a esse órgão a aprova-
ção de composições dramáticas destinadas à representação
em teatros do Rio – ficou famosa a polêmica criada por ele ao
censurar uma peça de Gonçalves Dias, que foi classificada
como “imoral”. Condecorado com as Ordens de Cristo e da
Rosa, recebeu ainda o título de Conselheiro do Império. Diogo
Soares da Silva de Bivar morreu no dia 10 de outubro de 1865,
aos 80 anos de idade, deixando um importante legado para a
imprensa brasileira, de que foi um dos precursores.
7 O uso desse termo “áulico” é recorrente no texto engajado de
Werneck Sodré e faz parte das teses que ele pretende de-
monstrar, como historiador marxista. Como diz Carlos Gui-
lherme Mota, as “analises de Sodré respondem sempre a um
a priori ideológico que as contamina”. Quanto à confusão
entre jornal e revista, de algum modo é um anacronismo que-
rer que as coisas fossem diferentes na época, pois, como já
se disse acima, a estrita delimitação entre o que é uma revis-
ta e um jornal só ficará suficientemente clara apenas após a
introdução do telégrafo e do telefone na prática jornalística, o
que ocorrerá na segunda metade do século XIX. Será apenas
a partir de 1870 ou 1880 que o “jornal” passará a dar conta
das notícias, e as “revistas” ficarão com as informações ilus-
tradas, sem o compromisso com o fato “de ontem”.
8 S.A.R. é a sigla, de uso corrente então, para Sua Alteza Real.
9 O Decreto estabelecendo a liberdade de imprensa é datado
de 21 de setembro de 1820 (MOREL& BARROS, 2003: 23).
10 Como ensina o historiador mineiro José Murilo de Carvalho,
convém ter uma visão crítica do que dizem os manuais es-
colares sobre o ideário da Inconfidência Mineira, na medida
em que esse movimento passou por um processo de relei-
tura “republicana” pelos pais do movimento de 1889, na
busca da criação de um acervo de “bens simbólicos” e an-
tecedentes para a República.
11 Apontado por Nelson Werneck Sodré como um paladino da
O pai Domingos, esse bom preto que déra
a mão de milho a Julio, tinha sido vendido com
os mais escravos, e soffria hum duro cativeiro
longe da sua parceira. Ambos forão compra-
dos, e premiados com a liberdade, sem por isso
depois de casados, largar o serviço dos dois
esposos: foi Domingos que me recebeo na va-
randa quando o accaso me trouxe ao Engenho
de Julio como o contei no prologo.
A cara Periquita não ficou esquecida. Os
dois consortes lhe pagavão huma especie de
culto. Eu os vi com intimidade, e sua ventura
pareceo-me ter subido áquelle cume que não
he dado á fraca humanidade ultrapassar.
Teria-me sido demasiadamente sensível
que a amizade de hum par tão perfeito, não
continuasse além do tempo da visita, que en-
tendi ser de algumas horas, e durou oito dias.
Eu escrevi a Julio; e ligamos huma corres-
pondencia assaz activa: se o publico acolher
benignamente o Beija Flor eu tenciono inserir
algumas suas cartas, que julgou merecedoras
desta publicidade.
Fim.
TYPOG. DE GUEFFIER E C.,
RUA DA QUITANDA, 79
89
Capítulo 2
1812-1830
imprensa, primeiro jornalista a sofrer “na carne” a repres-
são, o português Luís Augusto May teria sido, segundo a
historiadora Isabel Lustosa, um jornalista menos compro-
metido com a boa causa e mais interessado em promoções
e sinecuras. E suas “Malaguetas” tiveram muitas edições
extraordinárias, dependendo das disputas e dos pleitos desse
controvertido editor.
12 Dados compilados de LUSTOSA, Isabel. Insultos impres-
sos. São Paulo, Cia. das Letras, 2000, págs. 483-485. Há
também elementos retirados da pesquisa História da revista
no Brasil (1812-1999), da Emporium Brasilis, 1999: 1-14.
13 Personagem fascinante, Pedro I do Brasil e IV de Portugal
consegue a proeza de, em menos de uma década, passar
de herói e defensor perpétuo do Brasil a figura abominada.
Sobre isso é interessante ler a citação que faremos a seguir
(2.5.), do que publica sobre ele o Espelho das Brasileiras,
revista pernambucana, em sua edição 28, de 6 de maio de
1831. Mas sobretudo é de leitura altamente recomendável o
livro de Isabel Lustosa D. Pedro I, um herói sem nenhum
caráter.
14 Chama atenção a grafia de algumas palavras, nesses anos
inicais da imprensa brasileira. É o caso, visto no item ante-
rior, de Typografia e não Typographia. É o caso também de
Brasileiras, e não Brazileiras, como seria de se esperar.
15 Nascida em 12 de outubro de 1810, em Papari, Rio Gran-
de do Norte, filha do português Dionísio Gonçalves Pinto
com a brasileira Antônia Clara Freire, Dionísia Gonçalves
Pinto ficou conhecida pelo pseudônimo de Nísia Floresta
Brasileira Augusta – com que rendia homenagens: Flores-
ta, o nome do sítio onde nasceu; Brasileira, por seu ufa-
nismo, típico de quem viveu quase três décadas na Euro-
pa; Augusta, recordação do segundo marido, Manuel Au-
gusto de Faria Rocha, com quem se casou em 1828. Nísia
teve dois filhos, Lívia Augusta, nascida em 1830, e Au-
gusto Américo, nascido em 1833, mesmo ano em que
Nísia fica viúva. Sua atuação foi pioneira: a primeira jorna-
lista e militante feminista, não só por seus livros, que re-
tratavam de maneira corajosa e precisa a situação da
mulher na sociedade, mas também por sua vida e suas
idéias. Seu primeiro livro, lançado em 1832, Direitos das
Mulheres e Injustiça dos Homens, era uma livre tradução
de Vindications of the Rights of Woman, obra de Mary
Wollstonecraft, feminista inglesa, em que Nísia contextuali-
zou as teses da autora com os problemas brasileiros, prin-
cipalmente as posturas contra seu sexo. Com um texto
fluido, ela identifica as causas desse preconceito, ao mes-
mo tempo que desmistifica a idéia dominante da superio-
ridade masculina. Com o livro Nísia torna-se precursora,
porém não chegou a colher resultados. A consciência fe-
minina, ainda tão submissa, não assimilou suas teses –
sem esquecer que a mulher de seu tempo era ainda majo-
ritariamente analfabeta. Educadora, Nísia fundou no Rio
de Janeiro o Colégio Augusto, nome que homenageia seu
falecido companheiro. Também essa empreitada não ob-
teve sucesso: o viés progressista e revolucionário do co-
légio, inaugurado em 1838, não atraiu clientela e fechou
as portas em 1847. Nísia viveu em diversos estados bra-
sileiros, como Pernambuco (onde colaborou com O Espe-
lho das Brazileiras), Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul
(mudando-se devido ao clima tenso que a da Revolução
Farroupilha causou na capital gaúcha). Jornalista atuante,
colaborou com O Liberal, O Brasil Illustrado, e se desta-
cou na imprensa do Rio, escrevendo para o Correio Mer-
cantil, Jornal do Commercio e Diário do Rio de Janeiro.
Em 1849, após um acidente de cavalo ocorrido com sua
filha, resolve ir para a Europa com os dois filhos. Para
muitos o acidente fora apenas um pretexto para sua mu-
dança, uma vez que os jornais nacionais apenas difama-
vam suas obras. Outros livros de Nísia, defendendo o
mesmo ideário, questionando a situação social, econômi-
ca e política das mulheres, foram Conselhos à minha filha
(1842); Opúsculo Humanitário (1853); A Mulher (1859).
Na França, participou do círculo de Augusto Comte, o filó-
sofo criador do positivismo, que admirou suas idéias e
com quem teve curta amizade. Nísia faleceu, em conse-
qüência de pneumonia, em Rouen, na França, aos 75 anos,
no dia 24 de abril de 1885. Em agosto de 1954, quase 70
anos depois, seus despojos foram transladados para o
Rio Grande do Norte e levados para sua cidade natal,
Papari, que em sua homenagem hoje se chama Nísia Flo-
resta.
16 Como já se falou anteriormente, é um tanto movediça a no-
menclatura entre revista e jornal antes de 1870 e da disse-
minação do uso do telégrafo. O autor prefere o designativo
periódico para as publicações desse período anterior ao te-
légrafo. Nessa primeira parte do século XIX, no entanto, vão
se criando alguns padrões: a) o pasquim ou o panfleto se
publica em 2 páginas (frente e verso); o jornal em 4 páginas
(uma lâmina frente e verso, dobrada); a revista semanal,
sobretudo a ilustrada, em 8 páginas, uma lâmina impressa
em tipografia de um lado e em litografia no outro, e dupla-
mente dobrada, formando a seqüência de página 1 ilustra-
da, páginas 2/3 com texto; páginas 4/5, centrais, ilustra-
das, páginas 6/7 com texto e finalmente a 8ª página com
ilustração. Será assim com os grandes clássicos, como A
Semana Illustrada, de Fleiuss, ou a Revista Illustrada, de
Angelo Agostini. As revistas doutrinárias, não ilustradas, em
formato brochura, chegarão a 80 ou 100 páginas, como foi
o caso de O Patriota.
17 Isabel Lustosa reproduz e deixa em aberto o tema de que
Leopoldina morreu como conseqüência do espancamento
de que foi vítima, por haver se recusado a entrar numa re-
cepção acompanhada da dama de honra, Domitila de Cas-
tro, a marquesa de Santos (LUSTOSA, 2006: 237-243).
18 É curioso notar que uma professora falasse do próprio
sexo como “vosso”, poder-se-ia suspeitar que as
quadrinhas fossem de autoria do próprio redator, que a
atribui a uma professora.
19 Escrito em 1853 pelo português Alfredo Hogan, a pedido
do editor Luiz Correia da Cunha, que queria explorar o su-
cesso da obra de Dumas, o folhetim A mão do finado se
revelou outro sucesso, aumentando as vendas do jornal.
Para estabelecer deliberadamente a ambigüidade, publicou-
se o folhetim sem nome do autor – o leitor deduziria que,
sendo o personagem o mesmo Edmond Dantes, o conde
de Monte Cristo, seria obra do mesmo autor. Rapidamente a
obra foi traduzida para o francês e publicada em 1854 sob o
título de La main du défunt, atribuída a um tal F. Leprince, e
muitos acreditaram que esse seria o pseudônimo de um
escritor francês. Na realidade, Leprince nunca existiu – o
autor da obra é mesmo Alfredo Hogan. O livro conheceu
numerosas traduções: a italiana La mano del defunto,
atribuída a A. Le Prince; a espanhola La mano del muerto.
A edição argentina em livro traz na capa o nome de
Alejandro Dumas”. Houve ainda uma versão teatral, a
alemã Die totenhand. Dumas conheceu o livro e fez o
possível para refutar a idéia de que fosse ele o autor.
Desde finais de 1853 escreveu ao Jornal do Commercio
para explicar que “Je n’ai jamais fait et, bien qu’on me le
demande souvent, je ne ferai probablement jamais de suite
du Comte de Monte-Cristo”. Dumas exigia a retratação
por parte do jornal, desmentindo sua autoria do texto. Mas
seus apelos foram em vão. Sobre essa história há um rico
material no site
http://www.pastichesdumas.com/pages/
FichesMC/MaoFinado.html
20 Bas-bleus, segundo o Petit Larousse, é uma mulher pedan-
te, com pretensões literárias.
21 Segundo a professora Sandra Guardini, “Marlyse Meyer de-
nomina essa novela de ‘franco-brasileira’ e atribui a autoria
de Charles Auguste Taunay”. Ver “Uma Novela Franco-bra-
sileira de 1830” in As mil faces de um herói canalha e ou-
tros ensaios. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998, págs.
333-347. Conferir Guardini T. Vasconcelos Sandra. Forma-
ção do Romance Brasileiro: 1808-1860 (Vertentes Ingle-
sas).
http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/
Capítulo 3
A vitalidade de novos
rebentos: 1831-1850
Entretanto, cada sujeito falante é, ao mesmo tempo, o destinador e o
destinatário dessa mensagem, uma vez que ele é capaz de emitir a
mensagem e decifrá-la concomitantemente, e em princípio
ele não emite nada que não possa decifrar.
Nesse sentido, a mensagem endereçada a outro é, de certo modo, endereçada ao
que está falando: donde se segue que falar é falar para si mesmo.
Julia Kristeva, Language, the unknow. An initiation into linguistics.
New York, Columbia University Press, 1989, pág. 8.
Todo discurso político supõe ao menos dois destinatários:
o pró-destinatário, com quem o enunciador comparte um mesmo
coletivo de identificação, e o contra-destinatário,
a quem se dirige na ordem da polêmica.
Eliseo Veron, “La palabra adversativa: observaciones sobre la
enunciación política”, in El discurso político. Lenguajes y acontecimientos.
Buenos Aires: Hachette, 1987, pág. 68.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
92
1831 Espelho das Brasileiras
Recife, PE: Typ. Fidedigna, 1831
(30 números)
Semanário de Saúde Pública: pela
sociedade de medicina do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imperial,
de E. Seignot-Plancher, 1831-1833
(125 números)
1832 O Carapuceiro: periodico sempre moral,
e so por accidens político
Recife, PE. Sua publicação teve
início em 7 abril de 1832 e circulou
até 1842, somando 329 números.
Redator: Padre Miguel Sacramento
Lopes Gama, conhecido como
“Padre Carapuceiro”.
Segundo o próprio Lopes Gama,
que era seu único redator,
o periódico criticava com humor os
costumes brasileiros e tinha um
cunho moral. Era, como estava
escrito em seu frontispício, um
“periódico sempre moral, e
só per accidens político”
A Mulher do Simplício
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Thomaz B.
Hunt, 1832-1846 (83 números)
Jornal da Sociedade de Agricultura,
Commercio e Indústria da
Província da Bahia
Bahia, BA: Typ. de Moreira,
1832-1836 (38 números)
1833 A Marmota
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do Diario,
1833 (7 números)
Redator: Pascoal Bailão
O Auxiliador da Indústria Nacional
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de I.F.
Torres, 1833-1892 (696 números)
Redatores: Januário da Cunha
Barbosa, Pedro de Alcantara Lisboa,
Miguel Joaquim Pereira de Sa, M.
de Oliveira Fausto
O Burro Magro
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Lessa
e Pereira, 1833-1834 (3 números)
O Cabrito
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Miranda
e Carneiro, 1833 (2 números)
O Esbarra
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Paraguassu
(6 números)
Revista da Sociedade Philomathica
São Paulo, SP: Typ. do Novo Farol
Paulistano, 1833 (6 números)
Redatores: C. Carneiro de Campos;
F. Bernardino Ribeiro; J.I. Silveira
da Mota
1834 A Mutuca Picante
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Thomaz B.
Hunt, 1834-1835 (37 números)
Redator: Januário da Cunha
Barbosa
1836 Nitheroy: revista brasiliense, sciencias,
lettras e artes
Paris, França: Imprimerie de Beaule
et Jubin, 1836 (2 números)
Editor: Dauvin et Fontaine, Libraires
Redatores: Gonçalves de Magalhães,
Torres Homem, Manuel de Araújo
Porto Alegre (Barão de Santo
Ângelo), Eugenio de Monglave
O Diabo Coxo: jornal miscelânico
para os domingos
Niterói, RJ: Nictheroy de Rego e C.,
1836 (3 números)
1837 Gabinete de Leitura, Serões das Famílias
Brasileiras: jornal para todas as classes,
sexos e idades
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Commercial de J. de N. Silva, 1837-
38 (35 números)
Museo Universal: jornal das
famílias brazileiras
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imperial e
Constitucional de J. Villeneuve e C.,
1837-1840 (282 números)
1839 Correio das Modas: jornal crítico e
litterario das modas, bailes, theatros...
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de
Laemmert, 1839-1840
(131 números)
Revista Nacional e Estrangeira
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de J.E.S.
Cabral, 1839-1840 (20 números)
Revista Trimensal de História e Geografia
Rio de Janeiro, RJ: Typographia da
Ass. do Despertador, 1839
(400 números)
93
1841 Revista Médica Brasileira
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imparcial,
de Francisco de Paula Brito,
1841-1845 (24 números)
Redatores: Emilio Joaquim da Silva
Maia, Francisco de Paula Menezes e
outros
1842 O Ramalhete de Damas
Rio de Janeiro, Litographia de
Heaton & Rensburg (revista de
música que circulará até 1850)
1843 Minerva Brasiliense: jornal de sciencias,
lettras e artes
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de J.E.S.
Cabral, 1843-1845 (32 números)
1844 A Lanterna Mágica: periodico
plastico-philosophico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Franceza,
1844-45 (23 números)
Diretor: Manoel de Araujo Porto
Alegre
Ilustradores: Lopes Cabral e Rafael
Mendes de Carvalho
1845 Annaes de Medicina Brasiliense:
jornal da Academia Imperial de
Medicina do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imparcial,
de Francisco de Paula Brito,
1845-1849 (48 números)
Redator: Francisco de Paula
Candido
Ostensor Brasileiro:
jornal litterario pictorial
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do
Ostensor Brasileiro, 1845
(52 números)
Publicado por: Vicente Pereira de
Carvalho Guimarães e
João José Moreira
O Recreador Mineiro: periódico litterario
Ouro Preto, MG: Typ. Imparcial,
de Bernardo Xavier Pinto de Souza,
1845-1848 (84 fascículos)
Fundador-redator: Bernardo Xavier
Pinto de Souza
1848 Museo Pittoresco Historico e Litterario
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Universal
de Laemmert, 1848 (53 números)
Iris: periódico de religião, bellas-artes,
sciencias, letras, historia, poesia...
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do Iris,
1848-1849 (27 números)
Diretor: Ricardo Augusto
da Costa Leiro
Redator: Jose Feliciano de Castilho
Barreto e Noronha.
Colaboradores: Manoel de Araújo
Porto-Alegre, Gonçalves Dias,
Macedo Joaquim Noberto e outros
1849 A Marmota na Corte
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Paula
Brito, 1849-1852 (257 números)
Redatores: Prospero Ribeiro Diniz e
Francisco de Paula Brito
1850 Guanabara: revista mensal artística,
scientifica e litteraria
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Guanabarense, de L.A.F. de
Menezes, 1850-1855 (5 números)
Fundadores-diretores: Manoel de
Araújo Porto-Alegre, Antonio
Gonçalves Dias, Joaquim Manoel de
Macedo, até 1852
O Bello Sexo: periodico
litterario e recreativo
PE: Typ. de M.F. de Faria, 1850-
1851 (8 números)
Redatores: Antonio Witruvio Pinto
Bandeira e Accioly Vasconcellos.
Redator-chefe: João Climaco Lobato
O Médico do Povo em Pernambuco: jornal
de propaganda homeopathica
Recife, PE: Typ. da Viúva Roma &
Filhos, 1850 (21 números)
Redator-proprietário: Sabino
Olegário Ludgero Pinho, Alexandre
Jose de Mello Moraes e João Vicente
Martins
Periódico dos Pobres
Rio de Janeiro, RJ: 1850-1857
(747 números)
Proprietário: Antonio Maximiniano
Morando
Revista Commercial: monitor dos
negociantes santistas
Santos, SP: Typographia
Commercial, 1850-1852
(98 números)
Redator-proprietário: Guilherme
Delius
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
94
A
S
A
SSOCIAÇÕES
DE
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UXILIADOR
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LIVREIROS
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ORREIO
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S
I
MAGENS
: L
ANTERNA
M
ÁGICA
. A
S
M
ARMOTAS
.
Com a renúncia de Pedro I em favor de seu filho menino e sua ida para Portugal,
em 1831, a situação por que passa a jovem nação é confusa e caótica, com lutas entre
facções – de um lado a elite mais conversadora, de outro a ala mais liberal, com algum ou
outro espírito mais esclarecido (e finalmente vencido). Assim, após as marchas e
contramarchas das regências trinas, em 12 de outubro de 1835 o Padre Diogo Antonio
Feijó toma posse como regente único do Império. São tempos turbulentos para o país em
formação.
Entre 1835 e 1840 ocorreu no Pará a rebelião conhecida como Cabanagem, contra
o centralismo do Império. Em 10 de setembro de 1836, os farroupilhas proclamam a
República do Rio-Grande. Em novembro de 1836 o regente Feijó protagoniza um
incidente diplomático contra o papa, pela não aprovação do padre Antonio Maria de
Moura para o bispado do Rio de Janeiro. Em setembro de 1837 Feijó renuncia à regência,
assumida interinamente por Pedro de Araújo Lima. Dois meses depois começa na Bahia a
Sabinada. No ano seguinte o Maranhão é agitado pela Balaiada. Esse pipocar de revoltas e
o clima de agitação que toma conta do país têm como efeito o fortalecimento de uma visão
conservadora e centralista, uma das marcas da jovem nação a partir de 1837, a que se
chamou de “regresso conservador” (MOREL, 2003).
Em julho de 1840 se antecipa a maioridade de Pedro II e é encerrado o longo
processo de confrontos do período regencial. E temos nosso imperador de 14 anos, que
aos poucos, com sua imagem espalhada pelos quatro cantos da nação, será um fator de
aglutinação nacional (SCHWARCZ, 1998). A partir daí o governo, baseado na
aristocracia rural e escravocrata, dará impulso ao crescimento do país. A avaliação é do
historiador José Murilo de Carvalho:
D. Pedro II governou o Brasil de 23 de julho de 1840 a 15 de novembro de 1889. Foram 49
anos, três meses e 22 dias, quase meio século. Assumiu o poder com menos de quinze anos
em fase turbulenta da vida nacional, quando o Rio Grande do Sul era uma república
independente, o Maranhão enfrentava a revolta da Balaiada, mal terminara a sangrenta
guerra da Cabanagem no Paraná, e a Inglaterra ameaçava o país com represália por conta
do tráfigo de escravos. Foi deposto e exilado aos 65 anos, deixando consolidadada a unida-
de do país, abolidos o tráfico e a escravidão, e estabelecidas as bases do sistema represen-
tativo graças à ininterrupta realização de eleições e à grande liberdade de imprensa. Pela
longevidade do governo e pelas transformações efetuadas em seu percurso, nenhum outro
chfe de Estado marcou mais profundamente a história do país (CARVALHO, 2006: 9).
Essas duas décadas do século XIX (de 1830 a 1850) viram surgir em distintos
pontos do país publicações periódicas como o já comentado boletim recifense Espelho das
Brasileiras (1831), apresentado no capítulo anterior, ou o Jornal da Sociedade de Agricultura,
Comércio e Indústria da Província da Bahia (1832), editado em Salvador. Nesse período surgem
também algumas revistas de caráter mais técnico, como o Semanario de Saude Publica (1831),
lançado pela casa impressora mais famosa de então, a Typographia Imperial, de E.
95
Seignot-Plancher. Alguns desses periódicos desempenharam importante papel em nosso
nascente mercado editorial. Essas publicações foram, de algum modo, as “revistas
segmentadas” da época, que ocuparam seu espaço na criação e sedimentação de um
público leitor. E houve, ainda, as publicações ligadas a instituições oficiais, entidades
médicas e farmacêuticas e aos sindicatos de classe, como foi o caso da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional ou do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi responsável pela mais longeva das
publicações de nosso século XIX, O Auxiliador da Industria Nacional, lançado em 1833 e
que circulou até 1892. E o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi o criador da
Revista Trimensal do IHGB, que apareceu em 1839.
A necessidade de gestar um projeto de nação, a urgência de implementar uma
indústria no país nascente, são as palavras de ordem desse período e as publicações lhes
fazem eco. Se os protojornalistas do período anterior estiveram às voltas com a temática
do bem público, da felicidade geral do povo que aqui vivia, o que se trata de discutir
agora são os caminhos para chegar a isso: a premência de obras de infra-estrutura,
estradas, portos, escolas, indústria para produzir maquinário para a lavoura. E se, à
diferença do que acontecia na Europa e nos Estados Unidos, onde o escritor-jornalista
se tornava um profissional que vivia do resultado de seu trabalho, aqui o jornalista
ainda era o funcionário público, o advogado ou legislador que encontravam na
imprensa uma fruição intelectual. Mas esse processo caminha – e alguns redatores
pagam suas contas com o salário combinado com os editores das publicações.
Há nesse período o estabelecimento e a consolidação dos negócios de livreiros e
de suas casas impressoras, entre elas a já mencionada Typographia Imperial, do francês
Pierre René François Plancher de la Noé. Mas outros livreiros e editores se instalam,
importando livros e criando publicações, como foi o caso do estabelecimento dos irmãos
Laemmert. Anexos a essas livrarias foram se formando círculos de leitores e literatos, e
algumas organizavam tertúlias. Aos poucos e ao menos para alguns, o negócio da leitura
se mostrou razoavelmente rentável.
Outra vertente se forma com as publicações estudantis, que floresceram ao redor das
escolas de Direito. Criados a partir da lei de 11 de Agosto de 1827, assinada por D. Pedro I,
os cursos jurídicos de Olinda e de São Paulo concretizavam uma idéia surgida durante os
debates da Assembléia Constituinte de 1823, logo após a proclamação da Independência e
num momento de definição do Estado nacional. Era necessário preparar os quadros e
funcionários para a administração do país que começava a se formar. O curso de Olinda
iniciou suas atividades em 15 de maio de 1828, o de São Paulo abrira suas portas um pouco
antes, em 1º de março. Esses dois pólos acadêmicos, embriões do que viria a ser a
universidade brasileira, se tornaram ativos centros editores onde se gestaram diversos
periódicos, e forneceram a mão-de-obra que irá brilhar em nossa imprensa – os jornalistas da
segunda metade do século XIX serão, em sua maioria, bacharéis saídos dos bancos dessas
duas academias – como seus predecessores, os da chamada “geração de 1790”, haviam sido
preparados nos cursos da Universidade de Coimbra.
Finalmente, é nesse período que se consolida a formação de mão-de-obra técnica
para a impressão das gravuras, que serão a grande atração das publicações – sobretudo
no período seguinte a esse mapeamento histórico, o das “revistas illustradas”. Essa
vertente é reforçada com a chegada de Steinmann, jovem conhecedor da nova
tecnologia da litografia.
A história da vinda do suíço Johann Jacob Steinmann é desses capítulos deliciosos
que uma pesquisa histórica proporciona. Segundo conta Orlando da Costa Ferreira, o
brigadeiro Joaquim Norberto Xavier de Brito, diretor do Arquivo Militar, querendo
contratar um novo “abridor geográfico” (um técnico em impressão de gravuras, em
outras palavras), para dar continuidade aos trabalhos cartográficos de sua repartição,
apelou para a ajuda do encarregado do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
Domingos Borges de Barros, o visconde de Pedra Branca
1
, que se encontrava em missão
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
96
oficial de reconhecimento da independência do Brasil junto ao governo francês.
Após os trâmites burocráticos, o visconde contratou Johann Jacob Steinmann, que
terminava seu aprendizado na França. O orçamento previa a vinda, “por preço
razoável”, de um mestre. Steinmann foi escolhido por ser o único entrevistado a
conhecer todas as etapas do processo litográfico. Não foi uma contratação fácil: na altura
de 1820, as técnicas de impressão deixavam a fase artesanal para passar ao estágio da
máquina a vapor, inaugurado pelo The Times em 1814 – e a litografia
2
, inventada pelo
tcheco-bávaro Aloys Senefelder em 1796, era ponta-de-lança nesse avanço tecnológico
(BRIGGS&BURKE, 2004: 47, 117-119).
Steinmann trazia para o Brasil o expertise que acumulara como aluno no ateliê
alsaciano de Godefroy Engelmann e completado na oficina de Senefelder (MEGGS,
1998: 146-147). Quando chegou ao Rio, em 1825, tinha na bagagem instrumentos de
trabalho que seriam novidade aqui: uma prensa de proporções médias, outra portátil,
uma caixa com 76 folhas de zinco, dois caixilhos de ferro, quatro rolos, três peneiras,
duas pedras-mármore, papel, tinta, água-forte (FERREIRA, 1994: 333)
3
.
No Arquivo eram impressos os trabalhos de cartografia que acompanhavam o
projeto de mapeamento do país, um projeto em execução. Também se produziam ali
gravuras e desenhos que ilustravam os tratados e as apostilas em uso na Academia
Militar (que formava os engenheiros que iriam tocar as construções de pontes, portos e
estradas do país em construção). Um exemplo desses trabalhos com destino escolar são
as gravuras para o Tratado elementar da arte militar e da fortificação, e gravuras para obras de
popularização científica, como o Compêndio científico para a mocidade brasileira, publicação de
Plancher, o conhecido editor do Jornal do Commercio (FERREIRA, 1994: 337).
Com seu estilo minucioso, Orlando Costa Ferreira conta as peripécias de
Steinmann num estilo quase novelesco: apesar de contratado como funcionário do
Arquivo Militar, instalou a oficina em sua própria casa, alegando falta de espaço
apropriado na Academia Militar. Em sua residência, acabou se dedicando mais à
prestação de serviços a terceiros do que ao trabalho cartográfico para que fora
contratado. Atrevido, o suíço solicitou ainda a contratação de três soldados da Academia
para operar como auxiliares de impressão, num abusado uso da coisa pública para
interesses particulares. Isso seria motivo de intrigas e relatórios por parte de seu superior
imediato, Xavier de Brito – e de certo desconforto do historiador da tipografia no Brasil,
Orlando Ferreira, que recrimina em longas páginas as pequenas falcatruas do mestre
“abridor” – que não teria se destacado exatamente pelo talento artístico.
Ao terminar seu contrato com o governo, Steinmann seguiu com suas
encomendas, na oficina que já tinha renome. Quando voltou para a Europa, em 1833,
havia desenhado, impresso e comercializado centenas de quadros e estampas, uma
coleção de 50 litografias do Brasil, de paisagens a cenas do cotidiano. Mas o mais
importante é que, com sua atuação, havia colocado o Brasil na vanguarda dos processos
de impressão de imagem e criara, mesmo que informalmente, uma escola de litografia,
habilitando um quadro de profissionais que nos anos seguintes atuaria ativamente no
mercado carioca – inclusive nas nascentes publicações.
Segundo o Almanak de Plancher, havia no Rio de Janeiro, em princípios de 1832,
três litografias particulares: as de Steinmann, de Rivière e de Roger. Se tivesse sido editado
no fim daquele ano, o editor teria acrescentado a de Larée (FERREIRA, 1994: 355).
Armand Roger se estabelecera no Rio no começo de 1831, na Rua do Ouvidor
51. Édouard Philippe Rivière, ex-aluno da Academie de Peinture de Paris, chegara ao
Brasil em 1826 e, num anúncio publicado no Diário do Rio de Janeiro em 12 de agosto
desse ano, se apresentava como “professor de desenho de paisagem, de pintura a óleo e
têmpera, perspectiva etc., e faz retratos”. Sua esposa, também conta Orlando da Costa
Ferreira, era modista e vendia tecidos importados da França. Mais tarde Rivière se
associa com o ex-aluno Frederico Guilherme Briggs e cria a Litografia de Rivière e
97
Briggs, que imprimirá, entre outros trabalhos, coleções de estampas populares, como O
Naufrágio de Caramuru, vendida avulsa em 1832.
Pierre Victor Larée, quarto dos litógrafos estabelecidos no Rio nos começos dos
anos 30, iniciou seus trabalhos como desenhista no Real Arquivo da Academia Militar
em 1833, onde substituiu Steinmann. No ano anterior havia aberto sua própria oficina,
especializada em impressos comerciais. Larée litografou retratos de D. Pedro I e José
Bonifácio para a História do Brasil de João Armitage, editada por J. Villeneuve. E as duas
famosas imagens avulsas contendo a “nova invenção artística de caricaturas”: A campainha
e o Cujo e a Rocha Tarpéia, os desenhos de Porto Alegre satirizando o jornalista Justiniano
José da Rocha (veja adiante neste capítulo: 3.5) e que circularam no Rio de Janeiro em
dezembro de 1837.
O Arquivo da Academia Militar foi um centro formador de uma geração de
litógrafos e eles estavam preparados para atuar no mercado já nos meados dos anos
1840. Era comum o Arquivo prestar serviços para terceiros e Orlando Ferreira cita, por
exemplo, o suplemento musical de A Marmota na Corte, impresso ali em 1851
(FERREIRA, 1994: 295, 349, 358-366).
3.1. A indústria dá as cartas: os 60 anos de O Auxiliador
Nossa primeira publicação segmentada, focada sobre assuntos políticos e
econômicos, surgiu em 1831. Chamava-se Semanário Político, Industrial e Comercial e, como a
maioria dos títulos desse início de nossa imprensa, tirou apenas uma edição. Em 1832
uma sociedade organizada por fazendeiros e senhores de engenho criaria, em Salvador, a
primeira revista dedicada à agricultura, a principal atividade econômica brasileira da
época. Era o Jornal da Sociedade de Agricultura, Commmercio e Industria da Provincia da Bahia,
editado pela Typ. de Moreira e que tinha como principal redator o padre Francisco
Agostinho Gomes. Publicação de periodicidade irregular, divulgava ensaios e memórias,
ou seja, extratos de artigos de periódicos nacionais e estrangeiros, meio ao estilo
“clipping”, que era adotado por quase todas as publicações de então (antecipavam, de
algum modo, em um século o que viria a ser a fórmula da revista norte-americana
Seleções do Readers Digest). Essa fórmula, de apresentar artigos condensados e resumos de
ensaios aparecidos em revistas ou jornais europeus ou americanos, se completava com a
publicação de correspondência de leitores e alguma notícia local.
Com muitas matérias traduzidas de periódicos estrangeiros, constituía uma densa massa
de textos sobre novidades científicas e tecnológicas. Estimulava a diversificação da
produção agrícola com a introdução de novas culturas, divulgava inovações para as
plantações tradicionais e para a fabricação de produtos de origem animal e vegetal, e
dava conselhos práticos sobre agricultura (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 27).
Mas, entre as muitas publicações criadas por associações de classe, merece especial
atenção O Auxiliador da Industria Nacional, por se tratar de um periódico despretensioso e
de larga vida. Usava o longo subtítulo de “Collecção de Memorias e Noticias
interessantes aos fazendeiros, fabricantes, artistas, e classes industriosas no Brasil, tanto
originaes como traduzidas das melhores obras que neste gênero se publicão nos Estados
Unidos, França, Inglaterra, &c”.
Lançado em 15 de janeiro de 1833 pela Typographia Imperial e Constitucional de
Seignot-Plancher & C.°, da Rua do Ouvidor, N. 95, O Auxiliador da Industria Nacional será
publicado até dezembro de 1892, cumprindo uma trajetória de 60 anos, chegando a um
total de 720 números. Periódico mensal, era editado sob os auspícios da Sociedade
Auxiliadora da Industria Nacional (criada em 1827, a Sociedade Auxiliadora foi o
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
98
embrião da atual Confederação Nacional da Indústria). Segundo a ficha catalográfica da
Biblioteca Nacional, a publicação teve entre seus redatores personalidades como o padre e
orador Januário da Cunha Barbosa
4
, Pedro de Alcântara Lisboa, Miguel Joaquim Pereira
de Sá, M. de Oliveira Fausto.
Ao longo de seus muitos volumes, O Auxiliador criticou o atraso econômico do Brasil
e já em seu número de lançamento alertava:
Não precisamos ir longe para vermos provas palpáveis destas tristes verdades. No vasto,
rico e importante Império do Brasil, uma máquina é exótica; não existe uma estrada
perfeita; não se navega por um canal; e isso porque ainda não resolvemos associar os
poucos meios de cada um para, com o coletivo de todos, obtermos os resultados que os
capitais reunidos fazem todos os dias surgir naqueles países onde o espírito de associação
comanda a natureza bruta e força a apresentar nova face polida, tudo efeito, tudo obra
da reunião de indivíduos (apud EMPORIUM BRASILIS, 1999: 27).
A revista publicava as memórias, ou seja, sinopses de artigos sobre café, açúcar,
mandioca, fabricação de produtos de origem vegetal e animal, velas, tabaco, conservação
de utensílios. Didático em seu texto, O Auxiliador aconselhava e orientava. Como exemplo,
reproduzimos a seguir trecho do artigo de Economia Doméstica, “Maneira de tornar
A capa do número 1 de O Auxiliador (esquerda) e o artigo “Maneira de tornar saudáveis as habitaçlões humidas”,
traduzido pelo cônego Januário da Cunha Barbosa.
99
saudáveis as habitações humidas” (traduzido dos J. dos Conh. Úteis
5
, por J. da C.B., sigla
adotada pelo redator Januário da Cunha Barbosa).
Sabe-se que o excesso de humidade no ar he huma das causas mais activas da insalubri-
dade nas casas térreas; e póde acrescentar-se, que esta causa de enfermidades deterióra
tambem mui depressa as paredes e rebóques. Devemos á M. Payen hum meio fácil de
nos livrar-mos destes inconvenientes. – Endurece-se o sólo amontoando-lhe fachina; e
quando lhe falta solidez, forma-se uma área plana com cascalho e argamassa. Exten[den]do-
se sobre a superficie assim aplanada huma camada de massa de mastic-bitume de 4 á 5
linhas de grossura. Esta materia, completamente impenetravel á agoa, intercepta toda a
communicação com a humidade inferior. Se a sala baixa, assim preparada, deve ser
assoalhada, cóbre-se o mastic de huma camada de 6 á 8 linhas de gêsso amassado com
azeite, assentão-se em cima os barrotes e sobre elles se prégão as taboas. As salas das
casas térreas assim preparadas não estão sujeitas aos inconvenientes da humidade” (O
Auxiliador, Anno III – nº 7, pág. 27) (PR SOR 100-1).
O público certamente apreciava esse tipo de matéria com indicações práticas, a
informação útil que hoje chamamos de “jornalismo de serviço”, tanto que a revista
sobreviverá até dezembro de 1892, completando uma coleção ininterrupta de 60 volumes
de 12 exemplares. Um tento e tanto!
Até o final da década de 1850, O Auxiliador encarava a indústria como mera atividade comple-
mentar à agropecuária, para a qual aquela fornecia o maquinário necessário. Mas a partir daí
suas páginas irão refletir a luta travada entre os defensores da “vocação agrícola brasileira” e
os que enxergavam no setor industrial uma alternativa econômica promissora. Pela revista,
a Sociedade Auxiliadora propunha novas idéias, como a realização de exposições periódi-
cas, capazes de divulgar o estágio da agricultura e da indústria nacionais, algo comum na
Europa. Mais adiante, a partir dos anos 1870 tornaram-se freqüentes os artigos defenden-
do a abolição da escravatura e sua substituição pela mão-de-obra assalariada, com matérias
incentivando a imigração européia – no que a publicação refletia movimentos e idéias que
circulavam pelo país (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 27).
Com a queda da Monarquia, em 1889, a Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, que, como outras instituições de ensino e propagação cultural e artística, recebia
o apoio e a proteção do imperador D. Pedro II, entrou em declínio e sua publicação
refletirá essa situação. Tanto assim que, em 1892, a revista entra em uma fase de
periodicidade irregular, até deixar de circular em 1903. Mas O Auxiliador deixou um saldo
positivo, que foi a formação de gerações de “fazendeiros, fabricantes, artistas, e classes
industriosas no Brasil” – o público para o qual a revista fora criada.
Também ligada à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, e contando ainda
com o apoio de verbas concedidas por D. Pedro II, surgiu, seis anos depois do lançamento
de O Auxiliador, uma outra publicação. Era o órgão de divulgação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e se chamou Revista Trimensal de História e Geografia. Criada em 1939,
foi pensada com a missão de “coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos
necessários para a História e Geografia do Brasil”. Chegou a ser distribuída a 136
sociedades estrangeiras e, por sua periodicidade ininterrupta, recebeu um prêmio
internacional no Congresso de História de Veneza, em 1881 (cf. VAINFAS, 2002: 381).
Publicada até hoje como Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, é considerada uma
fonte valiosa para a pesquisa histórica.
Já entre as revistas ligadas à medicina, destacou-se o Semanario de Saude Publica, também
lançado pela Typ. Imperial, de E. Seignot-Plancher. Depois trocou o nome para Revista Medica
Fluminense (1835-1841) e circulou até 1885, passando por diversas fases, em que adotou ainda
os nomes de Revista Medica Brazileira e Annaes Braziliense de Medicina. Os farmacêuticos, médicos e
atendentes que durante sua formação liam as apostilas publicadas pela Impressão Régia
podiam agora se atualizar com periódicos de feição mais técnica – como acontecerá com
revistas abordando aspectos da administração, do comércio e da medicina.
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
100
3.2. As revistas dos estudantes de Direito: O Amigo das Letras
Os jornais e pasquins ligados às academias de Direito, de São Paulo e Olinda,
foram o grande caldeirão onde se formou mais de uma geração de escritores e
personagens que depois influiriam decisivamente nos destinos do país e nos rumos da
imprensa brasileira. A criação dos cursos de Direito em São Paulo e Olinda, como se
disse, atendeu a uma necessidade tanto política quanto administrativa, visando a
preparar um corpo técnico-burocrático para o Estado, que se formava na primeira
metade do século XIX. A escolha de cidades distantes da Corte para instalar as duas
escolas traduziu o empenho dos liberais em afastar os futuros operadores do direito e do
Estado da política absolutista do Rio de Janeiro. E os fatos comprovam que essa postura
cumpriu seus propósitos, pois, no caso de São Paulo, após iniciadas as aulas no Convento
dos Franciscanos, em 1828, não tardou para que muitos alunos se associassem a liberais
como o médico e jornalista italiano Líbero Badaró e o alemão Julius Frank. De
aproximações como essas resulta a criação do primeiro jornal estudantil, o Amigo das
Letras (1830), e das “Burschenschaft”, a conhecida Bucha, ou confraria dos camaradas,
freqüentada por muitos dos nomes que iriam depois fazer e escrever a história do país.
O Amigo das Letras, redigido por Josino do Nascimento Silva, além de ser o
primeiro jornal estudantil do país, marcou o início de longa lista de publicações.
Impresso nas oficinas do jornal Farol Paulistano, o Amigo teve periodicidade semanal e
chegou a circular 24 edições, de abril a setembro de 1830. Um ano depois surgia A Voz
Paulistana, editado por Francisco Bernardino Ribeiro: um jornal de oposição cujo alvo
preferido era o irrequieto D. Pedro I. Em 1833 aparece a Revista da Sociedade Philomathica,
que exaltava o papel das associações. Diz seu editorial: “Associação! tal é o destino da
humanidade. Tal a convicção universal, espontânea e distintiva do gênero humano”. Um
conceito até então pouco usual aqui: a sociedade vista como obra de uma decisão, de
um contrato social, da livre manifestação da vontade, como queria o genebrino Jean-
Jacques Rousseau.
Mas a série de publicações nascidas nas Arcadas da Faculdade de Direito continua,
segundo Paulo Ferraz (2003: 28). Muitos anos depois, em 1851, deixou marca a Revista
Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano, com Álvares de Azevedo entre seus criadores. Seguiram-se
O Acayaba, redigido por Quintino Bocaiúva, e O Guayaná. Dizia o editorial desse periódico:
“Filhos dos princípios liberais, eis-nos em luta no majestoso anfiteatro das idéias. […] Somos
do presente e caminhamos para o futuro; obedecemos às forças irresistíveis das necessidades
e legítimas aspirações do país”.
A lista continuaria ainda com a Arcádia Paulistana, a Revista Paulistana, O Lírio, a Revista
Dramática, O Kaleidoscópio, a Revista da Associação Tributo às Letras, O Radical Paulistano, numa
sucessão de títulos, quase todos de curta duração – mas que na prática foram os jornais-
laboratório que formaram os jornalistas e escritores que darão a pauta e o tom dos
periódicos da segunda metade do século XIX.
Na escola do Largo de São Francisco, a partir de 1860, o ideal liberal e romântico
vai sendo substituído pelo republicano ativista, de que é tradução o jornal O Futuro, de
Teófilo Otoni, que bradava: “Soldados da democracia, a postos! Façamos da constituição
nossa bandeira, da pena e da palavra nossas armas. Levantemo-nos e sejamos livres”. Já
iam avançadas as discussões a esse momento, e A Independência (1868) resume pontos
defendidos pelos estudantes mais progressistas: “aulas abertas a todos os meninos,
liberdade de ensino […], liberdade de culto. Força para a opinião, garantia para o voto
[…], o governo do povo pelo povo, extensão do sufrágio, sufrágio universal.
Independência do poder legislativo […], responsabilidade dos ministros, representação das
minorias […], casamento civil”. Entre os redatores dessa publicação estudantil A
Independência estavam alunos do curso de Direito, como Rui Barbosa e Castro Alves
(FERRAZ, 2003: 27).
101
Mas na São Francisco, a despeito do que se propaga, não estudavam apenas
republicanos e abolicionistas. Muitos alunos eram monarquistas e escravocratas
(entre esses escravocratas, alguns eram republicanos, como Campos Sales, que só
alforriou seus escravos em 1887). Dessa linha de pensamento era o Clube
Constitucional Acadêmico, jornal fundado em 1871. Dizia, em seu terceiro número, de
23 de maio de 1871:
Mas essa vitória lenta [da monarquia] não está isenta de perigos, uma escola política
que ostensivamente fala em liberdade, quando é sua mais cruel inimiga, que mais
declama sentimentos humanitários, quando é a mais desumana, que fala mais em paz,
quando é mais sanguinária, a escola revolucionária, premeditada tentativa sacrílega,
sofismando a razão e a justiça […]. Essa escola, pobre de razão e pobre de poder, vai
inspirar-se nos exemplos perniciosos, ferozes e revolucionários do republicanismo fran-
cês (FERRAZ, 2003: 27-28).
Enquanto isso, na Faculdade de Olinda, estudantes como Medeiros e Albuquerque
(pai), Maciel Pinheiro, Tobias Barreto, Franklin Távora e Silvio Romero iriam colaborar
em revistas como A Estréia, O Ateneu Pernambucano, Arena, O Futuro, Ensaio Literário, O
Acadêmico, A Luz, A Faculdade e o Povo, Crença e o Movimento.
Nas páginas dessas publicações, quase todas empreitadas estudantis, desfilaram
artigos e ensaios assinados por alguns dos personagens que marcariam época na política,
na literatura e no jornalismo. Além dos já citados Rui Barbosa e Castro Alves, Joaquim
Nabuco e Álvares de Azevedo, Luis Gama, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Machado,
Fagundes Varela, Teófilo Otoni, Francisco Rangel Pestana, Américo de Campos, Júlio de
Mesquita, entre tantos outros.
Apresentada por Ana Luiza Martins como
“a primeira revista paulista”, a Revista da
Sociedade Philomathica, de 1833, era impressa
na Typographia do Novo Farol Paulistano.
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
102
3.3. Os impressores e o Museo Universal
Os problemas para os editores, nesse período de aprendizado, de criação de
publicações e de formação do público leitor, não foram poucos. Por causa do leitorado
rarefeito, as tiragens eram pequenas e muitos dos títulos não caíam no gosto do público,
faltava algo que atraísse sua atenção. É comum, ao pesquisar as publicações dessa época,
deparar com queixas dos editores, sobretudo quando anunciam o encerramento das
atividades de um título. Queixam-se da falta de assinantes ou do não pagamento das cotas
periódicas, como motivo para pôr fim às publicações. Faltava tudo, até uma visão mais
empresarial. E um dos primeiros revisteiros a apontar para novas alternativas foi Junio
Villeneuve, proprietário do Jornal do Commercio. Villeneuve é parte da segunda geração de
editores franceses que deixaram suas marcas na formação do público leitor e do mercado
editorial. Essa saga foi iniciada quase duas décadas antes, com a chegada de Plancher de la
Noé, como se viu no capítulo anterior.
Apesar de sua amizade e da proteção de Pedro I, o jornal de Plancher de la Noé se
juntou à campanha iniciada pela Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, contra as
arbitrariedades do imperador. Esse movimento resultou na abdicação de D. Pedro I, em 7 de
abril de 1831 – mesmo ano em que Pierre Plancher retorna a Paris. Afinal, também lá
haviam mudado os ventos, após a revolução liberal de 1830, com a volta da liberdade de
imprensa. Já agora sob a direção de Emile Seignot, o Jornal do Commercio é vendido em 1834 a
Junio de Villeneuve, sendo Francisco Antônio Picot seu principal editor. A família Villeneuve
manteve-se à frente do jornal até 1890, quando passou o controle para José Carlos
Rodrigues, jornalista que trabalhava no periódico desde 1868 (VAINFAS, 2002: 420).
À frente dos negócios da agora chamada Typographia Imperial e Constitucional de
J. Villeneuve, Junio lança, em julho de 1837, uma revista ilustrada que será um dos marcos
desse período: o Museo Universal. A publicação era uma aposta do editor na linha de
popularização da leitura, que aos poucos ia acontecendo na Corte. Diferentemente das
publicações mais didáticas e com o tom de apostila que a precederam, Museo Universal não
se destinava a alunos das academias, mas buscava interessar os segmentos da população
que se alfabetizavam. Com texto menos professoral, o periódico abordava temas de
interesse geral, como mostra a análise dos índices que encerram cada volume
6
. A revista
inovou sobretudo por introduzir algo novo na imprensa de nosso país: o uso de ilustração.
Na revista, elas apareciam quer em pequenas vinhetas, que decoravam as páginas
7
, quer
em gravuras que constituíam, em si, uma reportagem visual. Dada a origem do editor,
eram em geral gravuras elaboradas por artistas franceses – e que agradaram tanto que sua
aceitação e duração contrastam com a carreira geralmente efêmera das publicações desse
período: Museo Universal será publicada por sete anos consecutivos, uma exceção para esse
momento. O jornalismo de revistas começava a encontrar, finalmente, a fórmula da
longevidade (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 32).
Lançado em 8 de julho de 1837, o Museo Universal trazia como subtítulo “jornal das
familias brazileiras”. Composto de 16 páginas no formato 28 x 20 cm, era semanal e
impresso na Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e C. É apresentada
tendo como editores-proprietários o Jornal do Commercio, na Rua do Ouvidor 65. Circulou
até 29 de junho de 1844, cobrindo sete anos, com alguma lacuna no seu segundo ano de
circulação (o segundo semestre de 1838).
Sobre essa publicação, diz Orlando da Costa Ferreira em seu Imagem e letra:
A revista saiu em fascículos semanais, de 1º de julho de 1837 a 29 de junho de 1844
8
. Trazia
toda sorte de ilustrações suscetíveis de agradar e mesmo maravilhar o povo do Rio, como foi
o caso das máquinas aéreas de Hensons. Reproduzia anualmente cerca de duzentas gravuras
em madeira “executadas pelos melhores artistas de Paris e Londres” [...] Muitas de suas
pranchas são assinadas pela mais famosa equipe de xilogravadores industriais europeus de
então: o trio ABL, formado na França por Andrew, Best e Leloir (FERREIRA, 1999: 209).
103
Capítulo 3
1831-1850
Igrejas, camelos, girafas se
alimentando: a maior atração de
O Museo Universal era o tom
didático das imagens.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
104
No primeiro numero, o Museo Universal fazia apologia da nova imprensa, surgida há
pouco na Europa:
Combinando a barateza dos preços, a delicadeza das estampas e a perfeição dos textos,
(a imprensa estrangeira) repartiu com prodigalidade entre todas as classes da sociedade
tesouros de instrução e de delícias intelectuais, reservados até nossos dias para um pe-
queno número de privilegiados. Mas entre nós, a imprensa, naturalizada de ordem e
apenas coeva da independência, já se acha com proporções para iguais préstimos, para
produzir uma publicação que revele o interessante e instrutivo das descrições pelo
impressivo do retrato dos objetos (Apud EMPORIUM BRASILIS, 1999: 32).
A revista declarava a missão de proporcionar, aos leitores, a chance de desfrutar
imagens e textos publicados nos magazines europeus:
De uns, as maravilhas da arquitetura (...); de outros, as ricas vistas e lindas paisagens de
todas as regiões do globo, com os vestuários dos povos, e o que há de mais notável e
peculiar nos seus hábitos, que nos serão explicados pelos viajantes e circunavegantes de
maior nome. Sem sairmos da varanda arejada pelas virações tropicais, ou da sombra da
mangueira e do coqueiro, acompanharemos o capitão Ross à desolada zona dos eternos
gelos; iremos com Cook e Lapeyrouse em procura de incógnitas terras, e logo, cansados
do mar, penetraremos a pé em um segmento do Mungo-Park na África Central; ou
atravessaremos, às costas do sóbrio camelo, a comitiva da caravana do Oriente, os deser-
tos de areia da Ásia; ou, montados no coche a vapor, voando através dos mais populosos
distritos de Inglaterra, inspecionaremos os prodígios da indústria (EMPORIUM
BRASILIS, 1999: 32).
Paginada em duas colunas, a revista tem uma média de 40 linhas por coluna, é
fartamente ilustrada, com desenhos de cobras, leões, girafas, que acompanham os textos.
Há muita biografia e curiosidades em geral. Pode ser um perfil ilustrado do ministro inglês
das Relações Exteriores, George Canning, ou um texto sobre Cristóvão Colombo diante
O anúncio (direita) veiculado uma semana antes do primeiro número promete: a publicação “sahirá todos os
sabbados”, formando um volume de 416 páginas.
105
dos doutores de Salamanca. Sob a rubrica viagens, o primeiro número apresenta um café
em Argel. Na seção “miscellanea”, apresenta uma máquina para alisar pedra, discorre
sobre os atos de justiça do sultão Amurath, comenta sobre os banhos ou galés em França,
com duas ilustrações. Há uma gravura mostrando a catedral de Milão. Astronomia,
mundo animal, novidades técnicas da indústria, aspectos de turismo, monumentos, a
revista é uma enciclopédia do estilo da Tudo.
O número 6 da revista, de 12 de agosto de 1837, tem 16 páginas. Abre com uma
lâmina mostrando a Descida da Cruz, de Rubens (na primeira página, no caso a 41, pois a
revista segue a numeração seqüenciada) e a página seguinte traz um pequeno perfil do
pintor. A página 43 (a terceira dessa edição), trata das câmaras do Parlamento inglês (leis e
costumes da câmara dos pares). A página 44 segue com esse texto e ocupa 2/3 com a
imagem da Câmara dos Lordes; a página 45 se ocupa de explicar a Câmara dos Comuns,
e tem também uma gravura de 2/3 mostrando a câmara em atividade. A página 46
discorre sobre a origem da representação popular na Inglaterra e a situação atual da
mesma. As páginas 47 e 48 abrem nova coluna de “miscellanea”, comentando a devoção
de Carlos II e seus súditos ingleses; e fala de um desertor prussiano. A página 49 é
ocupada por uma gravura sobre Gibraltar. A página seguinte, à esquerda, inicia um texto
sobre Gibraltar: “famosa e pouco conhecida”.
“Estudos Moraes” é o tema que ocupa as páginas 51 e 52.
A gravura de um leão é a atração da página 53, sob a rubrica “História Natural”, e o
texto discorre sobre esse felino. As páginas 54 e 55 são ocupadas pela rubrica “Economia
doméstica” e os textos tratam sobre como cuidar de queimaduras (linimentos), da
conservação do leite (pasteurização) e dos ovos (com o uso de cal) e também de como
manter a carne fresca em condições de uso por longo tempo.
A última página, a 56, trata do sistema de faróis e sinais, com uma imagem.
No final de cada um dos sete volumes (os volumes eram numerados de julho a
junho do ano seguinte), a revista trazia um “índice” alfabético das matérias e artigos
publicados, e outro com as estampas que apareceram ao longo do ano.
Uma análise desses temas sumarizados dá uma dimensão do caráter formador e
quase de escola secundária da publicação mantida pelo Jornal do Commercio: abelhas,
ananaz, assucar, Raphael Sanzio, a Lua, a música na Hespanha, a procissão de Corpus
Christi em Sevilha, o olfato, o tatoos beijaflores, a lontra, a panthera. A revista parece uma
mistura do que é hoje um canal como Discovery e a Superinteressante.
O “índice” separa as reportagens por tópicos: agricultura (arroz, assucar); anecdotas
(pequenos artigos sobre Bonaparte e os anciãos sacerdotes, o heroísmo de uma mulher,
Talleyrand); astronomia (a Lua); bellas artes (a música na Hespanha; a opinião de
Reynolds sobre as obras de Rubens); botânica (areca da índia, ananás); biografia (Carlos
I, rei de Inglaterra; Dupuytren, Duquesne, Mirabeau, Rafael Sanzio); economia doméstica
(bons effeitos do sal administrado aos animaes domesticos; cola extraída de caracóis;
modo de pagar incendios; processo para envelhecer os vinhos; receita para fazer vinagre
dos quatro-ladrões); estudos históricos (Cerco de Calais; D. Carlos e Philippe II; os
descobridores da ilha da Madeira); estudos morais (Adina, ou a joven pastora dos
Pyreneos; amor, ciúme e vingança; huma vingança cruel; a infância de Mozart ou os
pequenos artistas); estudos psicológicos (o olfato, o tato); história natural (as abelhas, o
bisão; o corvo marinho; o zebu); indústria (o bicho da seda, a navegação a vapor) e as
miscelâneas (onde cabe realmente de tudo, de anedotas a fofocas, charadas, numismática e
até “apontamentos achados na carteira de hum allemão que se deixou morrer de fome” e
“simplicidade das typographias do estado de Indiana, nos Estados-Unidos”).
A relação das estampas publicadas acompanha quase que par e passo a relação dos
artigos. Há uma escolha por imagens de igrejas e de lugares impactantes, como a igreja de
São Carlos Borromeu, em Viena, ou do Duomo de Milão. Nota-se, no entanto, o
empenho didático da publicação no uso das imagens. O índice de gravuras revela que a
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
106
reportagem sobre o arroz foi bem ilustrada, com cinco estampas, mostrando o “passo a
passo”: 1
o
a preparação da terra com a grade de destorroar; 2
o
a plantação do arroz; 3
o
a
rega do arroz; 4
o
chinas peneirando o arroz; 5
o
o descascamento do arroz. O mesmo
ocorre com o artigo sobre o açúcar: suas estampas mostram 1
o
a preparação do terreno
para a cultura da cana; 2
o
a safra ou colheita da cana-de-açúcar; 3
o
o moinho e a moagem
da cana para a obtenção da matéria-prima; 4
o
o engenho onde se fabrica o açúcar: as
quatro estampas ocupam duas páginas da publicação. Em defesa de semelhante ecletismo
os editores alegavam:
Daremos alimento às imaginações dos validos da arte, às meditações dos filósofos (...)
sem nos descuidar de mimosearmos a mãe de família que, parca e incansavelmente,
dirige sua casa (...), pois que este deve ser o jornal de todas as classes, de todos os empre-
gos, de todos os sexos, de todas as idades; a criança que ainda não sabe ler se enlevará com
o curioso das figuras preludiando assim ao amor dos livros e da instrução; a jovem donzela,
procurando figurino de modas, leis de bom-gosto e novelas, ora ternas e melancólicas, ora
alegres, mas sempre morais, irá colhendo de caminho idéias gerais de muito conhecimento
que são o ornamento do belo sexo (EMPORIUM BRASILIS, 1999: 33).
3.4. Os livreiros, o Almanak Laemmert e o Correio das Modas
Criar um público leitor e formar mentalidades não é algo que se improvisa ou se
obtém por decreto. A partir da implantação da imprensa, com a chegada da família real
portuguesa, em 1808, apenas se iniciou uma larga caminhada. Mas o prelo e as prensas
que por descuido vieram a bordo da fragata Medusa não operavam sozinhos. Era
necessário que se formassem os impressores, tipógrafos, litógrafos, paginadores,
ilustradores, escritores, revisores. Figuras como Pierre Plancher e Johann Steinmann foram
abridores de caminho. Mas também era necessário formar, do outro lado da linha de
produção, os livreiros e vendedores de assinaturas, ou seja, quem cuidasse de fazer as
publicações chegar até a mão do leitor. E se os franceses de destacaram entre os tipógrafos
que aqui se instalaram, formando a primeira geração de impressores brasileiros – e
veremos no final deste capítulo o trabalho de Paula Brito, um desses editores formados
por essa leva de impressores estrangeiros –, eles se destacam também entre os livreiros.
Os primeiros comerciatnes de livros a se instalar no Rio de Janeiro, ainda no final
do século XVIII, foram João Roberto Bourgeois e Paulo Martin, dois franceses. Martin foi
o livreiro mais importante até a época da independência, sendo o distribuidor oficial da
Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal brasileiro, publicado na Impressão Régia
9
. Mas o
Rio conheceu muitos outros livreiros nos anos prévios à independência, como João
Baptista dos Santos, Jerônimo Guimarães, Francisco Nicolau Mandillo, Antonio Joaquim
da Silva Garcez e Francisco Luiz Saturnino da Veiga. Este, o pai de Evaristo da Veiga (um
dos personagens-chave da Independência e do primeiro reinado, Evaristo foi também um
livreiro bem-sucedido).
10
O mais usual e costumeiro, no entanto, era o livreiro instalar nos fundos seus
equipamentos de impressão – ou o próprio tipógrafo e impressor ter seus equipamentos
nos fundos da empresa, utilizando a parte da frente da casa como ponto de venda, de
subscrição de periódicos e de livros. Muitas vezes esse espaço funcionava como ponto de
encontro, local de tertúlias, sobretudo nos anos que se seguiram à proclamação da
independência, quando se discutiam modelos e visões do Brasil que se queria plasmar.
Alguns desses espaços ficaram famosos, como o da livraria de René Ogier, ou o da
tipografia de Francisco de Paula Brito, como veremos mais adiante. Pierre René François
Plancher de la Noé, apresentado no capítulo anterior, fez de sua impressora na Rua do
Ourives, depois na Rua do Ouvidor, também um ponto de venda de livros.
107
Já chegando ao meado do século XIX, os livreiros se tornam mais ativos e
aprendem novas armas do marketing. Assim, além oferecer cupons de desconto, editam
coleções de baixo custo que agradavam o público leitor. Entre os livreiros inovadores
destacaram-se, além do português Francisco Alves, Louis Mongie, Firmin Didot,
Hyppolite e Baptiste Louis Garnier
11
, Jean Baptiste Lombaerts e seu filho, Henri
Gustave
(de quem falaremos no capítulo 7), e os irmãos Heinrich e Eduard Laemmert,
da Livraria Universal.
Os irmãos Laemmert criaram uma galinha de ovos de ouro: um manual
administrativo que podia ser encontrado nos mais distantes rincões do país. Com o longo
nome de Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, a
publicação começou em 1839 como uma folhinha literária, ao estilo das publicadas por
Plancher de la Noé. No entanto, evoluiu e se tornou um guia mais completo que os
concorrentes, cobrindo notícias de todo o Império e relacionando lojas, estabelecimentos e
serviços oferecidos – e se tornou uma obra de consulta nas estantes e mesas de
amanuenses e contabilistas das províncias. Embora um almanaque não seja revista
(na realidade, é uma espécie de tio-avô das mesmas), esse periódico dos Laemmert merece
a exceção e falaremos mais detidamente sobre ele.
Nascidos no Grão-Ducado de Baden, Heinrich e Eduard eram filhos de um
pastor protestante, Guilherme Frederico von Laemmert. Eduard (1806-1880)
iniciou carreira na Livraria e Tipografia G. Braun, em Carlsruhe, indo depois para
Paris, empregado da Casa Bossange, editores e livreiros. Como representante dessa
empresa, veio para o Rio, em 1828, e se associa a um português chamado Souza,
representante do livreiro francês J. P. Aillaud, criando a firma Souza Laemmert
(VAINFAS, 2002: 486-487). Cinco anos depois chegava Heinrich e formaram a
firma E.& H. Laemmert, com sede na Rua da Quitanda 77. O sucesso do
empreendimento fez com que, em 1837, comprassem três impressoras e Eduard
retornava a Paris para aprimorar o ofício de tipógrafo. Em 2 de janeiro de 1838
inauguravam a Tipografia Universal. Na sede da empresa, na Rua dos Inválidos,
trabalhavam, em 1859, 120 pessoas, que imprimiam mil folhas por dia. Na oficina
de encadernação, outros 50 homens produziam 5.000 livros encadernados por mês,
além de 14.000 brochuras. A empresa era elogiada pelos operários e teve seus
méritos reconhecidos pelo imperador, que em 1862 fez uma visita oficial à empresa.
Boa parte do sucesso da Tipografia Universal foi por conta do Almanaque Laemmert
que circulou de 1844 a 1930. Falemos sobre ele.
3.4.1. O Almanak Laemmert
Segundo a ficha catalográfica da Biblioteca Nacional, “O Almanak
Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, também chamado de Almanak
Laemmert, é obra estatística e de consulta, fundada em 1844 por Eduardo Von
Laemmert”. Publicado de 1844 a 1930, passou por diversas modificações no nome,
agregando ao Rio de Janeiro do título as expressões Corte e Província do Rio (de
1849 a 1863), Corte e da Capital da Província do Rio de Janeiro com os Municípios
de Campos e de Santos (1872), Corte e Província do Rio de Janeiro inclusive a
cidade de Santos, da Província de São Paulo (1875-1881), para finalmente se tornar
Annuario Administrativo, Agricola, Profissional, Mercantil e Industrial da Republica dos Estados
Unidos do Brazil (1913-1915).
Na edição famosa de 1875, que “passou das 1.700 páginas”, o almanaque teve
cinco seções: a) o almanaque propriamente dito, totalizando 944 páginas, com a lista
completa de estabelecimentos, provedores, e dados diversos (eclipses, fases da lua,
marés, divisão das províncias do império, festas religiosas do ano, feriados, santos do
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
108
dia, mês a mês, calendário, relação de açougues, gabinetes de ministros, relação de
funcionários dos ministérios, com endereço dos gabinetes, chefes dos principais
estados do mundo; b) a seguir, na seção Província (304 páginas), as seções eleitorais,
número de habitantes, escravos, nomes e efetivo da guarda nacional alocados na
província do Rio de Janeiro, enumerando dados de comarcas fluminenses, médicos,
boticários, vendedores, tipógrafos, um guia completo de fornecedores e prestadores de
serviços; c) terceira seção, “Supplemento”, com 308 páginas, realiza um levantamento
mês a mês do que se alterou, o que houve de diferente na produção, novos serviços
oferecidos. Por exemplo, a página 209 do suplemento de 1875 informa que o fumo em
folha do Rio Grande continuou com grande aceitação na praça, prejudicando a
produção do fumo da Bahia, e dá a seguir a cotação de preços comparando 1873 e
1874 para o que se pagou pelo fumo gaúcho e pelo baiano. No item a seguir, na
mesma página, é realizada a análise do fumo em rolo de Minas, que “abrio o mercado
em Janeiro aos preços de 700 e 800 rs para o fumo superior, e de 400 e 500 rs por
kilogramma para o regular”; d) nessa quarta parte, o Almanak apresenta 157 páginas
de Notabilidades, que seriam os anúncios pagos. Trata-se de uma fonte riquíssima de
informação visual e do cotidiano da vida na Corte: cabeleireiros, vendedores de
pianos, modistas francesas, vendedores de tecidos, chapéus, perfumes, máquinas e
equipamentos agrícolas, um universo a ser explorado!; e) o almanaque fecha com 152
páginas de guia, como se fosse uma lista de endereços de personagens e
personalidades do Rio de Janeiro. Com as 8 páginas de introdução, soma um pacote
de 1872 páginas.
O sucesso do almanaque
alavancou as vendas da editora.
Livros relativamente baratos e
com forte apelo, como o Dicionário
de medicina doméstica e Sucintos
conselhos às jovens mães para o
tratamento racional de seus filhos, se
tornaram best-sellers. No acervo
da casa Laemmert brilhava ainda
Coleção completa de máximas,
pensamentos e reflexões, do Marquês
de Maricá, e Seleções de poesias dos
melhores poetas brasileiros desde o
descobrimento do Brasil. Os irmãos
Laemmert editavam ainda
Amorosas paixões do jovem Werther, de
Goethe, As viagens de Gulliver,
Contos seletos das mil e uma noites e
Aventuras pasmosas do celebérrimo
Barão de Münchausen, alguns
desses títulos traduzidos por
Capistrano de Abreu ou Olavo
Bilac.
12
Capa da Almanak de 1875:
um volume de 1.872
páginas, que revela a
pujança desse periódico,
um espelho da economia
nessa quadra do Império.
109
Capítulo 3
1831-1850
No alto, a capa do Almanak de 1844, primeiro ano. A seguir, anúncios da seção “Notabilidades”, de 1875.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
110
3.4.2. O Correio das Modas
A ficha catalográfica da Biblioteca Nacional esclarece: a revista O Correio das
Modas, jornal critico e litterario das modas, bailes, theatros, etc., com formato de 24 x 17 cm, era
semanal e circulou entre janeiro de 1839 e 31 de dezembro de 1840, mudando de
periodicidade em seu segundo ano, passando a circular duas vezes por semana. No
total, somou 131 fascículos. No acervo da Biblioteca Nacional estão guardados todos
esses exemplares, coleção completa.
Mais de uma década depois, a mesma Typographia Universal de Laemmert
lançará outra publicação, Novo Correio das Modas: jornal do mundo elegante consagrado às
família brasileiras, com ilustrações a cor e que circulará entre 1852 e 1854 – mas desta vez
será semestral, mais ao estilo dos almanaques que fizeram a fama daquela casa editorial.
No total, essa segunda “dentição” – com formato maior, de 28 x 19 cm – renderá
apenas cinco diferentes edições.
Quase sempre o texto de abertura do periódico reforça a idéia da dificuldade que
é escrever sobre moda, do “trabalho de percorrer salões e costureiras, modistas e casas
de roupas” em busca das novidades. Dá conta de navios que chegam com novos
produtos, fala dos estoques das lojas, mas sem dar muitas indicações concretas sobre
vestir. A revista traz muitas novelas curtas, como a história de Julio, que parte para a
Índia e faz fortuna (números 2 e 3 da publicação), a “Fugida do Castelo de Loch Levin”
(número 16) ou “Uma aventura no baile mascarado” (nº 22). A edição de número 26,
que circulou no sábado 29 de junho de 1839, começa a publicação de um artigo “em
quatro entregas” sobre o “Casamento por inclinação”. A revista traz com freqüência
lâminas com sugestões de roupa masculina.
Vamos nos deter numa análise do número 1 desse Correio das Modas, semanário,
lançado dia 5 de janeiro de 1839, um “sabbado”, como esclarece a capa do periódico. A
revista tem capa sóbria, apenas 1/3 na parte superior da primeira página traz o cabeçalho.
Entre dois fios simples, as indicações de
“N° 1, vol. 1”, à esquerda. No centro, a data:
“sabbado, 5 de janeiro”. E à direita, dentro
de fios, o ano: “1839. 1° anno”.
Na segunda camada desse cabeçalho,
o centro mostra uma vinheta: uma lira
envolta com imagens (uma figura que pode
ser uma espátula encimada com uma cabeça
masculina, uma foice ou régua, uma flor).
Do lado esquerdo, o serviço: “Publica-se
todos os sabbados, 1 número com uma
gravura. Assigantura: Rs 5$000 adiantados
por 4 mezes”. Do lado esquerdo, a
complementação: “Assigna-se na Livraria de
E. e H. Laemmert, Editores. Rua da
Quitanda, N. 77. Rio de Janeiro”.
Na terceira camada, o título em três
Capa do primeiro número do
Correio das Modas, que circulou
dia 5 de janeiro de 1839.
111
Capítulo 3
1831-1850
linhas: Correio das Modas, / jornal critico e litterario / das modas, bailes, theatros, etc.
Na linha de baixo, a epígrafe: “Tout change, la raison change aussi de methode,
Écrits, habillemens, systeme, tout est mode!”. A partir daí, a revista se apresenta, diz a que
veio. E o faz utilizando uma linguagem doce, bastante amigável. Esse tom, quase coloquial
para o que era a imprensa escrita de então, surpreende:
Moda: tendes emfim, amaveis leitoras, um «Jornal de Modas» de que estava em fallencia
o Rio de Janeiro e as outras Províncias. – O dezejo que temos de agradar-vos, obriga-nos
a vencer muitas difficuldades. Pois que! Julgais que não é tarefa importante o escrever
para o bello sexo a quem a natureza largueou uma infinidade de gostos variadissimos? –
Entrai em um formoso jardim no qual Flora alardeia toda a sua riqueza, vereis flores
muito mimosas, porém notareis uma prodigiosa diversidade d’ellas; pois bem; assim são
também os pensamentos, gostos e inclinações das Senhoras. Ora, que trabalho não tem
um pobre escriptor para apresentar uma combinação que infunda um prazer geral!!
Comtudo, um surriso vosso, um elogio, uma protecção decidida – eis a nossa maior
recompensa (PR SOR 00614 [1]).
