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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Carolina Fontes Guadagnoli
CONSIDERAÇÕES SOBRE FALA-LEITURA-ESCRITA
E
EFEITOS CLÍNICOS NO ATENDIMENTO DE AFÁSICOS
Mestrado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
São Paulo
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
CONSIDERAÇÕES SOBRE FALA-LEITURA-ESCRITA
E
EFEITOS CLÍNICOS NO ATENDIMENTO DE AFÁSICOS
Mestrado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em Lingüística
Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a orientação da
Profa. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto.
São Paulo
2007
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Banca Examinadora
Aos meus pais, Carlinhos e Rosana, pelo amor incondicional,
dedicação e incentivo em conquistar meus objetivos,
e ao mer irmão, Rapha, pelo carinho e
apoio em todos os momentos.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto, pela orientação competente e refinada. Agradeço
por compartilhar as experiências e permitir que este processo fosse tão gratificante. Sua presença
confiante sempre me deu a certeza de que tudo daria certo. E espero que continue dando...
À Profa. Dra. Suzana Carielo da Fonseca, por me apresentar a “esta clínica” da afasia. Permitir
que eu faça parte de um “projeto seu” e da certeza de que ele vai ser realizado é uma honra. Suas
discussões de casos são valiosas e me permitem um aprendizado enorme. Obrigada pela
participação na qualificação e na banca examinadora. Sua presença e importância em minha
formação estão registradas nesta dissertação.
À Profa. Dra. Viviane Orlandi de Faria por aceitar o desafio e participar da qualificação e da
banca examinadora deste trabalho. Seu entusiasmo em aceitar o convite foi gratificante! Espero
deixar boas lembranças de sua estréia.
À Profa. Dra. Rosana Landi, pela leitura deste trabalho e por fazer parte do “grupo da afasia”.
À Profa. Dra. Sonia Maria de Mello Araújo, pela leitura atenta e pela oportunidade.
Aos professores, colegas e funcionários do LAEL/PUC-SP.
À DERDIC pela oportunidade de iniciar a clínica e ter o primeiro contato com os pacientes.
Obrigado por permitir a pesquisa.
Aos pacientes pela certeza da escolha certa.
À Profa. Dra. Lucia Arantes e Profa. Dra. “Tati” Andrade. Vocês também fazem parte da minha
história e desta conquista.
Às amigas do “grupo de afasia”: Cláudia Tumiate, Evelin Tésser, Fernanda (Piruca) Fudissaku,
Mariana Emendabili e Melissa Catrini. Tenho certeza de que ainda temos um longo caminho a
conquistarmos juntas.
Ao pessoal do HSL pela confiança. Em especial, às queridas: Cris Soares, Dani Achette, Fabi
Maeda e Isa Aguiar. Novas amigas que eu quero para sempre!! Cris e Fabi, não tenho palavras!!
Dra. Chris, muito obrigada pelo abstract.
A vocês: Thaís Carbone, Aline Parra, Déia Soares, Fê Ribeiro, Rê Ribeiro, Tha Weselowski,
Carol Porto, Gi Cruz, Pri Ciocchi, Vivi Nagiel. AMIGAS verdadeiras e eternas “nem que o
tempo e a distância...”. Aqui está o meu agradecimento especial!
À minha família: avôs, tios, tias, primos e primas, porto seguro sempre!!Pai, obrigado pelo amor,
por não medir esforços e me proporcionar todas as oportunidades. Mãe, obrigado pela paciência,
paz e segurança. Rapha, valeu a ajuda sempre que necessária, sua seneridade e fé me surpreende
sempre!! Amo vocês!
Ao CNP, por viabilizar este trabalho.
RESUMO
Afásicos, via de regra, apresentam perturbações na fala em função de lesão cerebral. Na
clínica fonoaudiológica de linguagem, a queixa dos pacientes costuma restringir-se às
dificuldades relacionadas à fala. Porém, a heterogeneidade e imprevisibilidade das perturbações
sobre a relação entre fala-leitura-escrita são surpreendentes nas afasias e nos permitem afirmar
que o problema de afásicos é, sem dúvida, com a linguagem. Leitura e escrita são, como a fala,
espaços de realização subjetiva o que, conseqüentemente, aponta para sua relevância como
recurso terapêutico, permanecendo, muitas vezes, como espaço(s) exclusivo(s) de manifestação
lingüística e subjetiva do paciente e, portanto, como condições privilegiadas na situação clínica.
Sendo assim, este trabalho objetiva (1) situar e comentar os diferentes modos sintomáticos de
relação fala-leitura-escrita instaurados em quadros afásicos, conforme abordados na literatura
neurológica e neuropsicológica; (2) apresentar e discutir os efeitos desse raciocínio na Clínica
Fonoaudiológica; (3) procurar discernir esse tipo de raciocínio do que embasa o Grupo de
Pesquisa “Aquisição, patologias e clínica de linguagem” coordenado pela Profa. Dra. Maria
Francisca Lier-DeVitto no LAEL/PUC-SP; (4) discutir questões clínicas relacionadas à
implementação de procedimentos que envolvem, além da fala, também leitura e escrita. Para isso,
apresento quatro relatos de casos. De minha leitura crítica vale destacar que os pesquisadores
(afasiologistas e fonoaudiólogos) investigados notaram e registraram os mesmos acontecimentos
surpreendentes e misteriosos na fala/leitura/escrita que me impulsionaram nesta pesquisa. Porém,
esta observação permitiu apenas que eles observassem sinais da doença (compondo o quadro
nosográfico das afasias) mas não refletissem sobre a relação afásico-leitura/escrita, nem sobre os
efeitos clínicos dos atendimentos e/ou manifestações sintomáticas. Impasse e manejos clínicos no
atendimento de afásicos não encontram, portanto, espaço para discussão fora da Clínica de
Linguagem.
Palavras-chaves: afasia, escrita, clínica de linguagem.
ABSTRACT
Aphasic patients commonly present talking disturbances as a result of brain injury. In the
speech therapy clinic, patients complaints usually involve difficulties related to talking.
However, problems related to reading and writing can be quite surprising and demonstrate that
the main issue of aphasic patients is related to the speech process. Reading and writing are, like
talking, subjective activities and, as such, a rich area for therapeutic approaches. The objectives
of this study are to (1) review the literature and comment on the different clinical presentations of
aphasia in relation to talking, reading and writing; (2) present and discuss the effect of this
context in the Speech Therapy Clinic; (3) compare these findings with the ones that the Research
Group “Aquisição, patologias e clínica de linguagem” support (Group Coordinated by Prof.
Maria Francisca Lier-De Vitto no LAEL/PUC-SP); (4) discuss clinical issues related to the
implementation of activities that involve not only talking but also reading and writing. For this
purpose, I present a report of four case studies. It is important to remark that many other
researchers and scientists have also evidenced and described many interesting findings in this
group of patients, and this was the motivation of this study. Nevertheless, reports are much more
restricted to the observations of signs and clinical presentations, with little appraisal of the
relation with reading and writing, other symptoms and therapeutic approaches. In conclusion,
impasses and clinical handering of aphasic patients demand more discussion and attention in the
literature.
Keywords: aphasia, writing and speech therapy clinics.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO........................................................................................................……...... 01
CAPÍTULO 1 – Goldstein, Luria, Hécaen, Goodglass e a escrita..................................... 11
1.1. Goldstein: Perturbações da linguagem e sua relevância para a Medicina e para a teoria da
Linguagem............................................................................................................................... 11
1.2 Luria: um neurologista soviético........................................................................................ 18
1.2.1. Vygotsky no pano de fundo: o cerebral-psicológico nas considerações sobre a
“linguagem oral” e “linguagem escrita”........................................................................... 19
1.2.2. Diagnóstico e os distúrbios de leitura e de escrita: Las funciones corticales
superiores del hombre........................................................................................................ 24
1.3. A moderna Neuropsicologia............................................................................................. 31
1.3.1. Hécaen : a Neuropsicologia Cognitiva................................................................... 31
1.3.2. Goodglass: a Neuropiscologia Experimental......................................................... 36
CAPÍTULO 2 - Os fonoaudiólogos e a escrita................................................................... 40
2.1. Anna Basso....................................................................................................................... 40
2.2. Santana: um outro prisma para a avaliação da
linguagem................................................ 45
2.2.1. Considerações clínicas............................................................................................49
CAPÍTULO 3 - O relato de um afásico e considerações teóricas sobre a escrita........... 51
3.1. Zazetsky: a vivência de um afásico................................................................................... 51
3.2 Escrita: ocorrências e teorizações.................................................................................... 55
CAPÍTULO 4 - Efeitos clínicos no atendimento de afásicos............................................. 70
4.1. Sr. X: sobre a mútua afetação entre modalidades de linguagem.................................... 70
4.2. O atendimento de Mirela................................................................................................... 72
4.3. O atendimento de Josué Carlos Xaves.............................................................................. 83
CONCLUSÃO........................................................................................................................ 88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 90
ANEXOS................................................................................................................................. 99
1
Considerações sobre fala-leitura-escrita
e
efeitos clínicos no atendimento de afásicos
INTRODUÇÃO
Afásicos, via de regra, apresentam perturbações na fala em função de lesão cerebral.
Na clínica fonoaudiológica de linguagem, a queixa dos pacientes costuma restringir-se às
dificuldades relacionadas à qualidade da fala e à impossibilidade de “torná-la outra”, como já
assinalou Fonseca (2002 e outros). Não se deve estranhar que a demanda para a clínica com
afásicos seja esta – “fala” é a moeda corrente da interação entre falantes
1
e a afasia a deixa
estilhaçada, ininteligível, “não-comunicativa”: uma ferida subjetiva na relação social. E, como
sustenta Fonseca (2002, 2006), uma mudança que só é vivida por afásicos.
Na literatura médica, pode-se ler que a leitura e a escrita têm papeis importantes em
decisões diagnósticas. Goldstein (1988/1950) e Luria (1970/1987), que serão discutidos nesta
dissertação, utilizam provas de leitura e escrita para diferenciar uma afasia de outra,
procurando viabilizar, assim, uma classificação nosográfica. Hécaen (1977) e Goodglass
(1993), menos voltados para a questão topodiagnóstica - sem desprezá-la, uma vez que não
contestam “os grandes mestres” - ligam-se mais à explicações psicológicas relacionáveis aos
acontecimentos sintomáticos na fala. Deve-se ter em conta que, na perspectiva da
Neuropsicologia, o cérebro é entendido como substrato das habilidades cognitivas. Importa
dizer que a heterogeneidade sintomática da relação fala-leitura-escrita é amplamente
reconhecida pelos autores mencionados acima. Na Clínica de Linguagem com afásicos
2
,
atribui-se importância fundamental a essas duas modalidades de manifestação da linguagem,
1
Fala, escrita ou língua gestual são modalidades de manifestação da linguagem humana e, como tal e em que
pesem diferenças entre elas, são todas igualmente determinadas ou submetidas ao funcionamento da língua.
abordarei, abaixo, a natureza desse funcionamento.
2
Refiro-me, aqui, à configuração clínica instituída pelo ao Grupo de Pesquisa “Aquisição, patologias e clínica de
linguagem”, a que me filio e que é coordenado pela Profa. Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto, no LAEL-
PUCSP.
2
já que são formas de expressão da relação sujeito-linguagem. Leitura e escrita são, como a
fala, espaços de realização subjetiva o que, conseqüentemente, aponta para sua relevância
como recurso terapêutico, principalmente em uma clínica em que o prognóstico, traduzido em
termos de o paciente atingir uma condição não-afásica, é desfavorável. Assim, a leitura e/ou
escrita, muitas vezes, permanece(m) como espaço(s) exclusivo(s) de manifestação lingüística
e subjetiva do paciente e, portanto, como condições privilegiadas na situação clínica.
As ocorrências sintomáticas referentes à relação oralidade-escrita, mais comuns na
clínica com afásicos, são as seguintes: (1) há pacientes que apresentam sintomas na fala, mas
não na escrita; (2) há pacientes que apresentam problemas na escrita, mas não na fala; (3) há
pacientes que escrevem e lêem, (4) há pacientes que lêem e não escrevem, (5) há aqueles que
lêem, mas não aquilo que escrevem e assim por diante
3
. De fato, a heterogeneidade e
imprevisibilidade das perturbações sobre a relação entre fala-leitura-escrita são
surpreendentes nas afasias e trazem à luz o fato de que o problema de afásicos é, sem dúvida,
com a linguagem. No que pode ser compreendido como Afasiologia Fonoaudiológica, a dita
relação oralidade-escrita e a própria escrita têm sido marginalizadas enquanto problemas
teóricos ou clínicos e, nos poucos trabalhos em que são abordadas, a questão “vem sendo
tratada de maneira polêmica” (SANTANA, 1999: 20). Segundo esta fonoaudióloga, não há
consenso entre os autores seja quanto à natureza, seja quanto à articulação entre essas duas
modalidades de linguagem. Entretanto, há um lugar de convergência entre eles já que, como
ressalta Santana, a oralidade reconhecidamente sempre ocupou lugar de destaque em relação à
escrita. Pode-se afirmar que clínicos e pesquisadores têm se ocupado muito mais da fala
afásica.
De fato, a escrita não foi e nem tem sido eleita, efetivamente, como “objeto digno” de
pesquisa nesse campo e, nem, arrisco dizer, têm-se teorizado sobre seu lugar na clínica. Este
trabalho parte desta constatação e a elege como questão sobre a qual refletir, já que as
estranhas dissociações e relações entre oralidade-escrita são freqüentes e surpreendem o
fonoaudiólogo. Cabe esclarecer que o quadro clínico rotulado como “distúrbios de leitura e
escrita” implica a problemática aqui focalizada, embora ele tradicionalmente rotule, no campo
da Fonoaudiologia, acontecimentos sintomáticos que envolvem “problemas de aprendizagem”
(e não lesão cerebral). Ou melhor, tratam-se de problemas que remetem ao fracasso da criança
na escrita. Nestes casos a heterogenidade sintomática também surpreende e põe em questão a
3
Essa questão tem sido discutida e abordada em artigos por pesquisadores o CAAf , da DERDIC, coordenado
pela Dra. Suzana Carielo da Fonseca. Faço menção especial a Fonseca (2002, 2006); Marcolino e Catrini (2006),
Fudissaku (2007).
3
relação fala-leitura-escrita. Expressivo por sua originalidade é o trabalho de Leite (2000).
Entre as várias indagações que motivaram a autora a problematizar a escrita em sua
dissertação de mestrado, Sobre o efeito sintomático e as produções escritas de crianças, estão
as seguintes:
bastaria uma criança apresentar erros em sua escrita para que esta pudesse ser
considerada patológica?;
“[quais erros] indicariam uma possível patologia?”
“o papel do fonoaudiólogo, seria o de (re)ensinar a criança a escrever?”
Note-se que essas questões são importantes na medida em que apontam para a
exigência de uma reflexão clínica sobre os “erros”. Ou melhor, Leite pergunta sobre a
distinção entre erro e sintoma e mais - pergunta “o que é um sintoma” (na fala, na escrita,
etc.). Ela entende ser imprescindível não ignorar esses problemas uma vez que uma resposta a
eles seria um caminho melhor traçado para o estabelecimento de distinções necessárias entre
as posições pedagógia e clínica – sem dúvida, uma diferenciação que deveria ser “de base”.
Ela indaga:
“Cabe perguntar de que natureza é o saber que o clinicar supõe. Será
que o clinicar corresponderia a corrigir, extinguir os erros presentes
na leitura-escrita da criança? Trata-se de supressão de erros? Afinal,
o que diferencia a clínica fonoaudiológica do ensino escolar?”
(op.cit: 3) (ênfase minha).