Esse tom de conversa amena permeará as 8 páginas da publicação, que vem
acompanhada de uma lâmina (impressão apenas de um lado) com uma imagem de moda,
em que o desenho busca valorizar a roupa. Os textos são diagramados em duas colunas.
separadas por um fio simples. No alto de todas as páginas, o mesmo fio duplo da capa se
repete, fixando o nome da publicação: Correio das Modas.
O redator, que já de início esclarece ser homem e confessa a dificuldade que terá de
atender a uma leitora tão exigente, sabe mimar e seduzir. Mas adiante, terminada a
introdução, ainda na primeira página, ele chama a atenção para a lâmina, brinde da
edição.
Cravai, minhas leitoras, os vossos bellos olhos na gravura que acompanha o nosso Jor-
nal... Tende alguma de vós a bondade de a contemplar e observar, de certo direis: - “Oh!
si eu me trajar assim hei de ficar mais bonita”. Nós vos affirmamos que não ha couza
mais fácil. – Dai-me attenção, pois vamos fazer a descripção da gravura... (PR SOR
00614 [1], pág 1).
Ele usa metade da página 2, que se segue, descrevendo a gravura. Dá muitas pistas
de elegância para a mulher (o chapéu da gravura e o corte de penteado pedem rosto
arredondado, “pois poucos são os rostos compridos que se ajeitam a um tal modo de
pentear”. Terminada a longa descrição, o redator reforça: “Adoptem as Senhoras esta
moda que captivarão todos os corações”. E exemplifica:
Há dias houve uma partida a que tivemos a honra de assistir. Muitas senhoras estavam
vestidas de maneiras differentes; – entre ellas havia uma exactamente trajada no gosto
da gravura. – O que aconcteceu? Foi ella attrahir a attenção geral. Todas as pessoas
diziam: – “Como está encantadora, como está bella!!”. Vede, pois, amaveis leitoras, si
temos razão (PR SOR 00614 [1], pág 1).
Terminada a descrição e essa exortação, na segunda coluna da página 2, o terceiro
texto, “A missa do gallo!!”, definido como uma “legenda brasileira”. Trata-se, na realidade,
de um pequeno conto, um tanto macabro, que ocupará duas páginas.
A história se passa em 1775, numa formosa fazenda a poucas léguas da cidade de
São Paulo. Carlos, o dono da fazenda, se casara com Izabel, seduzido pela beleza da
mulher. Mas ele é infeliz, pois “ella trahia a seu marido”, revela o autor, já no segundo
parágrafo. Na véspera de natal, em meio a uma tempestade em que “o trovão roncava e
dava berros tremendos, o vento zunia, o firmamento desabava-se em chuva”, Carlos sai e
vai até a casa do amigo Adolpho, ali perto – seu amigo Adolpho, ele sabe, é o amante de
sua consorte. Carlos o mata, atravessando-lhe o peito com sua espada.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
112
No dia seguinte, 24 de dezembro, conforme planejara, a “pérfida” Izabel
manda prender todos os cachorros, para, quando o amante chegar, não haver ruído
que pudesse despertar o fazendeiro, que dorme pesado sono. Adolpho chega, na
hora da missa do galo, mas é em realidade um fantasma, que dá um alerta à
adultera: “O Céo perdoa todos os crimes, menos o adultério” – e lhe toca a face
com a mão, deixando no rosto de Izabel a marca de seus dedos, como se a tivesse
marcado com ferro em brasa.
O conto termina com uma lição de moral:
Dois annos depois havia uma religiosa em um Convento da Cidade: era o modelo de
todas as virtudes; trazia sempre a face direita para esconder o signal de cinco dedos
n’ella estampados. Era Izabel. Ao pé da porta do convento ouvia-se, alta noite, uma voz
rouca gritar: “A missa do gallo!!”. Era Carlos que andava doido (PR SOR 00614 [1],
pág 4).
O texto é assinado com as iniciais M. da C. Já o artigo seguinte, o longo “Minhas
aventuras”, que continuará no número 2, vem sem assinatura. Essa “primeira emtrega”,
que começa quase no rodapé da página 4, leva o subtítulo de ‘Na véspera de Reis’ e tem
o estilo de uma crônica. O autor inicia com uma singela reflexão sobre o fato de escrever
para leitoras.
Escrever para um periodico de modas!... oh! que felicidade! ter um circulo de leitoras,
que todas querem saber quem é o indivíduo que as diverte para recompensal-o com um
sorriso, ou, o que é muito natural, quem é o maldito que lhes excita enxaquecas, attaques
de nervos, máo humor em fim, para fugir d’elle, para evitar-lhe a conversação, é viver
no paraiso, por que, saldadas as contas, o escriptor é conhecido, falla-se d’elle – e é uma
ventura ser o objecto do entertenimento das damas (PR SOR 00614 [1], págs. 4 e 5).
A reflexão segue por muitas linhas, com o autor fazendo um panegírico sobre as
mulheres e desdenhando do (estereotipado) mundo masculino. Garante: “Abhorreço a
política, odeio a arithmetica e os jogos das praças commerciaes; a veterinária para mim
não tem encantos, e ainda menos a agricultura”. Finalmente, o redator comenta sobre o
tradicional costume das folias de reis, e de como o hábito de sair em grupo cantando de
casa em casa se perdia no Rio de Janeiro de então, diferentemente do que ainda acontecia
nas províncias. E conta um episódio com ele sucedido em janeiro de 1831, oito anos
antes, quando vivia fora da capital, ao se incorporar a um grupo de folia, mesmo não
sabendo cantar, dançar ou tocar instrumento.
Pelo relato vamos sabendo que esses grupos eram compostos de dois cantores, um
tocador de rebeca, um violeiro e um flautista. Após uma apresentação malsucedida, o
grupo tem razoável performance em frente a uma casa de “família-bem” do lugar, sendo
convidados para entrar e participar da ceia. Após três páginas (seis colunas), o relato se
interrompe, quase ao final da página 7: o grupo de foliões é convidado a iniciar as
contradanças. A história continuará na semana seguinte (deixando curiosa a leitora).
O texto seguinte, com o título “O Amor Perfeito”, servirá de introdução para a
poesia de 16 quadrinhas que ocupa a página 8, última dessa edição. O amor-perfeito se
refere à flor – símbolo do amor: “Roxa florinha engraçada/ que tens o nome de amor/
que da mimosa ternura/ és o emblema encantador”. As dezesseis quadras seguem com
rimas ingênuas (coração/satisfação; bela/dela; flora/outrora; viverás, estás).
A revista termina com uma charada que terá sua solução publicada no sábado
seguinte. No pé, a despedida: “Adeos, amaveis leitoras”.
Terminou esse número da revista? Falta conferir a lâmina com a informação de
moda. Não é difícil imaginar o sucesso que essa gravura deve ter causado no Rio de
Janeiro de 1839. E será sobre o impacto das imagens que nos deteremos no próximo
subtítulo deste capítulo.
113
3.5. A atração da imagem, cultura visual: A Lanterna Mágica
A introdução dos desenhos e das caricaturas na imprensa brasileira causou sensação
ao menos entre o público da Corte instalada no Rio de Janeiro. Embora os historiadores
forneçam dados controversos sobre a circulação da primeira caricatura, pode-se dizer que a
data mais aceita é a de 1837, quando o Jornal do Commercio publicou em sua edição de 14 de
dezembro um anúncio que dizia “Saiu à luz o primeiro número de uma nova invenção
artística, gravada sobre magnífico papel, representando uma admirável cena brasileira, e
vendida pelo módico preço de 160 réis cada número, na loja de livros e gravuras de
Mongie, Rua do Ouvidor n° 87
13
. A bela invenção de caricaturas, tão apreciada na
Europa, aparece hoje pela primeira vez em nosso país, e sem dúvida receberá do público
aqueles sinais de estima que ele tributa às coisas úteis, necessárias e agradáveis” (JELIN &
TADDEI, 1996: 37).
O Diário do Rio de Janeiro também publicava semelhante anúncio no dia seguinte,
dando a conhecer o aparecimento da Caricatura, publicação de desenhos avulsos, que
foram vendidos como as “revistas-posters” oferecidas nos dias atuais nos finais de
campeonatos de futebol ou pela morte de algum ídolo
14
. Imagens para colecionar ou
guardar.
Havia muita curiosidade e, portanto, demanda para essas imagens. Tanto que logo a
seguir saía nos dois jornais um novo anúncio (JELIN & TADDEI, 1996: 38):
Acham-se à venda nas lojas dos Srs. João Batista dos Santos, Rua da Cadeia n° 60;
Sant’Amant, Rua de São José n° 64; R. Ogier & Cia; Rua do Rosário; E. Laemmert, Rua
da Quitanda, o 1° número de Caricatura, que representa interessantíssima cena brasileira,
Capítulo 3
1831-1850
O Correio das Modas trazia como brinde uma gravura. Até com moda para os homens.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
114
impressa em muito bom papel, e pelo módico preço de 160 réis. Sairá amanhã e acha-se à
venda nas mesmas casas o 2° número de Caricatura, representando a Rocha Tarpéia. O
favorável e generoso acolhimento com que recebeu o público o 1° n° deste nosso perió-
dico de gravuras, havendo-se esgotado já toda a primeira edição, anima aos artistas que
se acham encarregados de tão necessária, útil e patriótica empresa, a continuarem sua
publicação.
As duas caricaturas tinham como tema o controvertido jornalista e político Justiniano
José da Rocha
15
. Tanto que a segunda lâmina se chamou Rocha Tarpéia, num trocadilho
com o sobrenome do jornalista. Justiniano era mostrado no desenho como se fosse a rocha
dos tempos do Império Romano
16
. Na caricatura, de um lado se vê a paisagem de Roma e,
esculpida na rocha, a cabeça enorme de Justiniano, de frente e perfil. Na testa, a inscrição:
3:600$000, o salário anual do jornalista como diretor do Correio Oficial.
Atribuídas a Manuel de Araújo Porto-Alegre, as duas caricaturas, litografadas por
Pierre Victor Larée, eram como um tira-gosto para algo que viria a seguir, a revista A
Lanterna Mágica, periódico plastico-philosophico. Nessa publicação, um desenho satirizando a
homeopatia, recém-introduzida no Brasil, assinalava o nascimento dos personagens
Laverno e Belchior dos Passos – e, com eles, a introdução da caricatura na imprensa
nacional.
Manuel José de Araújo nasceu dia 29 de novembro de 1806, em Rio Pardo, na
Província de São Pedro, atual Rio Grande do Sul. Filho de um negociante de fazendas e de
trigo, já demonstrava na infância uma inclinação para o desenho. Quando o rapaz
completou 16 anos, em 1822, foi para Porto Alegre, estudar e trabalhar como assistente de
um relojoeiro. Na capital gaúcha, de que tomou o nome
17
, conheceu o desenhista francês
François Thér, com quem se inicia nas artes plásticas, realizando trabalhos como
desenhista e pintor.
Foi no estúdio de um de seus professores, o pintor João de Deus, que Porto-Alegre
conheceu a desenho Desembarque da Arquiduquesa Leopoldina, do artista francês Jean-Baptiste
Debret. Encantado, decide ir para o Rio, estudar com esse mestre que viera ao Brasil com
a Missão Francesa trazida por Dom João VI. Porque ainda era menor de idade, a mãe não
permitiu a partida para a Corte. Mas em 1827, ao completar 21 anos, convence a família e
muda-se para o Rio. Admitido na primeira turma da Academia de Belas Artes, estuda com
Debret, com quem logo trava amizade e passa a ser protegido. O professor teria escrito
sobre o dedicado aluno: “Araújo Porto-Alegre deixa, portanto, de copiar para criar. Em vez
de decalque, da ampliação ou da simples cópia, ele já reproduz o modelo vivo, concebe
figuras, retrata grupos, fixa a natureza”.
Na Academia, Araújo Porto-Alegre, mesmo sendo um dos alunos mais novos, foi
dos mais ativos. Conta-se que, aborrecido por não poder trabalhar na escola fora do
horário de aulas para treinar e aperfeiçoar sua técnica, teria pedido ao imperador que
tomasse uma atitude a respeito. E Pedro I teria atendido seu pedido, ordenando à direção
da Academia de Belas Artes que permitisse a entrada dos alunos fora dos horários
estabelecidos. Porto-Alegre foi estimulado a organizar mostras de arte, expondo como
pintor e como arquiteto (LIMA, 1963: vol. 2. 717-723).
Com a idéia de viajar e conhecer a Europa, cursa também a Escola Militar e aulas
de anatomia do curso médico, além de Filosofia. Em 1831, graças a uma subscrição
promovida por Evaristo da Veiga, e à proteção dos Andradas, segue para a França como
bolsista do governo, em companhia de Debret, que regressava a seu país. Em Paris residiu
na casa de François Debret, irmão do pintor, onde conheceu grande parte dos intelectuais
da época, sendo admitido nas aulas do Barão de Gross.
Em 1834 viaja pela Europa visitando vários países, entre eles a Itália, em companhia
de outro ex-aluno de Debret, Domingos José Gonçalves de Magalhães, com quem dois
anos depois, já de volta a Paris, criou a revista Nitheroy. A publicação, com o subtítulo de
“Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes”, tinha como epigrafe “Tudo pelo Brasil e
115
para o Brasil”. Escrito em português, o periódico contou entre seus colaboradores com
Francisco de Salles Torres Homem. A revista exaltava o Brasil com a proposta de ser um
veículo para a alta cultura nacional, revelando traços do romantismo, mas não passou do
segundo número.
Em 1837, de regresso ao Brasil, Porto-Alegre é nomeado professor da Academia de
Belas-Artes e estréia com as já comentadas caricaturas soltas, satirizando Justiniano José da
Rocha. Em 1840 tornou-se pintor oficial da Corte e, em 1854, nomeado pelo imperador
Pedro II para dirigir a Academia de Belas-Artes, procurou realizar uma reforma do
currículo. Sua proposta era conciliar o ensino técnico predominante até então com uma
orientação mais artística, a fim de propagar o gosto pelas artes e de incentivar o
surgimento de uma iconografia oficial que, ao definir marcos históricos e heróis nacionais,
contribuísse para dar uma identidade à nação (VAINFAS, 2002: 351).
Chamado de “homem-tudo” por Max Fleiuss (filho do desenhista e revisteiro
Henrique Fleiuss, criador de A Semana Illustrada), Araújo Porto-Alegre “foi um dos
principais escritores de nosso primeiro Romantismo e talvez seu artista mais completo.
Pintor, arquiteto, cenógrafo, poeta, dramaturgo, ensaísta e caricaturista” (FARIA, 2003:
173), era um polivalente e trabalhou em diversas frentes, como artista, educador e
administrador. Menos conhecido no mundo da literatura, integrou o núcleo da primeira
geração de românticos e atuou na imprensa também buscando “despertar um caráter
próprio na literatura brasileira por meio da inspiração que o ambiente tropical e a ‘raça’
nativa do continente americano podiam oferecer” (VAINFAS, 2002: 351).
Capítulo 3
1831-1850
A Campainha
Quem quer; quem quer redigir
O Correio Oficial!
Paga-se bem. Todos fogem?
Nunca se viu coisa igual
O Cujo
Com três contos e seiscentos
Eu aqui’stou, meu senhor
Honra tenho e probidade
Que mais quer d´um redator?
A primeira caricatura brasileira, impressa e vendida como figurinha.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
116
Todos esses traços podem ser percebidos numa de suas obras de maior destaque, A
Lanterna Mágica – Periódico Plastico-Philosophico. Produzida em parceria com os ilustradores
Rafael Mendes de Carvalho e Lopes Cabral, que haviam sido seus alunos na Academia, a
publicação teve o primeiro número circulando em janeiro de 1844. Foi festejado pela
imprensa, sendo considerado pelo Diário do Rio de Janeiro como “o mais importante jornal
até hoje aparecido”. A revista, no entanto, teve também duração pequena: em março de
1845 circulava o último número, o 23.
A ficha catalográfica da publicação na Biblioteca Nacional é lacônica: a freqüência
do periódico é descrita como desconhecida, mas seguramente a intenção seria de uma
publicação quinzenal: em 14 meses de circulação, atingiu 23 números. A ficha apresentada
pelo Cedap-Centro de Documentação e Apoio a Pesquisa, da Faculdade de Filosofia da
Unesp em Assis, informa que a publicação seria semanal, aparecendo aos domingos – o
que deve ser um engano. Ainda segundo o Cedap, A Lanterna Mágica é “um jornal
filosófico que trata do cenário político, utilizando-se da sátira em forma de peça teatral.
Assim, os personagens e seus diálogos flagram momentos da vida política e seus
protagonistas oficiais, além de assinalar o início das publicações ilustradas com caricaturas
impressas”.
Detenhamo-nos na análise de seu primeiro número. A revista tem formato de 21 x
29 centímetros. A primeira página, ou capa, traz o desenho de uma cabeça envolta em
folhas de louro, como a de um ator (dá impressão de uma cabeça com máscara). Ao lado
direito, sob a cabeça, uma corneta. Atrás, um livro em que se pode ler “L’Inmortalité”. À
esquerda do livro, um tinteiro com a pena. Abaixo do desenho, o título em maiúsculas: “A
Lanterna Mágica”. Na linha de baixo, em caracteres menores, “periódico plástico-
philosophico”. A seguir, o número “1”.
Assim a proposta da revista é anunciada no número 1 (PR SOR 00748):
Carissimos Leitores. Não é com o intuito de especular sobre a vossa amável bolça, nem
tão pouco por amor d’esse vil metal, que os séculos apelidárão ouro, que vai comparecer
no tribunal de vossas vistas mais esta publicação.
Um gigantesco patriotismo, uma d’essas erupçoens de amor pelo bem do paiz, uma
attracção irresistível para a salvação da humanidade, uma coisa que se não pode
explicar senão com os tempos, nos obriga a emprehender esta obra classica, e este
bosquejo do seculo, que dará mais que fazer aos vindouros philosophos e estadistas
do que o morro do Castello, esse ladrão que nos furta todos os dias a viração da
barra, e que passa de anno a anno impunemente, sem achar uma alma caridosa que
o ponha de crista baixa.
A Lanterna Magica é filha de profundas convicções, é o theatro onde se representarão as
principaes scenas da nossa epoca, sem resaibos de personalidades, e sem o intuito de
fazer illusoens a este ou aquelle individuo: a scena das generalidades reinará no seu
proscenio, e seus quadros representarão sempre os mesmos individuos, os mesmos actos
revestidos somente do caracter que lhes der na oportunidade.
Faz sentido. A Lanterna Mágica se apresenta, após as duas páginas introdutórias,
como “drama em tresentos e sessenta e seis actos, representado durante a successão dos
tempos no theatro do Beco da Patuscada. A scena passa-se no Imperio do Brasil, dentro
do círculo do Zodiaco”. A linguagem busca o tom irônico, como se vê.
O autor segue a apresentação de sua revista. O protagonista das cenas será sempre
Laverno, nas palavras do apresentador “esse homem prodigioso, espécie de Mefistófeles,
de judeu errante, que anda entre nós nas praças, nos templos, nos salões dourados, no
parlamento, nas estalagens, nas lojas e nos ranchos das estradas”. Tem como companheiro
e íntimo amigo Belchior dos Passos. Humilde, o revisteiro garante: “esta publicação
haverá de melhorar muito com o andar dos tempos”.
Terminadas as duas páginas de apresentação, a revista começa seu primeiro numero.
Ou seu primeiro ato.
117
A Lanterna adota a paginação de uma coluna, o que a torna um pouco pesada, por
se assemelhar a um livro. Essa coluna única é colocada dentro de um quadro de fios
duplos, dando um aspecto de “caixa” às páginas – algo que qualquer designer hoje em dia
sabe que é marca de arquiteto e decorador, não de um comunicador visual. Em média,
cada página comporta 40 linhas de texto, que usa uma tipologia serifada: linhas largas,
portanto, que são compensadas por um entrelinhamento medianamente aberto.
O texto da revista é, na realidade, um diálogo em que Laverno discute e disputa
com Belchior dos Passos – são dois malandros espertos, sempre em busca de algum
expediente para conseguir dinheiro fácil. Na sétima página da publicação aparece o
desenho que resume toda a cena descrita.
Visualmente a publicação é pobre. Na terceira página, em que a revista começa,
após a apresentação, há no frontispício ou cabeçalho uma figura. São elementos de
desenho e arquitetura: um globo terrestre, uma âncora, compasso. Na última página, ao
Capítulo 3
1831-1850
Laverno e Belchior projetando.
Laverno diz: “O nome é sempre o mesmo, pateta, a ter-
minação faz a nacionalidade. Serei francês sendo Laverne;
russo, Lavernoff; inglês Lavernson; italiano, Lavernini ou
Lavernelli; polaco, Lavernock; alemão, von Lavernitz; holan-
dês, Van Lavernisck; egípcio, Laverma-bei; espanhol, Don
Laverno d´Alfaro, e assim por diante. Porém, não me inter-
rompas mais”.
Belchior: “Percebo, meu senhor, tu és um homem admi-
rável”.
Apresentação do nº 1 (alto à esquerda)
e duas lâminas com as peripécias
de Laverno e Belchior, as
primeiras gravuras nacionais.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
118
terminar o texto, outra vinheta mostra um livro, folhas soltas, uma lamparina, uma pena
no tinteiro e o símbolo do comércio (duas serpentes de Mercúrio envoltas num mastro).
Nesse primeiro número, Laverno propõe a Belchior ganhar dinheiro fazendo-se
passar por médicos homeopatas. Laverno usa uma fala autoritária e trata seu parceiro
como parvo. “Não prossigas, imbecil”, “Estúpido neófito”, “Pateta”, “Toleirão”, “Tu não és
senão um animal fastidioso”, é nesse tom que ele se dirige a Belchior. Este, sempre
responde com um “Tu és um homem admirável”.
Laverno expõe suas táticas, como se apresentarão, como darão seus golpes. Belchior
dos Passos, mais realista ou pessimista, pondera sobre eventuais contratempos, sobre
contramarchas. Ao longo de cinco páginas discorre o diálogo. Um exemplo:
Belch. Comprehendo. Ha somente uma pequenina difficuldade, e vem a ser que não
sabemos nem pitada de Medicina.
Lav. Não ha necessidade de sciencia, toleirão; no estado em que o immortal fundador poz
a sciencia nada é mais facil: basta saber dividir, subdividir ao infinito, e redigir um annuncio
que deixe de boca aberta o respeitavel papalvo. Annunciaremos que o Dr. Lavern...
Belch. Mas esse nome é já bastante conhecido, e tu não podes passar por estrangeiro.
Lav. O nome é sempre o mesmo, pateta, a terminação faz a nacionalidade. Serei Francez,
sendo Lavernu; Russo, Lavernoff; Inglez, Lavernson; Italiano, Lavernini ou Lavernelli;
Polaco, Laverniski; Allemão, Von Lavernitz; Hollandez, Van Lavernick; Egypcio,
Lavermud-Bei; Hespanhol, Dr. Laverno d”Alfarrache, e assim por diante, mas não me
interrompas mais (PR SOR 00748).
As aventuras e peripécias de Laverno e Belchior saíram da pena de Manuel de
Araújo Porto-Alegre, mas eram ilustradas por Rafael Mendes de Carvalho
19
. Ao longo de
23 números da A Lanterna, entre 1844 e 1845, essas figuras satirizariam políticos,
burocratas, aproveitadores, artistas, literatos, religiosos, jornalistas – os “personagens desse
drama em trezentos e sessenta e seis atos [que] se passa no Império do Brasil”. Animados
por um senso crítico que provocava a reflexão, os desenhos instigavam os leitores a pensar.
Laverno podia se passar por médico, naturalista, político ou artista, sempre
arranjando maneiras de enganar com seu cinismo. No texto A Lanterna Mágica: imagens da
malandragem, entre literatura e teatro, que preparou para o catálogo da exposição A Comédia
Urbana: de Daumier a Porto-Alegre, realizada pela Fundação Armando Álvares Penteado,
de 26 de abril a 22 de junho de 2003, em São Paulo, João Roberto Faria, professor de
Literatura Brasileira na FFLCH da Universidade de São Paulo, realiza uma minuciosa
contextualização dos 23 fascículos editados por Araújo Porto-Alegre.
Ficamos sabendo, pela leitura desse trabalho, que Porto-Alegre se familiarizou com
as lanternas mágicas, comuns em Paris durante seu estágio na capital francesa, e adota o
nome para a publicação pois aquele aparelho realizava “com o truque das lentes, o que ele
queria realizar com seu talento de pintor e escritor: projetar imagens do Rio de Janeiro que
tinha diante dos olhos” (FARIA, 2003: 174).
O que surpreende é que exatamente no mesmo ano em que A Lanterna Mágica começou
a circular, 1844, Martins Pena escreveu a comédia Os três médicos, na qual um personagem
doente é disputado por um médico alopata, o dr. Cautério, por um homeopata, o dr.
Milésimo, e por um hidropata, o dr. Aquoso. [...] Se, por um lado, Porto-Alegre e Martins
Pena tinham atrás de si uma longa tradição cômica, por outro, podiam observar e colher
na própria cidade do Rio de Janeiro o material para suas obras. Em 1844, surgia a Escola
Homeopática, com o curso em três anos, dado por professores estrangeiros, como M. Le
Boiteux, e T. Ackerman. Nesse mesmo ano, os jornais traziam artigos polêmicos sobre
essas correntes médicas... Tudo indica que o charlatanismo foi comum nesses tempos em
que os manuais de homeopatia punham a medicina ao alcance de qualquer um que
soubesse ler (FARIA, 2003: 178).
Outro dos alvos da crítica e da sátira de Porto-Alegre são os viajantes e naturalistas
119
que passavam pelo Brasil naquela quadra do século XIX. Já nos referimos a eles no
capítulo 1. Se na época dos descobrimentos e nos tempos do Brasil Colônia as “viagens
eram consideradas empreendimentos militares e expansionistas”, sendo por isso proibida
por Portugal a entrada de visitantes
20
, com a chegada da Família Real inúmeros viajantes
percorreram o Brasil e realizaram inventários de comunidades, geografia, fauna e flora
(VAINFAS, 2002: 711).
Como pondera João Roberto Faria, “entre os viajantes e naturalistas, havia quem
quisesse a fama a qualquer preço, lançando mão de estratégias desonestas para anunciar
descoberta de novas espécies, um pássaro, por exemplo” (FARIA, 2003: 181). Esses
impostores são outro dos alvos da sátira de Porto-Alegre, com Laverno convencendo
Belchior dos Passos da rentabilidade de se meterem a vender aos naturalistas viajantes
algum espécime de gato com pés de pato ou uma onça marinha.
O número 5 traz a partitura do lundo Fora o Regresso, uma referência irônica ao
político e escritor Bernardo Pereira de Vasconcelos, nome de peso no período regencial,
que começara como um liberal moderado para acabar nos braços do partido conservador,
tornando-se líder da corrente denominada “regressista”, por apoiar a centralização do
poder em torno do imperador.
Assim A Lanterna Mágica, por meio do diálogo entre os dois personagens, critica,
expõe, ridiculariza e satiriza costumes e comportamento dos tipos sociais, se distanciando
da rotina de louvação que era comum na época.
Outras revistas importantes tiveram a mão ou a colaboração de Araújo Porto-
Alegre: ele participou da criação e colaborou com a Minerva Brasiliense (1843-1845), de seu
amigo Torres Homem, e com a revista Guanabara (1849), de que foi um dos fundadores e
redator, junto com Gonçalves Dias e Joaquim Manoel Macedo. Na primeira, escreveu
respondendo às críticas e observações levianas ao Brasil, escritas pelo jornalista francês
Louis de Chavagnes, em um relato de viagem publicado na Revue des Deux Mondes
21
.
No fim de sua vida, Porto-Alegre dedicou-se à carreira diplomática na Europa,
sendo cônsul do Brasil na Prússia e em Lisboa, onde morreu, em 1879.
3.6. Um novo passo: as Marmotas de Paula Brito
Francisco Paula Brito foi, nesse período de consolidação da imprensa na primeira
metade do século XIX, o “primeiro editor digno desse nome que houve entre nós”,
segundo Machado de Assis. Até ele, o mercado editorial fora dominado por livreiros e
editores portugueses e, sobretudo, franceses. Mulato, filho do carpinteiro Jacinto Antunes
Duarte e de Maria Joaquina da Conceição Brito, nasceu em 2 de dezembro de 1809, na
então Rua do Piolho (hoje Rua da Carioca), no centro do Rio de Janeiro. Dos 6 aos 15
anos morou em Magé, interior do Rio de Janeiro, voltando à capital em 1824, em
companhia do avô, o sargento-mor Martinho Pereira de Brito, que, além de comandante
do Regimento dos Pardos, foi escultor e aluno do famoso Mestre Valentim. No Rio,
Francisco de Paula teve de abandonar os estudos cedo, aos 15 anos, para ganhar a vida.
Trabalhou como caixeiro em uma farmácia e, posteriormente, entrou como aprendiz na
Tipografia Nacional, transferindo-se depois para a empresa impressora de René Ogier.
Em 1827 foi contratado pelo recém-fundado Jornal do Commercio, propriedade do
impressor e editor francês Pierre René François Plancher de la Noé. De início trabalhou
como compositor tipográfico, assumindo mais tarde o cargo de diretor das prensas, além de
exercer as tarefas de redator, tradutor e contista. O Jornal do Commercio foi uma grande escola
para Paula Brito: ali terminou dominando todas as etapas e processos de edição,
familiarizando-se com máquinas e procedimentos mais modernos do que os equipamentos
que manuseara na Tipografia Nacional. Sobretudo, assimilou novas práticas mercadológicas
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
120
do editor francês, como dar prêmios e cupons a clientes fiéis. No trabalho, conheceu Rufina
Rodrigues da Costa, com quem se casou em 1830, tendo duas filhas.
No ano seguinte sai do Jornal do Commercio para iniciar vôo próprio. Adquire a loja de
encadernação de livros de um primo, na Praça da Constituição, atual Tiradentes. Com as
inovações que aprendera com Plancher de la Noé, consegue montar uma empresa
competitiva e se torna o primeiro editor brasileiro de importância. Em 1832, com a
tipografia equipada com uma impressora a vapor, começa a imprimir livros de autores
como Martins Pena, Nísia Floresta, Gonçalves Dias, Casemiro de Abreu, Araújo Porto-
Alegre, Machado de Assis, mas também periódicos, com a ajuda de poucos empregados,
entre eles o jovem Casemiro de Abreu. Segundo sua biógrafa Eunice Gondim, Paula Brito
foi responsável pela publicação da mais extensa série de primeiras edições de que se tem
notícia entre 1831 e 1861 (VAINFAS, 2002: 287). Editor entusiasta, publicou em 1843 o
livro O filho do pescador, de Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa, considerado o primeiro
romance do romantismo brasileiro, além dos Prelúdios, de Juvenal Galeno, e, como se viu,
deu emprego a Casimiro de Abreu (LAJOLO, 2002: 118).
A estréia de Paula Brito como revisteiro se dá com os jornais satíricos A mulher do
Simplício ou A Fluminense Exaltada, em 1832. Em 1833 lança O Homem de Cor, considerado um
dos primeiros jornais brasileiros a discutir o preconceito racial. Publicou ainda os pasquins
A Mineira no Rio de Janeiro; O Limão de Cheiro; O Trinta de Julho; O Saturnino, entre outros.
Redigido em versos, e de circulação irregular entre 1832 e 1846, A mulher do
Simplício ou A Fluminense Exaltada foi lançado em 10 de marco de 1832 pela Typographia
de Thomaz B. Hunt, e trazia como epígrafe a frase: “Fragil fez-me a Natureza, mas, com
firme opinião, he justo que a Patria escute a voz do meo coração”. A publicação seguirá,
com freqüência às vezes irregular, até 30 de abril de 1846, já então impressa na casa de
Typographia Fluminense de Brito & Co (que num segundo momento passa a se chamar
Typ. Imparcial de Brito para depois adotar, a partir de 1850, o dia de nascimento e o
nome do proprietário: Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito).
Já então seu estabelecimento havia se convertido em ponto de encontro, reunindo
intelectuais, músicos, políticos e literatos da época, fazendo concorrência a outras livrarias.
Esse ambiente de tertúlia, de conversas e de troca de informações deu origem à Sociedade
Petalógica do Rossio, assim chamada por causa das histórias nascidas ali e espalhadas como
verdade rapidamente pela sociedade carioca de então. A palavra “petalógica”, criada pelos
poetas desse grupo, deriva de “peta”, um sinônimo de mentira. Humor, música e poesia
reinavam nesses encontros promovidos por Paula Brito, com boa dose de fofoca, como
convém a um encontro petalógico. O próprio Francisco compunha alguns dos lundus que
animavam esses saraus: foi autor do Lundu da Marrequinha em parceria com Francisco Manuel
da Silva (autor da letra do hino nacional), que chegou a ser muito tocado na época.
Mas o maior sucesso desse grande revisteiro da metade do século XIX foram as
“marmotas”: A Marmota na Corte (1849), que depois passa a se chamar Marmota Fluminense
(1852-1857) e, finalmente, A Marmota (de julho de 1857 a abril de 1864). Essa terceira
fase sobreviveu ao criador, que morrera em 1861 – ano em que A Marmota publica o
folhetim de Machado de Assis: A queda que as mulheres têm pelos tolos.
As Marmotas tinham o formato tablóide, de quatro páginas, diagramação simples:
era paginada em duas colunas, separadas por um fio vertical. O diagramador utiliza
também fios duplos e fios simples horizontais para compor o cabeçalho ou logotipo e
separar as matérias. Emprega apenas uma imagem, a de uma mão apontando o dedo, na
página de abertura – que também faz as vezes de capa ao periódico (a Marmota Fluminense
dispensará a vinheta do dedo apontado).
A Marmota na Corte é a primeira de três versões da publicação: circulou de 7 de
setembro de 1849 a 30 de abril de 1852, duas vezes por semana, somando 257 edições,
com a chancela da Typografia de Paula Brito, produzida pelo editor em associação com
Próspero Ribeiro Diniz.
121
Capítulo 3
1831-1850
No alto, o logotipo da A Marmota na Corte: um dedo aponta. Acima, capa do nº 10 de A Marmota na Corte e o nº 258
da Marmota Fluminense.
A segunda versão, com o nome de Marmota Fluminense: jornal de modas e variedades,
circulará imediatamente a seguir, sem interrupção, de 4 de maio de 1852 a 30 de junho de
1857, impressa na então chamada Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito. Nessa
fase, tem apenas Paula Brito como editor, pois este se desentendera com o baiano Próspero
Ribeiro Diniz (voltaremos a isso mais adiante). A primeira edição dessa segunda fase
continua a numeração: é o exemplar de número 258 – e o periódico continua saindo duas
vezes por semana, às terças e sextas-feiras.
Na terceira fase, a publicação volta a ganhar o artigo, mas perde o qualificativo,
chamando-se apenas A Marmota. E circula de 3 de julho de 1857 a abril de 1864
22
. O que
soma quinze anos, totalizando quase 1.200 edições. Para aquele meado do século XIX foi
um fato notável.
A seguir, nos deteremos na análise dos primeiros números da primeira versão, A
Marmota na Corte.
O número 1 leva a data de “sexta-feira, 7 de setembro”. O ano é 1849. Abaixo do
título “A Marmota na Corte”, separado com fios duplos, as informações: “Publica-se às
terças e sextas-feiras, na Typ. De Paula Brito, rua dos Ourives n. 21, onde se recebem
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
122
assignatuas a 2$000 rs. por 25 numeros, pagos sempre adiantados. Números avulsos, 80
rs”. Do lado direito, os versinhos: “Eis a Marmota/ Bem variada/ P’ra ser de todos/
Sempre estimada./ Falla a verdade,/ Diz o que sente,/ Ama e respeita/ A toda gente”.
O texto da publicação é escrito em primeira pessoa, e no primeiro número o autor
se apresenta e diz a que veio:
Forte arrojo! Forte atrevimento!! (dirão por ahi os leitores). Quem é o redactor desta
folha chamada Marmota, que ahi aparece? É doutor formado em alguma academia? Não;
mas é lente jubilado na universidade da experiencia. Sabe linguas? Não; mas traduz em
portuguez o claro idioma do coração. [...] E para que escreve elle esta folha; será por
interesse? Não, que isso é uma paixão tão feia, que hoje em dia ninguém a quer seguir:
elle escreve só para servir a patria d’algibeira, que assim o exige o brio e denodo de um
cidadão liberal. [...] Já estão ao facto do motivo por que escrevo (PR SOR 00284[1]).
A seguir, utilizando metáforas culinárias, o redator dá a receita do periódico, a que
se refere como “gazeta”:
Vamos agora ao enchimento ou miollo da Gazeta. Essa folha ha de ser um guizadinho
saboroso e bem temperado de tal fórma que faça os leitores ou convidados della lambe-
rem os beiços, e pedirem repetição da dóse: ha de ser um podim de cousas boas; ha de
levar o leite da verdade, o pão da religião, os ovos das pilherias, o cidrão da lei, as passas
da poesia, a nós-moscada da critica, e por fim a canella da decência para aromatisar o
palladar das familias, e dar uma vista agradavel ao bolo. Ora pois, abram a boca e
fechem os olhos para chuparem o petisco (PR SOR 00284[1]).
No parágrafo seguinte, o redator se entusiasma e convida a todos, todos, a enviar
colaborações (Machado de Assis foi um dos “patuscos” que atendeu o convite) para a
nascente publicação. Ele se encarregaria até de corrigir, prometia, poemas toscos.
Ah! E agora, fallando serio tenho muita cousa interessante que analysar no labyrinto
desta corte. Em quanto não estou bem familiarisado com as molestias do paiz, rogo á
bella rapazeada desta cidade (que bastante vivesa tem), que me remetam à typographia
noticias interessantes que eu publicarei, e basta só darem o thema que eu farei o sermão.
Os que tiverem a veia poetica mandem todas as poesias que fizerem, ainda mesmo
incorrectas, que eu as corrigirei [...] Rapazes, patuscos, estudantes, caixeiros, todos to-
dos, cheguem para mim, ajudem-me com as informações da terra que verão como o
negocio toma caminho, crescite et multiplicameni.
Esse tom de cumplicidade com o leitor permeará a publicação, que de início não
segue uma fórmula muito fechada e repetida. Algumas notas e reportagens são
entremeadas por poesias, com forte incidência nas charadas, com que todo número é
encerrado, dando-se a resposta na edição seguinte.
A edição de número 10, por exemplo, com data de 9 de outubro de 1849, abre
com uma reportagem sobre o lançamento de três navios construídos nos estaleiros do
Visconde de Mauá (Irineu Evangelista de Sousa). O texto, sempre em primeira pessoa, é
primoroso pela fina ironia com que retrata a cerimônia do lançamento nos estaleiros.
Lançamento que teve o prestígio da presença do então jovem imperador. O texto mescla
narrativa e versos, como as quadrinhas “Trez vapores d’uma vez/ Vi cahirem sobre o
mar;/ De já termos tal progresso/ Nos devemos gloriar” e “Já temos cá no Brasil/ Quem
fabrique bom vapor./ Que serve bem nas viagens/ Para nosso Imperador!”.
Esse texto ocupa toda a primeira página dessa edição e pouco mais da metade
da primeira coluna da página 2. Essa reportagem abre com o toque intimista: “No dia
sabbado, 29 do passado, regosijei-me de ver a grandeza da valiosa fabrica de fundição
estabelecida na Ponta d’Areia, e dirigida pelo emprehendedor Rio-grandense – Irenêo
Evangelista de Sousa”. Faz, a seguir, elogio ao armador: “Esse digno patricio nosso,
123
Capítulo 3
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cheio de uma incansavel industria foi o primeiro que nos convenceu de que não
precisamos mais depender da altivez dos inglezes, os quaes, aproveitando-se até então
das nossas faltas, levavam-nos o nosso ouro, deixando seu ferro fraco e dispendioso”.
Honesto, o redator entrega: “O lugar da fundição não tem belleza, mas é próprio
para aquelle estabelecimento”. O repórter faz sua autocrítica: “A este acto, que foi
acompanhado de foguetes e musica militar, sobiu-me a fumaça patriotica à cabeça, acendi
a minha musa, e improvisei a seguinte quadra: ‘Já temos cá no Brasil/ Quem fabrique bom
vapor./ Que serve bem nas viagens/ Para nosso Imperador!’”
O melhor momento da narrativa é a descrição dos comes e bebes que se seguiram à
inauguração dos três navios:
Finda a cahida dos vapores, subiu Sua Magestade para o salão da fabrica, e, depois de
algum tempo, estendeu-se sobre uma extensa mesa um delicado jantar com todo o aceio
e profusão; na primeira mesa jantou unicamente Sua Magestade, com o ministério do
seu coração, que são as moças bonitas, e com o supremo tribunal das velhas, entre as
quaes haviam duas que comiam vorazmente; uma d’ellas repetiu perú assado quatro
vezes, comeu pastelões, laranjas e dous maracujás, rebocando por fim toda esta muralha
com uma compoteira de doce molle, que pareceu-me cocada; a velha era formidavel no
trabalho dos queixos!... a boca, apezar da falta de dentes, rodava, e mastigava por tal
fórma, que parecia um moinho de moer café! Parece-me que se ella ali se demorasse uma
semana, comia os ferros e os moldes da fabrica do Sr. Irenêo.
Esse número de A Marmota na Corte segue com um comentário sobre “A sociedade
phil-harmonica”, texto de pouco menos de uma coluna (“Tive o prazer de assistir a uma
reunião d’essa bella sociedade, digna sem duvida de grandes elogios pelo escolhido
divertimento que apresenta”). A matéria seguinte, a terceira deste exemplar, é a “Vista
scientifica e recreativa – a musica, e a cantoria”. Tão extensa como a primeira, ocupa
quase três colunas.
A quarta entrada, sob a rubrica “Pedidos”, traz um longo poema (26 quadrinhas, ou
seja, 104 linhas, ocupando duas colunas inteiras), com o título “Última defesa da rosa”,
assinado por A Mulher do Simplício – curiosamente, título de um dos periódicos publicados
anteriormente pelo impressor Francisco de Paula Brito, como já se disse.
Esse número da revista fecha com a tradicional “Charada”, que ocupa ¼ de coluna,
quase como um rodapé:
Sou uma parte no fato O útil ao agradavel;
Dos homens e das mulheres Pois, instruindo, intretenho
Força é que por mim passe Um concurso variavel.
Toda a colheita de Ceres; ____
Das arvores e dos arbustos A ella, meus bons amigos,
Eu sou sempre natural Charadistas valentões
E talvez que em outras plantas A Marmota desafia;
Não me encontrem outra igual. A ella, meus sabixões!
Tenho por fim reunir
Talvez pela simplicidade da linguagem, pela agilidade da fórmula em relatar com
ironia fatos do dia-a-dia, o certo é que a publicação caiu no gosto do público e trará
dividendos como o próprio Paula Brito escreverá na polêmica que estabelecerá com seu
sócio Próspero Diniz.
Pelo que se deduz da leitura da carta aberta publicada por Paula Brito a partir da troca
de nome da revista de A Marmota na Corte para Marmota Fluminense, jornal de modas e variedades,
o baiano Próspero Diniz havia editado um periódico com o nome A Marmota em Salvador.
Ao chegar ao Rio, se aproximara de Paula Brito e lhe propõs uma parceria e ambos
lançaram a Marmota, na versão carioca, ou seja, “na Corte”. E o que hoje seria uma questão
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
124
de registro de propriedade tornou-se motivo de chantagem por parte do baiano, que não
trabalhava, mas cobrava pontualmente sua mesada pelo uso da marca. E a cada temporada
aumentava suas exigências.
Na capa do número 258, em que troca a marca para Marmota Fluminense, Paula Brito
publica o aviso: “Aos nossos leitores e assignantes. O Snr. Prospero Diniz já não faz parte
da redacção desta folha. A Marmota Fluminense continúa a ser publicada regularmente, às
terças e sextas feiras, como o foi sempre a Marmota na Corte, mesmo no longo período em
que esteve ausente o Snr. Prospero.
Esse número 258 segue com a chamada para os figurinos: essa edição da revista
circulava com dois figurinos, um de noiva, outro de passeio campestre. “Não julgamos
necessário fazer a descripção delles, porque todo mundo sabe que uma noiva veste-se
sempre de branco; a qualidade da fazenda é que é regulada pelas posses da familia”
23
.
Ainda na primeira coluna da primeira página se inicia um ensaio sobre o mês de
maio e seus significados, a partir da mitologia romana (como se disse, esse exemplar é o
primeiro do mês de maio de 1852).
A segunda página traz dois textos: “A menina namorada ou o homem
consciencioso”, assinada por “R”, e “Correspondência”, esta assinada por “A, uma leitora.
São dois ensaios de costumes, de que destacamos uma passagem, do segundo texto:
Nós, as mulheres, somos por ventura livres para alguma cousa? [...] Os homens que de
tudo dispõem na sociedade, nos tem julgado tão materiais e tão flexiveis como uma
porção de cêra a que, com os dedos, dão a fórma que lhes apraz! Não nos concedem um
espirito, que determine as nossas vontades, nem a vontade que é filha da liberdade do
espirito! Assim, pois, para me casarem, não procuram conhecer a minha vontade, não
julgam isso essencialmente preciso; basta que elles o queiram, e que eu não tenha bastan-
te força para os contrariar.
Um texto de forte tom feminista e, o que é surpreendente, redigido quase ao estilo
com que escrevemos nos dias atuais (basta comparar com outras citações já mostradas
anteriormente nessa pesquisa).
A terceira página apresenta três textos: “Illusão d’alma”, assinado por F.G. da Silva,
e “Brincos da Infância”, um poema não assinado. Há ainda um soneto, também sem
assinatura. A quarta e última página desse exemplar é composta por outras quatro poesias,
uma sem assinatura, e as “Meus Amores”, de Cruz Junior, e “O ramalhete”, de J.A. de
Macedo. A página se encerra com a charada, e no final o crédito: Empreza Typographica
Dous de Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial.
Mas a polêmica com o antigo sócio Próspero Diniz não se encerrara. E é com um
“O Snr. Prospero e a Marmota” que Paula Brito abre a edição 260, da terça-feira 11 de
maio. Ele começa se desculpando: “Nunca pensei occupar a attenção do publico com
questões de Marmota, porém como o Snr. Prospero Diniz publicou no seu Boticário um
artigo de introdução pouco verdadeiro, permittam os leitores que eu diga alguma cousa a
respeito”.
Paula Brito, nesse texto assinado, conta a história da sua associação com o
baiano, que lhe fora recomendado por Araújo Porto-Alegre. Pela diatribe, ficamos
sabendo que a Marmota vendia bem, que fora um sucesso de público, que Prospero
Diniz colaborou pouco e sempre quis aumentos de suas retiradas, começou exigindo
60$ mensais, logo quis 80$, a seguir 100$. Que, voltando à Bahia, prometera enviar
artigos e colaborações, não cumprindo sua parte mas cobrando a remuneração. Que
em Salvador publicara a Verdadeira Marmota de Prospero Diniz, e que logo a seguir,
aproveitando-se da fama do periódico de Paula Brito, lança em Recife a Marmota
Pernambucana.
São três colunas (uma página e meia) de desabafos, em que, sem pretender realizar um
125
relatório das agruras de um editor, Francisco de Paula Brito tece comentários sobre as
sutilezas da edição, sobre os esforços para aumentar o número de assinaturas, sobre as
mudanças no gosto do público, que exige atenção do editor em descobrir novidades, sejam
as partituras, os novos figurinos “e de outras cousas que é hoje do que o publico mais gosta”.
Inflamado, nesse texto autoral, Paula Brito deixa entrever sua paixão por sua
atividade. Saber ou buscar o que o público mais gosta: esse traço explica seu sucesso como
editor – é com esse olho na resposta do público que se criam os contratos de leitura mais
duráveis e bem-sucedidos.
Outra das publicações de boa recepção criadas por esse revisteiro foi O Espelho:
revista de litteratura, modas, industria e artes, lançada em 1859 – obra de maturidade do editor,
de que falaremos no próximo capítulo. Aqui, como reforço nessa análise do olhar de
revisteiro de Paula Brito, é importante lembrar que no número 1088, da terça-feira 6 de
setembro de 1859, a Marmota distribuía grátis para seus leitores um exemplar de O Espelho,
“para que, lendo-a, vejam pelo conteúdo d’ella se lhes convem assingal-a por 3, ou por 6
mezes, na loja desta officina, Praça da Constituição n. 64. Sem a resposta de se querem ou
não subscrevel-a, não continuaremos a remessa”.
Não era pouca a coragem e o empenho da parte de um mulato de origem humilde,
que chegou a ter sócios famosos e contou com o apoio do imperador (LAJOLO, 2002:
118), pois além das revistas, que é o que nos interessa nesta pesquisa, Francisco de Paula
Brito publicou textos do teatrólogo Martins Pena e, nas páginas de suas Marmotas,
divulgou os trabalhos de jovens escritores como Joaquim Manuel de Macedo, publicado
em folhetins, os poemas de Teixeira e Souza e as primeiras peças e versos de Machado de
Assis e Gonçalves Dias (VAINFAS, 2002: 287-289).
Paula Brito faleceu em sua residência, no Campo de Sant’Anna, em 1º de dezembro
de 1861. Seu cortejo fúnebre foi um dos maiores presenciados pela Corte, prova de que
era personagem popularíssimo entre os intelectuais, músicos e artistas.
Notas do Capítulo 3
1 O visconde da Pedra Branca, ou da Pedra Parda, como o
chamava maldosamente José Bonifácio (CARVALHO, 2007:
64), rico senhor de engenho baiano formado em Coimbra, foi
o pai de Luísa Margarida Portugal de Barros, a condessa de
Barral, com quem o imperador Pedro II manteve uma longa
paixão, que produziu quase um milheiro de cartas: instrutora
das princesas Isabel e Leopoldina, ela viveu a maior parte de
sua vida na França.
2 Técnica que consistia em um desenho com lápis de cera, o
crayon, sobre pedra, a litografia possibilitou pela primeira vez
a produção de imagens coloridas a baixo custo.
3 Steinmann, no entanto, não foi o introdutor da litografia entre
nós. Segundo Orlando Ferreira, “Como se merecesse uma
espécie de reparo por ter recebido tão tarde a tipografia, o
Brasil conheceu a litografia logo depois de haver esta sido
introduzida em caráter definitivo em alguns dos mais impor-
tantes países da Europa, a França, por exemplo (1814), e
mesmo com avanço sobre outros como a Espanha (1819) e
Portugal (1824)” (FERREIRA, 1999: 313). Possivelmente um
dos integrantes da comitiva que acompanhou a chegada da
imperatriz Leopoldina, aportando no Rio em 5 de novembro
de 1817, o francês Arnaud Julien Pallière (1783-1862) trouxe
consigo a primeira aparelhagem litográfica e realizou suas
primeiras gravuras por volta de 1818. Instalara-se no Rio de
Janeiro quase dois anos depois da Missão Artística France-
sa, o que o torna um dos mais antigos artistas estrangeiros a
se fixarem no Brasil. Foi pintor da Corte, professor de dese-
nho da Academia Real Militar e, a partir de 1822, professor
de desenho e pintura em sua própria Academia de Desenho
Civil e Militar, instalada no número 72 da Rua dos Barbonios,
atual Evaristo da Veiga (FERREIRA, 1999: 315). Ali formava
novos litógrafos e desenhistas, que o ajudavam na confec-
ção de condecorações, desenho de uniformes militares, re-
tratos e mapas. Casou-se em 1822 com uma filha do arqui-
teto Grandjean de Montigny e voltou para a França em 1826.
4 O padre Januário da Cunha Barbosa nasceu no Rio em 1780
e ganhou fama como professor e orador da Capela Real. Fun-
dou, com seu colega da maçonaria Gonçalves Ledo, o
Revérbero Constitucional Fluminense (1821-1822), jornal de
importância decisiva nas discussões que levaram à procla-
mação da Independência. Formava no grupo de cor mais
nacionalista, hoje conhecido como “elite brasiliense”, em
oposição à “elite coimbrã” (cujo maior expoente foi José Bo-
nifácio de Andrada e Silva). Foi diretor da Imprensa Nacional
e um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, tendo colaborado com diversas publicações, como a
Minerva Brasiliense.
5 Deve-se supor que se trata da tradução do nome da publica-
ção estrangeira de onde foi traduzido: Jornal dos Conheci-
mentos Úteis.
6 Provavelmente a publicação era inspirada em títulos euro-
peus, como o The Instructor, de Londres, que também serviu
de modelo ao Museo Americano, publicação argentina de
1835 que traduzia artigos sobre novidades técnicas, como
aeróstato, iluminação a gás, animais, recordações de via-
gem e dados etnográficos de regiões exóticas (cf. CAVALARO,
1996: 48).
7 Utilizamos aqui o conceito corrente em desenho gráfico: a
decoração é um desenho, de animal, planta, ou arabesco,
que não guarda relação com o texto que ilustra. Ou seja, não
é uma imagem que transmita ou complete a informação dada
Capítulo 3
1831-1850
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
126
no texto, apenas faz um contraponto visual.
8 A data correta do lançamento do Museo Universal é 8 de
julho de 1837, diferentemente da citação.
9 A Impressão Régia inicia suas atividades com os prelos en-
comendados na Inglaterra e nem chegaram a ser desembar-
cados em Lisboa, vindo no mesmo barco ao Brasil. Foi com
esse equipamento que se criou nosso primeiro centro im-
pressor, a 13 de maio de 1808. No ano seguinte esse prelo
recebia o reforço de outro de madeira, construído ali mesmo
no Rio. Em 1821, dada a demanda, nove novos prelos foram
encomendados e trazidos da Inglaterra e, em 1822, outro
mais, desta vez dos Estados Unidos. Em 1821, a Impressão
Régia deu conta de 270 publicações, número que saltou para
428 um ano depois. Ao longo dos anos, seu nome foi altera-
do para Typographia Real em 1818, Typographia Régia em
1820 e Typographia Nacional em 1821. No Império, ganhou
os nomes de Typographia Nacional e Imperial (1826),
Typographia Nacional (1830) e Imprensa Nacional, a partir
de 1885.
10 Conhecido como o autor da letra do Hino da Independência
(“Já podeis, da Pátria, filhos...”), Evaristo da Veiga foi um
dos maiores jornalistas da primeira fase da construção da
nacionalidade brasileira. Redator e depois proprietário do
Aurora Fluminense, era dono de um estilo sério, em total
contraste com a prática desbocada e ofensiva da época (cf.
no capitulo anterior “2.3. Os periódicos incendiários e a afir-
mação nacional”). Esteve nos bastidores da polêmica “Re-
presentação” de 17 de março de 1831, em que 23 parla-
mentares exigiram que Dom Pedro I se retratasse pela parti-
cipação nos distúrbios da Noite das Garrafadas – e que
levaram à abdicação do monarca. Como livreiro, Evaristo
da Veiga comprou do francês João Batista Bompard um
dos estabelecimentos mais conceituados do Rio, na Rua
dos Pescadores, e que se tornou ponto de encontro de po-
líticos e escritores (cf. VAINFAS, 2002: 247).
11 Baptiste Louis Garnier, conhecido como B.L. Garnier, che-
gou a ser um personagem na cena intelectual carioca: era o
editor de Machado de Assis. Um tanto a título de gozação,
diziam na época que o B.L. de seu nome seria a abreviação
de bom ladrão.
12 Um incêndio que destruiu o acervo e o estoque levou a Uni-
versal a fechar as portas, em 1909 – seus contratos e
portfolio autoral passou para a Francisco Alves. O almanaque
sobreviveu até 1942, em mãos de outro editor, Manuel José
da Silva. Mas os tempos áureos haviam passado há muito.
13 A Livraria de Louis Mongie, como se viu acima, era um dos
estabelecimentos famosos do Rio de Janeiro nessa época,
por reunir uma espécie de clube literário (cf. LAJOLO E
ZILBERMAN, 2002: 118).
14 A morte de ídolos demonstrou ser mais lucrativa que final
de campeonato de futebol. Em 1994, quando dirigia a revis-
ta Quatro Rodas, a tragédia ocorrida com o piloto brasileiro
Ayrton Senna foi uma oportunidade ímpar de comprovar a
sanha feroz do marketing para lucrar em cima desse tipo de
desgraça. Uma publicação deficitária como a revista Grid,
da Editora Azul (subsidiária e associada da Editora Abril na
época), salvou o resultado do ano com a venda de revistas-
poster com a imagem do ídolo.
15 Jornalista e político conservador, Justiniano José da Rocha
nasceu em 1811, no Rio de Janeiro. Aos 11 anos, foi com a
família para a França, onde cursou o secundário, formando-
se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1833. Foi pro-
fessor de história e geografia no Colégio Pedro II e de direito
na Academia Militar do Rio de Janeiro. Chegou a exercer a
advocacia, mas ganhou projeção como jornalista. Em 1838
fundou os jornais Athalante e O Chronista – periódicos que
atendiam aos interesses do Partido Conservador (pelo qual
se elegeu deputado em três legislaturas) e serviam de tribu-
na para ferrenha oposição à Regência e ao governo. Ficou
famoso, pois tendo escrito veementes artigos contra o tráfi-
co de escravos, cobrando do governo medidas enérgicas
de repressão e questionando o direito de propriedade que
tinha o Estado sobre os escravos introduzidos ilegalmente
no país, admitiu, numa disputa na Câmara, haver recebido
escravo como pagamento de favores ao ministério. E tam-
bém pela nomeação para o cargo de redator do Correio
Oficial, pelo qual receberia 3.000$600, uma pequena fortu-
na na época. Foi esse o tema das duas caricaturas criadas
por Araújo Porto-Alegre, “A campainha e o cujo” e “A Rocha
Tarpéia”. Fundou outros jornais, como O Correio do Brazil
(1852), escreveu livros e traduziu romances, como os de
Alexandre Dumas, publicados em folhetins no Jornal do
Commercio (VAINFAS, 2002: 453-455) .
16 Uma das formas de morte prevista pelo código penal roma-
no era precipitar o condenado do alto da rocha Tarpéia, uma
alta escarpa da colina do Capitólio, onde ficava o Fórum e o
templo de Júpiter.
17 Já se referiu, no capítulo 1, o movimento nacionalista ocor-
rido no Brasil na época da Independência, em que as pes-
soas mudavam seus sobrenomes. Manuel José de Araújo
trocou o seu para Manuel de Araújo Pitangueira, passando
depois a usar Manuel de Araújo Porto-Alegre (Cf. VAINFAS,
2002: 513).
18 A Missão, chefiada por Joachim Lebreton, e de que faziam
parte, entre outros, os pintores Jean-Baptiste Debret e Ni-
colas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay,
Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny,
chegou ao Brasil em 16 de março de 1816. Junto com pin-
tores, escultores e arquitetos, vieram também mestres de
ofício, carpinteiros e serralheiros. Esses artistas seriam res-
ponsáveis por um importante momento formador da nossa
cultura. Poucos meses depois de a caravana ter alcançado
as novas terras, foi fundada a Escola Real das Ciências,
Artes e Ofícios. Mais tarde, seu nome foi modificado para
Academia Imperial das Belas-Artes.
19 Na verdade, como os dois conhecidos desenhos de A Cari-
catura mostram, o traço de Porto-Alegre é pobre e tosco. O
fato de haver recorrido ao lápis de seu aluno revela o bom
senso do artista polifacético.
20 Mesmo já entrado no século XIX essa proibição seguia vi-
gente. “Entre 1799 e 1804, Alexandre von Humboldt e Aimé
Bompland cruzaram a América Central e chegaram às ca-
beceiras do Orenoco, quando solicitaram, sem sucesso, per-
missão para viajar pela Amazônia”, escreve Ronald Raminelli
(VAINFAS, 2002: 713).
21 Na contextualização que realiza em seu já citado estudo,
João Roberto Faria considera que o fascículo de A Lanterna
Mágica em que Porto-Alegre satiriza os viajantes, publica-
do meses depois desse artigo aparecido na Minerva, seria
uma reelaboração de sua irritação com o relato de Louis de
Chavagnes.
22 Com a morte de Paula Brito, em 1861, a revista se torna um
tanto irregular nos três últimos anos.
23 A franqueza e o bom senso dessa observação é cativante e
contrasta radicalmente com a verborragia com que o reda-
tor de O Correio das Modas, por exemplo, teria descrito a
gravura, como se o leitor não tivesse olhos ou não soubes-
se olhar.
127
Capítulo 4
A mulher e a
ilustração entram
na redação: 1850-1865
O passado é o maior de todos os países, e há uma razão que estimula
o desejo de situar relatos no passado. Quase todo o bom
parece localizado no passado. Talvez seja uma ilusão,
mas sinto saudade por todase cada uma das épocas anteriores
a meu nascimento. E se estou livre das inibições modernas
talvez por não ter nenhuma responsabilidade pelo passado,
às vezes me sinto absolutamente envergonhada do tempo em que vivo.
Susan Sontag, En América. Buenos Aires: Alfaragua, 2003, pág. 35.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
128
1851 Revista Mensal da Sociedade
Ensaio Filosófico Paulistano
Fundador: Álvares de Azevedo
1852 Novo Correio de Modas: jornal do mundo
elegante consagrado às famílias brasileiras.
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Universal
de Laemmert, 1852-1854
Marmota Fluminense: jornal de modas
e variedades
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Dous de
Dezembro de Paula Brito 1852-1857
(462 números)
Redator: Francisco de Paula Brito.
O Jardim das Damas: periódico de
instrucção e recreio, dedicado ao bello sexo
Recife, PE: Typ. de M.F. de Faria,
1852 (13 números)
Redator: Felippe Nery Collaco
O Jornal das Senhoras: modas, litteratura,
bellas-artes, theatro e critica.
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Parisiense,
1852-1855 (209 números)
Fundadora: Violante Ataliba
Ximenes de Bivar e Velasco.
Redatores: Joanna Paula Manso de
Noronha e Cândida do Carmo
Souza Menezes
1854 A Abelha Religiosa: verdade e caridade
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Dous de
Dezembro, de Paula Brito, 1854
(7 números)
Ilustração Brasileira
Rio de Janeiro, RJ: Typ. da Viúva
Vianna Junior, 1854-1855 (9 números)
Diretor: Ernesto de Souza
e Oliveira Coutinho
L’Iride Italiana: giornale setimanale
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Americana,
1854-1856 (35 números)
Proprietário: A. Galleano Ravara.
Redator: P. Bosisio
Ilustrado por: A. Sissom, a partir de
1855
1855 O Brasil Illustrado: publicação litteraria
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de N. Lobo
Vianna & Filhos, 1855-1856
(18 números)
Redatores: Paula Candido, F. de
Paula Menezes, Cardoso de
Menezes, F.J. Bethencourt Sampaio
da Silva e F. Nunes de Souza
Revista Brasileira: jornal de litteratura,
theatros e indústria
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Dous de
Dezembro, de Paula Brito,
1855-1856 (7 números)
Redator: Francisco de P. Mendes
1856 A Abelha: semanário scientifico, industrial
e litterario
Rio de Janeiro, RJ: Empresa
Nacional do Diário, 1856
(16 números)
Revista Catholica: jornal do Instituto
Episcopal Religioso
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Americana,
de José Soares de Pinho, 1856
(2 números)
Diretor: F.M. Raposo d’Almeida.
1857 A Marmota
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Dous de
Dezembro de Paula Brito, 1857-1864
(479 números)
Redator: Francisco de Paula Brito
O Brazil Artístico: revista da sociedade
propagadora das bellas artes do Rio
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imparcial,
1857 (7 números)
Direção de Francisco Joaquim
Bittencourt da Silva
O Ensaio Philosophico Pernambucano
Recife, PE: Typ. Universal, 1857-
1859 (5 números)
Redatores: Laurentino Antonio
Moreira de Carvalho e Pergentino
Saraiva de Araújo Galvão
Revista Brazileira: jornal de sciencias,
lettras e artes
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Universal
de Laemmert, 1857-1861
(4 números)
Dirigida por Candido Baptista de
Oliveira
1858 O Universo Illustrado:
pittoresco e monumental
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Quirino
& Irmão, 1858-1859 (42 números)
Editor: Antonio J. Ferreira da Silva
1859 O Charivary Nacional
Rio de Janeiro, RJ: Empreza Nacional
do Diário, 1859 (7 números)
129
O Espelho: revista semanal de Litteratura,
modas, indústria e artes.
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de F. de Paula
Brito, 1859-1860 (18 números)
Diretor: Eleutério de Souza
Colaboradores: Machado de Assis,
Paula Brito, M. de Azevedo
Revista Homoeopathica: publicação da
Congregação Médico Homoeopathica
Fluminense
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de F. de
Paula Brito, 1859-1860 (9 números)
Redator: J.J. Rebello
1860 Espelho das Bellas: periódico litterario
Marogogipe, BA: Typ. do Gama,
1860-1861 (8 números)
O Kaleidoscopio: publicação semanal do
Instituto Acadêmico Paulistano
São Paulo, SP: Typ. Imparcial, de
J.R. de Azeredo Marques, 1860
(25 números)
Redatores: Tavares Bastos, Marques
Rodrigues, Francisco Belfort Duarte,
Carlos Galvão Bueno
A Semana Illustrada
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Pinheiros
e C., 1860-1876 (797 números).
Colaboradores: Machado de Assis,
Joaquim Nabuco.
Ilustrador: Henrique Fleiuss
1862 A Abelha: periódico da Sociedade
Pharmaceutica Brasileira
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Paula
Brito, 1862-1864 (19 números)
O Charivari
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do
Charivari, 1862 (5 números)
O Futuro: periódico litterario
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Brito &
Braga, 1862 (20 números).
Redator: Faustino Xavier de Novaes
Revista do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Quirino
& Irmão, 1862-1868 (8 números)
O Bello Sexo: periódico religioso, de
instrução e recreio, noticioso e crítico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Pipular,
1862 (6 números)
Redatora-chefe: Julia Albuquerque
Sandy Aguiar
1863 Bazar Volante
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do Bazar
Volante, 1863-1867 (188 números)
Desenhos e litografias: J. Mill e
Flumen Junius
Jornal das Famílias
Paris, Franca: Typ. de Simon Racon
e Comp., 1863-1878 (170 números)
Merrimac: publicação hedbomadaria
humorística, critica, satírica e litteraria
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Portugal e
Brasil, 1863-1864 (16 números)
Revista da Associação Tributo as Letras
São Paulo, SP: Typ. Litterária,
1863-1866 (7 números)
Revista Mensal do Ensaio Jurídico: jornal
acadêmico
Recife, PE: Typ. de M.F. de Faria e
Filho, 1863 (1 número)
Redatores: Fellipe Franco de Sá, Jose
Augusto G. Pires, Milciades F. da
Silva, Frederico Marinho de Araújo
1864 Cruzeiro do Brasil: órgão do Instituto Catholico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Quirino
& Irmão, 1864-1865 (48 números)
Diabo Coxo
Primeira publicação ilustrada da capital
paulista, circulou entre 17 de setembro
de 1864 e 31 de dezembro de 1865,
completando duas séries de 12
números. O jornal media 18 x 26
centímetros e sua impressão estava a
cargo da Tipografia e Litografia Alemã,
de Henrique Schroeder. Editado por
Angelo Agostini e Luiz Gama.
Imprensa Evangélica
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Perseverança, 1864-1891 (377 números)
O Médico do Povo na Terra de Santa
Cruz: jornal histórico, político, litterario,
scientifico e de propaganda
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Brasileira,
1864 (20 números)
Redator: A.J. de Mello Moraes
O Brasil Histórico: jornal histórico, político,
litterario, scientifico e de propaganda
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Brasileira,
1864 (268 números)
Redator: A.J. de Mello Moraes
1865 Paraguay Illustrado: jornal
pamphicoromologico, asneirotico,
burlesco e galhofeiro
Rio de Janeiro, RJ: Lith. de J.
Riscado, 1865 (13 números)
Capítulo 4
1850-1865
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
130
O J
ORNAL
DAS
S
ENHORAS
. O E
SPELHO
. A I
LLUSTRAÇÃO
B
RASILEIRA
.
A S
EMANA
I
LLUSTRADA
E
H
ENRIQUE
F
LEIUSS
:
O
NASCIMENTO
DE
UMA
ESCOLA
DE
REVISTEIROS
. A
NGELO
A
GOSTINI
EM
S
ÃO
P
AULO
:
D
IABO
C
OXO
E
C
ABRIÃO
.
O ano de 1850, dez anos passados da proclamação da maioridade de Pedro II,
marca um momento de inflexão na caminhada do país em formação. A superação da crise
regencial, a reorientação centralizadora e conservadora do governo e a conseqüente
estabilidade do Império a partir desse período encontram-se intimamente relacionadas à
economia cafeeira. As políticas agrárias da aristocracia escravocrata dão bons resultados e
moldam o cenário nacional.
Considerando que a população do município [do Rio de Janeiro] praticamente dobrou
nos anos 1821-1849, a corte agregava nessa última data, em números absolutos, a maior
concentração urbana de escravos existente no mundo desde o final do Império romano:
110 mil escravos para 266 mil habitantes. No entanto, ao contrário do que sucedia na
Antiguidade, o escravismo moderno, e particularmente o brasileiro, baseava-se na pilha-
gem de indivíduos de uma só região, de uma única raça (ALENCASTRO, 1999: 24).
A força de trabalho do negro impulsionava o progresso. Mas o tráfego, intenso até
então, será interrompido quase bruscamente, gerando um novo movimento, de
deslocamento interno da mão-de-obra escrava. Valorizada pela escassez, a força de
trabalho do negro será disputada pelas nascentes fazendas cafeeiras de São Paulo, para
onde se deslocarão negros fluminenses ou baianos. O caso do escritor e jornalista Luis
Gama, de quem se falará adiante, é apenas um ilustrativo exemplo.
Em 1850, o Brasil cedeu às pressões inglesas e aprovou a Lei Eusébio de Queiróz que
acabou com o tráfico negreiro. Em 28 de setembro de 1871 era aprovada a Lei do Ventre
Livre que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data. E no ano
de 1885 era promulgada a Lei dos Sexagenários que garantia liberdade aos escravos com
mais de 60 anos de idade (CARVALHO, 1980).
Paralelamente às medidas de contenção do tráfico negreiro, aparece em cena um
outro fator. Os navios que antes zarpavam para a Europa repletos de mercadorias como
tabaco, café e açúcar e voltavam carregados de escravos, agora trazem outros produtos
para a afluente aristocracia. A opulência das classes mais favorecidas se faz notar,
abastecida sobretudo pela Linha de Paquetes a Vapor de Liverpool, inaugurada em 1850,
e “estabelecida por conta régia de Sua Majestade Britânica”: levava exatos 28 dias para
chegar ao Rio (ALENCASTRO, 1999: 39
1
). São muitos os itens a nomear nessa fase de
abastança. Mesmo a capital do império tendo de lidar com problemas, como a falta de
saneamento básico, convivendo com os “tigres” (negros que na madrugada carregavam na
cabeça potes de dejetos para lançar ao mar) e surtos de febre amarela, o hábito de fumar
charuto e de freqüentar cafés se generaliza entre a elite (ALENCASTRO, 1999: 62).
Novas modas são lançadas para atender a essa demanda.
Também partir desse ano de 1850, os bancos, que até então só faziam transações de
depósito e desconto, lançaram-se a operações de mais longo prazo, utilizando os capitais
que o fim do tráfico de escravos havia deixado ociosos (MAURO, 1991: 61).
E uma virada na música e nas danças imperiais sucede nos anos 1850 com o
aumento das importações de pianos.
131
O Rio de Janeiro recebe nessa época carradas de bens de consumo. Possuíam-se pianos de
todo jeito. Comprados a vista, em segunda mão, por meio de crediário, no qual o vende-
dor aceitava o modelo antigo de entrada. [...] dava status, era moda. Paula Brito, o agita-
dor cultural do Império, compôs um lundu para piano que estourou na corte e nas provín-
cias, A marrequinha da iaiá (1853). “Marrequinha” era um laço do vestido amarrado na
altura das nádegas, mas também, como sugere Tinhorão, “alguma outra particularidade
anatômica sexualmente apetecível” (ALENCASTRO 1999: 45 e 50).
Há uma febre pelos médicos homeopatas (ALENCASTRO, 1999: 77): não só no
Rio de Janeiro e nas principais cidades litorâneas, como também na nova fronteira
agrícola. Eram homeopatas dois dos cinco médicos que clinicavam em Campinas em 1857.
É ainda Luiz Felipe Alencastro que nos conta: aproveitando a ansiedade gerada pela
epidemia de febre amarela, trazida em 1849 por um navio vindo de Nova Orleans, Paula
Brito faz publicidade de sua revista médica: “Febre amarela – a questão científica entre os
srs. Drs. De Simoni, Carvalho e Pereira Rego continua nos Annaes de Medicina Brasiliense”
(anúncio publicado no Jornal do Commercio de 8.11.1851).
Mas, em meio a essa efervescência, é preciso demarcar os lugares. Entre a elite, há a
disseminação de uma preferência por trajes escuros. Escreve o historiador Frédéric Mauro:
Esse gosto pelo escuro, pelas roupas à européia, com camisas de colarinho engomado e
punho rígido, ternos com colete, mesmo que sejam de alpaca leve ou de seda, estava
ligado à vontade de diferenciar-se do escravo negro e até do índio, de guardar o selo da
Europa, da civilização. Era a marca de um complexo de inferioridade inconfesso e incon-
fessável em relação ao europeu. Faz-se um esforço, aliás, para seguir as modas européias.
É de bom tom vestir-se como em Paris ou em Londres (MAURO, 1991: 41).
Em contrapartida, para marcar o lugar do “outro”, o negro não podia usar sapato:
Os documentos registram e as fotografias de época ilustram: um escravo de ganho –
dono de um pecúlio tirado da renda obtida para seu senhor no serviço de terceiros –
podia ter meios para vestir calças bem-postas, paletó de veludo, portar relógio de algibeira,
anel com pedra, chapéu-coco e até fumar charuto em vez de cachimbo. Mas tinha de
andar descalço (ALENCASTRO, 1999: 79).
É nesse Brasil marcado pela diferença entre uma elite que tudo tem e uma força
trabalhadora destituída de direitos que nos próximos anos se editarão revistas inovadoras,
como O Jornal das Senhoras. Nesse período, o parque gráfico começa a dar mostras de
exuberância. Assim, no Rio de Janeiro, essa década de 1850 começa com quatro oficinas
dedicadas à litografia, segundo mostra o Almanak Laemmerts: a de Victor Larée (instalada
em 1832), Heaton & Rensburg (1840), Ludwig & Briggs (1843), Brito & Braga (1848). Mas
em pouco tempo esse número subirá para 13, sendo as principais as de Francisco Paula
Brito (1850), Martinet (1851), Cardoso (1851), Leuzinger (1853) e a de Sisson (1855).
Combinadas com as 25 tipografias listadas pelo mesmo almanaque (e entre elas se
destacavam a antiga Typographia do Jornal do Commercio, que já fora imperial, agora de
Junio Villeneuve, e a de jornais como o Diario do Rio, Correio Mercantil, além da Imparcial de
Francisco de Paula Brito, e a Typographia do Brasil, do jornalista Justiniano José da
Rocha), elas começavam a movimentar o mercado editorial (Almanak Laemmert, 1850:
406 e 419; FERREIRA, 1994: 366). Mas esse parque gráfico ainda não é explorado em
toda a sua capacidade, o que só ocorrerá com a força das ilustrações de revistas satíricas
semanais, que se converterão duas décadas depois no maior produto da indústria gráfica
que se consolida.
Assim, quando a década chegar a seu final, em 1860, a Corte assistirá ao
surgimento do periódico semanal ilustrado que marcará o ponto alto do período, a Semana
Illustrada. A grande publicação dos anos 60, a Semana formará e refinará o gosto do leitor e
verá surgir novos artistas gráficos que depois lançarão títulos como O Mequetrefe ou O
Mosquito. Passemos ao estudo desses periódicos.
Capítulo 4
1850-1865
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
132
4.1. A mulher agora escreve: O Jornal das Senhoras
Se no Brasil do século XIX a leitura era rarefeita, para utilizar o título do livro de
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, essa escassez se fazia notar ainda mais entre as
mulheres. Poucas eram as leitoras. E mesmo entre as classes mais abastadas, que tinham
como padrão mandar os filhos varões para se tornarem doutores em Coimbra, havia
uma tradição diferente quando se tratavam das moças: a elas cabia o destino mais
prosaico de “administradoras do lar”. Segundo o cronista francês Charles d’Epilly, “uma
mulher já seria o suficiente alfabetizada se soubesse ler receitas de goiabada; mais que
isso seria perigoso”:
A elas não restava senão ocupar seus dias entre crianças, criadas, panelas e bordados.
Vez por outra podiam ir a festas e freqüentar igrejas ou teatros. Nesse contexto, as
revistas dirigidas ao público feminino vinham da França e traziam moldes, crônicas e
poesias. Donas de casa que não dominavam a língua de Madame Sevigné – e, não raro,
nem a de Eça de Queiroz – adquiriam esses periódicos e recorriam às costureiras france-
sas para que traduzissem trechos em voz alta. Passavam, assim, as tardes entre a escolha
de um modelo e a distração com poemas ou uma história edificante (EMPORIUM
BRASILIS, 1999: 28).
Já entrado o século XX, o público letrado feminino não passaria de 20% da
população (dado que é em parte posto em questão pela pesquisadora Barbara Heller, em
seu estudo sobre a seção “Jardim Fechado”, da Revista Feminina, publicação iniciada em
1914: ver HELLER 2002). Se havia 80% de mulheres analfabetas no começo do século
XX, como seria o quadro sessenta anos antes, em 1850? É certo que o público feminino já
havia sido brindado com algumas publicações. Já nos referimos a O Espelho Diamantino -
Periodico de Politica, Litteratura, Bellas Artes, Theatro e Modas, de 1827, “dedicado às senhoras
brasileiras”, sem ser exatamente um periódico feminino, como hoje se entende essa
proposta. E ao Correio das Modas, jornal crítico e litterario das modas, bailes, theatros, de 1839, e de
seu sucessor Novo Correio de Modas.
E as iniciativas voltadas para a criação de revistas destinadas à mulher aconteceram
não apenas na Corte, mas também no interior do país. Foi o caso de O Espelho das
Brazileiras, lançado em 1831, já analisado no capítulo 2. Ainda no Recife, seguiram-se o
Jornal das Variedades (1835), o Relator de Novellas (1838) e o Espelho das Bellas (1841), com a
epígrafe “Nada é belo, nada é amável, sem modéstia e sem virtude”.
Há, sem dúvida, uma atração pelo uso da palavra “espelho”: na Bahia aparece uma
publicação semanal homônima: Espelho das Bellas, periodico litterario e recreativo, publicado
pela Typographia do Gama, de Maragogipe, e que circulou entre novembro de 1860 e
junho do ano seguinte. Ainda no Recife, em 1850 surgirá O Bello Sexo, periódico litterario e
recreativo. Mensal, a revista, impressa por M.F. Faria, tem como redatores Antonio
Witruvio Pinto Bandeira e Accioly Vasconcelos.
Todas essas revistas, no entanto, ainda que dirigidas às mulheres, eram escritas e
pensadas por homens. Pois o jornalismo era profissão de homem. Apesar de as leitoras aos
poucos constituírem um segmento em expansão, como conseqüência de algumas medidas
que ao longo do Segundo Império estendem a instrução às meninas, as mulheres só
ingressariam no mundo masculino do jornalismo no final do século XIX. Mas antes disso
houve as precursoras que, descontentes com o papel e as funções sociais a elas reservadas,
passaram a utilizar a imprensa, sobretudo as revistas, como instrumento de luta por sua
emancipação.
Ainda que a causa feminista não tenha alcançado as proporções do movimento
abolicionista, a atuação de mulheres como Nísia Floresta Brasileira Augusta, Narcisa
Amália, Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco, Joanna Paula Manso de
Noronha, Júlia Lopes de Almeida, Presciliana Duarte de Almeida e, depois, Virgilina Salles
133
Pinto deixou lastro. O fato é que em 1852 aparece a primeira revista destinada às
mulheres e escrita por mulheres.
Na referência catalográfica da Biblioteca Nacional, a baiana Violante Atabalipa
Ximenes Bivar e Velasco aparece como a fundadora de O Jornal das Senhoras: modas,
litteratura, bellas-artes, theatro e crítica, tendo como redatoras as jornalistas Joanna Paula
Manso de Noronha e Cândida do Carmo Souza Menezes. Essa informação, no
entanto, é motivo de controvérsia. Muitos autores atribuem à argentina Joanna
Paula Manso de Noronha a criação do periódico, publicação semanal no formato
27x19 cm., lançado numa quinta-feira, dia 1º de janeiro de 1852 e que circulou até
dezembro de 1855. De fato, o texto de apresentação do primeiro número vem
assinado por Joanna. Mas também é certo que ela assinará quase sempre como
“redactora em chefe”.
Nascida em 1819 na Argentina, Joanna teria vindo ao Brasil com a família, que
fugia da perseguição política durante a ditadura de Juan Manuel Rosas. Segundo ela
escrevia no primeiro número, O Jornal das Senhoras vinha “para propagar a ilustração e
cooperar com todas as forças para o melhoramento social e para a emancipação moral da
mulher”. Joanna teria se separado do marido brasileiro em 1853, voltando para a
Argentina, quando Violante Atabalipa (ou Ataliba, na versão da BN) teria assumido a
direção do periódico
2
.
Filha de Diogo Soares da Silva Bivar (o redator do jornal pioneiro da Bahia, o Idade
d’Ouro do Brazil, e da primeira “revista” nacional, As Variedades ou Ensaios de Literatura),
Violante Ximenes Bivar e Velasco dirigiu O Jornal das Senhoras até 1855. Feminista
convicta, casada com o tenente João Antônio Boaventura Velasco, já em seu tempo foi
considerada como a primeira jornalista brasileira, por escritores e homens da imprensa
como Joaquim Manuel de Macedo, Afonso Costa e Barros Vidal. Violante defendia a
igualdade intelectual entre os sexos e fundou, em 1873, uma outra publicação, bastante
semelhante ao O Jornal das Senhoras, O Domingo, que circulou de 22 de novembro de 1873 a
9 de maio de 1875.
A revista O Jornal das Senhoras, considerada a primeira publicação de “corte
feminino”, feita por mulheres e para mulheres, foi impressa inicialmente na Typographia
Parisiense, depois na Typographia de Santos e Silva Junior, na Rua da Carioca nº 32 (é o
que se lê na página final da edição de 4 de abril de 1852), passando depois a contar com
os serviços da própria Typographia do Jornal das Senhoras. Trazia como subtítulo
“Modas, Litteratura, Bellas-Artes, Theatros e Critica”, que muda a partir do terceiro ano
para “Jornal da boa companhia”. Era semanal, com oito páginas, e saía com data de
domingo (o primeiro número, com data de 1º de janeiro de 1852, circulou numa quinta-
feira). Utilizou o sistema comum na época da numeração contínua. Costumava trazer
brindes para as leitoras. Como escreve Joanna Paula Manso de Noronha na apresentação
do número do domingo 4 de abril de 1952:
Á proporção que for augmentando o numero das nossas assignantes, continuadas me-
lhoras iremos dando ao nosso jornal, mesmo neste trimestre, até o levarmos á perfei-
ção que lhe desejamos. Para o mez de Julho principiaremos a dar tres figurinos por
mez, uma pessa de musica, e moldes e riscos de bordados; é de esperar também que
para esse tempo elle passe de oito paginas a ter doze cada número; trabalharemos
enfim com todos os nossos esforços para que em breve o Jornal das Senhoras attinja o
grao de perfeição que lhe compete junto das suas assignantes que o sustentão (PR
SOR 02157 [1]).
Esse mesmo número da primeira semana de abril de 1852 termina com um aviso:
Acompanha a este numero um lindo figurino de baile: para o numero seguinte daremos
um romance original, só para piano, de magnifico e melodioso effeito”.
No expediente, publicado no rodapé da última página, há os esclarecimentos:
Capítulo 4
1850-1865
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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“Publica-se todos os domingos: o primeiro numero de cada mez vae acompanhado de um
lindo figurino de melhor tom em Paris, e os outros seguintes de um engraçado lundu ou
terna modinha brasileira, romances francezes em musica, moldes e riscos de bordados”. O
preço da assinatura por três meses: “3$000 rs na Côrte e 4$000 para as Provincias” (PR
SOR 02157 [1]).
Visualmente a revista tem o logotipo trabalhado com arabescos e tipologias
desenhadas, mas nenhuma imagem. O texto é distribuído em duas colunas, separadas
com um fio fino. Utiliza o recurso, comum na época, de presentear as leitoras com lâminas
em separado, no caso imagem ou desenho com informação de moda. Havia o problema
técnico, até então, de imprimir imagem e texto simultaneamente: os textos são impressos
na tipografia, as imagens em litografia. Uma página contendo ao mesmo tempo texto e
ilustração era um desafio a ser resolvido quase duas décadas depois. Assim, revistas
ilustradas como Mosquito, Semana Illustrada e a Revista Illustrada usarão o artifício da lâmina
impressa em tipografia de um lado e litografia no outro, criando o modelo padrão seguido
pelas semanais ilustradas da segunda metade do século XIX: as páginas 1, 4-5 e 8 com
imagem, e as 2-3, 6-7 com texto, somando as oito páginas.
É assim que a “redactora em chefe” Joanna Paula apresenta o periódico, em seu
primeiro número, no dia 1º de janeiro de 1852:
Redigir um jornal é para muitos litteratos o apogeo da suprema felicidade, já sou Redactor,
esta frazezinha dita com seus botões faz crescer dous palmos a qualquer indivíduo. No
circulo illustrado o Redactor é sempre recebido com certo prestigio de homem que em
letra de imprensa póde dizer muita coisa, propicia ou fatal a alguem. [...] Ora pois, uma
Capa do nº 1 de
O Jornal das Senhoras,
uma revista para
mulheres e escrita
pelas primeiras
redatoras brasileiras.
135
Capítulo 4
1850-1865
Senhora a testa da redacção de um jornal! Que bicho de sete cabeças será? Comtudo em
França, em Inglaterra, nos Estados-Unidos, em Portugal mesmo, os exemplos abundão
de Senhoras dedicadas á litteratura collaborando differentes jornaes [...] Ora! não póde
ser. A sociedade do Rio de Janeiro principalmente, a Côrte e Capital do Imperio, Metropoli
do sul d’America, acolherá de certo com satisfacção e sympatia O J
ORNAL DAS SENHORAS
redigido por uma Senhora mesma: por uma americana que, senão possue talentos, pelo
menos tem a vontade e o dezejo de propagar a illustração, e cooperar com todas as suas
forças para o melhoramento social e para a emancipação moral da mulher” (PR SOR
02157 [1]).
Como se compunha um número regular da revista? A linguagem busca ser
intimista. A leitora é o tempo todo tratada como “queridas leitoras”. Mas algumas
introduções se tornam pesadas, pelo excesso de idas e vindas, de uma “certa frescura
feminina” que enche linhas e não diz nada.
Vejamos a seguir o que a publicação oferece em um número, pagina a página.
Tome-se como exemplo o número 14, que circulou no domingo 4 de abril, de 1852.
A primeira página, ou capa, é ocupada, na metade superior, pelo título e subtítulo
da publicação e pela apresentação da redatora, na metade inferior. Esse texto, “Às nossas
assignantes”, é assinado por Joanna Manso de Noronha.
A segunda página traz a seção de “Modas”, que ocupa quase totalmente as duas
colunas. A “reportagem de moda”, não assinada, inicia com um texto um tanto errático, em
que a redatora lembra das brincadeiras do 1º de abril, o dia da mentira. Meia coluna depois
desse longo nariz-de-cera, ela entra no assunto: abril é o mês da estréia dos bailes, sendo o
mais importante deles o Baile do Cassino. E para essa ocasião a publicação traz um figurino.
A redatora deixa o tom repetitivo e etéreo e entra no tema dos bailes (e fala como se todas as
suas leitoras vivessem e participassem da vida social do Rio de Janeiro, a “Corte”):
O primeiro [baile] que se nos apresenta é por certo o aristocratico e ostentoso Cassino;
quantos olhares já não se terão voltado cheios de saudades, para esse recinto inebriante,
do luxo, da elegancia e da belleza... quantos palpitantes corações não terão a esta hora já
promettido uma ou duas contradanças – para o baile do Cassino... [...] É pois para este
baile tentador que eu vos offereço o presente figurino, que nos chegou de Paris expressa-
mente para este fim. Elle foi copiado com todo o esmero do próprio original que mais
distincto se tornou nos salões parisienses; e assim como este, outros vos irei apresentan-
do dignos de toda a vossa attenção, e que effectivamente auxiliarão o vosso bom gosto
na preferencia e escolha dos toilettes. [...]
Ora, notai bem, minhas queridas leitoras, a fazenda especial e a côr desse vestido que
representa a estampa, não o achais tão lindo? Reparai nos enfeites: que distincção! Esses
cinco folhos, alargando progressivamente de cima para baixo, que circundão a saia com
uma guarnição bordada de rosas escarlates, cuja côr viva acompanha as da mesma guar-
nição de berthe e das mangas, que brilhante effeito que produz sobre o fundo verde-
claro. Aquella delicada camisinha, que guarda a abertura da berthe na elegante fôrma
que descreve, como está bem empregada; Reparai nas mangas curtas: ellas são totalmen-
te largas, e depois um pouco fechadas por pregas soltas formadas em cima, na cava; as
submangas são justas, deixando apenas apparecer duas ordens de estreitos fofinhos, que
dão ao braço uma graça toda faceira e caprichosa. O penteado é aquelle que entre todos
mais primou nos salões parisienses neste último inverno; peço-vos, queridas leitoras,
que noteis a simplicidade desse penteado, a par de sua elegância [...](PR SOR 02157 [1]).
As dez últimas linhas da segunda coluna são usadas para introduzir a matéria
seguinte: “Amor e ortographia”, que ocupará quase toda a página seguinte, que é a terceira
desse número.
Com o subtítulo “Episódio domestico, referido por uma joven itaguahiense”, o
relato Amor e Ortografia conta uma história singela com ensinamento moral e é assinado
por uma leitora de Itaguaí, que se identifica como Adelaide. Em resumo, esse texto diz que
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Reprodução das oito primeiras páginas da edição nº 14, domingo, 4 de abril de 1852.
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Capítulo 4
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as mulheres ainda padecem as inconveniências da ignorância e da falta de formação e
ilustração. Foi assim o trágico episódio que aconteceu com Rosinha, moça bonita e
considerada um bom partido, filha de uma família abastada que vivia na vila de Itaguaí,
por volta de 1827. Embora não fosse costume aprender a ler e escrever naquela família de
posses, Rosinha aprendera os rudimentos com um tio, que fora vigário na cidade de
Guaratinguetá. Acontece que a certa altura Julio, um rapaz de boa família, também de
posses, vem passar uma temporada com a família de Rosinha e os dois se apaixonam. Com
o consentimento da família de ambos, começam a namorar. A leitora Adelaide relata:
“Não posso referir bem as suas primeiras confissões, nem relatar minuciosamente todas
as phases deste amor casto e noviço; sei somente que Rosinha confessou a Julio que lhe
seria agradavel dar-lhe seu coração e sua mão, uma vez que obtivesse consentimento de
seus pais, o que com effeito foi obtido. Tratado o casamento entre as famílias, Julio e
Rosinha erão por todos considerados como já desposados” (PR SOR 02157 [1]).
Mas Julio tem de retornar à cidade e terminar os estudos. Na despedida, Rosinha
lhe pede que não a troque por outra. Ao chegar à cidade, Julio se apressa em escrever, em
papel perfumado, suas juras de amor. Quando chega a carta, Rosinha sai correndo, se
tranca em seu quarto para ler a missiva.
E cai em prantos ao ler: “Preferir na tua ausencia outra mulher, nunca ser teu fiel
esposo, é e será sempre o meu mais querido desejo. – Julio”.
Cria-se uma tremenda confusão, a menina fica inconsolável, o casamento é
cancelado, o pai de Rosinha a casa rapidamente com outro rapaz da vizinhança, sem
brilho e sem fortuna. Tudo sem que Julio seja informado.
Ao final se desfaz o equívoco quando tempos depois o antigo noivo regressa e
encontra Rosinha casada. Julio na realidade apenas reforçara suas boas intenções, na carta
de amor enviada, escrevendo: “Preferir na tua ausência outra mulher? Nunca! Ser teu fiel
esposo é e será sempre o meu mais querido desejo. – Julio”.
A pouca instrução de Rosinha lhe acarretou o infortúnio de se casar com um rapaz
feio, pobre, e que não a fez feliz.
“Tal é, leitoras, um dos inconvenientes da ignorância no nosso sexo”, conclui a
leitora Adelaide, transmitindo assim uma lição: é importante aprender a ler, pois, por não
dominar a leitura, Rosinha se deu muito mal.
No final da segunda coluna da página 3 começa o artigo seguinte, um breve
registro. “Asylo de Santa Tereza” dá notícia da abertura de uma creche para órfãos, criada
por suas majestades o imperador e a imperatriz, que se chamava Tereza Cristina.
Na 14ª linha da página 4, há o início da seguinte matéria, um largo relato de 2
colunas e meia, com trecho de um diário de viagem. Esse texto, “Recordação de viagem –
Casa de refúgio para os meninos e meninas pobres no Estado da Pensilvânia”, conta a
visita realizada pela escritora (o artigo não é assinado) a uma instituição de cuidado de
menores nos Estados Unidos. A autora visita refeitórios, dormitórios, salas de ginástica,
atividades nas oficinas e ofícios (entre eles uma tipografia). Há na linguagem entusiasmada
um tom claramente americanófilo, como se pode perceber neste trecho:
Ás 5 horas da tarde o sino chamou os trabalhadores fóra das officinas; mas ninguem sai
sem arrumar, sem varrer, sem deixar cada objeto no logar marcado; uma vez isto feito,
principia a lavagem do rosto e das mãos; o vestir-se, pentear-se e preparar-se para a ceia.
[...] Na América do Norte nunca vimos trabalhador algum, por muito ordinario que
fosse, que se sentasse á mesa sujo ou mal arranjado. Os Americanos são limpos por
costume, e nesse ponto todos possuem a mesma educação. [...] Depois dos preparativos
do aceio, formarão-se em columna, e ao tinir da campainha do director, desfilarão, e
sempre debaixo de ordem militar entrarão no refeitorio. Ali, depois de curta oração, os
mestres derão parte do trabalho de seus aprendizes. Os que tinhão cumprido com as
139
suas obrigações, além de receberem do director algumas palavras de encorajamento, recebião
também dobrada ração. Os mal comportados erão, pelo contrario, reprehendidos e priva-
dos da ceia, com obrigação de servir em pé aos seus companheiros. Assim vai, á par da
recompensa, o castigo, marcando distintamente aos meninos as duas sendas da vida – a
senda do bem e a senda do mal (PR SOR 02157 [1]).
O relato termina na segunda metade da coluna 1 da página 5. Uma poesia de 8
quadrinhas vem a seguir. A “Poesia a uma joven paulistana”, assinada por Salomon, é
bastante pobre. As oito quadras rimam, quase o tempo todo, Brazil com Gentil.
Alvo cysne de candidas penas/ Do seu meigo Tiété senhoril
Vem pairando nas azas serenas/ Ergue o collo de neve gentil
Deixa os lagos da patria tão cara,/ Deixa as ribas do sul do Brazil;
E nas plagas do grão Guanabara/ Vem mostrar-se fagueiro gentil
Doce, meiga, gentil açucena/ Transportada do sul do Brazil;
Embalada na haste serena/ Tão saudosa da patria gentil.
O restante dessa página 5 é completado por “Pensamentos”: 7 pequenas frases sobre
orgulho, egoísmo, amar e não ser amado, caridade, resignação: “O egoista não sente senão
os seus males: os corações caritativos sentem mais os males alheios que os próprios”;
“quando a humanidade soffre, o soccorrel-a é uma obrigação, assim como a indifferença é
um crime”.
A página 6 apresenta pequeno texto sobre um hospício francês, e na metade da
primeira coluna começa a longa história de Simão e Miguel, no conto “Mistérios del
Plata”, que é continuação do número anterior, a edição 13.
É o relato de um soldado, Miguel, que acaba de assassinar um casal e seu filho por
ordem do ditador Rosas. Simão é um velho lanceiro que lutou ao lado do general San
Martín, o “libertador”da Argentina. Referências a nomes e fatos da história argentina
abundam: Belgrano, Alsina, Balcarce, a revolução de 25 de Maio, os unitários e os
federais. Difícil imaginar que uma leitora carioca daquela época estivesse tão familiarizada
com todo esse repertório de heróis do país vizinho. Mais fácil entender isso como uma
A descrição da estampa esclarece: trata-se de uma toilette de Soirée de verão (esquerda).
Capítulo 4
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O SÉCULO XIX
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escorregadela da “redactora em chefe”, a argentina Joanna Paula Manso de Noronha. Por
transitar com desenvoltura entre esses personagens da história de seu país, ela não pensou
nas leitoras, que certamente não sabiam quem foi Alsina, Balcarce ou Belgrano, pais da
pátria argentina.
Um fato grave, digamos, sobretudo porque o relato ocupa todo o restante da
página 6, a página 7 inteira e ¾ da página 8 (a última página desse número da revista).
Ao final, o aviso: essa história continuará ainda no próximo número. Ou seja, a leitora
acompanharia os choros, abraços compungidos dos dois guerreiros, o jovem Miguel e o
velho Simão, ao menos por mais uma edição. Uma falha no “contrato de leitura”: a
editora não buscou um folhetim que servisse de espelho a suas leitoras, atendendo a
seus interesses.
O Jornal das Senhoras circulou por quatro anos: terminou em dezembro de 1855.
Teve o importante papel de ser uma publicação pioneira, com um corpo de redatoras
mulheres. Mas seria incorreto atribuir-lhe um discurso feminista, ao menos como essa
expressão foi entendida depois. Não era essa a preocupação de Violante Ximenes de Bivar
e Velasco, de Joanna Paula Manso de Noronha ou de Cândida do Carmo Souza Menezes,
as principais redatoras, quando falam em emancipação moral. O que elas lutavam era por
um aperfeiçoamento cultural da mulher, para que, estudando e ocupando mais espaços,
ela pudesse exercer melhor seu múnus de mãe e esposa. Esse conceito permeia quase
todos os números do periódico: uma mulher instruída para formar filhos e futuros
cidadãos melhores. Pois uma moça de poucos conhecimentos pode até perder um bom
marido – como aconteceu com Rosinha.
4.2. Elas continuam com as cartas: O Espelho
O sucesso do Jornal das Senhoras serviu como
alavanca para que outras iniciativas surgissem.
Como o relançamento, pela casa impressora de
Laemmerts, de seu Correio das Modas, que deixara de
circular em 1840. Como se disse acima, a publicação
voltou em março de 1852, em formato maior e com
o nome de Novo Correio de Modas, “jornal do mundo
elegante consagrado às famílias brasileiras”. Circulou
até outubro de 1854. Com esse filão aberto aparece,
em 1856, o Recreio do Bello Sexo, com o subtítulo de
“modas, litteratura, bellas-artes e theatro”. E
Francisco de Paula Brito lança seu O Espelho: Revista
de litteratura, modas, industria e artes, que circulará entre
4 de setembro de 1859 e 1 de janeiro de 1860,
somando dezoito números. E em Campanha,
pequena cidade de Minas Gerais, a professora
Francisca Senhorinha da Motta Diniz lança, no ano
de 1873, O Sexo Feminino – de que falaremos no
próximo capítulo.
Já se comentou o fascínio que a metáfora do
espelho exerceu sobre a imprensa – e isso ocorreu
em escala mundial. Aqui, tivemos diversas
publicações com essa palavra no título e é comum
que se confundam a publicação lançada por Paula
Brito em 1859 com outro periódico saído da
Imprensa Nacional e que circulou quase quarenta
141
anos anos (entre 1821 e 1823), somando quase duas centenas de edições. O Espelho de
1821 tinha como redator o “único jornalista profissional do Rio de Janeiro”, ensina
Isabel Lustosa, “o coronel Ferreira de Araújo”, ex-redator da Gazeta e de O Patriota
(LUSTOSA, 2000: 172). Foi nesse Espelho que Pedro I publicou, em 10 de janeiro de
1823, o artigo “O calmante da e no Malagueta”, virulento ataque contra o jornalista
português Luis Augusto May (editor da Malagueta), considerado por Isabel Lustosa
“notável peça jornalística, talvez única no seu estilo publicada no Brasil” (LUSTOSA,
2000: 305). A autora se refere à proporção das baixarias e ofensas pessoais ali
publicadas (ver capítulo 2.3: “Os periódicos incendiários”).
Mas voltemos a O Espelho de Paula Brito, de 1859. Com o subtítulo de “revista de
litteratura, modas, industria e artes”, tinha como diretor e redator chefe E. Eleuterio de
Sousa e já em seu primeiro número se apresentou como uma revista de cultura destinada
ao público em geral, mas em especial às mulheres. No “Prospecto” com que abre seu
primeiro número, de 4 de setembro de 1859, o redator escreve:
Não foi sem havermos profundamente reflectido que nos resolvemos a publicar o Espe-
lho. [...] Por ora nada mais promettemos do que a nossa boa vontade para fazermos com
que esta revista tenha a maior circulação possivel. O meio é somente um: tornal-a varia-
da, mas de uma variedade que deleite e instrua, que moralise e sirva de recreio quer nos
salões do rico, como no tugurio do pobre.
Para esse fim temos em vista a publicação dos romances originaes ou traduzidos, que
nos parecerem mais dignos de ser publicados, artigos sobre litteratura, industria e artes,
poesias, e tudo quanto possa interessar ao nosso publico e especialmente ao bello sexo.
Tambem publicaremos o que de novo apparecer sobre modas e opportunamente dare-
mos os mais modernos figurinos, que de Paris mandaremos vir, e bem assim retratos e
gravuras (PR SOR 03126 [1]).
É patente a proposta de uma publicação cultural com apelo entre as leitoras. E se
nota o olhar revisteiro de Paula Brito ao acenar com o apelo dos figurinos.
Uma análise do número 16, publicado em 18 de dezembro de 1859, nos dá conta de
que a revista, de 12 páginas, era impressa na Typografia Americana de José Soares de
Pinho, da Rua da Alfândega 197. Um formato que deveria prever lâminas com imagens de
moda. A revista é impressa em duas colunas, com fios separando-as. Um fio duplo no alto
dá unidade à página. Esse número 16 abre com um texto “Gralhas sociais” assinado por
Gil. Segue a oitava entrega do folhetim O testamento do Sr. Chauvelin, romance de Alexandre
Dumas, que continuará no número seguinte. Na página 4, sob a epígrafe “Curiosidades
dos tempos antigos e modernos”, a leitora do periódico fica sabendo sobre a Estátua de
Pedro o Grande, da Rússia.
Segue-se uma “História da Dansa”, indo da mitologia e da Grécia antiga até os
tempos de Catarina de Medicis (ela teria dado o primeiro baile no Louvre, em 1581) e
Henrique IV, que “gostava tanto da dansa que obrigava seu ministro Sully a dansar com
elle”. O articulista (que não assina o texto) promete para a edição seguinte tratar das
diferentes danças do passado.
Fala-se a seguir sobre “As cartas”, discorrendo sobre cartas de jogar. O artigo não
deve ter sido revisado e dá ocasião a trechos divertidos como este: “O autor do Gulden
Spiel, impresso em 1472 em Ausgbourg, affirma, sem provar, que as cartas foram
introduzidas na Allemanha em 1830” (provavelmente o correto seria 1430). Ao final de
duas longas colunas, a leitora ficou sem saber a que vinha o artigo – que nem tem o
esperado tom moralista, apenas levanta uma série de dados um tanto desconexos.
A seguir, “O collar de perolas” traça o perfil de “characteres e retratos de mulheres
celebres”. Nessa edição a focalizada é Herminia D’Armor. Em duas páginas (quatro
colunas), o texto apresenta, em forma de diálogo entre o conde D’Armor e o jovem
escritor Meriadec, considerações sobre o velho regime e as aspirações do escritor:
Capítulo 4
1850-1865
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
142
O jogo de 12 páginas do nº 16 de O Espelho, de 18 de dezembro de 1859.
– Si ainda estivessemos no começo do mundo, senhor conde, a pediriamos a Deus; mas
agora, o que fazer? Não pedimos muito; queremos tão sómente a igualdade civil, uma
representação perfeita da nação, uma divisão igual dos impostos e dos empregos publicos,
emfim queremos que ninguem seja excluido dos cargos e honras, cujas portas uma
genealogia pretende fechar ao merito.
– O senhor parece ignorar que a nobresa gosa de certas isempções conquistadas pelo
sangue que derrama pelo paiz e pelo serviço na guerra e na corte (PR SOR 03126 [1]).
Ao final da conversa, que termina sem acordo, o jovem Meriadec deixa o gabinete
do conde e se encontra com Herminia: “uma mulher de rara formosura, sahindo de uma
sala contigua e lançando-se ao encontro do mancebo com o seio anhelante e as mãos
juntas supplicou-lhe que esperasse”. Apenas no próximo número a leitora ficará sabendo
143
Capítulo 4
1850-1865
algo mais palpável sobre a que seria a mulher perfilada pela revista. Era ela, afinal, o tema
de “O collar de perolas”.
A seguir, na página 9, a “Revista de Theatros” traz a crítica das peças em cartaz. O
Gymnasio Dramatico apresentava “A vendedora de perus” e “Dous Mundos”, e o São
Januário tinha em cartaz “Anjo Maria” e “Os filhos de Adão e Eva”. A resenha dos quatro
espetáculos mostra tarimba por parte do autor. Comenta o texto a atuação dos atores, o
material cênico – em contraste com o que foi o tom da publicação até aqui:
As duas figuras salientes [se refere à peça Os filhos de Adão e Eva] são o Sr. Vasques e a Sra.
D. Manoela. O sr. Vasques caracterisou-se com precisão e gosto, e sustentou o seu papel
de corcunda. Tem futuro, não o deixe perder como alguns outros, nas doidices do tabla-
do. De passagem lhe aconselho, menos movimentos nas suas scenas mudas do segundo
acto; atenúa assim o effeito que devem produzir as outras personagens em seus dialogos.
A Sra. D. Manoela transfigurou-se; fez de Marieta, o vulto concebido pelo autor, um
silpho pela vivesa, pelos movimentos graciosos, pela volubilidade da conversa, pela refle-
xão pueril de uma criança... (PR SOR 03126 [1]).
As iniciais do autor estão borradas, mas pode ser R-as ou M-as. Seria Machado de
Assis o autor dessa deliciosa crítica? De fato, é dele o poema “Travessa”, que abre a seção
final da revista: “Ai, por Deus, por vida minha, como és travessa e louquinha! Gosto de ti
– gosto tanto dessa tua travessura, que não déra o meu encanto, que não déra o meu
gostar, nem por estrellas do céu, nem por perolas do mar”...
Seguem as poesias de Ernesto Cirrão (“Pois sim...”), de Bittencourt da Silva
(“Recordação”) e de Fragoso (“Rosa secca”), fechando esse número 16 de O Espelho.
Não admira que essa publicação – saída do núcleo editorial de Paula Brito,
chamado por Alencastro, como se viu, de “agitador cultural do império” – tenha tido vida
curta, sem muito sucesso. Mesmo publicando romances de Dumas ou histórias
fasciculadas como “A hospitalidade no Brasil, impressões de uma viagem a Minas”, ou
dando como brinde partituras como a “Polca fascinante”, de L.J. Curvêllo (número 5), ao
lado de poemas de Casimiro de Abreu ou Machado de Assis, textos de Eleutério de Souza,
Francisco Queiroz Regadas, a revista não conseguiu sucesso. Em algum momento,
folheando seus exemplares, fica a impressão de que O Espelho criou um entretecido de
histórias, relatos que continuam de número a número, em que o folhetim “A dama dos
cravos vermelhos” convive com “O testamento do Sr. Chauvelin” (iniciada no número 5,
essa história não terá terminado quando a revista deixa de circular). Parece que Francisco
de Paula Brito (quem, como se viu, buscava dar ao leitor o que este queria) atirava para
tudo quanto é lado. Mas que neste caso não acertou o alvo. A revista fechou ao chegar à
sua 18ª edição.
4.3. A hora e a vez do traço: A Illustração Brasileira
Há publicações que marcam novos caminhos, abrem trilhas. O Museo Universal
(1837) e a Lanterna Mágica (1844) descortinaram o mundo da imagem e da ilustração, num
veio que foi seguido por publicações como Gabinete de Leituras, Serões das Familias Brazileiras
(1837), Ostensor Brazileiro (1845), Museo Pittoresco, Historico e Litterario (1848) ou Illustração
Brasileira (1854). Mesmo algumas publicações de corte mais erudito foram se adequando a
esse novo modelo, passando a incluir imagens ou amenidades (EMPORIUM BRASILIS,
1999: 34). Teria sido o caso, por exemplo, das revistas Minerva Brasiliense, Íris, Guanabara.
Em artes gráficas, a formação de mão-de-obra, de artesãos, é trabalho lento, que
requer um tempo de gestação e amadurecimento. Assim, ao chegar a década de 50, os
alunos que aprenderam com Araújo Porto Alegre na Academia de Belas Artes ou os
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
144
aprendizes que estagiaram com Francisco de Paula Brito e nas muitas gráficas que
funcionavam no Rio de Janeiro já estavam maduros para se lançar a novas empreitadas.
Ausentes das revistas durante algum tempo, as caricaturas reapareceriam na Marmota
Fluminense em 1852, embora só em poucos números. Passados dois anos, elas res-
surgiriam na Ilustração Brasileira, atribuídas ao artista plástico François René Moreau.
Em 1855 o litógrafo Sebastien Auguste Sisson faria suas incursões nas revistas
L’Iride Italiana e O Brasil Ilustrado. Fechando a década, foi lançada Charivari National,
que persistiu de julho a setembro de 1859, publicando caricaturas anônimas. Com
exceção de Sisson, que deu certa continuidade à veiculação de caricaturas nas pá-
ginas do Brasil Ilustrado, as demais experiências foram esporádicas (EMPORIUM
BRASILIS, 1999: 36).
Vamos nos deter na análise da Illustração Brasileira, e de seu exemplar número 1, que
circulou em fevereiro de 1854. Tem na capa a palavra “ilustração” grafada com “ll”, mas
brasileira sem o “z” – embora no cabeçalho das lâminas que apresentam as figuras o
“brazileira” do nome da publicação apareça com “z” – sinal de que na época a grafia
estava em mutação. Mas o certo é que essa publicação inaugura uma série de títulos em
que a palavra ilustração designa periódico com imagens. Haverá outras publicações com
título idêntico: a Illustração Brasileira, jornal encyclopédico, de 1861; a Illustração Brasileira, de
Henrique Fleiuss, de 1876; a Illustração Brasileira, da Editora O Malho, que circulará de
1901 a 1958 e que teve entre seus cronistas Mario de Andrade. Há ainda A Illustração do
Brazil, lançada por Charles de Vivaldi em 29 de julho de 1876, a Illustração Pelotense e outras
tantas que se disseminaram pelo país afora. Sem falar das duas revistas semanais ilustradas
mais importantes, a Semana Illustrada, de Henrique Fleiuss, e depois a Revista Illustrada, de
Angelo Agostini.
Há pouca informação sobre
essa Illustração Brasileira, de 1854.
Quem assina o editorial é Ernesto
de Sousa e Oliveira Coutinho, que
teria sido filho natural dos tempos
de solteiro de Aureliano Sousa e
Oliveira Coutinho, o Visconde de
Sepetiba – e um dos fundadores do
Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, deputado e senador,
ministro, presidente de província
(Aureliano Coutinho foi o quarto
presidente da Província de São
Paulo). Cuidou do filho natural,
Ernesto, que se formou em
medicina.
Capa do nº 1 da
Illustração Brasileira,
de fevereiro de 1854:
vista da Baía da Guanabara.
145
Capítulo 4
1850-1865
No alto, as figuras do
jovem imperador e de
Dona Theresa Christina.
Mas a homenageada é a irmã
mais velha do monarca,
Maria da Glória, rainha de
Portugal — por seu falecimento.
À direita, as exéquias na Igreja
de São Francisco de Paula, no Rio.
Litografias de Heaton & Rensburg.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
146
O filho certamente partilhava com o pai de idéias conservadoras e monarquistas.
A leitura do exemplar de lançamento da Illustração Brasileira mostra uma publicação
francamente favorável à monarquia. Escreve o redator, na terceira página de sua
“introdução”:
Ora, cada systema de governo tem suas convenções: o governo verdadei-
ramente monarchico repousa sobre esta: o príncipe é a imagem viva da
patria e nesse caso o amor pelo principe é uma virtude. O príncipe é a
patria personificada [...] bem sabemos que sob o sceptro das antigas
monarchias populares é que poderemos sómente encontrar: - liberdade,
gloria e ordem (PR SOR 02338 [1]).
A essa introdução segue-se um perfil. A figura escolhida do primeiro número é
S.M. Fidelíssima, a Sra. D. Maria II de Portugal. Explica-se: a rainha de Portugal havia
falecido e a revista abre seis páginas, duas delas com gravuras, para falar da rainha,
nascida no Rio de Janeiro e irmã mais velha de Pedro II.
Dona Maria da Glória, a Maria II de Portugal e Algarves, era a filha primogênita
de Dom Pedro I e Dona Leopoldina e nascera no Rio de Janeiro a 4 de abril de 1819.
Uma rainha carioca, portanto. A revista conta, em tom de panegírico, as andanças da
jovem, os muitos filhos que teve com o príncipe Fernando Augusto de Saxe-Coburg e
Gotha, primo do príncipe Alberto, marido da todo-poderosa rainha Vitória da
Inglaterra e soberana de meio mundo naquele 1854.
As gravuras utilizadas pela revista nesse número – uma imagem de D. Pedro II,
outra da imperatriz Theresa Cristina, além da figura de Dona Maria II e uma cena das
exéquias celebradas em sua memória pela colônia portuguesa do Rio de Janeiro na
Igreja de São Francisco de Paula – são originais da Litografia de Heaton e Rensburg –
a maior e mais famosa casa litográfica do Rio de então. Para ela trabalharam artistas
como Auguste Sisson ou os irmãos Louis-Auguste e François-René Moreau, sendo este
possivelmente o autor das gravuras publicadas pela revista.
Entre as seis páginas de homenagem à soberana defunta há um longo poema
assinado pelo redator Ernesto de Souza e Oliveira Coutinho (que na assinatura da
poesia grafa o Souza com “z”, quando assinara a abertura da revista dom “s”). Há
um segundo poema, “Ao passamento”, assinado por Francisco Moniz Barreto,
“natural da Bahia”.
Terminada a homenagem, a revista entra na seção “Revista Scientifica”,
publicando o que poderíamos chamar de uma miscelânea: de princípios da essência do
thimo (o popular tomilho) aos nivelamentos contraditórios do istmo de Suez (estava em
construção, na época, o canal que encurtaria em até 10.000 quilômetros a viagem de
Marselha à Índia, esclarece o redator).
Após essas três páginas de divulgação científica, a revista publica o poema
“Borboleta”, de Ernesto de Souza (“...pousa então a borboleta, beijando em negro
atahude, minha gentil Julieta, no brilho da juventude”), para terminar com o
folhetim “Fatima e Affonso Catan”, escrito por Julio Schroder. São cinco alentadas
páginas, divididas em duas colunas, contando as aventuras e desventuras do
catalão Affonso Catan, que zarpa com um navio de Barcelona com destino a
Inglaterra. Pouco depois de deixar a costa espanhola, o navio é atacado por piratas
tunisianos e Affonso acaba preso e vendido como escravo para o mouro Jessuf. Já
envelhecido, tendo perdido seus dois filhos, Jessuf, um árabe rico, tem em Fatima sua
mais preciosa jóia. Afeiçoa-se a seu escravo “hespanhol” e insiste para que ele abrace
o islamismo e despose sua filha. Mas, como pede o folhetim, há muitas peripécias
pelo caminho. E o feroz Alcaidi Abdrask flagra o namoro de Fatima com o infiel
catalão, e os prende e leva à masmorra... Continua no próximo mês...
147
4.4. A Semana Illustrada: enfim, a maturidade editorial
No dia 8 de dezembro de 1860 o Rio de Janeiro ganhava uma revista nova, em
formato de 28 x 23 cm, que marcaria a chegada da indústria editorial a seu ponto alto. Ao
longo de dezesseis anos e 797 edições, a Semana Illustrada daria o tom da vida na Corte.
Impressa inicialmente na Tipografia de Pinheiro e Companhia, passaria por diversas
impressoras, como a Tipografia de Brito e Braga, do Diário, até ser impressa nas
instalações próprias do Instituto Artístico Imperial.
À frente da publicação, o alemão Henrique Fleiuss. Nascido em 29 de agosto de
1823 na cidade de Colônia, Fleiuss foi um mestre pioneiro das artes gráficas entre nós,
com a litografia, e nas aplicações da fotografia no jornalismo. Após os estudos iniciais em
sua cidade natal, Fleiuss mudou-se para Dusseldorf, ali se aprofundando no conhecimento
das artes, ciências naturais e literatura. Complementou os estudos em Munique, onde
aprendeu também música.
Aos 34 anos, aconselhado pelo antropólogo, médico e botânico Von Martius – um
dos mais renomados pesquisadores alemães a estudar a Amazônia –, Fleiuss veio para o
Brasil, dedicando-se inicialmente a percorrer diversas províncias nortistas e retratando suas
paisagens e costumes em aquarelas, recolhendo material para o projeto que continuava
sendo tocado por Von Martius
3
.
Em 1859, já instalado no Rio de Janeiro, Fleiuss fundou uma oficina tipo-litográfica
em sociedade com o irmão Carlos Fleiuss e o pintor e compatriota Carlos Linde. Além de
executar serviços e publicações, a oficina ministrava cursos regulares de artes gráficas, com
duração de três anos, incluindo aprendizado de técnicas de tipografia, litografia, xilografia,
pintura a óleo e fotografia, algo inédito no país, formando mão-de-obra que será
fundamental no desenvolvimento editorial que ocorrerá nos anos seguintes. Essa oficina
tornar-se-ia o Instituto Artístico Imperial, por decreto firmado por D. Pedro II em 1863. O
instituto criado por Henrique Fleiuss representou na realidade a primeira equipe de
designers do Brasil, pois
seus dirigentes pintam em óleo e aquarela, fazem as composições e ilustrações de livros
científicos e artísticos de qualquer espécie, consagrando-se como a primeira equipe de
designers do Brasil. [...] A presença desse grupo de gravadores foi, como logo se con-
cluiu, uma das mais importantes aquisições artísticas feitas pelo Rio do século passado,
neste momento interessando apenas o seu decisivo papel no desenvolvimento da gravu-
ra em madeira (FERREIRA, 1994: 185).
A litografia e outros processos gráficos não eram propriamente novidades no Brasil,
como se viu acima (capítulo 3, subtítulo 3.5, sobre a Lanterna Mágica). Baseado no princípio
químico de que a água e a gordura se rejeitam, a litografia consiste em extrair de uma pedra
a imagem desejada, desenhada com um material gorduroso. Foi adotada aqui quase ao
mesmo tempo que surgia na Europa. Tanto que, ao historiar o desenvolvimento da litografia
entre nós, o pesquisador Joaquim Marçal Ferreira de Andrade (ANDRADE, 2004) faz um
rico levantamento de publicações que usaram na capa a “ferramenta de trabalho” do
ilustrador litográfico, o “porta-crayon”. Entre os exemplares mostrados pelo autor estão a
capa do número 1 da revista Ba-Ta-Clan (junho de 1867), de O Arlequim (agosto de 1867), O
Mosquito (1869), O Lobisomem (1870) e A Vida Fluminense (1870): em todas elas há a presença do
lápis utilizado pelos ilustradores para preparar a base do desenho na pedra. Em uma das
revistas, O Mosquito, ao redesenhar o logotipo, o artista Angelo Agostini coloca todas as letras
como penduradas em um varal – justamente um “porta-crayon”, sinal de que o instrumento
de trabalho dos litógrafos era de conhecimento do público.
No entanto, Fleiuss é considerado, por historiadores como Herman Lima e o
próprio Ferreira Andrade, como o verdadeiro criador da imprensa humorística ilustrada
no Brasil, graças à revista Semana Illustrada, por ele fundada em 16 de dezembro de 1860.
Capítulo 4
1850-1865
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
148
Foi de Henrique Fleiuss o primeiro cartaz produzido no Brasil – em 1860, justamente para
anunciar o surgimento da Semana Illustrada. Um outro cartaz, publicado oito anos depois,
fazia promoção de sua empresa de serviços gráficos:
Tendo o editor da SEMANA ILLUSTRADA augmentado a sua typographia com os typos –
mais modernos e elegantes – que ultimamente se fazem na Europa, e achando-se por isso
habilitado para acceitar qualquer trabalho typographico, ornado com ESTAMPAS em
GRAVURAS DE MADEIRA, INICIAES de todas as formas, recommenda ao publico
esta sua typographia da S
EMANA ILUSTRADA, promettendo perfeitíssima execução das
encommendas, a preços razoaveis.
A revista foi pioneira no uso de recursos gráficos e de design, marcando um modelo
de periódico semanal que fará escola. Foi também pioneira na cobertura de
acontecimentos, como o da Guerra do Paraguai (1864-1870). O trabalho de Henrique
Fleiuss criará novos revisteiros e indicará os rumos para uma geração de publicadores e
impressores. Mas vamos nos deter um pouco na análise de alguns números da publicação.
Começando pelo seu número de lançamento.
O número 1 da Semana Illustrada não traz a data de sua publicação. Essa informação
irá aparecer apenas no número 6 da revista, que diz “Rio de Janeiro, 20 de janeiro de
1861”, na apresentação da edição, em sua segunda página (como a revista adota o costume
da numeração seqüencial, a segunda pagina do número 6 aparece na realidade como a
pág. 42). A capa, cujo cabeçalho será analisado a seguir, apenas esclarece ser o número 1, e
que o semanário “publica-se todos os domingos”. À esquerda, embaixo da logomarca, o
convite à “interatividade”: “Os senhores que nos quizerem honrar com artigos e desenhos
terão a bondade de remetter-os, em carta fechada á Redacção da Semana Illustrada, na
Rua do Ouvidor N.o 87, livraria de F.L.Pinto &C.ª”. À direita, os preços de assinaturas: na
corte, 5$000 o trimestre. 9$000 o semestre e 16$000 o anno. Nas províncias as assinaturas
custam respectivamente 6$000, 11$000 e 18$000.
Acima, ocupando a terça parte superior, o desenho do logotipo, rico em detalhes,
que é a marca de identidade da revista e a acompanhará ao longo de seus 16 anos. No
alto, um Sol de formas humanas (com uma lua e uma estrela cadente), ladeado à esquerda
pela palavra “Semana” e à direita “Illustrada”. Nas cantoneiras, dois personagens de cada
lado, com um fole e uma seringa, como se estivessem a jogar água de cheiro num entrudo
carnavalesco. No centro, a figura de um homem, meio bruxo, chapéu com penachos, uma
cruz de malta ao peito: mantém o olho direito fechado e o esquerdo bem aberto, como se
olhasse o leitor, num sorriso enigmático. Tem na mão direita um exemplar da Semana
Illustrada, enquanto a esquerda ajuda dois bobos da corte a passar uma tira de imagens
num animatógrafo ou “lanterna mágica”. Na base do desenho, à esquerda um casal,
deitado como num piquenique; à direita, um grupo onde se destaca uma bailarina e um
padre, aparentemente bolinando uma garota. Um clima pândego, como se diria tempos
atrás. Na objetiva da lanterna mágica, o lema da revista “Ridendo castigat mores”
4
A caixa dessa espécie de cinematógrafo tem a inscrição “Laterna Mágica”, assim, com
o erro ortográfico. Fleiuss jamais considerou a hipótese de refazer a logomarca e corrigir o
erro: “Laterna mágica”, com o erro, passou a ser uma das identidades visuais da revista.
Na mesma capa, na metade inferior, há o desenho de um personagem contornando
o mundo em uma charrete puxada por seres alados, espécie de fadas. O personagem na
carroça (outra grife da revista: é o mesmo bruxo que aparece na logomarca), carrega um
estandarte onde se lê outra expressão latina: Sol lucet omnibus: “o sol brilha para todos”. A
charrete caminha sobre a América do Sul, trafegando sobre o espaço do Brasil. A legenda,
escrita tipograficamente no pé do desenho, arredonda tudo: “A Semana Illustrada começa
sua viagem humorística pela América Meridional”.
Uma longa viagem, semanal, iniciada nesse domingo, 8 de dezembro de 1860, e que
durará 16 anos!
149
Capítulo 4
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A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
150
Fleiuss criou padrões e definiu procedimentos que acabaram sendo seguidos por
quase todos os revisteiros dessa segunda metade do século XIX. No desenho da capa, o
logotipo não se mexe: em todas as edições ele ocupará sempre um terço horizontal
superior, alterando apenas a numeração do exemplar, à medida que passam as semanas. A
metade inferior da capa será ocupada por um desenho que resuma ou represente o que
aconteceu de mais relevante naquela semana.
A publicação tem oito páginas. Na realidade, é uma única lâmina que se dobra duas
vezes, formando um caderno de 8 páginas, impressa com texto de um lado e desenhos do
outro, cria a estrutura de quatro páginas de texto e quatro de ilustrações. Assim, a página
1 tem desenho, as 2 e 3 apresentam texto, a 4 e a 5, formando a dupla central, têm
ilustrações, as páginas 6 e 7 novamente têm apenas texto e, finalmente, a página 8,
contracapa, apresenta imagens. Esse é o modelo que adotaram praticamente todas as
revistas semanais ilustradas do século XIX: Diabo Coxo, Cabrião, Ba-Ta-Clan, O Arlequim, O
Besouro, O Mosquito, a Revista Illustrada, O Lobisomem e dezenas de outras mais.
Na apresentação, que ocupa as duas colunas da página 2 e as primeiras linhas da
página 3, o editor discorre sobre o lema “Ridendo castigat mores”:
Sob esta divisa singella e expressiva apparece hoje a Semana Illustrada pedindo a acceitação
do publico ao encetar a sua variegada tarefa. Não vem ella contar aos seus leitores por
que novas phases passou a politica, quaes forão as operações mais recentes da praça,
quantos ratoneiros cahirão nas mãos da policia, emfin porque motivo tateamos na sobra
a tantos respeitos, apezar de vivermos no seculo da luzes [...] Extranho ásmesquinhas
lutas da politica pessoal, ao exame e discussão de nihilidades, e ajudados por ventura do
favor no publico propomo-nos principalmente a realisar a ephigraphe que precece estas
linhas: ridendo castigat mores.
Riamos! Em toda essa multidão que se move curvada sobre o futuro; em todos esses
energúmenos que enxergão horisontes claros através da fumaça do charuto e namorão a
propria sombra, há um lado ridiculo que merece particular attenção, e é delle que nos
ocuparemos. [...] Buscaremos a humanidade fóra dos templos, longe dos cemiterios;
além desses lugares neutros será ella comnosco; iremos-nos com ella. Na politica, no
jornalismo, nos costumes, nas instituições, nas estações publicas, no commercio, na
industria, nas sciencias, nas artes, nos theatros, nos bailes, nas modas acharemos para a
Semana Illustrada o assumpto inexhaurivel, materia inesgotável para empregar o lapis e
a penna. [...] Expectadores activos, mas imparciaes, de todas as lides empenhadas por
essas grandes turmas, applaudiremos o bem que praticarem, e sem temor da policia
censuraremos o mal que fizerem.
Censuraremos rindo, e comnosco rirá o leitor, pois todo esse mundo movediço que se
enfeita ao espelho, e apregoa o seu valor extremo, há um lado vulneravel onde penetra
o escalpello da critica, ha uma parte fraca que convida ao riso. [...] Passa a humanidade.
E entra em scena a Semana Illustrada (PR SOR 02334 [1]).
A partir dessa introdução, a revista deslancha suas atrações. A página 3 apresenta a
seção “Contos do Rio”, com algumas anedotas de salão (Na residência do Sr. Lino, sua
esposa é apresentada a um violoncelista, Max Bohrer. E ela pergunta se este conhece seu
esposo: “Já viu o Lino”? “Violino?”, repete o músico. E a corrige: “Non violino:
violoncelo”...). Segue um soneto, de autoria de Antonio José Nunes Garcia. Um dicionário
do tipo “definições definitivas” começa no final da segunda coluna dessa página 3 e
seguirá adiante, na página 6, saltando as 4 e 5, que são as que contêm imagens.
O texto que segue, “Os Ocasos”, tratará da perda das perspectivas e esperanças,
como o sol que se põe. O primeiro dos ocasos abordados é o de um D. Juan, homem na
meia-idade que espera, nervoso, por algo, enquanto faz o almoço (café da manhã). Entra o
“preto” e vai servir o chá, derrama parte do líquido na toalha e quebra “a mais linda
porcelana de Sèvres que jamais se importou”. Finalmente, D. Juan recebe a carta. O
homem recebe-a e leva-a ao nariz. Recende ao mais puro sândalo. “É dela, é seu perfume
predileto”. Abre-a, trêmulo e lê o que se segue: “Meu caro, há quem goste de figos secos
151
Capítulo 4
1850-1865
O jogo completo de
páginas do nº 1. Capa;
dupla de texto; dupla
central visual; dupla de
texto; e última capa
com imagem. Um modelo
que criará escola.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
152
passados. Eu aprecio figos colhidos na árvore. [...] Da mesma maneira, aborreço os amores
decrépitos e mofados. A sua carta, apesar de enfeitada e confeitada como está, recende a
bafo a trinta léguas de distância. A franqueza é um tanto rude, mas os que me conhecem
sabem que não peco pela dissimulação”.
O texto promete continuação no próximo número.
A página 7 conclui a parte textual do periódico: um poema de Machado de Assis,
“Perdição”, com data de 1860, e um aviso final, com instruções para envio de
colaborações. Também avisa que os assinantes que subscreverem a revista por um ano
receberão grátis uma grande estampa, primorosamente desenhada, representando um
assunto nacional. Segue o crédito final: Typ. De Pinheiro e Comp., Rua do Cano n. 163.
A revista termina na página 8, que é parte do jogo de páginas que contêm imagens.
Falemos agora delas, as imagens. A ilustração da página 1 já foi esmiuçada na abertura
deste comentário. A dupla visual do miolo, formada pelas páginas 4 e 5, apresenta 8
desenhos, três na página 4 e cinco na página 5.
Na página 4, em um dos desenhos, um elegante rapaz conversa com uma senhorita
de vestido rodado. Ela diz: “Então, esqueceu seus juramentos, já me não ama?” E ele
responde: “Sim... mas... olha, amo-te como a uma das minhas irmãs”. E ela conclui:
“Obrigado: minha família já é bastante numerosa”.
No desenho ao lado, duas irmãs conversam. Diz Eufrásia: “Como está imoral agora
o Rio de Janeiro: todos os dias publicam os jornais novos raptos!” E a outra, Prudência
(mais feia e velha) suspira: “É verdade, mana” (e diz para consigo) “Houvesse alguem que
me furtasse!”
No desenho da metade de baixo, uma cena urbana, homens sentados ao lado de um
cartaz “Limpeza Pública”, três mulheres com vastos vestidos se aproximam e dizem:
“Pouco fresco, pouca luz, mas que aroma!”
Na página da direita, os desenhos se sucedem: Dois homens, funcionários públicos,
cochicham um para o outro (ambos usam cartola): “Então, votas sempre contra o
governo?” E o outro: “Deus me livre!” Numa cena de pancadaria, a legenda: “A eleição
correu regularmente”. Na série “Brazões”, o correio é representado por uma tartaruga e a
Limpeza Pública por um porco.
A recorrência do tema “Limpeza Pública” nesse número permite supor que houve
algum problema específico com ela e que monopolizou as atenções durante a semana
prévia ao lançamento da revista. Mas sabe-se: sem nenhuma estrutura de saneamento
básico, lixo e dejetos eram um problema crônico do Rio de Janeiro nessa época.
As duas ilustrações da última página tratam, respectivamente, dos efeitos da chuva
em algumas ruas da Corte e da chegada de correio pelos navios da Europa. Na primeira,
está tudo alagado, a charrete ou tílburi mal consegue passar, uma mulher é levada ao colo
por um homem, uma criança brinca na enxurrada e pessoas mergulham nas poças de
água. Na segunda, há um mar de cartolas: o establishment esperando a chegada das
notícias do exterior.
Folheando alguns exemplares da revista, pode-se constatar que a receita editorial é
simples e seguida quase à risca. Abre com os “Contos do Rio de Janeiro” ou,
eventualmente, “Notícias estrangeiras” ou “Variedade”. O texto é leve e saboroso. Os
“Contos do Rio”: pode-se imaginar como essas notas curtas seriam lidas com curiosidade
nas demais províncias, são os conhecidos chistes e croniquetas de salão, e vão dando o
tom de fina ironia na crítica social que a publicação vai tecendo. Como seu viu acima, na
apresentação feita pelo editor, a revista não vem para “comentar as fases da política ou que
gatunos foram presos pela polícia”: supõe-se que outros periódicos darão conta desses
menesteres. Peguemos alguns exemplos.
Na edição de 5 de maio de 1861, nº 21 da revista, os “Contos do Rio” propõem
uma série de anagramas ou charadas. O primeiro leitor que as decifrar ganhará como
153
Capítulo 4
1850-1865
premio “um trimestre da Semana Illustrada, elegantemente encadernado”. A revista não
avisa em que número dará os resultados. Mais adiante revela outro resultado:
“Publicamos, há quinze dias, uma outra charada em que se nos pedia que
perguntássemos qual a phrase de quatro palavras que podia ser indistinctamente lida da
esquerda para a direita e vice-versa, tendo sempre a mesma significação. Essa phrase é:
Roma me tem amor”.
A seção seguinte, ainda do dia 5 de maio de 1861, número 21 da revista, apresenta
um texto sobre “A mulher no sentido burlesco”, de um colaborador que assina como
Bohemio (pág. 162). Leiamos alguns excertos:
A mulher é um pequeno animal doce e maligno, metade caprixo, metade razão; é um
composto harmônico em que se encontra algumas vezes muitas dissonâncias.
A sabedoria e a razão são incompativeis com o espirito de uma mulher que só tem na
cabeça a ambição. [...] Em mil homens se encontra um bom e em todas as mulheres,
nenhuma. A mulher é uma santa na igreja, um anjo nas ruas, um diabo em casa, uma
coruja nas janelas, um cão na porta, uma cabra em um jardim... A mulher é o orgão do
demonio. Uma mulher é uma máquina parlante que põe todo o universo em movimento
(PR SOR 02334 [1]).
Esse texto, de pouco mais de uma coluna, com tantas ofensas às damas (a
amostra acima representa 20% do total de graçolas ditas contra a mulher) deve ter
causado muito rebuliço. Tanto que na edição de número 25, de 2 de junho de 1861,
quatro semanas depois, esse é o tema da capa da revista. Na figura aparece a Semana
Illustrada no Tribunal, sentada no banco dos réus, em frente a um juiz e ao defensor, o
Sr. Marmota. Diz a legenda:
JUIZ: Accuso a Semana Illustrada de ter insultado e calumniado cobarde e grosseiramente
o Belo Sexo em geral – no seu insolente artigo publicado no n.21; pg. 162.
S
EMANA ILUSTRADA: Graciosíssimo auditorio. Confesso que tive parte nesse tremendo
attentado! Toda minha culpa consiste em não ter lido o referido artigo, que foi escripto
abusivamente. Quanto se contém nesse artigo está em absoluta desharmonia com o meu
modeo de pensar, e protesto-vos que meus sentimentos são antipodamente contrarios aos
que foram expendidos na Variedade: A mulher no sentido burlesco. Sirvam-vos de prova as
minhas lagrimas de arrependimento...
D
R. MARMOTA (defensor): Peço ao tribunal das Graças que aceite a retractação do réo, sob
condição porém que elle assigne termo de nunca mais consentir nas columnas de sua
folha semelhantes falsidades.
J
UIZ (depois de consultar o tribunal): Reconhecendo a injustiça com que á principio julgámos:
absolvemos o réo, que depois de ter beijado a mão á todas as moças assignará termo de
treguas comnosco, ficando apenas estampado na Semana na presente posição, para que
não caia n’outra (PR SOR 02334 [1]).
Nessa mesma edição de 2 de junho de 1861, nos “Contos do Rio”, o redator dá
o resultado de uma charada de número anterior: como cortar, em três golpes, um
queijo em oito partes iguais. A resposta: “o primeiro golpe é paralelo à base, os outros
dois em forma de cruz na parte superior do queijo”... Páginas adiante, o conto “A
Nostalgia”, assinado por Ory, relata a história de uma moça que chega de São Paulo
em companhia do pai, para viver na Corte. Ato seguido, cai em estado de prostração,
uma tristeza sem fim. A moça definha em ritmo acelerado, os médicos dão o caso
como perdido. A última tentativa seria retornar para São Paulo, mudando de ares.
Uma de suas amigas, moça de fina educação, assinante da Semana Illustrada, vem
despedir-se da enferma, talvez para uma última conversa, pois é dado como certo que
a donzela não resistirá à viagem. No entanto, ao folhear a revista, a moça dá um
sorriso. Muda o semblante. Ao rir das caricaturas publicadas no periódico, recobra o
ânimo e a alegria de viver, se levanta, abre o piano, cantarola. E o contista Ory
termina esse “publieditorial”
5
com o seguinte parágrafo:
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
154
Ao publicar o texto “A mulher no sentido burlesco”,
em 5 de maio de 1861 (edição 21), a revista cria
polêmica. E é julgada e absolvida na capa da
edição 25, de 2 de junho de 1861 (acima).
155
Capítulo 4
1850-1865
O pai sahio a relatar ao medico assistente a cura prodigiosa que acabava de operar-se; mas
antes de dirigir-se a elle, passou pelo largo de S. Francisco, n. 16, e entrando em casa dos
Srs. Fleiuss, Irmãos & Linde, tomou quinze assignaturas da Semana Illustrada (PR SOR
02334 [1]).
Há momentos deliciosos na revista. Como a abertura dos “Contos do Rio”, na
edição de 15 de junho de 1862: “Não caibo em mim de sorpreso ao lembrar-me que a
ultima semana não testemunhou alteração alguma ministerial!”
Nessa mesma edição, um longo ensaio, “Carta de bichas”, fala das crendices de
Santo Antonio, que “sempre foi considerado o casamenteiro das moças”. Fica-se sabendo
que as receitas de enterrar o santo ou metê-lo, cabeça para baixo, num poço fundo, já
eram práticas correntes naqueles idos de 1862.
Em 21 de novembro do mesmo ano, as “Noticias estrangeiras” que abre o
periódico relatam algo que deveria ser comum naquele tempo em que o telégrafo ainda
não havia sido implantado: a chegada ao porto de um navio e, com ele, jornais e
periódicos estrangeiros. “Um quarto de hora depois da chegada do Navarre já havíamos
recebido toda a nossa correspondência, graças aos attenciosos desvelos do nosso
distincto amigo Castro Vianna. Tivemos folhas de quase todos os paizes, e de Lisboa as
datas alcançam até o dia de todos os Santos” – ou seja, jornais com apenas 23 dias de
atraso. A seguir, o redator faz um clipping: as notícias de Paris, da Inglaterra, da Itália,
de Roma [sic], Prússia, Áustria, Hespanha...
O certo é que a Semana Illustrada ia abrindo caminhos e marcando processos e
procedimentos. A partir de 1861, publica na revista as caricaturas do Dr. Semana,
seu próprio alter-ego, que tinha por intenção satirizar o cotidiano político da
cidade. O Dr. Semana estava sempre acompanhado de seu pajem, o Moleque.
Fleiuss criou ainda outros personagens, como o negro Nhô-Nhô e a índia Brasília,
a representação gráfica do próprio o país, que no quarto número da Semana se
tornou uma deusa grega.
A revista era responsável pelo registro de eventos ocorridos no Rio de Janeiro,
apresentando, hoje, uma fonte segura para o estudo da evolução dos costumes, das
roupas, das instituições e das figuras nacionais. A Semana era, certamente, o veículo por
meio do qual, pela sátira política, se punha em circulação as avaliações e a visão da elite
sobre os poderes constituídos do Império. Numa postura marcadamente governista
(Fleiuss era protegido do Imperador e em toda a história da revista jamais publicou uma
caricatura ironizando o imperador, algo que Angelo Agostini e Raphael Bordallo Pinheiro
farão quase todas as semanas), sua revista criticava ou ironizava por tabela. Apenas como
exemplo, citamos um trecho tirado do número 21 (página 163), de um artigo sobre
“Bailes”, o texto começa assim:
Chegaram os deputados! Ainda bem! Os augustos e digníssimos representantes da
nação são entre nós verdadeiras andorinhas, que fogem quando se aproxima o inver-
no do aborrecimento e voltam em bandos quando começa o calor da folia [...] Com a
abertura da câmara, abre-se a estação dos bailes. A rua do Ouvidor expõe nas suas
vidraças os mais lindos tecidos, as mais custosas jóias. Tudo anuncia – prazer (PR
SOR 02334 [1]).
A Semana Illustrada foi um marco na história do fotojornalismo brasileiro, como
mostra Joaquim Marçal Ferreira de Andrade (2004: 115-151) em um longo e especial
catulo, por causa da cobertura, ainda que um tanto comprometida, como se verá
adiante, da Guerra do Paraguai (1864-1870). Pela primeira vez era formado um corpo de
fotógrafos, treinados com o objetivo sistemático de retratar um evento
6
. Pela primeira
vez, também, a fonte das imagens publicadas – fossem elas descritivas, baseadas em
fotografias ou desenhadas – passaria a ser citada com freqüência. Aliás, o fato de um
desenho esclarecer na legenda que era baseado em uma fotografia aumentava sua
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
156
credibilidade. Esperto e bem relacionado, Henrique Fleiuss recebeu na redação um
grupo de jovens oficiais prestes a seguir para o campo de batalha e convenceu-os a
enviar relatos exclusivos para sua revista. Na ocasião, chegou até a ensinar-lhes os
princípios básicos de uma nova arte, a fotografia, que chegara pouco mais de uma
década antes.
Pelas fotos enviadas por esses oficiais, Fleiuss pôde reproduzir em litogravura
cenas das batalhas e seus principais personagens, publicando-as na Semana Illustrada,
alavancando a tiragem da sua revista e contribuindo para torná-la a mais popular do seu
tempo. Mas o pioneirismo da Semana vai muito além. Um germânico genuíno, de longa
barba castanho-claro e pupila azul-cobalto – como o descreveria seu filho, o historiador
Max Fleiuss, na comemoração do seu centenário de nascimento – caprichoso e idealista,
Henrique Fleiuss pavimentou o caminho do fotojornalismo entre nós.
As peripécias do Senhor Semana e seu Moleque, nas capas de salteadas edições.
157
Capítulo 4
1850-1865
A fotografia serve de base
para as litogravuras de
Fleiuss, que é cioso de
dar o crédito ao autor das
imagens originais.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
158
Quanto à Semana Illustrada, e a importância que teve em nossa vida social e
cultural, talvez ninguém a tenha definido melhor do que o próprio Max Fleiuss: “A
Semana Illustrada era todo um microcosmo carioca, admirável repositório das coisas de
antanho. É, portanto, uma publicação sui generis, digna de ser religiosamente arquivada
e folheada em nossos dias, com carinho, como os preciosos livros de Rugendas e
Debret, por todos os estudiosos da arqueologia da cidade, da evolução dos nossos
costumes, instituições, aspectos, figuras e indumentária, tão caracteristicamente
nossos”.
Por meio do humor, e seguindo o lema da comédia, “Ridendo castigat mores”,
Fleiuss demonstrou uma personalidade contraditória: ao mesmo tempo que usava a
pena irrestritamente a favor da corte (escreveu num editorial: “Brasileiros! Ao
Paraguai!... Corramos sobre este povo que teve a audácia de insultar-nos!”), com fina
ironia tripudiava de suas próprias ilustrações – “copiadas fielmente a partir da fotografia
obsequiosamente oferecida por...” –, que certamente não refletiam a realidade dos
campos de batalha.
Suas relações com o poder público, seu apoio à Monarquia, sua falta de posições
políticas quanto ao escândalo estrutural da escravidão, foram motivo de críticas severas
dos demais chargistas, sobretudo do italiano Angelo Agostini, um declarado opositor da
monarquia. Agostini chegou a atacar a Semana em editorial da concorrente Vida Fluminense,
questionando a veracidade de uma foto que ilustraria a morte de Solano Lopez, o
comandante paraguaio derrotado. Ainda assim, as inúmeras e curiosas histórias que
cercam os 16 anos da Semana Illustrada não diminuem sua importância na história da
ilustração na imprensa brasileira.
Nessa revista Fleiuss conseguiu reunir chargistas do porte de Seelinger e Aurélio de
Figueiredo, e escritores como Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco e
Bernardo Guimarães.