Retira-se do trabalho de Leite a lição de que a manifestação sintomática desliga-se da
insistente remissão do problema da escrita a fatores etiológicos
4
- tendência e raciocínio
clínico bem familiares aos fonoaudiólogos, como mostrou Faria, V. O. (2003). De fato, Leite
não se alinha a vertentes que fazem da linguagem um subproduto de funcionamento de outra
ordem (orgânico ou cognitivo), mesmo que problemas em outras esferas possam estar
envolvidos. Vejamos como e porque ela pôde dar esse passo. Antes, porém, vale acrescentar
que, seguindo a indicação desta autora, devemos entender que o espaço da aprendizagem e o
4
Faço referência, aqui, à tendência atual de, no diagnóstico de problemas de escrita, implicar etiologia orgânica.
Leite toma distância dessa tendência de reduzir os problemas de escrita a quadros de dislexia.
4
da clínica não são coincidentes: seus limites devem ser teorizados, desnaturalizados. Esse é
um ponto insistente em seu trabalho, e tem relevância neste, porque os neurologistas
Goldstein e Luria imaginaram, para além da clínica médica, um outro espaço em que
eventuais transformações na qualidade sintomática da fala pudessem decorrer: num espaço
pedagógico.
Leite, ao discutir o atendimento de uma menina, indica, mas não enuncia com força a
diferença que perseguiu (e mostrou) em sua dissertação. A fonoaudióloga vê que a criança
atingiu uma condição satisfatória na escrita - ela podia sustentar um texto, embora nele
houvesse alguns erros ortográficos e falhas de pontuação (nada muito diferente da escrita
inicial de crianças). Contudo, a menina permaneceu em terapia fonoaudiológica por ela
insistir que ainda “trocava letras” (apesar de não serem freqüentes em sua escrita) –
permaneceu “por conta dessa criança não reconhecer que escreve, que faz texto; por conta
de ficar presa à queixa da escola e dos pais”. Segundo Leite, então, isso é o que faz
sintoma, ou seja, sua aderência à queixa do outro, sua não-escuta para o que pode
escrever” (idem, 90) ( grifos meus).
Destaco este parágrafo final de sua dissertação porque nele aparece uma decisão
clínica e porque, ao destacá-lo, gostaria de iluminar o insight de Leite que não ganhou, ao
meu ver, o relevo que merecia ter em seu trabalho. Quero, então, registrar esta conquista:
Leite, sem dúvida, insinua, ao final de sua dissertação, resposta a um problema
essencialmente clínico, que levanta de início, qual seja: para além das transformações na
escrita, um clínico deve considerar a singular relação sujeito-escrita. É isso que sua
decisão terapêutica ilumina e que torna distinta a atuação pedagógica da clínica (de
linguagem). Eu disse, acima, “clínica de linguagem e Leite afirma que o sintoma na escrita é
de linguagem (e não de aprendizagem) porque, como assinalei, é manifestação perturbada de
modo problemático da relação criança-escrita. Essa sutil, mas profunda torção no modo de
abordar o quadro clínico “Distúrbio de Leitura e Escrita” decorre de uma opção teórica sobre
a linguagem que, por sua vez, foi impulsionada pela clínica. Leite, instigada pelos
acontecimentos clínicos, questiona a relação da criança-escrita
5
e também a relação do
terapeuta com a criança-com-problema-na-escrita. Para ser mais explícita, a pesquisadora
coloca-se em posição de ser afetada pela Lingüística científica
6
: ela dá importância à ordem
5
Ou seja, ela questiona a circunscrição do problema seja a “deslizes cognitivos ou na aprendizagem”, seja a
“dificuldades emocionais”. Leite procura desnaturalizar esses jargões tão freqüentes, mas que pouco esclarecem
sobre os problemas das crianças com a escrita.
6
Tal como definida por Saussure, ampliada por Jakobson (1954).
5
própria da língua e põe em operação um raciocínio que envolve considerar a relação fala-
Língua
7
que certamente implica o sujeito falante
8
.
Esse passo, no caso da escrita, é da maior relevância. Ao implicar a Língua na escrita,
Leite dá visibilidade ao fato de que escrita, leitura ou fala (ou modalidade gestual) são formas
distintas de manifestação da linguagem e, como tal, movimentadas, todas elas, por um só
mecanismo. Pode-se entender porque é possível que haja relação entre essas modalidades.
Diferentes que sejam entre si, ainda assim, elas pertencem a um mesmo domínio - o da
linguagem que tem como princípio de organização, precisamente, o fato de haver Língua. Diz
Saussure: “é necessário colocar-se [...] no terreno da língua e tomá-la como norma de todas
as manifestações da linguagem” (1916/69: 16-17) (grifos meus) . Quero, nesse momento,
chamar a atenção para o seguinte: operações [da Língua] são imperativas, em que pese a
diversidade de modalidades em que a linguagem se manifeste e a imprevisível diversidade de
seus efeitos. A Língua, como disse, é o que faz com que fala, leitura ou escrita possam
relacionar-se e afetar-se mutuamente. Dizer isso é suspender, como fez Leite, a redução da
escrita à representação da oralidade. Interessa assinalar, neste momento, que ela pôde recolher
acontecimentos surpreendentes que, acrescento, não estão ausentes dos quadros afásicos.
Ela mostra que há crianças que trocam letras na fala e na escrita, que há aquelas que trocam
na fala mas não trocam na escrita e crianças que não trocam na fala, mas trocam na escrita.
Essa heterogeneidade a levou a levantar “questões relativas ao diagnóstico” (idem, 93),
sendo a mais privilegiada por ela a seguinte:
“... se o fonoaudiólogo faz complemento à queixa, ele perde a
heterogeneidade, perde as oscilações na escrita da criança, perde a
relação entre acertos e erros, perde a oportunidade de ver que a
heterogeneidade aponta para a questão da relação criança-escrita”
(idem, ibidem).
Antes de encerrar meus comentários sobre o texto de Leite, quero, partindo da citação
acima, indicar o cerne de sua posição teórica, aquele que, como já disse, não ignora “ordem
própria da língua” – a autonomia de um funcionamento: “o vai e vem entre oralidade e
escrita, remete à instância da língua” (idem, 61), diz ela, e nem a heterogeneidade das
7
Utilizo Língua (em maiúsculas) para distinguir o funcionamento universal (la langue, em expressão de
Saussure), de uma língua particular (em minúsculas)
8
Essa articulação triádica foi postulada por Lemos (1995, 2002).
6
manifestações sintomáticas que apontam para o fato de “haver sujeito”, que muda de
posição no jogo alternado e cerrado entre modalidades de linguagem:
“se oralidade e escrita se cruzam é porque há diferença entre essas
duas modalidades [ou sistemas] e que a relação de um sujeito com
uma ou outra modalidade de linguagem tem certa autonomia” (idem,
65).
Note-se que pontos importantes são tocados pela pesquisadora: o cruzamento de
efeitos entre oralidade e escrita; certa autonomia entre essas modalidades e a mútua afetação
entre elas – o que contesta a hipótese de senso-comum de que a escrita seja transcrição da
oralidade. Os pontos teóricos que destaco no trabalho de Leite apontam para o horizonte
comum entre nossos trabalhos. Devo dizer, contudo, que pretendo refletir não unicamente
sobre os sintomas na escrita de sujeitos afásicos
9
, mas também sobre efeitos clínicos da
escrita.
Aliás, o privilégio que dei à dissertação de Leite, nesta Introdução, deve-se ao fato de
que, nela, a clínica está em relevo. Interrogada que estava pela problemática da escrita e pela
disparidade notável da relação fala-leitura-escrita, pouco encontrei sobre questões clínicas no
levantamento que fiz da literatura sobre o assunto, na área da afasiologia fonoaudiológica e
médica
10
. Pude, nos trabalhos consultados e eleitos por mim, apreender tendências e
circunscrever pressupostos teóricos e mesmo clínicos (explicitados ou não). Adianto que na
avassaladora maioria dos autores pesquisados, a linguagem fica limitada a “realização
motora” (comportamento) e/ou a “instrumento do pensamento” (representação)
11
. Sendo
assim, vê-se que linguagem não é pura articulação motora-oral, uma vez que há a
incontornável necessidade de explicar sua função, ou melhor, de dizer a serviço de quê estaria
9
Esclareço que as análises que realizarei estarão a serviço de comentários clínicos.
10
Durante minha graduação, sempre me vi envolvida com questões sobre a escrita. Fui monitora de “redação de
textos” em diferentes disciplinas do curso de Fonoaudiologia. Em minha pesquisa de Iniciação Científica,
investiguei as características relativas ao letramento de uma determinada população e, assim como na minha
atividade como monitora, deparei-me com as mais diversas formas de relação sujeito-escrita. Porém, em todas
estas situações, lidei com sujeitos que, aparentemente, não tinham nenhuma patologia de linguagem. Mas o que
me chamava a atenção era o fato de que alunos tinham dificuldade em escrever, embora fossem falantes do
português. Dessa dessimetria atestada, surgiu minha questão: quando a fala está prejudicada (como a de
afásicos), em que condição ficaria a escrita?
11
Devo admitir que não esperava outro resultado, mas devo confessar que reencontrar o já esperado, em sua
força de repetição, não deixou de surpreender.
7
esta motricidade tão específica e especial
12
. É por aí que os fatores orgânico e psicológico são
aproximados: a fala, numa visada organicista, vem como a função orgânica de uma função
cognitiva/mental, ou seja, a fala permite que “visões de mundo” do falante - sejam
externalizadas, comunicadas. A fala, portanto, representa conteúdos internos, tidos como
frutos da experiência do sujeito com/no mundo – e isso, por ser a linguagem uma faculdade da
espécie humana.
A escrita seria, nessa perspectiva organicista-cognitivista, representação da
representação ou, como se diz também, representação de segunda ordem porque
representaria a fala que já representa o mundo Não se deve supor, contudo, que tal acepção
seja declarada e discutida nos trabalhos afasiológicos - ela está implicitamente presente e, por
isso, fica mais próxima do senso-comum sobre a relação linguagem-mundo, fala-escrita. Nos
raros artigos abordados (SANTANA, 1999; BASSO, 1977, 2003), é mesmo notável a
naturalização da idéia de “representação” – assunto da maior importância quando se trata da
relação entre fala-escrita ou fala-pensamento
13
. Nenhum dos autores lidos teorizaram sobre
representação. Sendo assim, não é estranho que, na clínica, leitura e escrita sejam acessórias -
modalidades de linguagem consideradas menores. Elas vêm à tona, quase que
exclusivamente, como complementações do diagnóstico. Goldstein (1947) e Luria (1970-
1987), por exemplo, utilizam provas de escrita para realizar diagnóstico diferencial entre
apraxia e afasia. Também, a presença (ou não) de alteração na escrita, confirmaria ou
afastaria, por exemplo, a hipótese de uma classificação topodiagnóstica, facilitando, assim, a
localização da lesão. Entendi, ao longo da realização desta pesquisa bibliográfica, que seria
possível (e mesmo necessário) investir num caminho que pudesse dar dignidade às questões
suscitadas pela relação fala-leitura-escrita - problemas estes que são vividos, de fato, na
clínica com afásicos. Teorizações sobre a relação sujeito-escrita, que envolvem a questão da
representação, serão introduzidas, neste trabalho com o objetivo de situar o leitor em relação à
posição que assumo frente a materiais clínicos de pacientes nas avaliações de linguagem. Elas
permitem ver, também, o passo que a Clínica de Linguagem procura dar para além das
descrições, sempre acuradas e sensíveis dos afasiologistas médicos (capítulo 1) e
testemunhadas por fonoaudiólogos. Refiro-me a reflexões encaminhadas por Borges
(1995/2006), Bosco (2005), Oliveira (1995) e, também, por Faria (1997).
12
Faço comentário sobre essa questão na discussão dos casos.
13
Uma discussão interessante sobre a “representação” e sua presença em campos clínicos, ver Landi (2007).
8
Posso, nesse momento, recuperar e enunciar objetivos. Pretendo, como já disse, (1)
situar e comentar os diferentes modos sintomáticos de relação fala-leitura-escrita instaurados
em quadros afásicos, conforme abordados na literatura neurológica e neuropsicológica
(Goldstein, Luria, Hécaen e Goodglass); (2) apresentar e discutir os efeitos desse raciocínio na
Clínica Fonoaudiológica; (3) procurar discernir esse tipo de raciocínio de outro a que me filio;
(4) discutir questões clínicas relacionadas à implementação de procedimentos que envolvem,
além da fala, também leitura e escrita. Para isso, trago Zazetsky (um paciente de Luria), o
Caso X (paciente de Fonseca, 2002); Mirela e Josué Xaves, atendidos por mim. Meu olhar
está voltado para possíveis efeitos terapêuticos que possam ter advindo da implementação de
propostas clínicas envolvendo a introdução de atividades de leitura-escrita com pacientes
afásicos. Quando faço referência a tais efeitos, sustento-me na assunção de que sempre que
houver ampliação da “habilidade lingüística”, haverá afetação subjetiva, não previsível ou
antecipável, ou seja, a clínica testemunha que transformações numa modalidade de linguagem
produzem mudanças na relação do sujeito com o outro e outra relação com a linguagem.
Gostaria, acima de tudo, que as discussões deste trabalho, que mergulha nos mistérios das
afasias, pudesse ser tomado como um esforço de contribuição para a discussão teórica e
clínica sobre o assunto. Essa esperança ou desejo tem assento no que assinalou Freud. Diz ele
que em situações patológicas ou sintomáticas as operações que perpassam a “normalidade”
ficam mais nítidas, mais “apreensíveis”. Além do mais, manifestações sintomáticas não
tornam o afásico “menos humano” - é o que espero.
Antes de passar ao primeiro capítulo, devo anunciar que o solo teórico que norteia esta
pesquisa, e as reflexões sobre a escrita dos autores que foram mencionados acima, é aquele
que dá reconhecimento à ordem própria da língua, ou seja, às leis de referência interna da
linguagem (SAUSSURE, 1916) e à sua articulação na fala/escrita (JAKOBSON, 1954, 1960;
BENVENISTE, 1962, 1970). A influência da reflexão desses autores assim como a
interpretação de suas obras, aqui assumida, vêm da leitura feita por De Lemos (1992, 1997,
2002 e outros) e, principalmente, daquela que vem sendo realizada, na seqüência, no âmbito
do Projeto Integrado (CNPq 522002/97-8), hoje Grupo de Pesquisa CNPq, “Aquisição,
patologias e clínica de linguagem”, coordenado por Maria Francisca Lier-DeVitto, no LAEL-
PUCSP. Trata-se de uma linhagem que tem, em J-C Milner (1978, 1987, 2002), sua fonte. De
forma sucinta, dá-se reconhecimento à Lingüística Científica – à ordem própria da língua,
conforme presente no estruturalismo europeu e o programa gerativista de Chomsky (ficamos
com a primeira tendência). Persegue-se, como desdobramento desta opção teórica, a
compatibilidade entre concepção de língua (de Saussure) e de sujeito. Nessa direção,
9
aproximamo-nos da proposta freudiana. Saussure, como é sabido, retira de cena o sujeito
psicológico. Diz ele, “a língua é uma carta forçada”, “um tesouro depositado no cérebro”
que nem o indivíduo nem a sociedade podem mudar – o falante é sujeito capturado por um
funcionamento sincrônico, diga-se, “estrutural”. Pensar mudanças, numa abordagem
estrutural, envolve uma problemática relacional (criança-língua-outro falante). Tratam-se,
mais precisamente, de mudanças de posição do sujeito relativamente à fala do outro e à
própria, como mostrou De Lemos
14
.
Esta teorização é de grande interesse para uma clínica de linguagem: o sujeito afásico
pode mudar de posição na linguagem – frente à fala, à leitura e à escrita do outro e à própria.
Reitero que as falas sintomáticas são palco privilegiado para a apreensão da articulação sutil
entre linguagem e sujeito por dois motivos:
as falas afásicas, embora truncadas, inconclusas e fragmentadas não estão “fora da lei”
(LIER-DeVITTO, 1998), ou seja, nelas pode-se apreender o movimento da língua, ou
melhor, elas são movimentadas e sustentadas por esse funcionamento e
o falante afásico, “embora saiba que está em falta-falha, nada poder fazer para
modificar a própria fala” (FONSECA, 2002); ou escrita, acrescento. O sujeito fica
numa condição de objeto frente à própria fala/escrita (CATRINI, 2005). Isso nos
permite dizer, com Lier-DeVitto (2003), que não há recurso cognitivo a que possa
recorrer o sujeito para incidir sobre sua fala (que ele escuta como patológica).