Após a morte de seu sócio Carlos Linde, em 1873, seguido do fim da publicação
da Semana Illustrada, em 1876, Fleiuss fundou a Illustração Brasileira. Idealizava conseguir
produzir uma revista com as mesmas proporções das que se encontravam na França e
na Inglaterra, todas ilustradas por xilogravuras. Porém em 1878, com a morte de seu
irmão Carlos, seu projeto de criar uma revista ilustrada de grandes proporções
fracassou junto com o Imperial Instituto Artístico. Em 1880 tentou em vão lançar A
Nova Semana Illustrada visando a reviver a antiga. Essa empreita malograda foi sua
última realização: Fleiuss faleceu em 1882, aos 59 anos. Havia completado 25 anos
desde que, atendendo ao conselho de seu grande mestre Von Martius, viera tentar a
sorte nos trópicos.
4.5. A fase paulistana de Agostini
Chamado “o repórter do lápis”, o piemontês Angelo Agostini estudara desenho e
pintura em Paris, vindo para o Brasil em 1859. Iniciou carreira de caricaturista em São
Paulo, nas revistas Diabo Coxo e Cabrião. Falaremos panoramicamente a seguir dessas duas
publicações.
Angelo Agostini nasceu em Vercelli (província de Alessandria, no Piemonte), Itália,
em 1843, filho de Antonio e Raquel Agostini. Órfão de pai muito cedo, foi levado por
uma das tias a Paris, para viver como pensionista num colégio, e, como se conta, sob os
cuidados da avó. A mãe, cantora lírica de prestígio, tinha de se ausentar com freqüência,
em turnês operísticas, e não podia dar ao filho a devida atenção. Assim, na capital
francesa, Angelo fez seus estudos, freqüentado academias de arte. Em 1859, com 16 anos,
veio para o Brasil, fixando-se em São Paulo: acompanhava a mãe, que se casara então com
o fazendeiro português Antônio Pedro Marques de Almeida.
159
Capítulo 4
1850-1865
Ainda com o traço
rústico, Agostini,
aos 21 anos, afia
sua aguda visão crítica.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
160
A partir de 1864 dá início ao que seria uma das mais longas carreiras jornalísticas da
história do Brasil. Agostini foi jornalista, repórter, editor e militante político, mas foi como
cartunista que se consagrou, sendo apontado como um dos inventores mundiais das
histórias em quadrinhos. Seguramente foi o artista mais atuante de sua época, tendo
produzido cerca de 3,2 mil páginas ilustradas, segundo cálculo do pesquisador Gilberto
Maringoni.
Engajou-se muito bem com a conjuntura política da época, pois além de retratar em
suas charges uma postura anticlerical, participou intensamente do debate e dos
movimentos abolicionistas e republicanos. Seus cartuns da fase inicial fizeram grande
sucesso entre os paulistanos, pois exibiam de forma humorística o dia-a-dia da então
provinciana São Paulo e fazia críticas à burocracia local e às políticas do Império,
notadamente à campanha bélica contra o vizinho Paraguai. Sua atuação política e social foi
decisiva para a formação de uma opinião pública contra a escravidão e as inovações de
seus trabalhos refletiram a transformação por que começava a viver a cidade de São Paulo.
Em 1864, fundou junto a um pequeno grupo de jornalistas o primeiro periódico
ilustrado editado da cidade, o pasquim dominical Diabo Coxo
7
. O lançamento dessa
publicação foi um marco para São Paulo e influenciou decisivamente o modo de pensar da
época. Apesar de sua vida curta – pouco mais de 1 ano de existência –, Diabo Coxo teve
boa repercussão e sucesso desde seu primeiro número. A caricatura de Agostini passava a
ser conhecida como “uma arma de combate” contra a elite inoperante da província e do
império.
Produzida em parceria com Luiz Gama
8
, Diabo Coxo (1864-1865), primeira
publicação ilustrada da capital paulista, circulou entre 17 de setembro de 1864 e 31 de
dezembro de 1865, completando duas séries de 12 números. O jornal media 18 x 26
centímetros e sua impressão estava a cargo da Tipografia e Litografia Alemã, de Henrique
Schroeder, situada na rua Direita, 15. O preço era de 500 réis – duas vezes e meia o preço
de um jornal diário, mas preço corrente dos semanários ilustrados da Corte. A assinatura
valia por uma série de “12 números” e não por um período definido. No total, saíram 24
edições. A primeira série foi de 2 de outubro a 25 de dezembro de 1864. A segunda, com
data em todas as capas, iniciou-se em 23 de julho e foi até 31 de dezembro de 1865.
Há no traço e na edição do periódico muitos dos sinais e temas que serão o cavalo
de batalha do Agostini maduro que brilhará no Rio de Janeiro. Mas seu desenho é ainda
um tanto tosco. A leitura atenta da edição fac-similar produzida pela Edusp em 2005
permite acompanhar a evolução do traço e do domínio editorial de Agostini.
Já o Cabrião
9
(1866-1867), editado por Agostini em parceria com Américo de
Campos
10
e Antonio Manoel dos Reis, com colaborações do desenhista Nicolau Huascar
de Vergara, apareceu em 30 de setembro de 1866 e chegou a 51 números, circulando aos
domingos, até 29 de setembro de 1867, completando um ano. Era Litografado na litotipia
de Henrique Schroeder e impresso na Typographia Imparcial, de Joaquim Roberto de
Azevedo Marques, proprietário do Correio Paulistano. Possivelmente, não era coincidência o
fato de ambas publicações serem simpáticas ao Partido Liberal, fundado em 1831, como
afirma o historiador Gilberto Maringoni:
Há fortes indícios de que o jornal vinculava-se, na verdade, à facção partidária que
viria a formar o Partido Liberal Radical. Essas indicações são dadas por uma charge de
página dupla, de autoria de Agostini, publicada no número 18, de 3 de fevereiro de 1867.
Nela, vêem-se dois agrupamentos, um com a bandeira na qual se lê “Liberais”, e outro
com a consigna “Liberais dissidentes” no estandarte. Em ambos, os participantes trazem
pedaços de paus nas mãos e uma nítida atitude belicista. O Cabrião, o personagem,
conclama à união das duas alas, dizendo “Deponde essas armas” e “abraçai-vos
(MARINGONI, 2006: 50).
O periódico seguia o modelo de então: 8 páginas impressas em duplas de texto e de
ilustração. Nessa publicação, os principais alvos de suas caricaturas eram a Guerra do
161
Capítulo 4
1850-1865
No alto, festim macabro
no Cemitério da
Consolação que deu
motivo a processo.
A hipocrisia dos frades
e Caxias: alvos
constantes.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
162
Paraguai e o Partido Conservador. Por conta de sua ousadia, o Cabrião começa a ser
ameaçado e seu editor perseguido por políticos. O próprio Angelo é processado, como
represália por sua crítica ferina.
Corre certa lenda de que Agostini teria saído fugido de São Paulo, por haver
publicado uma caricatura considerada ofensiva: a elite paulistana numa dança macabra
com esqueletos nas portas do Cemitério da Consolação. Na realidade, esse desenho,
publicado no número 6 do Cabrião, foi motivo de um processo movido por Cândido Silva,
diretor do jornal conservador e católico Diário de São Paulo, freqüentemente ironizado nos
desenhos de Agostini, este um declarado simpatizante do Partido Liberal. Agostini foi
considerado inocente pelo delegado, e o episódio acabou dando maior visibilidade ao
Cabrião: as idas e voltas do processo foram acompanhadas com interesse pela população e
o periódico, após a sentença, voltou à carga com suas ironias
11
.
O fato é que a provinciana São Paulo estava ficando pequena demais para a
grandeza do talento de Agostini – e é no Rio que ele desenhará as mais belas páginas de
sua carreira.
Notas do Capítulo 4
1 Alencastro não se furta de explicar, na passagem menciona-
da, que a palavra paquete, do inglês navio leve, pela regulari-
dade da chegada da embarcação, foi empregada popularmen-
te para designar a menstruação feminina. Ainda hoje, no Rio
de Janeiro, é usual dizer que uma mulher “está de paquete”.
2 Joanna Manso é citada, ao lado de Marcos Sastre e Marga-
riños Cervantes, como uma das colaboradoras da Ilustración
Argentina, no livro Revistas argentinas del siglo XIX, de Dia-
na Cavalaro (CAVALARO, 1996: 74). Importante periódico
cultural criado por Palenón Huergo em 11 de novembro de
1853, circulou até abril de 1854.
3 Karl Friedrich Philipp von Martius (
1794-1868), médico, bo-
tânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisado-
res alemães que estudaram o Brasil e especialmente a região
da Amazônia, veio a nosso país na comitiva (de que fazia
parte o botânico Johann Baptiste von Spix) que acompanhou
a grã-duquesa austríaca Leopoldina de Habsburgo, filha de
Francisco I, imperador da Áustria-Hungria, que viajava ao Brasil
para casar-se com D. Pedro I. Spix e Von Martius chegaram
ao Rio de Janeiro em 14 de julho de 1817, de onde empreen-
deram uma expedição por três anos, percorrendo as provín-
cias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Per-
nambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Viajaram em
tropa de mulas e em canoa, num total de mais de 10.000 km.
Muitos foram os animais e plantas classificados e cataloga-
dos por Spix e Martius, até então desconhecidos pela ciên-
cia. Os registros e observações da viagem foram narrados
de forma surpreendente no livro Viagem pelo Brasil (Reise in
Bresilien), obra editada no Brasil em 1938 pela Imprensa
Nacional. Durante mais de 40 anos Von Martius pesquisou o
material coletado, resultando daí a monumental obra Flora
Brasiliensis. Esse trabalho enciclopédico começou a ser pu-
blicado em 1845 sob os auspícios de Ferdinando I da Áus-
tria, Ludovico I da Baviera e Pedro II do Brasil. A obra com-
pleta, elaborada com participação de 75 botânicos de diver-
sos países que pesquisaram a flora brasileira, abrange 40
volumes, 20.773 páginas, 3.811 bicos de pena e 1.071
litografias, abordando 22.767 espécies.
4 Expressão latina largamente utilizada na época (também foi
empregada por Ângelo Agostini em suas revistas), essa era a
divisa da comédia. Era também comum as cortinas dos tea-
tros que apresentavam comédias trazer bordada essa frase:
Castigat ridendo mores. Ou seja, a comédia castiga ou corri-
ge os costumes, por meio do riso.
5 “O Publieditorial é um tipo de mídia impressa que procura
combinar, harmonicamente, as boas técnicas jornalísticas e
as modernas ferramentas de design gráfico para divulgar o
trabalho de uma entidade”, diz o site do portal Terra. O que é
o publieditorial? Resumidamente, constitui-se numa mensa-
gem publicitária, portanto paga, que tem a cara de reporta-
gem, matéria jornalística. Tem como objetivo integrar-se per-
feitamente ao veículo em que está inserido, de modo a não
ser percebido como publicidade e, portanto, agregar a credi-
bilidade que os textos jornalísticos costumam ter. Implicita-
mente, o publieditorial visa “passar a perna” no leitor que,
desavisado, pode “comer gato por lebre”, ou seja, ver uma
matéria jornalística onde, na verdade, existe publicidade.
6 Também conhecida como a Guerra da Tríplice Aliança, o em-
bate contra o Paraguai está, junto com a Guerra da Criméia e
a Guerra da Secessão Americana, entre os primeiros confli-
tos armados a serem registradas por fotógrafos.
7 É interessante notar a existência de uma publicação com esse
nome, O Diabo Coxo: jornal miscelânico para os domingos,
aparecida em Niterói, em 1836, e de que circulou três números.
Era impresso por Nictheroy de Rego e Comp. e media 21 x 15 cm.
8 O negro baiano Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu livre no
dia 21 de junho de 1830, filho de Luiza Mahin, escrava negra
malês liberta que vivia de vender quitutes nas ruas de Salva-
dor, e de um fidalgo português falido de quem pouco se sabe.
Foi vendido como escravo aos 10 anos pelo próprio pai, para
saldar dívidas de jogo. Após curta passagem pelo Rio de
Janeiro, foi arrematado pelo comerciante Antonio Pereira Car-
doso, que vendia escravos para fazendeiros do interior de
São Paulo. Não sendo vendido, acabou vivendo com a famí-
lia Cardoso, levado para a fazenda de Lorena, aproveitado
nas atividades domésticas. Aos 17 anos, pela amizade com
o estudante Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hospedado
na fazenda, aprendeu a ler e escrever. Consciente de sua ile-
gal condição de escravo, fugiu para a capital da província.
Entre 1848 e 1854, serviu como praça da Força Pública de
São Paulo, trabalhando como copista de escrivão e
amanuense do gabinete do delegado de polícia. Freqüentou
como ouvinte aulas na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, sendo nomeado amanuense da Secretaria de Po-
lícia da cidade. Em 1859, publicou Primeiras Trovas Burlescas
de Getulino, poemas satíricos nos quais falava de política,
atacava hábitos urbanos conservadores, condenava a escra-
vidão (VAINFAS, 2002: 497-8). Nessa fase, a personalidade
política contestadora de Luis Gama já estava desenhada: mi-
litante abolicionista, maçom e republicano, foi membro do
Partido Liberal e, posteriormente, co-fundador do Partido
Republicano. Nos anos seguintes, bem recebido na jovem
163
Capítulo 4
1850-1865
intelectualidade paulistana, passou a escrever em semanári-
os humorísticos, sendo parceiro de Angelo Agostini na cria-
ção de Diabo Coxo (1864), tendo alguma participação no
Cabrião. Colaborou ainda em Ipiranga, Coroaci e O Polichi-
nello, e ajudou Rui Barbosa na fundação do jornal Radical
Paulistano. Em 1881, fundou a Caixa Emancipadora Luiz Ga-
ma, espécie de ONG da época, instituída para angariar fun-
dos para a alforria dos escravos. Falecido em 24 de agosto
de 1882, foi indicado pelo jurista Fabio Konder Comparato
como o maior brasileiro de todos os tempos, numa pesquisa
realizada pelo jornal Folha de S.Paulo em abril de 2007.
9 O título, que teria inspiração no personagem meio maligno do
folhetim de Eugène Sue, Os Mistérios de Paris, servirá de
inspiração a muitos outros periódicos satíricos pelo Brasil
afora. Segundo Délio Freire dos Santos, houve outros três
“cabrião” apenas na cidade de São Paulo, outro no Recife
(Cabrion), dois em Porto Alegre.
10 Formado pela Academia de Direito de São Paulo em 1860,
promotor púbico em Itu até 1863, Américo de Campos era
redator do Correio Paulistano e fundaria, com Francisco Ran-
gel Pestana, A Província de São Paulo em 1875 (depois O
Estado de S. Paulo), e o Diário Popular, com o tipógrafo
José Maria Lisboa, em 1884.
11 Os personagens da política local, os padres, a polícia, os
lentos trens da São Paulo Railway, e fatos do cotidiano são
o tema das charges de Agostini no Cabrião. Mas a Guerra
do Paraguai foi focalizada em 55 caricaturas, nas 51 edi-
ções; o recrutamento de voluntários para a guerra, 18 ve-
zes; o Duque de Caxias, 15 vezes; Dom Pedro II, 9 vezes,
mas nunca com a mordacidade com que o desenhista itali-
ano lhe destinará em sua fase carioca. Agostini é aqui parti-
cularmente cruel com os padres e com as beatas.
Os caricaturistas
se apoderam das
semanais: 1866-1875
Outro motivo de fragilidade para o artista é,
paradoxalmente, a firmeza e a insistência de seu olhar.
O poder, seja ele qual for, por ser violência, não olha nunca.
Se olhasse um minuto mais (um minuto a mais)
perderia sua essência de poder.
O artista, por sua parte, se detém e olha largamente...
Roland Barthes, La Torre Eiffel, Textos sobre la imagen.
Barcelona: Paidós, 2001, pág. 181.
Capítulo 5
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
166
1866 A Pacotilha do Tio Ignacio das Merces:
jornal de pitadas, carapucas,
novidades e litteratura
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Fluminense,
de Domingos Luiz dos Santos, 1866.
(16 números)
Proprietários-redatores: Matheus de
O. Borges Filho e J.M.C.
Tupinambá
O Pandokeu
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Fluminense,
de Domingos Luiz dos Santos,
1866-1867 (12 números)
Proprietário: Matheus de Oliveira
Borges Filho
O Apostolo: periodico religioso, moral e
doutrinario, consagrado aos interesses
da religião e da sociedade
Rio de Janeiro, RJ : Typ. Nicolau
Lobo Vianna e Filhos, 1866-[1893].
De jan-nov.1894, passa a ter o título
A Estrella, voltando a ter o título:
O Apostolo (de nov.1894 a abr.1901)
Palestra Acadêmica: revista cientifica
e litteraria
São Paulo, SP: Typ. Imparcial,
de Joaquim Roberto de
Azevedo Marques, 1866
(3 números)
Cabrião
São Paulo, SP: Typ. Imparcial,
de Joaquim Roberto de
Azevedo Marques
1866-1867 (51 números)
Ilustrador: Ângelo Agostini
Colaborações de Nicolau Huascar
de Vergara
Redator: Américo de Campos e
Antonio Manoel dos Reis
1867 Ba-ta-clan: chinoiserie franco-bresilienne
Rio de Janeiro, RJ: Imp. et Lith. do
Ba-ta-clan, 1867-1871 (184 números)
O Arlequim
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do
Arlequim, 1867 (35 números)
Caricaturas: Angelo Agostini
e V. Mola
1868 A Vida Fluminense:
folha joco-seria-illustrada
Rio de Janeiro, RJ: Typ. e Lith. de
Ed. Rensburg, 1868-1875
(412 números)
Desenhos de: Angelo Agostini,
Candido A. de Faria, Luigi
Borgomainerio, Pinheiro Guimarães
1869 O Mosquito: jornal caricato e critico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de
Domingos Luiz dos Santos,
1869-1877 (406 números)
Ilustrações de: Candido de
Aragonez de Faria, Pinheiro
Guimarães, Angelo Agostini e
Bordallo Pinheiro
Revista Agrícola do Imperial Instituto
Fluminense de Agricultura
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do Imperial
Instituto Artístico, 1869-1890
(98 números)
Diretor-redatores: Miguel Antonio
da Silva, Ladislau Neto e
Nicolau Joaquim Moreira
Revista do Parthenon Litterario
Porto Alegre, RS: 1869-1877
1870 A Comédia Social: hebdomadário
popular e satírico
Rio de Janeiro, RJ 1870-1871
(76 números)
Caricaturistas: Pedro Américo,
Aurélio de Figueiredo
e Décio Vilares
O Lobishomem: ilustração caricata
de comprimentos e cortezias
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de F.A. de
Souza, 1870-1871 (17 números)
Diretor-redator: A. A. de Valle
O Novo Mundo: periódico illustrado
do progresso da idade
Nova York, Estados Unidos: James
Sutton & Co, 1870-1879
(105 números)
167
1871 A América Illustrada: jornal humorístico
Recife, PE: Typ. Americana,
1871-1884 (205 números).
Proprietário: José Caetano da Silva
O Mundo da Lua: folha ilustrada,
lunática, hyperbolica e satyrica
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Cardoso
& Irmãos, 1871 (26 números)
Redator: Luiz Guimarães Junior.
Desenhos de: F. Pinheiro Guimarães
e outros
1872 Archivo Contemporâneo: jornal illlustrado
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Perseverança, 1872 (16 números)
Proprietário: A.A. de Carvalho
Desenhos: Valle
1873 O Domingo: jornal litterario e recreativo
Rio de Janeiro, RJ: Typ. da Lyra de
Apollo, 1873-1875 (71 números)
Proprietária-redatora: Violante
Ataliba Ximenes de Bivar e Velasco
O Sexo Feminino: semanário dedicado
aos interesses da mulher
Campanha, MG: Typ. do
Monarchista 1873-1874
(45 números)
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Lombaerts
& Filho, 1875-1889 (32 números)
Proprietária-redatora: Francisca
Senhorinha da Motta Diniz
1874 Mephistopheles
Rio de Janeiro, RJ: Typ. e Lith. do
Mephistopheles, 1874-1875
(72 números)
Desenhos de: Candido Aragonez de
Faria
1875 O Diabo a Quatro: revista infernal
Recife, PE: Typ. Mercantil,
1875-1879 (195 números)
Litógrafos: Vera Cruz, J. Neves,
Aurélio de Figueiredo, Rafael
Bordado Pinheiro, A. Roth
O Ganganelli
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Fluminense,
1876 (4 números)
Caricaturas: Candido Aragonez de
Faria
O Mequetrefe
Rio de Janeiro, RJ: Nova Typ. de J.
Paulo Hildebrandt, 1875-1893
(481 números)
Proprietários: E.J. Correa
e Pedro Lima
Caricaturas: Teixeira da Rocha Vale,
Pereira Neto, Bento Barbosa,
Candido Aragonez de Faria, Aluízio,
Arthur Lucas
Capítulo 5
1866-1875
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
168
O B
AZAR
V
OLANTE
. A P
ACOTILHA
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RLEQUIM
. A V
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F
LUMINENSE
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CHINOISERIES
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UIMARÃES
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APHAEL
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NGELO
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GOSTINI
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AS
A
VENTURAS
DE
N
Q
UIM
.
Em sua fala do trono de 1865, reproduzida na abertura do Almanak Laemmert do ano
seguinte, Pedro II deu conta do futuro casamento de suas filhas Isabel e Leopoldina,
relatou que a tranqüilidade pública não sofrera alteração nenhuma nas províncias do
Império e que era satisfatório o estado da saúde pública. No entanto, a quebra de algumas
casas bancárias, ocorrida no ano anterior, produzira em setembro uma crise “assustadora”,
que abalara os interesses comerciais. Mas a pronta intervenção do governo, auxiliada pela
boa índole do povo, restabeleceu a confiança e os negócios retomavam sua marcha regular.
Dizia ainda que continuavam interrompidas as relações do país com a Grã-Bretanha, mas
se fizera paz com o Uruguai, com a ascensão do general Flores. No entanto, o país entrava
em guerra com o Paraguai. Disse o imperador, na fala do trono:
O presidente da Republica do Paraguay, contra todas as regras de direito internacional,
mandou apresar o vapor brasileiro Marquez de Olinda, que á sombra da paz se dirigia para
o Matto-Grosso, e levava o presidente nomeado para essa província, o qual, assim como
outros Brasileiros, ainda hoje se acha preso. As tropas paraguayas invadirão depois por
um modo inaudito a mesma província do Matto-Grosso. O governo brasileiro, no firme
empenho de vingar a soberania e a honra nacional ultrajadas, tem empregado todos os
meios a seu alcance na organisação do exercito e da armada para a guerra a que fomos
provocados por aquella republica (LAEMMERTS: 1866: Sup. 3-4).
O Brasil logo mais reataria as relações com a Grã-Bretanha, aceitando os pedidos
oficiais de desculpas daquele país, que provocara um ato de agressão aprisionando 12
navios mercantes nacionais perto do Rio, no último dia do ano de 1862 (no que ficou
conhecido como “o caso Christie”, pelo nome do arrogante representante inglês, Douglas
Christie). A questão internacional foi mediada pelo rei Leopoldo da Bélgica, que decidiu
em favor do Brasil. Já a guerra com o Uruguai ocorrera em 1864, devida à política do
então presidente Bernardo Prudêncio Berro, aliado do paraguaio Solano López, contrária
aos interesses dos estancieiros gaúchos residentes no país vizinho: ainda viviam 40 mil
brasileiros no território da antiga província Cisplatina. Berro foi deposto por uma aliança
entre Brasil e Argentina, e o general empossado, Venancio Flores, era simpático à causa
brasileira. E veio a formar, com Argentina e Brasil, a Tríplice Aliança que declarou guerra
contra o Paraguai em maio de 1865.
A retomada de Uruguaiana, invadida pelo Paraguai, foi fácil e contou com a
presença do Imperador. Mas, ao contrário do que se pensou então, esse não foi o
desfecho, mas o começo de um conflito desgastante que só terminaria no final da década,
em março de 1870 (CARVALHO, 2007: 101-125).
O despreparo brasileiro para a guerra, a pressão e campanha dos voluntários da
pátria, muitas vezes convocados à força, o cansaço de um conflito que parecera de curta
duração mas que se prolongava sem lógica, além de representar um desgaste para o
governo e para o monarca, serviu de pano de fundo para muitas das notas e caricaturas
das revistas ilustradas, que começavam a ganhar espaço cada vez maior entre o leitorado.
169
Terminada a guerra, em 1870, com a captura e morte de Solano López, o imperador,
envelhecido aos 45 anos, faz sua primeira viagem à Europa (1871). Nesse ano é promulgada
a Lei do Ventre Livre. 1872 foi um ano bissexto e denso. Quando o bispo de Olinda ordena
a expulsão dos maçons das irmandades religiosa, dá início à crise religiosa que terminará
com sua prisão e a do bispo do Pará, que seguira seu exemplo: como funcionário do
governo, no regime do patronato, um bispo devia cumprir ordens. Mas o bispo de Olinda
fazia coro a um movimento conservador da Igreja Católica, de defesa da supremacia do
Direito eclesiástico sobre as leis civis (Pio IX chegou ao delírio de impor, ao Concílio
Vaticano I, em 1870, o dogma da infalibilidade papal). A imprensa semanal ilustrada vai
criar momentos divertidos ao retratar o Papa dando palmatória no Imperador (num dos
mais famosos desenhos do português Raphael Bordallo Pinheiro), ridicularizará a publicação
católica O Apóstolo, e os frades voltam a ganhar espaço na pedra de Angelo Agostini.
Depois de uma década de calmaria, a de 1860, as epidemias voltam a atacar a
Corte. Cólera e febre amarela deixam um saldo de mais de 10 mil mortos em 1870. Só de
febre amarela, entre dezembro de 1871 e março de 1872 morreram 3.128 pessoas. Os
periódicos darão conta das medidas tomadas por João Alfredo Correia de Oliveira,
ministro encarregado de obras que mudem a salubridade do Rio de Janeiro: é o início do
discurso da higiene. Há farta temática para debater nos novos periódicos de caricatura.
O parque gráfico da capital do Império estava pronto para a empreitada: aos
excelentes desenhistas, cronistas, ilustradores, tipógrafos e litógrafos que foram se formando
nos anos anteriores vinham se juntar artistas estrangeiros, que tentavam a sorte nessa corte
dos trópicos. Entre eles a dupla George Mathias Heaton, inglês, e Eduard Rensburg,
holandês, que haviam chegado ao Brasil no final do ano de 1839, desembarcando no porto
de Campos, onde ficaram uns seis meses
1
.
Como descreve Orlando Costa Ferreira, copiando
do Arquivo Nacional, Polícia – Legitimações e passaportes:
Heaton, litógrafo e pintor, tinha 36 anos, era solteiro, baixo, louro, olhos pardos, nariz,
boca e barba regulares, rosto redondo, ia ficando calvo. Rensburg, desenhista e litógrafo,
tinha apenas 23 anos, também era baixo e de olhos pardos, mas tinha cabelos escuros,
nariz afilado, boca regular, pouca barba em rosto oval (FERREIRA, 1994: 376).
Instalados finalmente no Rio,
criaram uma oficina em que desenhariam um
importante capítulo da história das revistas, as “ilustradas”. Em agosto de 1844, a casa
litográfica de Heaton e Rensburg produzira a parte ilustrada da primeira publicação
brasileira com caricaturas, A Lanterna Mágica (ver no capítulo 3, 3.5 “A atração da imagem,
cultura visual: A Lanterna Mágica”], de Araújo Porto-Alegre. Se bem que a publicação tinha
o texto impresso na Typographia Francesa ou na Typographia de Berthe & Haring, as
caricaturas elaboradas por Rafael Mendes de Carvalho eram gravadas e litografadas pela
oficina de Heaton & Rensburg. Outras publicações saíram das pedras desenhadas pela
dupla: a revista de música O Ramalhete de Damas (1842 a 1850) e a já citada Illustração
Brasileira (1854 a 1855). O prestígio alcançado pela empresa pode ser medido pelo fato de
que foram distinguidos, em 1851, com o título de litógrafos oficiais da corte, passando a
oficina a se chamar Litographia da Casa Imperial (FERREIRA, 1994: 378-380).
Em 1854, a sociedade se desfez e, em 1862, o holandês Eduard Rensburg criou a
Typographia do Bazar Volante, que produzirá a série de revistas Bazar Volante, de 1863 a
1867, que em 1867 muda de nome para O Arlequim. Em sua primeira fase, também A Vida
Fluminense (1868 a 1875) sairá de suas oficinas. Sendo que, nestas duas últimas publicações,
já contará com a parceria do crayon de Angelo Agostini.
Outra tradicional oficina litográfica, a Brito & Braga, ativa desde 1848, também se
destacou nesse período, produzindo trabalhos de qualidade, como as edições das ilustradas
como O Mequetrefe, Pena e Lápis e, em parte, a Revista Illustrada, de Angelo Agostini. Mas já é
hora de analisar alguns exemplares desses periódicos que se consolidaram na segunda
metade da década de 1860.
Capítulo 5
1866-1875
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
170
5.1. Do Bazar Volante ao Arlequim. Agostini chega ao Rio
Quando em 1854 seu sócio inglês George Mathias Heaton desfez a sociedade,
voltando para a Europa, o holandês Eduard Rensburg continuou a realizar sozinho o
trabalho, executando serviços avulsos e litografando e desenhando para terceiros. Eram
partituras de música para encarte como brinde em periódicos ou venda avulsa, mapas,
atlas, além de imagens para impressos em geral. Dois anos depois executou a empreitada
de publicar do alentado álbum O Brasil Pitoresco e Monumental, com 46 gravuras de autoria
de outro holandês, Pieter Godfred Bertichen. Em 1860 saíram de suas pedras uma das
obras-primas da cartografia brasileira, o Atlas e Relatório Concernente à Exploração do Rio São
Francisco, de Halfeld (FERREIRA, 1994: 387).
Mas as encomendas de trabalhos, mesmo sendo altas, eram um tanto inconstantes
para as dimensões de sua oficina, com um grupo de colaboradores quase fixos, que
incluíram o pintor Louis Auguste Moreau e Alfred Martinet, ambos franceses. E, de
tanto haver trabalhado para terceiros na edição de periódicos, resolveram encarar o
desafio de ser ele também um editor, seguindo o caminho que fora aberto por outro
dono de oficina, o alemão Henrique Fleiuss com sua bem-sucedida Semana Illustrada.
Assim, teria Rensburg sua própria publicação, com um ritmo semanal de entrega. E em
27 de setembro de 1863 aparecia o primeiro número do Bazar Volante, semanário
ilustrado de caricaturas que circulará até 1867, num total de 188 fascículos. Em suas
páginas, contou com a colaboração de ilustradores como o francês Joseph Mill, artista
que lecionava em liceus e em casas de famílias abastadas, e de Flumen Junius, este o
pseudônimo de um grã-fino da corte, Ernesto de Souza Silva Rio.
O Bazar Volante segue a estrutura que a Semana Illustrada consagrou, em que as
páginas 1, 4-5 e 8 são ilustradas com litografia, e as 2-3 e 6-7 são de texto, impressas em
tipografia (na realidade, uma lâmina, impressa de um lado, litografada de outro, dobrada
duas vezes, e está armada a revista semanal padrão dessa segunda metade do século XIX:
os jornais diários costumavam ter apenas 4 páginas).
O periódico entra em seu terceiro ano quando começa a Guerra do Paraguai – e
a revista usará, em suas capas, muitos retratos de oficiais envolvidos no conflito,
saídos da pedra de Joseph Mill. Como sugere o pesquisador Joaquim Marçal Ferreira
de Andrade, “freqüentemente os rostos têm um tratamento marcadamente
fotorrealista, o que nos deixa quase a certeza de ter havido, ali, farto uso dessas
imagens, já que os retratos fotográficos de oficiais já eram muito comuns”
(ANDRADE, 2004: 152). A revista, que contou entre seus redatores com o teatrólogo
baiano Joaquim José da França Júnior, era quase completamente desenhada por Joseph
Mill, segundo Herman Lima:
Aparecendo no Bazar Volante, que lhe dá a direção artística, Joseph Mill publicou nessa
revista inúmeras charges políticas, que se sobrepõem, em importância, às suas caricatu-
ras de costumes. O trabalho litográfico é excelente, embora seu desenho, como aconte-
ceria aliás até mesmo em suas últimas composições publicadas no Fígaro, seja duro e
muitas vezes incorreto (LIMA, 1963, 2: 761).
Quatro anos depois, num período de transição, editada pela Typographia do
Arlequim, a revista passa a se chamar O Arlequim. Circulará de maio ao final de dezembro
de 1867, contando com os desenhos de V. Mola, artista de que pouco se sabe, e de um
caricaturista italiano que já havia deixado sua marca na então acanhada província de São
Paulo, como se viu no capítulo anterior.
Em 1867, já no Rio de Janeiro, Agostini passou rapidamente pela revista O
Arlequim, em seus números finais, estabelecendo-se com toda a experiência já adquirida
na produção de A Vida Fluminense, acompanhando a revista até o número 97, de 6 de
novembro de 1869.
171
Capítulo 5
1866-1875
Doutor Semana e seu
Moleque ironizados
por plágio na capa
do Bazar Volante
nº 30. Desenho de
Joseph Mill.
Capa do Arlequim
nº 2. O Dr. Charlata
continua sob
fogo cruzado.
Os caricaturistas
Flumen Junius e
Pinheiro Guimarães
pelo lápis de J. Mill.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
172
5.2. O palco da guerra nas páginas de A Vida Fluminense
O periódico A Vida Fluminense se
apresenta, no dia 4 de janeiro de 1868 como
uma “folha joco-seria-illustrada” que dá
continuação a O Arlequim – publicação da
mesma casa tipo-litográfica de Eduard
Rensburg. Numa declaração, o editor explica
que, tendo reunido um núcleo de artistas e
redatores, escolhidos entre os mais habilitados
e distintos da corte, resolve aumentar o
formato e número de páginas, mudando
também o título, que passa a ser A Vida
Fluminense. E acrescenta: “Publica revistas,
caricaturas, retratos, modas, vistas, muzicas
etc. etc.” E emenda: “assina-se Rua do Ouvidor
59, sobrado”. Os preços são de 2$000 os
quatro números de um mês, 5$000 o trimestre,
10$000 o semestre e 20$000 a assinatura anual.
Para as províncias, há apenas a opção do
semestre (11$000) ou anual (21$000). O
número avulso custa 500 réis
2
. A folha, ainda
na capa, alerta: “o pagamento é sempre
adiantado”. Surpreende, assim, pelo número
não usual de páginas: em vez das 8
costumeiras, agora são 12, mas divididas em
50% imagem e 50% texto. Adota o sistema de numeração crescente ou contínua.
A capa do primeiro número vem assinada por V. Mola, que havia dividido com
Agostini os desenhos de O Arlequim. Abusa de um estilo florido, com as letras de A Vida
Fluminense imitando trepadeiras, que reaparecerá depois em alguns trabalhos de Bordallo
Pinheiro. Mas o fato é que a novidade jogou a favor. No número 8, de 22 de fevereiro, na
segunda página (na numeração progressiva, é página 88), o redator diz:
A grande procura que tem tido os sete primeiros numeros de Vida Fluminense obrigarão-
nos a reimprimil-os. Infelizmente a reimpressão, se bem que feita em grande escala, não
pode satisfazer todos os pedidos que nos forão dirigidos. Hoje que algumas pedras que
continhão os desenhos já não existem, vão ser novamente desenhadas. Em quanto não
ficarem promptas não podemos aceitar assignaturas senão do mez de Fevereiro em dian-
te (PR SOR 2154).
É provel que a revista tenha sido mesmo um sucesso. O tom crítico, que
denuncia de algum modo a visão inquieta de Agostini, permeia o texto e as
caricaturas. É possível imaginar o clima de troca de idéias com que a revista ia
sendo produzida, a partir dos fatos da rua, das leituras dos jornais (o Correio Mercantil
é várias vezes citado nos comentários de fundo com que a revista abre cada
número)
3
. As indecisões do parlamentarismo do Império, as velhacarias do
Legislativo e o comportamento que já naqueles dias os congressistas exibiam são o
tema corrente do periódico.
Sem dúvida, a foto do italiano Hector Moneta, mostrada no número 3, ao lado
de suas vítimas, deve ter produzido impacto: ele havia assassinado sua namorada
Genoveva Cuyás, de 20 anos, ferindo gravemente sua mãe Joanna Cuyás e as irmãs
Leonor (18) e Carolina (14) Cuyás. Um crime passional. Na imagem, Moneta está no
centro da página, tendo as quatro mulheres ocupando os cantos, num desenho
Prospecto do lançamento de A Vida Fluminense.
173
baseado em fotografia. Também a biografia do Barão de Mauá, Irineu Evangelista de
Souza, deve ter sido motivo de boa venda do número 4. E, sobrepondo-se às miudezas
do dia-a-dia, paira a preocupação com a Guerra do Paraguai, que deveria ter acabado
no primeiro ano, mas que se prolonga, seja pela insistência de Solano López em aderir
a uma espécie de tática de guerrilha, num jogo de esconde-esconde, seja pela
persistência de Pedro II, em querer aprisioná-lo, sem acordos, numa espécie de idéia
fixa (CARVALHO, 2007: 101-125). Ilustra bem essa sanha a caricatura publicada no
número 15 de A Vida Fluminense (página 178): “Onde está López”. Em volta de uma
mesa, seis militares (o primeiro da direita lembra o perfil do Caxias), olham o mapa
do Paraguay, cada um com um binóculo, e a legenda entrega: “Onde estará López?!
Onde estará López?!! Onde estará López?!!!”
O editorial do dia 25 de abril de 1868 de A Vida Fluminense é claro:
A todo momento esperam-se noticias importantes do theatro da guerra. A população
nacional e estrangeira da capital do Imperio prepara-se para festejar dignamente o termo
da lucta em que ha tanto tempo nos vemos empenhados. Por toda parte correm
subscripções, agenciando donativos de diversos quarteirões da cidade e dos arrabaldes.
A provincia do Rio de Janeiro, seguindo o exemplo do municipio neutro, confiou a
commissões patrioticas, compostas das pessoas mais gradas de cada localidade, a tarefa
de dirigir os festivos aprestos. [...] Breve em todo o Brasil, desde o Amazonas até o Prata,
se ouvirá um côro solemne, um brado unissono de enthusiasmo e de prazer. Além das
festas que as commissões patrioticas preparam, muitos particulares tencionam fazer a
espensas suas, nas frentes de suas moradas, brilhantes illuminações, onde refulgirão,
entre milhares de luzes, flôres e bandeiras, os nomes dos heróes e as datas dos grandes
feitos (PR SOR 2154: 196).
No entusiasmo, provavelmente o redator esqueceu que a Cisplatina já não era
brasileira desde 1828. Mas dá serviço: lembrando que muitos leitores já se haviam
esquecido dos principais lances dessa guerra que iniciara três anos antes, diz:
“Entendemos por isso prestar um pequeno serviço aos nossos assignantes publicando
Capítulo 5
1866-1875
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
174
as datas mais memoraveis da guerra actual”. E enumera as datas das principais
batalhas, começando pela Tomada de Paysandu, em 2 de janeiro de 1865, passando
pela Batalha do Riachuelo, em 11 de junho do mesmo ano, o Ataque de Curupaity,
em 23 de setembro de 1867, a Passagem de Humaitá, em 19 de fevereiro de 1868. e
finalmente a “ocupação do quadrilátero e a fuga de López”, em 21 de março. Esse fato
mais recente alimentava as esperanças de tantas comemorações pelo final dessa
agoniante guerra. Que, sabemos, só terminará daí a dois anos, com a morte de López,
em 1º de março de 1870.
A página seguinte, desse mesmo número 17, traz os dados biográficos do capitão de
fragata Justino de Macedo Coimbra: ferido na Batalha de Riachuelo, volta ao Rio em
situação delicada, é condecorado com a Ordem do Cruzeiro, se restabelece e insiste em
voltar ao “theatro da guerra”, o que faz no comando do couraçado Silvado. Na passagem
de Curupaity levou no reboque o navio Tamandaré, avariado pelo ataque inimigo, salvando
com sua ação, entre outros, o capitão de mar e guerra Elisiario Barbosa. Vitimado de uma
febre paludosa, recusou-se ser recolhido a Corrientes para medicar-se, para não deixar de
tomar parte na passagem de Humaitá. Mas foi em vão. Justino morreu em plena batalha,
vítima da febre.
Mas o tema da guerra perpassa a pauta das edições anteriores: a capa do número 10
era composta com o retrato do capitão tenente Arthur Silveira da Motta, de Joaquim A.
Cordovil Maurity e do chefe de Divisão Delphim Carlos de Carvalho, heróis da passagem
de Humaitá. O número 11 de A Vida Fluminense vem com um pedido de desculpas pelo
atraso na entrega: foi devido à lâmina ilustrada com a cena da Passagem de Humaitá,
exatamente. A partir do número 18, de 2 de maio de 1868, a capa muda o visual e passa a
ter notavelmente a autoria de Agostini: os elementos estão mais organizados, há uma
cabeça no alto, com o título da revista.
São inúmeras as capas e as duplas centrais de imagem que retomam o tema do
conflito. No número 33, de 15 de agosto de 1868, um “pôster” central traz o General
Marquez de Caxias e o General Visconde do Herval. Na semana seguinte, a dupla central
é ocupada pela divisão de esquadra passando em frente das baterias de Tebiguary. No
O impacto do militar mutilado de guerra na pedra de Agostini (esquerda). A beleza da logomarca.
175
número 35, de 29 de agosto, a capa é ocupada pelo capitão tenente F. Etchebarne,
“segundo um retrato photographico que nos foi obsequiosamente offerecido pelo nosso
amigo capitão de fragata A. Silveira da Motta”. O desenho é também de Angelo Agostini,
num de seus melhores momentos: o capitão é retratado com olhar firme, impecavelmente
barbeado e vestido, e mostra o braço mutilado em meio a faixas em uma tipóia: é fácil
imaginar o impacto dessa capa perante o leitorado.
5.2.1. Vida Fluminense critica a Semana Illustrada
A revista segue o que foi o padrão até agora: a um texto questionador na abertura
(sempre na segunda página) seguem notas curtas. Depois, um texto leve, de ficção
seriada (continua por diversos números), como pode ser o “Um passeio no jardim”,
muitas vezes assinado por pseudônimo ou sem assinatura, como é o caso deste exemplo.
Beijos furtivos, silêncio de túmulos, recheiam essas narrativas picarescas, num estilo que
faz lembrar um pouco o teatro de vaudeville. A seguir, alguma charada ou enigma, e um
texto de crítica ou de comentário de teatro: as peças em cartaz ou em produção no
Teatro Alcazar, no Lyrico ou no Pedro II. No número de 15 de abril de 1868, por
exemplo, anuncia-se a apresentação da jovem soprano Elisa Persini, de apenas 18 anos.
A Grande Duchesse, de Offenbach, está em reprise na cidade: “ha noutes em que o Alcazar
mais se assemelha a uma caixa de sardinhas de Nantes do que a uma sala de theatro”.
Redator chique: usa na metáfora lata de sardinhas de Nantes...
A nota dialoga com a página de caricaturas no miolo da revista: desenhadas por
Agostini, mostra como se canta em italiano, alemão, francês e em brasileiro.
Em 25 de abril desse mesmo ano de 1868, na seção de enigmas e textos de
trocadilhos, se lê algo aparentemente inocente:
Capítulo 5
1866-1875
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O SÉCULO XIX
176
Meu tio Domingos acaba de instruir-me herdeiro de sua terça, que consiste em uma pequena
quinta lá para segunda-feira; ponho a fatiota na cesta que comprei ao Manoel da Pedreira, e
munido de uma quarta de sal, do fino e allemão, lhe offereço ao sabbado o producto desta
semana. Não será illustrada com plagios e propinas, terá sómente o merito da simplicidade e
da boa vontade com que é offerecida. Acceita? (PR SOR 2154: 197).
Há, além da brincadeira com os dias da semana, uma crítica à consolidada e
prestigiada revista Semana Illustrada, de Henrique Fleiuss, que segue em seu oitavo ano de
existência, mas começa a ser cada vez mais alvo de críticas. Plágios e propinas é mesmo
algo para deixar alguma insinuação no ar: Fleiuss copiaria de periódicos europeus a que
tinha acesso muitas das idéias e desenhos de sua publicação.
Essa crítica retorna no nº 27, de 4 de julho de 1868, num desenho de página dupla,
com a brincadeira de “Os supplementos para crianças”. O pai de família, bem vestido,
barba e bigode apurados, lê um encarte do periódico, sendo observado pela esposa. Três
crianças, sentadas no chão, se divertem e fazem chapéu com supostos “suplementos da
Semana Illustrada”. Na legenda se lê: “Conhecendo que já não póde mais agradar á gente
sensata, contenta-se a Semana Illustrada em divertir os meninos”.
5.2.2. A Vida Fluminense inicia “As aventuras de Nho-Quim”
Na edição 57, de 30 de janeiro de 1869, Angelo Agostini publica o primeiro capítulo
de uma série que o colocará num outro patamar da história das artes gráficas. As Aventuras
de “Nhô Quim”, ou impressões de uma viagem á Corte foi pensada mesmo como uma espécie de
folhetim gráfico, tanto que na linha fina abaixo do título o autor acrescentou: “História em
muitos capítulos”. É a estréia do “repórter do lápis” na história em quadrinhos e sua
primeira incursão com um personagem fixo – narra as peripécias de um caipira mineiro
perdido na capital do Império. A narrativa se desenvolve em uma série de situações
engraçadas, sempre em torno desse enfoque, mas com um “capítulo” completo em si,
apesar do gancho do “continua”, no quadrinho final.
Logo na abertura, o desenhista apresenta seu personagem, num texto.
Capítulo I (De Minas ao Rio de Janeiro). Nhô Quim, joven de 20 annos, filho unico de
gente rica porém honrada, namora-se de Sinhá Rosa, moça virtuosa, mas que... de louça
nem um pires. O velho Quim, tendo só em vista a felicidade do pequeno, entende que
mulher sem dinheiro é asneira; e por isso em logar de mandar o filho plantar batatas (o
que seria muito proveitoso na roça), resolve-o a dar um passeio á Côrte para distrahil-o
(PR SOR 2154: 728-729).
Está dada a largada, e serão muitos episódios, numa proposta inovadora não
apenas entre nós, mas em termos de artes gráficas em todo o mundo. Agostini busca
novas linguagens e narrativas visuais com a experimentação de angulação, que com o
passar dos capítulos vai se enriquecendo. A coleção reunida recentemente pelo
pesquisador Athos Eichler Cardoso
4
oferece a possibilidade de analisar o trabalho em
conjunto, com seus ângulos surpreendentes, alguns “abissais”, dessa primeira novela
gráfica da história. Mas essa análise escapa do alcance desta pesquisa. Cumpre apenas
ressaltar que os leitores desse primeiro capítulo, mesmo não tendo essa visão conjunta a
posteriori, terão se admirado com o primoroso trabalho de confecção do cenário de
fundo, algo inovador na época.
O capítulo 1 apresenta 20 quadros, em três camadas ou filas horizontais. Na
primeira, formada por 5 quadros, Nhô Quim se despede da família (abraçado ao pai e
à mãe, tem ao fundo duas moçoilas com a mão nos olhos de choro. Dois guris,
negrinhos, também choram. Outro negro, de cartola, segura o cavalo e acompanha a
cena). No segundo quadro, Nhô Quim a cavalo, seguido do negro de cartola montado
177
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178
num jegue, abana o chapéu num último adeus. No terceiro e quarto quadros, os três
dias de longa jornada na companhia do escravo, que agora é apresentado: o fiel
Benedicto. A fileira termina com o quinto quadro: a chegada à estação de trem.
A segunda fileira é compacta: 8 quadros, de tamanho menor. Nhô Quim se benze,
entra no vagão, cumprimenta educado um passageiro, senta-se, tira um queijo de Minas
que trazia escondido na bota, e oferece, para espanto desse passageiro a seu lado. Coloca-
se na janela para observar o movimento e seu chapéu é levado pelo vento. Nhô Quim
grita para o maquinista que “puxe a rédea da machina”. Em desespero, é impedido pelo
passageiro de se atirar pela janela. Nhô Quim lhe explica a importância do chapéu:
presente do pai, fita da namorada.
A terceira e última fileira tem 7 quadros: a conversa é interrompida pela passagem
em um túnel (quadro negro), saído da escuridão, Nhô Quim reza por estar vivo. O trem
pára, Nhô Quim desce para tomar um café, se queima por estar quente. Paga e espera o
troco, mas acaba perdendo o trem, que se foi da estação levando a bordo seu pajem
Benedicto. Sai em desabalada, pedindo ao maquinista que puxe as rédeas...
A história continuará – dentro de duas semanas, alternando, como se disse. Mas a
curiosidade foi espicaçada.
Esse trabalho chama atenção, mais além do ineditismo de uma história em quadrinho
seriada, pelos achados de Agostini. O quadrinho que mostra a passagem do trem pelo túnel
é um primor. Como escreve Gilberto Maringoni de Oliveira em sua tese de doutoramento
Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910):
A escuridão vem de surpresa, num registro impressionista totalmente intuitivo para aquele
rapaz de 26 anos que era Agostini. Numa época em que a prosa alencariana derramava-
se em descrições minuciosas de ambientes e paisagens, Agostini vai em sentido inverso,
numa narrativa concisa (MARINGONI, 2006: 164).
As “aventuras” deviam demandar um tempo extra do desenhista, tanto que
apareceram salteadas: após o número 57, reaparecem no 59, depois no 61, alternando
semanas. A série se publica de 1869 a 1872 – sendo que há registro de que algumas delas
foram finalizadas por Candido de Aragonez Faria (após a saída de Agostini)
5
, que teve o
cuidado de respeitar o estilo do criador.
Até os números finais de A Vida Fluminense, em dezembro 1875, o periódico se
envolverá com a polêmica de Chico Diabo na edição 139 (o soldado que teria assassinado
Solano López, dando fim à guerra contra o Paraguai), dará capas a personagens, como
fazendeiros notáveis (caso de José Pereira do Faro), secretários de Estado, escritores, tipos
do Rio, o mascate italiano (nº 138), e cada vez mais chefes militares, prenunciando a
importância que terão no desenrolar da política nas décadas posteriores ao conflito contra
o Paraguai até a proclamação da República. A encíclica papal e o início da questão
religiosa foi outro tema: a revista esteve sempre antenada com seu tempo. Nessa sua
segunda fase Angelo Agostini está em outra empreitada: O Mosquito. E A Vida Fluminense
passa para o comando da pedra de outro grande mestre italiano, Luigi Borgomainerio,
que chegara ao Brasil em fins de outubro de 1874, vindo de uma temporada na Argentina.
Luiz, como passou a assinar, fez “sua primeira pedra” a 14 de novembro do mesmo ano,
segundo depoimento de Joseph Mill, na Fígaro. Considerado pelo conterrâneo Agostini
como o “mais eminente artista que tem vindo ao Brasil”, dele diz Herman Lima:
Só a preciosa colaboração desse mestre do traço deformante, estendida de fins de 1874 a
março de 1876 (quando a revista se transforma no Fígaro) bastaria para dar-lhe um lugar
de relevo imperecível entre as nossas publicações do gênero. Seus números de 1875,
quando exclusivamente ilustrada por Borgomainerio, mostram realmente um artista que
seria grande em qualquer lugar do mundo, pela força de sua concepção originalíssima e
pelo vigor de sua execução não menos pessoal (LIMA, 1963: 1-101)
179
Borgomainerio encerra com chave de ouro os números finais de A Vida Fluminense
que fecha as portas no número 417, em dezembro de 1875, para dar lugar a um novo
projeto, O Fígaro, como se verá a seguir, no capítulo 6. Foram oito longos anos de uma
trajetória que deixou lastro.
5.3. As divertidas ferroadas de O Mosquito
A minuciosa pesquisa realizada por Orlando da Costa Ferreira e publicada no
livro Imagem e Letra não menciona uma única vez a oficina tipográfica Fluminense de
Domingos Luiz dos Santos, mas ela é co-autora de algumas pequenas pérolas entre as
revistas cariocas. A primeira delas é A Pacotilha do Tio Ignacio das Merces: jornal de pitadas,
carapucas, novidades e litteratura, semanário de propriedade de Matheus de Oliveira Borges
Filho e J. M. C. Tupinambá, que circulou na Corte ao longo de 1866, completando 32
números. Durante breve período foi impressa pela Typographia e Lytographia
Econômica. A partir do número 18 abrevia o nome para A Pacotilha, que usa até 18 de
novembro. Na semana seguinte, novamente resultado da associação entre o tipógrafo
Domingos Luiz dos Santos e Matheus de Oliveira Borges Filho, o jornal reaparece com o
título de O Pandokeu, e circula até 10 de março de 1867 (do número 33 ao 48). Nesses
semanários iniciou carreira um dos maiores ilustradores brasileiros do século XIX, Candido
Aragonez de Faria. De traço ainda indeciso, desenho tosco, Faria repetirá, de alguma forma,
o longo aprendizado que havia sido realizado por Agostini em sua etapa paulista.
Mas O Mosquito foi o grande sucesso da Typographia Fluminense de Domingos Luiz
dos Santos. Chegou ao público em 19 de setembro de 1869, apenas um ano depois de ser
lançada A Vida Fluminense, e como ela também terá vida longa: os mesmos oito anos,
completando apenas um exemplar a menos: fechará no nº 416, em maio de 1877. Essa
publicação da Typographia de Domingos Luiz dos Santos, semanal, provavelmente terá
buscado inspiração na similar portenha
6
e passará por diversas fases: das 8 tradicionais
páginas chegará, num período de maré baixa, a circular com apenas 4. Teve em suas
páginas o traço de alguns dos maiores ilustradores da época: no início, Candido Aragonez
de Faria (proprietário do jornal até maio de 1871)
7
e Pinheiro Guimarães, a seguir, Angelo
Agostini e, finalmente, o português Raphael Bordallo Pinheiro.
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Bíblia moderna: Borgomainerio ironizou o político Paulino José de Sousa usando a imagem bíblica de José do Egito
e a esposa de Putifar. Mas o político quer mesmo é o Ministério da Fazenda (a madame).
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
180
5.3.1. O Mosquito na primeira dentição: Candido Faria
A capa do número 1 de O Mosquito é modesta: um desenho de Candido Aragonez
de Faria mostra um homem-mosquito, de pequenas asas, sobrevoando os telhados e
casarios do Rio. Traz na mão esquerda uma folha onde se lê “Programa” – e a direita
empunha um crayon: o instrumento com que os litógrafos desenhavam a pedra. A
legenda esclarece: “Caindo sobre a cidade, não terei comtemplação, moças, rapazes e
velhos, arredem que vae ferrão”. Ou seja, o jornal promete cutucar com suas críticas e
comentários satíricos.
No alto, o cabeçalho com o logotipo O Mosquito traz na linha fina: “Jornal caricato e
crítico”. Sob a linha fina, os preços: na Corte, assinatura anual sai por 16$000, semestral,
9$000, trimestral, 5$000. Valores que sobem para 20, 11 e 6$000 nas províncias. O
exemplar avulso segue o preço de mercado para publicações ilustradas: $500.
O editorial, datado de 16 de setembro de 1869 (não há data de publicação na capa)
apresenta o programa:
Eis mais um jornal, supplicando um lugar entre aquelles, que se atiram n’um mar de
conjecturas, e que, sem a menor certeza do futuro, que os espera, deixam-se levar pelas
ondas da publicidade, sujeitando-se, muitas vezes, a um naufragio, por causa da calmaria
do publico, que não os quer proteger. Esperamos em Deus que isso não succederá ao
Mosquito, por causa da innocencia com que se apresenta, pedindo, unicamente, uma
gota de sangue de cada leitor (PR SOR 02147-1:2).
Não é, digamos, uma abertura alentadora: do ponto de vista do estilo de texto, o
redator mostra total descontrole das vírgulas. Mas há sabor e, na continuação, melhora: diz
que O Mosquito não tem grandes pretensões. Inseto pequenino, espertinho, com doce voz de
soprano, é próprio para qualquer hora da noite, em que o leitor não tiver sono. Promete
ferroadas políticas, teatrais e literárias, promete não fazer mal a moças, crianças, velhos e
flores. Assinantes e boa acolhida: é só o que deseja. O número é recheado com notas curtas,
com as prometidas ferroadas, e desenhos de Flumen Junius, Faria e Pinheiro Guimarães.
Em seu primeiro ano de vida, O Mosquito registra várias mudanças de endereço: da
Rua do Ouvidor 46 vai, na edição 17, para a Rua da Assembléia 67, e na 32 já se encontra
na Rua do Ourives 45. Na edição 48, de 14 de agosto de 1870, avisa que Flumen Junius
passa a ser do staff, embora o desenhista já tivesse ilustrado números anteriores (fora dele
a imagem da capa do número 47). Na semana seguinte, o próprio Flumen (como já se
disse, pseudônimo do gentleman Ernesto de Souza Silva Rio) escreve agradecendo a
menção. As capas vão mudando, no citado número 47 há o uso de um lettering mais
pesado, de aspecto gótico. A legenda: “jornal caricato e crítico”, embaixo do título, muda
para “jornal caricato e illustrado”.
Nos dois primeiros anos, a publicação traz nas capas desenhos de humor abordando
comportamento: a vaidade das moças, os erros da fala caipira, relação marido e mulher. Na
capa do número 5, por exemplo, uma moça com saia balão se olha no espelho e diz “As
moda de hoje é muito mais miór que as outra, tambem os sapato de sarto arto é mais bem
bonito que os outro”. A parceira de caricatura emenda: “Sarto arto! Falla mio, tapaiona”.
Na capa do número 18, a mulher toda produzida fala para o homem, sentado na
cadeira: “Então, Anastacio não sahes comigo?” O marido retruca: “Ora esta!, pois tu não
sabes que gastei o meu ordenado neste teu luxo exagerado? Sae pois só, porque eu não
tenho roupa para sahir”.
Já no número 47 a revista esboça um tema da política ou, digamos, social: dois
homens, um gordo e próspero, outro fino como um palito, conversam em uma drogaria
ao lado de uma pilha de caixas onde se lê “pirolas catharticas de Ayer para o Brazil”. A
legenda: Questão do dia por Flumen Junius. O diálogo: “By Gingo! Mr. Ayer! Porque
você manda tanta pirola cathartica ao Brasil?” “Oh, você não sabe que o Brasil agora não
trata senão do ventre livre?”
8
.
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Capa e apresentação do nº 1
de O Mosquito (no alto).
Desenhos de Faria e Flumen Junius.
E a autocaricatura de Faria,
o maior desenhista
brasileiro de seu tempo.
A Revista no Brasil
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Mesmo as páginas de caricatura não têm rebuscamento e muita inventividade.
Fiquemos em dois exemplos: “um pânico”, por Flumen Junius, publicado no número 49,
de 21 de agosto de 1870. São 4 tiras horizontais em que um grupo de seis homens e
mulheres, um cachorro à frente, um gato atrás, se encaminham para a esquerda da página,
onde aparentemente há um fantasma. Ao se darem conta, pânico (tira 2), o grupo cai ao
chão (tira 3), o homem à frente puxa a roupa branca e diz: “não é nada... é um lençol”. O
desenho é bastante curioso e bem realizado, pena que o conteúdo seja tão ralo.
Há uma tentativa de crítica social na página “Uma procissão modelo”, desenhada
por Candido Aragonez de Faria e publicada no número 41, de 25 de junho de 1870. Os
desenhos são ainda um pouco toscos, a leitura difícil, e não acrescenta ou revela uma
observação sagaz. Faria ainda está aprendendo.
A revista provavelmente passava por problemas de circulação ou credibilidade. Na
capa do número 53 (18 de setembro de 1870), coloca-se no frontispício: Proprietário C. A.
Faria. Na edição 74, de 10 de fevereiro de 1871, Candido Aragonez de Faria se queixa do
Sr. Carlos Drick, “ex-agente de O Mosquito e actualmente encarregado de obter assignaturas
para a Comedia Social, tem asseverado havermos suspendido a nossa publicação, sucedendo-
nos aquella folha. [...] Cumpre-nos, porem, declarar que o Mosquito goza d’uma saude de
ferro e promette viver longos annos... se o publico permitir”.
Nesse seu terceiro ano a revista entra numa fase em que publica retratos na capa,
abordando temas de política internacional, como conflitos na Prússia. A partir do número 99
volta a mudar de logotipo. No número 103 reforça: “O Mosquito vai ocupar-se de política. Já
se vê, política humorística, sem bandeira, sem compromissos, sem compradescos e sem
rolha” (2 de setembro de 1871). É mesmo um tempo de mudanças, a maior delas sendo a
ida de Faria para Vida Fluminense e a vinda de Agostini para O Mosquito, numa troca. Flumen
Junius ajudará Faria, ainda iniciante, na tarefa de ilustrar A Vida Fluminense. Mas a grande
virada em O Mosquito se dará no número 121, de 30 de dezembro de 1871.
5.3.2. O Mosquito aferroa com o crayon de Agostini
A chegada de suas Majestades: um festival de cartolas, com direito a batedores de carteira e esfrega-esfrega.
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Com portunhol amável, os dois chefes de Estado, Pedro II e Bartolomeu Mitre, escondem as garruchas.
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Capa renovada, data no cabeçalho, novo lay-out e... a conhecida figura de Angelo
Agostini. Vestido de gentil-homem cortesão, está postado ao lado de um cartaz
promocional do Correio do Brazil, que promete sorteios de 500$000 a cada lote de 6 mil
assinantes. A figura do gentil-homem, crayon ao fundo, desdobra um grande cartaz
onde se lê:
O Mosquito, ao povo soberano. Procurando sempre o caminho do progresso, O
Mosquito aceita com verdadeiro enthusiasmo qualquer idea grandiosa e nova, venha
ella d’onde vier. Seguirá, pois, o exemplo dado pelo novo collega Correio do Brazil.
Esta trombeta da publicidade promette alem de muitas outras cousas boas, dez premios
de 500$000 cada um sorteados pelos seus primeiros seis mil assignantes [...] (PR
SOR: 02147-1).
O periódico promete, chegando à marca dos 6 mil assinantes, dar 20 contos a
cada um, o que equivalia a ganhar uma assinatura anual. Há um tom de blague na
proposta. Mas é uma capa instigante. Na página 2 (com novo sistema de numeção,
sem ser seqüencial), o aviso aos leitores: a partir de agora, o periódico tem sua parte
ilustrada a cargo do Sr. Angelo Agostini, “artista bem conhecido do público, a quem
a história de Nhô Quim proporcionou boas gargalhadas”. Essa notícia agradável, diz
o redator, serve de comemoração de boas festas (o dia seguinte seria o réveillon de
1871). Nessa mesma página, chama atenção um comentário, “A poesia e o lar
domestico”, sobre a poesia de Narcisa Amália, comparando-a a Jorge Sand (sic) e
Mme. De Sevigné. Diz mais que isso: “Uma cousa podemos affirmar á fé de quem
somos e é que estes dois nomes, Jorge Sand e de Sevigné, não valem aquelle –
Narcisa Amalia”
9
.
O número seguinte, 121, de 6 de janeiro de 1872, marca a entrada no quarto ano da
publicação. “As festas do Mosquito”, título da capa, mostram o gentil-homem, crayon em
punho, em meio a um cipoal de imagens. Um bispo com um báculo, um narigudo de
cartola, uma moçoila em trajes festivos, um militar em pose de guarda, uma locomotiva
com os dizeres Estrada de Ferro D.P.II, do outro lado um prédio escrito Câmara dos
Deputados. Sobre um cavalinho de pau, um menino. Diz a legenda: “Isto sim! Tenho com
que brincar durante o anno”.
Na edição 124 o jornal promete que dará desconto de 20% aos assinantes que
fizerem sua subscrição diretamente nos escritórios do periódico.
Na edição 134, de 6 de março de 1872, um belíssimo desenho em página dupla
mostra Agostini em sua melhor forma: “Os festejos à chegada de SS.MM.II”.
10
A rua
O brilho de Agostini em duas capas e o ataque ao Dr. Semana: “Ainda está vivo? Ia levar coroa ao cemitério.”.
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Críticas à igreja:
o anticlericalismo
de Agostini chega
ao auge no ataque
às posturas
tramontanas e
hipócritas do clero.
Bazar Católico
Romano e Coisas
de Padre são
alguns exemplos.
Embaixo,
a brancadeira
contra o jornal
O Apóstolo e
seu redator,
o cônego José
Gonçalves Ferreira.
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da cidade toda embandeirada e em arcos, e o roça-roca da população, num mar de
cartolas: vários batedores de carteira em ação. Alguém surrupia a carteira de uma
dama, uma mão saída quase do nada leva o relógio de corrente do bolso de um
gordo cidadão, crianças choram, há um empurra-empurra, na ponta direita,um
homem pede satisfação a outro que deve ter roçado em sua senhora, etc. Agostini
justifica plenamente as considerações que Herman Lima faz sobre sua passagem por
essa folha:
Agostini e Raphael Bordallo Pinheiro (vindo de Lisboa, em 1875, para ilustrá-lo),
deixaram de sua passagem pelo Mosquito centenas de caricaturas do mais alto valor
artístico e satírico, sendo impossível sequer enumerar as melhores, muitas delas ver-
dadeiras obras-primas do gênero. Entretanto, não se pode deixar de citar pelo me-
nos [...] a grande composição de Agostini, a propósito da visita de Mitre, que viera
ao Brasil hipotecar os bons propósitos de seu país: o general argentino dando cordi-
almente um grande aperto de mão a D. Pedro, enquanto esconde atrás das costas,
com a mão esquerda, uma grande garrucha, o mesmo fazendo o imperador brasilei-
ro (LIMA, 1963: 1-104).
No final daquele ano bissexto de 1872, novamente o gentil-homem, em meio a
presentes natalinos, caixas de bebidas, um barril de ácido prússico (presente dos colegas da
Vida Fluminense e Semana Illustrada), um piano, faz as despedidas: “Senhores assinantes,
desejo-lhes boas festas, tão boas como as que recebi. Só falta-me receber a excomunhão
maior para minha alegria ser completa, quanto ao mais, aproveito a ocasião para
agradecer e... peço que me dispensem o discurso”. No balanço que faz, na página 2 desse
último número (um de seus mais belos textos), a constatação: “Grande setenta e dois!” A
seguir, em fotolegendas, alguns desses grandes momentos de O Mosquito, em sua fase sob a
batuta de Angelo Agostini.
Mais críticas à igreja no traço ácido de Agostini, como no desenho “Orgia franciscana” (acima. direita).
187
5.3.3. O Mosquito na terceira fase: a pedra de Bordallo Pinheiro
Ao chegar ao final de seu sexto ano os negócios não iam muito bem para o
proprietário de O Mosquito, Manuel Rodrigues Carneiro. Pode-se deduzir que a situação
financeira do periódico periclitava: a revista, com uma carteira de apenas 500 assinantes,
passa a ser editada com somente 4 páginas, sendo apenas as duas do miolo ilustradas. A
página de capa se parece agora muito mais com um jornal diário de texto. Angelo Agostini
havia partido, para organizar nova parceria com Paul Robin e lançar uma nova revista –
onde escreverá a melhor página de sua trajetória. Para tentar dar um novo rumo à
publicação, Manuel Rodrigues Carneiro traz de Portugal o desenhista Raphael Augusto
Bordallo Prostes Pinheiro, que chega ao Rio de Janeiro em agosto de 1875. Mas um mês
antes, na edição de 4 de setembro, a revista anunciava a chegada desse reforço. Com
longa folha de serviços em Portugal e passagem por publicações espanholas, Bordallo
vinha com o desafio de substituir Angelo Agostini.
Mesmo assim, dispondo apenas da dupla central, Bordallo Pinheiro consegue
algumas pequenas obras-primas, como na edição 314, de 18 de setembro de 1875: numa
imagem que se tornou clássica, D. Pedro II ocupa o centro da dupla, tendo atrás de si, em
tamanho liliputiano, seus ministros (o Duque de Caxias, Diogo Velho, José Bento). Ao
fundo, o cônego José Gonçalves Ferreira, redator do jornal católico O Apostolo, famoso por
sua pança proeminente, reza com olhar beato voltado para o alto. D. Pedro dá a mão à
palmatória que lhe aplica o ultramontano Pio IX. O papa, na mesma proporção da
imagem do imperador, tem uma das pernas atolada num caixote podre, com ratos, onde
se lê a palavra “Infalibilidade”. A seus pés, os bispos de Olinda, Vital de Oliveira, e do
Pará, Macedo Costa, sobrevoam o assustado ex-chefe de Gabinete, visconde do Rio
Branco e o ex-ministro João Alfredo, caídos ao chão, atordoados. A página tem, no alto, o
título “A Questão Religiosa” e embaixo a legenda: “Afinal... deu a mão à palmatória!”
Capítulo 5
1866-1875
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
188
Assim registra Herman Lima a fase da revista sob a direção do artista português:
A partir de 1875, com a chegada de Bordallo, O Mosquito se enche de magníficas compo-
sições desse grande artista, no que é acompanhado uma vez ou outra por alguma página
também do maior relevo artístico e satírico de autoria de Candido Faria, já no ponto
mais alto de sua arte no traço cômico (LIMA, 1963: 1-106).
Mesmo sem dispor de tantas páginas, o periódico vai dando seu recado: comenta a
estréia do Réquiem de Verdi, divulga e menciona as atrações da vida da cidade. Em
fevereiro de 1876, envolve-se, junto com Agostini e o cartunista Luigi Borgomainerio –
ilustrador italiano que, vindo de uma temporada na Argentina, ficara a cargo de A Vida
Fluminense e depois de O Figaro –, na polêmica contra o Jornal do Commercio. Os três haviam
sido atacados em um editorial do jornal pelo fato de, sendo estrangeiros, tecerem críticas à
realidade brasileira. As posições do velho jornal carioca, sobretudo na defesa dos bispos
ultramontanos de Olinda e do Pará, levou a população a tachá-lo de “jornal suíno-clerical”
(JELIN E TADDEI, 1996: 125)
11
. É interessante ler trechos do editorial assinado pelo
mestre português (12 de fevereiro de 1876), em sua defesa:
Ao folhetinista do «Jornal do Commercio»
Venho finalmente agradecer a V. Exc. as amabilidades com que me honrou no seu
folhetim de 30 do preterito, e contestar a necessidade notada por V. Exc. de conselhos
que não pedi, e menos auctorisados pelo meu procedimento. Desde logo ter-me-hia
dirigido a V. Exc. se a enfermidade que acabo de debellar não me houvera contrariado
os intuitos. V. Exc. deve saber perfeitamente a historia da caricatura; se lhe lembrasse
agora o que ella tem sido até hoje e deve ser no futuro [...] Há cinco annos que trabalho
na imprensa e, afora o Mosquito, tenho collaborado na The Illustrated London News, da
qual fui correspondente effectivo durante a revolução hespanhola, El mundo comico,
Illustracion española y Americana, Illustración de Madrid, Univers illustré, Artes e Lettras, Binoculo,
Lanterna Magica
12
, etc., etc. Pois bem, de todos os meus desenhos dois apenas, publica-
dos no Mosquito, poderão talvez, não sem algum trabalho preparatorio, ser premidos
nas garras inexoráveis da terrível sentença de V.Exc. Esses mesmos, quando os não
justificassem as manifestações da opinião publica, da qual não são mais que a expres-
são verdadeira e fiel, bastara para que me fosse alliviada a pena [...]V.Exc. leu, não só
Alfinetadas
contra Ferreira
de Meneses,
folhetinista
do Jornal do
Commercio
(“tenho bom
tabaco”) e enterro
do Dr. Semana.
189
Capítulo 5
1866-1875
O painel com cenas múltiplas compondo uma espécie de alegoria é uma característica da arte de Bordallo Pinheiro.
Na “Chronica destes tempos”, o destaque é a figura do cônego José Gonçalves Ferreira, redator de O Apostolo.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
190
a conscienciosa carta do meu amigo e mestre o Sr. Luiz Borgomainerio, como também a
do festejado e distincto artista o Sr. Angelo Agostini. Não pudera dizer melhor, nem
tanto, quem lhe dirige estas linhas. E permita-me que chame de novo a sua preciosa
attenção para esses trabalhos, que subscrevo completamente. Medite-os e verá mais
uma vez quanto foi leviana a condemnação em massa de todos nós, os caricaturistas
estrangeiros (PR SOR 02147.4).
Semanas depois a folha noticia a morte de Luigi Borgomainerio, que sucumbira à
febre amarela
13
, falecendo em conseqüência em 4 de março de 1876. Em 15 de abril
noticia outra morte: a da revista Semana Illustrada, que fora a mais importante publicação
na década anterior. O doutor Semana, a clássica figura que representava a publicação de
Henrique Fleiuss, é mostrado no esquife, velado por uma platéia de intelectuais. A
legenda da capa diz: “O Derradeiro adeus, por Bordallo Pinheiro”. “Chorae leitores,
chorae, que a Semana já morreu; Com a morte da Semana, toda graça se perdeu”
(música de Fadinho Chorado).
No último ano da folha, Bordallo divide desenhos com Cândido Aragonez Faria, a
revista volta à estrutura de 8 páginas dos anos mais prósperos, introduz anúncios na
última capa. Mas está com seus dias contados. Bordallo, já ambientado nos trópicos e com
relações estabelecidas, partirá para novos projetos, criando suas próprias folhas. E O
Mosquito fecha as portas em maio de 1877, ao bater a marca de 416 números.
5.4. As chinoiseries do Ba-ta-clan e as diabruras do Mephistopheles
Outras duas revistas de curto fôlego deixaram sua marca nessa década e meia, pelo
impacto de suas propostas: Ba-ta-clan (1867-1871) e Mephistopheles (1874-1875) – uma no
começo do período que este capítulo busca ressencear e outra no final. Faremos uma
rápida análise das duas a seguir.
5.4.1. Ba-ta-clan, humor francês sem sutileza
O Rio de Janeiro da metade do século passado sofria forte influência francesa. Foi
em Paris que o Marquês de Marialva, embaixador português, arregimentou o grupo de
arquitetos, desenhistas e historiadores que vieram em 1816 criar a Academia de Belas-
Artes do Rio de Janeiro, transformado um ano antes na capital do Império português. Era
de Paris que vinham as modistas que anunciavam seus préstimos nas páginas de
“Notabilidades” (anúncios classificados) do Almanak Laemmert.
Da França vinham os figurinos das principais revistas de moda da Corte. Falava-
se francês na intimidade da casa real. Assim, foram muitas as publicações bilíngües ou
apenas em língua estrangeira, especialmente em francês, como já se comentou no
capítulo 2, a propósito de L’Écho de l’Amérique du Sud, Journal Politique, Commercial et
Litteraire. Essas publicações iam de um simples jornal noticioso a revistas literárias,
como foi o caso de LArgus, Le Méssager, La Nouvelliste, Le Figaro Chroniqueur ou o Courrier
de Rio de Janeiro.
Mas nenhuma delas apresentou o vigor ou as ousadias de Ba-ta-clan, pela “espantosa
desenvoltura com que sempre se manifestou contra o governo imperial e os estadistas
brasileiros” (LIMA, 1963: 1-108). Dirigida por um francês, Charles Berry, a revista era
impressa em grande formato (em seu período áureo, em 1869, chegou a 46 x 32 centímetros).
Alternou fases em que circulava com 8 páginas, segundo o padrão da época, ou apenas 4. Mas
sempre mostrava na capa uma caricatura colorida a mão, em geral retratos-charge de execução
litográfica de alta qualidade, segundo atesta o historiador gráfico Herman Lima.
191
Capítulo 5
1866-1875
José de Alencar, ministro da Justiça, na capa do Ba-ta-clan nº 66, e a capa do nº 31 do Mephistopheles.
A atriz Ismênia
no papel de
Baroneza
de Cayapó
(02/01/1869) e
o Barão do
Rio Branco
(15/08/1868)
no lápis de
Alfred Michon.
À direita, o traço
de Candido
Aragonez de
Faria em plena
maturidade
(Mephistopheles).
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
192
Os primeiros números da revista abordavam mais os personagens e as atrações
culturais da Corte, nomeadamente teatro e alguma apresentação musical – no caso, a
ópera. Tanto que os personagens da capa ou eram literatos ou artistas de passagem para
alguma apresentação nos teatros na Corte – a revista dava preferência às atrações do
Alcazar e aos tenores que ali faziam suas récitas. Com o passar dos números, no entanto,
talvez estimulada pelas outras folhas semanais, o Ba-ta-clan migra para o comentário
político, e ministros e outras personalidades do Império aos poucos ocupam o espaço
antes dedicado quase apenas a tenores e sopranos. José de Alencar, o chefe de gabinete
Zacarias Góis, Torres Homem, o Visconde de Rio Branco, o Duque de Caxias – o who’s
who do Segundo Império – são mostrados nessa espécie de galeria da fama. Os meses
(ou, melhor, anos) de expectativa pelo final da Guerra do Paraguai provavelmente
impunham essa troca.
Por suas páginas passaram diversos desenhistas em atividade no Rio dessa época:
Joseph Mill, Corcovado, Pinheiro Guimarães. Mas foi Alfred Michon o de maior
permanência. As charges de autoria de Michon, caricaturista francês importado pela
publicação, “particularmente seus portraits-charges, são sempre admiráveis, com algumas
cabeças magníficas, embora se ressintam, no conjunto, do velho vício da macrocefalia e do
desajustamento de atitude do corpo e da posição da cabeça da figura, feita sempre à
maneira de retrato” (LIMA, 1963: 1-110).
Numa de suas edições, nº 21, de 19 de outubro de 1867, sob o título “Atualidade”,
Ba-ta-clan mostra um índio, que representa o Brasil, dirigindo-se ao mandatário argentino
Mitre, que se acha empoleirado na proa de um navio de guerra, pescando com vara e
anzol, enquanto o general brasileiro Joaquim Inácio descansa confortavelmente numa
cadeira de campanha. Abaixo, o seguinte diálogo: Le Brésil: “Mais que faites vous donc
là?” Mitre: “Moi?... rien”. Joaquim Inácio: “Et moi, je lui aide”.
A malícia de que sempre se revestiu a revista baseia-se menos no desenho do que na
legenda que acompanha os perfis, focalizando sempre os nossos homens públicos com a
mesma sem-cerimônia, quando não com uma imprudência brutal. O visconde de Rio
Branco, por exemplo, é assim apresentado, no número de 15 de agosto de 1868: “Autrefois
libéral, il est conservateur. Le fait est très commun. Depuis longtemps j’observe que dès
que lê concombre a vu tombeur sa fleur, bien vite en un bocal on le met en conserve”
(LIMA, 1963: 1-110).
A revista, sempre segundo Herman Lima, fechou as portas com a falência da
empresa – em parte porque os negócios do editor Charles Berry não iam bem como
conseqüência da guerra franco-prussiana, em parte porque a publicação havia se
transformado num noticioso que reproduzia boletins da guerra. Algo que,
aparentemente, não interessaria a seu público. Lima insiste no caráter insolente do
editor e contrapõe que as outras ilustradas cariocas, Vida Fluminense à frente,
freqüentemente davam alfinetadas em Charles Berry: “São de fato inúmeras as
charges, principalmente de Agostini, alusivas aos desaforos de Ba-ta-clan, e de seu
dono, apresentado como um ridículo e pançudo mandarim ou como o nec plus ultra de
todos os judas” (LIMA, 1963: 1-111).
5.4.2. O meteórico Mephistopheles
Assim a revista, lançada em 27 de junho de 1874, apresenta seu programa: “Eu sou
Mefistófeles, alma de Satã, coração de gelo. Tive alma de anjo, mas quis dominar, quis
subir à força e caí. Conheço os meus iguais à distância. Aí andam eles por toda parte, nas
igrejas, palácios, nos conventos e quartéis”.
A revista publicada por Candido Aragonez de Faria em associação com o impressor
hamburguês Paulo Hildebrandt prometia tirar a máscara de seus iguais e mostrar que
193
Capítulo 5
1866-1875
todos riem: “Se na igreja, em oração, recolhidos, arrependidos... tiro-lhes a máscara, verão
que riem [...] Nos tribunais, nas praças, nas ruas, nos cemitérios [...] se julgam, se pedem,
se choram, tiro-lhes a máscara, verão que riem”.
João Paulo Hildebrandt montara, em 1872, a Nova Typographia de J.P.
Hildebrandt, e se associa com o agora experiente desenhista Candido Aragonez de Faria
numa de suas primeiras incursões pelo ramo editorial. Mais adiante lançará títulos
duradouros, como o Mequetrefe, a A Distracção (1885-1887), ou efêmeros como A Vespa
(1885, com apenas quatro números) e Gryphus: revista litteraria, humorística e ilustrada (1888,
apenas oito números), mas não menos importantes do ponto de vista da qualidade gráfica
(delas se falará no capítulo 7).
Essa Mephistopheles foi inteiramente desenhada por Faria, que conseguira finalmente
espaço para mostrar o domínio técnico e talento que depois brilhará na longeva Mequetrefe,
analisada no último item deste capítulo. Sobre esse momento da trajetória do que será o
mais importante ilustrador brasileiro do século XIX escreve Herman Lima (justamente ao
abordar as críticas e insinuações de plágio que Agostini, então à frente de O Mosquito, fazia
ao jovem desenhista):
A verdade é que Candido de Faria se impõe ao menos a partir de 1874, quando lançou o
Mefistófeles, para depois ingressar n’O Fígaro, como caricaturista de imensos recursos, não
só na concepção de suas charges, como na execução de seus desenhos. O traço agora é
duma firmeza sem vacilações, ao mesmo tempo vigoroso e elegante, seja no recorte das
cenas de interior, seja nos flagrantes de rua. Suas damas retratam muito bem a vida
social do Segundo Reinado, com as suas pequenas comédias, as suas intrigas de salão e
alcova, as pequenas misérias da vida conjugal sem novidade, aliás, desde a expulsão do
Paraíso (LIMA, 1963: 2-814).
A publicação chega apenas ao número 72, sendo absorvida por O Mosquito a partir
de novembro de 1875. Havia durado pouco mais de um ano, mas fora o suficiente para
Faria se firmar como membro do primeiro time. Quando o periódico desaparece, é assim
que o pessoal de O Fígaro – lançado em janeiro do ano seguinte, como continuação de A
Vida Fluminese – se refere a ele: era o elenco de uma companhia lírica completa, em que
Faria seria a prima-dona absoluta. Seguramente o elogio terá partido de Luigi
Borgomainerio, outra estrela do primeiríssimo time da reportagem gráfica.
5.5. De Minas para a Corte: a saga de O Sexo Feminino
Criada por uma combativa professora no interior das Minas Gerais, uma publicação
fará tanto sucesso que sua mentora se mudará, de “mala e cuia”, para brilhar na Corte:
essa revista foi O Sexo Feminino. Iniciada por Francisca Senhorinha da Motta Diniz na
cidade de Campanha, Minas Gerais, seu primeiro número apareceu num 7 de Setembro
de 1873. Arrebanhando rapidamente um número de oitocentas assinaturas, algo notável
para a época, o periódico não demorou a alcançar a Corte, para onde a redação se
transferiria dois anos depois.
Nascida em São João del Rei, Francisca era professora e sua atividade docente se
revela nos textos da publicação, que produzia com a colaboração das filhas e de outras
senhoras, inicialmente de Campanha, depois do Rio de Janeiro. Após alguns meses de
interrupção, como se disse, a revista passou a ser publicada no Rio de Janeiro, a partir de
22 de julho de 1875.
A educação e o aprimoramento da mulher, assuntos que foram os carros-chefe de O
Jornal das Senhoras, voltam com força no periódico dessa mineira. A ignorância, não o
homem, era o inimigo com quem a mulher deveria lutar. A ignorância fazia que ela
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
194
desconhecesse seus direitos, tornando-a escrava e não companheira do homem, ensina a
professora. Para Francisca Senhorinha, a mulher educada seria a solução para os
problemas brasileiros – tudo se resolveria com sua efetiva participação na sociedade.
Essa professora foi pioneira em sua postura em favor do voto feminino. Quando,
após a proclamação da República, o voto foi estendido a todos os homens alfabetizados,
excluindo as mulheres, Francisca mudou o nome da publicação para O Quinze de Novembro
do Sexo Feminino, trazendo uma coluna para a discussão sobre o voto e a participação da
mulher na política.
O próprio nome da publicação [O Sexo Feminino] mostra seu caráter mais comprometido. O
tom das matérias demonstra esse espírito, como podemos ver em alguns trechos, publica-
dos na matéria “O que queremos”, de 25 de outubro de 1873: “Queremos a nossa emanci-
pação, a regeneração dos costumes; / Queremos reaver nossos direitos perdidos; / Quere-
mos a educação verdadeira que não se nos tem dado a fim de que possamos educar tam-
bém nossos filhos; / Queremos instrução para conhecermos nossos direitos e dele usarmos
em ocasião oportuna; / Queremos conhecer os negócios de nosso casal, para bem administrá-
los quando a isso formos obrigadas; / Queremos, enfim, saber o que fazemos, o porque, o
pelo que das coisas; / Queremos ser companheiras de nossos maridos, não escravas; / Só o
que não queremos é continuar a viver enganadas” (BUITONI, 1981: 23).
Vamos analisar o conteúdo de um de seus números.
O semanário tem formato um pouco menor que as revistas semanais atuais: 23 x 16
cm. Na parte de cima do cabeçalho, as informações: “Anno 1, Cidade de Campanha, 7 de
Setembro de 1873. Num.1”. Segue um fio duplo, e o logotipo O SEXO FEMININO. A
linha fina completa, ainda em maiúsculas: “Semanario dedicado aos interesses da mulher”.
A seguir, separado por um fio pequeno, três blocos: a) Assignaturas. Por ano.. 5$000. Por
semestre... 2$500. Publica-se 1 vez por semana. b) A epígrafe: “É pelo intermédio da
mulher que a natureza escreve no coração do homem”, Aimé Martins. c) “Observação.
Capa do nº 1 de O Sexo Feminino (equerda) e o jogo de quatro páginas do número 2.
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Capítulo 5
1866-1875
Toda correspondencia será dirigida á D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz”. O bloco
do logotipo fecha com a linha: “Proprietaria e redactora – D. Francisca S. da M. Diniz –
collaboradoras, diversas”.
O primeiro número abre com um editorial: “A educação da mulher”. Não traz
assinatura, mas mostra a bandeira da publicação:
Zombem muito embora os pessimistas do apparecimento de um novo órgão na imprensa.
[...] O Sexo Feminino apparece, hade luctar, e luctar até morrer: morrerá talvez, mas sua
morte será gloriosa e a posteridade julgará o perseguidor e o perseguido. O seculo XIX,
seculo das luzes, não se findará sem que os homens se convenção de que mais da metade
dos males que os opprimem é devida ao descuido, que elles tem tido da educação das
mulheres, e ao falso supposto de pensarem que a mulher não passa de um traste de casa. [...]
Em vez de paes de família mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, lavar, cosinhar,
varrer a casa, etc., etc., mandem-lhes ensinar a ler, escrever, contar, grammatica da lingua
nacional perfeitamente, e depois, economia e medicina domestica, a puericultura a litteratura (ao me-
nos a nacional e portugueza), a philosophia, a historia, a geographia, a physica, a chimica [...]; que
estas meninas assim educadas não dirão quando moças estas tristes palavras: “Si meu pai,
minha mãi, meu irmão, meu marido morrerem o que será de mim!!” (PR SOR 00075 [1])
Na semana seguinte, 14 de setembro de 1873, a editora volta à carga, com o
editorial “Emancipação da mulher”. “Já circula por ahi o primeiro numero do Sexo Feminino,
periódico que se dedica a defesa dos direitos da mulher”, diz ela na abertura. E reafirma
sua fé na capacidade transformadora do aprendizado. “É à sciencia, não á espada que
incumbe dicidir as mais complicadas desavenças humanas”. Prepare-se o futuro pela
educação e instrução do sexo frágil, brada.
Esse segundo número continua na segunda página com outro texto retórico: “A
minhas patrícias” repete a constatação de que a mulher é um “joguete que o capricho de
qualquer estóico coloca no canto da casa ou atira barbaramente à última escala social”.
“Instrução para o sexo feminino minhas caras patrícias! Não cessemos de pugnar e clamar
até que completamente consigamos este desideratum!”
A seguir, um problema de aritmética, proposto pelas normalistas da escola de
Campanha: perguntam a um aritmético que horas são, e ele responde que são ¾ dos 5/6
dos 7/12 dos 6/7 de 24 horas. Que horas são? Bom, a revista não dá a resposta.
A questão de gramática proposta pelas normalistas é saber se é correto escrever a
preposição a com acento agudo estando ela anteposta a nomes masculinos e a infinitivos
de verbos. “A dilucidação deste ponto virá corrigir muitos impressos e manuscriptos que
descuidadosamente por ahi correm” – mas novamente a publicação não esclarece qual a
resposta correta. Mas deixa entrever que a crase já era um problema há mais de 150 anos.
A educação da mulher volta a ser tema de outro artigo assinado anonimamente por
“uma campanhense”. A seção “Litteratura” discute se educação é o mesmo que instrução:
“O homem instruído não é sempre o mais bem educado, assim como o homem bem
educado pode ser o menos instruído”, conclui a articulista Amélia Diniz, que pelo
sobrenome pode ser uma das filhas da fundadora da publicação.
Segue-se a seção “Noticiário”: dá conta de debates parlamentares em favor de
escolas públicas. A seguir, fala de mulheres que se formaram em medicina nos Estados
Unidos, desejando que isso venha a ocorrer em breve no Brasil. Noticia a transferência do
professor Zeferino Dias Ferraz da Luz para a aula prática anexa à escola normal. E
comenta o aumento das matrículas na escola particular de instrução primária dos
professores Chaves e Alvarenga.
A revista termina seu segundo número com uma nota sobre concurso para o
magistério público primário em Campanha. E faz anúncio da peça em cinco atos “Luxo e
Vaidade”, a $500 o ingresso.
Em sua quarta edição a publicação critica o uso indiscriminado de expressões
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
196
francesas (“É um erro contra a pureza da lingua, e consiste no desprezo das palavras
portuguezas puras e proprias para substituir por palavras e phrases puramente francezas
com affectação infeliz e pueril”), volta a colocar a leitura em elevado patamar (“as
mulheres são no mundo moral o que as flores são no mundo physico. Deus também
ensaiou fazer composições: a sua prosa é o homem, a sua poesia é a mulher”).
No número 6, na última página, sob a rubrica “noticiario”, se lê: “Aos nossos
assignantes, uma grata noticia – Este periodico tem o indizível prazer de scientificar aos seus
leitores que vai enumerar como collaboradora uma das pennas mais hábeis da côrte. A Exª.
Srª. D. Narcisa Amália, poetisa distincta, litterata não vulgar, talento trancendental, está
acima de qualquer elogio que a penna mais bem preparada possa tecer”.
Esse periódico, de 4 páginas, era impresso na Typographia do Monarchista, em
Campanha. Um jornal pequeno, de poucas páginas, mas denso e batalhador. Apenas
texto, nenhuma gravura ou promessa de moldes ou partituras de música. E um discurso
coeso. Não é difícil imaginar que Francisca Senhorinha da Motta Diniz escrevia de forma
inflamada, convencida de sua missão de formadora mais além das salas de aula. E as
leitoras, ao assinar a revista, sabiam que encontrariam notícias e argumentos a reforçar
suas tentativas de mudar um pouco sua situação. Afinal, como dizia a professora ao final
do editorial do primeiro número: não se preocupem os pais e os maridos de que suas
filhas ou esposas se eduquem e instruam. Não se aflijam se elas não aprenderem a coser,
lavar, engomar, cortar uma camisa. Pois a riqueza intelectual produzirá o dinheiro e com
este se satisfarão as necessidades. O dinheiro, concluía ela, Deus o dá e o diabo pode tirar.
Mas a sabedoria que Deus dá o diabo não roubará.
Esse exemplo de uma revista gestada no interior de Minas Gerais e que, dado o
sucesso, dois anos depois se transfere para a capital, para o Rio de Janeiro, mostra tempos
novos com demandas novas. Outras revistas virão para atender ao crescente interesse
feminino por publicações periódicas. No capítulo 7, último desta pesquisa, voltaremos a
comentar sobre A Estação, A Família, de Josefina Álvares de Azevedo, e A Mensageira, de
Presciliana Duarte de Almeida, publicada em São Paulo entre 1897 e 1900.
5.6. As ironias da nova turma de O Mequetrefe
Em 1875 a Nova Typographia de J. Paulo Hildebrandt já ganhara experiência com
a experiência do Mephistopheles e se encontrava equipada com o que de melhor havia no
Rio, pronta portanto para lançar sua publicação de maior impacto, O Mequetrefe, de
propriedade de E.J. Correa e Pedro Lima. Por suas páginas, ao longo de dezoito anos de
existência do periódico, desfilarão grandes ilustradores, como Candido Arangonez Faria,
Antonio Alves do Vale, Antonio Bernardes Pereira Netto, Joseph Mill e Aluízio Azevedo,
que faz nesta publicação sua estréia como caricaturista, utilizando o pseudônimo de
Arthur Lucas (Bambino). A redação de O Mequetrefe contou com colaboradores de
nomeada, como Artur Azevedo, Olavo Bilac, Henrique Lopes de Mendonça, Raimundo
Correia, Filinto de Almeida. Por algum tempo foi seu redator chefe Lins de Albuquerque
(LIMA, 1963: 1-116).
A revista não foge da receita criada por Henrique Fleiuss quinze anos antes e que
era, em linhas gerais, seguida por todas as semanais ilustradas. Como diz Herman Lima,
no espírito a revista não se afastava das congêneres, criticando sempre, impiedosamente,
com verve e sarcasmo, os políticos, o clero, figuras antigas e familiares do lápis dos
caricaturistas:
Pelo lado artístico, O Mequetrefe se distingue em grande relevo, pela alta classe da maior
parte das composições, devidas principalmente a Faria e a Pereira Neto. Ambos já se
achavam no melhor de sua arte, o que lhes permitia uma desenvoltura de traço e de
197
Capítulo 5
1866-1875
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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execução que tornam vários de seus trabalhos em verdadeiros primores do gênero. Dignas
de nota são também certas charges de Aluísio de Azevedo que, às vésperas de abandonar
para sempre a caricatura, onde estreara como profissional em 1876, deixou, nas páginas
da revista, o atestado irrefutável de sua verve e de seu conhecimento da arte de caricare
(LIMA, 1963: 1-117).
Analisaremos dois números da revista: a edição número 3, de 16 de janeiro de 1875,
e a de n.º 39, de 23 de setembro de 1875, ambos do primeiro ano da publicação. Por que o
número 3? Porque, passada a euforia do lançamento, o jornal deve estar mostrando seu
ritmo normal. Mas a capa dessa terceira edição já anuncia mudança. No caso, mudança de
endereço: o desenho, de Antonio Alves do Vale, mostra que o Mequetrefe se transfere da
Rua da Alfândega 31 sobrado (endereço que aparece na capa desde o número 1) para a
Rua das Violas 72, enquanto o Mefistófeles vai para a Rua da Quitanda 29. Ao cruzar no
caminho, travam, o diálogo: “Seja feliz, colega. Olhe, não encontre por lá mosquitos”, diz
o Mefisto. “Não tem dúvida, tenho mais medo de pulgas”, responde o Mequetrefe. A
referência à publicação concorrente O Mosquito é clara.
Curiosamente, no entanto, ao avisar formalmente a nova direção, o redator
informa, na página 2: “O escriptorio do Mequetrefe muda-se no dia 17 do corrente para a
rua de Theophilo Ottoni 72, placa” – donde deve-se supor que a Teófilo Otoni seria
conhecida popularmente como a rua das Violas.
Logo a seguir, na seção “Releixos”, a publicação noticia os exemplares dos
concorrentes que acaba de receber: A Reforma, O Novo Mundo, A Patria, Mephistopheles, O
Mosquito, A Vida Fluminense, A Semana Illustrada, O Domingo. “Todos elles anunciam o
apparecimento de nossa folha, e a todos agradecemos o modo obsequioso por que o
fizeram”. O redator faz uma ironia contra A Vida Fluminense e termina citando os
comentários publicados pelos demais jornais sobre o aparecimento do Mequetrefe. É meia
página de citação. Apenas um trecho do comentário que fora publicado sobre a nova
ilustrada pelo Mephistopheles:
O Mequetrefe, meus caros leitores, é mais um jornal illustrado que vem á publicidade, e é
mais um campeão armado de penna e lapis, penna e lapis conhecidos do publico. A
amostra foi excellente, o primeiro numero é uma bella promessa. Certo de que minha
opinião, obscura como é, e muito valiosa que fosse, em nada influirá nos destinos futu-
ros do Mequetrefe, o que depende somente do gosto e, talvez, do capricho do publico, só
a consigno aqui, não só como cumprimento de dever para com os meus leitores, mas
também como uma sincera homenagem que me é agradavel render á uma redação em
que prima uma pena que já honrou e deu merecimento às columnas do Mephistopheles.
Não acredito que a sorte e a aceitação de um jornal ou de qualquer trabalho litterario
dependem do juízo que fazem d’elles e publicam certas autoridades, competentes ou im-
provisadas, com ou sem títulos*. Há apenas um julgador competente, um critico que é
capaz de crear a voga para um trabalho, ou decretar-lhe a condemnação. Este chama-se “o
público”. Ou, si gostam mais do sexo feminino, “opinião pública” [...] Confie o Mequetrefe
em seus recursos, procure captar as sympathias do publico e prosiga. [...]. A arena é vastissima,
há logar para todos (PR SOR 02155 [1]).
O largo comentário é elogioso e amigo, sobretudo sabendo as farpas que O
Mequetrefe havia lançado contra o Mephistopheles no seu número 1. Como se nota, há um
asterisco (na realidade, são três no total do texto), chamando para notas de rodapé. No
trecho citado, o asterisco levava para a observação: “Isso não é com o Mosquito, já se vê,
porque o Mosquito não forma juízo – anuncia quando quer proteger”.
De algum modo essa página mostra a beligerância que havia, nessa altura de 1875,
entre as semanais ilustradas do Rio de Janeiro. Nessa página 2 houve ataque a A Vida
Fluminense, agora ao Mosquito – duas publicações com o dedo de Angelo Agostini (que
editava a segunda e deixara na primeira seu amigo Luigi Borgomainerio). Embora a arena
seja grande e haja lugar para todos, ainda pipocarão muitas brigas entre esses periódicos.
199
Capítulo 5
1866-1875
O jogo completo do nº 3,
de 16 de janeiro de 1875.
A mesma fórmula
consagrada desde
A Semana: 8 páginas, 4
de imagens e 4 de textos.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
200
O restante da revista passa um tanto batido. Há uma página central com quatro
desenhos ocupando a dupla: na parte horizontal superior, a continuação dos quadrinhos
da “Questão religiosa”, iniciada no número 1
14
. É um comentário visual sobre um dos
temas que monopolizaram a opinião pública da Corte nesse período. No desenho, sete
ministros e políticos tentam, sem sucesso, arrancar um nabo, que continua firme, sem
sair do lugar (arrancar o nabo: eliminar o problema). O desentendimento entre o
governo e a igreja pela questão do patronato e da desobediência dos bispos de Olinda e
Pará continua. A parte horizontal inferior da página dupla é dividida em três charges. A
primeira ironiza a ineficácia da reforma do ensino, a segunda coloca dois velhinhos
lúbricos falando das atrações (as “cocotes”) dos teatros Cassino e Alcazar e a terceira
coloca um cliente careca que desiste de fazer a barba, pelo preço que o fígaro cobra por
seus serviços. Desenho simples, quase tosco, sem a elaboração de fundo, um requinte
visual a que o público da Corte já se acostumara.
As páginas 6 e 7, dedicadas a texto, trazem a continuação dos versos sobre o
periódico, iniciados na página 3, uma seção “Revista Theatral”, duas charadas, uma
crônica e um interessante comentário: “O que se vende, o que se aluga e o que se dá”.
A crítica teatral ocupa uma coluna (meia página) e não se detém em peça
nenhuma, mas faz um apanhado pessimista do que está em cartaz nos teatros da Corte –
e são muitos: o São Luiz, o São Pedro, o Cassino, o Alcazar, o Phenix, o Pedro Segundo,
o Gymnasio... Parece que o público deixa de aplaudir os grandes cantores líricos de
passagem pela cidade para prestigiar peças de segunda categoria (“Deixa passar o Salvini
e a Ristori, o Boldrini e a Palladini, insensível, indifferente”). O cronista ironiza e dá a
receita: “Encurtem mais as saias as artistas do Alcazar, dispam-se as do Cassino, e terão
público a não caber nos theatros”.
Há ironia no texto “O que se vende, o que se aluga, o que se dá”, uma deliciosa
crônica. A revista publica nesse número considerações sobre o que se vende, as edições
seguintes darão continuidade ao texto, falando do que se aluga e do que se dá:
O que se vende? Tudo, d’esde o amor até um volume de versos do Sr. Muniz Barreto;
d’esde a consciencia até a palha que cae dos volumes que passam pela alfandega! Tudo
se vende, d’esde uma benção do Santo Padre até um bilhete de confissão pela quares-
ma; d’esde uma graça do monarcha até um voto de deputado; d’esde uma assignatura
do Mequetrefe até um numero avulso do Apostolo. O amor e a consciencia, a graça e o
voto, quasi sempre mais caros do que os sobreditos versos e a palha, vendem-se ás
vezes por menos dinheiro do que custa o Apostolo (PR SOR 02155 [1]).
Há ainda ironia também na croniqueta “Quantos haverá como eu”, que encerra a
página 7 e a parte textual da revista. É a história de um pai que vem de Ouro Preto
visitar o filho, estudante de Medicina no Rio. Saem a andar, o pai se admira de um
homem gordo a banhar-se na praia de Santa Luzia, fica abismado com sua gordura.
“Não teria experimentado a menor sensação se de antemão lhe houvessem dito que era
um ‘cônego’ que se banhava”. A seguir, o pai vê um belo prédio, pergunta ao filho de
que se trata o edifício. O filho – suposto aluno do quinto ano de medicina – diz que
“nunca havia por ali passado”. Um sujeito na rua informa: “É a Escola de Medicina”.
Essa anedota começa com a seguinte frase: “O senhor Aniceto Mendes tinha um
filho de quem gostava tanto como o Sr. Figueira de Mello gosta de um artigo de fundo
do Apostolo”. Periódico católico ultramontano, O Apostolo
15
é mencionado três vezes nessa
edição do Mequetrefe: aqui, na crônica “O que se vende”, citada acima, e na “charada de
texto”, em que pedem à doutíssima redação do Apostolo que decifre o enigma. O
semanário religioso vive seu grande momento combativo na cena editorial da Corte.
A parte textual desse número fecha com a “Charada Illustrada”. O prêmio para quem
enviar a resposta certa até dia 31 de março de 1875 é uma assinatura de O Mequetrefe. Após a
vinheta, o crédito: Nova Typ. De J. Paulo Hildebrandt, rua da Alfandega 87, sob.
201
Capítulo 5
1866-1875
Sobre essa charada ilustrada com vinheta cabe lembrar que em seu número 1,
de 2 de janeiro de 1875, O Mequetrefe anunciara que iria introduzir em suas páginas
“uma novidade: desenhos sobre madeira intercalados no texto”. E acrescenta: “Sabe-se
quanto é custosa entre nós a xilografia. A despesa portanto e as dificuldades com que
vai tratar a empresa devem atrair-lhe a boa vontade do público que tem só com isto
prova eloqüente de que O Mequetrefe não nasceu para negócio”. O primeiro desses
desenhos xilogravados e inseridos no meio do texto será do espanhol Modesto Brocos
y Gómez (1852-1939), que chegara ao Brasil em 1872, aos 20 anos. Sua colaboração
eram essas vinhetas figurativas.
Na edição 39, de 23 de setembro
de 1875, o assunto candente é a
assinatura da anistia dos bispos
ultramontanos de Olinda e Belém:
o imperador quer viajar para o
exterior e encerra a crise.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
202
A última página desse terceiro número fecha com o desenho de um índio (no caso,
uma metáfora do Brasil, muito recorrente na caricatura da época) sendo devorado por
uma hidra de sete cabeças. As cabeças representam figuras do gabinete de ministros, o
Barão de Cotegipe à frente: “Eis aqui uma hydra mais prejudicial ao Brazil do que a do
jesuitismo. Se de ambas nos livrasse Deus...
Passemos ao número 39, de 23 de setembro de 1875. A capa mostra o Duque de
Caxias, presidente do Conselho de Ministros, com D. Pedro II, vestido do manto imperial e
com a coroa na cabeça. Estão sentados a uma mesa sobre a qual repousa um papel escrito
Amnistia”. A legenda diz: “É preciso fazer constar que eu fiz um sacrifício...” (fala do
imperador). “Enfim... como V.M. quer ir à Exposição...” (fala de Caxias).
Essa será uma edição temática sobre o desfecho da Questão Religiosa com a
concessão da anistia aos bispos desobedientes.
E é com o título “A Amnistia” que a revista abre sua “Chronica”, na página 2. O
tom é bastante rude e desaforado, como se o redator estivesse escrevendo aos gritos.
“Silencio em volta do throno! Descobre-te, canalha, que te chamas povo! Ajoelha-te,
imbecil, que queres ser cidadão! Descobre-te, e corteja! De joelhos, e adora!”, inicia o irado
editorial que ocupa uma coluna e meia. A ira se deve à anistia concedida aos bispos,
presos há dois anos, por desobediência devida ao Estado, do qual eram funcionários.
“Quando a perda do poder temporal tirou a Roma a supremacia do mundo, recorreu o
Papa á infallibilidade, e igualou-se a Deus; tu és catholico, apostolico, romano, e queres ter
livre a consciencia?”, pergunta o redator, que assina com o pseudônimo de Courrier.
A seguir, com o título “Repiquetes”, 5 notas curtas, todas referidas à anistia e à
futura viagem do imperador. A anistia aos bispos rebelados é vista como um incentivo à
desobediência:
Já não se prestará mais obediencia á lei, os tribunaes verão as suas sentenças por terra,
porque mais do que o povo póde a crinoline, mais do que a constituição e de que os
codigos brilha e ameaça a espada do Sr. Duque de Caxias. Ahi está explicada a mudança
ministerial! O Sr. Rio Branco não podia requerer a amnistia, e a corôa deixava perceber
a vontade de viajar (PR SOR 02155 [1] 23: 2-3).
Em outra dessas notas pequenas se lê:
O Apostolo anda satisfeito que é um regalo vel-o. Assim que foi publicado o decreto de
amnistia, o reverendo Ferreira procurou o Sr. Ministro d’agricultura afim de agradecer
por parte da associação catholica. Agora é que são ellas: o Reverendo voltava-se, retor-
cia-se; o Sr. Thomaz Coelho encolhia o ventre, e pucha d’aqui, arruma para acolá, não
foi possivel abraçarem-se os dois gorduchos personagens. O Reverendo buffava! O Con-
selheiro gemia! A casa tremia! (PR SOR 02155 [1] 23: 3).
Outra mais, agora comentando a viagem projetada pelo imperador, que pede
autorização ao congresso para se afastar por 18 meses:
Bem póde quem póde. O Sr. D. Pedro Segundo projecta viajar. Vae a Europa e depois
passará á América para assistir á inauguração da exposição de Philadelphia, e ao mesmo
tempo ver e palpar os grandes progressos d’aquelle grande povo americano. E em tudo
isso 18 mezes! E nós sem o nosso Imperador, a nossa unica garantia, unica couza que nos
deixa pensar que vivemos sob um systema constitucional e representativo. [...] ora, isso
nos parece sério, porque poderá o illustre viajante convencer-se que os progressos do
povo americano são devidos á sua forma de governo e, de volta ao Brazil dizer á consti-
tuição: nes masquez pas, e obrigar ao Sr. Duque a cantar o couplet de l’Archiduc: Original
jus-qu’a la moelle, Je suis Róis mais republicain (PR SOR 02155 [1] 23: 3).
A página se completa com duas outras notas. Uma fala das ganas dos parlamentares
por subsídios e jetons (sem empregar essa palavra) e a outra dá o exemplo do
203
Capítulo 5
1866-1875
O equilibrista (Mequetrefe de 14 de outubro de 1875). O traço de Joseph Mill se aprimora com o tempo:
D. Pedro equibra a cadeira do governo na disputa entre Otaviano, Caxias, Saldanha Marinho e o adiposo
relator de O Apostolo, cônego José Gonçalves Ferreira.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
204
Ajuntamiento de Madrid” (grafado errado) como um modelo a ser imitado pelo Rio: lá
as ruas estão limpas e se recolhe a sujeira à noite e se coleta pela manhã. No Rio, os
montes de sujeira infestam a cidade.
Na dupla central, páginas 4-5, a caricatura “A Amnistia” mostra uma divertida
procissão puxada pelo cônego José Gonçalves Ferreira, editor do Apostolo, volumoso ventre
à frente, espargindo pétalas de rosas. O Duque de Caxias pilota um volume da
Constituição do Império, como se estivesse a cavalo: nas rédeas, a palavra “Corrupção”.
Ao cavalo/constituição, o Barão de Cotegipe e Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque
costuram o Decreto de 17 de Setembro de 1875, o da anistia. Ao fundo, sobre um pudim,
bailam os bispos de Olinda e Pará. A legenda diz: “É n’essa hora em que os bispos
triumpharão, Além o sol em trevas se envolvia”. A caricatura não está assinada.
A dupla final de texto (6-7) é composta por 7 temas: “O Jesuíta”; “Os bilhetes do
Thesouro”; “A interpellação”; “Theatros”; “Companhia Lyrica”; “Perguntas Innocentes”;
“Telegramas á ultima hora”. Comentários e pequenas reproduções desses textos:
“O Jesuíta” é uma crítica à obra teatral de José de Alencar, que, pelo que se lê nas
ilustradas semanais, foi um fracasso total: “É de crer que, em signal de gratidão para com
o publico [que não foi ver a apresentação da peça teatral], volva o excellente escritor aos seus
romances”. “Os bilhetes do Thesouro” critica a decisão do Barão de Cotegipe, que
“manda que em todas as repartições não sejam recebidas as notas do thesouro que
estiverem escriptas nas costas ou que tiverem carimbos”. O redator relaciona uma série de
historietas que já viu escritas nas notas de dinheiro.
A nota “Interpellação” é uma pequena reportagem de cobertura de uma sessão da
Câmara dos Deputados, em que um representante do Rio Grande do Sul pede explicações
ao governo sobre o decreto imperial da anistia:
O distincto Sr. Silveira Martins disse que S.A.I. a Sra. Princeza D. Izabel promettêra a
Deus a soltura dos bispos, para que Deus lhe concedesse um parto feliz; disse que S.A.I.
passa os dias a varrer igrejas, andando descalça e fazendo penitencia
16
[...], que, educada
sob a pressão do mais revoltante fanatismo, a futura imperatriz do Brazil, governando,
renovará n’este desgraçado paiz o reinado de Maria, a doida! O povo applaudio o distincto
deputado Rio-Grandense, e o presidente da camara ameaçou o povo com a costumada
ordem de despejo! (PR SOR 02155 [1] 23: 6).
A seção “Theatros” dá quatro notícias críticas. Sobre a despedida do ator Antonio
Pedro, as atrações do Alcazar e do Cassino. A reapresentação da ópera Ruy Blas, de
(Filippo) Marchetti, é analisada com comentário da performance dos cantores e da
montagem: a posta em cena e a orquestra, garante o crítico, foram sofríveis! E novamente
O Jesuíta, de José de Alencar, no foco: “E era uma vez o Jesuíta! Não valeram á empreza do
S. Luiz nem o prestigio do nome do Sr. J. de Alencar, nem o título do seu drama, chamariz
infallivel n’esta epocha de bispos, de promessas, de fanatismo e de amnistia: o Jesuíta
naufragou”, começa o redator. E enumera de quem não foi a culpa do insucesso: nem da
empresa teatral, que fez o que pôde; nem dos atores, que não economizaram esforços;
nem da falta de anúncios, que os houve bombásticos; nem do tempo, que era esplêndido o
luar... Logo, fica implícito: o texto era muito ruim. A nota termina: “Nossos pezames ao
Sr. Conselheiro Alencar”. Como veremos adiante, Alencar não era personagem benquisto
no meio jornalístico.
Os “Telegrammas á ultima hora” fecham essa segunda parte de textos da revista.
São pequenas notas, tipo “pílulas”, em que se destaca esta: “Viagens em perspectiva. Em
vez de uma antes fossem duas. Dezoito meses, noves fóra nada. Antes levasse os bispos” –
uma menção à viagem do imperador: e ele deveria levar consigo os bispos da discórdia.
Na última página da revista, uma caricatura assinada por Joseph Mill retrata o
imperador, numa cena de baile, dialogando com um rapaz (que parece ser o caricaturista
Faria). Na legenda, o diálogo: “Então, veio também fazer a sua viagem picaresca?” (fala o
205
Capítulo 5
1866-1875
imperador); “É verdade, Sr., para retratar os gozos e os guitas, e deitar dorrico ás
moçoilas... ricas”. (Deitar dorrico seria fazer serenatas.)
A linguagem de O Mequetrefe, se fizermos a comparação com as revistas analisadas
neste capítulo e, sobretudo, as do capítulo anterior, revela picardia e síntese. A escolha dos
textos, curtos e mais diretos, a diferencia do que se via na Semana Illustrada, por exemplo. Há
menos humor de salão, menos chistes e jogos de palavras. Vai-se mais direto ao grão,
evitando as palhas. Em alguns momentos, a ironia fina faz lembrar algumas passagens da já
analisada Marmota, de Francisco de Paula Brito. Há uma consciência, parece, do valor da
leitura ligeira, de evitar meandros para dizer algo que pode ser enunciado de modo simples.
Nesses números iniciais (a revista circulará por dezoito anos, como se disse) o traço
das caricaturas ainda apresenta altos e baixos, mas se nota a preferência por utilizar
diversos quadros na dupla central, e não um tema único, para dar maior variedade aos
temas comentados. A partir de seu terceiro ano, a revista será enriquecida com o traço de
Faria, que migra para O Mequetrefe com o encerramento da Mephistopheles. Então, segundo
Herman Lima, o artista estará na maturidade de seu traço:
Os anos de 1876-78 assinalam o ponto alto de sua arte, entre nós, como caricaturista sem
paralelo entre seus confrades nacionais contemporâneos. Além de toda a sua colaboração
Faria e “o rei se diverte”.
Joseph Mill no embarque do imperador.
À esquerda, o desenho de
Aluísio de Azevedo: A Câmara dos
Deputados ao Barão de Cotegipe,
ministro da Fazenda: “Passa-lhe a
perna, coração, ele rincha mas não
morde!” (O Mequetrefe, de 28/8/1877).
Ao fundo, o imperador lê.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
206
Notas do Capítulo 5
1 Essa atração exercida pelo Rio não acontecia apenas entre
litógrafos e desenhistas. O sonho de fazer fortuna prestando
serviços na capital do Império era partilhado por modistas,
cabeleireiros, práticos médicos, músicos, como atestam os
anúncios publicados no Almanak Laemmert ou como se de-
duz de algumas das histórias do amoroso relato escrito/de-
senhado por Debret, três anos após seu retorno à França.
Basta conferir a história dos cabeleireiros Catilino e Desmarets
e do dentista de S.M.I, que fizeram fortuna em poucos anos
no Rio, conforme ele conta em “Loja de barbeiros”, prancha
12. Debret, Jean Baptiste: Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
2 O preço é considerado caro por Délio Freire dos Santos em
seu estudo sobre o Cabrião: equivale a um jantar ou à diária
de um hotel em São Paulo na época. Mas é exatamente o que
cobrará o Mequetrefe e o que vem cobrando a Semana
Illustrada desde 1860, ou seja, o preço padrão de uma se-
manal ilustrada.
3 Muitos anos depois, na edição de 27 de janeiro de 1900 de
seu Don Quixote, Ângelo Agostini, ao homenagear o recém-
falecido Américo de Campos, seu parceiro dos tempos do
Cabrião, descreverá o que era seu ambiente de trabalho: “Em-
preendemos um tipo de publicação então pouco conhecido e
que não deixava de ser um tanto arriscada. Era nosso com-
panheiro também o dr. Antonio Manoel dos Reis, boa pes-
soa, um tanto carola e que acabou por deixar a redação de-
pois de algumas discussões calorosas comigo, por eu andar
pintando uns padres no jornal e o S. Pedro com cachimbo na
boca, o que muito divertia o Américo, que tomava barrigadas
de risos” (citado por MARINGONI, 2006: 75). Ou seja, Agostini
devia ser um trabalhador tagarela que envolvia todos no tra-
balho e se envolvia no trabalho de todos, dando a tônica à
publicação. Mesmo não escrevendo de próprio punho todos
os textos, eles tinham a sua mão.
4 Angelo Agostini publicará, tempos depois, outra série, As aven-
turas de Zé Caipora, na Revista Ilustrada, de maneira não
regular de 1883 até 1886, retomadas depois no Don Quixote,
com maior regularidade. A série terá continuidade em O Ma-
lho. Todas elas foram reunidas em As Aventuras de Nhô-
Quim & Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-
1883. Essa seleção completa é resultado de oito anos de
pesquisa e tratamento de imagens realizados por Athos Eichler
Cardoso. O livro foi impresso pelo Senado Federal em 2002.
5 Como anota Gilberto Maringoni em sua tese, o último dese-
nho de Agostini em A Vida Fluminense foi uma quarta capa,
na qual aparece Solano López demonizado como o “Nero do
século XIX” (número 97, de 6 de novembro de 1869). Com o
desenrolar da guerra, Agostini deixara de lado a visão crítica
em relação à participação brasileira, exibida antes em Diabo
Coxo e Cabrião, e adere ao maniqueísmo belicista. Nesse
desenho, aparentemente a violência apenas parte do lado
paraguaio (MARINGONI, 2006: 84).
6 Há muita coincidência, nos títulos de periódicos desse perío-
do, entre publicações brasileiras e argentinas, como foi o caso
do Museo Universal daqui com o Museo Americano de lá. El
Mosquito, Don Quijote, Caras y Caretas e La Bruja são ape-
nas alguns exemplos. O El Mosquito argentino começou a
circular em 24 de maio de 1863, seis anos antes que seu
homônimo carioca (cf. CAVALARO, 1996: 90-101).
7 Cândido José Aragonez de Faria nasceu em Laranjeiras, na
então província de Sergipe del Rey, em 12 de agosto de 1849.
Filho de um médico, José Cândido de Faria, e de uma mi-
grante espanhola, Josefa Maria Aragonez. Muito cedo perdeu
o pai, e a família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde muito
jovem Cândido ingressou na Academia Imperial de Belas Ar-
tes, realizando ali sua aprendizagem. Tempo depois, faleceu
também sua mãe. Sob tutela do Juiz de Órfãos, Cândido co-
meçou a colaborar no semanário A Pacotilha (que a seguir
muda o nome para Pandokeu) em 1866, sendo-lhe conferida
quase exclusividade nas ilustrações. Com apenas 16 anos,
ele já comentava, com seus desenhos, os acontecimentos
da época, com o viés anticlerical típico dos caricaturistas de
então. Integrado rapidamente ao primeiro time dos ilustrado-
res, participou ativamente de A Vida Fluminense (1868), sa-
indo dali para criar O Mosquito (1869), de que foi proprietário
e que ilustrou em sua primeira fase. Colaborou com regulari-
dade em outros semanários, como o franco-carioca Ba-Ta-
Clan, A Comédia Popular, e o longevo O Mequetrefe. Criou,
em 1874, O Mephistopheles, e na seqüência O Ganganelli
(1875), Diabrete (1877) e Zigue-Zigue (1878). Neste último
ano, muda-se para Porto Alegre, onde trabalha como profes-
sor de artes em escolas e em seu ateliê. Ali, funda o semaná-
rio satírico O Fígaro. Em 1879 passa uma temporada em
Buenos Aires, durante o conturbado momento político vivido
pelo país vizinho, com a conquista da Patagônia e a eleição
do General Julio Argentino Roca. Participa da criação de La
Cotorra, lançado em 12 de outubro de 1879 (CAVALARO,
1996: 101). Colaborou ainda com o semanário satírico El
Mosquito. Com o endurecimento da situação política, Cân-
dido Faria muda-se para Paris. Na França continuou ilus-
trando revistas como La Caricature, mas é no desenho pu-
blicitário que se destaca, sobretudo na arte do cartaz ou
“l’affiche”. Faria presenciou a criação do cinematógrafo, in-
venção dos irmãos Lumière, e teria sido dele o primeiro
cartaz de cinema, o pôster do filme Les victimes de
l’alcoolisme, de Ferdinand Zecca, de 1902. Diversos carta-
zes promovendo eventos, hotéis, estações de esqui torna-
ram Faria muito popular na França – no início do ano 2000 a
Embaixada do Brasil promoveu na Galeria Debret a mostra
“Cândido de Faria (1849-1911), Un maître de l’affiche”. No
folheto dessa exposição, escreveu o diplomata Marcos
Azambuja: “Cândido acabaria por estabelecer-se em Paris
em 1882, onde viria a se consagrar como ilustrador e reali-
zador de cartazes até a sua morte, em 1911, sem jamais ter
renunciado à nacionalidade brasileira”.
8 A Lei do Ventre Livre será promulgada dia 28 de setembro
de1871: sua tramitação devia ser um dos assuntos correntes
daqueles dias.
9 Narcisa Amália de Campos nasceu em 3 de abril de 1852,
em São João da Barra, norte do Estado do Rio de Janeiro.
Filha do poeta Jácome de Campos e da professora primária
Narcisa Inácia de Campos, aos 11 anos muda-se com a fa-
no Fígaro, a maior parte de seus trabalhos no Mosquito, onde voltou a trabalhar em 1875, com
Bordallo Pinheiro, depois da saída de Agostini, e principalmente tudo o que nos deixou no
Diabrete e no Mequetrefe, a partir de 1877, não teme confronto mesmo com qualquer das
melhores composições de Bordallo ou Agostini. Não há qualquer exagero em dizer que
muitas vezes as ultrapassam, não somente pelo jogo de claro-escuro, em que se tornara
insuperável na litografia do tempo, como na originalidade do desenho, marcado sempre por
um sentido de profundo alcance satírico e vigor plástico. Especialmente no Mequetrefe, de
1878, algumas de suas caricaturas de Pedro II, pela virulência do traço e pela espantosa
liberdade de concepção, colocam-se à frente das sátiras artisticamente mais belas de toda a
vasta iconografia deformante do velho imperador (LIMA, 1963: 2-815).
207
Capítulo 5
1866-1875
mília para Resende e, em 1866, casa-se com João Batista da
Silveira, um artista ambulante, de quem se separaria pouco
tempo depois. Aos 20 anos, em 1872, escreveu Nebulosas,
poemas expressivos do romantismo, que alcançaram reper-
cussão nos círculos literários e exaltavam temas como a na-
tureza, a pátria e as lembranças que a autora tinha de sua
infância. Em 1874, publicou o livro de contos Nelúmbia. Foi
convidada a prefaciar um livro de Ezequiel Freira, As Flores
do Campo, trabalho que recebeu elogios de Machado de As-
sis, que chamou a escritora de “jovem e bela poetisa”. Em
1880, aos 28 anos, casou-se pela segunda vez com Francis-
co Cleto da Rocha, conhecido como Rocha Padeiro, dono da
“Padaria das Famílias”, em Resende. Passou a trabalhar com
o marido, mas continuou a organizar saraus em sua casa,
que eram freqüentados por amigos amantes da literatura, entre
eles Raimundo Correia, Luís Murat e Alfredo Sodré. É curioso
saber que até mesmo o Imperador Dom Pedro II chegou a
visitar Narcisa, em sua passagem por Resende, mesmo sen-
do a autora fervorosa republicana e abolicionista. Em 13 de
outubro de 1884, fundou um pequeno jornal quinzenal de nome
O Gazetinha, na realidade um suplemento voltado às mulhe-
res do jornal Tymburitá. O subtítulo desse suplemento era
“folha dedicada ao belo sexo”. Considerada a primeira mu-
lher no Brasil a se profissionalizar como jornalista, conse-
guindo viver de suas colaborações, seus artigos em favor da
abolição da escravatura e em defesa da mulher repercutiam
no círculo intelectual da Corte, como diversas citações deste
trabalho demonstram (foi comparada a George Sand e a
Madame Sevigné pelo entusiasmado redator de O Mosquito,
por exemplo
10 D. Pedro, terminada a Guerra do Paraguai, faz sua primeira
viagem à Europa. Parte dia 25 de maio de 1871 e retorna a
30 de março de 1872. Ele custeia a viagem com seus pró-
prios recursos (CARVALHO, 2007). O desenho de Agostini
antecipa os festejos de seu regresso, que estariam em pre-
paração.
11 A representação de padres, sobretudo do cônego Ferreira,
editor de O Apóstolo, com a imagem de um suíno é recor-
rente nas charges desse período, notadamente em Bordallo
e Agostini.
12 Bordallo refere-se à publicação portuguesa de mesmo nome,
criada em 1874, onde criou o personagem “Zé Povinho”, e
não à revista de Manuel Araújo Porto Alegre.
13 Raphael Bordallo também fora atacado pela febre amarela,
a enfermidade a que se refere no texto do editorial contra o
redator do Jornal do Commercio, mas passou ileso pela
doença.
14 A Questão Religiosa foi um dos temas candentes da década
de 1870, logo após a Guerra do Paraguai. Respondia a uma
onda de conservadorismo que marcou a Igreja Católica sob
o pontificado do Papa Pio IX, que – como já se disse –
decretou o dogma da infalibilidade papal, numa tentativa de
recuperar uma importância que a igreja perdia nos tempos
modernos. Tudo começou no Rio, no início de 1872, quan-
do um padre utilizou um palavreado maçônico num sermão
elogioso à Lei do Ventre Livre, proposta pelo presidente do
Conselho de Ministros, o Visconde do Rio Branco, que era
grão-mestre da maçonaria. O bispo do Rio, Pedro Maria de
Lacerda, suspendeu o padre das ordens sacerdotais. Dois
meses depois, o bispo de Olinda, Dom Vital de Oliveira, afasta
da diocese dois padres que se recusaram a abandonar a
maçonaria, impede o casamento de um maçom na igreja e
expulsa os praticantes da maçonaria das irmandades religi-
osas. Na seqüência, o bispo do Pará Antonio de Macedo
Costa interdita os sacerdotes de sua diocese que partici-
pam da maçonaria. Como ensina Murilo de Carvalho, os
dois bispos, funcionários do Estado pelo regime do Patro-
nato, haviam sido indicados por D. Pedro II justamente por
haverem estudado em Roma e serem intelectualmente mais
preparados – ironicamente, por haverem estudado em Roma,
voltaram com idéias reacionárias. A crise se estendeu de
1872 até setembro de 1875: em 1874 os bispos são con-
denados pelo Supremo Tribunal de Justiça a quatro anos de
trabalhos forçados. A capa do número 39 do Mequetrefe
coincide com o desfecho: Pedro II, com vontade de fazer
sua segunda viagem à Europa e, depois, visitar a Exposição
da Filadélfia, que comemorava o centenário da Independên-
cia dos Estados Unidos, apressa a anistia para viajar com o
problema resolvido. Cai o Gabinete do maçom Rio Branco e
assume o Duque de Caxias, que apressa a anistia imperial
aos bispos. E o imperador viaja (cf: CARVALHO, 2007: 150-
156).
15 O Apostolo: periodico religioso, moral e doutrinario, con-
sagrado aos interesses da religião e da sociedade foi um
importante jornal católico do Rio de Janeiro. De proprieda-
de dos padres redatores Joao Scaligero, Augusto Maravalho
e depois José Alves Martins do Loreto, foi lançado em 7 de
janeiro de 1866, circulando em diferentes formatos e no-
mes até 1901 (no período entre janeiro e novembro de 1894
passou a ter o título de A Estrella, voltando ao nome Após-
tolo a seguir). Seu período de auge se deu entre 1872 e
1876, quando teve como redator chefe o cônego José Gon-
çalves Ferreira. Nas páginas de O Apóstolo o cônego defen-
deu os bispos de Olinda e Pará, na controvertida questão
religiosa, atacou o Ministério Rio Branco, um dos mais ca-
tegorizados quadros da maçonaria – e sobretudo batia (fa-
lava mal) semanalmente nas revistas ilustradas. Por isso,
foi retratado com sua proeminente pança por quase todos
os caricaturistas – e celebrizado na grande composição de
Bordallo Pinheiro “Afinal, deu a mão à palmatória”.
16 “Isabel era uma ultramontana”, afirma José Murilo de Car-
valho ao traçar o perfil da herdeira como uma carola que
enquanto o pai enfrentava os bispos e Pio IX, correspondia-
se com o papa pedindo a canonização de Anchieta (CAR-
VALHO, 2007: 154).
O auge das revistas
ilustradas: 1876 a 1878
A ausência da palavra tem sido uma das características
mais constantes da nossa política. Não por acaso,
tivemos a Independência proclamada pelo grito de um príncipe,
que o hino nacional tenta transformar em brado de um povo heróico.
A própria República foi proclamada pelo grito de um marechal,
ao qual também se tentou desajeitadamente somar a voz popular.
Foram poucos os momentos, se houve algum,
em que a diferença, a discordância, a oposição, não foram
tratadas seja com um cala-a-boca, seja com o suborno.
José Murilo de Carvalho Pontos e Bordados,
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, pág. 311.
Capítulo 6
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
210
Revista Illustrada nº 283, de 21/01/1882.
211
Capítulo 6
1876-1878
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
212
1876 Illustração Brasileira: jornal de artes,
sciencias e lettras
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imperial
Instituto Artístico, 1876-1878
(40 números)
Editores: C. e H. Fleiuss
Illustração do Brazil
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Vivaldi,
1876-1880 (80 números)
Proprietário: Charles F. de Vivaldi
Illustração Popular
Rio de Janeiro, RJ: 1876-1877
(44 números)
Proprietário: Charles F. de Vivaldi
O Figaro: folha illustrada
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Academica,
1876-1878 (113 números)
Caricaturas: Luigi Borgomainerio,
J. Mill, Aluízio Azevedo,
Candido Faria, Pereira Netto
Colaborador: Visconti Coroacy
O Polichinello
São Paulo, SP: Typ. de Jorge
Seckler, 1876 (38 números)
Editor: P.P. Carneiro
Ilustrador: Huascar de Vergara
Revista do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Imprensa
Industrial, 1876-1877 (31 números)
Editor: Serafim Jose Alves.
Redator: Leo Junius
Colaboradores: Miguel Lemos,
Teixeira de Souza, Teófilo Dias
Revista Illustrada
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Paulo
Hildebrandt, 1876-1898
(739 números)
Editor: Ângelo Agostini.
Caricaturas de: Ângelo Agostini,
Pereira Netto e Hilário Teixeira
1877 A Comedia Popular: hebdomadário
illustrado e satyrico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Fluminense,
1877-1878 (27 números)
Caricaturas: Acropolis e Faria
Psit!!!: hebdomadário cômico
Rio de Janeiro, RJ: Lith. a vapor
Angelo & Robin, 1877 (9 números)
Ilustrador: Raphael Bordallo
Pinheiro
O Diabrete
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Theatral e
Commercial, 1877 (11 números)
Desenhada por Candido Aragonez
de Faria
1878 O Besouro: folha illustrada,
humorística e satyrica
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de G.
Leuzinger & Filhos, 1878-1879
(47 números)
Redator/colaboradores: José do
Patrocínio, Arthur Azevedo, Alberto
de Oliveira, Guerra Junqueira
Desenhos de: Raphael Bordallo
Pinheiro
O Torniquete
Rio de Janeiro, RJ: Lith. e Typ.
particular do Torniquete,
1878 (9 números)
Caricaturas: A.P. Caldas e
C. Ferreira
Zigue-Zigue: hebdomadário humorístico,
crítico, satiryco e ilustrado
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Cosmopolita, 1878 (1 número)
Desenhista: Candido Aragonez
de Faria
213
A
FIM
DA
S
EMANA
I
LLUSTRADA
,
DE
H
ENRIQUE
F
LEIUSS
. O F
IGARO
.
A R
EVISTA
I
LLUSTRADA
,
DE
A
NGELO
A
GOSTINI
. A I
LLUSTRAÇÃO
B
RASILEIRA
,
DE
F
LEIUSS
. A I
LLUSTRAÇÃO
DO
B
RAZIL
E
A
I
LLUSTRAÇÃO
P
OPULAR
,
DE
C
ARLOS
V
IVALDI
.
P
SIT
!!!
E
O B
ESOURO
,
DE
R
APHAEL
B
ORDALLO
P
INHEIRO
.
N
OSSA
PRIMEIRA
FOTORREPORTAGEM
.
Não houve fala do trono em 1876, mas o Almanak Laemmert publica no ano seguinte
um detalhado relatório das atividades do governo. Em 26 de março o imperador e a
imperatriz partiram para a segunda viagem ao exterior, desta vez à Europa e nos Estados
Unidos. Permanecem 18 meses fora do país, com a princesa Izabel ocupando a regência.
O alheamento do monarca às coisas da administração pública se acentua, como notam
historiadores, como José Murilo de Carvalho no belo perfil publicado recentemente. E
problemas não enfrentados e equacionados não se resolvem pela inércia, como parece ser
a crença meio estabelecida entre nós e que gerou o provérbio de que as abóboras se
acomodam com o andar da carroça. Os problemas não enfrentados fermentam e crescem,
como soubemos com a crise recente do setor aéreo.
O relatório “Actos do poder executivo”, publicado no suplemento do Almanak
Laemmert do ano seguinte, dá conta das insatisfações que vão se alastrando pelas
províncias. No início do ano anterior, 1875, o da falência do Banco de Mauá, um grupo
de republicanos e abolicionistas fundara o jornal diário Província de São Paulo, com
tiragem de 2 mil exemplares, dirigido por Francisco Rangel Pestana e Américo de
Campos. Enquanto isso, O Jornal do Commercio, fundado em 1827 pelo francês Pierre
Plancher, se equipa para publicar os primeiros telegramas com notícias da agência
internacional Reuters, o que só ocorrerá no ano seguinte. Na Corte ou nas províncias, a
imprensa repercute o mal-estar e a insatisfação que vão se instalando no país. Assim
resume o professor Gilberto Maringoni:
Por ser o principal fornecedor mundial de café, as demandas e as necessidades
do mercado internacional irrigam e organizam as bases da produção interna no
Brasil, especialmente após 1870. A crescente complexidade dos negócios do setor
cria uma teia de vínculos entre o setor produtor rural, os agentes de comércio, o
sistema de transportes, as casas financiadoras de crédito, o processo de estoca-
gem, a seleção de grãos e o ensacamento, e o sistema portuário. As cidades maio-
res deixam paulatinamente de ser meras organizadoras da vida rural, para se
tornarem o centro efetivo dos negócios, que necessitavam urgentemente de capi-
tais externos para se expandir. O Estado imperial, baseado numa relação rígida
com as províncias e numa burocracia lenta e desaparelhada, tornava-se um obstá-
culo ao desenvolvimento. Sua declinante capacidade de representar e articular
politicamente a ordem produtiva que se impõe resulta em crises freqüentes e
numa gradativa perda de legitimidade entre setores da oligarquia agrária
(MARINGONI, 2006: 198-199).
É nesse período de crises que 1876 – um ano bissexto – assistirá ao auge das revistas
semanais ilustradas. O pesquisador Joaquim Marçal Ferreira de Andrade o qualificará de
“ano heróico”, pelos acontecimentos e tentativas de avanço da imprensa ilustrada carioca.
Escreve ele:
Capítulo 6
1876-1878
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
214
O ano de 1876 é, pela nossa constatação ao final da presente pesquisa, o ano mais
marcante da história da imprensa ilustrada do Rio de Janeiro no século XIX, em face
dos periódicos cujas vidas ali se encerraram e a outros tantos que então tiveram o
seu início e que, por motivos distintos, marcaram tanto a definitiva consolidação do
modelo já anteriormente consagrado, dos periódicos litografados, e a definitiva com-
provação da inviabilidade do modelo europeu, já anteriormente tentado – embora de
maneira ainda acanhada, do ponto de vista do design – dos periódicos xilográficos (AN-
DRADE, 2004: 165).
Assim, no sábado, 1º de janeiro, dia da circuncisão do Senhor, do bispo são
Fulgêncio e do descobrimento do Rio de Janeiro em 1532 por Martin Afonso, segundo
lembra o Almanak Laemmert, a cidade do Rio é apresentada a três novos periódicos, O
Figaro, a Revista Illustrada e A Revista do Rio de Janeiro.
Pouco depois, em julho, será a vez da Illustração Brasileira: jornal de artes, sciencias e
lettras, tentativa de Henrique Fleiuss de retomar um espaço em que fora líder absoluto
quinze anos, com a sua extinta Semana Illustrada, que encerrara carreira meses antes. Ainda
em meios de julho o público leitor terá a oferta da Illustração do Brazil, de Charles Vivaldi,
que lançará no início do mês seguinte a Illustração Popular.
Já no ano seguinte, Candido Aragonez de Faria lança O Diabrete, que terá curta
duração de menos de três meses (de junho a setembro de 1876, totalizando 11 números),
participando ainda da criação de A Comédia Popular em agosto (que terá a duração de 27
semanas).
E o mestre Raphael Bordallo Pinheiro por sua vez lança outro periódico, também de
curta duração, o Psit!!!: hebdomadario cômico (circulou de15 de setembro a 17 de novembro
de 1877, fechando no número 9).
Mas antes de examinar esses lançamentos, um comentário sobre o final da carreira
de A Semana Illustrada: é consenso entre os historiadores o papel fundador de Fleiuss na
formatação dos periódicos semanais ilustrados da segunda metade do século XIX. O
escasso – e altamente elitizante, para usar a expressão de Carlos Guilherme Mota (1980:
22) – público leitor das revistas do século XIX acostumou-se com essas publicações de
formato maior do que o jornal comum, com oito páginas, metade impressa e a outra
metade litografada, como já se disse repetidas vezes neste trabalho. Henrique Fleiuss fez
escola, formou muitos desenhistas e artistas gráficos, mão-de-obra especializada que depois
irá brilhar nas muitas publicações que surgiram no rastro da Semana Illustrada. Ser elogiado
pela publicação do artista alemão conferia status.
O próprio Angelo Agostini, que na sua fase carioca marcou espaço atacando o
revisteiro com a série das “Apoquentações do Dr. Semana”
1
, anos antes, quando ainda
editava em São Paulo o Cabrião, teve a revista elogiada por Fleiuss e colocou o personagem
Sr. Dr. Semana na capa do nº 7 de seu periódico. Dizia a legenda: “Sr. Dr. Semana, a sua
valiosa e authorisada saudação é, para mim, o que o dinheiro é para o avarento: uma
verdadeira preciosidade. Farei por acompanhá-lo na brilhante carreira que leva, no
empenho de premiar a virtude e castigar o vicio”.
A revista criada por Fleiuss sofreu o cansaço da década e meia de uma fórmula que
não se renovou. Ao ser lançada, era uma novidade. Mas essa novidade abriu caminho
para todas as outras novidades que foram aparecendo. Nas pegadas da Semana vieram A
Vida Fluminense, O Mosquito, O Mequetrefe, gente nova, com muita garra e vontade de ocupar a
liderança. Sempre pesou contra Fleiuss, além da suspeita de plágio de revistas européias a
que o público não tinha acesso, a amizade com o imperador – e o fato de seu instituto ser
agraciado com o título de imperial, recebendo dotação de verbas do governo (fato a que
Agostini também se referirá, quando alardeia que sua publicação vive apenas da venda dos
exemplares aos assinantes). Essa amarra da amizade com Pedro II deixou a Semana em
desvantagem: a revista jamais criticou a figura do imperador. Assim, no dia 19 de março de
1876 circulava pela última vez a Semana Illustrada. Era o número 797 do 16º ano.
215
6.1. A leve pegada intelectual de O Figaro
Uma das três revistas que estréiam na Corte no primeiro dia do ano de 1876, O
Figaro, folha illustrada teve na redação um time capitaneado pelo italiano Luis
Borgomainerio, contando ainda com o crayon de Joseph Mill, Aluizio Azevedo, Candido
Aragonez de Faria e Pereira Neto. Como colaborador de texto, o experimentado jornalista
e tradutor José Alves Visconti Coaracy, que também escrevia no Jornal do Commercio. Na
ficha catalográfica da Biblioteca Nacional o periódico é apresentado como uma espécie de
continuação de A Vida Fluminense – e de fato lá estava Borgomainerio na fase final desse
periódico, que fechou em março de 1875, como vimos no capítulo anterior.
O novo lançamento, que utilizava a paginação contínua (ou seja, os números de
páginas iam se somando a cada edição), era impresso pela Typographia Acadêmica e
litografado na moderna oficina da Lithographia a Vapor de Angelo e Robin. O periódico
terá duração curta, de menos de três anos (a última edição, de número 113, circulará em
13 de abril de 1878). Era, se podemos dizer assim, uma revista ligada ao grupo de
Agostini, que se associara no final do ano anterior (1875) com o litógrafo Paulo Robin.
O francês Paul Théodore Robin chegou ao Rio por volta de 1854 e vinha com a
experiência de haver trabalhado com litografia em seu país. De início faz sociedade com o
conterrâneo Alfred Martinet, que já operava com uma oficina estabelecida três anos antes.
Mas Robin se interessou nessa época mais pelos processos fotográficos, dedicando-se ao
promissor mercado de retratos até a década seguinte. No começo dos anos 1870, segundo
Orlando da Costa Ferreira, Paulo Robin reaparece nos anúncios classificados do Almanak
Laemmert à frente de uma oficina litográfica, a Paulo Robin & Cia. Anunciada na seção
“Notabilidades” do almanaque (anúncios classificados, pagos), sua “oficina a vapor” pode ter
sido a primeira do gênero do Rio movida por esse tipo de energia (FERREIRA, 1994: 399).
Foi Robin que em 1874 imprimiu a famosa Carta Architectural do Rio, do engenheiro João da
Rocha Fragoso, litografada por Henrique José Aranha. Sua oficina executou, nesse ano e no
seguinte, a parte litográfica dos periódicos Mephistopheles, A Vida Fluminense e O Mequetrefe.
Em 1875 Robin se torna sócio de Angelo Agostini, sendo este o acionista principal,
na firma Angelo & Robin. Logo em seguida ela é anunciada como a Officina
Lithographica a Vapor da Revista Illustrada, onde se imprimirá a que foi a nossa maior
revista do século XIX. Mas voltemos ao Figaro.
Como se disse, Figaro tem à frente o conterrâneo de Agostini, Borgomainerio (1836-
1876), que chegara ao Brasil dois anos antes, com renome na Itália e passagem prévia pela
Argentina
2
. Sobre ele Herman Lima reproduz trechos de um dos primeiros ensaios sobre
caricatura escritos no Brasil, de autoria do também caricaturista Joseph Mill e publicado
no Figaro de 11 de novembro de 1876: “Borgomainerio produziu trabalhos magistrais,
dignos do lápis robusto que por tantos anos enriquecera as melhores publicações
humorísticas da Itália; e sua influência harto se fará sentir entre nós, e por longo tempo”.
O próprio Herman Lima contrasta:
No que o articulista [Joseph Mill] se enganava era a respeito da influência que teria
Borgomainerio sobre os caricaturistas brasileiros, pois, muito embora fosse inquestiona-
velmente o maior de quantos, no seu tempo, manejaram o lápis entre nós, o artista
italiano, logo fulminado pela peste (março de 1876), teve uma atuação meteórica, pelo
que sua arte, extremamente original, não pôde criar raízes no terreno da charge brasilei-
ra (LIMA, 1963: 1-119).
A revista surpreende por ser composta em três colunas de texto, diferentemente do
que era o habitual nas publicações congêneres até então: duas colunas
3
. Ganha com isso
certa graça e leveza. Analisemos o número 6, pelos motivos anteriormente expostos.
A capa apresenta um retrato, provável trabalho de Borgomainerio (não há
assinatura), do compositor Giuseppe Verdi – todo esse número se configura como uma
Capítulo 6
1876-1878
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
216
edição especial sobre a apresentação da Missa de Requiem, desse músico italiano, ocorrida
no Rio. Com exceção da página 42 (no caso, a segunda página dessa edição de 5 de
fevereiro de 1876), que traz as seções “Recados” e “Registro político”, a revista se dedica a
comentar a apresentação da obra, como se verá a seguir.
A seção “Recados” inicia com um elogio à crítica sobre o Requiem escrita por Julio
Huelva e publicada pela Gazeta de Notícias: “um primor o seu folhetim na Gazeta sobre o
Requiem de Verdi”, mas faz ressalva: o comentarista não deu a devida importância ao Dies
irae. A seguir, a redação registra as publicações recebidas na semana anterior, com destaque
para a recém-lançada Revista do Rio de Janeiro: “Traz artigos sobre Mathematica, Historia
natural, Physica, Philologia, além da continuação do romance Amor, poesias e chronicas”.