No que concerne à escrita não perderei de vista a afirmação de Saussure, de que “a
escrita é disfarce, não traje [da fala]” (1916/69: 35), ou seja, não me afastarei da hipótese de
que escrita é um sistema com vida própria, embora não seja autônomo em relação à fala.
Distancio-me, assim, tanto das tendências que vêem a escrita como “transcrição da oralidade”,
como também, daquelas que a tomam como “representação”. O fato dessas modalidades
poderem se afetar mutuamente implica, logicamente, que elas sejam diferentes entre si e, ao
mesmo tempo, que pertençam a um mesmo domínio. Encerro, com essa tomada de posição, a
14
Decidi, nesta dissertação, não incluir um capítulo de “fundamentação teórica”. Penso que as indicações
sucintas que faço acima sejam suficientes para situar o leitor frente às discussões que tecerei e às interpretações
que farei dos atendimentos clínicos. Recomendo, para o leitor interessado em se inteirar, em maior profundidade
nas discussões teóricas que sustentam este trabalho, além dos textos já mencionados, em especial os seguintes:
De Lemos, 2002; Lier-DeVitto, 1999, 2006; Fonseca, 2002; Andrade, 2003; Orlandi, 2003. Há outros que podem
ser recolhidos nas bibliografias dos textos recomendados.
10
primeira parte deste trabalho: sua carta de intenções e sua declaração de compromisso teórico-
clínico.
11
Capítulo I
Goldstein, Luria, Hécaen, Goodglass e a escrita
1.1 Goldstein: Perturbações da linguagem e sua relevância para a Medicina
e para a teoria da Linguagem
Goldstein, um neurologista notável e pesquisador das afasias, estudou e praticou
medicina em hospitais da Alemanha e dos Estados Unidos. No livro Transtornos del lenguaje
– las afasias: su importancia para la medicina e la teoria del lenguaje (1950), ele espera
contribuir com suas observações e descrições de fenômenos afásicos tanto para a Medicina,
quanto também para desenvolvimento de uma teoria da linguagem. É exatamente esta
proposta de Goldstein que me levou a eleger e estudar seu trabalho. Partindo da noção de que
a afasia é (a) um conjunto de “alterações de linguagem devidas a lesões cerebrais” (op. cit.,
60) e de que (b) “cada função é resultado da atividade global do organismo, em que o
cérebro joga um papel particular” (idem: 54), ele sustenta que o cérebro, parte dessa
totalidade (o organismo), responde pela “face perdida” quando há lesão em qualquer uma de
suas áreas – esta é sua hipótese de “plasticidade cerebral”vemos aí
15
.
Feitas essas considerações teóricas mais amplas sobre as afasia, vejamos o que
Goldstein entende por “linguagem”. Para ele há uma linguagem interna (abstrata) e uma
externa (concreta). A primeira (a interna) estaria ligada ao pensamento e seria uma espécie de
atitude abstrata, psicológica, volitiva e racional. A segunda (externa), por oposição,
corresponderia a uma atitude concreta e estaria a serviço da linguagem interna, na qualidade
15
Acho importante esclarecer que, para Goldstein, "orgânico" é conceito atrelado à Psicologia Gestáltica, na qual
se inspira. Tal termo pode ser tomada como sinônimo de "sistema" ou "estrutura". De fato, em Goldstein,
organismo não é apenas uma referência ao corpo biológico mas diz respeito à totalidade da constituição
individual. Isso significa que fatores, tais como, o biológico, o mental, o emocional, etc, são entendidos como
constitutivos da "personalidade global" (1948/1950: XIV).
12
de instrumento desta. Assim, por estar sob comando psicológico (volitivo e racional) a
linguagem externa não poderia ser confundida com automatismos, embora ela seja posta em
ato através deles. A linguagem normal seria, para ele, a combinação equilibrada dessas duas
atitudes e as afasias, por conseqüência lógica, uma desarticulação entre a linguagem concreta
e a abstrata. Vimos que a função da linguagem está atada ao pensamento (linguagem interna)
e é, dele, um instrumento (linguagem externa): “ meio de que o indivíduo lança mão para se
relacionar com o mundo que o rodeia e para se realizar” (1950: 26). Para Goldstein, a
linguagem é, então:
(1) instrumento de representação do pensamento;
(2) ferramenta de adaptação do sujeito ao meio e
(3) meio de auto-realização.
Partindo desse ponto, é possível pensar sobre a escrita que, sendo linguagem
externa, só poderá ser assumida como “um instrumento” – mesma função que tem a fala.
Para Goldstein, ambas as modalidades – fala e escrita - visam ao mesmo fim: adaptação social
e realização subjetiva. Vejamos como ele abordou sua afirmação de que “a escrita é uma
função complexa” (1950: 132). Diz ele que:
“como fenômeno motor, [a escrita] tem, a princípio, a mesma
estrutura que qualquer outra atividade motora. Consiste em processos
voluntários e automatismos que, reunidos, constituem uma unidade.
É necessário um impulso [“representações das formas das letras”]
para colocá-la em ação (...) e as formas [letras] são executadas
devido à inervação de vários músculos em uma combinação
complexa e muito precisa (idem, ibidem) (grifos meus).
Como se vê, a escrita está ligada a uma contraparte abstrata (psicológica, volitiva e
racional) e sendo essa estrutura “tão complexa e precisa”, ela poderá ser alterada de modos
variados de acordo com a parte do processo que resultar afetada pela lesão. Dito de outro
modo, a escrita envolve habilidades diferentes como escrita criativa-espontânea, escrita a
partir de ditado e escrita-cópia - nem todas serão afetadas (sempre) e nem do mesmo modo.
Assim, agrafia é um distúrbio que comporta manifestações heterogêneas: pode ocorrer
perturbação do ato motor de escrever (afetação, portanto, nos "automatismos") ou então, pode
13
acontecer que o paciente tenha problemas para escrever “como conseqüência dos defeitos na
função [abstrata] da linguagem" (idem, 138).
Segundo Goldstein, não se deve, a rigor, falar em “agrafia”, mas em agrafias. Além
delas serem remissíveis a quadros de apraxia e de afasias, mesmo na agrafia primária, os
sintomas diferem. Nesse quadro, a perturbação do ato motor pode estar relacionada à
ausência de intenção
16
e, Goldstein, alerta que ela pode ser o sintoma fundamental, pois a
escrita, diz ele, mais do que outros atos motores requer “volição” para que seja realizada.
Muitas vezes, portanto, a escrita, decorrente de ditado e/ou de cópia, é realizada com maior
facilidade do que a espontânea, pois elas não envolvem intenção de comunicar por parte
daquele que escreve. O problema (já que é de linguagem) não tem causa unicamente biológica
– fala ou escrita não se restringem, enfatiza o autor, a uma dificuldade sensório-motora com o
traçado. A “dupla face da linguagem” remete precisamente a essa complexidade: a uma
articulação entre orgânico-automático e psicológico-volitivo. Em Goldstein, portanto, o
diagnóstico dos problemas na linguagem arregimenta a relação entre aspectos motores e
aspectos cognitivos. Entende-se, assim, porque uma alteração da atitude abstrata pode se
manifestar como dificuldade motora (de dar início à escrita), como numa agrafia primária.
Nela, também, podem surgir problemas com o conteúdo - o paciente deve escrever palavras
de que não lembra ou que não sabe o significado.
Na apraxia ideatória, um outro grupo em que o ato motor está perturbado, o sintoma
remete à representação da formas das letras que está alterada. Nesse quadro, a cópia fica
mais preservada do que a escrita espontânea e esta última não fica pior do que a escrita sob
ditado. Na cópia, segundo o autor, o paciente também apresenta dificuldade em reconhecer
letras e não pode, portanto, ler (tem “certa alexia”). Interessa assinalar que para uma
manifestação sintomática, que é “a mesma”, Goldstein teoriza pois ultrapassa o nível das
aparências ao invocar causas diferentes como esquecimento da grafia de determinada letra;
como substituição de uma letra esperada/desejada por outra. Pode ainda ocorrer que a grafia
seja errada e que, mesmo sem conseguir corrigi-las, há reconhecimento do erro e, portanto,
preservação da capacidade de distinguir entre certo e errado.
Há atos motores perturbados por problemas de natureza psicológica (e não cerebral,
em sentido estrito), como vimos acima, mas quando há lesão na região dos automatismos,
16
A fineza de Goldstein pode ser notada aí: não é porque o problema se manifeste como aparentemente “motor”
que a explicação deva ser remetida a uma lesão decorra de uma afetação seja de “linguagem concreta”.
14
manifestações gráficas sintomáticas serão explicadas de modo diferente
17
: na agrafia pura
ou motora, que é típica desses quadros, o mecanismo compensatório ativará músculos
utilizados na escrita sem o concurso de qualquer intenção de escrever - nada há, então, de
“psicológico” nesses quadros. Segundo o autor, certas lesões afetam unicamente
mecanismos motores complexos.
No que diz respeito às afasias, Goldstein reconhece que alterações de escrita são
muito freqüentes nesses quadros e admiti que a agrafia não implica afetação da capacidade
motora de “formar letras” – a dificuldade de escrever é, nas afasias, segundo ele, efeito de
desorganização da linguagem abstrata. Note-se que, nesse momento, Goldstein parece
supor equilíbrio entre sintomas na fala e na escrita, o que apoiaria uma hipótese de
causalidade direta oralidade Æ escrita (a escrita seria transcrição da fala, portanto). Chamo a
atenção, entretanto, para um assinalamento importante do próprio Goldstein: de que o que
"sobrevive" na escrita é específico dessa modalidade - o traçado, a grafia da letra. Tendo em
vista que nem todos os afásicos apresentam sintomas na escrita (mas, por definição,
apresentam na fala), Goldstein só poderia admitir que entre essas duas modalidades de
linguagem concreta, há diferenças. Ele proporá a seguinte classificação, que é, segundo diz,
importante na realização de diagnósticos diferenciais.
Comecemos pelas afasias motoras:
1. afasia motora cortical (presença de alterações na escrita) versus afasia motora
subcortical (ausência dessas alterações):
“o defeito na linguagem motora, em si, não produz dificuldade na
estrutura, mas há indivíduos cuja escrita aparece tão estranhamente
relacionada com a linguagem que, ao escreverem, uma fala silenciosa
se manifesta (apoio na oralidade) e, se os pacientes apresentam
afasia motora, a escrita também fica alterada” (idem:138).
17
O autor assinala, ainda sobre nas agrafias que envolvem apraxia, o “estado preparatório” (idem:135) da
escrita fica alterado já que “os fenômenos inervatórios podem estar completamente intactos” (idem, ibidem). Ou
seja: o problema é apenas aparentemente sensório-motor. O paciente pode conseguir compensar parcialmente
esse déficit, lançando mão de automatismos motores. No entanto, Goldstein não esclarece quais são esses
automatismos.
15
Ele assinala, ainda, o seguinte: quando um “afásico motor” não se apóia na oralidade,
quando “não fala o que escreve”, a agrafia não aparece como sintoma da afasia motora.
Inversamente, caso ele se apóie na fala silenciosa, sua escrita refletirá a perturbação da
oralidade. Assim, de um lado, a escrita se manifesta como um funcionamento independente
da fala e, de outro, como seu reflexo. Seguindo esta conclusão do autor, deve-se inferir ser má
conduta clínica propor a um afásico que ele “se apóie na fala” para escrever.
2. Na afasia motora central, há alteração de escrita e ela reflete uma alteração verbal,
sendo que mais afetada costuma estar a escrita (especialmente em ditados) em que há
presença de paragrafias - o paciente soletra errado ou troca uma palavra por outra (a
exemplo das parafasias na fala). Entende-se, então, porque nos ditados seu
desempenho é pior: ele ouve a fala do outro, mas ao realizar sua escrita, é na própria
fala que ele se apóia.
Vejamos, a seguir, as manifestações sintomáticas das afasias sensoriais. Segundo o
autor:
1. Na afasia sensorial central, o paciente “não percebe os complexos de sons como
fenômenos familiares” (idem: 229) - não os compreende, portanto, e não pode repeti-
los. Nesse tipo de afasia, alterações da leitura são como as observadas na afasia
motora central – ocorre “tanto paralexia literal, quanto verbal” – que se manifestam
como “dificuldade de soletrar e de combinar letras para formar palavras” e há
“distúrbio da percepção dos sons” (idem, 131). Segundo o autor, nesta afasia, tem-se
“indiferenciação da linguagem interna” (idem, ibidem), ou seja: “a palavra pode ser
percebida, mas não repetida” e, por ser percebida: “outra palavra que pertence à
mesma esfera pode ser produzida” (idem: 90). Como se vê, Goldstein trata, aqui, das
parafasias.
2. Quanto à afasia sensorial periférica, a diferença dela em relação à central é que não
há alterações significativas nas habilidades de leitura e na escrita – a fala fica
comprometida.
16
Antes de encerrar meus comentários sobre Goldstein, convém sublinhar as linhas
mestras: para ele, “linguagem” (oral ou escrita) é função cerebral e mental – há automatismos
motores que a sustentam e pensamento que lhe confere sentido. No primeiro caso, ela
responderia a comandos de um “saber-fazer orgânico” e, no segundo, a um “saber-querer
comunicar” (aí ela é instrumento de um sujeito entendido como epistêmico).
Cabe assinalar que Goldstein coloca em relevo o que chama de "linguagem abstrata" -
ela é eixo e fonte de sintomas na fala e na escrita. Disso resulta que o principal argumento
teórico para as manifestações sintomáticas na afasia é a perturbação da atitude abstrata. A
linguagem abstrata, na realidade, só não é invocada apenas num tipo de apraxia ideatória,
como vimos. Entretanto, a heterogeneidade sintomática cria embaraços (mas eles são
ignorados) – o autor, frente a eles, ora retorna ao cerebral e ora ao "hábito" (comportamento
irrefletido/automático). Em sua abordagem, dita “holística”, cérebro/mente/linguagem se
interpenetram, ainda que, como disse Fonseca (1995), na "causalidade expandida" de
Goldstein, o cerebral permaneça determinante.
Não se pode deixar de reconhecer a fineza de seu olhar para os acontecimentos
sintomáticos na fala, na escrita e na leitura. Os quadros clínicos (apraxia ou afasias), aos quais
ele os relaciona, ganham complexidade, a partir de sua discussões e classificação. É fato que o
autor procura domar a heterogeneidade que se apresenta em cada quadro afásico ao buscar
regulariza-la. Goldstein é médico e se alinha à sua classe - o que significa dizer que nuances
indicativas de singularidades são desprezadas. Essa pontuação não visa a obscurecer o olhar
excepcional do autor para as manifestações perturbadas de linguagem. Pretendo, apenas,
assinalar o fato de que esse olhar não pôde ser ampliado ou aprofundado, devido ao
compromisso legítimo de Goldstein com a Medicina (FONSECA, 1995, 2002). Devemos
admitir que a meta, ali, é estabelecer classes nosográficas (tipos de afasia) para correlacioná-
las a lesões e, no final, essa correlação deve dar suporte para uma hipótese de funcionamento
cerebral.
Do ponto de vista descritivo, o autor recolhe um elenco refinado de “comportamentos
alterados” (fala/escrita/leitura) e, do ponto de vista explicativo, regiões lesionadas e funções
cerebrais são invovadas. Sendo esse o caso, podemos afirmar (e espero ter mostrado) que as
manifestações sintomáticas da linguagem (fala ou escrita) são nada mais do que
sinais/reflexos de problemas cerebrais. Goldstein não se inquieta na mesma medida que
17
Jackson ou Freud que, por efeito da linguagem, romperam com a causalidade lesão-sintoma e
abriram a porta para teorizações outras (sobre ela e sobre o sujeito)
18
.