Ou seja, a publicação lançada no mesmo dia 1º de janeiro, juntamente com o Figaro, era
destinada a um público interessado em disciplinas escolares, mas que não abria mão da
atração do folhetim e do romance seriado.
Já o tópico seguinte, “Registro político”, diz que a semana correu farta de
acontecimentos políticos, ironizando o partido Centro Liberal por, havendo criticado a
nova lei sobre eleições, se preparava para nelas concorrer. Se era contra...
A página 43 reproduz uma longa carta do maestro Francisco Briani, que, atendendo
ao pedido de Borgomainerio, escreve suas impressões a cerca do “último trabalho de
Verdi”: “Para satisfazer o teu pedido, ahi t’as mando, escriptas ao correr da pena, por isso
que não me sobre tempo”, diz Briani. É um longo comentário que ocupa quatro colunas
(uma página e 1/3), analisando os movimentos da obra e sua execução no Rio de Janeiro
pelo maestro Arthur Napoleão. Alguns trechos:
Depois de assistir à primeira audição, digo-te affoutamente que a musica é, quanto a
mim, de uma novidade e sublimidade taes que não é possivel deixar de abrir-lhe logar
entre as mais bellas e sorprendentes creações modernas. Acho nessa musica inspiração
elevada, graça penetrante, estylo grandioso, abundancia de idéas, notavel disposição de
vozes, instrumentação ora delicada, ora potente pela variedade de sonoridade, em sum-
ma, tudo quanto a arte póde encerrar de bello, puro e scientifico. No Requiem, Verdi não
reproduzio as suas anteriores partituras: apenas de uma ou de outra phrase se póde dizer
tal. Nem mesmo procura imitar os Requiem conhecidos, os quaes, embora celebres, não
reunem o estylo, a unidade, e a interpretação dramatica-religiosa que Verdi soube dar a
esta sua nova creação [...] Citarei ainda o offertorio Domine Jesu, composição de caracter
calmo, religioso, inspirado, onde os violoncellos no prelúdio recordam um pouco talvez
o Stabat de Rossini [...] (PR SOR 007-1: 6-43).
Ao analisar a performance ocorrida no Rio (em nenhum lugar dessa edição a
redação informa onde e em que dia se deram as récitas, apenas o título dos desenhos da
dupla central dá a pista: A Missa de Requiem no Cassino), o colunista escreve:
Quanto á execução, parece verdadeiro milagre como o nosso particular amigo Arthur
Napoleão conseguio tanto em tão pouco tempo. Desde dos cantores principaes até ás
massas do côro, todos se houveram com verdadeiro empenho, e todos se tornaram
credores do applauso geral. A orchestra foi boa, e se por vezes se resentio de pequenas
faltas de colorido, provém isso dos poucos ensaios que teve. A exhibição do Requiem de
Verdi cobre de gloria Arthur Napoleão, para quem não ha elogios que bastem nem
louvores de que não seja digno (PR SOR 007-1: 6-46).
A parte de texto da revista continua com a diatribe de Borgomainerio contra o já
mencionado ataque do Jornal do Commercio (ver 5.2.2), num rodapé publicado no diário em
30 de janeiro de 1876. Borgomainerio se defende, nessa edição de 5 de fevereiro, em carta
dirigida ao proprietário do Figaro, A. de Almeida:
A despeito da repugnância que, devido ao meu caracter, tenho em occupar o publico
com assumptos que me são pessoaes, venho hoje pedir-te um cantinho nas paginas de
217
Capítulo 6
1876-1878
O jogo completo
do nº 6 do Figaro:
a Missa de
Requiem, de
Verdi, foi o tema.
Até o cônego
Ferreira, de
O Apostolo,
entra na dança.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
218
nosso Figaro, para algumas considerações que me suggerio o folhetim do Jornal do Commercio
de domingo 30 do passado. Alli o folhetinista, fazendo espirituosamente a revista da
semana, julgou acertado chamar as contas os caricaturistas do Rio de Janeiro, e especial-
mente os Srs. Angelo, Bordallo e eu. A boa companhia torna menos doloroso o logar
que o folhetinista me concede no banco dos réos. Aqui está o escriptor no seu pleno
direito, usando daquella maxima liberdade que se diz disposto a conceder-nos. Onde
porém julgo que tal direito cessa, transformando-se em deplorável leviandade, é quando
o escriptor, depois de haver arremessado ao papel tantos nomes, generalisa certas
accusações, que, a serem fundadas, nos trariam um ostracismo capaz de atirar-nos ainda
mais longe do que Pariz, como elle o deseja (PR SOR 007-1:6-46).
A revista fecha a parte de texto com o “Correio dos Theatros”, num total de dez
notas. Duas falam da atriz Apollonia, que brilhou nas apresentações do Fausto: “...peça
velha, vista, cansada, esgotada, foi a novidade que nos deu a Phoenix esta última semana,
e nas tres vezes que se apresentou o publico acudio ao theatro como nos primeiros tempos
de sua exhibição”. Outro comentário, que repica nas demais revistas dessa temporada, é
sobre a Filha de Maria Angú, paródia cometida por Arthur de Azevedo a partir da peça
francesa Fille de Mme. Angot. Há um tom erudito que permeia as notas da revista, talvez
uma busca de se diferenciar das marotices de O Mosquito e O Mequetrefe. Já veremos, mais
adiante, como a Revista Illustrada buscará marcar seu terreno.
As imagens dessa edição estão no que se pode considerar o padrão das ilustradas
dessa época. A capa foi desenhada por Antonio Alves do Valle de Sousa Pinto, o Valle,
que assinou o retrato de Giuseppe Verdi. A contracapa traz uma caricatura de Joseph Mill,
também assinada: Pedro II entrega um bebê índio no colo (o Brasil) aos ministros Sinimbu
(João Luis Vieira Cansansão) e Duque de Caxias, dizendo: “Senhores, durante a minha
ausência, confio-lhes o governo d’este meu muito amado filho, cumprindo assim os
desejos de quantos se interessam por elle”.
A dupla central é dedicada a A Missa de Requiem no Cassino. São dez cenas, compondo
um arabesco de desenho arredondado, de bela feitura. No centro, o maestro Arthur
Napoleão, paramentado como um cônego, entre dois acólitos ajoelhados, celebra a missa.
Abaixo, como se espremido, um cônego reclama: “Que escandalo, até as missas nos
tiram”. À sua esquerda, um pouco mais abaixo, Verdi se recosta sobre partituras de A
Traviata, Aroldo, Rigoletto, e a legenda diz: “Um patrimônio que não teme as crises nem as
fallencias”. Do lado direito, o já conhecido editor do jornal Apostolo, o rechonchudo cônego
José Gonçalves Ferreira. Vestido de pierrô, pança proeminente, ele diz: “Visto que Verdi
faz missas, o Apostolo propõe-se a cantar o Trovador, o Rigoletto...” Uma bela composição que
mostra Borgomainerio em ótima forma.
Mas a carreira do italiano no Figaro foi breve, interrompida daí a um mês, no dia 3
de março, vitimado por um surto de febre amarela (que atacou também Bordallo Pinheiro,
mas o caricaturista português resistiu). Citamos a Revista Illustrada de 4 de março de 1876,
que abre seu número 10 com esta notícia, na página 2:
Um penoso dever obriga-nos, por hoje, a sahir além do nosso estylo para consignar
aqui um acontecimento que nos enluta o coração: a morte de Luigi Borgomainerio,
nosso apreciado collega, presado amigo, redactor do Figaro. Victima do terrível flagello
que assola essa cidade, vimol-o hontem frio, hirto e inanimado; inerte aquella mão que
com tanta arte dirigia o lápis e o pincel; imóvel aquelle coração, sede dos sentimentos
de honra, de probidade e do amor extremado da família; embaciados aquelles olhos
onde irradiava o fulgor do gênio, brilhava a luz da intelligencia e faiscava a scentelha
do espirito! [...] Se para acontecimentos semelhantes, ha, nesse transe supremo,
alguma cousa que possa attenuar a dôr de um coração irmão e amigo, nos o senti-
mos vendo o seu leito mortuário cercado de affeições, que unisonas o pranteavam e
bendiziam de sua memoria, e porque Luigi Borgomainerio durante o tempo que
viveu entre nós, embora limitado, so angariou affeições, sem que contasse um unico
inimigo! (PR SOR 00167-1: 10,6).
219
Capítulo 6
1876-1878
Luigi Borgomainerio, ou Luís, ou D. Ciccio, como ele costuma referir-se a si
mesmo, foi homenageado em peso pelos confrades das semanais ilustradas, e o
proprietário de O Figaro, A. de Almeida, lhe dedica a capa da edição seguinte, num
desenho assinado por Valle (inspirado numa fotografia de Pacheco, diz o crédito).
Agostini, em sua revista, reproduz nas páginas centrais uma espécie de antologia dos
melhores momentos do caricaturista.
Pelo tempo em que esteve desenhando em A Vida Fluminense, foi ali que
Borgomainerio deixou seus melhores momentos, como reitera Herman Lima. Finalizo
com um trecho do autor da História da caricatura no Brasil:
O caricaturista italiano se distinguia de todos os demais artistas do mesmo gênero, até então
aparecidos entre nós, não somente pela perfeição e originalidade de suas charges, nas quais o
trabalho litográfico ia de par com o desenho, como por uma verve especial, um acento
satírico nunca vistos no jornalismo brasileiro. Diante do traço clássico de Agostini, cujo
desenho, realmente admirável como é, foi, no entanto, sempre um tanto “lambido”, as gran-
des composições de Borgomainerio, repletas de tipos grotescos, movimentados com um
toque de perversidade tão comum nas sátiras de Daumier, davam-lhe, com toda a justiça,
uma posição de alta predominância entre os demais. Não foi por menos, por sinal, que por
ocasião de sua morte escreveu o próprio Agostini o que valeria mesmo como seu melhor
epitáfio: “o mais eminente dos artistas que têm vindo ao Brasil” (LIMA, 1963: 2-872).
A entrada de Candido Aragonez de Faria no Figaro acontece em 27 de maio de 1876 e
coincide com a estréia de Aluisio de Azevedo como caricaturista profissional. Três meses
depois, Faria substitui Joseph Mill na condução do visual da revista. Mas ficará ali apenas
uns meses. Do Figaro ele sai para o Ganganelli, em outubro de 1876. No ano seguinte passa
para O Diabrete. A última edição do Figaro, com número 113, circulou em 13 de abril de 1878.
A capa do nº 11 homenageia Borgomainerio. À direita, o belo traço de Faria.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
220
6.2. A Revista Illustrada: recordista de vendas na América Latina
Admirador confesso do gravador e revisteiro alemão Henrique Fleiuss, a quem
dedica seu livro História da fotorreportagem no Brasil, o pesquisador Joaquim Marçal Ferreira
de Andrade faz alguns malabarismos para conter seus comentários sobre o trabalho e o
ineditismo do italiano Angelo Agostini – o que não deve ter sido tarefa fácil
4
. Angelo é
uma daquelas figuras que roubam a festa. Como se diz, não tem para mais ninguém.
O trabalho de Angelo Agostini já foi abordado por pesquisadores de peso – alguns
desses melhores estudos são de Antonio Luiz Cagnin (Foi o Diabo!), Marcus Tadeu Daniel
Ribeiro (Revista Illustrada [1876-1898], síntese de uma época) e o de Gilberto Maringoni de
Oliveira (Angelo Agostini, ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal [1864-1910])
5
e não é objetivo desta pesquisa deter-se na figura de Agostini, apenas analisar algumas de
suas produções – e foram muitas
6
– no contexto da história das revistas do século XIX.
Intencionalmente deixamos de analisar com maior profundidade no capítulo 4 a
produção da fase paulista de Agostini: as publicações Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião
(1866-1867), por se tratarem de trabalhos recentemente lançados em edição fac-símile. Já
comentamos no capítulo anterior sua breve passagem pelo Arlequim, seguida pelos
produtivos anos à frente e A Vida Fluminense e, depois, O Mosquito. Passemos agora para seu
maior sucesso, a Revista Illustrada.
A chegada de uma publicação de Agostini lembra o impacto daquelas cenas de
cinema: a festa segue animada quando, de repente, aparece a esperada diva. Por um
instante cessa o ruído e todos os olhares se fixam nela. Foi assim quando ele assumiu a
direção visual de O Mosquito: a capa gritava, impunha sua presença. É esse o efeito visual
que se tem ao olhar a primeira página do número 1 da Revista Illustrada. No alto da página,
lado esquerdo, numa tipografia limpa, parecida ao tipo courrier, o local e a data: Rio de
Janeiro 1º de Janeiro de 1876. No oposto, à direita: Anno 1 Nº 1. Num requadro, fio fino,
a imagem de impacto: uma imensa folha, tipo pôster, despenca sobre a cidade, trazida/
carregada por doze garotos, misto de duendes e arlequins. Pendurados, a cavaleiro,
deslizando, rompendo a base do pôster, eles tocam trombetas e seguram crayons, o lápis
litográfico (símbolo do desenho, da caricatura, do traço). Na parte inferior do desenho, o
tumulto e a expressão de susto daquela multidão composta de militares, homens de
negócio, cônegos, muitas cartolas (apenas uma figura que parece ser mulher no meio do
grupo), todos evitando ser atingidos pela espécie de bólido composto por uma garrafa (no
rótulo a palavra “espírito”, numa visível polissemia) com uma vela acesa no gargalo, que
leva atada uma pena e o crayon: o texto e a imagem. Na amarração, uma faixa diz
“Ridendo castigat mores”
7
.
No cartaz, o que seria o logotipo e os créditos: “Revista Illustrada, publicada por
Angelo Agostini. Sahirá todos os sábados a partir de 1º de Janeiro de 1876. Assigna-se na
Rua do Ouvidor Nº 65 na Livraria do Sr. Garnier e na Rua da Assemblea 44. Officina
Lithografica a vapor da Revista Illustrada. As correspondencias e reclamações deverão ser
dirigidas à Rua da Assemblea Nº 44”.
A seguir, os preços das assinaturas: 16$000 anual; 9$000 semestral; e 5$000
trimestral. Nas províncias, o preço sobe para 20$000 anual; 11$000 semestral; e 500 réis o
número avulso. Como já se disse, o preço do exemplar avulso era praticamente o mesmo
praticado por todas as semanais ilustradas do período. Caro, comparado com o preço dos
jornais diários.
No pé da página, a legenda: “Apparece a Revista Illustrada, é mais um; não importa,
o campo é vasto”. Uma bela frase feita, que lembra o “A arena é vastissima, há logar para
todos” com que se apresentara, dois anos antes, o Mephistopheles...
A análise do conteúdo desse primeiro número revela que a autoconfiança de
Agostini era alta: tinha consciência do que seu nome já representava no mundo das
semanais ilustradas da Corte. Mas consegue pouco nessa edição inaugural, talvez pelo
221
Capítulo 6
1876-1878
A chegada da Revista Illustrada não poderia ser mais triunfal.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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esforço de ser engraçado com tentativas de metalinguagem: um suposto editor, A. (o
próprio Angelo) sai à busca de novos colaboradores para escrever para seu jornal. A
leitura perde espontaneidade e leveza, mostrando falhas de carpintaria nesse discurso.
Agostini cresce no adiantado da hora, no sufoco do fechamento. Esse número inaugural
parece ter sido muito “ensaiado” e pensado e por isso talvez consegue apenas ser fraco.
A apresentação, com a receita habitual dos primeiros números de publicações, busca
dizer a que veio a revista. O texto abre triunfal:
Abram caminho! Abram-o bem franco! É mais um campeão que se apresenta na arena, de
lapis em riste, prompto a combater os abusos, de onde quer que elles venham, e a distribuir
justiça com a hombridade de um Salomão. Abram caminho! E notem bem que não sou
nenhum caloiro que pretenda entrar com pés de lã na contenda jornalistica para afinar a
sua voz pelo diapasão da grande orchestra da imprensa humorística da côrte. Sou, pelo
contrario, um veterano, já muito callegado nas lides semanaes, que tendo se recolhido
temporariamente nos bastidores, volta agora resfolgado á scena e mais decidido do que
nunca a não deixar de dar a Cesar o que é de João Fernandes. Abram caminho! O meu
programa é dos mais simples e póde ser resumido nestas poucas palavras: “Fallar a verda-
de, sempre a verdade, ainda que por isso me cáia algum dente”. Quem se zangar conmigo,
fique certo que perde o seu latim. Estão previnidos? (PR SOR 00167-1, 1: 2)
A seguir, emenda: “O pior é que o primeiro artigo de fundo de uma folha [...] deve
conter uma espécie de prospecto, um panno de amostra do que ha de ser no futuro”. Não
basta dizer, acrescenta, que o programa seja falar a verdade, a verdade sempre. Convém
pôr mais pontos nos ii e é isso que a revista se propõe.
E sai então o editor, no texto desse número, a consultar pessoas, convidar para que
escrevam artigos. Como se disse, o resultado dessa tentativa não deu liga. Há apenas
alguma graça, nessas quatro páginas de texto, como a expressão “favo de fel”... O melhor
achado é uma espécie de ensaio, “Ao rodar do bonde”, que lembra um pouco as vinhetas
do jornalista argentino Roberto Arlt, pela riqueza da escrita. Damos uma amostra aqui:
Gosto de bonds e tenho minhas razões. A locomotiva tem admiradores, o telegrapho
seus apologistas, o espiritismo seus adeptos. / Eu gosto de bonds. / Entre todos os inven-
tos que a civilisação moderna reclama como gloria sua, eu dou aos bonds o primeiro
lugar. / Haverá muito quem não me dê razão, paciencia!... pensarão conmigo todos os
accionistas de S. Christovão. / Já houve quem dissesse que o telegrapho é a mais bella
conquista do nosso seculo. Quem assim fallou não conhecia por certo os bonds. O
telegrapho é um luxo caro, o bond é uma necessidade barata./ Pelo telegrapho manda-se;
no bond vai-se: quem quer vai, quem não quer, manda (PR SOR 00167-1).
O texto segue com essa graça, mas o melhor, sem dúvida, são os desenhos. Como o
da página 5, em que Beltrano, “mascote” ou “alter-ego” do periódico (e do próprio
Agostini), se apresenta, ladeado pelos 12 meninos duendes-arlequins, que ele chama de
“mariolas”. Diz a legenda:
Permitti que me apresente perante vós, respeitavel e illustradissimo publico (estylo de
quem precisa de assignantes). Estou encarregado pela “Revista” de illustrar as suas pagi-
nas. Chamam-me Dom Beltrano, minha familia é bastante conhecida: sou filho de Dom
Fulano e irmão gemio de Dom Cicrano. Estes mariolas são meus reporters, meninos um
tanto malcriados mas muito ladinos. Feita esta apresentação, tenho a pedir ao bom publi-
co, antes de começar minha tarefa, que releve qualquer graça que achar sem graça e que
não fique mal conmigo quando eu for por demais engraçado. No mais, tenho a honra
de... os cumprimentar. (safa! Que tirada!) (PR SOR 00167-1).
Na parte inferior da página, em outro belo desenho, Beltrano/Agostini dá instruções
a seus mariolas: “Vão, corram, observem bem o que se passa por ahi e voltem a dar-me
noticias de tudo quanto viram. O publico fluminense é muito curioso e quer novidades
223
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Beltrano e as mariolas,
seus “reporteres” —
meninos um tanto
malcriados mas muito
ladinos, que trazem
as notícias.
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mesmo quando não as ha”. A reportagem é uma das marcas do trabalho de Agostini, de
algum modo na contramão do jornalismo que se praticava então
8
.
Nos números seguintes, a revista vai se soltando, num humor mais fluido. O
número 2 já apresenta o título num cabeçalho mais trabalhado e com tipografia bastante
elaborada. A imagem da capa é outro trabalho de impacto: Beltrano está numa arena e se
dirige à bancada onde os editores das publicações periódicas da corte perfilam como num
julgamento: estão ali Jornal do Commercio, O Globo, Diario do Rio, A Nação, A Reforma, Gazeta
de Noticias, O Figaro, O Mequetrefe. Beltrano tem nas mãos uma coroa de flores de que
pendem fitas, com o nome desses jornais, como se fossem corbeilles enviadas à nascente
ilustrada. Diz a legenda: “Illustres collegas diários e semanarios: reconhecido pelas
palavras bondosas com que haveis recebido a minha apparição na scena jornalistica venho
agradever-vos de coração e prometter de não desmentir as phrases lisongeiras com que me
haveis accolhido”.
Ao lado do Beltrano, dois de seus mariolas mostram ao leitor um aviso:
A empresa da Revista Illustrada resolveu mandar entregar um exemplar a cada assignante
do Mosquito e do ex-Mephistopheles. O unico fim que tem em vista n’isso é tornar
conhecida a folha por entre as pessoas que costumam assingar jornaes illustrados. Po-
dem pois receber sem escrúpulo os primeiros numeros deste semanario, certos de que
nada ficarão devendo a empresa pelas folhas no principio d’esta publicação, promettendo
empregar todos os esforços para que em breve ella fique de todo bem regularizada; e
para isso desejamos que todos aquelles que não receberem as folhas reclamem imediata-
mente enviando-nos por escripto o seu endereço para não haver mais enganos. As pes-
soas que presentemente desejam assignar, terão a bondade de inscrever o seu nome em
casa do Sr. Garnier, R. Ouvidor 65, que obsequiosamente se presta a tomar as assignaturas
(PR SOR 00167-1, 2: 1).
Na página 2 (a revista não usa numeração contínua e essa é uma marca de Agostini),
a ilustrada introduz uma seção com que sempre abrirá seus textos: “Livro da porta”,
seguindo a tradição das publicações da época, de resenhar ou registrar o recebimento de
exemplares ou comentários de outras publicações. O Figaro, Gazeta de Noticias, O Mequetrefe, O
Mosquito são citados entre os periódicos que mencionaram e fizeram elogios ao aparecimento
da Revista Illustrada. Que aqui, novamente, agradece as menções. A seguir, o redator retoma
um pouco o discurso do número anterior: a que veio a publicação. Mas rapidamente o
discurso encontrará seu rumo. Dois extratos dessa introdução:
Se algum curioso chegar-se a mim e perguntar-me repentinamente para o que foi que nasci,
hei de ficar muito atarantado para responder, porque na verdade não sei. Do que, entretan-
to, tenho plena certeza é que não foi para andar para traz como carangueijo. Convença-se
pois, o leitor desde já que nunca me ha de vêr mettendo a mão na seára do anno findo.
Vim ao mundo no dia 1 do corrente. como já é publico e notorio aqui, ali e acolá; é
portanto somente dos factos occorridos depois desse dia que tenho de occupar-me. Tanto
mais que se discorresse sobre os acontecimentos anteriores ao meu nascimento, não escre-
veria senão uma especie de chronica inter-uterina. E a obstetricia não é o meu forte. podem
crer. [...] O facto mais notavel da semana foi o calôr, que esteve desabrido, insupportavel,
capaz de fazer damnar qualquer cachorrinho, até mesmo de gesso. [...] Se por um desses
caprichos que não têm facil explicação, o redactor do Apostolo sahisse alguma vez a passeio
com rodelas de limão espetadas nas costas e um raminho de salsa entre os dentes, não
voltaria para casa inteiro, tão certo como 2 e 2 serem 22 (PR SOR 00167-1, 2: 2).
Na seqüência de edições, a revista abordará muitos temas. O número 3 fala da seca,
sobre teatro, criticará alguns pintores (notadamente Pedro Américo e Victor Meirelles),
dará conta de brigas entre aguadeiros e empregados da irrigação (“Ao ver a nova empresa
de limpeza da cidade, a febre amarela espera ter muito o que fazer este anno”). O número
5 (29 de janeiro) traz uma bela capa com São Sebastião, o padroeiro do Rio, registra o
comentário elogioso publicado pelo Diario de São Paulo (“obsequiosas palavras de extrema
225
benevolência”): a revista começa a repercutir fora da Corte. E comete belos trocadilhos:
“Como passas?/Pois eu não como/O que?/Não como passas – fiquei passado com a
resposta”. Comenta a festa de São Sebastião, que, devido a tanta chuva, deveria ser
recrismado como São Chuveiro.
Ainda no número 5, a revista comenta a futura apresentação da Missa de Requiem, de
Verdi, com apresentações previstas para de 1 a 4 de fevereiro no Cassino Fluminense. Faz
graçolas com o barítono canhoto que quer cantar do lado esquerdo, sobre músicos e
cantores amadores que se saem tão bem: “Graças ao Sr. Arthur Napoleão e ao valioso
concurso de nossos melhores dilettantes fluminesnse, o publico d’esta Côrte terá
brevemente occasião de ir delectar os seus ouvidos no Cassino Fluminense”, pode-se ler na
legenda de uma história em quadrinho sobre a obra de Verdi. “Dizem que em Milão um
paralytico, ao ouvir esta bella musica, deu quatro pinotes e ficou inteiramente curado. Os
alumnos do Collegio de Surdos e Mudos, apenas acabou o Requiem, gritarão [ou seja,
gritaram]: Bravo, Verdi, bravissimo”.
Também aqui a atriz Apollonia, já mencionada acima quando se falou de O Figaro, é
celebrada por seu papel de Margarida, na peça Fausto, que reestréia no Phoenix Dramatica.
Sabemos ainda que “a companhia que se apresenta no Pedro Segundo tem dado As duas
orphãs e o Anjo da meia noite, e enquanto ensaia o Galé, representará a Morgadinha de Val-Flor,
cuja protagonista será feita pela Sra. Helena Cavalier. Estaremos nós em São Paulo?”,
pergunta-se o redator.
Na semana seguinte, o tema é a polêmica, já mencionada acima, dos três
caricaturistas, Agostini, Bordallo e Borgomainerio, acusados pelo redator do Jornal do
Commercio de extrapolar em suas críticas contra o governo, sendo estrangeiros: esses
caricaturistas deveriam sair do país e ir tentar sorte em Paris, dissera o folhetinista. Agora,
com a palavra, Agostini, na longa resposta dada ao colunista dia 5 de fevereiro de 1876:
O illustre folhetinista do Jornal do Commercio no seu folhetim de Domingo, 30 de Janeiro,
occupando-se dos caricaturistas das folhas illustradas que se publicam n’esta corte, faz-
lhes uma censura um tanto severa, acerca da liberdade illimitada d’esses jornaes. O
illustre folhetinista está no seu pleno direito de criticar qualquer abuso que appareça
n’uma folha seja illustrada ou não [...], mas não é a vontade de criticar-nos, mas sim o
desejo de sêr agradável a alguém que fez com que tomasse tanto a peito a defeza do Sr.
Duque de Caxias por ter este sahido em caricatura no Mosquito. Acho que o illustre
Duque teria preferido que o seu defensor calasse e deixasse ficar no esquecimento um
desenho que, se de algum modo o poderia offender, nunca o faria tanto como o folhetinista
do Jornal do Commercio em tornar essa caricatura mais publica e fazer constar aos quatro cantos
do mundo que esse illustre brazileiro que está com as redeas do Estado etc, etc, vem caricatu-
rado em fórma de um macaco. Diz La Fontaine: “mieux vaut un bon ennemi qu’un ignorant
ami”. Não foram nem o Sr. Borgomainerio nem o Sr. Bordallo Pinheiro nem este seu criado
que fizeram essa caricatura. Foi um desenhista que não é d’aquellas terras europeas a que
allude o illustre folhetinista, mas sim “o apto e aproveitavel Sr. Faria”
9
, artista nacional, como
S.S. bem sabe, o qual assignou o desenho alludido. E’ pois pouca generosidade da parte do
illustre folhetinista imputar essa caricatura a artistas estrangeiros, com o unico fim de chamar
a odiosidade do publico sobre elles. (PR SOR 00167-1, 5: 2)
10
.
Na semana seguinte, Agostini volta à tona com a discussão, abordando na capa o
tema de “espirrar com meu tabaco”, uma referência à canção infantil francesa J’ai du bon
tabac dans ma tabatière, citada por Ferreira de Meneses, o articulista do Jornal do Commercio.
Há grande semelhança na temática e na composição com a capa criada por Bordallo na
revista O Mosquito, que circulou no mesmo dia 12 de fevereiro de 1876.
Um ano depois, na edição de 3 de fevereiro de 1877, a Revista Illustrada ironiza a fala
do trono, feita pela regente Princesa Izabel. A crítica ocupa a dupla central e, em 16
quadrinhos, Agostini realiza uma de suas obras-primas.
Na primeira fila, a princesa abre o Parlamento e cumprimenta os “digníssimos
representantes das tricas eleitorais”. A seguir ela se diz entusiasmada por estar ocupando a
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A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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regência pela segunda vez. Informa que suas Majestades continuam viagem “pelas cinco
partes do mundo” (o quadrinho mostra o casal imperial diante das pirâmides do Egito),
fala do nascimento de seu filho, príncipe do Grão Pará (o desenho mostra a criança com a
cabeça perdida numa imensa coroa). Garante que “o estado sanitário da Côrte e das
províncias é satisfactorio” (no quadrinho, em frente a uma casinha com a plaqueta Junta
de Hygiene, descansa uma porca que leva escrita no dorso: cidade do Rio de Janeiro).
A segunda fileira mostra a fala sobre a tranqüilidade pública, segurança, reforma da
Justiça, nova lei eleitoral, e o quadro do alistamento militar voluntário (o desenho ironiza,
mostrando um “quadro” como tela de exposição).
A terceira e última fileira reproduz a fala da princesa sobre a instrução pública (o
ministro da educação Zé Bento acaricia um burro) e, no mais engraçado de todos, na fala
da regente que menciona “são ainda penosas as circunstancias da lavoura, ella carece de
braços livres”, Agostini desenha uma figura de mulher sem braços, tendo na gola escrita a
palavra “lavoura”. Um primor de ironia o contraponto.
No mesmo número, a revista dá uma panorâmica sobre o que há para ver, as peças
em cartaz nos teatros da Corte:
Na Phoenix milita ainda o Filho do Regimento, pouco parecido com sua irmã a Filha do
dito, mas tambem cousa para se vêr, ao menos uma vez. Não obstante, ainda é salvaterio
ali a Filha de Maria Angú, a qual já conta um anno de existencia e começa a andar de
gatinhas. Entanto a empreza não trata ainda a desmamal-a (PR SOR 00167-2, 5: 6).
As “Scenas da escravidão”: os quatorze passos da paixão.
227
Ironiza no texto a “fala do Trono”, proferida pela regente princesa Isabel:
“Suas Magestades não têm soffrido em sua preciosa saude, achando-se felizmente a
Imperatriz quasi restabelecida dos seus incommodos.” Como é que uma creatura que não
soffre em sua preciosa saúde póde estar quasi restabelecida! Palavra que já suei mais de tres
camisas de flanella e não pude achar a chave do enigma. Felizmente consolei-me lendo
outros periodos ainda menos intelligiveis. [...] Houve uma cousa de que não disse muito
bem a falla do throno; é o estado do thesouro. Depois de ter dito maravilhas de tudo
quanto vai mal, porque esta excepção? Só se é por estar o Sr. Cotegipe em divida com Fr.
Vital de Pernambuco, onde o conjungo vai começando a ser abolido (PR SOR 00167-2, 5: 6).
Na edição seguinte, continua nas páginas centrais a ironia sobre a fala do trono,
dividindo espaço com a visita do imperador ao papa Pio IX, em Roma. Outro momento
imperdível da arte de Agostini: em 11 quadrinhos distribuídos em uma página, a 5, mostra
Saldanha Marinho furioso com a visita de S. Majestade a Pio IX. “O imperial viajante
deveria esperar que S.Santidade lhe mandasse oferecer a casa”. S.M. porém não queria na
sua volta dizer-nos “Fui a Roma e não vi o papa”. Ele que viu o mundo inteiro (no quadro, o
imperador monta um camelo e olha a pirâmide com um binóculo). O papa o recebe. Na
cena seguinte, estão à mesa: o imperador come feijoada, o papa macarronada. Fazem um
acordo de misturar as duas iguarias. Finalmente, cada um vai para seu lado: “Todavia
preferimos que S.M. coma o seu feijão e deixe o infallivel carcamano saborear seu macaroni”.
Muito se poderia falar e mostrar sobre a Revista Illustrada e sobre Angelo Agostini no
auge de sua maturidade como caricaturista. Poderíamos abordar a implicância do artista
com os pintores acadêmicos, notadamente Pedro Américo e Victor Meirelles. Dos tipos
urbanos que vai desenhando, o vendedor ambulante, a aia fofoqueira, o engraxate, os
festejos do carnaval, o imperador dormindo nas sessões do Instituto Histórico, de sua
militância incansável pela causa da abolição da escravatura – tanto que nas comemorações
após o 13 de maio, a revista e seu criador recebem ovações tão marcantes como as
prestadas a José do Patrocínio ou Joaquim Nabuco. O mesmo Nabuco que se referiu a ela
como “a bíblia da abolição dos que não sabem ler”. Sem aprofundar-se num debate estéril
de idéias, Agostini usou a reportagem gráfica para realizar aquilo que hoje se ensina em
jornalismo: não conte, mostre. E o caricaturista mostrou as desfaçatezes cometidas pela
elite escravocrata, aumentando o tom de sua denúncia ao longo da década de 80:
A série de desenhos e narrativas gráficas produzidas por Agostini, a partir de 1886,
denunciando os horrores do cotidiano escravocrata representam possivelmente o ponto
alto de sua obra. Exibem denúncia política e completo domínio das técnicas dramático-
narrativas, aliados à uma grande capacidade de provocar indignação de parcelas crescen-
tes dos leitores, ao mesmo tempo que incomodava outro tanto. As imagens retratam,
com uma crueza poucas vezes vista, o cotidiano de torturas, mutilações e assassinatos
cometidos contra os escravos (MARINGONI, 2006: 134).
Em 18 de fevereiro de 1886, Agostini publica uma das mais contundentes
denúncias: mostra na dupla central, em quatorze quadros, a tragédia vivida pelo negro
escravizado
11
. É um quadro dantesco: homens amordaçados e levados a queimar no forno,
açoitados, enfim, violências sem conta. Segundo Herman Lima, “Quatorze quadros que
são quatorze passos da paixão do nosso irmão cativo, em torturas que somente seriam
revividas setenta anos depois, nos campos de concentração nazista” (LIMA, 1963: 1-120).
A revista, na mesma edição, publica a história, documentada com foto de que o artista
reproduziu o desenho, de duas adolescentes seviciadas pela proprietária, em pleno bairro
de Botafogo. As imagens da Revista Illustrada fizeram mais pela causa da abolição que
muitos ou quase todos os discursos no Parlamento.
Quando a Lei Áurea é tramitada no Congresso, a Revista Illustrada 497, de 13 de
maio de 1888, faz um belo trabalho de reportagem, narrando cenas dos bastidores e da
movimentação na Câmara:
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A approvação do projecto. Era difficil, na quinta-feira, tranzitar pelos arredóres da
Camara, tal era a multidão que ahi estacionava. Deutro não havia um só lugar vasio. A
sessão tomava, desde o principio, um caracter solemne, como jamais vimos no Parla-
mento Nacional. Logo em principio, o nobre deputado, Sr. Affonso Celso Junior apre-
sentou um projecto, para que o dia da promulgação da maior lei do Brazil fosse de
grande gala. [...]
O Povo: Finda a sessão, quatro ou cinco mil pessoas desfilaram, em prestito imponen-
te, pela rua do Ouvidor, afim de saudarem a imprensa. Muitos discursos, eloquentes e
arrebatadores, foram pronunciados. saudando o Paiz, a Gazeta de Noticias, e o Diario de
Noticias; o prestito dirigiu-se para a rua de Gonçalves Dias, estacionando em frente a
redacção do nosso jornal. O aspecto da manifestação era importante. De uma das
janellas, o nosso collega Luiz de Andrade recebeu os manifestantes, levantando vivas á
Camara dos deputados, ao Povo fluminense e á Confederação Abolicionista. Tomaram
a palavra, o capitão Serzedello, professor da escola militar e uma das grandes esperan-
ças da nossa patria; João Clapp, Dr. Bricio Filho e outros oradores que em inspirados
improvisos saudaram Angelo Agostini, a redacção da Revista e o nosso visinho e amigo
Seixas Magalhães, abolicionista da mais fina tempera. Em seguida dissolveu-se a impo-
nente reunião, entrando numerosos amigos para a redacção do nosso jornal, aonde em
calorosos brindes, foram saudados Joaquim Nabuco, Senador Dantas, José do Patrocinio,
José Mariano, Angelo Agostini, João Clapp, Luiz de Andrade, Fritz Harling, Bricio
Filho, o exército brazileiro, a marinha nacional, a imprensa, as escolas, a magistratura,
a representação nacional, o ministerio de dez de março, assim como quasi todos os
batalhadores da grande causa, em cujo numero entravam Antonio Bento, João Cordei-
ro, Conselheiro Prado, João Ramos, tendo nós a satisfação de vêr que ninguem era
esquecido. Um respeitoso e enthusiastico brinde foi levantado á Princeza Regente e á
Familia Imperial. Depois de mil effusões imdescriptiveis, para as quaes não ha narra-
ção possivel, dissolveu-se a reunião, na melhor ordem. Confessamo-nos gratos ao povo
fluminense pelos testemunhos de apreço que timbrou em dar, n’esses dias, ao nosso
jornal, e d’estas columnas lhe protestamos, que nos ha de encontrar sempre na defeza
dos seus direitos e da causa sagrada da liberdade! A todos esses, que assim nos penhora-
ram, d’aqui lhes protestamos a nossa immorredoura gratidão. N’este momento, resumi-
mos todas as nossas impressões, n’estas simples palavras: Viva a Patria Livre! (PR SOR
00167-13, 497: 6).
O coro reconhecido pelo papel exercido pela revista vem desde o artigo “A
caricatura no Brasil”, publicado por Monteiro Lobato em 1919 no livro Idéias de
Jeca Tatu.
Não havia casa em que não penetrasse a Revista e tanto deliciava as cidades como as
fazendas. Quadro típico de cor local era o fazendeiro que chegava cansado da roça,
apeava, entregava o cavalo a um negro, entrava, sentava-se na rede, pedia café à
mulatinha e abria a Revista. Os desenhos bem acabados, muito ao sabor de sua cultura
e gosto, desfiavam ante seus olhos os acontecimentos políticos da quinzena. O rosto do
fazendeiro iluminava-se de saudáveis risos. “É um danado esse sujeito”, dizia ele de
Agostini. E ali na rede via o império como nós hoje vemos a história no cinema (LOBA-
TO, 1956: 16-17).
A revista terá longa vida, como se sabe: circulará por 23 anos, até agosto de 1898.
No auge da fama, aclamado com um dos artífices da abolição, Agostini se envolve num
escândalo familiar e, em outubro de 1888, segue para uma espécie de exílio forçado na
França. Os planos eram de uma curta estadia, mas ele só retorna ao Brasil no final de 1894
(mas não retomou a publicação, ficando de fora). A Revista Illustrada continuou sem o
capitão do time, e por um bom tempo conseguiu manter o nível, mas aos poucos esvaziou
a forma, sucumbiu à política da “cavação”, para usar a expressão de Lobato, perdeu
credibilidade e importância. Os tempos também eram outros. Os artífices da República
não herdaram a tolerância da monarquia e os ventos da liberdade de imprensa se
tornavam coisa do passado.
229
Capítulo 6
1876-1878
O nº 498, de
19 de maio de 1888:
a celebração da
Lei Áurea em
grande estilo e
com reportagens
primorosas.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
230
6.3. A Illustração Brasileira, ... do Brazil, ... Popular
No ano que o pesquisador Ferreira de Andrade qualificará de “heróico”, pelo
número de bons lançamentos editoriais, mais três revistas chegavam ao público no início
do segundo semestre – e duas por iniciativa do mesmo editor, Carlos Vivaldi – ou
Charles, segundo a ficha catalográfica da Biblioteca Nacional.
A primeira delas, Illustração Brasileira: jornal de artes, sciencias e lettras, é uma
tentativa de Henrique Fleiuss de retomar um espaço que já foi seu. Teve seu primeiro
número lançado em 1 de julho de 1876: publicação quinzenal, como parece ter sido a
fórmula dessas ilustradas de maior porte, chegará ao número 40, encerrando
atividades em abril de 1878.
A Illustração do Brasil, de Carlos Vivaldi, começou a circular a 29 de julho de 1876,
também com periodicidade quinzenal, embora menos regular, e é editada até abril de
1880, completando 80 edições. A terceira dessas revistas, a Illustração Popular, foi lançada
pouco depois, a 7 de agosto, pelo mesmo Vivaldi. Com periodicidade semanal, teve vida
mais breve, encerrando as atividades no ano seguinte, em setembro, ao completar 44
números.
6.3.1.
Com a Illustração Brasileira: jornal de artes, sciencias e lettras Henrique Fleuss tantava
produzir uma revista de esmerada apresentação gráfica (ANDRADE, 2004: 178), com as
mesmas proporções das que se encontravam na França e na Inglaterra, todas ilustradas
por xilogravuras e com muita aceitação por parte do público leitor daqueles países. Porém,
quando dois anos depois, em 1878, morre seu irmão Carlos Fleiuss, esse projeto de criar
uma revista ilustrada de grandes proporções fracassa, juntamente com o Imperial Instituto
Artístico, que já não tinha o prestígio de outros tempos.
A maioria das gravuras da Ilustração Brasileira era importada, mas trazia também algumas
feitas no Rio, copiadas de fotografia. Ela se distinguirá também pela colaboração de dois
artistas alemães que tinham estado no país: o pintor e engenheiro Franz Keller [...], e seu
irmão, o pintor Ferdinand Keller. Encarregado pelo governo brasileiro, em setembro de
1867, de explorar certa região amazônica onde se planejava construir uma ferrovia, Franz
havia publicado em 1874 o livro Vom Amazonas und Madeira [...] A revista francesa Le Tour
du Monde publicou um resumo dessa obra de Franz, sendo dali que provavelmente Fleiuss
foi reproduzindo [o material de algumas edições de sua revista], dando-lhe o título de “Viagem
e Exploração ao Amazonas e Madeira (FERREIRA, 1994: 192).
Dois anos depois, em 1880, Henrique Fleiuss tentou sem sucesso lançar A Nova
Semana Ilustrada, com a intenção de reviver a sua antiga e consagrada revista. Essa
empreita malograda, “em desespero de causa” (LIMA, 1963: 2- 758) foi sua última
realização: faleceu em 15 de novembro de 1882 aos 59 anos. “Morreu paupérrimo,
segundo acentuava o Jornal do Commercio em artigo que lhe consagrou, exaltando-lhe o
amor ao Brasil e o descalabro progressivo que lhe atingira antes as empresa a que dedicara
o melhor de seus esforços (LIMA, 1963: 2- 759).
6.3.2.
Analisando a primeira das publicações de Carlos Vivaldi, Joaquim Marçal Ferreira
de Andrade elogia a qualidade gráfica da Illustração do Brazil, que chama de luxuosa
12
. Em
seu primeiro número, a revista traz na capa o casal regente: a princesa Isabel e Gastão de
Orleans, o conde d’Eu. Isabel tem no colo o filho nascido no ano anterior, a 15 de
outubro, que faz jus ao título de Príncipe do Grão-Pará. Ferreira de Andrade explica que a
xilografia da capa é uma montagem de duas fotos
13
. A revista, no texto de abertura, diz
que por meio de gravuras atrativas buscará despertar a atenção do leitor para uma leitura
231
Capítulo 6
1876-1878
Fruto da iniciativa do italiano protestante Carlos Vivaldi, a Illustração do Brazil e, logo a seguir, a Illustração Popular
utilizavam gravuras importadas dos Estados Unidos. Mas não caíram no gosto: faltava o sal do conteúdo.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
232
amena. E descreve a imagem da capa: “uma criança, que no regaço de sua mãe bebe-lhe
os sorrisos, rouba-lhe as carícias, é o futuro do Brasil”.
O texto encaminha o leitor para decifrar a imagem, direcionando a leitura. Coisa
que a revista fará com freqüência – sobretudo na cobertura que realiza da viagem do
casal imperial – pela Europa e, logo a seguir, em território americano, aonde Pedro II
fora para assistir à Exposição Internacional de Filadélfia, marco da celebração do
centenário da Independência americana. Há diversas imagens, nesse número 1,
reportando a viagem do imperador. São cenas de seu desembarque em Nova York,
passeando no Central Park, partindo para a Califórnia. Todas mostram algum
acontecimento e em nenhuma delas o imperador está posando para a câmara – o que
comprova tratar-se de pura ilustração, alerta Ferreira de Andrade, pois a tecnologia da
fotografia naquele período ainda não possibilitava a produção de instantâneos
(ANDRADE, 2004: 171).
Curiosamente – e essa observação é ainda de Ferreira de Andrade –, quando a
publicação noticia a volta do imperador de sua viagem, não publica nenhuma imagem do
desembarque no Rio. O que permite supor que as gravuras da “cobertura fotojornalística” da
viagem pelos Estados Unidos tenha sido fruto da compra das chapas produzidas nos EUA.
O exame mais detalhado de um número – de maio de 1878, por exemplo – serve para
atestar: afora a capa, onde corre uma “Vista do Jardim Botânico do Rio de Janeiro”, o
que temos é o “Transporte do obelisco Cleópatra, oferecido à Inglaterra pelo kediva do
Egito”, “Crueldades turcas na última guerra” (contra a Rússia), “Instrumentos de músi-
ca em uso na Índia Oriental”... Como se vê, algo inadequado para um periódico de nome
Illustração do Brazil (ANDRADE, 2004: 173).
Um personagem de vida quase fabulosa (no entender de Orlando da Costa
Ferreira), contada por seu descendente Vivaldo Coaracy, infelizmente de modo
inadequado (FERREIRA, 1994: 212), Carlos Vivaldi seria um italiano de crença
protestante, talvez pastor, com passagem pelos Estados Unidos. Ali, sempre segundo
Vivaldo Coaracy (no livro Todos contam sua vida, citado por Nelson Werneck Sodré),
teria estabelecido contatos e fechado contrato em Nova York que lhe facilitavam
selecionar gravuras publicadas por periódicos americanos, quando lhe parecessem
oferecer interesse para o público brasileiro: paisagens, fantasias, cenas de costumes,
episódios da guerra turco-russa que então acontecia nos Bálcãs. O custo era apenas o
do material. Aqui, mandava escrever textos ou artigos adequados às ilustrações
(SODRÉ, 2004: 222).
Aos poucos a revista passa a ter circulação irregular, faz tentativas de atrair
assinantes para a sua carteira. Recorre à receita comum na época, que era contar com
textos de escritores como Machado de Assis, Artur de Azevedo ou Joaquim Serra. Sem, no
entanto, conseguir maior êxito. Em 1880, enquanto na Europa e nos Estados Unidos
publicações de luxo, com alta qualidade gráfica, conquistavam público, iniciando um
processo de transição para a reprodução fotomecânica (a autotipia), a revista criada por
Vivaldi chegava ao fim. Segundo Werneck Sodré, a iniciativa não poderia encontrar bases
suficientes para durar, pois a experiência similar de Henrique Fleiuss com sua Illustração
Brasileira provara que o momento era de crítica, vibrações e combate. Faltava o “sal”,
escreve Sodré, que as semanais ilustradas ofereciam, “aquilo que está ligado ao conteúdo e
que foi o segredo do sucesso da revista de Agostini”. Era o que o público esperava
(SODRÉ, 2004: 223).
6.3.3.
A segunda revista lançada por Carlos Vivaldi pode despertar mais atenção, por
aparentemente destinar-se a um público de baixa renda, algo nunca levado muito em
conta pelos editores nacionais. Em formato pequeno, também utilizava xilogravuras
233
importadas, buscando baratear custos e viabilizar uma publicação de baixo preço (100
réis) acessível a todas as classes sociais, como afirmava a revista em sua apresentação.
Dirigida por Corina de Vivaldi, filha do proprietário, a revista tinha uma seção,
“Conversações com minha filha”, assinada por Aniroc (a inversão do nome de Corina),
que revela bem o tom conservador da proposta editorial. No número 1, com o título “A
Mulher Litterata”, conta a história de Maria, pega em flagrante por sua mãe. O texto é
escrito em primeira pessoa:
Maria folheava alguns jornaes illustrados e parecia tão attenta que não vio quando
appoximei-me della. Segui silenciosa a direcção de seus olhos sobre as paginas e vi
que lia um conto, um daquelles milhares de contos – para não dizer milhões – que
vêm e passam, e vão deixando, como as neblinas, o tempo como os acharam. Esta-
va assignado com um nome de mulher. Maria tinha as faces inflamadas e quando
acabou lêr, levantou-se de um salto; só então percebeu minha presença (PR SOR,
03945-1: 1-6).
A menina mostra à mãe que o texto é assinado por uma amiga do colégio, de
apenas 18 anos, e já publicando trabalhos literários em revista. “Não desejava que essa
autora fosse minha filha”, responde a mãe. E começa críticas à mulher letrada, pois a
condição intelectual não condiz com a condição feminina. A filha não aceita os
argumentos e a mãe opina sobre o talento feminino e como as mulheres devem se
comportar, evitando as incursões literárias para não cair no ridículo, pois seriam quando
muito toleradas, jamais admiradas. A mulher deve, pois, deixar o trabalho intelectual
para os homens. Diz a mãe: “Serei severa com aquellas meninas que, com a memoria
cheia de leituras de Dumas e Ponson du Terrail, e de suas composições escolasticas,
porque de vez em quando têm uma phrase feliz, porque sabe colocar o substantivo antes
do verbo, se persuadem de que o publico deve ouvil-as em extasis”. E conclui: “A
palheta do artista é séria demais para as mãos da mulher, e os seus dedos se estragam
entre as diferentes tintas”.
No longo diálogo entre mãe e filha, a primeira deixa claro que a mulher não deve
perder tempo com criações literárias: por que cansar-se para dar ao mundo provas
raquíticas de mediocridade?
Mais adiante, fazendo uma crônica dos acontecimentos da semana, a revista reforça
a intenção de utilizar um texto com tom vivo, alegre, ligeiro, pois uma leitura amena para
o povo exige toda simplicidade. É com esse foco que as audiências da princesa regente, as
apresentações do teatro e pequenos acontecimentos da Corte são passadas em revista. Há
um tom moralista nos comentários:
Em um destes dias foi cercada uma casa de jogo, em que se achavam homens de
elevada posição e de distinctos talentos. O jogo que por si só representa todos os
vícios deve ser evitado e punido pela policia séria e moralisada. Louvores merece
toda a autoridade que, neste terreno, tem a coragem de cumprir o seu dever (PR
SOR, 03945-1: 1-7).
Curiosamente, a publicação que “pretendia, ilusoriamente, como outras daqui e do
estrangeiro, ser hospedada na mansão do pobre” (FERREIRA, 1994: 212) lança mão de
expressões francesas (ao abrir a “Chonica da semana” com uma nota sobre a visita do
núncio apostólico Monsenhor Roncetti à princesa regente, diz “como se concede à tout
seigneur, tout honneur”, supondo que as classes populares saberiam o significado da
expressão francesa; mais adiante, ao comentar um tumulto no Cassino, menciona raios
“des étoiles filantes”. Povo poliglota esse que a revista queria atingir.
Essa falta de foco terá sido um dos motivos de a publicação não agarrar viagem e
não obter longa trajetória. Como se disse, encerrou as atividades no ano seguinte, em
setembro de 1877, completando 44 números.
Capítulo 6
1876-1878
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
234
6.4 Raphael Bordallo Pinheiro à frente de Psit!!! e O Besouro
Como se viu no capítulo anterior, O Mosquito fechou em maio de 1877, dois anos
após a entrada do caricaturista português Bordallo Pinheiro. Não demorou muito e,
menos de quatro meses depois, em 15 de setembro, Bordallo estaria de volta com num
novo jornal, Psit!!!: hebdomadario cômico, que circulou de 15 de setembro a 17 de novembro
de 1877, fechando no número 9.
Bordallo havia chegado ao Brasil dois anos antes, com 29 anos. Tinha um contrato
de 50 libras acertado com o proprietário de O Mosquito e acumulava esse trabalho com as
tarefas de representante comercial da empresa Valle e Silva, importadora de embutidos de
porco do Alentejo. Conseguiu, nos quatro anos em que morou no Rio, ter vida boêmia e
confortável (MARINGONI, 2006: 110). A impressão do Psit!!! estava a cargo da
Lithographia a vapor de Angelo & Robin – havia uma relação de respeito entre Bordallo e
Agostini, como se viu na polêmica que envolveu os caricaturistas estrangeiros.
A publicação teve vida curta. Psit!!! chamou pouco a atenção e não soube atrair os
antigos compradores dos bons tempos de O Mosquito.
Mas a investida seguinte de Bordallo Pinheiro contaria com um suporte financeiro
mais sólido que os anteriores: ele consegiu o apoio do Visconde São Salvador de
Matosinhos, um rico empresário português radicado no Rio de Janeiro. Com tal suporte, e
contando com colaboradores como os conhecidos jornalistas José do Patrocínio, Artur de
Azevedo, Alberto de Oliveira e Guerra Junqueira, O Besouro: folha illustrada, humorística e
satyrica chega aos leitores no dia 6 de abril de 1878. Era preparado na Lithografia a vapor
de Angelo & Robin, de propriedade da Revista Illustrada.
No substantivo, a revista segue a fórmula das semanais ilustradas que vêm sendo
analisadas e descritas nesta pesquisa. O número 1 tem uma capa enriquecida de arabescos, quase
prenunciando o que será o art nouveau anos depois. Do alto da página desce, pelo lado
esquerdo, uma série de folhagens: bananeiras e trepadeiras, tendo na base o desenho de um gato.
Nessa coluna de metáfora tropical se esconde um homem de cartola e monóculo
(parece um auto-retrato de Bordallo). Ele desdobra uma faixa vertical onde se lê o preço
da assinatura (20$000 a subscrição anual, 11$000 a semestral, 6$000 o trimestre, para a
Corte e Nitheroy; o exemplar avulso sai pelos costumeiros 500 réis). Embaixo do logotipo,
outro arabesco com folhas, no centro uma abelha, e o texto: Folha illustrada, humorística
e satyrica, publicação hebdomadaria no Rio de Janeiro. Escriptorio da redacção: Rua do
Ouvidor 130, 1º andar.
À direita, outra faixa vertical com o preço das assinaturas para as províncias
(24$000 anual, 14$000 a semestral, 8$000 o trimestre; o exemplar avulso os mesmos 500
réis). Embaixo dessa faixa, a figura de um cachorro. No centro, a figura um tanto chinesa
de um senhor barbudo e jeito de profeta, em meio a aparelhos de física. A legenda
esclarece pouco: “Innovador. 1º construtor e introductor do thelefono e companhias
electricas no Brasil, a quem dez annos de trabalho dão direito de reputar-se e intitular-se
seu estabelecimento: a 1ª casa de electricidade. 107 rua do Ouvidor”. Seria o primeiro caso
de publicidade editorial da história de nossa imprensa?
Essa primeira edição fora precedida de um cartaz solto, publicado em 2 de março de
1876, anunciando a chegada futura da publicação. Com outro logotipo (Bordallo mudará
sistematicamente a tipografia do nome da revista), os mesmos arabescos florais,
bananeiras, gato, abelha e cachorro incluídos, antecipa: “Folha illustrada, humorística e
satyrica, publicação hebdomadaria no Rio de Janeiro,
A COMEÇAR EM 6 DABRIL DE 1878". E
promete: “Aos Srs. Assignantes será offercida no dia 9 de março, uma revista carnavalesca
d´este anno”. Escriptorio da redacçãop Rua do Ouvidor 130, 1º andar. No centro, a
imagem de uma mulher composta de flores, ao estilo de Giuseppe Arcimboldo, com a
legenda: “c’esta folhinha que offerecemos aos nossos assignantes, emquanto lhes não
damos a folha da arvore das patacas”.
235
A folhinha foi uma espécie de encarte de quatro páginas, todas litografadas. Nas
duas páginas centrais, o ano está deitado e sobre ele o calendário de todos os meses. Cada
mês traz o calendário e alguns dizeres. Janeiro é o mês ministerial, o das economias e
fardas novas e viradas. Fevereiro é o mês febril, pertence ao Dr. Pertence e aos seus dignos
colegas, boticários e às empresas funerárias. Março é o mês carnavalesco-religioso. Abril:
partida para a exposição, o mês das costas voltadas, ainda que ele assevere que é a barriga.
Maio: mês do falatório, quando canta o sabiá. Junho: mês teatral, é a vez de todos os srs.
que se caracterizam, pintam e disfarçam. Julho: mês lírico, de todos os Ferrari, Castellões e
Huelvas, das aves que aqui gorjeiam. Agosto é o mês da glória, consagrado à facadinha. E
de todos o mais perigoso para a barriga, único remédio é tê-la às costas. Setembro: mês do
grito, a grande orquestra é do Ipiranga, do verbo irregular, das luminárias e da coroa de
gás de José Bonifácio. Outubro: mês do café e da Penha, bem bonzinho para a barriga.
Novembro: Petrópolis e ducha. Oh, quem dera, este mês deveria durar o ano todo, por
causa da brotoeja. Dezembro: mês do presépio. Mês do chapéu na mão, exclusivo dos
barbeiros, carteiros. E de todas as barrigas que não se encheram nos outros meses.
A composição é magistral: mais de 50 pequenos desenhos se espalham sobre a
gorda figura, meio desdentada, do ano retratado. Um coche fúnebre, por exemplo, ilustra
fevereiro. Um maestro regendo orquestra ilustra julho. Bordallo realizou esse imenso
trabalho em fevereiro de 1878, e é assim que assina, na sola do sapato da figura maior.
O suplemento termina com o desenho de “As Quatro Estações”, outro trabalho
magistral. A página mostra quatro homens (contra a tradição de serem mulheres a representar
Capítulo 6
1876-1878
O desenho rico em
arabescos e alegorias
tropicais na revista
criada por Raphael
Bordallo Pinheiro.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
236
as passagens do ano). Mesmo a primavera eterna, com vestes femininas, é um homem de
bigodes. O estio, ou verão, fala das trovoadas de maio. E o outro é bananeira que já deu cacho.
Ao encerrar o primeiro ano, a revista publicará a relação de colaboradores e
redatores: Henrique Chaves, José do Patrocínio, Dermeval da Fonseca, Luiz de Andrade,
Lino de Assumpção, Alfredo Camarate, Dr. Ferreira de Araújo, Guerra Junqueira, Lucio
de Mendonça, Affonso Celso Jr., entre outros.
José do Patrocínio, já então jornalista prestigiado no Rio, folhetinista da Gazeta de
Notícias, teria participação importante n’O Besouro, tendo escrito o editorial do primeiro
número da publicação (ANDRADE, 2004: 189).
Procederemos uma análise mais detida do número 5. A capa traz em letras garrafais
a chamada: Tiragem 5.000 exemplares (seis exclamações). O tema da capa é a oferta de
publicação de anúncios na revista, a “preços convencionais”, como se fosse uma página
promocional ou sobrecapa. Sem logotipo em destaque, a que seria a capa mostra uma
caricatura de Pedro II. O título é “Política. O juramento de todos os Príncipes – a garantia
de todos os Povos”. O imperador, sentado, é empurrado por personagens, políticos e
cônegos. A legenda diz: “Nenê, diz comigo ‘Juro manter a religião Catholica Apostolica
Romana, ser obediente á mamãi, papai e vôvô, e ser fiel ás leis’.” Nenê: “Ahrnn! Ahrnn,
Ahrnn! Ahrnn”. Governo: “Está feito o juramento e garantida a monarchia. D’aqui a trinta
annos sua alteza cumprirá o que diz hoje; os príncipes fazem sempre o que dizem, ainda
mesmo no collo das amas, de biberon em punho em vez do sceptro que tomaráõ mais
tarde. – Pode Vossa Alteza ir passear, sem lincença de mais ninguém. – A monarchia está
segura e o povo tranqüilo.
As páginas de texto (34 e 35 – 38 e 39, pois a revista adota a numeração
contínua) são enriquecidas de pequenas vinhetas e grandes capitulares. Assim, o “L” é
um grande sapato com um garoto fazendo o papel da haste da letra. A letra “A” é
desenhada na forma de um velho reclinado a tocar uma tuba. Dois temas perpassam a
edição. Um é o sucesso de O primo Basílio, do escritor português Eça de Queiroz. O
outro a seca do Ceará, de que se falará adiante.
Sobre o romance de Eça, a revista de Bordallo fará ironia sobre as críticas e reparos
que o livro recebeu no Brasil – notadamente de Machado de Assis, que parece ser o alvo
da irritação do caricaturista português. “Agarrou-se á cabeça dos Srs. litterattos e tem d’alli
extrahido, como um verdadeiro ungüento puxativo, uma serie interminavel de artigos, de
que já não ha maos a medir. Aquelle primo não se devia chamar Basilio, mas sim
Basilicão!”. Sobre a seca no Ceará, a nota “A cal” faz denuncia grave: uma grande partida
de farinha enviada como socorro às famílias do norte do país apresentara mistura de cal,
“insufficiente é verdade para caiar convenientemente todas as peças das habitações desses
patrícios, mas bastante para estragar-lhe as diversas dobras dos intestinos, e fazel-os, como
cal que é, ficarem calados – e por uma vez”.
A situação da seca do nordeste estava implícita no comentário, colunas antes, sobre
os retirantes. “O retirante, que symbolizava uma calamidade, passou a ser o emigrado que
symbolisa uma iniqüidade”, escreve o redator sobre o fato de meninas cearenses se virem
na necessidade de se prostituir no Rio para garantir a sobrevivência. “A consequencia é
serem tiradas do seio das infelizes familias, moças que se resgatam da fome pela
prostituição, e isso sem que de leve reflictam na baixeza em que vão cahir”.
A revista se posiciona: “O Besouro abre um parenthesis aos seus zumbidos alegres,
a sua jovialidade innata, para pedir um pouco de attenção para semelhante facto”.
A contracapa desse número (página 40) traz retrato de Eça de Queiroz, “autor do
célebre, belissimo livro O primo Basílio”, homenagem de Bordallo Pinheiro.
A seca do Ceará está presente em diversas edições de O Besouro. A revista se referiu a
ela em tom cáustico na edição de 20 de abril de 1878, no artigo “A seca do Ceará”.
Bordallo Pinheiro volta ao tema em 20 de julho, com a capa “Páginas tristes”, apontada
237
Capítulo 6
1876-1878
Espécie de folder promocional, esse calendário é uma obra-prima de Bordallo Pinheiro.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
238
por Joaquim Marçal Ferreira de Andrade como a nossa primeira fotorreportagem. É o
próprio pesquisador da Biblioteca Nacional quem conta:
O então jovem jornalista José do Patrocínio partiu em viagem a 13 de maio de 1878. Até
alcançar o Ceará, o navio em que viajava fez várias escalas ao longo do litoral nordestino,
oferecendo aos olhos de Patrocínio um espetáculo variado de encanto e miséria. O hábil
jornalista transformou essas imagens em artigos enviados à redação da Gazeta, e publicados
sempre ao pé da primeira página, sob o título de Viagem ao Norte. Ao chegar finalmente ao
Ceará, Patrocínio depara um cenário ainda mais chocante e miserável do que tudo que
tinha visto. A população doente e inválida, que morria nas ruas como insetos secos, im-
pressionaria qualquer observador e sensibilizou ainda mais os olhos e a pena de Patrocínio.
As reportagens que nasceram da experiência desses dias constituiriam, nas palavras de
Raimundo Magalhães Júnior, o primeiro trabalho jornalístico importante que apareceu na
imprensa brasileira sobre o problema das secas nordestinas (ANDRADE, 2004: 191).
Como se sabe, o impacto do texto é menor do que a imagem. Por isso, Patrocínio
conseguiu de um fotógrafo cearense duas imagens, em formato carte-de-visite, espécie de
cartão postal de então, muito populares e de ampla circulação na segunda metade do
século XIX. Duas dessas fotografias foram reproduzidas por Bordallo Pinheiro na capa de
sua revista em 20 de junho. Como se disse, embaixo do título “Páginas tristes” se lê:
“Scenas e aspectos do Ceará, Para S. Magestade, o sr. Governo e os srs. fornecedores
verem – cópias fidelíssimas de photographias que nos foram remetidas pelo nosso amigo e
collega José do Patrocinio”. Embaixo, a legenda: “Estado da população retirante... e ainda
ha quem lhes mande farinha falsificada e especule com elles!!!”
A imagem dessa capa despojada para o padrão de Bordallo mostra uma mão de
esqueleto humano, punho de camisa fechado com uma abotoadura, segurando as duas
cartes-de-visite com a fotografia de duas crianças vitimadas pelas conseqüências da seca. Na
segunda página da revista, o texto “O Ceará”:
O nosso amigo José do Patrocinio, em viagem por aquella provincia, enviou-nos as
duas photographias por que foram feitos os desenhos de nossa primeira pagina. São
dois verdadeiros quadros de fome e miseria. É n’aquelle estado que os retirantes
chegam á capital, aonde quasi sempre morrem, apezar dos apregoados socorros que
segundo informações exactas são distribuidos de uma maneira improficua. A nossa
estampa da primeira pagina é uma resposta cabal áquelles que acusavam de exagera-
ção a pintura que se fazia do estado da infeliz provincia (PR SOR 02167-1: 121).
Bordallo, além desse lado combativo, que levava a tão contundente crítica, também
parecia ter bom olho para os negócios publicitários, como revelam alguns anúncios que a
revista vai publicando, algo ainda não explorado devidamente pelas semanais ilustradas (e
Agostini, como se sabe, abominará a venda de espaço publicitário). Há em O Besouro páginas
divididas em 4 anúncios, de tamanhos distintos: ½, ¼ de página e menos. Apenas com texto
(como o anúncio do Armazém Central, de Pinto Caldeira, na rua da Quitanda 34, que
“vende boa seda, optimo gorgorão, fino velludo, luzidio setim: Pinto Caldeira é o amigo da
alegria e da tristesza, tem enxovaes completos para as doçuras do hymineu e artigos os mais
contristadores para luto”) ou com texto e ilustrações, como o do Grande Hotel Santa Tereza,
Ruas do Aqueduto 48, que anuncia, com a imagem de um trompetista, seus almoços a
2$000 e jantares a 8$000 para “familias e cavalheiros dignos de boa sociedade”.
Há anúncios de página inteira, como o de J.M. Queiroz, loja de calçado da Rua da
Quitanda 91. A página traz sete trabalhadas vinhetas: uma mulher provando sapatos,
atendida por dois cavalheiros, dois senhores de bigode e cartola, entre sapatos e botas,
dois brasões, duas moedas a insinuar tratar-se de casa fornecedora do imperador. No alto,
desenho de um prédio de três andares, três portas e três janelas nos andares superiores.
Abaixo, outra composição de mulheres e sapatos. Não traz autoria do desenho.
Já o anúncio de meia página louvando as virtudes dos calçados de Antonio Aragão
239
Capítulo 6
1876-1878
Um número
completo de
O Besouro,
com o
destaque da
homenagem
ao conterrâneo
Eça de Queiroz
na contracapa.
A numeração
das páginas
é seqüencial.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
240
no combate a joanetes e calos (“É o pé formoso que faz morrer de fome e de terror todos
os calistas) traz a assinatura com as iniciais RBP, de Raphael Bordallo Pinheiro.
Uma revista que ia tão bem de conteúdo e de suporte financeiro faria pensar numa
trajetória mais longa. No entanto, algo mudará os rumos da permanência de Raphael no
Rio de Janeiro. A principal delas é sua famosa polêmica com Angelo Agostini, de quem
fora especial amigo, apesar das farpas já trocadas. De resto, algo muito comum entre egos
de artistas numa década em que a imprensa carioca abrigou e produziu tantos nomes
ilustres. Herman Lima, em sua história da caricatura, se estende longamente sobre trocas
de insultos e insinuações de plágio entre os desenhistas. Mas nada chegou à temperatura
do rompimento entre Agostini e Bordallo.
A polêmica iniciou a partir de uma ironia feita pelo redator José Ribeiro Dantas Júnior,
ao resenhar, na seção “Pelos Teatros”, da Revista Illustrada, a apresentação nos palcos cariocas da
ópera Eurico – de autoria do maestro português Miguel Angelo Pereira, era adaptação do
romance Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano. Essa crítica deu muito que falar entre a
numerosa colônia portuguesa radicada no Rio, muitos deles assinantes da revista de Agostini.
Estes não apenas cancelaram assinatura, como fizeram o boca-a-boca pelo cancelamento.
Como relata Gilberto Maringoni, a disputa entre Agostini e Bordallo rendeu muitas charges e
lavação de roupa suja nos números seguintes da Illustrada e de O Besouro:
Bordallo investiu pesado num suplemento do Besouro 37, de 7 de dezembro de 1878:
desenha 6 páginas de quadrinhos onde chama o italiano de panfletário pulha, safardana
em artes, urubu do lápis. É fácil supor que isso não ficou sem troco: Agostini já chamara
Bordallo de vendedor de chouriços. O embate entre Agostini e Bordallo, ao que parece,
teve por base vaidades pessoais. Em um ambiente cultural restrito e rarefeito, a vida
cultural era constituída por igrejinhas e panelas, como se diz popularmente
(MARINGONI, 2006: 112-114).
A briga chegou a tal ponto que José do Patrocínio se afastou de Bordallo. E as coisas
não iam bem para o português, que sofreu duas tentativas de assalto ou atentados. Numa,
escapou de uma navalhada porque o instrumento acertou em sua cigarreira de prata. Na
outra, flagra-se um negro escondido no portão de sua casa, porrete em punho, pronto para
golpeá-lo, a mando de alguém que nunca se esclareceu quem fora. Herman Lima, que
recolhe essas histórias, conclui: instado pela esposa e aconselhado pelos amigos, Raphael
O Besouro teve
vida curta mas
Bordallo previa
vida longa:
ao fechar o
primeiro ano, faz
capa para
encadernação e
grita, na capa
do nº 5 a
tiragem,
oferecendo
espaço para
publicidade
(na outra
página, alguns
anúncios).
241
Capítulo 6
1876-1878
A denúncia da
seca e da fome
no Ceará, numa
parceria com
José do
Patrocínio, dá a
Bordallo a autoria
da primeira
fotorreportagem
publicada no
Brasil.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
242
Notas do Capítulo 6
1 Nas “Apoquentações do Dr. Semana”, Agostini acrescentava,
ao título, a linha fina: “desenho para crianças, por Angelo
(que não copiou de nenhum jornal alemão)”, dando a enten-
der que Fleiuss plagiava muitos dos desenhos que publicava.
Essa suspeita pairou sobre muitos outros caricaturistas – mas
Fleiuss nunca se defendeu da acusação (Cf. FERREIRA, 1994:
403). Ao atacar o grande artista estabelecido, Agostini utili-
zou a conhecida técnica do pequeno que compra briga com
o grande, do desconhecido que desafia o líder: se o líder
revidar, estará avalizando o pequeno ou desconhecido na ca-
tegoria de rival.
2 A passagem de Borgomainerio pela Argentina foi curta. Che-
gou ali na metade de 1874, mas encontrou o país mergulha-
do num clima conturbado de disputas internas. Em 28 de
novembro do mesmo ano ele já assinava seus primeiros de-
senhos em A Vida Fluminense: a dupla central trazia sua “re-
portagem” sobre a passagem pelos lados portenhos: “Últi-
mas notícias da guerra argentina... Sempre à espera... de
uma ação decisiva”.
3 As primeiras publicações, como O Patriota, Espelho
Diamantino, Lanterna Mágica, O Auxiliador da Indústria Na-
cional, O Beija-Flor, utilizavam páginas de uma coluna, o que
lhes conferia um aspecto de livro. Na etapa seguinte, publica-
ções como A Marmota, O Jornal das Senhoras, Semana
Illustrada, O Mequetrefe, A Vida Fluminense, são paginadas
em duas colunas, ganhando mais leveza visual. Já O Figaro e
a Revista Illustrada passam a adotar o design das três colu-
nas, numa evolução de design.
4 Esse comentário é feito com todo o respeito pelo brilhante
trabalho de Ferreira de Andrade, que proporcionou pistas e
referências preciosas para a realização desta pesquisa, so-
bretudo em sua fase inicial. Foi a partir da leitura de seu livro
– voltado especificamente para o estudo da imagem nas pu-
blicações cariocas do século XIX – que se pôde planejar a
pesquisa no acervo da Biblioteca Nacional. Joaquim Marçal
Ferreira de Andrade, como funcionário da Biblioteca Nacio-
nal, conhece, domina e sabe compartilhar o que aprendeu
em sua pesquisa. A ele o reconhecido agradecimento. O que
não invalida a percepção de que em seu livro ele de certo
modo obvia a grandeza de Agostini.
5 Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em História Social do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo, em 2006. Arquiteto, jornalista, ilus-
trador e caricaturista, Gilberto Maringoni tem um olhar privi-
legiado nas análises que faz da técnica e dos recursos de
Agostini. Também deu algumas boas sugestões de leituras
para o andamento deste trabalho – registro o agradecimento.
6 Em seu tempo, seguramente foi o artista gráfico mais prolífi-
co em atuação na imprensa, tendo produzido cerca de 3,2
mil páginas ilustradas (MARINGONI, 2006: 27).
7 A mesma expressão encabeçava o lotogipo da Semana
Illustrada, de Henrique Fleiuss, uma referência ao ditado lati-
no da crítica pelo humor (rindo, corrige os costumes).
8 Sobre a alma de repórter de Angelo Agostini, Gilberto Marin-
goni relata uma história exemplar: havia um padre de que
muito se falava na cidade e não havia modo de o caricaturista
conseguir referência iconográfica sobre o personagem. En-
tão, não teve dúvida: encomenda uma missa de sétimo dia e
vai até a igreja, coloca-se atrás de uma coluna e desenha, no
bloco de notas, um esboço da figura do padre. Estava pronta
a referência para o desenho na pedra litográfica (MARINGONI,
2006: 107).
9 Como conta Herman Lima, foi o ainda jovem Candido
Aragonez de Faria que deu margem ao ruidoso incidente em
que estiveram envolvidos os três grandes caricaturistas es-
trangeiros da época, cuja expulsão do país foi sugerida pelo
folhetinista do Jornal do Commercio, Ferreira de Meneses
(LIMA, 1963: 808). O motivo da ira do redator contra os
desenhistas estrangeiros foi uma caricatura publicada em
O Mosquito de 26 de janeiro de 1876, atacando os minis-
tros do gabinete, Barão de Cotegipe, João Alfredo e espe-
cialmente o Duque de Caxias. A má-fé de Ferreira de Meneses
é evidente, pois o autor da peça era brasileiro, mas era boa
ocasião para atacar os lápis que incomodavam os donos
do poder.
10 O comentário de Agostini é longo e espirituoso, ocupando
duas colunas e parte da terceira, mas esses dois trechos
captam bem o núcleo de sua argumentação: o áulico Ferrei-
ra de Meneses ao defender Caxias lhe presta um desservi-
ço, chamando a atenção do público para o fato de ele ter
sido caricaturizado na forma de um macaco. Teria sido mais
negócio não dar tanta visibilidade ao fato.
11 Em “Linchamento na província”, no capítulo 3 de sua tese,
Gilberto Maringoni conta a história do delegado Joaquim
Firmino de Araújo Cunha, da cidade de Penha do Rio do
Peixe (atual Itapira), em São Paulo, assassinado por dar
guarida a negros fugitivos. Simpatizante da causa abolicio-
nista, foi linchado e o assunto ocupou diversas edições da
Revista Illustrada. Os criminosos, fazendeiros e notáveis de
Rio do Peixe, foram absolvidos. Tamanha foi a repercussão
do fato que a cidade mudou o nome para Itapira, para des-
pegar-se de um nome que se tornara símbolo de opróbrio
(MARINGONI, 2006: 142-147).
12 Como a presente pesquisa foi realizada a partir dos micro-
filmes da Biblioteca Nacional, é importante a observação de
Ferreira de Andrade, que, pelo fato de ser pesquisador da
própria instituição, pôde manusear exemplares – com o que
se explica a citação.
13 Ferreira de Andrade explica que a xilografia da capa é uma
montagem de duas fotos: ele localizou no acervo da BN a
foto original, de autoria dos fotógrafos alemães Henschel &
Benque. A imagem da princesa tem a lateralidade invertida,
na capa, pois o gravador não se preocupou em invertê-la
no ato da confecção da matriz (cf. ANDRADE, 2004: 168).
regressa a Portugal no início de 1879 (LIMA, 1963: 3-898). Em março daquele ano, com
número 49, O Besouro circulava pela última vez.
No lustro que vai de 1875-79, pode-se dizer que nenhum aspecto da vida política, social
e artística do Brasil deixou de ter seu registro no lápis de Raphael Bordallo que, às
diabruras do comentário mais irreverente aos maiorais da terra, juntava a graça e a
beleza gráfica dos croquis de todos os fatos dignos de nota no correr da semana. A
política era naturalmente o assunto principal de sua colheita feroz. [...] Ao lado porém da
charges cruéis, com que verberava tanta vez injustamente o clero brasileiro, a crônica
impressa do Brasil ficou a dever-lhe muitas páginas duma alta expressão artística e dum
enternecido lirismo (LIMA, 1963: 3-889-890).
243
As publicações do
final de uma época:
1879 a 1900
A literatura forma parte do mundo de seu público ao mesmo tempo
em que contribui para conformá-lo, produz a partir de convenções sociais e,
ao mesmo tempo, as modifica, propõe e adota formas imaginárias,
figuras semânticas, sistemas semióticos. Iuri Lotman demonstrou de que modo
ideais estético-literários contribuíram na produção de formas de vida,
estilos epistolares, disposição interna das residências, gestos de cortesia.
Ele concebe a cultura como um sistema de modelização que junto com
outros sistemas configuram o perfil de uma sociedade.
Beatriz Sarlo, El imperio de los sentimientos. Buenos Aires-Norma, 2000, pág. 181.
Capítulo 7
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
244
1879 A Estação: jornal illustrado para a família
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Lombaerts
& Comp., 1879-1904 (584 números)
Proprietários-redatores: Jean Baptiste
Lombaerts e Henri Gustave
Lombaerts
A Infância
Rio de Janeiro, RJ: Typ. do
Magdalenense, 1879 (1 número)
Revista Brazileira 2ª fase:
jornal de sciencias, lettras, artes
Rio de Janeiro, RJ: Typ. J.D. de
Oliveira, 1879-1881 (10 números)
Dirigida por Nicolau Midose
Revista de Engenharia
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Econômica,
1879-1887 (3 números)
Diretor: Francisco Picanco.
Redator-proprietário: José Américo
dos Santos
1881 Binóculo
Rio de Janeiro, RJ: Typ. e Lith. de
Almeida Marques, 1881-1882
(31 números)
Colaboradores: Raimundo Correia,
Filinto de Almeida e Raul Pompéia
Desenhos de: Ignotus, Huascar e
Belmiro
Sciencia para o Povo: serões instructivos
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Lombaerts
& C., 1881 (2 números)
Editor-proprietário: Felix Ferreira
A Mulher: periódico illustrado
de litteratura e bellas artes...
Nova York, EUA : Typ. de E. Perez,
1881-1883 (7 números)
Redatores: Josefa A. F. M. de
Oliveira e Maria A.G. Estrella
1885 Distracção: semanário
humorístico e satyrico
Rio de Janeiro, RJ: Typ. de J.P.
Hildebrandt, 1885-1887
(41 números)
Ilustrador: C. Idoux; P. L’Epiny
A Semana
Rio de Janeiro, RJ: Typ. da Semana,
1885 (2 números)
Diretor: Valentim Magalhães
A Vespa
Rio de Janeiro, RJ: Typ.
Hildebrandt, 1885 (4 números)
Desenhos de P. Netto
1886 Gryphus: revista litteraria,
humorística e ilustrada
Rio de Janeiro, RJ: Typ. da
Distraccao, 1886 (8 números)
Ilustrador: Pereira Netto e outros
Rataplan: semanario litterario,
humoristico e illustrado
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Lith.
Almeida Marques, 1886 (5 números)
Proprietários: Lopes Cardoso & C.
Ilustradores: Belmiro de Almeida,
D. Villares e Pereira Netto
1888 A Família: jornal litterario dedicado
a educação da mãe de família
São Paulo, SP: Typ. União,
1888-1894 (159 números)
Proprietária-redatora: Josephina
Álvares de Azevedo
1889 O Quinze de Novembro do Sexo Feminino:
periódico quinzenal, litterário, recreativo e
noticioso
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Universal,
1889-1890 (7 números)
Proprietária-redatora: Francisca
Senhorinha da Motta Diniz
245
1895 A Cigarra
Rio de Janeiro, RJ: Officinas
Graphicas de J. Bevilacqua & C.,
1895-1896 (37 números)
Proprietário: Manoel Ribeiro Junior
Redator: Olavo Bilac r Pedro
Rabello. Diretor: José Barbosa.
Ilustrado por: Julião Machado
Don Quixote: jornal illustrado
de Ângelo Agostini
Rio de Janeiro, RJ: Typ. L’Express,
1895-1903 (164 números)
Revista Brazileira 3ª fase: jornal
de sciencias, lettras e artes
Rio de Janeiro, RJ: Imprensa
Nacional, 1895-1899 (18 números)
Dirigida por José Veríssimo
Rio Revista
Rio de Janeiro, RJ: 1895
(2 números)
Desenho de: Julião Machado,
Isaltino Barbosa e Arthur Lucas
1898 Rua do Ouvidor
Rio de Janeiro, RJ: Typ. Casa
Mont’Alverne, 1898-1912.
(60 números)
Proprietário: F.J. Serpa Junior & Cia.
1900 Revista da Semana
Rio de Janeiro, RJ: Officinas da
Revista da Semana, 1900-1910
(357 números)
Redator-chefe: Fernando Mendes
de Almeida
Redatores: Candido Mendes e
Gaspar de Souza.
Ilustradores: Raul, Bambino,
Amaro do Amaral e Luis Peixoto
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
246
A E
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O Império está chegando a seu fim. E a República que o sucede em 1889 não foi
resultado de campanhas e discussões nacionais levadas a termo pelos clubes republicanos
que se instalaram em diversas cidades do país a partir da década de 1870. Como ensina
José Murilo de Carvalho, a população do Rio de Janeiro assistiu ao golpe de 15 de
Novembro pensando tratar-se de uma parada militar. De fato, a proclamação não foi
realizada pelos principais agentes econômicos do Império, os cafeicultores paulistas, que há
anos buscavam a mudança de regime. Ela aconteceu pela confluência de interesses
estruturais com descontentamentos circunstâncias no interior da burocracia imperial.
Assim, quem proclama a República não são as frações de classe mais profundamente
interessadas nela, mas um setor que tinha atritos pontuais com o regime. Essa contradi-
ção gera uma década de instabilidade e de intensa luta política, até a oligarquia cafeeira
assumir a plena hegemonia do processo, a partir de 1898, com a chegada do paulista
Campos Salles ao palácio. Assim, em vez de ser o desenlace de um ciclo de disputas, o 15
de novembro inaugurou um novo período de confrontos, choques, conspirações, rebeli-
ões e debates, mostrando que a unanimidade acerca da nova situação estava longe de
acontecer (MARINGONI, 2006: 199).
O fato é que o início da República marca um rearranjo de forças políticas na busca
da inserção do país na economia internacional e da possibilidade de atrair capital para
enfrentar novos desafios, como a criação de infra-estrutura para a exportação de produtos:
o país se tornara fornecedor de matérias-primas para os países que se haviam
industrializado. O Império se assentara num rígido sistema monetário, pouco flexível para
as necessidades de expansão da economia, às voltas com a produção do café, base das
exportações, e da necessidade de investimento para a política de imigração e para o
pagamento do trabalho livre. A saída da administração republicana foi liberar a emissão
de moeda e abertura descontrolada de crédito inaugurou um período de especulação
desenfreada.
Emissões sem lastro, negócios em profusão e confusão jurídica. Está montado o terreno
para que os primeiros anos do novo regime aconteçam sob o signo da especulação desen-
freada. Criam-se bancos e empresas fantasmas. [...] Lançam-se ações na bolsa, compra-se
barato para se vender caro. Fortunas fazem-se e desfazem-se da noite para o dia. Dinhei-
ro e poder mudam de mãos em poucos meses. É a farra do Encilhamento (MARINGONI,
2006: 202).
A falta da legitimidade do apoio e da decisão popular gerou desconfianças e
melindres entre os novos dirigentes republicanos. Implantou-se a censura à imprensa um
mês após a proclamação. No dia 23 de dezembro de 1889 foi criado um Tribunal
Excepcional Militar para julgar possíveis atos e condutas que pusessem o regime em
perigo. O periódico monarquista A Tribuna Liberal, de propriedade do Visconde de Ouro
Preto, último chefe de gabinete do Império, é pressionado até fechar, circulando pela
247
última vez em 25 de dezembro de 1889. Com novo nome, agora apenas Tribuna, volta a
circular seis meses depois, mas sua sede foi invadida e as instalações depredadas. Pelos
Estados, jornais de oposição são fechados, têm suas edições apreendidas, os redatores
presos ou redações e as oficinas destruídas (MARINGONI, 2006: 210). É com esse
quadro de desconforto que a implantação da República enterra os tempos das
“publicações alegres”. A liberdade de imprensa e as ousadias de alguns caricaturistas, que
chegou a chocar visitantes estrangeiros, passam a ser coisa do passado.
7.1. O papel dos livreiros – e a revista A Estação
Chamado de “o século do otimismo”, uma das marcas do século XIX foi a crença
no progresso da ciência e nos benefícios que algumas de suas invenções, resultado dos
avanços na física, na química e na mecânica, trariam para a humanidade como um todo.
Essas invenções tinham aplicações práticas e, introduzidas no cotidiano, mudavam o ritmo
e a qualidade de vida. Foi o que ocorreu com a adoção da máquina a vapor, a
disseminação do telégrafo, da eletricidade, da fotografia e do telefone. Um somatório de
fatores importantes para que as pessoas dispussem de maior e melhor acesso às
informações. No marco dessa busca de acesso ao conhecimento o papel desempenhado
pelos livreiros foi importante. Sobretudo no Brasil, com seu déficit histórico de leitura.
Havia no Rio de Janeiro, em 1813, apenas duas livrarias, de propriedade de
negociantes franceses, Paul Martin Filho e Jean Robert Bourgeois (SODRÉ, 1999: 38).
Oito anos depois esse número saltava para 21. Havia, segundo Sodré, pelo menos a de
Manuel Joaquim da Silva Porto, na rua da Quitanda; a de Antônio José Rebelo, no Largo
do Desterro; a de Jerônimo Gonçalves Guimarães, na Rua do Sabão; a de João Batista dos
Santos, na Rua da Cadeia; a de Francisco Luís Saturnino da Veiga, na Rua da Alfândega;
a de Cipriano José de Carvalho; a de Francisco Nicolau Mandillo; a da Rua Direita,
defronte do Arsenal, que vendia folhetos com os discursos pronunciados nas Cortes de
Lisboa; a de Paul Martin, na Rua da Quitanda. Em 1823, proclamada a Independência,
surgiram outras oito: a de José Antônio da Silva, na Rua Direita; a de Joaquim Antônio de
Oliveira, na Rua da Quitanda; a da Rua dos Latoeiros; a da Rua da Ajuda; a de Vera
Cruz & Cia., na Rua da Quitanda; a da Rua das Violas; a da Rua Nova do Senado; a da
Rua dos Arcos. Dois anos depois, em 1823, outras sete se juntavam ao grupo.
Eram algumas vezes lojas mistas. Mas já a imprensa dava sinal, em anúncios, de venda
de livros usados. E, em 1823, o livreiro Francisco Saturnino da Veiga, desejando contrair
segundas núpcias, auxiliava os filhos a abrirem nova casa do gênero [...] prova de que o
negócio de livros dava para viver. Aí, Evaristo da Veiga se iniciou no ramo, vendendo,
por exemplo, o Curso de Política Constitucional, de Benjamin Constant, Benthan, Blackstone,
Foy, Ricardo, Say, Rousseau, Montesquieu, Beccaria, fontes prediletas do pensamento
político dos primeiros legisladores brasileiros. [...] O ramo, aliás, teve muitos franceses a
exercê-lo: M. Cremière, Cogez, Ogier, Plancher. A partir da época da Regência, Paulo
Brito tinha loja, no Largo do Rocio. Havia, assim, um público razoável, considerando o
peso dos longos séculos de passado colonial e de tudo o que isso significou sempre, e
aqui particularmente, de atraso, ignorância e miséria. Essa expansão do comércio de
livros estava em consonância com as condições políticas que evoluíam rapidamente: era
um país novo que começava a emergir, com a sua camada culta ansiosa por definir-lhe os
rumos e necessitada, para isso, de informar-se (SODRÉ, 1999: 38-39).
No entanto, mesmo em 1830 eram poucos os pontos de distribuição de livros, como
afirma Lajolo e Zilberman (2002: 117). De Pierre René François Plancher de la Noé já se
falou (no capítulo 2). Ele trouxe, além de máquinas modernas, algumas práticas de
marketing em uso na França, como a loteria de livros. Seus sucessores, tanto no Jornal do
Commercio como no negócio de venda de livros, Villeneuve e Mougenot investiram forte em
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
248
promoções e, sobretudo, importaram da França os folhetins. Havia ainda a Livraria de
Luis Mongie, onde se reunia uma espécie de clube literário, algo que viria a acontecer
também na loja de Francisco de Paula Brito, com a sua Sociedade Patalógica.
Não obstante tantas e tão beneméritas iniciativas, livrarias e editoras, até a primeira meta-
de do século XIX, representam esforços e projetos descontínuos. Jamais figuraram ativida-
des coesas que, secundando um projeto educacional consistente, sustentem (e se susten-
tem de) uma sólida prática social da leitura (LAJOLO E ZILBERMAN, 2002: 118).
Um novo estágio ocorre com os livreiros da segunda metade do século XIX: foram
os negociantes de livros que, cientes das inovações tecnológicas de impressão e do
barateamento do custo de produção em larga escala, passaram a lançar no mercado obras
capazes de agradar aos diferentes componentes do público leitor ainda em formação. O
leitorado ia aumentando aos poucos devido ao desenvolvimento da capital federal, à
quantidade cada vez maior de homens livres, à vinda de imigrantes europeus, ao aumento
progressivo de profissionais liberais, à ampliação de uma população assalariada, dentre
outros fatores.
Segundo o censo de 1890, enquanto 80% da população brasileira era composta por
analfabetos, no Rio de Janeiro quase metade de população sabia ler e escrever. Detalhe:
era uma cidade majoritariamente habitada por homens: 57,9% de população masculina
contra 43,8% de mulheres. E era justamente entre as mulheres que o analfabetismo
apresentava números maiores. Dos 4 milhões de brasileiras contabilizadas da década de
1870, apenas 550 mil – menos de 14% – estavam alfabetizadas. Para complicar a situação,
boa parte da sociedade ainda tinha dúvidas se a mulher deveria ou não ter acesso à
educação.
Esse novo tipo de comerciante livreiro tentou atingir a parcela da população ainda
pouco explorada pelo mercado editorial, assim como os novos leitores que surgiam. Nessa
época aparecem diversas obras consideradas populares, mas não no sentido de serem
direcionadas às camadas de pouco poder aquisitivo, mas sim por serem produtos de baixo
custo – algo que havia dado bons resultados sobretudo na França, com as edições de
romances em papel barato.
Os livreiros estrangeiros desse momento – último quartil do século XIX –
representavam em geral firmas francesa interessadas em manter suas filiais num mercado
que, mesmo limitado, sempre se mostrara bastante francófilo. Entre esses livreiros se
destacaram os irmãos Laemmert, Baptiste Louis Garnier e Francisco Alves.
A Laemmert iniciou suas atividades como Livraria Universal em 1833. Dirigida por
dois irmãos, Heinrich e Eduard Laemmert, passou a editar livros a partir de 1837,
inaugurando a Typographia Universal. Entre suas publicações, a mais famosa foi o
Almanack Laemmert, de que já se falou no capítulo 3. Os Laemmert publicavam obras gerais,
como dicionários, coleção de máximas, manuais de medicina, seleção de poesias
brasileiras. Publicavam ainda livros traduzidos do francês, mas seu carro-chefe sempre
foram os autores alemães: editaram Goethe e foram pioneiros na literatura infantil,
publicando, entre outros, As aventuras do Barão de Münchausen. A editora aventurou-se,
também, embora em pequena escala, na edição de livros didáticos.
A Livraria Garnier dividia com a Laemmert (Universal) o mercado de livros,
concentrando-se na publicação de literatura. Dirigida pelo francês Baptiste Louis Garnier,
seus livros eram impressos em Paris e, às vezes, em Londres. Baptiste Louis, caçula de
uma família ligada ao comércio de livros, chegou ao Rio de Janeiro em 1844 e dois anos
depois abria sua livraria (LAJOLO E ZILBERMAN, 2002: 119).
Considerada uma das pioneiras no desenvolvimento editorial brasileiro, a Garnier
teve a seu favor pontos importantes como pagamento regular de direitos autorais, boa
remuneração aos tradutores, formação de um corpo qualificado de redatores-revisores e
maciço investimento em literatura, tanto européia quanto nacional. Baptiste Louis Garnier
249
publicou, entre outros, Honoré de Balzac, Walter Scott, Charles Dickens, Alexandre
Dumas e Oscar Wilde. Com forte sentido comercial, considerado um tanto sovina e pouco
ousado quanto a enfrentar riscos, Garnier priorizava a edição de autores consagrados. Ou
seja, apostava no garantido. Editou obras dos romancistas brasileiros mais importantes de seu
tempo. Seu numeroso portfólio incluía José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Graça
Aranha, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Olavo Bilac,
José Veríssimo, Artur de Azevedo, Bernardo Guimarães, Paulo Barreto (o João do Rio).
Baptiste Louis Garnier foi também o pioneiro e principal editor de Machado de Assis.
A casa editorial Francisco Alves nasceu com o nome de Livraria Clássica, criada em
1854 por Nicolau Antônio Alves, tornando-se o terceiro grupo editorial e livreiro do
Segundo Império. Em 1863 Nicolau se associou com o sobrinho Francisco Alves de
Oliveira, dedicando-se a partir daí ao promissor negócio do livro didático. Tinha um
catálogo, naquele ano, de 30 títulos dedicados ao uso nas escolas – com o tempo, os
manuais escolares chegaram a constituir quase 90% do acervo.
Foi assim, primeiro pelas mãos de Laemmert e Garnier, depois pelas de Alves, que a
imprensa no Brasil abandonou o regaço estatal e saiu para as ruas, à procura do lucro
que vinha sob a forma dos compradores. Lucros parcos, é verdade, talvez na mesma
proporção dos leitores (LAJOLO E ZILBERMAN, 2002: 121).
Um livreiro que fugiu um pouco desse tipo de negócio foi Jean Baptiste Lombaerts,
que juntamente com seu filho, Henri Gustave, optou por trabalhar principalmente com
jornais e revistas importadas, em vez de competir com os livreiros já estabelecidos e que
dominavam o mercado de livros. Eles foram editores e proprietários da Livraria e
Tipografia Lombaerts e Comp., também localizada no Rio.
Uma das mais importantes publicações importadas que essa livraria revendia no
Brasil era o periódico francês La Saison, impressa por Gustave Lyon Societé Anonyme em
Paris desde 1872. Esse periódico retratava a moda parisiense, que já na época influenciava
as tendências do mundo todo, e as novidades do vestuário na Europa. De 1872 a 1878
Lombaerts produziu um suplemento em português que acompanhava a revista.
Foi somente em 15 de janeiro de 1879 que o livreiro e tipógrafo passou a editar uma
versão brasileira, chamada A Estação: Jornal Illustrado para a Família, que noticiava a moda
européia, com a novidade de trazer uma seção nacional dedicada à literatura, por onde
passaram nomes famosos, como Machado de Assis. Além disso, a revista era um cardápio
rico de sugestões de bordados, manualidades, moldes de roupas, acessórios femininos em
geral. Publicada duas vezes por mês, saía com datas dos dias 15 e 30, e circulou até 14 de
fevereiro de 1904.
Para marcar a continuidade com a edição francesa, a primeira edição de A Estação,
Jornal Illustrado para a Família saiu com a numeração de ano VIII, número 1. Afinal, a
publicação não era um produto novo e sim uma continuação da La Saison, que deixara de
circular por aqui naquele mesmo ano de 1879.
Impressa no mesmo formato de 37x27 cm, suas páginas eram compostas por muitos
desenhos que recriavam as fotografias tiradas pelos retratistas profissionais: apesar de já
ter sido inventada mais de três décadas antes, ainda não se havia descoberto como fazer a
impressão direta da fotografia, algo que aconteceria daí a poucos anos. Com isso, os meios
impressos de comunicação não publicavam a foto e sim a sua reprodução em desenho.
A revista abre com o texto “Aos nossos leitores”:
Começa com este numero o oitavo anno do nosso jornal, e foram tantas as provas de
animação dispensadas a esta empreza, desde o começo, pelo respeitavel publico em todo
o Imperio que afinal vemos os esforços constantes, as lutas de sete annos, prestes a serem
coroadas do mais feliz exito e cada vez mais nos approximamos do fim á que desde o
principio nos propuzemos: crear um jornal brazileiro indispensavel a toda mãi de familia
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
250
economica que deseje trajar e vestir suas filhas, segundo os preceitos da época. [...] Acaba-
mos de folhear a collecçao completa dos numeros publicados sob o título La Saison, edição
para o Brazil, e não é sem experimentarmos um intenso sentimento de satisfação que
vimos as provas do pouco que temos feito, mas que muito foi, para attingirmos ao alvo
que almejamos. As nossas amaveis leitoras, aquellas principalmente que nos acompanham
desde 1872 perguntaremos: cumprimos nós fielmente o nosso programma, auxiliando e
aconselhando as senhoras mais economicas, fornecendo-lhes os meios de reduzirem a sua
despeza, sem diminuição alguma do grão de elegância á que as obrigava a respectiva
posição na boa sociedade? (PR SOR 04641 [1]).
Ciente de que a moda criada para o inverno de Paris não seria a mais adequada ao
correspondente verão da Corte do Rio de Janeiro, o editor se antecipa:
A revista promete adaptar as novidades parisienses ao clima do Rio, sem fugir do bom
senso: “Ainda encontrarão nossas leitoras nas nossas páginas pesados mantos no verão e
toilettes leves no inverno, porém junto a isso que não podemos eliminar sob pena de não
mais reproduzir a moda pariziense, encontrarão tambem todas as explicações que lhes
indicarão os meios de tirar alguma vantagem desses objectos, conformando-se com as
exigencias de nosso clima. Por esse lado continuará o nosso jornal a ser pariziense (PR
SOR 04641 [1]).
Para compensar o gap de estações, a revista promete investir em boa leitura:
Por outro lado, porém, na parte agradável e recreativa, deviamos torna-lo nosso, e assim
o fizemos. Confiamos a parte litteraria da Estação a pessoa de reconhecida habilidade, e
n’este numero encetamos a publicação de uma producção de um dos nossos mais talen-
tosos e festejados romancistas, que especialmente para o nosso jornal a escreveu e cuja
corôa brilhante va por esse motivo adquirir mais um luzido florão (PR SOR 04641 [1]).
Mais adiante, ainda sob a promessa de boa leitura, a revista antecipa:
Escolheremos no que de melhor se publicar nos jornaes de senhoras mais acreditados da
França, Bélgica, Allemanha, Inglaterra, aquelles artigos cujo assumpto possa interessar a
nossas leitoras, cuidado esse tambem a cargo de pessoa muito experimentada, cuja
collaboração tivemos a fortuna de adquirir (PR SOR 04641 [1]).
Outra novidade prometida nessa apresentação do primeiro número da versão
brasileira de La Saison: uma consultora local fará ajustes, acrescentará dicas.
Uma senhora, que se acha em contacto immediato e constante com a sociedade elegante
e escolhida dos nossos salões fluminenses, dignou-se de tomar o encargo de quinzenal-
mente contar ás nossas leitoras como são interpretadas pelas nossas bellas patrícias os
preceitos de elegância dos salões do faubourg St. Honoré.
As páginas da revista a partir dessa abertura virão recheadas por textos descritivos,
de linguagem acessível e específica (como fazer, como pintar) e detalhada, revelando
medidas e materiais a serem usados para a fabricação artesanal das vestimentas e dos
acessórios e objetos sugeridos. Na página 2 temos: 1, 2 e 57: Vestuario para máu tempo (1
e 2 são os figurinos mostrados no desenho da capa; 57 é o modelo que aparecerá na
página 4: o paletó justo do desenho 2, visto de costas). Diz o texto-legenda:
1. Costume de manto comprido: Molde do manto: vide o número 1 de Novembro,
desenhos 40 e 42. Esse manto muito comprido e com largas mangas é de panno acolcho-
ado guarnecido de franja de penas com contas e grega de seda. Costume com tunica
comprida de cachemira da Índia, guarnecida de velludo e lanços de fita de setim. Chapéo
de velludo com fitass de setim: os pingos do véo são de ouro.
A página tem ainda uma média de 15 imagens e legendas, que vão de “anteparo” a
251
“avental para a menina”, “vestido com corpinho e blusa”, “vestido para baile”, “borda para
almofadas”, “cesta para trabalho”, “guarnição”, “tamborete”, “mobília para boneca”, “laço
para gravata enfeitado com renda de birro”, “dois leques para baile”, “tapete bordado”,
“enfeite de flores e fitas”, “cesta de pães”, “saia e corpinho”, “leque enfeitado com flores e
penas”. A variedade de acessórios era grande (algumas páginas podiam trazer três dezenas
de sugestões e idéias), mas sempre convergentes, em um mesmo estilo que passa um tom
de elegância e distinção (confira as imagens).
Alguns exemplos: “Cesta de pão – esta cesta para pão, de tília, é enfeitada com
pintura sobre a madeira; a sépia em fundo acinzentado, cujo motivo vai indicado na figura
26. O fundo é rodeado de preto; a beira externa mais escura faz sobressair o motivo da
pintura”; “Toilette para baile. Vestido à princesa com chalé de renda. É de seda clara e
tarlatana, tendo fios de prata no tecido e enfeitado com renda blonde. O chale apanhado é
preso sobre o penteado por uma flexa ou um tufo de rosas faria um toilette encantador
para o teatro ou concerto”. “Dois enfeites de flores para toilette de baile: as flores e fitas
sempre foram os enfeites preferidos para vestuário de baile e este ano não faz exceção à
regra. O enfeite de flores, desenhos 41 e 42, arma-se sobre cordão prateado; os desenhos
43 e 44 representam um rasto de rosas misturado com laços e pontas de fita de cetim”.
Um número regular da revista podia apresentar quase uma centena de idéias. Assim, o
número 1 traz 97 figuras; o número 6 (31 de março de 1889) chega a 94. Certamente as
leitoras se deliciavam.
Festejando o vigésimo ano de sua introdução no país, a revista publicou na imprensa um
longo anúncio (como no número inaugural do Jornal do Brasil, de 9 de abril de 1891),
divulgando uma estatística do seu conteúdo pictural anual: 34 figurinos coloridos, mais
de dois mil desenhos, quatorze folhas desdobráveis com mais de duzentos moldes, mais
de quatrocentos riscos de bordados. Era nessa época editada pela sociedade Lombaerts,
Marc Ferrez & Cia. e dizia-se uma das vinte edições do mesmo jornal francês
1
, publicado
em quatorze idiomas (FERREIRA, 1994: 211).
É possível notar na leitura das páginas de A Estação como o texto das publicações
brasileiras dessas duas últimas décadas do século vai aos poucos deixando o tom de
oratória, o discurso do púlpito, que foi uma das características de seu início, na entrada
dos anos 1820. Agora o discurso assume um aspecto quase coloquial, de conversa entre
amigas. A imprensa, em seus primeiros anos entre nós, sofreu muita influência da retórica
eclesiástica, pela presença de clérigos, que de algum modo marcaram o tom do que seria o
texto jornalístico por décadas (era frade o editor da Gazeta do Rio de Janeiro; era cônego o
fundador do Revérbero Constitucional Fluminense, Januário da Cunha Barbosa; eram frades o
Frei Caneca, do Tifis Pernambucano, e o criador de O Carapuceiro foi o padre Lopes Gama)...
Situação reforçada pela substantiva presença dos bacharéis, tanto os formados em
Coimbra, nos primeiros momentos da nossa imprensa, como depois os advogados saídos
das escolas de Direito de São Paulo e Recife. Embora a presença de bacharéis vá marcar
ainda as próximas cinco décadas, o viés eclesiástico agora é coisa de um passado, como
lembra Isabel Lustosa, ao concluir seu comentário sobre a pioneira Gazeta do Rio de Janeiro:
Era uma imprensa com as características da imprensa européia do século anterior. Ao
contrário do que já se conhecia na Europa, são raros nesse cenário os jornalistas profis-
sionais. Muitos seriam os padres que acumulariam a condição de eclesiásticos com as de
funcionário público e jornalista. A redação de A Gazeta do Rio de Janeiro era uma mistura
de redação propriamente dita com repartição pública e claustro, não só por conta do
grande número de funcionários públicos e padres que nela escreviam, mas também,
apesar de se classificar como um empreendimento de particulares, por funcionar numa
secretaria de governo (LUSTOSA, 2000: 71).
Outro detalhe apontado por diversos pesquisadores: mesmo em suas páginas
dedicadas a bordados e figurinos, as moças mostravam, além de belos vestidos, o costume
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
252
da leitura. Muitas vezes nos desenhos as modelos traziam um jornal ou livro nas mãos.
Uma mensagem para a leitora: consumir publicações é chique e sinal de estilo.
E foi justamente com sua seção literária que a revista mais brilhou: ali se
publicaram boa parte dos contos machadianos (ao lado de O Jornal das Famílias e da Gazeta
de Notícias)
2
, além de alguns dos seus romances mais conhecidos, como O Alienista (1881) e
Quincas Borba, que foi divulgado de 15 de junho de 1886 a 15 de setembro de 1891 em
minicapítulos (folhetim). Machado de Assis colaborou de 1884 a 1891 e chegou a assinar
notas de eventos, como o “Cherchez la Femme”, em que anunciou a criação do Liceu de
Artes e Ofícios Femininos, solicitando fundos às leitoras, “em nome da elevação moral da
família”. Olavo Bilac, outro grande redator de revistas, também participou de A Estação,
colaborando com crônicas, contos e poesias, como Dantas Júnior, que teve muitas de suas
crônicas publicadas ali. Em 1885 começou a aparecer uma série de textos intitulados
“Croniquetas”, trazendo a assinatura de “Eloy, o herói”, pseudônimo utilizado por Artur
de Azevedo. Algumas jornalistas mulheres, como Ignez Sabino, Presciliana Duarte de
Almeida e Julia de Almeida, enviaram colaborações para essa revista, o que era ainda uma
novidade naquele momento, em que escrever não era uma atividade feminina. A revista A
Estação trazia, ainda, escritos sobre higiene, poesias, indicação de livros e sugestões de
leituras para suas assinantes.
Sua parte mais importante, o “Supplemento Litterario”, circulou durante 24 anos, de 15
de janeiro de 1880 a 15 de fevereiro de 1904) e teve a colaboração dos mais conhecidos
escritores nacionais. Foi principalmente esse suplemento que trouxe ao Brasil talvez as
mais magnificentes xilogravuras estereotipadas ou galvanotipadas francesas da época,
algumas mesmo de grande beleza e impressionante realismo, em sua maior parte, como
era natural, copiadas de fotografias, já quando o meio-tom fotomecânico se estava popu-
larizando no país (FERREIRA, 1994: 211).
Em 15 de fevereiro de 1904, A Estação fechou as portas, após 25 anos de existência
como a maior revista feminina de seu período. A Casa Lombaerts chegou a gozar de um
reconhecimento tão grande que é
mencionada em pelo menos duas
obras. A primeira foi O Ateneu, de
Raul Pompéia (1888), que cita a casa
publicadora em seu capítulo VI. Ali
se lê: “A sociedade tinha o seu órgão,
O Grêmio, impresso no Lombaerts
(...)”. A segunda é uma crônica de
1911, de Lima Barreto, chamada
Feiras e Mafuás: “Dos jornais e folhetos
distribuídos por aquela ocasião, eu
me lembro de um pequeno jornal
publicado pelos tipógrafos da Casa
Lombaerts. Estava bem impresso,
tinha umas vinhetas elzevirianas,
pequenos artigos e sonetos (...)”.
Após circular oito anos
em francês, a revista
La Saison ganha versão
brasileira em 1879.
253
Capítulo 7
1879-1900
No vigésimo ano de circulação,
A Estação contabilizava a
média anual de 34 figurinos
coloridos, 2 mil desenhos,
200 moldes, mais de
400 riscos de bordados.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
254
7.2. Nova geração de ilustradores: Binóculo, Gryphus, A Vespa
7.2. e Rataplan
A partir de 1880 quatro novas publicações serão espaço para uma nova leva de
caricaturistas de admirável vocação, um deles vindo a ocupar um especial lugar nas artes
plásticas brasileiras, Belmiro de Almeida – o outro firmando-se como um dos mais
originais caricaturistas nascidos aqui, Pereira Netto.
3
Com a colaboração de Belmiro ou
por sua iniciativa surgiram O Binóculo, em 1881, o Gryphus, no ano seguinte, e o Rataplan,
em 1886, prenunciando a chegada de novos tempos na arte da caricatura, pela preferência
do traço contínuo, nervoso, elegante, que no início deixa transparecer forte influência do
mestre português Raphael Bordallo Pinheiro (LIMA, 1963: 123). Pereira Netto brilhará na
Gryphus e em A Vespa – e dali irá substituir Angelo Agostini na feitura de A Revista Illustrada,
a partir de 1888.
7.2.1. Binóculo
A revista Binóculo era impressa na tipografia e litografia de Almeida Marques
(mudando-se mais tarde para a conceituada casa impressora de João Paulo Hildebrant,
de quem falamos no capítulo anterior), e circulou de 6 de agosto de 1881 a 6 de maio do
ano seguinte, somando 31 números. Na revista colaboravam nomes que iriam compor a
próxima geração de revisteiros: Raimundo Correia, Filinto de Almeida e Raul Pompéia,
alguns com passagem anterior pela Mequetrefe (1875-1893), focalizada no capítulo
anterior – e ainda em circulação e prestígio entre o público leitor dessa época. Mas foi
nela que se revelou o talento de um caricaturista que será depois um grande artista
plástico, Belmiro.
Belmiro Barbosa de Almeida Júnior, mineiro nascido na cidade do Serro em 1858,
era pintor e escultor e começou a colaborar com a imprensa carioca na Comédia Popular
(1877-1878), assinando Bel (outras vezes assinará como Romibel ou Bromeli, variações de
Belmiro). Em seus primeiros trabalhos, nota-se a influência de Raphael Bordallo Pinheiro,
a quem usou como modelo e inspiração. Mas foi no Binóculo (1881-1882) que teve
oportunidade de se exercitar, ao ter de ilustrar semanalmente a publicação. No Binoculo, de
início dividiu as tarefas com Huáscar de Vergara, parceria que renderá bons momentos
(LIMA, 1963: 3-950). Dublé de jornalista, ilustrador e cenógrafo, sabe-se pouco sobre a
vida e as andanças de Vergara
4
. O fato é que no período em que Belmiro se iniciava no
Binóculo, teve nele uma de suas referências e juntos realizaram belos trabalhos.
7.2.2. A Gryphus:
Com o nome completo de Gryphus, revista litteraria, humoristica e illustrada, esse
periódico foi uma publicação semanal de menor duração, sobrevivendo apenas três meses.
Seu primeiro número, impresso na Typographia da Distracção, circula com data de 9 de
outubro de 1886 e chegará apenas ao número 9, impresso em 4 de dezembro do mesmo
ano. Teve como principal ilustrador outro grande nome da nova geração, Pereira Netto.
Antonio Bernardes Pereira Netto, conhecido apenas com os dois últimos nomes, já
se disse acima, foi a grande estrela dessa geração. Sobre ele diz Herman Lima:
De vocação inegável para o desenho crítico, dum traço firme e plástico, usando indife-
rentemente, com a mesma perícia, o esfuminho e o bico-de-pena, capaz de compor uma
alegoria ou uma sátira, um retrato rigorosamente fiel ou um portrait-charge de irônica
similitude, Pereira Netto jamais se quis firmar como um criador autêntico, explorando
sua própria personalidade. Preferiu deixar-se ficar à sombra de outro artista, é certo que
255
Capítulo 7
1879-1900
A capa do nº 1 da Gryphus e o desenho
inovador de Pereira Netto, empregando a
técnica do negativo em seus perfis e caretas.
O romancista Joaquim Manoel de
Macedo é homenageado pelo traço
de Belmiro no nº 29 do Binoculo.
A revista inova pela propaganda do
Armarinho do Lemos e do formicida
Montanha e Casa Grande Mágico.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
256
sempre um verdadeiro mestre, como Grévin ou Angelo Agostini. Do último, particular-
mente, ao fim da vida, se tornaria mesmo quase um duplo, pela facilidade inaudita com
que substituiria o mestre italiano, a ponto de passar a fazer sozinho o Revista Illustrada
durante anos, a partir de 1888, sem maiores quebras de seu alto padrão artístico e sem
que o leitor comum se apercebesse da substituição (LIMA, 1963: 3-903).
Em realidade, Pereira Netto via-se mais como um resolvedor de problemas, aquele
que no calor do fechamento desenha, faz a legenda, fecha e manda para a impressão, do
que um grande criador de cenas.
Começou a desenhar no Figaro (1876-1878), em substituição a Candido Aragonez de
Faria. Do Figaro foi para a Lanterna e dali para o Mequetrefe (1875-1893) – publicação que
reuniu muitos aprendizes que depois vieram a formar essa segunda geração de revisteiros
do final do século XIX. Ali faz algumas composições de página dupla com pequenos
desenhos, ao estilo de Bordallo Pinheiro. Mas Angelo Agostini será seu grande modelo e
referência. Na Gryphus Pereira Netto teve oportunidade de se soltar e produzir algumas de
suas melhores criações, inovando nas imagens em branco com fundo negro, algo difícil de
realizar com os equipamentos a pedra da litografia da época.
Na capa do número 1 da revista, 9 de outubro de 1886, um janota, apelintrando-se
diante de um brasão com a legenda “Ridendo”, expõe a missão da revista: “a crítica
polida, a crítica elegante, que toma por legenda o clássico Ridendo, que tem na flor do lábio
um Grifo hilariante, eis, leitor, a missão que realizar pretendo”. Nos 9 números que durou
a revista, todas as páginas ilustradas foram trabalhos realizados por Pereira Netto com
exceção de uma – informa Herman Lima (1963: 3-905), no último número, assinada por
Bento Barbosa.
7.2.3. A Vespa
Outra revista que teve a contribuição decisiva de Pereira Netto foi A Vespa, lançada
no Rio de Janeiro, produzida também na casa tipográfica do impressor alemão João Paulo
Hildebrandt, e que circulou de 10 de janeiro a 23 de setembro de 1885, somando apenas
20 edições. Mas serviu para que Pereira Netto fosse amadurecendo suas habilidades no
controle das etapas de produção de um semanário ilustrado. Nesse periódico publicou
charges políticas e de costumes.
Para ficar num exemplo, na última página do número 6 da revista, um desenho de
Pereira Netto fez sensação, chamando atenção para um trabalho que se impunha: uma
bela jovem, fantasiada de pierrette, passeia pela Rua do Ouvidor, cortejada por um bando
de carnavalescos que a inundam de bisnagadas. A rua dos armarinhos e das casas
editoriais já era a sensação da capital do agonizante império.
7.2.4. Rataplan
O nome completo dessa revista semanal de grande formato (36x32 cm) e curtíssima
duração era Rataplan, semanario litterario, humoristico e illustrado. Lançado no dia 6 de
novembro de 1886, foi impresso na Typographia Almeida Marques, para o editor Lopes
Cardoso. Durou apenas cinco edições, com seu número 5 circulando com data de 25 de
dezembro de 1886. No entanto, foi tempo suficiente para que em suas páginas brilhassem
o traço de Belmiro e de Pereira Netto.
Na capa do primeiro número, um tamborzinho elegante e viril bate continência,
numa admirável composição de “traço firme e dúctil, diferente de tudo o que se fazia
então ordinariamente, sob a tutela do esfuminho de Agostini”. A influência deixada pelo
lápis de Bordallo no trabalho do jovem Belmiro, que depois seria pintor renomado de
várias obras-primas, dilui-se pouco a pouco, firmando-se sua plena maturidade.
Sobre Belmiro, diz Gonzaga Duque: “A bem da verdade, deve-se dizer que depois
257
de Borgomainerio e Bordallo Pinheiro, ninguém tem feito, no Brasil, melhores caricaturas”
(apud LIMA, 1963: 3-922). Formado na Academia Nacional de Belas Artes, onde se
matriculara em 1877, passa uma temporada em Paris. De volta, retoma o trabalho na
imprensa, participa de muitas publicações, como O Malho (lançado em 1902) Fon-Fon,
Gazeta de Noticias, e dá aulas na Academia de Belas Artes até 1916, quando se muda
definitivamente para Paris, onde vive até a morte, em 1935.
7.3. A leitora e novas revistas femininas: Mulher e A Família
Em seu livro Testemunha ocular: história e imagem, o historiador Peter Burke desenvolve,
no capítulo VI (“Visões de sociedade”), uma bela reflexão sobre a mulher como leitora.
Diz ele:
A instrução da mulher bem como o seu trabalho podem ser acompanhados através do
tempo graças a imagens, a partir da Grécia antiga. Um vaso grego mostra duas moças de
mãos dadas e inclui um pequeno detalhe significativo. Uma das figuras está carregando
suas tábuas de escrita presas por uma tira, como se houvesse a expectativa de que algu-
mas moças aprenderiam a escrever. Algumas das primeiras imagens modernas de esco-
las mostram a segregação dos gêneros, com rapazes e moças ocupando carteiras em
lados opostos, como na gravura de uma escola rural francesa do século 18. Deve-se
notar que os rapazes possuem uma mesa de apoio para escrever, ao passo que as moças
sentam com as mãos no colo, como se fossem simplesmente escutar, o que implicaria que
estariam aprendendo a ler mas não a escrever (BURKE: 2004: 139).
Burke lembra o fato de que a representação de mulheres (a Virgem Maria,
sobretudo) lendo era uma constante no Renascimento, e o declínio desse tipo de
representação depois de 1520 seria conseqüência da demonização da leitura (a leitura
como fonte de males e de subversão) feita pela Igreja Católica depois da Reforma
protestante. Já vimos como Portugal aderiu à idéia e proibia não apenas a impressão, como
a entrada de livros em sua colônia.
Igreja Católica e soberanos portugueses à parte, o fato é que a imprensa feminina
surgia já no final do século XVII, nomeadamente na França e na Inglaterra, e inaugurava
a prática, presente até os dias atuais, de deixar claro no título dos periódicos que se tratava
de leitura para mulheres (tanto que revistas de sucesso adotam nomes femininos: Nova,
Claudia, Carícia, enquanto poucas revistas masculinas adotaram nomes de homens, como a
George, de John Kennedy Jr., ou a Getulio ou Bonifácio).
Quando surgiram no Brasil, na segunda metade do século XIX, as publicações
genuinamente feitas de “mulher para mulher”, a idéia desse (e sobre esse) público ainda era
bastante confusa. Afinal, os homens eram os letrados e os que tinham acesso à leitura de
jornais e revistas; às mulheres cabia entender de fogão, da administração da casa e da e
educação dos filhos, herança moura apropriada pelo colonizador português
5
. De algum
modo, as publicações femininas servem de termômetro para aferir os costumes de uma
época, pois retratam os paradigmas vigentes. A estudiosa francesa do fenômeno da imprensa
feminina Evelyne Sullerot afirma (conforme citado pela pesquisadora Dulcília Buitoni):
A história desta imprensa é apaixonante porque nela lemos a história dos costumes: não
a “pequena história” feita de anedotas sobre os grandes deste mundo, mas um reflexo
significativo da vida cotidiana, da economia doméstica, das relações sociais, das mentali-
dades, das morais e dos esnobismos apaixonados, no seu monótono frenesi de novidade
(BUITONI, 1981: 9).
Na década de 1880 surgirão algumas tentativas de implantação de publicações
femininas. Houve por exemplo A Mulher, periódico illustrado de litteratura e bellas artes...
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
258
Editado em Nova York pelas brasileiras Josefa A. F. M. de Oliveira e Maria A.G. Estrella,
que havia se mudado para os Estados Unidos para poder seguir o curso de medicina.
“Consagrado aos interesses e direitos da Mulher Brazileira”, segundo a ficha catalográfica
da Biblioteca Nacional, a publicação tinha um nítido tom pró-americano: não apenas as
autoras reconheciam nos Estados Unidos “o país dotado por Deus para ser o berço da
emancipação feminina”, como trazia “Junto ao título na folha de rosto o desenho de uma águia
com a inscrição Pluribus Unum”
6
, tirada dos símbolos americanos (PR SOR 00086 [1]).
Outra dessas publicações é criada em São Paulo, em 1888, por Josefina Álvares de
Azevedo: A Familia, jornal litterario dedicado a educação da mae de familia. Como ocorrera uma
década antes com a publicação mineira O Sexo Feminino, também esse periódico se muda
para o Rio de Janeiro: afinal, sendo a sede do governo, eram ali que iniciativas desse porte
ganhavam dimensão nacional. Até o número 23 foi publicado em São Paulo, e a partir do
número 24, passa ser editado no Rio de Janeiro.
Como ensina a professora Nely Novaes Coelho, sinal das mudanças que iam
ocorrendo na sociedade no momento, observa-se que, na primeira fase desse periódico o
objetivo declarado do jornal era “facilitar às mães de família uma leitura amena que as
iniciasse nos deveres de esposa e mãe”. Quando já publicado no Rio de Janeiro e
posteriormente à Proclamação da República, acrescenta aos objetivos que a folha tinha
surgido “para advogar a causa da emancipação da mulher”.
A revista, segundo informa a Biblioteca Nacional, teve diversos números especiais
com retratos e textos sobre pessoas ilustres da época, que deram depois origem às Galeria
ilustre: mulheres célebres: em formato semelhante ao então usado por autores masculinos para
colecionar figuras exemplares de homens notáveis, essa Galeria de celebridades femininas
sinalizava claramente para os novos papéis sociais imaginados por sua autora para as
brasileiras, ao expor retratos de famosas, entre elas rainhas e figuras políticas, além de
outras nada exemplares para os padrões da época, como Cleópatra e George Sand. A
Familia foi, dos jornais femininos, o que teve maior duração (1881-1897); e também um
dos que registrou o maior número de colaboradoras escritoras (Inês Sabino, Anália
Franco, Maria Amélia de Queirós, Corina Coaracy, Marie Benotte, Revocata de Melo e
outras). Seus temas feministas abrangeram o “direito de voto”, o direito de serem médicas,
advogadas, professoras ou seguirem a carreira teatral (que era então considerada caminho
para a prostituição).
7.4. Nova fase de A Vida Fluminense e O Album
A tentativa de reviver títulos é recorrente no mercado editorial. Alguns nomes
deixam apelo e lembranças no imaginário do leitor. Foi assim com títulos com a palavra
espelho no nome ou mesmo o caso de O Beija-Flor – embora em quase todos os casos a
segunda tentativa não tenha muita ou nenhuma relação com a que a precedeu. É esse o
caso da segunda fase de A Vida Fluminense. A revista original foi abordada no capítulo 5 (cf.
5.1.1. “O palco da guerra nas páginas de A Vida Fluminense”).
7.4.1.
Lançada em 15 de setembro de 1889, com o título de Vida Fluminense: periodico
illustrado, litterario e sportivo, circula no Rio de Janeiro outra revista semanal, que somará 37
edições até colocar na praça seu último número em junho do ano seguinte. Impressa na
Casa Litotipográfica de Pereira Braga, estava sob a direção de Henrique Stepple, tendo
como seus redatores França Junior, Artur de Azevedo e Pereira da Silva, com as ilustrações
a cargo de Teixeira da Rocha Valle e Hilarião Teixeira.
Vale mencionar a revista justamente pela exposição que deu a esse jovem artista,
que substitiu Pereira Netto durante o período em que este continuador do trabalho de
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Fundado por Artur de Azevedo
e Paula Ney, O Album foi
pioneiro ao veicular fotografias.
Olavo Bilac, Machado de Assis
ou Ferreira de Araújo, o jornalista
criador da Gazeta de Notícias,
posaram para a câmera
de Juan Gutiérrez.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
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Angelo Agostini na confecção da Revista Illustrada viajara para a Argentina.
Aluno da Imperial Academia de Belas-Artes em 1884, Hilarião ganhara certo
destaque em certames acadêmicos com seus desenhos. Trabalhou como desenhista na
Casa da Moeda, onde fez carreira, formando outros designers.
Já seu parceiro nas ilustrações da revista, Teixeira da Rocha, conseguiu um maior
destaque. Também aluno da Academia de Belas-Artes, Texeira da Rocha nasceu em
Alagoas em 1863. Esforçado, ganhou a medalha de ouro por seus trabalhos na Exposição
Universal de Paris de 1889. Também em parceria com Hilarião Teixeira, editara a revista
Monóculo, de curta duração (lançada em 1884, teve apenas 4 números), voltando os dois a
encontrar-se nessa nova versão da Vida Fluminense.
7.4.2.
Impressa pela prestigiada casa impressora H. Lombaerts, a revista O Album foi
lançada em 1893 e marca uma tentativa de experimentação no mercado revisteiro do Rio de
Janeiro. Fundada e dirigida por Artur de Azevedo, mestre tarimbado então com apenas 38
anos, reuniu à sua volta revisteiros em formação, como Olavo Bilac (27 anos), Pedro Rabelo
(24 anos), Guimarães Passos (25 anos) e Paula Ney (33 anos) para criar uma publicação que
seria das primeiras a veicular fotografias na imprensa brasileira. Eram retratos de escritores,
artistas, jornalistas, políticos, cientistas, fotografados por João Gutierrez e com suas imagens
impressas pelo processo de fototipia, uma novidade para a época e que irá revolucionar a
maneira de editar imagem nas publicações. A novidade da revista, além do texto engajados
dos jovens redatores, era trazer a cada número um retrato.
O editorial do primeiro número anunciava que cada edição traria o retrato de uma
pessoa notável, que constituiria o “álbum”, propriamente dito, “uma interessante galeria na
qual figurarão, em curiosa promiscuidade, todas as classes sociais”. O redator cita a
renovação que se atravessava então, e entende que uma folha “desse gênero terá mais
tarde o seu valor documentário”. Escreve ele que a fotografia matou a gravura desde que
conseguiu imprimi-la em grandes tiragens, dando-lhes ao mesmo tempo uma
inalterabilidade indiscutível. “a fototipia é, como se vê, o triunfante processo dos nossos
retratos, que não hesitamos em recomendar como verdadeiros modelos do gênero”
(citação recolhida em ANDRADE, 2004: 226).
Os dois primeiros números da revista, que circularam em janeiro de 1893, trazem
respectivamente um retrato de Carlos Gomes e de Machado de Assis, iniciando o álbum
de fotografias que ficaria a cargo da Companhia Fotográfica Brasileira e, a partir do
número 35, da Fototipia J. Gutiérrez, enquanto a impressão do restante da revista era de
responsabilidade da empresa de H. Lombaerts. Fotógrafo de origem espanhola,
naturalizado brasileiro, Juan Gutiérrez Padilla “foi sem dúvida um dos mais importantes
precursores da nossa fotografia jornalística” (ANDRADE, 2004: 227).
7.5. A Cigarra e A Bruxa
O aparecimento de revistas como Rataplan e Binóculo, animadas pela fantasia de
Belmiro, é seguido nos anos seguintes de outras boas surpresas, como pode ser o “fulgor”,
como diz Herman Lima, de A Cigarra e de A Bruxa, resultado da parceria de Olavo Bilac e
do caricaturista Julião Machado. Julião, como Belmiro, marcaria bem a transição de
gêneros em que se caracterizou a nossa arte da caricatura – e com a cara nova que ela irá
fazer a passagem para o século XX
7
.
Olavo Bilac foi figura carimbada na imprensa desde os tempos de O Mequetrefe
(1875-1893), onde conviveu com caricaturistas como Candido Aragonez de Faria, Antonio
Alves do Valle, Pereira Netto, Joseph Mill e Aluísio de Azevedo, e trocou figuras com
261
Capítulo 7
1879-1900
Com redação sob a
batuta de Olavo Bilac
e desenhos de Julião
Machado, A Cigarra
cantou e encantou
em 56 edições.
Há momentos de
alta criatividade,
como o “Domingo
de inverno” (pág. 4),
com o toque da
pluma de Bilac.
Acima, o jogo
completo do nº 1.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
262
outros redatores como Artur de Azevedo, Henrique Lopes de Mendonça, Raimundo
Correia, Filinto de Almeida – sendo a revista dirigida por algum tempo por Lins de
Albuquerue (LIMA, 1963: 1-116).
A Cigarra é lançada em 1895 e A Bruxa segue seu caminho, um ano depois.
Como o título e subtítulo de A Bruxa, hebdomadario illustrado, a segunda das duas
revistas foi produzida nas Officinas Graphicas de J. Bevilacqua, no Rio de Janeiro.
Semanal, tinha o formato de 34x27 cm, chegando à marca de 56 edições – circulou de 7
de fevereiro de 1896 até dezembro de 1904. Tinha no cabeçalho o nome da dupla que
lançara um ano antes A Cigarra: Julião Machado e Olavo Bilac. Os textos passavam pelo
crivo do redator e publicitário, além de poeta, Olavo Bilac. O visual da revista era trabalho
de Julião Machado com aportes de Calixto Cordeiro, o K. Lixto, e Raul Pederneiras, nada
menos que dois dos maiores nomes da ilustração nas revistas do século XX.
Mas foi A Cigarra, lançada um ano antes, a publicação que deu a largada para
parcerias que deixarão história e marca nas revistas que se criarão nas décadas seguintes.
Impressa nas mesmas Officinas Graphicas de J. Bevilacqua & C., a revista chegará a
circular até o 37º número, de 9 de maio de 1895 a dezembro de 1896. Tem o formato das
semanais ilustradas do período anterior: 8 páginas. Mas já não segue o rígido modelo das
duplas de ilustração seguidas das duplas de texto, revelando que um lado da folha fora
impressa em tipografia, o outro em litografia: os tempos são outros.
Assim, o número 1 de A Cigarra, que circulou com data de 9 de maio de 1895, uma
quinta-feira, trazia texto e gravura na primeira página; a segunda página, com duas
colunas de texto, trazia no alto uma pequena caricatura e, na coluna da esquerda,
embaixo, uma pequena vinheta (8 pássaros pousados numa linha, sob a grife “Política”). A
página 3, novamente de texto em duas colunas, é ilustrada com uma vinheta mostrando
um grupo de mulheres – uma delas com asas de borboleta, talvez denotando uma cigarra.
A dupla central (páginas 4 e 5) mostram desenhos, mas a da esquerda tem aplicação de
texto: na realidade um comercial convidando as leitoras a fazer assinatura da revista. As
páginas 6 e 7, tradicionalmente reservadas aos blocos de texto, são aqui ocupadas por um
desenho de página inteira à esquerda (crônica teatral) e por textos (página 7). A página 8
segue o modelo: 7 desenhos de Julião Machado falam da “polícia e os diabéticos”.
Passemos a uma na análise das ofertas editoriais desse número.
A capa, página 1, traz no cabeçalho o local e a data: Rio de Janeiro, quinta-feira, 9
de maio de 1895. O logotipo A Cigarra, hebdomadario. À esquerda do logo, as “condições
de assignatura”: anno = 48$000, semestre = 25$000. Avulso = 1$000. Escriptorio, Rua
Ouvidor 115. Abaixo, a epígrafe: “il est hyver: danse, fainéante. Appren des bestes, mon
ami (Baif).
8
Sob o logotipo, o expediente da publicação: “Redacção de Olavo Bilac, Illustrações
de Julião Machado. Administração de Manoel Ribeiro Junior”. Tal esclarecimento não era
comum até então – os pesquisadores agradecem a ajuda!
Dominando a capa, a imagem de uma mulher-cigarra, asas de borboleta, guitarra
nos braços, a cantar. Parece que seu canto espanta três personagens da parte de baixo –
dois homens e uma mulher, que tapam os ouvidos e saem em desabalada carreira. Acima,
outros dois homens e uma mulher parecem jogar folhas ao vento. Escrito a mão, um verso
de La Fontaine: “Nuit et jour à tout venant, je chantais ne vous déplaise”
9
.
À esquerda da ilustração, o texto em que a publicação diria a que veio. “Que é isso”,
se pergunta. E o redator dá três respostas. A do naturalista circunspecto, que “a fazer
inveja a Emilio Goeldi” definiria a cigarra como um inseto da ordem dos hemípteros...
Um burguês severo, homem prático, agarrado à terra como a hera ao muro, diria
“Cigarra? Um bichinho incommodo e tolo, que durante o verão apunhala os ouvidos da
gente”. Um poeta, com olhar babado de ideal, a voz quebrada de soluços, suspiraria: “Oh,
a cigarra, alma do estio, voz saudosa da tarde”... Na página 2, a resposta da revista:
263
Nós, porém, e o publico, só queremos saber que A Cigarra é um jornal illustrado, que não
tem programma nenhum e terá muitos assignantes. Esta cigarra vae cantar enquanto
para isso houver forças; e as forças não faltarão emquanto o dinheiro chover dentro
d’este escriptorio como já está chovendo [...] A Cigarra espera ficar donzella [...] casará
platonicamente com o publico, e, graças a uma rigorosa hygiene matrimonial (leia-se:
graças a uma despotica administração do Manoel Ribeiro), atravessará invernos e ve-
rões, estridulando e cantando. Não é preciso dizer mais nada: A Cigarra quer dar mais do
que o que promette. Abram-nos espaço a fulgurante Noticia, a velha sempre moça Revista
e o altivo e bello D. Quixote. Para todo o mundo ha logar debaixo do sol e... dos quarenta
e oito mil réis da assignatura annual (PR SOR 00070 [1]).
A “rigorosa hygiene” faz eco a uma das palavras de ordem dessa época na capital
federal, cidade com históricos problemas de saneamento básico.
A seguir, sob a retranca “política”, um texto delicioso. O autor fala da saudade do
tucano, ou seja, do manto de papo de tucano que o imperador usava na fala do trono.
Agora, não há imperador, não há papo, não há coches de gala”... Não se trata de saudade
do imperador, esclarece o redator, que assina L.F., mas sim que a coisa tinha o sal da
oportunidade e a cor local: nada como ir um tucano abrir uma assembléia de periquitos!
Segue-se, já na página 3, a crônica. Um texto que começa afirmando ser maio o mês
das flores. Mas... “Flores não fallam, flores não amam, flores não beijam, flores não
enganam, como mulheres... E mez das mulheres é que Maio é”.
A partir daí, a crônica deslancha a falar das mulheres, do espetáculo que é vê-las
circulando pela Rua do Ouvidor, entrando em lojas, quando “todos os armarinhos, ás trez
da tarde, se enchem de um quente aroma feminino, que entontece e allucina”. O redator
conclui: ficará de fora dos temas da política, para ater-se apenas às mulheres:
Pódem as ruas alagar-se ou não, á vontade dos partidarios do recúo ou dos partidarios
do statu quo! Que os noticiarios arfem, carregados de casos de adulterios, de sangue, de
roubo, de guerra! Que os cabos telegraphicos se reforcem de desenferrugem, transmittindo
noticias espantosas, grèves, terremotos, crises, revoluções, amores escandalosos de Os-
car Wille e lord Alfred, constipações do rei da
Hespanha, pneumonias do duque de Orléans,
torcicollis de Felix Faure, rheumatismos de
Muley Pachá, carraspanas do Grão Mogol, cri-
ses hystericas do imperador Guilherme, indi-
gestões da rainha Victoria. Que a Europa se con-
flagre! que a Ásia se deixe inundar! que a Africa
torrada á secca se desfaça em pó! Que tenho eu
com o resto do mundo? O mundo para mim é a
Rua do Ouvidor, radiante viella por onde passa,
em ondas que cantam, o rio da belleza humana!
Maio é o mez das mulheres! [...] para que precisa
o Rio de Janeiro de tanta mulher bonita!? (PR
SOR 00070 [1]).
Capítulo 7
1879-1900
Ferreira de Araújo,
o fundador do jornal Gazeta
de Notícias, é uma “formiga”.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
264
Esse texto, assinado por Fantasio, pode ter sido de Bilac – são poucos os textos da
revista e sua saída, meses depois, será lamentada na capa. No entanto, embora nessa
crônica cite três vezes o desenho com que Julião Machado fará tributo à beleza das
mulheres, mencionando expressamente o ilustrador, o redator esconde-se no anonimato de
um pseudônimo.
Mais ou menos como o próximo texto, “A promptidão”, que encerra a parte textual
do número e será assinado por um tal Serapião Fagundes – nome não mencionado no
expediente.
É outro delicioso texto em que o autor se apresenta como “um homem serio: tenho
cincoenta e seis annos de edade; sou casado; alimento mulher, tres cunhadas, oito filhos;
sou porteiro de uma repartição publica”. Trata-se de um ensaio divertido sobre a força dos
boatos na cidade do Rio de Janeiro. O autor revela ter sido promovido a major pelos méritos
de ter ficado, “durante a revolta á causa legal, abrindo e fechando todos os dias a porta de uma
repartição em que ninguém entrava e de onde ninguém sahia”.
Cita a fábula de La Fontaine Les femmes et le secret: um homem, para testar a discrição
da consorte, segreda-lhe que havia posto um ovo, mas pede que mantenha segredo sobre o
fato. Dito e feito, antes do pôr-do-sol toda a aldeia sabia que o homem havia botado não
um, mas cem, mil, “um Hymalaia de ovos”. O mesmo ocorre no Rio, onde a briga de dois
soldados se converte no confronto entre dois pelotões, daí a pouco um enfrentamento
entre dois regimentos, deixando a cidade em polvorosa. O nosso abridor de portas, major
por merecimento, acorda cedo e vai conferir com seus próprios olhos: não há rebelião
nenhuma na cidade. Apenas:
Uma só cousa anormal havia na cidade: a promptidão. Promptidão da armada, promptidão
do exercito, promptidão da guarda nacional, promptidão do corpo de bombeiros,
promptidão de tudo – até mesmo da industria e do commercio, que não podendo traba-
lhar em paz, a todo momento preparam as malas, promptas para uma viagem ao Cairo,
a Malta, a Nazareth (PR SOR 00070 [1]).
Esse texto sobre os rumores e boatos, que lembra muito algumas crônicas de Bilac
publicadas na Gazeta de Noticias
10
, é o tema do principal desenho de Julião Machado, na
página 5: a indústria e o comércio, representados por uma senhora alta e um senhor
gorducho e de bigode, se preparam para viagem, malas e pacotes à mão, com etiquetas
onde se lê: Malta, Nazareth, Cairo, Egypto e “mundo infinito”.
A outra ilustração, da página 4, mostra um casal no quarto de dormir. O marido se
esconde por trás de um jornal, A Noticia, e a mulher lê uma revista, formato menor. Claro,
a revista é A Cigarra! Diz o texto:
Domingo de inverno, como é doce a meia luz do quarto... [...] mas quando o habito
já esfriou os primeiros transportes, só há um meio de poder ficar na penumbra
suave da alcova sem tédio: é ler A Cigarra. O bom despertar faz o bom dia. Lêr
jornaes políticos... que horror! Conversar sobre arranjos da casa... shoking! Lêr a
Cigarra! Lêr a Cigarra! Isto é um jornal feito para bellos olhos e para almas finas
(PR SOR 00070 [1]).
Bilac dá mostras do excelente publicitário que também foi.
No número 5, de 6 de junho, a revista inaugura a seção Cigarras e Formigas,
homenageando na primeira literatos e intelectuais (cita Machado de Assis, José do
Patrocinio, Joaquim Nabuco, Angelo Agostini, Aluísio de Azevedo, entre outros, seriam as
“cigarras”); alternadamente, na segunda serão homenageados comerciantes, políticos,
financeiros e diplomatas, as “formigas”. Essa edição abre com uma homenagem a Lulu
Senior, pseudônimo de Ferreira de Araújo, cronista e fundador do jornal Gazeta de Noticias,
retratado por Julião Machado.
265
Capítulo 7
1879-1900
Outros números adiante A Cigarra dá ecos à questão diplomática entre Brasil e
Inglaterra na questão pela posse da Ilha da Trindade, que deixou os dois países eriçados
por volta dos meados de 1895. No número de 1º de agosto há uma charge de John Bull (o
equivalente britânico do Tio Sam), vestido de turista inglês, fugindo no escuro, com a ilha
debaixo do braço e a imprensa brasileira, de lanterna em punho, a denunciá-lo, enquanto
ao fundo da cena surgem cabeças alvoroçadas, movem-se lanças no alto, aos gritos: “Não
pode!, não pode!”
Em seu número 26, da quinta-feira 31 de outubro de 1895, a revista lamenta a saída
de Bilac:
Olavo Bilac, que desde o primeiro numero da Cigarra deu a esta illustração o concur-
so inestimavel e inegualavel do seu talento, por motivos alheios á vontade dos que
ficam, mas mantendo integra a solidariedade de imprensa que a estes o ligava, dei-
xou o cargo de redactor-chefe da Cigarra. Se esta sahida nos desconsola e desalenta,
os protestos de amizade e solidariedade com que ao realisal-a nos penhorou, e a
promessa formal de escrever a Chronica, fazem com que saibamos, n’este abandono
cruel, ver no camarada de hontem o amigo de hontem, de hoje e de sempre (PR
SOR 00070 [1]).
A revista chegará ao número 37, sem manter regularidade de publicação (de
semanal passa praticamente a bimestral no segundo ano), encerrando atividades em
dezembro de 1896. Parece que o dinheiro não choveu como o redator previa no texto de
apresentação do primeiro exemplar.
A pena de
Olavo Bilac e o
lápis de Julião
Machado
criaram bons
momentos em
A Bruxa.
Acima, capa
do nº 2,
foto da
inauguração
do Teatro
Amazonas,
e o nº 29.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
266
7.6. Uma publicação paulista se firma: A Mensageira
Quase dez anos depois, São Paulo assistia ao lançamento de outro periódico
feminino, A Mensageira: revista literária dedicada à mulher brazileira, criada pela escritora
mineira Presciliana Duarte de Almeida em 15 de outubro de 1897 e que circulou até 1900.
A imprensa feminina brasileira que surgiu na segunda metade do século XIX se
caracterizava pela miscelânea de assuntos abordados, o que de resto ainda permanece
como um de seus traços. Poesia, receita de bolo, reportagens, figurinos, artigos de
psicologia, horóscopo, fofocas, arquitetura, educação infantil, saúde, corte e costura e o
indefectível consultório sentimental – presente já no que é considerado o primeiro
periódico feminino, o Lady’s Mercury, editado na Grã-Bretanha em 1693 (BUITONI, 1981:
10). Tudo parece pertencer ao universo feminino, no que é apenas uma herança dos
populares “almanaques”, os antecessores da imprensa feminina.
Sucesso de vendas com a popularização do invento de Gutenberg, os almanaques
traziam conselhos práticos de economia doméstica, medicina caseira, os santos do dia,
recomendações de agricultura, fases da lua, época adequada de plantio, eram um manual
de dicas e conselhos práticos para uma sociedade eminentemente rural. Deles as revistas
femininas herdaram o tom e a aplicabilidade dos conselhos.
A revista criada por Presciliana Duarte de Almeida é um bom exemplo disso. Filha
do tenente-coronel da Guarda Nacional Joaquim Roberto Duarte e Rita Vilhena de
Almeida Duarte, ela nasceu em 3 de junho de 1867 na cidade de Pouso Alegre, no sul de
Minas Gerais. Na cidade natal, seus poemas começam a aparecer no jornalzinho O Colibri,
escrito a mão e criado em parceria com Maria Clara da Cunha Santos. Em 1890 ela
publica seu primeiro livro de poesias, Rumorejos, editado em conjunto com Pirilampos, de
autoria da amiga Maria Clara da Cunha Santos, e com prefácio de Adelina A. Lopes
Vieira. Nesse primeiro trabalho Presciliana fala de saudade, tema recorrente nas cartas
enviadas a seu primo e futuro marido, o poeta e filólogo Sílvio Tibiriçá de Almeida. Já
nesse período ela colabora com importantes periódicos da Corte, entre eles o Almanaque
Brazileiro Garnier, A Estação, Rua do Ouvidor e A Semana. Em 1892, casa-se com o primo que
fora inspiração para tantos poemas e muda-se de Pouso Alegre para São Paulo, e ali
colabora na revista O Lutador.
Vivendo em São Paulo, teve três filhos, causa ou efeito de sua extensa produção
literária infantil, gênero de que foi uma das pioneiras entre nós. Entre seus livros do
gênero estão Páginas infantis (1908) e O livro das aves (1914). Os afazeres domésticos não a
impediram de continuar suas colaborações na imprensa e dar seu vôo maior, o lançamento
de uma revista escrita por e dirigida a mulheres.