Mais uma vez, reitero: não é meu objetivo, neste trabalho, cobrar da
Medicina/Neurologia mais do que elas realizaram – é preciso, contudo reconhecer limites para
que um tratamento, envolvendo linguagem possa ser viabilizado (coisa que médicos não
fazem – eles encaminham)
19
. Para sermos justos e rigorosos, é preciso dizer que Goldstein
parece ter entrevisto essa possibilidade, uma vez que foi ele quem primeiramente propôs uma
“clínica de reeducação” para afásicos. Em que pese a idéia de reeducação da linguagem (que
é bastante questionável, sob muitos aspectos
20
) e o desejo de Goldstein, ele não especifica
qualquer procedimento relativo à intervenção nos distúrbios de leitura e de escrita - fica em
suspenso o modo como ele articularia escrita e oralidade no campo da clínica.
Vejamos, a seguir, o que diz Luria sobre a linguagem e as manifestações
sintomáticas em suas várias modalidades
21
.
18
Refiro-me, aqui, ao paralelismo psico-físico, introduzido por Jackson, e de que Freud se serve/ modifica, como
expressão máxima do que disse.
19
O “tratamento” médico é cirúrgico e/ou medicamentoso, como assinalaram Vieira (1992) e Fonseca (1995).
20
Brevemente: “linguagem não se ensina” , sustenta, em uníssono, a área de Aquisição da Linguagem (mesmo
que se possa dizer que a criança “aprende” ou “constrói” conhecimentos sobre ela. Também a Lingüística
científica recusa essa possibilidade porque assume que “linguagem é estrutura/sintaxe” e que, como tal, não é
parcelável.
21
Ao final da discussão dos neurologistas, apresentarei esquemas referentes à relação entre quadros afásicos e
manifestações intomáticas na fala/escrita.
18
1.2. Luria: um neurologista soviético
Alexander Luria, nasceu em Kazan, na antiga Rússia, onde cursou a Universidade e
obteve seu diploma médico em 1921. Prosseguiu seus estudos acadêmicos na área da
Psciologia e, nesta época teve contato com as idéias de Freud, fundando a Associação
Psicanalítica de Kazan. Depois, no Instituto de Psicologia de Moscou, dedicou-se à criação de
um método de pesquisa que permitisse o acesso a conteúdos subjetivos. Vê-se que, por aí,
Luria afasta-se de Freud e da Psicanálise e, como é sabido, aproxima-se de Vygotsky e de sua
Psicologia do Desenvolvimento. Seu compromisso, desde cedo, foi com adultos. Esclareço:
apesar de ter contribuído, por longo período, no tratamento e diagnósticos de “crianças
especiais”, foi o pensamento e linguagem, daquele que já os tinha constituídos, que mais o
intrigou. Entende-se seu interesse pelas afasias e, desde os primeiros tempos de sua
investigação, pelas perturbações da fala, da leitura e da escrita. Frente à impressionante
complexidade das manifestações observadas, ele ponderou que as teorias, até então elaboradas
sobre o funcionamento cerebral, não ofereciam recursos teóricos adequados para explicar os
fenômenos implicados nas síndromes afásicas.
Luria empenhou-se, então, em construir uma teoria alternativa mais refinada sobre a
estrutura e o funcionamento cerebral, procurando romper com as tradições localizacionista,
que tem em Broca e Wernicke seus representantes mais famosos, e holista, de que Goldstein é
expoente. Fez parte desse projeto um esforço de teorizar a linguagem.
19
1.2.1. Vygotsky no pano de fundo: o cerebral-psicológico nas considerações
sobre a “linguagem oral” e “linguagem escrita”.
Quanto à linguagem, Luria afirma ser ela “uma atividade muito complexa que envolve
componentes distintos” (1974: 304). Vê-se, pelo tipo de expressões que o autor utiliza, que
ele fez aproximações ao campo dos estudos lingüísticos
22
, mas seu movimento mais forte foi
em outra direção: Luria incorpora a reflexão de Vygotsky e, por aí, a Psicologia ganha
destaque e ofusca a linguagem. De fato, ela fica tanto refém de explicações cognitivas, quanto
reduzida a instrumento do pensamento
23
. Não é difícil dar sustentação ao que digo. Para
Luria, “a palavra é unidade mínima do pensamento”. Vê-se, sem dúvida, Vygotsky no pano
de fundo dessa afirmação, uma vez que, em sua proposta, a palavra (signo) é a unidade do
pensamento verbal, ou seja, índice da união do pensamento e da linguagem
24
. Decorre disso
que o enunciado (a “frase”) apareça como “expressão de um pensamento determinado”
(LURIA, idem: 120). Assim definida a relação entre pensamento e linguagem, esta última só
poderá mesmo ser concebida como um instrumento cognitivo e, portanto, na largada, vence
a Psicologia (Lier-DeVitto, 1998). Esclarecidas essas bases conceituais, podemos passar para
outras considerações.
Luria afirma que há duas formas distintas de linguagem: a oral e a escrita. A primeira
é interativa/comunicativa e, a segunda, egocêntrica: “o monólogo escrito é linguagem sem
interlocutor, seu motivo e projeto iniciais são totalmente determinados pelo próprio sujeito
(1987: 169 (ênfase minha) - ao contrário da “linguagem oral”, portanto, em que os indivíduos
estão, diz ele, submetidos aos efeitos da reação do outro
25
. A escrita não tem apoio na situação
22
O conhecimento construído na Lingüística pode ser caracterizado como sendo uma teorização sobre estratos:
fonético/fonológico; morfo-sintático; semântico-discursivo. Luria passou, certamente, por aí.
23
Com isso, não quero dizer que Luria “tenha pecado” mais do que outros neurologistas no que concerne à
linguagem, mas é certo que ele pretendeu mais.
24
Ver, sobre isso, capítulo referente às “operações com signo” em A formação social da mente, de 1931/1984.
25
Essa posição de Luria é criticável – a distinção que propõe não ultrapassa o limiar do visível, da noção de
interação como relação entre duas pessoas “em presença” (LIER-DEVITTO, no prelo). Não pretendo me deter
nesse ponto porque ele merece ser abordado em trabalho que focalize a noção de “interação” e porque as
discussões dos casos e da literatura sobre escrita, que privilegio neste trabalho são esclarecedoras da distância
que tomo em relação às posições de Luria sobre linguagem, monólogo e interação. Recomendo, sobre isso, a
leitura de Lier-DeVitto (1998, 2001); Fonseca (1995, 2002 e outros), Tésser (2007).
20
imediata (no “contexto simpráxico”, em palavras do autor) e seriam duas as suas
especificidades:
(1) os sentidos da escrita emanam de seu caráter exclusivamente “sinsemântico”
26
e
(2) o sujeito que escreve deve representar seu interlocutor ou, mais precisamente, imaginar a
reação do seu interlocutor.
Tal representação é decisiva porque a pessoa que escreve deve criar condições para
que “o leitor realize o caminho inverso: [ele] parte da linguagem exterior até o sentido
interno do texto exposto” (idem, ibidem). Resumidamente, a escrita está ligada à fala
interna e ao pensamento – daí ser ela “monológica”, mesmo visando um outro imaginado.
Luria é, sem dúvida, um neurologista soviético, não só pelo modo como distribui a linguagem
em “fala externa” (comunicativa) e “fala interna/monológica” (o que nos remete diretamente a
Vytgotsky), como também há, em suas afirmações, vestígios da reflexologia - como se pode
apreender na expressão “reação ao interlocutor”. Essa composição o impele, paradoxalmente,
para o espaço de um empirismo que obscurece a linguagem, mesmo sendo verdade que, assim
como Vygotsky, Luria tenha querido orientar-se por “esse comportamento exclusivamente
humano”. Esse projeto acaba frustrado precisamente porque a linguagem é reduzida a
comportamento (externo) e/ou aderida ao pensamento (interno). Dito de outro modo, ela fica,
mais uma vez, como “acessório” seja do social-comunicativo, seja do pensamento.
Luria, muito bem aprumado nessa linhagem, indicará duas diferenças fundamentais
entre fala e escrita no que diz respeito à origem e à estrutura psicológicas. Ele diz que a fala
“é processo de comunicação natural da criança com o adulto” (1987:169)(ênfase minha) e a
escrita é:
“resultado de uma aprendizagem especial, que tem início com o
domínio consciente de todos os meios de expressão escrita. No início
dessa construção, seu objeto não é tanto a idéia ou pensamento a ser
expresso, mas os meios técnicos de escritura das letras e depois das
palavras (que nunca são objeto de uma tomada de consciência na
linguagem oral)” (idem, ibidem) (ênfase minha).
26
Para o autor, simpráxico é o significado que a palavra recebe de acordo o contexto ou a situação em que está
inserida, já sinsemântico, é o significado que ela recebe de acordo com o “enlace” que ela forma com as outras
palavras do texto.
21
Quanto à origem, portanto, vemos que a aquisição da dita linguagem oral seria “sem
instrução” (natural, diz Luria), diferentemente da situação da escrita que é dependente de
“instrução formal” (especial, segundo ele). Sua aprendizagem ocorreria em fases, sendo que
quando a criança começa a escrever, ela não se preocupa com sentido - este tempo
corresponderia ao que Vygotsky chamou de “pré-história da escrita”. Acompanhando Luria
sobre as etapas de seu desenvolvimento, temos que, nessa pré-história, a escrita inicial não é
instrumento do pensamento, mas mera preparação motora do gesto específico. O autor
acrescenta que entre a pré-história e a tomada consciente da escrita (quando ela se torna
instrumento do pensamento) há passos intermediários. São eles:
(1) segmentação e discriminação de fonemas,
(2) representação dos fonemas em letras,
(3) síntese das letras na formação de palavra e
(4) transição de uma palavra à outra.
Tocamos, neste momento, na questão da estrutura psicológica da escrita: ela se
organiza segundo uma hierarquia que envolve operações analíticas conscientes (segmentação
e seleção), que culminam em representações e regras de composição morfossintática
(operações combinatórias). Note-se que as operações são cognitivas e hierarquizadas
(incidem em unidades menores e depois em maiores):
“diferencia-se [na escrita] um nível léxico consistente para seleção
de palavras (...) a linguagem escrita inclui (...) operações conscientes
de nível sintático, que são automáticas [inconscientes] na linguagem
oral (...). Geralmente, aquele que escreve deve construir a frase
conscientemente [e conta, para isso] não somente com hábitos de
escrita [organização motora específica], mas também com regras da
gramática e da sintaxe [internalizadas]” (idem, pg. 170).
A escrita envolve, portanto, hábito, ou seja, comportamento estabilizado e
inconsciente e, também, conhecimento gramatical/sintático. Ambos, “organismo
modelado” e “gesto planejado”, compõem-se para formar a estrutura psicológica específica
da escrita que:
22
“por sua composição, suas estruturas completas, desdobradas e
gramaticalmente organizadas (...) não utiliza formas da linguagem
direta. Por isso, a extensão das frases é significativamente maior na
linguagem escrita do que na oral. Sendo assim, encontram-se formas
de reação muito mais complexas, como por exemplo, inclusão de
orações subordinadas, que muito raramente são utilizadas na
linguagem oral” (idem, 170-171) (ênfases minhas).
A noção que Luria tem de gramática passa ao largo da contribuição que a Lingüística
introduziu no pensamento científico, no século XX. Vemos, na citação acima que, para ele, a
estrutura da linguagem é identificada a uma organização linear que obedece a regras: vetor
que caminha passo a passo da esquerda para a direita, até o final do enunciado. Certamente,
esse modo de conceber “sintaxe” corresponde a uma visão pré-científica de estrutura.
Brevemente, basta lembrar, aqui, que Saussure (1916) propõe como funcionamento da língua
tanto “operações em presença” (que dão conta da linearidade, ou seja, da sucessividade no
tempo), quanto “operações em ausência” (que respondem pela possibilidade de substituição).
Tão importante quanto indicar operações não observáveis que participam da determinação do
valor (do estabelecimento de categorias e de determinação do significado), é a afirmação de
que operações in praesentia e in absentia são solidárias – a ação de uma é articulada e
dependente da ação da outra.
Quanto a Chomsky, que também é visitado por Luria (FONSECA, 1995), a situação é
ainda mais radical – penso ser suficiente fazer menção à crítica que este lingüista faz às
gramáticas apoiadas em cadeias markovianas (que só comportam o vetor da esquerda para a
direita), “uma concepção de gramática ... que merece sérias considerações [críticas]”(idem,
1957: 24). Não é minha intenção pressionar Luria onde seus recursos falham, mas acredito ser
importante, para um clínico de linguagem, dar-se conta de que sua noção de “gramática” ou
de “sintaxe” não tem base teórica, embora ela tenha tido alguma função prática na
estruturação de sua obra.
Esse apontamento não é irrelevante, como disse, na medida em que é indicativo da
naturalização, em Luria, seja da “linguagem oral”, seja da “linguagem escrita” ou da relação
entre elas. Mesmo assim, suas intuições são da maior importância e merecem ser escutadas.
Por exemplo, é notável que ele chegue, como por outras vias chegou Goldstein, à conclusão
de que não se deve entender que a escrita seja mera transcrição da fala. Luria, nem
23
poderia, a rigor, levantar suposição diferente porque é ele mesmo quem distingue duas
estruturas psicológicas: estrutura psicológica da “linguagem oral” (inconsciente, reativa,
menos complexa) e estrutura psicológica da escrita (consciente, planejada, complexa). Além
disso, ele as distingue quanto à origem (como vimos): a aquisição da linguagem oral seria
“natural” e a da escrita “especial”.
Atrelar a linguagem “estruturas psicológicas” é, em si, gesto esclarecedor de sua
naturalização por Luria. Nesse aspecto fundamental ele não se distancia da tradição dos
estudos afasiológicos, como pretendeu. Talvez se deva admitir que Luria não tinha opção –
ele era médico, neurologista e, em seu horizonte, a afasia só poderia ser manifestação de
cérebro lesionado. Parece que o autor pretendeu refinar considerações sobre “a mente”, uma
companheira fiel do funcionamento cerebral, no discurso organicista. Para isso, ele pôde
contar com Vygotsky e, por aí, ele se oferece como um representante, na Medicina, do
pensamento soviético. Vale recordar que toda a questão sobre o sujeito afásico fica, no
âmbito desse discurso, restringida à discussão de se ele detém (ou não) controle sobre a
linguagem depois da lesão no cérebro. E, como veremos, a escrita servirá de empiria para a
avaliação cognitiva e de certas capacidades orgânicas (visuais e auditivas, por exemplo).
Enfim, “linguagem”, em Luria, é também função cerebral-cognitiva. Assim assumida,
gramática/sintaxe é um conjunto fixo de regras (é código) que faz parte do estoque cognitivo.
A manifestação sensível da linguagem (oralidade ou escrita) é comportamento modelado - é
“hábito”, nas palavras de Luria.
24
1.2.2. Diagnóstico e os distúrbios de leitura e de escrita: Las funciones
corticales superiores del hombre
Luria (1977), no capítulo 10 do livro Las funciones corticales superiores del hombre,
aborda a questão da avaliação da leitura e da escrita em pacientes afásicos. Considerando as
pontuações feitas nesta dissertação, não devemos perder de vista ao que visam as avaliações
de leitura e escrita que ele propõe. Segundo o autor, elas devem começar a ser implementadas
após verificação da capacidade de análise e síntese dos sons da fala pelo paciente, ou seja,
depois de verificadas as capacidades cognitivas do paciente. Esse pré-requisito deve ser
respeitado pelo clínico já que:
“se as capacidades de segmentar o fluxo contínuo de sons da
linguagem oral, de abstrair caracteres acústicos secundários (...) e
formar classes de fonemas estáveis estarão preservadas, as
seqüências de fonemas ficam também preservadas e eles podem ser
agrupados em classes fonemático-sintéticas” (idem: 529) (ênfase
minha).