Assim, em 15 de outubro de 1897, começava a circular A Mensageira – Revista literária
dedicada á mulher brazileira, de orientação feminina, que teve importância no cenário
nacional tanto pela fama de suas colaboradoras, como por sua ampla distribuição e pelas
idéias que defendia (o acesso das moças à educação superior e o voto feminino, em favor
de uma maior participação da mulher na sociedade, sem que isso interferisse no seu papel
prioritário de mãe e esposa no lar; nas palavras da poetisa, “a igualdade pela diferença”).
Publicado quinzenalmente, o periódico contou com a colaboração dos maiores
escritores e sobretudo escritoras de sua época, como Júlia Lopes de Almeida, Zalina
Rolim, Júlia Cortines, Anália Franco, Josefina Álvares de Azevedo, Amélia de Oliveira e
outras. Não por acaso, em sua linha fina, com o “lema da revista”, A Mensageira se auto-
intitula “revista literária dedicada à mulher brasileira”. Era o mais comum, como ensina
Dulcília Buitoni:
Vários jornais e revistas eram publicações de associações literárias femininas. Assim, as
épocas iniciais da imprensa abriram para a mulher um campo que não lhe era próprio,
tanto na Europa e EUA, como no Brasil. Provavelmente não houve aqui, no século passa-
267
do, nenhuma folha ou revista feminina que não apresentasse parte literária. Quase todas
qualificavam-se de “folha literária” ou “revista de literatura” (BUITONI, 1990: 40).
Mas passemos à análise da revista. A Mensageira tem o formato de livro, com 22,5
cm de altura e 15,5 cm de largura da página (31 cm no formato aberto). Cada exemplar é
composto de 16 páginas e a publicação adota o sistema da numeração contínua, ou seja, a
primeira página do número 2 levará o número 17, etc. Paginada em duas colunas, com
apenas um fio na cabeça da página, a revista praticamente não usa imagens – apenas
minúsculas vinhetas, ora uma andorinha, uma rosa, ora um anjinho (cabeça e asa), um
pássaro pousado num ramo (1 centímetro de largura, realmente minúsculo). Essas
reduzidas vinhetas são alternadas com alguns arabescos. No entanto, a mancha da revista
não se revela pesada: é agradável de ler.
Como recurso gráfico, usa ainda diminuir dois pontos o corpo da letra quando
introduz algum poema. Muito raramente, a capa mostra uma imagem, como no número
23, de 15 de setembro de 1898, quando a revista conclui seu primeiro ano de existência:
vemos a figura de Maria Clara da Cunha Santos, a amiga dos tempos de mocidade da
editora em Pouso Alegre, com quem redigira o jornal manuscrito Colibri, e que nessa
altura, residindo no Rio de Janeiro (na Rua Conde de Bonfim, 12A, na Tijuca) era a
representante da revista para o público carioca.
Em seu primeiro exemplar, a revista é assertiva: “esta revista garante a sua
publicação durante um anno. Publica-se nos dias 15 e 30 de cada mez”. Entre fios simples
e fios duplos, único elemento visual a se destacar na capa, as informações: pagamento
adiantado, preço da assinatura 12$000 por ano, custando o número avulso 1$000 (o dobro
do preço do exemplar pela assinatura anual).
Depois do cabeçalho, com a página já dividida em duas colunas, à esquerda há um
Sumário, relacionando o conteúdo do número: 1) Duas palavras; 2) Entre amigas; 3) Do
“livro da saúde”, soneto; 4) Uma carta e brilhantes brutos; 5) Recuerdos, soneto; 6)
Cartão de parabéns; 7) O deserto, soneto; 8) Chronica omnimoda; 9) Contrate, soneto;
10) Selecção; 11) D. Alzira e meu filhinho, poesias; 12) notas pequenas.
O texto maior é o conto de fundo moral/didático “Brilhantes brutos”, que
analisaremos a seguir. Nos critérios de hoje, essa seria a “matéria de capa”. Segue, em
tamanho, o texto “Entre amigas”, assinado pela famosa escritora Júlia Lopes de Almeida,
um best-seller em sua época, e que funciona como uma segunda apresentação. O terceiro
texto, em tamanho, é o “Cartão de parabéns”, assinado por Sílvio de Almeida: o já
apresentado poeta e filólogo, marido da criadora de A Mensageira. Mas repassemos o
conteúdo das 12 matérias relacionadas no sumário.
“Duas Palavras” é o texto de apresentação da revista, assinado por Presciliana
Duarte de Almeida. Ocupa parte da primeira coluna e a segunda, da primeira página. E
conclui com mais duas colunas da página 2. A criadora fala da missão de sua criatura e do
que se propõe ao lançar esse periódico:
Estabelecer entre as brazileiras uma sympathia espiritual, pela comunhão das mesmas
ideias, levando-lhes de quinze em quinze dias, ao remansoso lar, algum pensamento
novo – sonho de poeta ou fructo de observação acurada, eis o fim que, modestamente,
nos propomos.
Será recebida com indifferença a Mensageira – portadora feliz da prosa amena e discreta
de Julia Lopes de Almeida e dos versos artísticos e sentidos das mais festejadas e conhe-
cidas poetisas brazileiras? Não o cremos! e é por isto que nos arrojamos a uma empreza
desta ordem.
Ha tempos o Correio Paulistano, publicando um bello soneto de Georgina Teixeira, dizia,
entre outros enthusiasticos conceitos, as seguintes palavras, que nos lisongearam sobre-
modo: “Decididamente a epocha é do renascimento das letras. De toda a parte surgem
novos livros de prosadores e poetas e percebe-se que a actividade intelectual segue reso-
lutamente nu’a marcha gloriosa em busca do ideal artistico. Das senhoras que trabalha-
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
268
vam na republica das letras tinhamos, até ha pouco, apenas Narciza Amália, que já se
recolheu ao silencio, Adelina Vieira e Julia Lopes. Agora, além dessas, temos Francisca
Julia da Silva, Zalina Rolim, Julia Cortines, Presciliana Duarte de Almeida, Josephina
Alvares de Azevedo e Georgina Teixeira, que surge agora no horizonte num esplendor
de luz auroral”.
Note-se como Presciliana faz referência à grande escritora da época, Julia Lopes de
Almeida, logo no segundo parágrafo, e como transcreve um longo trecho do jornal Correio
Paulistano, para também se dar o aval de ter sido nomeada entre as nascentes estrelas das
letras. A autora segue sua apresentação, na pág. 2:
Não é, porém, sómente na literatura que a sua aptidão se revela, e, para prova, basta
citarmos o nome da Doutora Ermelinda de Sá, essa pujante mentalidade que se affirmou
na Academia de Medicina do Rio de Janeiro, onde fez um curso brilhantissimo, merecen-
do treze distincções nos exames das series lectivas, de clinicas e de these e que hoje,
como judiciosamente notou Arthur Azevedo no Album, conta em cada cliente uma fervo-
rosa e convicta propagandista da sua perícia e dedicação profissionaes!
Linhas depois, ela conclui, abrindo o convite a novos talentos:
Que a nossa revista seja como que um centro para o qual convirja a intelligencia de todas
as brazileiras! Que as mais aptas, as de mérito incontestavel, nos prestem o concurso de
suas luzes e enriqueçam as nossas paginas com as suas produções admiraveis e bellas;
que as que começam manejar a penna, ensaiando o vôo altivo, procurem aqui um ponto
de apoio, sem o qual nenhum talento se manifesta; e que finalmente, todas as filhas desta
grande terra nos dispensem o seu auxilio e um pouco de bôa vontade e benevolencia.
O artigo seguinte, “Entre amigas”, abre a página 3 e concluirá na página 5,
ocupando sua primeira coluna: no total o texto ocupa 5 colunas da revista. É uma espécie
de ensaio assinado por Julia Lopes de Almeida, que ameaça o tempo todo discorrer sobre
o papel da mulher na educação dos filhos, a ambivalência da relação homem e mulher em
seu tempo e, sobretudo, o preconceito contra a instrução das filhas, mas retrocede:
É frequente ouvirmos dizer: que sempre é mais barato e mais fácil educar as meninas do que
os rapazes... O assumpto é tão melindroso, que eu o evito sempre, e se lhe toco hoje, é porque
a índole especialissima deste jornal a elle me chama com certa imposição e insistência.
Julia se exime dizendo, ao final, que “não sei qual é o programma da Mensageira,
escrevo de longe, para satisfazer ao desejo de uma amiga caríssima. [...] mas esta nova
revista, dedicada ás mulheres, será para as mulheres um apoio forte e um conselho
generoso e bom”... E assim ela se sai pela tangente.
A segunda coluna da página 5 é ocupada por um soneto de Zalina Rolim, “Do Livro
da Saudade” [fora grafado erradamente no sumário como “Livro da Saude”]. Ainda nesta coluna,
separada pela vinheta de uma andorinha, inicia o texto “Uma carta”, enviada do Rio por
Maria Clara da Cunha Santos, a moça que terá sua fotografia estampada na capa da revista
um ano depois. Nessa carta, Maria Clara, que a partir do segundo número se tornará
colunista fixa, assinando a “Carta do Rio”, comenta sobre outra publicação, Colibri, revista
bimensal manuscrita, feita em parceria com Presciliana nos tempos de Pouso Alegre.
A seguir, e estamos na segunda coluna da página 6, inicia a crônica “Brilhantes
brutos”, o texto mais longo dessa edição. Nele, a mesma Maria Clara da Cunha Santos
nos conta a história de um médico francês, Charles Rochefort, que foi residir e clinicar
numa cidade perdida nas profundezas de Minas Gerais. Ali se casa com a filha de um
fazendeiro local. A autora pergunta como “uma moça ignorante, grosseira e analphabeta,
sem encantos de espírito, poderia inspirar paixão a um homem fino, talentoso e de
aspirações, como o Dr. Charles?”. Na própria noite do casamento, ocorrido no sábado,
269
véspera de carnaval, a roceira dá mostras de sua falta de refinamento, caindo na dança do
cateretê, “muito semelhante ao batuque e que não prima absolutamente pela decência”,
escreve a redatora.
Até 4 da madrugada, seguiu o baile, com o noivo visivelmente contrariado. “O
noivo, sempre calado, era a nota dissonante e triste daquella festa tão alegre”. Recolhem-se
a seus aposentos mas logo às 9 da manhã de domingo estava a noiva outra vez a
sacarotear-se. “Ella parecia despreocupada inteiramente do marido e entrou a jogar
entrudo com desembaraço de louca. Molhada completamente [pelas águas de limão que se
jogavam uns aos outros, típico do carnaval de então], com as roupas grudadas ao corpo, deixando
apparecer as formas”. O tempo fecha quando os convivas tentam jogar água de cheiro no
noivo. Ele agarra a mulher e vai para a casa, distante do vilarejo. Nunca mais são vistos.
Tempos depois, circula a notícia: foram para a França.
Passam-se os anos, e a autora conhece no Rio uma senhora requintada e fina: “A
Madame era encantadora de graça, de belleza e de meiguice. Teria 36 annos, se tanto!”.
Viúva recente, Madame Rochefort voltara da França com seu filho, formoso mancebo de
18 anos, que cursava a Escola Polytechnica. “Correcta, polida, instruída”, era ela, a roceira
inculta, o diamante bruto a que se referia o título da crônica. Essa é a lição moral dessa
edição. Ir viver na França transforma qualquer roceira numa senhora fina.
A página 9 se completa com o soneto de Hippolyto da Silva, escrito em Campinas,
em 1880, e que se chama “Recuerdos”.
As páginas 10 e 11 trazem o “Cartão de parabéns”, assinado por Silvio de Almeida:
como se disse, o marido de Presciliana. Escreve ele, nos parágrafos 2 e 3:
Esta revista apparece aos olhos, talvez espantados da velha educação burgueza, como
um brado eloquente em favor da emancipação intellectual do eterno e doce feminino,
que aprendemos a extremecer no olhar de bençam de nossas mães, santificadas no culto
da mais nobre veneração pelos seus sacrificios, e acabamos finalmente por idealisar no
paraíso terrestre do sorriso de felicidade de nossas esposas amoraveis. [...] Oxalá veja-
mos aqui um testemunho valioso da exhuberancia mental das filhas de Eva, que a gros-
seria masculina tem querido até hoje reduzir á mera condição de corpos sem alma,
embora tenha sido sempre o seu coração incomparavel o secreto manancial de inspira-
ção dos mais nobres commetimentos do Homem.
Já no final, emenda:
Aberta aos talentos feminis, não tem esta revista por alvo uma ridicula ostentação literaria:
ella visa sobretudo o elevado fito da justa dignificação da mulher, o elemento central da
familia e da sociedade. [...] Por isso fazemos votos para que ventos favoraveis entufem as
velas gloriosas deste bergantim doirado, a revista Mensageira!
Outro soneto, “O deserto”, de Julia Cortines, completa o espaço da página 11.
A página 12 inicia com a “Chronica omnimoda”, que virá a ser uma seção fixa da
revista, assinada por J. Vieira de Almeida. Nesse primeiro número, o texto, um tanto
rebarbativo, fala das comemorações dos 400 anos da descoberta da América (a data
ocorrera 5 anos antes) e da travessia de Vasco da Gama. O soneto “Contraste”, de Áurea
Pires, preenche a página 13, completando a dupla.
As páginas 14 e 15 são compostas de textos curtos. Abre com “Seleção”, uma
pequena antologia de textos, entre outros um extrato de O Livro das Noivas, de Júlia Lopes
de Almeida. Vale ler os pensamentos de Gracia H. C. Mattos:
A sorte das mulheres depende muitas vezes da educação moral que se lhes dá, ou da
instrucção scientifica que adquirem. Os homens zombam da ignorancia das mulheres, sem
se lembrarem de que as educam como ás escravas, que só necessitam saber obedecer. Ha
muitos homens que perdoam com mais difficuldade ás mulheres o talento do que os vicios.
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
270
Na página 15 aparecem dois poemas “D. Alzira” e “Meu Filhinho”, assinados pela
própria Presciliana. E as notas pequenas, quatro reportagens sobre a Maternidade de S.
Paulo, “Canudos”, sobre a repercussão nacional da “victoria das forças legaes em Canudos”,
a que se junta a Mensageira, “de todo alheia ás lutas politicas”, mas feliz pelo desfecho: “Á
distincta e abnegada esposa do glorioso general Arthur Oscar enviamos os nossos effusivos
parabéns”. Outra nota sobre a Exposição de pintura da Escola Nacional de Bellas Artes, no
Rio, destacando a presença de pintoras como Alina Teixeira e Beatriz Miranda, além de
Clara da Cunha Santos, já referida. E, finalmente, uma nota sobre o “Diccionario em
projecto”, que estaria sendo produzido, em Paris, pela viscondessa de Cavalcanti. Uma
espécie de “who’s who” do Brasil de então. E assim se encerra o número.
Numa avaliação bondosa, pode-se dizer que os temas enfocados pela revista literária
A Mensageira eram os mesmos dos periódicos femininos publicados até então. Assim como
em outras revistas feitas por mulheres e para mulheres, as discussões de A Mensageira
giram em torno do papel da mulher na sociedade e a luta feminina pela emancipação.
Prega-se a valorização da mulher como pedra-base da família e respeito às vocações. Mas
no fundo a superioridade masculina ainda é aceita como o correto, até mesmo pelas
mulheres. Nesse sentido, Presciliana Duarte de Almeida não inovou, apenas reproduziu
fórmulas. E, como ocorreu com publicações anteriores, não escapou das contradições que
o contexto histórico-social impunha. Isso pode ser exemplificado com um trecho da já
mencionada coluna de J. Vieira de Almeida (a “Chrônica Omnimoda”), publicada na
abertura do nº 3, de 15 de novembro de 1897, quando se comemorava o oitavo
aniversário da República:
Nem a mulher que vota, nem a mulher que mata! Nem Luisa Michel, nem Carlota
Corday!... Parece-me que é mais luctuosa do que risonha a data que hoje se commemora.
Ainda se não conta um decennio da proclamação da República e dir-se-ia que um
seculo transcorreu já, tão cruciantes agonias constringem a alma nacional! [...] em
menos de dez anos de novo regimen, o coração das brazileiras patriotas se tem
compungido, ante as scenas da mais requintada barbaria! [...] Não quero aqui resvalar
para o terreno escorregadio e integrado da política... Detesto a mulher que vota, como
a mulher que mata... Meu ideal é Cornélia, mãe dos Grachos!... Abomino por igual a
Luiza Michel e a Carlota Corday!...
11
O texto é auto-explicativo. Num momento em que as mulheres começam a lutar por
sua libertação moral, uma revista feminina que defende seus direitos expõe uma crítica
retrógrada às idéias defendidas.
No entanto, coube a periódicos como A Mensageira modelar a figura da mulher
rainha do lar, emancipada, educadora, esportista, forte e moderna, quando o mundo era,
predominantemente, voltado ao masculino. São dessa época as primeiras notícias de
brasileiras fazendo cursos universitários e de certa abertura do mercado de trabalho para
as mulheres. Em 15 de Outubro de 1899, no início do terceiro ano da publicação, por
exemplo, foi publicado na revista um artigo intitulado “O feminismo”, que saudava a
abertura do mercado de trabalho à mulher nestes termos:
Abrir também ao belo sexo a função da advocacia constitui um simples corolário da
liberdade profissional, que a Constituição da República sabiamente consagrou. Não se-
ria congruente que as nossas patrícias pudessem, como podem, conquistar nas academi-
as um diploma scientifico e ficassem, ao mesmo tempo, privadas da eficácia desse diplo-
ma, tão duramente conquistado. Com que fundamentos vedariam à mulher o campo da
actividade honesta, se a nossa pessima organização social não a pode muitas vezes salvar
dos horrores da miséria ou das especulações do vicio?
Em seu segundo número, publicado em 30 de outubro de 1897, a jornalista Maria
Emília escreve o texto de abertura, “Falso encanto”.
271
Capítulo 7
1879-1900
Sempre que se fala em modificar a educação da mulher ou ampliar os seus meios de
acção, apparece alguem que faça a apologia da mulher como rainha que deve ser...
pela fraqueza! Que o encanto da mulher está justamente na sua ignorancia, na sua
timidez, na sua infantilidade! Pensem assim ou não, entretanto, queiram ou não
queiram, a mulher instruida, forte, capaz de velar á cabeceira de um filho enfermo,
auxiliando as prescrustações da sciencia; ou de repellir com energia as chalaças de
qualquer imbecil, será a mulher do futuro, será a verdadeira companheira do ho-
mem, que sabe participar de seus pensamentos e ajudal-o em todas as resoluções
difficeis. A posição negligente de tutelada deixará de existir quando a mulher
comprehender que sobre seus hombros pesam também as responsabilidades sociaes.
Sobre a polêmica de não ser uma revista escrita apenas por mulheres, o marido da
editora, Silvio de Almeida, escreveu, também no terceiro número:
Arthur Azevedo, em sua Palestra de 21, aconselha a directora da Mensageira a supprimir
a collaboração de homens, para que esta revista adquira uma nota mais original e
sympathica. Sentimos discordar completamente, neste ponto, do notável homem de le-
tras que tão assignaladamente abrilhanta as columnas do Paiz.
Em primeiro lugar, já não seria uma originalidade, mesmo aqui no Brazil, uma publicação
periodica exclusivamente feita por mulheres; e, por outro lado, parece nos que em nada
se apouca a sympathia desta revista por admittir em suas columnas algumas pennas
masculinas.
Os melhores salões estão sempre abertos aos dois sexos, e a absoluta exclusão dos marmanjos
só se poderia exigir em um convento de freiras. Si o próprio Paiz, que é um jornal militan-
te e forte, nunca se negou ás escriptoras, por que razão havia de excluir aos homens a
Mensageira, que deve ser toda gentil?
A Mensageira durou apenas três anos, fechando em 1900. Mas deixou lastro,
sobretudo na consolidação do leitorado feminino. Presciliana Duarte de Almeida seguiu
com suas colaborações na imprensa (em alguns periódicos, assinava com o pseudônimo de
Perpétua Vale), e participou da fundação da Academia Paulista de Letras, a 5 de Outubro
de 1909, ocupando a cadeira de número 8. Em 1939, com 75 anos de idade, publicou seu
último livro, Vetiver, cujos versos são indicados como “de vários tempos”. Talvez seja uma
mostra de que a autora, mesmo tendo vivido A Semana de Arte Moderna de 1922, não
conseguira aderir aos novos tempos. Presciliana Duarte de Almeida faleceu em Campinas,
dia 13 de Junho de 1944.
Reprodução da edição fac-similar da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
A capa do nº 1 e a do nº 23 — era raro imagem na revista.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
272
Teve tempo, portanto, de além da Semana de Arte Moderna de 22, acompanhar
outras tantas mudanças por que passou a imprensa nas primeiras décadas do século da
velocidade. Viu um Brasil que se modernizava, passando pelos tempos de
instabilidade e turbulências da transição para o regime republicano, que trouxe a
militarização da política, a desorganização da economia e a dura repressão aos
oposicionistas.
As revistas, que haviam entrado em um compasso de espera logo após a
proclamação da Republica, ganhavam novo alento e seriam o reflexo de uma era de
progresso, incorporando novas tecnologias, como linotipia, a clicheria, a rotativa e a
impressão a cores. E ganhavam uma diagramação bem cuidada, o impacto da fotografia e
do fotojornalismo e o toque de novos caricaturistas talentosos.
O texto também passará por um processo de modernização, buscando a informação
e deixando de lado o enfeite e a firula. Com o cinema, o automóvel, as fábricas, logo
depois os aviões, o mundo rural do século XIX dará lugar ao urbanizado século XX.
7.7. A volta de Agostini: o Don Quixote
Esse periódico marca a volta de Angelo Agostini à imprensa ilustrada carioca desde
sua saída, um tanto abrupta, logo após o término da campanha pela abolição da
escravatura, em 1888. Angelo foi (muito bem) substituído na Revista Illustrada, como já se
disse, pelo seu seguidor Pereira Netto, a ponto, segundo Herman Lima, de muitos dos
desenhos e charges atribuídos a Agostini terem sido produzidos pelo discípulo.
O Don Quixote (1895-1903) marca o auge artístico de Agostini, após essa estada (de
que pouco se sabe) de seis anos na França. Esses serão, no entender do historiador
Gilberto Maringoni, “os anos de sua decadência profissional e o período mais complexo
de sua carreira”. Com a palavra o melhor biógrafo do ilustrador:
À sua volta, mudou o regime, mudou a sociedade, mudou a imprensa e mudou o pró-
prio ofício de ilustrador. O tipo de jornal que faz torna-se anacrônico em relação às
publicações que surgem e valem-se de novas tecnologias, que melhoram a qualidade
gráfica, aumentam tiragens e baixam o preço unitário para o leitor. Mas, acima de tudo,
fazer jornal passa a exigir vultosos investimentos, próprios de uma grande empresa capi-
talista [...] Distante das mudanças políticas, econômicas e técnicas que ocorrem no Brasil,
após seis anos de ausência, Angelo Agostini desembarca num lugar diferente da Corte
imperial que deixara. No período compreendido entre 1870 e 1890, a população da
cidade mais que dobrara, passando de 235.381 para 522.651 habitantes
.
A emergência
do trabalho livre começa a delinear novas relações entre as classes sociais e a ampliar o
incipiente mercado interno (MARINGONI, 2006: 33 e 215).
O Quixote, célebre personagem de Cervantes, já inspirara o título de diversas
publicações em Cuba, Espanha e Argentina (todas chamadas de El Quijote o Don Quijote),
fato de que se serviu Agostini pela figura de luta idealista ou de defensor de causas
impossíveis que o personagem inspira. Embora Agostini explicitamente cite que a figura
do “fidalgo de la Mancha” que desenha seja inspirado na composição de Gustave Doré, há
no leitor uma identificação com a figura do próprio Agostini.
Angelo Agostini aproveita e cria um fato novo para o lançamento dessa publicação:
na onda de consternação popular causada pela tragédia do incêndio, no dia 6 de janeiro de
1895, na Baía da Guanabara, de uma das barcas que transportavam passageiros entre a
capital e Niterói, ele produz um suplemento com um desenho panorâmico do desastre.
Essa espécie de revista-pôster, vendida de forma avulsa, era também o brinde para os
novos assinantes que aderissem ao periódico que ele lançaria duas semanas depois.
273
Na primeira edição da nova revista, uma nota na página 2, avisa: “Ainda não se
extinguiu a dolorosa impressão causada no público pela terrível desgraça do incêndio da
barca Terceira. [...]. Já nos ocupamos deste triste assunto em uma estampa especial, que
distribuímos aos nossos assinantes e teve uma procura extraordinária, obrigando-nos a
fazer quatro edições de quatro mil exemplares cada uma”. Um número notável para os
padrões da época!
Esse número 1 traz na capa o Quixote e Sancho Pança montados em seus cavalos.
Ao fundo, o esboço de dois moinhos. O Quixote carrega um estandarte onde se lê: Don
Quixote, jornal illustrado de Angelo Agostini. Na outra borda: Rua do Ouvidor, 109,
sobrado. Acima do requadro: Anno 1. Rio de Janeiro. Nº 1. No rodapé, manuscrito:
“Saude e Fraternidade”.
Assim, seco, sem o preço de assinatura, sem preço de exemplar avulso, da
assinatura semestral ou anual. Uma capa limpa, concisa. A capa do número 2 surpreende
com o retrato de Felix Fauré, presidente da República francesa. No número 3, Grove
Cleveland, presidente americano. No número 4, uma cena de multidão e uma estátua que
se move no pedestal, traz a legenda: “No grande meeting do Largo de S. Francisco, em
honra ao barão do Rio Branco, o enthusiasmo do publico foi tal que até o próprio bronze
se commoveu. O patriarcha J. Bonifácio quasi chegou a deitar discurso”.
Na capa do número 5, Quixote e Sancho se afundam nas águas de uma enchente,
enredados em confetes e serpentinas. A legenda explica: “Felizmente este anno só há
prisões de serpentinas e tiroteio de confetis”.
Enquanto isso, lá em cima, no espaço do logotipo, desde o número 2 o Sancho
Pança ia retocando a pintura da palavra “Don Quixote”, caprichava, se afastava para
conferir. Agora, no número 5, um burrico se aproxima, enquanto Sancho e Quixote
parlamentam ao fundo.
Está iniciada uma das séries talvez únicas de história das artes gráficas em que uma
revista brinca e cria uma narrativa com o próprio logotipo. O burro se esfrega e borra a
tinta com que fora pintado o logotipo do periódico (o cabeçalho do número 6); o animal,
fustigado por um irado Sancho Pança, sai em fuga
(número 7); o Quixote dá uma bronca, Sancho se
ajoelha (número 8); Sancho traz o burro pelas orelhas
(9); um cavalo aparece atrás da placa do lotogipo (10);
o burro e o cavalo dão coices e Sancho cai (11); a
placa do logotipo se espatifa (12); Sancho põe a mão
na cabeça ao constatar o estrago (13); um panô
provisório é colocado no local da placa do logotipo
(14); Sancho com esforço carrega nova placa (15);
novamente Sancho retoma a pintura da placa, como
no número 2 (16); num gesto descuidado cai o latão
de tinta sobre a figura do Quixote, que agora ocupa o
centro da imagem da capa (17); o Quixote sobe até o
logotipo (18); Sancho e o Quixote ficam num jogo de
gato e rato em torno da placa do logotipo (19 a 23);
finalmente são atacados por quatro índios que
destroçam a placa do logotipo (24). Está terminada
uma das mais belas séries de brincadeira com o
próprio logotipo que a imaginação de um revisteiro
poderia haver inventado.
25 de janeiro de 1895:
Agostini está de volta,
encarnando um combativo Quixote.
Capítulo 7
1879-1900
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
274
Vamos nos deter na análise de dois números. O número 17, de 18 de maio de 1895
(o que tem na capa o latão de tinta despencando sobre a cabeça do Don Quixote) e o
número 45, quando Agostini recomeça uma nova epopéia com o logotipo.
A edição 17, como já se descreveu, traz na capa apenas Sancho esbarrando na lata de
tinta, que cai sobre a cabeça do Quixote, que sentado lia. Abaixo, quatro exclamações. A
página 2 (Agostini nunca adotou a numeração seqüencial) traz o “Expediente”, com preços
de assinaturas (20$000 anual; 12$000 semestral para a capital; 24 e 14 para os Estados).
Não declara preço do exemplar avulso. A seguir, repete-se o título da revista e é anunciada
a data: 18 de maio de 1895. Agostini segue o velho padrão das duas páginas de texto,
duas de ilustração, outras duas de texto, capa e contracapa com imagens, de que já
falamos repetidas vezes neste trabalho.
“Tópicos”, “Uma decepção”, “13 de maio”, “Tagarellices”, “Calculo” e
“Bibliographia” são os seis títulos da dupla de texto das páginas 2 e 3. “Tópicos” trata em
duas colunas da pacificação do Rio Grande do Sul, depois da revolução federalista ou
revolta da degola. Menciona Julio de Castilhos e a demora de uma decisão por parte de
Prudente de Morais, defendendo a primazia da Constituição da República sobre a carta
estadual. “Uma decepção” (ocupa a terceira coluna da página 2) reproduz editorial da
Gazeta de Mogy-Mirim criticando a mensagem do presidente Prudente de Morais sobre a
questão da pacificação do Rio Grande do Sul. Diz que a mensagem presidencial define uma
situação e retrata um indivíduo: “Alli está a horripilante photographia de um caracter frouxo,
ou quem sabe se é a representação exacta do triste estado de desmoronamento das nossas
instituições, das finanças e da administração”. O texto do periódico interiorano é forte, a ponto
de o redator do Don Quixote contemporizar: “Custa-nos crer que este retrato do Sr. Prudente de
Moraes seja realmente fiel [...] Consideremol-o como um clichê photographico por demais em
foco, apresentando rugas e uma certa dureza que desejamos attenuar”.
A nota “13 de maio” abre a página 3: comenta o fato de, cabotinamente, o ex-
prefeito Barata Ribeiro ter colocado no Paço Municipal uma lápide comemorando a data
da abolição da escravatura encimada com os nomes de Floriano Peixoto e do próprio
alcaide – e não, como corresponderia, com os nomes de Patrocínio, Nabuco, Luís Gama e
da Princesa Isabel. Conclui “A data de 13 de maio não precisa de lápides despertadoras de
memória porque está gravada no coração não só de todos os brasileiros como de toda a
Humanidade”.
“Tagarellices” trata novamente do tema da pacificação do Rio Grande do Sul:
“Parece caçoada, mas não é: e a prova de que a guerra continua lá no Sul, e ha de
continuar porque assim o querem muitos dos mesmos que dizem querer sinceramente a
pacificação”. Novamente, a falta de espírito negociador de Júlio de Castilhos, a leniência de
Prudente de Morais e do General Glicério são assunto.
“Calculo” é um soneto – e como todo soneto traz duas quadras e duas terças.
“Bibliographia” é a resenha do livro de contos Mares e Campos, de um autor jovem,
Virgilio Várzea. O resenhista (J.R.) elogia o novato e prognostica futuros livros melhores
do que este, onde nota que “Uns laivos da escola nephelibata a derramarem aqui e ali
escusadas exhuberancias de phrases e de idéas adjectivadas, empallidecem ás vezes o
brilho da idea principal do periodo, tirando-lhe, não raro, a expressão e a
expontaneidade”.
A dupla central é ocupada pelos desenhos. Não há um título que amarre as sete
cenas mostradas, mas ano fundo o Quixote e Sancho Pança assistem, como à espreita de
uma janela. Prudente de Morais entra antes da mensagem e, depois, é um reduzido anão e
vira uma formiga após encontrar o chefe de seu partido, o general Glicério. A Guerra e a
Paz confabulam com Prudente de Morais, secundado por Glicério. A dupla central não
tem a força e o impacto do velho e bom Agostini...
A segunda dupla de textos, das páginas 6 e 7, é ocupada pelas notas “Bellas-Artes”,
“Chinoiseries”, “Ferroadas”, “Lettras e Arte”, “Theatro” e “A nossa mesa”.
275
Capítulo 7
1879-1900
Jogo completo com
8 páginas do nº 17,
de 18 de maio de 1895:
Agostini ainda se lembra
da “Redentora” e
rende homenagem à
princesa da Lei Áurea.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
276
“Bellas-Artes” – a nota destaca uma exposição de Julião Machado, “um portuguez
nascido na Africa e que completou em Pariz a sua educação artistica”. O texto inicia-se
destacando o marasmo e a falta de talentos que impera no Rio, para recomendar vivamente
o trabalho desse artista que “veio revolucionar o jornal illustrado do antigo molde entre nós
e nos está deliciando com seus desenhos correctos, finos e conceituosos, de uma feição
artistica puramente parisiense”. Agostini, ao que parece, estava seduzido pelo jovem
ilustrador português, que, segundo Herman Lima, foi para a caricatura brasileira do começo
do século XX o mesmo que tinha sido o italiano para a caricatura de seu tempo.
“Chinoiseries” – volta ao tema da pacificação do Rio Grande do Sul e ataca a fúria
legislativa dos representantes do povo em fabricar leis que nada resolverão: afinal, o
Parlamento abriu, escreve Lu-No, que assina a nota.
“Ferroadas” – O redator, que assina “Pernilongo”, focaliza o aniversário não
festejado do 13 de maio e a abolição da escravatura, recriminando o esquecimento de
alguns nomes de homens que lutaram pela libertação de um povo. Menciona entre os
esquecidos Angelo Agostini. A seguir, elogia o destempero verbal do deputado Erico
Coelho, que entre outras sandices propôs uma guerra contra o Uruguai como forma de
pacificar o Rio Grande do Sul.
“Lettras e Arte” – Nesse espaço destinado a comentar os periódicos recebidos pela
redação, V.Vieira escreve um rasgado elogio ao segundo número da revista A Cigarra:
“Mais um primor de desenho e fino espirito dessa robusta individualidade artistica que se
chama Julião Machado – um grande observador e um profundo physiologista”. Destaca a
página “13 de Maio” como “uma concepção sublime” e o texto: “Ora, o texto é do Bilac e
do Coelho Netto e não preciso dizer mais nada para significar-lhe a excellencia”. A seção
menciona ainda as revistas Mecenas, de Porto Alegre, e O Cenaculo, de Curitiba, enviadas
para a redação e que recebem elogios moderados.
“Theatro” – o redator, que assina Sansão Carrasco, em duas colunas, mapeia a
oferta teatral da cidade, destinando farpas às produções ligeiras, repetitivas, de pouca
profundidade, quando as poucas tragédias em cartaz lotam as casas – sinal de que teatro
sério também é do gosto do público. O Recreio leva Tim-tim por tim-tim, comparado a
um realejo que todo dia, à mesma hora, tocasse a mesma polca – um suplício, mas tem
quem goste. O Apollo traz O Major, revista de Artur de Azevedo, sucesso de público por
sua boa crítica, boa pilhéria, o riso decente – nada a ver com a “laracha” grosseira ou o
“tregeito pornographico”. O Sant’Anna traz Loteria do Diabo, texto apelativo apresentado
por Heller, ator que já teve momentos melhores. O Lucinda prepara uma revista que
correu palcos de Pindamonhangaba e Guaratinguetá: a conferir. Ou “Vedremo e duopo
parleremo”, como escreve Sansão.
A excelente atriz Ismenia apresenta a tragédia A Martyr, no Variedades: é
motivo para o cronista fazer seu discurso em favor de um teatro sério. O S. Pedro
Alcântara traz Il Trovatore e Ainda, pela companhia lírica de Carlo Mattia. A seção
finaliza com a notícia de que o prefeito Julio do Carmo sancionou o decreto do
Conselho da Intendência que cria o Theatro Municipal – e ao prefeito o cronista envia
um entusiasmado aperto de mão.
A nossa mesa” – D. Mesario é a assinatura do redator que registra as publicações
enviadas para a redação. A Estação, Revista Pharmaceutica Paulista, Revista da Commissão Technica
Militar, Petit Sport, estão entre as publicações resenhadas – com destaque para os moldes e o
suplemento literário de A Estação (“Tanto e tão bom que isto só o Lombaerts é capaz de
dar”). Chinita-Curu é uma partitura – habanera, motivo cubano de N. Figuera Hijo –
enviado pela Casa Vieira Machado. D. Mesario agradece a todos.
A revista fecha com um desenho em que Deus mostra um livro: do lado direito, a
imagem da Princesa Isabel; do lado esquerdo: “Lei 3353 de 13 de maio de 1888. É declarada
extinta a escravidão no Brasil. Isabel, Princeza Imperial Regente”. Uma afrodescendente acena
e joga flores. Quixote faz reverência e aponta o espadim, levantando com a esquerda o chapéu.
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Capítulo 7
1879-1900
Sancho, no chão, com um pau, ataca uma serpente. A serpente parece querer atacar a
República. Título da página: “O tempo passa, mas as datas gloriosas ficam”. Embaixo,
legenda: “Salve! Augusta e benemérita princesa! Libertaste uma raça; hoje trata-se de libertar a
Patria ameaçada por um terrível monstro que pretende devoral-a”.
Sobre o incidente diplomático que o Brasil teve com a Inglaterra pela posse da Ilha
da Trindade, que deixou os dois países eriçados, Agostini publica um minucioso
retrospecto dos fatos relativos à pretendida ocupação pelos ingleses na edição de 27 de
julho de 1895. Noticiando a reação popular no Rio, onde os estudantes da Escola
Politécnica à frente, levantaram a multidão a exigir do governo pronta e enérgica solução
para a disputa. A revista traz, na sua crônica de abertura, sob o título de “Palestra de dois
cidadãos”, o diálogo entre dois patriotas a propósito dos acontecimentos. A conclusão de
Agostini, na boca dos personagens, é de que se o presidente, Prudente de Morais, tinha se
mostrado fraco “em temas da política interna, temos ao menos a satisfação de ver que,
acerca da externa, temos homem! Ainda bem”.
Na capa do número, aparece o Quixote junto ao Rocinante, paramentado para a
guerra, com Sancho de garruchas e fuzil, espada e punhais. Quixote comenta a notícia que
lê no jornal que leva a mão e diz: “Meu Sancho, nos aprontamos para a guerra. As últimas
notícias dizem estar a Inglaterra disposta a tratar a questão amigavelmente”. Ao que
Sancho responde: “Eu logo vi, é porque ela soube que o patrão e eu estávamos resolvidos
a dar-lhe uma lição”...
Na última página, ao estilo do Agostini, quatro quadrinhos com cenas cômicas
resumem a crise. Numa delas, no restaurante, ao ser atendido com um bife com fritas, o
cliente grita com o garçom: “O que? Beef com batatas?! Sou por demais antibritânico para
comer beef!”
Para concluir, um rápido comentário sobre a edição nº 45, de 4 de janeiro de 1896
(por um erro tipográfico, a data saiu como 1895). A capa retoma outra série de
brincadeiras com o logotipo do periódico: Sancho e Quixote, grua a postos, tentam
levantar um caixão que conteria uma nova tentativa de logomarca. Na legenda: “Muito
custa ganhar a vida honradamente”.
A página 2 abre com um comentário sobre 1896 – novamente será ano bissexto,
uma das alegrias para Agostini. O editorial “1896” fala sobre a pacificação do Rio Grande
do Sul, da ação do general Galvão – a quem a revista beija a mão – e do equilíbrio e bom
senso de Prudente de Morais, o primeiro presidente civil. Insinua que a morte de Floriano
Peixoto ajudou na pacificação – o nome do primeiro tiranete militar excitava os revoltosos
gaúchos. A nota a seguir, “Agradecimento”, acusa o envio, por parte do presidente da
República, de um cartão de boas festas para a redação de Don Quixote. “Desvanecidos,
agradecemos ao nobre cidadão”.
Há um viés de crítica amarga quanto à realidade da política brasileira (embora
seja notável a mudança de postura com relação à figura do presidente). A dupla central,
“O Ano de 1896”, traz o Quixote ciceroneando o novo ano que chega, um garotinho em
trajes de marinheiro janotinha: um montão de pernas para o ar, são os deputados que
trocam os pés pelas mãos; o busto da República é uma cabeça muito bonita, mas, como
diz La Fontaine, não tem cérebro dentro (“Belle tête, mis de cervelle point”).
Apresentado ao presidente, o menino 1896 pede para ser apresentados aos ministros,
mas o presidente responde: “ha de ser difficil, cada qual anda pelo seu lado”... (Para
quem acompanhou os quadrinhos de Agostini, fica a sensação de falta de sal, de pique,
de garra, realmente).
A dupla de texto final faz alguma piada com palha, palhares, paliativo. Don Quixote
por três vezes se afirma como “a primeira folha ilustrada do mundo”, “primeiro jornal
caricato da América do Sul”, “a fantasia de Don Quixote não tem limite”...
Na última linha da página 7 (última de texto, portanto), a seção “Nossa Estante” registra a
chegada de “A Cigarra ns. 33, 34 e 35: interessante como sempre”. Sinal dos tempos...
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
278
Angelo Agostini cria o contraponto entre o Quixote de Cervantes em meio a moinhos, princesas e dragões
e o nosso, entre guerra, assaltos e censura à imprensa.
“Victimas do dever”: Angelo Agostini se dobra ao discurso oficial sobre Canudos
e usa a linguagem de “fanáticos” e “tropas legais”.
279
A última página da revista dá continuidade às cenas da chegada do ano novo, da
página central: o menino 1896 cai na rua, devido aos problemas de calçamento da cidade,
é levado a um pronto-socorro onde se paga uma fortuna pelo curativo, e o boticário
mostra as tarifas da alfândega. Pegam um tílburi, o preço é 120 reis. A vida está cara, os
novos tempos serão cabeludos.
Leiamos, por uma última vez, um comentário do biógrafo de Agostini:
Dentro de seus cânones estéticos, Agostini evoluíra muito. Não é apenas o desenho da
figura humana, de animais, de paisagens e cenários que está mais apurado em relação
a suas ilustrações de sete anos antes. São os detalhes, as brincadeiras [...] que acabam
por fazer desta a mais interessante experiência formal do artista. A publicação já não
tem nem sombra da influência política de sua antecessora e agora concorrente, a Revis-
ta Illustrada, e seu editor freqüentemente dá a impressão de ser um personagem deslo-
cado do mundo a sua volta. Por duas vezes, ao longo dos 163 números do jornal,
Agostini queixa-se da falta de assunto para preencher suas páginas, algo impensável no
tempo da campanha abolicionista, por exemplo. Um exemplo: número 54, de 7 de
março de 1896. Ali, a página central exibe Sancho se abanando, enquanto reclama: “O
calor é muito, os assuntos poucos”. [...] Possivelmente assuntos não faltassem ao lápis
do desenhista. É sua percepção do mundo que mudou e é seu não engajamento direto
em alguma causa épica que talvez gerassem a sensação de tédio externada por Sancho
(MARINGONI, 2006: 218-219).
Capítulo 7
1879-1900
Uma série talvez única na história das artes gráficas:
Agostini brinca e cria uma narrativa com o logotipo da revista.
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
280
7.8. Rua do Ouvidor e a Revista da Semana: o século chega ao fim
Os últimos anos do século XIX verão a chegada de algumas revistas novas. A mais
prestigiadas delas foi a que tomou para título o nome da rua mais chique e elegante do
Rio de Janeiro, a do Ouvidor, com seu comércio refinado, cafés e confeitarias, ponto de
encontro de intelectuais, políticos, artistas e personalidades da sociedade carioca. Editada
pelo tipógrafo F.J. Serpa Junior e impressa na Typographia Casa Mont’Alverne, A Rua do
Ouvidor era semanal, durou uma década e meia, circulando de 14 de maio de 1898 até 30
de março de 1912, com um total de 712 números – tirados ao longo do tempo em
diferentes casas impressoras.
A outra, a Revista da Semana, lançada por Álvaro Teffé, chegará até a segunda
metade do século XX, circulando de 20 de maio de 1900 até 1959. Seu primeiro redator
será Fernando Mendes de Almeida, tendo entre seus ilustradores Raul, Bambino, Amaro
do Amaral e Luis Peixoto. Mas não será a ilustração o seu forte: é com ela que a fotografia
ingressa definitivamente na imprensa. Conta-se que Teffé fora a Paris buscar
equipamentos e fotogravadores para sua revista. À última hora, os dois técnicos
contratados, temerosos dos perigos das epidemias de febre amarela que assolavam o Rio,
recusaram-se a embarcar. Não lhe restou alternativa senão fazer, ele mesmo, um rápido
aprendizado numa oficina parisiense para ensinar os segredos da nova técnica aos
zincógrafos que trabalhavam nas oficinas do Jornal do Brasil.
O primeiro número da Revista da Semana estampava na capa uma foto do monumento
a Pedro Álvares Cabral, no Largo da Glória, no Rio, inaugurado como parte das
comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil. Nas páginas internas, a
revista mostrava flagrantes dos festejos e até mesmo uma “fotografia profética do que será
Rio de Janeiro no Quinto Centenário”. O fotojornalismo ensaiava seus primeiros passos no
Brasil. E o primeiro número da revista se esgotou em tempo recorde, sendo reimpresso
sucessivas vezes devido à grande procura do público (EMPORIUM BRASILIS, I-113).
Pioneira entre os periódicos de grande tiragem desses primeiros anos do século XX,
a Revista da Semana trazia a súmula dos acontecimentos, além de seções de crítica literária,
crônicas, poesias e até contos para crianças. Dava destaque aos crimes reconstituídos em
estúdio fotográfico. Na sua sexta edição, por exemplo, o escritor Medeiros e Albuquerque,
A rua chique e elegante da Capital Federal vira nome de revista:
à esquerda, capa do nº 1 de Rua do Ouvidor e, à direita, capa de A Revista da Semana.
281
Capítulo 7
1879-1900
Notas do Capítulo 7
1 Essa informação derruba a afirmação recorrente de que a
revista Seleções do Reader’s Digest teria sido a pioneira na
internacionalização de uma marca de publicação. Criada em
1922 por DeWitt Wallace e sua mulher Lila Acheson Wallace,
Seleções logo teve sucursais na Europa traduzindo seus tex-
tos curtos e resenhando temas com abordagem “construti-
va” e acrítica. A edição em espanhol, para a América Latina,
era feita em Cuba desde 1940. Em 1942, foi lançada a ver-
são brasileira, editada por Afrânio Coutinho em Nova York. A
seguir, a edição brasileira se transferia para Cuba, vindo para
o Brasil apenas em 1951. Hoje, após os revezes dos anos 70
e 80, quando chegou a ser editada em Portugal, Seleções
está entre as cinco revistas de maior circulação do país. Com
48 edições “nacionais” em 19 línguas diferentes, Seleções
seguiu um caminho aberto pela Saison francesa.
2 De algum modo, Machado de Assis usou a técnica de escre-
ver seus contos para a imprensa como trampolim para sua
posterior publicação. Talvez a pressão do prazo fosse um
atrativo. O certo é que Contos Fluminenses (1870), a primei-
ra das muitas antologias de contos que ele organizará, trazia
entre os textos seis contos publicados anteriormente na re-
vista Jornal das Famílias, criada em 1862 por seu editor,
Baptiste Louis Garnier. A segunda antologia, Histórias da Meia-
Noite (1873), será composta apenas por contos publicados
nessa mesma revista. A partir de 1882, com Papéis Avulsos
(e as coletâneas seguintes: Histórias sem Data, de 1884;
Várias Histórias, de 1886; e Papéis Recolhidos), serão com-
postos por contos publicados por ele em A Estação, Jornal
das Famílias e no jornal Gazeta de Notícias.
3 Apontado pelo crítico Ruben Gill como o primeiro grande ca-
ricaturista natural do país, Herman Lima (1963: 3-903) pon-
tua que este é um comentário que não faz justiça a outro
grande nome – Candido Aragonez de Faria, que quase quinze
anos antes já havia deixado a marca de sua arte – antes de
trasladar-se para Porto Alegre, dali para a Argentina e final-
mente para a França – onde se estabeleceu e foi um dos
criadores dos primeiros cartazes do nascente cinema.
4 Segundo o pesquisador Gilberto Maringoni (1996: 49), as
referências sobre Vergara são vagas e lacônicas. Gonzaga
Duque (in A arte brasileira, Mercado de Letras, Campinas,
1995, pág. 230) o classifica como “homem trabalhador e
modesto, porém artista de pouco mérito”. Sabe-se que ele
colaborou com O Polichinello (1876), de Luiz Gama, em São
Paulo. Herman Lima (in História da caricatura no Brasil, José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1963, v. 3, págs. 949-952)
relata seu trabalho no Mosquito (1870), na Vida Fluminense
(1871), n´A Lanterna (1878) e no Binóculo (1881), além de
ressaltar suas qualidades como cenógrafo. Vergara havia
antes, em São Paulo, colaborado com Agostini no Cabrião
(abril de 1867).
5 É curioso notar que mesmo um pintor, como o paulista Al-
meida Júnior, que retratou em muitas telas cenas em que a
mulher sentada lê um livro (como A Leitura, de 1892, na mostra
permanente da Pinacoteca do Estado de São Paulo), em um
de seus quadros mais famosos, A Família de Antônio Augus-
to Pinto (de 1891, também no acervo da Pinacoteca), retrata
o pai de família lendo um jornal e um dos cinco filhos folhe-
ando um livro. A esposa se entretém com a costura, no que é
observada por uma das filhas.
6 Um dos lemas americanos (o outro é “Confiamos em Deus”),
a citação “Ex-pluribus unum” (ou e-pluribus unum), de mui-
tos um, aplicada à união das 13 colônias do leste americano,
é retirada das Confissões de Santo Agostinho.
7 Julião Félix Machado nasceu no dia 19 de junho de 1863 em
São Paulo de Luanda, capital da Angola. Seu pai era um aço-
riano que, na África, se tornou um negociante poderoso e
mandou o filho estudar em Coimbra. Julião gostou mais das
farras da cidade universitária que dos bancos escolares – o
que levou o severo pai, Antônio Felix, a trazê-lo de volta e
obrigá-lo à rotina do comércio. No banco onde se empregou,
seus desenhos provocaram escândalo, sendo o pai forçado
a permitir a ida do filho a Lisboa, onde participou do círculo
artístico e literário freqüentado por Rafael Bordallo Pinheiro,
Columbano Pinheiro (irmão de Bordallo), Antonio Ramalho.
A morte do pai proporcionou a Julião uma bela herança e ele
a investiu no lançamento da luxuosa revista Comédia Portu-
guesa – fina demais para os padrões portugueses da época,
1889. Falida a revista, Julião declina o convite feito por Bordallo
Pinheiro para participar do periódico Pingos nos ii – e vai
estudar em Paris. De lá, ilustra o livro de contos O País das
Uvas, de Fialho d’Almeida, brinde de final de ano de 1893
para os assinantes da Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro.
Gasta toda a herança, compra uma passagem para Buenos
Aires em fins de 1894. Na escala do navio no Rio de Janeiro,
desce para visitar a cidade e é descoberto por um amigo – e
a viagem termina ali. No Rio, passa a colaborar com o jornal
Gazeta de Noticias – Eça de Queirós e Ramalho eram
colunistas fixos do periódico. Como Olavo Bilac e Guimarães
Passos. Foi com Bilac que ele fez parceria em revistas que
renovariam e revigorariam o fazer revisteiro na virada do sé-
culo. “A Julião Machado deve-se o progresso gráfico nas re-
vistas ilustradas: foi ele quem introduziu entre nós a maneira
européia e iniciou a grande reforma”, segundo depoimento
de Raul Pederneiras (LIMA, 1963: 3-963).
8 Provavelmente uma citação do poeta Jean-Antoine Baïf, que
poderia dizer “É inverno, dance, não faça nada, aprenda com
os animais, meu amigo” – embora a grafia francesa pareça
bastante machucada na citação.
9 Citação da fábula clássica de La Fontaine, A Cigarra e a For-
miga: a tradução seria, “Noite e dia, eu cantava no meu pos-
to, Sem querer dar-lhe desgosto”.
10 O estilo e o tom lembram muito, por exemplo, “Fotojornalis-
mo”, crônica reunida por Antonio Dimas no livro Vossa In-
solência , seleção de crônicas de Olavo Bilac. São Paulo:
Cia das Letras, 1996, pág 165.
11 Louise Michel é uma figura emblemática do anarquismo fran-
cês: poetisa, jornalista, professora, escritora, militante e
conferencista, era filha de mãe solteira, nasceu em 1830 e
morreu em 1905, tendo participado do levante da Comuna
de Paris (primeiro governo operário da história, 1871). Carlota
Corday foi uma outra jovem idealista francesa: assassinou
em 1793 o revolucionário Jean-Paul Marat com uma pu-
nhalada certeira no coração.
um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, posou como vítima na encenação de
um ataque sofrido por um coronel em plena rua. O papel do agressor coube ser
interpretado pelo doutor Antônio Maria Teixeira, da Escola de Medicina, também
colaborador da publicação. O uso de fotografias, ao lado das caricaturas e textos de
autores consagrados em tom de crônica leve, fez da revista um enorme sucesso. Seu
modelo logo se disseminaria por outros periódicos – e ela foi a principal revista do país até
a década de 40, quando O Cruzeiro, lançado em 1928, lhe tomaria o lugar. Mas isso são
histórias para outra pesquisa.
Conclusões
Quando o século XIX termina, a imprensa está consolidada entre nós. Vão longe os
tempos em que funcionários graduados do governo e cônegos e clérigos tinham de dar sua
contribuição para o jornalismo nascente – o que, como dizia Isabel Lustosa, fazia a
redação de um jornal ser uma espécie de mistura de repartição pública e claustro
(LUSTOSA, 2000: 71). A longa trajetória de nosso primeiro século como nação
independente deixa marcas nas pautas e no visual das novas revistas, que continuarão, em
sua maioria, sendo editadas no Rio de Janeiro, a capital federal que concentrava o mais
importante parque gráfico do país.
Nesse novo século que engatinha, haveria espaço para publicações de todo gênero –
das mundanas às culturais, das humorísticas às informativas. O público leitor continuará
rarefeito, mas bem atendido. Os amantes da modernidade serão atendidos por revistas
como Kósmos, Renascença, Careta ou O Malho. Na Kósmos seriam publicados ensaios sobre
artes, literatura e história, além de contos e crônicas. Já o leitor de menor renda
acompanharia a cobertura dos fatos, a vida social, política e cultural de forma bem-
humorada nas páginas de O Malho, Fon-Fon! e a Revista da Semana, e depois em Cruzeiro.
Serão dezenas de títulos, alguns efêmeros, outros que viverão por muitos anos, como Fon-
Fon! ou a Revista da Semana, que circulará até 1959 (a Fon-Fon!, lançada em 1907 fechará um
ano antes).
O novo século se beneficiará do longo aprendizado ocorrido nesse período que
acabamos de abordar neste trabalho. Iniciativas como a criação da Academia Imperial de
Belas Artes, fundada em 1816 por D. João VI como Escola Real de Ciências, Artes e
Ofícios; o Instituto Artístico Imperial, criado por Henrique Fleiuss em 1859 e reconhecido
pelo imperador D. Pedro II em 1863; ou empreendimentos como o do livreiro e tipógrafo
francês Pierre René François Plancher de la Noé e sua Imperial Typographia, deixaram
marcas na aptidão de desenhistas, tipógrafos, litógrafos, fotógrafos, artistas gráficos e logo
mais redatores que se iniciaram nas novas técnicas da reprodução, sabiam dar corte às
fotos, definir a disposição dos textos e imagens, buscar o título mais instigante. A
reportagem de rua logo mais dará seus primeiros passos, mas o texto jornalístico ainda
seguirá algumas décadas em busca de sua melhor expressão.
Poucas vezes na história da nossa imprensa surgiram tantos talentos, que se
expressavam principalmente em revistas: os caricaturistas. Neste período de mudança de
século, continuam ainda em atividade ilustradores como o português-angolano Julião
Machado, Bambino, Belmiro, Crispim do Amaral. A eles vai se juntar o talento de uma
nova geração, com nomes como Vasco Lima, Loureiro, Storni, Voltolino, Yantok,
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
284
Belmonte. E sobretudo os grandes mestres Calixto Cordeiro (K. Lixto ou Kalixto), Raul
Paranhos Pederneiras (Raul) e José Carlos de Brito e Cunha (J. Carlos), trio que por quase
50 anos deixa sua assinatura nas mais importantes revistas ilustradas brasileiras.
Registrando com graça as contradições da sociedade e compondo o retrato
estilizado dos políticos, os caricaturistas traçaram a melhor parte da história de nossas
revistas, a ponto de se afirmar “que personalidades como Raul Barbosa, o barão do Rio
Branco e o presidente Hermes da Fonseca estão retratados da forma mais contundente e
fiel nas caricaturas do que nas biografias”. A caricatura nesses anos que se seguiram ao
final do século XIX expôs a sedimentação da República, o surgimento da massa
proletária, a tensão entre militaristas e civilistas, a modernização das cidades e os grandes
acontecimentos da conjuntura nacional. Também registrou os hábitos e costumes da
população, compondo um retrato vivo da cultura e da sociedade brasileira (EMPORIUM
BRASILIS, 1999: 111).
O mais importante, contudo, foi o fato de o editor aprender que o modo de chegar
ao público é quase tão importante quanto a qualidade da mercadoria que tem para
oferecer. Em outro contexto, discorrendo sobre a televisão francesa, o estudioso Eliseo
Verón comenta:
No período noturno, o conteúdo informativo dos telejornais é praticamente o mesmo
em quase todos os canais franceses. A escolha entre TF1, A2 ou Canal 5 se faz não por
conta dos conteúdos emitidos (ou seja, pela relação ao essencial das notícias tratadas),
mas em função das estratégias de contato com o telespectador. No campo das mídias, comu-
nicar, hoje, implica manter um laço contratual no tempo (VERÓN, 1991: 168).
Aliada a essa expertise técnica, conhecimento de como estabelecer e manter no
tempo esses laços contratuais – algo que Angelo Agostini soube fazer tão bem com sua
Revista Illustrada –, há agora a necessidade do conhecimento do mercado e do que interessa
ao público, para administrar do melhor modo a curiosidade de quem compra o periódico.
O editor de revista desse novo tempo sabe que é preciso dominar a complexa
“capilaridade do varejo e os interesses cada vez mais poderosos do governo e dos
mandatários da economia” (TERRA BRASILIS, 1999: 108). Em suma, para fazer uma
revista torna-se imprescindível unir capital e técnica, como acontecia de resto com outras
atividades industriais nascentes. Mas o segredo do sucesso estava em saber localizar,
treinar e administrar talentos para consolidar os veículos de comunicação que surgiam
com as novas tecnologias. Findara o tempo da imprensa boêmia e intuitiva.
O século XIX sob esse aspecto cumpriu a sua missão: termina com um quadro de
revisteiros formado e maduro. São editores, escritores, redatores, ilustradores e artistas
gráficos que dominam o seu ofício, sabem como criar uma revista e como torná-la atraente
para o público leitor. A “lição de casa” foi bem feita. Mas enquanto escrevo estas linhas
vem a primeira pergunta: por que sabemos os nomes de quase todos os caricaturistas que
deixaram seu traço nas revistas e temos a maior dificuldade de reconhecer a autoria da
maior parte dos textos? Às vezes, por tabela, somos informados sobre redatores ou
colaboradores de algumas publicações. Por exemplo, nas edições 497 e 498 da Revista
Illustrada, de 13 e 19 de maio de 1888, que noticiam as calorosas sessões parlamentares que
discutiram e aprovaram a Lei Áurea, e as repercussões dessa lei por todo o país, as
reportagens são assinadas por Julio Verim (que logo a seguir assumirá a chefia de redação
da publicação, quando Angelo Agostini for para seu “retiro” de oito anos na França). Mas,
como revela Gilberto Maringoni, mesmo Julio Verim era um pseudônimo
1
.
Normalmente os textos não são assinados por seus autores: iniciais ou pseudônimos
costumam ser o padrão. Outro exemplo: a revista O Mequetrefe de 23 de setembro de 1875
discute seriamente a questão da anistia concedida pelo governo aos bispos ultramontanos
de Olinda e Recife, processados e presos por insubordinação (pelas regras do Patronato, os
bispos eram funcionários do governo imperial, e numa democracia, seja ela monárquica
285
ou republicana, funcionário público obedece ordens, seja bispo ou controlador de vôo,
senão temos a anarquia). Pois os artigos são assinados por Courrier – seja lá quem for. A
seguir, no mesmo número, na seção “Repiquetes”, o redator que passa em revistas os fatos
da semana, assina Jeronymo Barrada, ex-Armando Senil. São “nomes de guerra”,
certamente entre os redatores sabiam quem se escondia atrás do pseudônimo Armando
Senil ou Jeronymo Barrada ou Courrier.
Sabemos que Olavo Bilac assinava seus textos utilizando pseudônimos como
Fantásio, Puck, Flamínio, Belial, Tartarin-Le Songeur ou Otávio Vilar. Nos exemplares de
A Cigarra, que comentamos no último capítulo deste trabalho, “Fantásio” é responsável por
quase todos os textos. O abolicionista José do Patrocínio assinava muitas de suas
colaborações como Notus Ferrão e Prudhome. Por que se escondiam sob pseudônimo?
Como se sabe, o ofício de redator, de periódicos ou de jornais, como entendemos hoje,
não estava delineado no século XIX. E o “campo do jornalismo”, para usar a categoria de
Pierre Bourdieu, era algo a ser criado e delimitado.
No caso de políticos, parlamentares ou advogados de nomeada, talvez essa
atividade secundária ou diletante de escrever para a imprensa pedisse o recurso do
anonimato (no caso da caricatura, apenas Flumen Junius ficou conhecido pelo
pseudônimo – e justamente por se tratar de um membro da elite – o grã-fino da corte,
Ernesto de Souza Silva Rio). Ao contrário do que ocorre hoje, quando um repórter se
empenha por ter seu nome impresso com destaque na autoria do texto, o ocultamento
da autoria parece ter sido moeda corrente no século XIX – tanto que nos deparamos
com esse comentário da pesquisadora argentina Diana Cavalaro, ao discorrer sobre a
revista La Cotorra – segundo ela uma tribuna da independência jornalística, ao satirizar
grandes figuras do mundo político argentino como Nicolau Avellaneda, Bartolomeu
Mitre ou Júlio Roca (políticos e presidentes), e “da qual só conhecemos seu
caricaturista, que assinava Faria” (CAVALARO, 1996: 101). A pesquisadora se refere
a Candido Aragonez de Faria, que deixou sua marca e “assinatura” em publicações
portenhas. Escreve ela:
La Cotorra não apenas contribuiu com a comicidade e a agudeza de suas observações,
como se inscreveu na história do jornalismo argentino por seus próprios esforços: pro-
duto de qualidade cromolitográfica alcançada pela imprensa nacional, as caricaturas co-
loridas de suas capas foram um verdadeiro avanço em nosso país e em toda a América
Latina (CAVALARO, 1996: 102).
Cavalaro não dá, entretanto, nenhuma pista do motivo do anonimato dos redatores
dessa e de tantas outras publicações portenhas. É certo, porém, que havia já o apelo de
“escrever para a imprensa”. No primeiro número do Correio das Modas, de 5 de janeiro de
1839, o autor (ou autora?) do texto “Minhas aventuras: na véspera de Reis” inicia assim
sua crônica:
Escrever para um periodico de modas!... oh! que felicidade! ter um circulo de leitoras,
que todas querem saber quem é o indivíduo que as diverte para recompensal-o com um
sorriso [...] por que, saldadas as contas, o escriptor é conhecido, falla-se d’elle – e é uma
ventura ser o objecto do entertenimento das damas [...] Só anhelo vero o Correio das
Modas sobre o toucador da timida donzella, que vendo minha assignatura, perguntará a
seu irmão, si o tiver, ou a sua amiga, quem sou eu; pedirá a todos, que lhe mostrem
minha pessoa! (PR SOR 00614 [1], págs. 4 e 5).
Paradoxalmente, o autor não assina o texto. Do mesmo modo que o redator da
nota precedente, “A Missa do Gallo!!”, utilizou apenas as iniciais M. da C.
Alguns anos depois, em 1852, num texto assinado, Joanna Paula Manso de
Noronha, a redatora chefe de O Jornal das Senhoras, reforçava esse glamour exercido pela
imprensa e por quem escrevia nela:
Conclusões
A Revista no Brasil
O SÉCULO XIX
286
Redigir um jornal é para muitos litteratos o apogeo da suprema felicidade, já sou Redactor,
esta frazezinha dita com seus botões faz crescer dous palmos a qualquer indivíduo. No circu-
lo illustrado o Redactor é sempre recebido com certo prestigio de homem que em letra de
imprensa póde dizer muita coisa, propicia ou fatal a alguem. [...] (PR SOR 02157 [1]).
Escrever dá prestígio, pode acrescentar dois palmos ao ego de qualquer um, pelo
poder de dizer algo propício ou fatal para alguém, mas não se assina o texto. Como se
disse acima, isso ocorre na contramão do que acontece hoje: o repórter quer seu nome
dando crédito ao que escreve.
Ainda na contramão do que ocorre hoje com a imprensa, comentando o fracasso da
publicação de Carlos de Vivaldi, a Illustração do Brasil, Nelson Werneck Sodré escreve:
Faltava à iniciativa de Vivaldi, em que pese suas inovações técnicas, o sal que as revistas
ilustradas ofereciam, aquilo que está ligado ao conteúdo e que foi o segredo do sucesso
da revista de Agostini, por exemplo, e para apontar o que houve de melhor. Não se
tratava, evidentemente, de proporcionar gravuras bem-feitas, ou não se tratava apenas
disso: era fundamental que elas estivessem ligadas à realidade nacional, que o público se
revisse nelas, encontrasse aquilo que desejava e que o interessava. Numa fase de agita-
ção crescente, surgindo as grandes questões que abalariam o regime, [...] a época pedia
crítica, vibração, combate (SODRÉ, 2004: 222-3).
Quão distante estamos hoje dessa premência do leitor por discussões sérias – o
público agora quer se espelhar não no debate, na discussão dos grandes temas nacionais,
mas na futilidade da vida dos “famosos”, o que faz lembrar a ironia de Juan Caño, quando
escreve que “houve um tempo em que as pessoas trabalhavam para se tornar famosas,
hoje precisam se tornar famosas para conseguir algum trabalho no mundo do espetáculo”
(CAÑO, 1999: 82). O dilema do editor de dar ao público o que este espera tem como
resultado a banalização a que assistimos (embora não seja este o espaço para a discussão
desse tema, pois haveria de levar em conta o alcance do leitorado no século estudado: um
público maior pode apresentar distintas demandas de qualidade).
Mas no século XIX, como esse espelho em que a sociedade se reflete e se reconhece,
ou se revê, para usar a expressão de Sodré, os periódicos – e marcadamente as revistas –
deram espaço às discussões que mobilizaram a nação que se criava e se definia. Em cada
década, as revistas abriram espaço e reproduziram os temas que ocupavam as rodas dos
cidadãos empenhados em construir um país.
As publicações repercutiram os debates sobre o modelo de governo que se
pretendia. Em alguns casos concretos, como o do jornal Correio do Rio de Janeiro, de João
Soares Lisboa, com sua “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, a imprensa provocou
a convocação da Constituinte de 1823, ao criar o fato consumado de 6.000 assinaturas
coletadas. É um caso quase isolado, mas os periódicos participaram ativamente das
contramarchas dessa constituinte de 1823 e da Carta imposta em 1824. Refletiram sobre a
restauração ou a revolução. Comemoraram o banimento do jovem imperador, como se
viu na página reproduzida de O Espelho das Brasileiras, periódico do Recife. Saudaram o
golpe que concretizou a maioridade do primeiro monarca brasileiro. Estimularam ou
ironizaram as manias nacionais pelo piano (criando revistas de música ou dando partituras
como brinde) ou pela homeopatia, para ficar em dois exemplos apenas. Assistiram à
chegada da mulher às redações, em iniciativas empreendedoras, quer produzindo
periódicos manuscritos e artesanais, como O Colibri, de Presciliana Duarte de Almeida e
Maria Clara da Cunha Santos, em Pouso Alegre, sul de Minas Gerais, quer editando
títulos de cunho profissional, como foi o caso do Jornal das Senhoras, de Violante Bivar de
Velasco e Joanna Manso, ou de O Sexo Feminino, da professora mineira Senhorinha Diniz.
Galvanizaram-se contra o “inimigo comum”, diabolizando o “tirano López”, no episódio
da Guerra do Paraguai. Geraram palavras de ordem em casos de crise, como a do “Caso
Christie”, que levou o país ao rompimento das relações diplomáticas com a Inglaterra, em
287
1862 (ver capítulo 5) ou na questão diplomática entre Brasil e Inglaterra pela posse da Ilha
da Trindade (capítulo 7).
Diante do opróbrio da escravidão, que perdurou até quase o final do século como
uma mancha já antecipada por José Bonifácio (MOTA, 2006: 96), as publicações ou se
omitiram (a maioria), ou fizeram vista grossa (quase todas) ou lutaram (poucas, e
sobretudo na etapa final, com destaque para a verdadeira missão que o tema representou
na vida e na trajetória de Angelo Agostini).
Em resumo, a imprensa não foi nem motor nem foi apenas um reflexo: no
movimento de espelhar, ela reproduzia o que havia e reforçava o que o público buscava,
gerando as palavras de ordem que se tornavam tema das conversas e formatavam a
incipiente opinião pública. De diferente, o que houve foi a ampla liberdade que a imprensa
viveu no seu primeiro século de vida entre nós, notadamente no Segundo Império
2
.
Como captou Monteiro Lobato, nesse ofício de servir de espelho, numa sociedade
marcada pelo analfabetismo, a ilustração – característica do “meio” revista – representou a
força maior, e floresceu por encontrar ambiente propício. Ao final de um dia de trabalho,
narra Lobato, o fazendeiro das grotas mais distantes do país chegava em casa, acostava-se
à rede e se punha a ler a Revista Illustrada:
E ali na rede via o império como nós hoje vemos a história no cinema. Via D. Pedro II de
chambre, a espiar o céu pelo telescópio; um ministro entreabre o reposteiro e mete a cara
para falar de negócios públicos; o imperador, sem desfitar as estrelas, resmunga, enfada-
do: “Já sei! Já sei!” [...] Mas há uma coisa que impede o crescimento e a plena floração da
nossa caricatura hoje: a restrição cada vez maior da liberdade de crítica ao governo. E
sem liberdade da mais ampla a caricatura fenece como a gramínea que tem sobre si um
tijolo. Perde a clorofila. Descora (LOBATO, 1956: 17-21).
Como se disse, o feito maior da revista e da imprensa na trajetória histórica do
século XIX foi haver servido de espelho e reforço dos traços de brasilidade do país
nascente – papel que hoje cumprem também o cinema, a televisão e outros meios
eletrônicos. Foi pelas páginas das publicações que se debateram problemas nacionais, se
fixaram os padrões de gosto e certo jeito de ser que traduz a brasilidade. Foi nas páginas
das revistas que o país se discutiu e se criou, espelhando-se. Também nas páginas dos
periódicos se consolidaram os padrões de escrita e de grafia das palavras. E, em
decorrência disso, profissionais prepararam e habilitaram o corpo de técnicos que daria
continuidade ao ofício de formar a consciência crítica e construir o modo de ser do
brasileiro.
Notas de Conclusão
1 O pesquisador Gilberto Maringoni, citando como fontes a pró-
pria Revista Illustrada e a Enciclopédia de literatura brasileira,
de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, oferece uma pista
em sua tese: Julio Verim era o jornalista pernambucano Luiz de
Andrade (1849-1912), que se iniciara profissionalmente em
Portugal, onde estudara Letras em Coimbra. Publicou alguns
livros de crônicas, entre eles Caricatura em prosa (1876) e
Quadros de ontem e de hoje (1885). Depois de participar de O
Popular, O Combate e O Besouro, começou a colaborar com a
Revista Illustrada em 10 de janeiro de 1885. Logo se tornou o
seu principal redator e, posteriormente, sócio de Agostini. Em
1890 é eleito deputado constituinte por seu Estado natal, afas-
tando-se temporariamente da revista. Voltaria à publicação em
novembro de 1894 como seu proprietário, já sem a presença
do artista italiano (MARINGONI, 2006: 132).
2 Como pontuado pelo professor Gilberto Maringoni, em entre-
vista com o autor, convém não esquecer a repressão violenta
ocorrida nos primeiros anos do século XIX, e ele lembra o
assassinato de Libero Badaró, em São Paulo, e o processo
contra o Cabrião, já na altura de 1866: a vida na província
não foi tão fácil para a imprensa.
Conclusões
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