Assim, segmentar, classificar e representar são capacidades a serem investigadas
antes. Segundo Luria, é através da avaliação, do que ele denomina "audição fonêmica", que se
definiriam, com maior chance de sucesso, as correlações entre tipos de afasias e áreas
lesionadas específicas do cérebro. De fato, para Luria, a importância desse diagnóstico é a
possibilidade que ele oferece de identificar "sintomas secundários" ou perturbações
sintomáticas (ponto de vista cognitivo) e de indicar o "problema primário" ou quadro lesional
(ponto de vista orgânico).
Sabendo que Luria vê a aquisição da escrita como um processo hierarquizado com
fases que partem da análise/síntese de letras para sílabas – de unidades menores para maiores
(palavras, sentenças e texto)
27
-, compreende-se que a investigação diagnóstica deva:
27
Um discussão forte e fecunda sobre como a Medicina aborda a questão das “unidades da linguagem”,
encontra-se em Andrade (2003): Ouvir e escutar na constituição da Clínica de Linguagem.
25
“inclui[r] uma série de provas, dirigidas às análises de diferentes
elementos e níveis da escrita [que são] realizadas logo depois da
investigação da análise-síntese auditiva das palavras. Deve-se iniciar
pela escrita das letras, depois prosseguir para sílabas e palavras, e,
finalmente, pode-se investigar as complexas formas da linguagem
escrita” (op. cit.: 534) (ênfase minha)
É nesse ponto que as diversas facetas de atividades com a escrita são implementadas
de forma controlada e escalonada, como veremos. Não se deve supor, contudo, que a escrita
(ou a relação do sujeito com ela) venha à tona. O cenário é bem outro e é aquele que
deveríamos esperar no espaço de um raciocínio médico. Pois bem, a cópia de letras (sílabas)
e palavras concretas (substantivos) constitui o primeiro passo da avaliação pois, segundo o
autor, a cópia favorece a verificação de alterações orgânicas (ópticas-gnósicas e motoras).
Espera-se com isso:
“determinar o grau de facilidade com que o paciente percebe a letra,
verificar se ele capta os elementos essenciais das palavras, se não
substitui a cópia correta da letra por uma cópia super-editada, e,
ainda, observar se há dificuldades com a técnica motora da escrita”
(idem, ibidem).
Se o paciente realiza a tarefa sem maior problema, suas capacidades viso-motoras e
cognitivas não estariam abaladas e seria possível, então, prosseguir a avaliação para as provas
de ditado (de letras, palavras, sílabas e frases). No ditado, o paciente não tem apoio em pistas
visuais e avalia-se, portanto, a capacidade auditivo-articulatória além de eventuais alterações
na capacidade de discriminação
28
. Nesta parte, poderia ser útil, diz o autor, ditar
logogramas, uma vez que estas “palavras fabricadas” excluem apoio no significado (testa-se
exclusivamente “discriminação”, acredita ele). Quanto à capacidade de memorizar, provas
de ditado de unidades mais extensas (frases) servem a esse propósito. Luria sugere que se
28
Se, porém, o paciente não consegue realizar essa primeira prova, as próximas avaliações devem ser facilitadas
com, por exemplo, uso de abecedários recortados para o paciente “formar as palavras” sem precisar escrevê-las,
limitando-se a juntar as letras a partir da palavra-modelo. Na proposta de Luria, “facilitação” tem a função de
propiciar “reorganização funcional”, ou seja, quando o apoio exclusivo na visão se mostrar insuficiente, deve-se
lançar mão do apoio táctil-cinestésico.
26
peça ao paciente para “escutar uma frase inteira e escrevê-la”. Já para avaliar o traçado
das letras, ele pede que o paciente assine o próprio nome. A idéia aqui é observar se
(alguma) escrita se manteve “automatizada”.
Por último, aplicam-se as provas para atestar se “a linguagem escrita do paciente, no
sentido estrito da palavra” (idem: 536) permanece viável, ou seja, se há escrita espontânea.
Fluência e narratividade ficam em foco. Para isso, também, Luria propõe que o paciente “...
responda por escrito a uma pergunta e exponha, também por escrito, alguma idéia sobre
qualquer assunto” (idem, ibidem). Embora ele diga que a utilização desses recursos
diagnósticos poderia servir de base para a orientação de um programa de tratamento, não há
sugestão ou indicação a esse respeito.
A avaliação da leitura, diz Luria, pode firmar ou infimar conclusões retiradas das
investigações da escrita por estar em estrita relação com ela. Esssas provas envolvem tanto
leitura em voz alta, quanto leitura silenciosa/interna. Assim como na escrita, o processo
diagnóstico é hierarquizado: da leitura da letra para a leitura de frase e de texto. Há, portanto,
consistência metodológica no procedimento.
Luria chega a conclusões diagnósticas e trata, como veremos abaixo, de estabelecer
correlações entre tipos de afasia e problemas de leitura e escrita. Afinal, essa é a meta de um
médico neurologista ligado às afasias! Ele propõe:
1. na afasia sensorial, o paciente compreende com facilidade palavras familiares
(reconhece seus significados), mas é incapaz de lê-las em voz alta e de ler palavras
inteiras ou distinguir partes que as compõem. Contudo, há certos segmentos e
composições que não são afetados (o nome próprio, próprio endereço). Quanto à
escrita, os pacientes apresentam sérias alterações no ditado, mas as capacidades de
copiar e de realizar “estereótipos motores” (como assinaturas) ficam preservadas. Eles
se limitam a escrever apenas aquelas palavras automatizadas, como seu nome ou
endereço (como ocorre na leitura). Nesta afasia, o paciente apresentaria problemas de
compreensão, já que dissocia som e significado daquilo que ouve. A “linguagem oral”,
portanto, ficaria muito alterada – ele se torna incapaz de repetir palavras ou de nomear
objetos. Segundo Luria, mesmo que o paciente consiga melhorar sua escrita, ela
permanecerá fortemente comprometida. Os mesmos sintomas apontam para um
quadro de alteração na escrita, típico de pacientes com ...
27
2. afasia acústico-amnésica (nesse quadro, acompanhados da impossibilidade de
distinguir consoantes, de trocar alguns sons por outros e de omitir fonemas
foneticamente semelhantes). Assim, teremos a escrita de palavras e frases incompletas,
de alguns fragmentos de palavras ou de palavras isoladas. Se o paciente insiste em
escrever frases, é comum, também na fala, a emergência de parafasias, que completam
o quadro sintomático. A fala também apresenta a mesma característica - afinal, assim
como o paciente escreve palavras isoladas, ele pronuncia facilmente palavras isoladas,
mas é incapaz de dizer frases inteiras – o paciente “perde-se” no meio delas.
3. Na afasia motora aferente (cinestésica), os sintomas são muito semelhantes aos da
afasia sensorial, mas o processo analítico-sintético (compreensão-produção) da leitura
fica profundamente perturbado: o paciente não consegue articular corretamente e
produz erros que dificultam o processo de reconhecimento das palavras (paralexia
literal).
4. Na afasia motora eferente (cinética), os sintomas são diferentes dos que já foram
descritos: ao ler, as letras são reconhecidas sem dificuldades, mas o paciente não
consegue relacionar o som à letra. Desse modo, este afásico acaba restringido a uma
leitura letra-a-letra. No que diz respeito à escrita, ela certamente resta perturbada
porque, segundo o autor, o paciente tem profunda dificuldade articulatória e não pode,
assim, reter a sensação dos movimentos fonoarticulatórios. Por isso, ele não recupera
segmentos sonoros que formam as palavras e, quando se esforça para faze-lo, erra a
pronúncia das palavras. Tais problemas refletem-se na escrita. O paciente consegue
copiar e escrever as letras ditadas, mas não consegue escrever sílabas complexas ou
palavras porque esquece a ordem em que foram ditadas (agrafia cinética)
29
.
Resta assinalar que Luria nada diz sobre as afasias semântica e dinâmica - as “mais
lingüísticas” das afasias, conforme assinalou Fonseca (1995). Nelas, o próprio autor admite
estarem envolvidos "mistérios insondáveis" para a psicologia da época. Na interpretação de
29
O autor justifica com o fato de que, nessa afasia, os esquemas seqüenciais internos estão comprometidos, o
que faz com que a perseveração seja a característica que mais ilustra este quadro. Ou seja, o paciente não
consegue escrever pois persevera na primeira letra, o que o torna incapaz de redigir uma sílaba simples. O
mesmo se apresenta na linguagem oral: o paciente não consegue repetir as palavras pois não “liga” uma sílaba a
outra (lesão na área cinética).
28
Fonseca, que acompanho nesta dissertação, tal “ausência”, no trabalho de Luria, remete a
outra: à falta de uma teorização sobre o funcionamento da linguagem. Mesmo tendo Luria se
aproximado de Saussure (1916) e Chomsky (1965), como mencionado acima, essa
aproximação não rendeu mais do que recolhimento e uso de um número de expressões
técnicas
30
.
A questão é a seguinte: a Medicina tem uma visada para a linguagem e um posto de
leitura da Lingüística impeditivos seja de ir além da possibilidade de localizar o problema na
fala/escrita, no primeiro caso, seja de apreender diferenças entre teorizações (LANDI, 2000).
Antes de finalizar, é preciso chamar a atenção para o fato de que, como parte do processo
diagnóstico, Luria propõe que se tenha uma “conversa preliminar” com o paciente ... para
recolhimento da história clínica da doença. Nesse particular, vale a pena o que disse Fonseca
(2002) sobre essa proposta de Luria:
“no que concerne à “'conversa preliminar”, não se deve esquecer que
ela é parte de um processo de investigação que tem como finalidade o
diagnóstico topográfico de lesões cerebrais.[Na Medicina] “escutar
queixas” não é considerar o doente, é o meio através do qual se pode
reconhecer o “grito dos órgãos sofredores” (Focault,
1980/1994”(idem:108) (ênfase minha).
Esta citação dá suporte ao que tenho dito sobre o estatuto da linguagem e, agora, do
afásico na Medicina: queixas oferecem informações ou pistas sobre “órgãos sofredores” e não
sobre o “sofrimento do paciente”, nem sobre os efeitos de seus sintomas sobre ele, nem de sua
relação com a linguagem. Dessa forma, se o neurologista é soviético ou de outra
nacionalidade, ele é médico e seu compromisso é com o organismo e com causas de doenças
– só assim, ele pode pretender curar. A Clínica de Linguagem, a que me ligo, lida com
linguagem; com falas e/ou escritas prejudicadas e com falantes que sofrem por efeito delas.
A linguagem, que fica retida no pano de fundo do discurso organicista, vem à tona como
protagonista na Clínica de Linguagem – tão protagonista quanto o sujeito-falante que dela se
queixa.
30
Fonseca (1995) mostra que Chomsky (1957, 1965), Saussure (1916) e Jakobson (1954, 1955) são visitados
por Luria, mas que o faz de “modo bastante ingênuo e “desajeitado” porque termos são emprestados mas perdem
valor conceitual.
29
O acesso à obra de Luria, nos anos de 1970, certamente foi da maior importância para
o desenvolvimento da Neuropsicologia, uma forte tendência, da segunda metade do século
XX, no estudo das afasias. Não só obra pareceu perfeitamente articulada aos olhos de
pesquisadores e clínicos (conceitos teóricos, métodos clínicos, descrição das síndromes e
terapia), como podemos levantar a hipótese de que Luria deu fôlego teórico à “mente” que,
como disse acima, é “parceira fiel” do “cérebro” nas abordagens sobre seu funcionamento.
Pelo fato de Luira ter podido contar com as intuições e elaborações teóricas, sem
dúvida importantes, do psicólogo soviético Lev S. Vygotsky e por ter ele mesmo sido capaz
de oferecer argumentos teóricos mais refinados sobre aspectos “metais/cognitivos” (sempre
presentes no discurso médico sobre as afasias) muitos pesquisadores da segunda metade do
século XX identificaram seu trabalho ao ideário da Neuropsicologia, que será apresentada
através de Hécaen.
Antes, no entanto, apresento os quadros nosográficos estabelecidos a partir da divisão
sintomática proposta por Luria e Goldstein.
30
TABELA NOSOGRÁFICA - LURIA
TABELA NOSOGRÁFICA - GOLDSTEIN
31
1.3. A moderna Neuropsicologia.
As relações cérebro e mente sempre estiveram em foco nos estudos sobre as afasias.
Goldstein e Luria, presentes nesta dissertação, são expoentes notáveis deste raciocínio
tipicamente organicista que pode ser caracterizado, segundo Hécaen (1977), pelos seguintes
tipos de metas e de investigação:
(1) observar, de forma sistemática, as desordens comportamentais (incluindo fala e escrita);
(2) localizar a causa (em termos de Neuroanatomia das lesões) e
(3) compreender e explicar o funcionamento e as disfunções do cérebro, entendido como
substrato das habilidades cognitivas.
1.3.1. Hécaen : a Neuropsicologia Cognitiva
Henry Hécaen, em seu livro Le cortex cerebral (1949/1960), escrito com Julián de
Ajuriaguerra, ganhou destaque e reconhecimento. Esta obra foi considerada, pela comunidade
científica européia, um verdadeiro avanço no conhecimento clínico sobre as atividades
corticais superiores. O capítulo referente aos Estudos Neuro-psico-patológicos é tido como
clássico
31
. Hécaen sempre entendeu ser o programa tradicional de pesquisas da Neurologia a
base do que viria a ser designado como Neuropsicologia:
“A Neuropsicologia nasceu muito antes da criação desse termo - seu
início está, de fato, ligado à comunicação de Broca na Sociedade de
Antropologia de Paris, em 1981 e marcado pelo triunfo do método
anátomo-clínico” (1977)
31
A obra trata de, por um lado, oferecer uma abordagem topográfica para as síndromes anátomo-clínicas
(frontal, caloso, parietal temporal e occipital) e, por outro, um tratamento funcional do que os autores
qualificaram como problemas fisiopsicopatológicos (afasias; praxias y gnosias; apraxia; astereognosias; agnosia
auditiva; agnosias visuales; trastornos da somatognosia; alucinacões e lesões corticais focais)
32
Em outras palavras, Hécaen postula que o método “anátomo-clínico” (que sucede o
anátomo-patológico) dá abertura para um tipo de investigação, de reflexão e de clínica, que
não seria fundamentalmente distinta daquele praticado pela “nova” Neuropsicologia. Para ele,
a direção teórica e de investigação entre aquela “dos grandes mestres e fundadores da
neurologia” e aquela representada pela moderna Neuropiscologia não é divergente.
Talvez possamos dizer que diferenças há: o termo “psicologia”, que compõe o nome
da disciplina, sinaliza para uma novidade, qual seja, a de que maior peso explicativo é
atribuído a questões psicológicas (às funções mentais superiores e ao processamento de
informações) e que, por isso, profissionais e pesquisadores de outras áreas do conhecimento (e
não médicos exclusivamente) passam a fazer parte das discussões que ficavam restringidas ao
domínio da Neurologia (espaço em que a meta da investigação era (é) estabelecer correlações
estreitas entre sintomas e localização da lesão).
A posição de Hécaén não é clara: ele considera não haver diferenças essenciais. Diz
ele que foram “razões corporativas” (disciplinares?) que os estudos sobre as relações entre
cérebro e comportamento acabaram recebendo nomes diferentes
32
. Em sua avaliação, sob toda
a proliferação de nomes, há um só e mesmo objetivo – atingir o conhecimento das bases
cerebrais das atividades mentais (podemos reconhecer, aqui, a influência de Luria).
Vale a pena assinalar, sobre essa “proliferação”, que tem impulso uma
Neuropsicologia Experimental (na década de 1960) sustentada em protocolos
estandartizados. Antes desse tempo, as pesquisas baseavam-se em observações de casos
individuais ou de um conjunto de pacientes com quadros sintomáticos similares. A
investigação, diz-se, era apoiada em descrições de sintomas sem métodos claros, definidos e
validados. Credita-se a essa vertente empirista o fato dela ter contribuído com a introdução de
uma metodologia que propiciou “maior objetividade” à exploração neuropsicológica. Gostaria
de, nesse momento, levantar uma questão. Não seria pertinente indagar se o alegado ganho de
objetividade não significaria perda de olhar clínico, este último sempre instigado pelo que há
de singular na ocorrência de um quadro conhecido? Vou optar pela resposta positiva a essa
pergunta, como procurarei mostrar em momento oportuno.
No início da década de 1970, aparece Introdução à Neuropsicologia, assinado
exclusivamente por Hécaen (1972) - nele, o neurologista aprofunda discussões sobre aspectos
32
Psicologia Fisológica (Charcot, 1891); Neuro-psico-patologia (Ajuriaguerra & Hécaen), que logo se
transformou em Neuropiscologia (Luria & Benton); Neurologia Comportamental (Geschwind). [1]
2
.
33
funcionais (afasias, apraxias, transtornos da percepção). Nessa ocasião, ele oferece a seguinte
definição para a nova ciência: “A Neuropsicologia é a disciplina que trata das funções
mentais superiores e de suas relações com as estruturas cerebrais(idem, p. 5) (ênfase
minha) – nada muda, portanto, em relação a 1946. A publicação de Neuropsicologia Humana
(Hécaen & Albert, 1977) amplia sua reflexão porque questões relacionadas à memória são
focalizadas, assim como são realizadas discussões relativas à plasticidade cerebral e à
recuperação funcional do cérebro.
Na década de 1980, o livro de A. Ellis & A. Young (1988), indica o surgimento de
outra direção. Neuropsicoloiga Cognitiva Humana firma uma tendência que dará destaque ao
conceito de modularidade e, portanto, à exploração de argumentos teóricos e clínicos voltados
para a arquitetura funcional. Há mudança na semiologia clínica porque um outro modelo de
investigação é sugerido: devem-se correlacionar funções preservadas (normais) e
alteradas (sintomáticas) a uma hipótese de processamento normal
33
. Embora seja fato que
a Neuropsicologia Cognitiva tenha se desenvolvido como a vertente teórica mais difundida
(desde os anos de 1980), há outras tendências, em especial as empiristas, representadas por
Princípios de Neurologia Comportamental (Marcel Mesulam, 1984) e Neuropsicologia
Clínica e Neurologia do comportamento (Mihai Ioan Botez, 1987). Nos anos de 1990,
proliferaram publicações em diferentes países, que foram recebidas como importantes
34
e, se
considerarmos que Hécaen esteve presente nas discussões desde 1970, podemos entender sua
importância: ele foi um pioneiro da Neuropsicologia Cognitiva (Geschwind, 1978).
No que diz respeito à linguagem, em particular à escrita, Hécaen dirá que: o código
gráfico não pode ser considerado como uma simples transcrição do código oral: a atividade
gráfica constitui um modo de realização específico” (1977: 67). Como se vê, o foco do autor
é aqui dirigido para a relação fala-escrita. Hécaen parte do entendimento da linguagem como
“código” (oral e escrito) - uma assunção que é expressiva do afastamento do autor da
Lingüística Científica e que é indicativa, ao mesmo tempo, da naturalização da linguagem à
condição de “instrumento” de representação e/ou de comunicação – mas isso não é novidade.
Se levarmos em conta suas considerações, brevemente apresentadas acima, somos
forçados a esperar um discurso organicista sobre a linguagem, mas, é preciso reconhecer, para
que se tenha uma idéia de como trabalha este neurologista, que ele não dá destaque à
discussão etiológica da determinação cerebral/cognitiva das perturbações afásicas – ele é
33
Veremos com Goodglass, que essa proposta é polêmica.
34
No Brasil, temos o livro Neuropsicologia, das bases anatômicas à reabilitação (NITRINI, CARAMELLI e
MANSUR, 1995).
34
neuropsicólogo, afinal – não contesta a causalidade lesão-sintoma e focaliza questões
funcionais (suas definições de Neuropsicologia, acima, antecipam essa direção investigativa).
Hécaen sustenta a hipótese de que a “competência lingüística ... a estrutura
representacional da língua”
35
pode se realizar em diferentes modalidades, entre as quais
destacam-se a fala e a escrita:
“a expressão gráfica articula, em um plano espacial, um sistema de
símbolos que impõe, para sua realização, uma série de regras
específicas [...]. No plano sintático, conferem aos enunciados
gráficos, características especiais, em particular o de finalização de
frases, suprindo, assim, perda de informações que, na expressão oral,
é transmitida mediante segmentos supra-segmentais: através da
entonação, da mímica, dos gestos, do contexto situacional [...]”
(idem: 68).
O autor mira, sob efeito de debates na esfera dos estudos sobre a linguagem, uma
diferença entre a expressão oral/fala (que se desenvolve no tempo) e a expressão
gráfica/escrita (que se desenvolve no espaço). O investigador, como se pode ver, faz menção
a “regras específicas” (sinais gráficos de pontuação em lugar de traços prosódicos, a
determinação menos situacional/contextual da escrita - gestos, mímica). Em que pese os ecos
de sua aproximação aos estudos lingüísticos, este neurologista não sofre os efeitos dos autores
de que parece ter sofrido alguma influência porque ele, de fato, matém um pensamento
normativo sobre as “regras” – tratam-se de regras de pontuação e de ortografia e não
“gerativas” ou “simbólicas”. Além disso (e por isso) a escrita é “código” e, para Hécaen,
acaba sendo, apesar de suas diferenças superficiais em relação à oralidade, representação de
segunda ordem porque, como vimos, a escrita representa a oralidade.
Esse desarranjo ou ingenuidade teórico não obscurece, entretanto, o fato dele ter
procurado introduzir, no âmbito da discussão de neurologistas, maior complexidade sobre
35
Importação clara de expressão introduzida por Chomsky em sua obra e que situa o domínio de discussão e
questões que serão relevantes à Teoria Gerativa. A questão é que a idéia de representação que tem Hécaen nada
tem a ver com a de Chomsly. Trata-se, portanto, de uma apropriação indébita. Não menos simplista , porque
desproblematizada, é a passagem da representação para a realização da linguagem - para Chomsky está aí um
dos mistérios maiores (como o um conhecimento é posto em uso). Sobre isso, ver Chomsky, N. (1965, 1988 e
outros).
35
questões relacionadas à linguagem: a insistência a respeito de que a escrita não é mera
transcrição da fala é infreqüente no âmbito do discurso organicista, como infreqüente é a
preocupação com a leitura e a escrita. É fato que Hécaen acaba não podendo retirar
conseqüências importantes de sua afirmação sobre a relação fala-escrita porque as “regras”
que as diferenciariam são superficiais (pré-teóricas) – a relativa independência entre essas
modalidades não ultrapassa o nível observacional, sensível. De todo modo, é preciso assinalar
que esse pesquisador foi afetado pela clínica, lugar em que ele constata que “ as
desorganizações da escrita ... podem ou não aparecer associadas aos diferentes tipos de
transtornos da linguagem oral” (idem, ibidem)
36
.
O autor não se afastou do testemunho da clínica e, a exemplo dos “grandes mestres”
Goldstein e Luria, duvidou da identidade entre a oralidade e a escrita. Para ele, essas duas
modalidades deveriam ser tratadas (como vimos) como relativamente independentes. Note-se
que o "relativamente" coloca em questão o reconhecimento de uma “certa” determinação da
escrita pela oralidade. Entretanto, reitero, Hécaen não aprofunda esse insight dado seu
descompromisso com um teoria de linguagem. Assim, o que se procura explicitar no
argumento invocado para explicar a diversidade sintomática é de fundo organicista e a
linguagem aí é, como já vimos antes, “comportamento” (fala, leitura ou escrita).
36
Tal afirmação estende-se aos distúrbios de leitura que, diz ele, podem (ou não) estar associados aos distúrbios
da oralidade. Interessante que esse médico traga ainda uma outra constatação clínica: a de que é possível
encontrar quadros em que um sujeito pode apresentar sintoma na leitura mas não necessariamente na oralidade
e/ou na escrita.
36
1.3.2. Goodglass: a Neuropiscologia Experimental
Harold Goodglass, psicólogo americano, doutorou-se pela Universidade de Cincinnati,
em 1951, quando assumiu a chefia do Centro Nacional de Afasia para Veteranos, em
Framingham, Massachussets. Entre 1969 e 1996, foi membro fundador da Academia de
Afasia e do Simpósio Internacional de Neuropsicologia. Foi, durante muitos anos, professor
titular de Neurologia e Neuropiscologia na Universidade de Boston
37
. Ele tem vários trabalhos
voltados para a questão da dominância cerebral; publicou muitos artigos sobre problemas de
nomeação, sobre perturbações de compreensão e sobre o agramatismo
38
. Goodglass
desenvolveu, em colaboração com S. Blumstein e outros clínicos, o famoso Exame de Boston
para Diagnóstico de Afasia (1960), que tem sido bastante utilizado e que foi traduzido para
diferentes línguas
39
. Elaborou, com E. Kaplan, o Teste de Afasia e de Distúrbios
Relacionados e, também, com Wingfiled, outro teste, intitulado Anomia.
Não é de estranhar que Goodglass, sendo psicólogo, considere a linguagem como um
comportamento e a afasia como um acontecimento observável de perturbação no
funcionamento cerebral. Essa noção de linguagem deixa clara a vertente psicológica a que se
filia o pesquisador e a sua crítica insistente à Neuropsicologia Cognitiva (conforme definida
acima por Hécaen). Segundo Goodglass, o problema está em que:
“[a Neuropsicologia Cognitiva] infere a existência de subsistemas de
funcionamentos independentes agindo sucessivamente para produzir
um ato lingüístico (por exemplo: a leitura oral de uma palavra, a
escrita de uma palavra, a nomeação de uma figura etc)(1993: 266)
(ênfase minha).
O ponto crítico central para este psicólogo é que a Neuropsicologia Cognitiva, como
qualquer vertente mentalista, “infere” funcionamentos não-observáveis e, por isso, “não-
37
Ganhou destaque como pesquisador pelo empenho em demonstrar que a fala é sempre mediada pelo
hemisfério esquerdo (tanto em pessoas destras, quanto em canhotas) – hipótese, esta, que desafia a idéia de que o
hemisfério direito é dominante no segundo caso.
38
Recomendo a leitura de Tumiate (2007). A pesquisadora passa por Goodglass e apresenta uma discussão
crítica bastante original sobre o tema do agramatismo.
39
Teste, este, que foi validado para o português por Mansur e Radanovic (2002).
37
científicos”. Assim, dados materiais (manifestações sintomáticas) ou imagens cerebrais são
transformados em efeitos desse funcionamento hipotético (ou “inferências mentalistas”). É
certo que Goodglass quer escapar desse procedimento de investigação e produção teórica –
ele se alinha aos argumentos positivistas (comportamentalistas) sobre o comportamento-
linguagem. Para ele, portanto, os distúrbios de leitura e escrita só poderiam ser “distúrbios
comportamentais”.
Contudo, para análise desse comportamento, ele lança mão de categorias dos níveis
fonológico, semântico e ortográfico (categorias mentalistas, como assinalou criticamente
Chomsky, 1959)
40
. Goodglass afirma ainda que qualquer alteração em uma esfera da
linguagem afeta todo o comportamento lingüístico:
Consistência e freqüência da co-ocorrência prévias (...) são as
maiores influências na limitação de uma recuperação
comportamental. Por exemplo, a leitura de palavra envolve ativação
interativa dos elementos ortográficos, fonológicos e semânticos. A
ativação perturbada do componente fonológico diminui a ativação
dos elementos ortográficos e semânticos que são normalmente
realizados a partir dos elementos fonológicos. A especificação
reduzida dos traços ortográficos e semânticos induz a erros ao longo
de linhas visuais e semânticas” (idem, ibidem).
Goodglass volta-se para a tentativa de descrição da linguagem enquanto
“comportamento desintegrado”. Quanto à explicação, ela não se afasta do discurso
organicista clássico. Longe de explicações cognitivistas, o gesto etiológico é mantido,
contudo, na atribuição de causa orgânica (material) para os sintomas na fala. Faria (2003)
discute as conseqüências desfavoráveis da adoção desse pressuposto etiológico para uma
clínica comprometida com a linguagem – a clínica fonoaudiológica. Tanto em sua dissertação
(1995), quanto em sua tese (2003), a autora insiste no fato de que, mesmo os distúrbios
fonológicos / articulatórios não relacionáveis à causa orgânica, eram tratados do mesmo modo
o que, sem dúvida aponta para a vigência de um só e mesmo raciocínio (no caso médico-
organicista). Lembra Faria: médicos incidem sobre a causa (e não sobre o sintoma) e isso faz
40
Recomendo a leitura de Lier-DeVitto (2006) a respeito dos comentários críticos de Chomsky ao
comportamentalismo skineriano.
38
com que haja, nesse espaço clínico, completo apagamento das questões relativas à linguagem.
Ela assinala, também, para o fato de que o fonoaudiólogo não dispõe dos mesmos
instrumentos, mas que, a despeito disso, mantém o mesmo raciocínio organicista, que em
nada combina com a linguagem.
De fato, as explicações de Goodglass, um neuropsicólogo bastante consultado por
fonoaudiólogos, sobre a ocorrência dos ditos “comportamentos desintegrados” remetem à
lesão cerebral. No entanto, o autor, na convivência com afásicos, acaba se defrontando com
fato de que as alterações da linguagem são heterogêneas – “variam de indivíduo para
indivíduo” - o que o leva a reconhecer que a ocorrência da lesão não basta para esclarecer
e explicar o quadro sintomático e essa é uma observação a recolher de Goodglass. Ele
afirma que:
diferenças individuais pré-morbidas criam suscetibilidade para
sintomas particulares e podem explicar a ausência de marcas
anatômicas distinguindo pacientes que desenvolvem um déficit
psicolingüístico [daqueles] que não o desenvolvem.” (idem, ibidem)
(ênfases minhas).
Além disso, este investigador também observou grande heterogeneidade de
perturbações sintomáticas entre modalidades, como por exemplo, há pacientes que
apresentam distúrbios de leitura, mas não de escrita.
A heterogeneidade é notada por todos os pesquisadores das afasias e eles procuram dar
explicações diferentes para isso. Assim, para Goodglass, a complexidade do canal do output
gráfico favorece maior ocorrência de perturbações na escrita do que na leitura”, além do
mais, “habilidades ortográficas variáveis entre indivíduos criam possibilidade de amplas
dissociações” (idem, ibidem) entre as modalidades de linguagem. Dessa forma, dada sua
formação positivista, para esse pesquisador a heterogeneidade decorre de diferenças de
aprendizagem (e uso) e de habilidades (adquiridas) – vê-se aí o psicólogo.
Mesmo desaprovando ou não-coincidindo com as explicações oferecidas por
Goodglass, entendo que ele toca numa importante questão clínica: a das “diferenças
individuais”, que desafiam as explicações estritamente organicistas. Note-se que o
investigador não ignora a lesão como “causa”, mas acaba insistindo numa explicação que
enfatiza a participação da aprendizagem nas diferenças individuais. Tal ênfase tem limites,
contudo, porque um aporte comportamentalista/experimentalista, não pode solucionar a
39
questão das “diferenças individuais” de modo satisfatório porque não problematiza a
subjetividade e nem chega perto da experiência do sujeito com a linguagem.
Vimos o século XX abrir as portas, no estudo e tratamento das afasias, para outras
profissões e estudiosos de outras áreas do conhecimento, que não a Medicina. Goodglass
representa, até o momento, essa abertura: ele é psicólogo. Abordo, a seguir, pesquisadores e
clínicos do campo da Fonoaudiologia.
40
Capítulo 2
Os fonoaudiólogos e a escrita
Para esta parte de meu trabalho, elegi duas fonoaudiólogas, que abordaram a questão
da escrita de afásicos. Além dessa bibliografia específica ser bastante escassa no campo da
Fonoaudiologia, ela não é propriamente original, como se poderá ver na exposição que segue.
Na extensa pesquisa que fiz da literatura desse campo, Anna Basso e Ana Paula Santana
figuram como exceções – elas introduzem considerações sobre a escrita de afásicos na clínica.
Veremos, também, a grande ligação desses trabalhos com a reflexão dos neurologistas e
médicos, acima apresentada e discutida. Passemos, então, às fonoaudiólogas.
2.1. Anna Basso:
Anna Basso, uma filósofa e psicóloga italiana, dedicou-se à afasia e a afásicos e, com
a participação de neurologistas, instituiu, em 1962, o primeiro serviço destinado à recuperação
da afasia: a Clínica Neurológica de Milão. Ela ficou conhecida por ter elaborado um manual
de reabilitação/Reeducação – Il Paziente Afasico, (1967).
Para nos situarmos frente à reflexão de Basso, parece-me suficiente apresentar o que
ela entende por linguagem:
“uma forma complexa de atividade mental (...) faculdade que os
homens têm para se entender por meio de signos vocais, de traduzir o
conteúdo da sua própria consciência em palavras e estas em
significados” (1977: 12) (ênfase nossa)
41
Como se lê, para essa pesquisadora, a linguagem tem função: é instrumento de
representação de o conteúdo do pensamento com vistas à comunicação. Nessa perspectiva, a
afasia - “perda ou perturbação da função lingüística causada por lesão cerebral” (idem, 23)
– se caracterizaria, principalmente, “[por] um problema de evocação” (idem, ibidem –
problema cognitivo, portanto. Para Basso, o que o afásico não consegue é fazer uso da palavra
intencionalmente. Concluindo: a afasia envolve um déficit cognitivo. Compreende-se,
portanto a posição de Basso, que sempre esteve próxima de neurologistas e de
neuropsicólogos cognitivistas.
Em Aphasia and its therapy (BASSO, 2003), no capítulo 6 lemos que a linguagem
escrita estava “coincidentemente [tão] prejudicada como a linguagem oral” (2003: 115),
razão pela qual ela decide dedicar este capítulo à problematização dos referidos distúrbios. De
início, a autora chama a atenção para o fato de que, em termos de classificação
neuroanatômica dos distúrbios de leitura, tem-se três diferentes tipos de alexia (parieto-
temporal, occipital e frontal ou “terceira alexia”) e quatro de agrafia (agrafia afásica, agrafia
pura, agrafia apráxica e viso-espacial). A autora faz laço com Benson & Ardila (1996),
pesquisadores eminentes do Centro de Boston e considera ser a classificação acima, oferecida
por eles, a mais recente e eficiente.
Basso esclarece o que estaria em jogo na referida classificação. Sobre a leitura, temos
que:
1. na alexia parieto-temporal, diz ela, os distúrbios de leitura geralmente vêm
acompanhados de distúrbios de escrita. Na maioria das vezes, a capacidade de
compreensão da escrita está alterada - dificilmente consegue ler números e não lê a
própria escrita. No entanto, a linguagem oral, nesses casos, fica razoavelmente
preservada - pode-se atingir recuperação parcial da linguagem escrita.
2. Na alexia occipital, o paciente apresenta perturbação apenas na leitura. Daí ela ser
chamada, também, de “alexia pura”. O paciente pode, de acordo com Basso,
reconhecer/identificar algumas letras mas não lê palavras, com exceção de algumas e,
nesse último caso, entende o que leu.
3. A alexia frontal vem associada à afasia de Broca. Os pacientes podem ler letras
isoladas, embora não possam escrevê-las. Eles também lêem e compreendem palavras
(mas não sentenças).
42
Sobre a escrita, Basso nos diz que:
1. A agrafia afásica ocorre em quase todas as afasias, mas os sintomas são diferentes
dos apresentados na fala. Por exemplo: na afasia de Broca, há agramatismo na escrita,
mas não na fala.
2. Na agrafia pura, assim como na alexia pura, o paciente não tem nenhum outro tipo de
sintoma na linguagem, a não ser na escrita.
3. A agrafia apráxica, como o próprio nome referencia, é uma desordem motora,
causada pela apraxia (pode ou não estar associada a algum tipo de afasia). Nos casos
em que esse distúrbio se encontra associado aos da fala, esta fica mais preservada.
4. A agrafia visual, diferentemente, não compreende alteração na fala e sim a alteração
visual.
Com relação aos distúrbios de escrita, acima, Basso afirma que eles são mais
complexos do que os de leitura. Para justificar essa hipótese ela se apóia em Luria (1970),
segundo quem as habilidades envolvidas neste processo (análise e síntese das palavras, treino
motor, etc.) são mais complexas:
para escrever uma palavra, a primeira função ativada é sua forma
fonológica, seguida de sua análise acústica, identificação da
seqüência de fonemas que compõe a palavra para, finalmente,
traduzir cada fonema em grafema” (idem, 117).
É preciso dizer que se a justificativa é luriana, os perfis diagnósticos, nos quais a
autora se apóia são aqueles idealizados por Benson & Ardila, como já foi mencionado. Eu
disse ser preciso fazer esse assinalamento para dar relevo ao argumento, que levantei, de que
num programa organicista, em que também se movimenta Basso, proliferam categorizações,
como é de se esperar, já que visa à nosografia
41
. Interessa-me, nesse momento, recuperar,
ainda, o que enunciou Hécaen (1977). Nesse tipo de programa científico, diz ele, trata-se de:
41
Ver discussão sobre nosografia e diagnóstico, em Arantes (2001) e Trigo (2003).
43
(1) observar as desordens comportamentais (incluindo fala e escrita);
(2) procurar localizar a causa (em termos de Neuroanatomia das lesões) e
(3) compreender e explicar o funcionamento e as disfunções do cérebro, entendido como
substrato das habilidades cognitivas.
Não é outra a direção de Basso, como procurei mostrar, indicando sua relação com
neurologistas e a franca adoção do quadro nosográfico estabelecido por Benson e Ardila. Ela,
a partir deles, destaca os problemas na linguagem e atribui a eles explicações organo-
cognitivistas. Sua definição de linguagem, como assinalei de início, prepara o caminho para a
direção organicista que adota.
Resta, por fim, considerar como os distúrbios de leitura e escrita são tratados no
âmbito da clínica de reeducação, proposta pela autora. Basso afirma ter como objetivo
“enfrentar, essencialmente, um problema fundamental: [...] reconstruir, no paciente, o que
ele perdeu: a linguagem” (1977: 12). Vejamos o que ela sugere como método de “reeducção”
ou de “reconstrução” da linguagem. Para a realização do diagnóstico, diz ela, deve-se utilizar
testes padronizados – único instrumento que “permitiria uma avaliação cuidadosa das
capacidades residuais do paciente” (idem, ibidem)
42
.
Quanto à terapia, ela propõe certos exercícios de compreensão e de produção,
baseados via de regra, em repetições, nomeações, descrições de figuras e realizações de
narrativas. A escrita aparece unicamente como meio facilitador do processo de recuperação
da “linguagem oral”. Isso equivale a dizer que o paciente que ainda apresenta esta capacidade
preservada, utiliza-a como reforço das “produções orais”, visando à sua estabilização. Por
exemplo: após a repetição oral de uma palavra, ele deve escrever a palavra repetida. Entende-
se, assim, que o foco de Basso seja a fala, embora ela introduza considerações sobre a escrita,
essas considerações deixam para ela – a escrita - nada mais do que a função de ser suporte
para a fala.
Mas, pergunto: “o que se deve pensar e fazer quando o que está perturbada é a
escrita?”. Não se pode saber, mas Parente (1997) assinala que:
42
Recomedo a leitura de dois trabalhos que discutem a aplicação de testes na avaliação de afásicos: Catrini
(2005); Coudry, M. H. (1988); Fonseca (2002 e outros); Tésser (2007). Não é objetivo desta pesquisa retomar tal
discussão. Sendo assim, penso ser suficiente indicar fontes bibliográficas representativas de minha posição frente
às avaliação da linguagem e dizer que testes não apreendem a natureza da relação sujeito-linguagem porque só
podem encontrar o que buscam ou seja, o que já está previsto ocorrer no quadro nosográfico.
44
“Basso (1977) não recomendava um trabalho de escrita com o
paciente lesado cerebral, por acreditar (na época) que, apesar das
possibilidades da recuperação da linguagem oral, as falhas na
leitura e na escrita são irrecuperáveis” (op. cit: 35).
Tal pontuação nos faz concluir que, quando a escrita está perturbada, ela não é
trabalhada porque falhas na escrita são “irrecuperáveis”. Ela segue, de fato, a cartilha de Luria
– a escrita é mais complexa e o problema mais severo do que na fala. Basso, ao que tudo
parece indicar, acredita que ser a escrita irrecuperável - impossível de “reeducar”, de
“reconstruir” e, se assim for, nesse ponto particular ela e Luria estão bastante distanciados,
como veremos.
A escrita está, então, totalmente subordinada à fala: é sua “mola propulsora” e
“reforçamento” – é um instrumento. Sua proposta de reabilitação apóia-se francamente no
discurso médico e a terapia é, sem dúvida, corretiva porque ligada a um pensamento
comportamentalista, em que o outro-terapeuta é “treinador” (estimula, reforça e visa à
supressão de sintomas). Lembro, porém, que a escrita não entra no rol dos sintomas ou das
habilidades a serem reabilitadas. Importa, ainda sublinhar que Basso não nos permite refletir
ou inferir sobre a relação do paciente afásico com sua escrita/leitura, nem sobre a relação de
afetação entre as modalidades oral e escrita. Podemos listar, nessa seqüência, as
fonoaudiólogas Mansur (2004) e Ortiz (2005).
Passemos, a seguir, para Santana (1999), que rompe com o ideal de
reeducação/reabiltação e propõe uma clínica em que a etiologia ou a descrição sintomática
cede espaço à manifestação sintomática e seu impacto social.
45
2.2. Santana: um outro prisma para a avaliação da linguagem
Santana, fonoaudióloga brasileira, pesquisadora vinculada ao Centro de Convivência
de Afásicos do IEL/ UNICAMP
43
faz, em seu trabalho de mestrado (1999), uma leitura crítica
da afasiologia, mais especificamente, “do lugar da linguagem escrita na afasiologia [e de
suas] implicações e perspectivas para a neurolingüística”
44
.
No que diz respeito à escrita na afasia, Santana chama a atenção para o fato de que a
ela tenha sido prioritariamente abordada como “um simulacro da fala culta. Isso ocorria
devido á concepção que se tinha da escrita: como uma representação da oralidade” (idem,
ibidem). Afirmação intrigante já que, nela, se cruzam duas concepções que considero
distintas, quais sejam, a que postula que a natureza da linguagem escrita pode ser traduzida
em termos da língua (e não fala culta) e, de outro lado, a de que ela seria “representação da
oralidade”.
Será a partir da Neurolingüística que ela tomará uma posição relativamente ao que
considera o modo mais pertinente de abordar a escrita na afasia. Santana recupera, primeiro,
os pressupostos básicos, que sustentam modelos neuropsicológicos da escrita. No primeiro, o
modelo cognitivista, sua crítica recai sobre a exclusividade dos “processos mentais”, que
ignoram totalmente outros fatores, como “as origens sociais e culturais do letramento”
45
.
Nessa perspectiva, diz ela, o indivíduo é “o único responsável pelo processo de aquisição de
escrita, uma vez que pressupõe que o conhecimento e habilidades têm nele sua origem”
(idem: 72).
Como se pode retirar de suas críticas aos procedimentos tradicionais na afasiologia,
põe-se ao lado de uma abordagem sócio-interacionista, alicerçada nos pressupostos
vygotskyanos, assinala a determinação social do desenvolvimento cognitivo. Segundo esta
autora, este tipo de reflexão oferece indícios de que a reestruturação da linguagem, pelo
afásico, deve “partir do social para o individual”. Porém, ainda segundo Santana:
43
“Centro” coordenado por Edwiges Maria Morato e Maria Irma Hadler Coudry, que funciona nas dependências
do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e integra as atividades da Unidade de Neuropsicologia e
Neurlinguística (UNE).
44
Título do referido trabalho.
45
O termo letramento significa o uso que um indivíduo faz das habilidades de leitura e escrita (ver Soares 1999).
Uso, portanto, social da escrita. Daí a importância, salientada pela autora, da não marginalização de tal termo.
46
“este tipo de reflexão tem sido negligenciada no campo da afasiologia
Assim, a partir do momento em que a Lingüística alarga seus
horizontes, ultrapassa a questão da língua stricto sensu e incorpora
questões discursivas, o universo de discussões amplia-se. Trata-se,
desta forma, de uma mudança de atitude em relação ao objeto de
estudo” (idem: 73).
A aproximação à Lingüística tornou-se necessária, então, para que o universo de
discussões sobre a linguagem escrita na afasia fosse ampliado. A partir de uma abordagem
lingüística, iniciada por Jakobson (1654), introduz-se, para ela, um “olhar” estritamente
lingüístico para as afasias: olhar capaz de dar impulso à pesquisa clínica. Santana não vai
além de afirmar seu reconhecimento da contribuição de Jakobson, que foi o pioneiro dos
estudos lingüísticos sobre a afasia. Trata-se, contudo de um autor que ela não inclui em sua
discussão e nem diz de que ordem teria sido sua efetiva contribuição para a “pesquisa
clínica”. Por guiar-se por uma noção de “social”, Santana adota uma “abordagem discursiva”
que, segundo ela, não reduz a linguagem a aspectos estritamente gramaticais.
Levando-se em conta os modelo neuropsicológico e neurolingüístico, a autora afirma
que: “[...] não se pode concordar com um tal reducionismo biológico, igualmente não se
pode concordar com um reducionismo lingüístico” (idem: 74). Isso porque a afasiologia,
segundo a autora, é uma área de estudos interdisciplinares - uma área que se encontra na
intersecção das ciências humanas e cognitivas. Para ela, só assim é possível “abordar o
fenômeno afásico: em sua dimensão lingüística e neuropsicológica” (idem, ibidem). Note-se
que, nessa perspectiva, Santana como que propõe uma "neuropsicolingüística", em que, na
verdade, serão operativos os aspectos neuro e psicológico, mas não os lingüísticos (remeto o
leitor à citação acima em que procuro enfatizar esse ponto).
Essa composição entre áreas reflete um ideal de interdisciplinaridade como caminho
para o tamponamento de mistérios que parece perpassar a maioria dos trabalhos na
afasiologia. Como discutiu Landi (2000, 2002, 2006), essa insistência deve ser lida como
sintoma nas teorizações”. Isso porque:
“a interdisciplinaridade assume o caráter de um “mutirão”, ou seja,
de um grupo de indivíduos trabalhando e dividindo suas habilidades,
irmã e solidariamente, para produzir resultados benéficos para todos
coletivamente e cada um separadamente. A idéia é a de que com base
47
em um esforço de cooperação e harmonia em função de um “bem
maior” – o progresso da ciência – cumpre-se a meta de beneficiar a
todos e a cada um” (2002: 444).
Note-se que não é a tentativa de relação com outras disciplinas o alvo da crítica de
Landi e, sim, o movimento de aplicação irrefletida que acaba produzindo como que uma
“colcha de retalhos”, teoricamente mal “costurada”. A relação desejável e necessária entre
disciplinas deve se fazer a partir de um "diálogo teórico entre elas" (LIER-DEVITTO, 1994;
apud LANDI, 2001). Diálogo teórico, aqui, é termo que se opõe ao movimento de aplicação
acima referido.
Penso que Santana cede ao ideal da interdisciplinaridade - sua crítica a reducionismos
não faz pressão sobre teorizações. Na verdade, ela entende como reducionista uma abordagem
que considere apenas “aspectos neurológicos” ou, apenas aspectos “cognitivos” ou ainda
apenas “aspectos lingüísticos”. Ela gostaria de não exclui nenhum e pretende incluir, nessa
lista, “aspectos sociais” e, ao final, fazer uma costura “não-reducionista”. Esse passo, porém,
não se realiza: a harmonia visada entre todos esses aspectos não acontece – e nem poderia –
porque conceitos, forjados em campos heterogêneos, que têm objetos e objetivos distintos
são, por definição, mutuamente excludentes. Assim, o ideal de interdisciplinaridade é, por
natureza, diz Lajonquière (1992) “uma operação tão arriscada como caminhar sobre uma
corda bamba, uma operação teórica inviável (apud LANDI, 2002: 444)) (ênfase minha).
A "abordagem enunciativo-discursiva" (COUDRY, 1988), a qual se filia Santana
46
,
assume que o sujeito afásico está inserido em atividades significativas
47
de linguagem,
atuando como alguém capaz de produzir e interpretar sentidos. Sendo a escrita uma atividade
de construção de significações, diz ela ser necessário trabalhar a fala e a escrita “numa
relação de interdependência, como modalidades da linguagem” (1999: 89) porque a autoria
assumida pelo sujeito apóia-se tanto do deslizamento da modalidade oral para a escrita, como
vice-versa. A oralidade e a escrita podem, acrescenta ela, ser transformadas em práticas
sociais e fazer parte de contextos em que elas se aproximem ou se distanciem.
A pesquisadora quer dizer, com isso, que “a oralidade e a escrita são influenciadas
pelos mesmos aspectos e condições de produção” (op.cit:90). Mas, se a relação entre a
46
No trabalho de Santana, comparecem autores como Austin (1962), Searle (1969), Ducrot (1972), Benveniste
(1970), Trudgill (1974), Labov (1972), Franchi (1977), Osokabe (1979), entre outros.
47
Por “atividades significativas da linguagem”, deve-se entender aquelas que num contexto e para um sujeito,
adquirem sentido e significado.
48
oralidade e a escrita é tratada como sendo de interdependência, como podemos pensar
contextos que as aproxime ou as distancie? Quais seriam esses contextos, pensando em
afásicos, que privilegiariam mais a fala e quais a escrita? Note-se que, numa abordagem
enunciativo-social, como esta, o social-contextual toma a dianteira porque ele, e não a
linguagem, é o aspecto determinante – o que nos leva ao problema da interdisciplinaridade em
que um dos pólos fica diminuído porque sem força de determinação – na verdade, nem o
“neurológico” tem relevo em sua discussão - ele está suposto (mesmo porque a etiologia não é
discutida ou questionada) mas, diferentemente de Basso, não há, em mesmo eleição de um
quadro nosográfico entre os muitos que já produziu a Neurologia. Pode-se talvez dizer que
sem querer, Santana é reducionista: o Neurológico ou o Lingüístico estão diminuídos ou
minimizados em seu trabalho em favor do par psicológico-social.
49
2.2.1. Considerações clínicas:
Iluminando o comentário que fiz acima, temos que, segundo Santana, as práticas
sociais do indivíduo têm sido deixadas de lado durante o estudo da linguagem escrita na afasia
(vem à tona, aqui, o “psicológico”). Assim, a “heterogeneidade do sujeito” (palavras da
pesquisadora) e o papel que a escrita tem (ou tinha) para ele, acabam sendo apagados pelos
testes – com o que concordo integralmente. Por esse motivo, ainda ela, torna-se importante
assumir a questão do sentido como primordial, fazendo com que práticas terapêuticas se
estabeleçam através da (re)apresentação do sujeito afásico aos diversos modos de linguagem
escrita, sempre relacionando-os “com seu valor social e seus processos de intersubjetividade
e de circulação de sentidos e conhecimento“ (idem, ibidem) e, aqui, aparece com força o
“social”.
Assim, após definir a teoria que embasa sua clínica, a autora discorre sobre como se dá
essa prática. É importante esclarecer que o estudo realizado por Santana foi feito no CCA
(Centro de Convivência de Afásicos) da UNICAMP, no qual as sessões são semanais e duram
duas horas, sendo que:
na primeira hora desenvolve-se um trabalho lingüístico-discursivo
em torno da agenda pessoal dos participantes, do noticiário geral
(ouvido ou escrito) e de atividades mais dirigidas (palestras,
discussões temáticas, jogos....), após o que se faz um intervalo”
(1999:91).a segunda, “é dedicada ao trabalho de expressão
teatral, através do qual procura-se levar em conta, por meio de
atividades que envolvem pantomima e improvisações, a percepção de
possibilidades significativas e expressivas que se abrem a partir da
interação linguagem-gestualidade” (idem, ibidem).
A autora ainda ressalta que:
“as atividades de leitura realizadas no CCA, longe de terem como
objetivo uma leitura vozeada em que se lê para provar que se sabe
50
ler, têm uma função social e intersubjetiva, ancoradas na partilha de
conhecimentos, temas e opiniões” (1999:92).
A pesquisadora entende como “trabalho lingüístico-discursivo” a tentativa de recortar
contextos relevantes para afásicos. Isso feito, passa-se, por meio da observação de
“dramatizações” a uma espécie de avaliação das possibilidade lingüísticas dos pacientes, ou
melhor, procura-se definir a extensão do prejuízo expressivo. Nessas situações, leitura e
escrita podem ser utilizadas para que as metas sejam atingidas. Contudo, apesar da autora
fazer menção à função de tais atividades, ela não esclarece como ou quando elas são
implementadas – o que torna obscura a afirmação teórica de que há “contextos privilegiados”
que aproximam e/ou distanciam fala, leitura e escrita – não se sabe que contextos são esses,
nem como são selecionados.
O leitor não chega, igualmente, a saber qual seria a natureza da participação do clínico
nas atividades porque lê-se, no texto de Santana, apenas ser necessário apresentar “modos de
linguagem escrita” aos afásicos para que ele seja “re-inserido no convívio social”. Cabe
indagar, porém, se bastaria apresentar aos afásicos materiais escritos diversos para que uma
recuperação da linguagem escrita pudesse ocorrer. É fato que a autora pôde observar aquilo
que todos os pesquisadores e clínicos que se aproximam da afasia puderam notar: que
sintomas na fala nem sempre aparecem na escrita, e vice-versa. Santana diz que muitos
pacientes utilizam a escrita como “prompting” para a oralidade, isto é, eles escrevem o início
de palavras e, eventualmente, as completam oralmente. Aqui ela fica bem perto de Basso.
Sucintamente: mesmo buscando propor um olhar mais amplo e abrangente para as
manifestações afásicas, Santana não escapou, parece-me, à “colcha de retalhos mal
costurada”, decorrente do risco da interdisciplinaridade, como apontamos a partir das
considerações de Landi (2001) e Lajonquière (1992). Já, quanto à escrita, a situação é a
seguinte: escrita é instrumento, na medida que serve para mediar relações sociais (tão
prejudicada entre afásicos) e para “empurrar” a fala – é prompting, segundo Santana. Devo
acrescentar a essas considerações críticas que, do ponto de vista descritivo, não se pode dizer
que sua proposta suplante a dos Neurologistas - que, decididamente, é muito mais refinada,
mesmo sendo de inspiração “gramatical”. Na Fonoaudiologia, portanto, o cenário é este ... ou
quase este
48
.
48
Digo “quase” porque há a Clínica de Linguagem, que congrega fonoaudiólgo.
51
Capítulo 3
O relato de um afásico e considerações teóricas sobre a escrita
3.1. Zazetsky: a vivência de um afásico
Esta parte de meu trabalho inicia-se com o relato de um paciente afásico, Zazetsky,
atendido por Luria nos anos 40. Oliver Sacks transforma esse relato em livro, The man with a
shattered world, cujo “o verdadeiro autor é o herói” (1972: xix). Ele recolhe e organiza
pilhas de notas (3.000 folhas!) deixadas por Zazetsky, depois de vinte e cinco anos,
tentando descrever os efeitos terríveis da lesão cerebral” (idem, ibidem). Esse jovem russo,
vítima de um TCE (traumatismo crânio-encefálico) provocado por um tiro, durante a primeira
guerra mundial, disse que não parecia ser, para ele próprio, a mesma pessoa. Ele se sentia
como se “tivesse acabado de nascer”, como se precisasse a “aprender tudo de novo”.
Zazetsky não lembrava nomes objetos ou pessoas, não podia falar o que queria dizer e não
conseguia ler/escrever. Os efeitos sintomáticos manifestaram-se, portanto, para além da fala -
o que torna este caso de particular interesse para este trabalho.
Segundo o próprio afásico, a “perturbadora descoberta” de que ele havia ficado afásico
aconteceu ao se deparar com inscrições gráficas na porta do banheiro masculino, quando
ainda estava no hospital. Ele sabia tratar-se de escrita, mas não identificava letras e, segundo
relata, tudo se passou como se as inscrições estivessem feitas em língua estrangeira e, mesmo
que se concentrasse ou se detivesse frente às inscrições, nada se modificava. A enorme
surpresa era essa: ele não podia ler: “Fui até o a entrada à procura de um banheiro ... Fui
até lá e olhei para o sinal na porta. Eu fixei o olhar e examinei o escrito, mas não conseguia
ler nada. Letras estrangeiras estavam impressas ali – o que mais me aborreceu é que não
eram russas”(idem, 62). Para ele, a perplexidade veio quando ele perguntou a outro paciente
se era ali o banheiro. A resposta foi: “O quê que há: você não sabe ler?”. De fato, o que
52
havia com ele que era alfabetizado, escolarizado e familiarizado com leitura/escrita? Como
poderiam essas atividades tão corriqueiras e estáveis ser perdidas? Bem, a suposição primeira
foi a de que ele estaria com algum problema de visão e, por isso, foi submetido a exame
oftalmológico. Constatou-se que o problema não era de natureza visual, mas de outra ordem
porque ele conseguia segmentar elementos, embora fosse incapaz de nomear uma letra
sequer.
Zazetsky tinha o hábito de ler jornal – o Pravda. Depois do acidente cerebral, essa
atividade regular foi interrompida porque ele não podia nem mesmo dizer se o jornal (que
antes lia diariamente) estava escrito em sua língua materna. Numa determinada edição,
contudo, viu impressa uma fotografia do Lênin, mas não pôde reconhecer “aquele nome tão
conhecido”. Os sentimentos de absurdo e de estranhamento de si foram trazidos pelo seu
sintoma que, como tem assinalado Fonseca, correspondem a uma experiência só vivida por
afásicos. De fato, quem mais, senão um afásico, pode apresentar esse mistério de poder ver,
mas não ler uma escrita? Luria supôs que seu paciente devesse ser (re)alfabetizado.
Zazetsky procurou a ajuda e no primeiro encontro, “ficou envergonhado” porque
quando letras eram apontadas, ele não era capaz de lê-las. Ele só pôde sentir-se mais aliviado
quando chegou a reconhecer letras por relaciona-las a palavras conhecidas, quando pôde
ler seu nome ou o nome dos seus irmãos. Mas, para isso, era preciso soletrar esses nome, era
preciso recitar “em voz alta” o alfabeto para que, nessa seqüência, ele pudesse pinçar a letra
em questão. Foi Zazetsky, que, como relata, “criou” ou achou esse caminho. Note-se que
Zazetsky só lia, em um primeiro momento, seu nome e o dos irmão. Este é um aconteciento
bastante notado e registrado por afasiologista – voltarei a ele em momento oportuno. Depois
de meses ele recitava a seqüência inteira do alfabeto, embora não pudesse recordar letras
isoladas. Segundo Zazetsky, ele se esforçava para não esquecer o que havia lido, mas o
máximo que conseguia era reter uma seqüência (nonsense) de três letras. Naturalmente, a
compreensão de frases era impossível, que dirá de textos: o sentido se perdia, diluído no
exercício de recitação. A explicação de Luria para o desempenho de Zazetsky foi, como seria
de se esperar, organicista. Ele sustentou que o método empregado por Zazetsky foi correto e
eficiente porque estimulava uma habilidade não prejudicada pela lesão e afirmou que
apenas a parte do córtex, responsável pela função viso-espacial, havia sido afetada, mas não a
função motora-oral. Assim, recitar uma seqüência articulada e memorizada ou reconhecer na
escrita segmentos dessa seqüência, corresponderiam a habilidades preservadas, que foram as
âncoras desse “método de associação/aprendizado” (diz Luria).
53
A escrita de Zazetsky era tão impossível, de início, quanto sua leitura. Ele nem
mesmo conseguia manter “postura de escritor”: segurava a caneta e não sabia o que fazer
com ela. Antes do acidente cerebral, escrever era “habilidade automatizada”, mas só podia
acontecer (e mau) através de tentativas voluntárias: ele “precisava pensar” em como
escrever, mas pensar a escrita não foi solução. Zazetsky afirma que sabia quais letras
deveriam ser utilizadas, mas que não sabia como grafá-las. Podemos perguntar: “o que sabia,
de fato, Zazetsky?”. Ele reconhecia as letras como pertinentes a um sistema mas não tinha
controle sobre o movimento imposto por ela. Ele sabia, como diz, o quê queria escrever, mas
não sabia como. Quando escrevia, sua escrita não podia ler – não podia avaliar se o resultado
final havia sido satisfatório. Zazetsky se surpreeu quando subitamente escreve sangue - a
escrita veio “sem pensar”, “num movimento rápido”. Luria reitera que a lesão hemorrágica
havia danificado apenas a capacidade visuo-espacial, mas não a cinético-motora – nada
impedia, portanto, uma escrita rápida e automática e acreditava bastar que seu paciente
reativasse essa habilidade “cinético-motora” para voltar a escrever. Em outras palavras, Luria
acreditava que bastava Zazetsky ser re-alfabetizado para que conseguisse voltar a ler. Poderia
ele ser re-alfabetizado? O que significaria isso tendo-se em vista as declarações desse afásico
de que “sabia” o que queria escrever?
Se retomarmos os conceitos de linguagem e de escrita em Luria, apresentados no
primeiro capítulo, podemos lembrar que, na aprendizagem da escrita, quando a criança
começa a escrever ela não opera, a princípio, com idéias. Dito de outro modo: a escrita inicial
não é instrumento de representação do pensamento. Mas, para que venha a sê-lo, sua
aprendizagem implica o ato consciente de apreensão de letras e palavras como instrumentos
de expressão. Essa tomada de consciência envolve operações intermediárias para que a
escrita finalmente se torne um instrumento de expressão exterior do pensamento. São elas:
individualização dos fonemas, representação desses fonemas em letras, síntese das letras na
palavra e passagem de uma palavra à outra. Se a análise consciente dos meios de expressão
constitui a característica fundamental da escrita, não se deve perder de vista que essa é
uma etapa no processo de aprendizagem. Isso porque a automatização dessa escrita inicial
corresponde à transformação da ação consciente em inconsciente. Partindo desses argumentos
de Luria, podemos afirmar que Zazetsky não conseguia escrever/ler pois o que antes era
automático (inconsciente) havia deixado de ser. Luria diz ainda que há etapas para que tal
modalidade venha a ser automatizada. Ele acredita que a aquisição da escrita é um processo
hierarquizado, isto é, que se aprende a escrever partindo das letras para as sílabas; dessas para
as palavras e, finalmente, para o texto, ou seja, é esse, para ele, o processo de alfabetização.
54
Mas, note-se, a questão consciente-inconsciente, conforme colocada por Luria, fica bastante
problemática, pelo que se lê acima.
Após 6 meses, Zazetsky podia ler e escrever palavras - sua escrita permanecia bastante
prejudicada e foi caracterizada da seguinte maneira: (1) enunciados curtos, (2) predominância
de preposições soltas , (3) utilização de apenas “ponto final”. A leitura persistia truncada e
lenta, dependente da segmentação de palavras em sílabas e letras e ... Zazetsky não lia o que
ele próprio escrevia
49
. Mesmo assim, em condição tão precária de leitura e escrita, ele
decidiu fazer anotações sobre sua condição: quis escrever para, além de “treinar a leitura e a
escrita”, “informar os leitores sobre sua condição afásica”. Sua escrita perdurou esfacelada
por 25 anos e Zazetsky não podia ler o que escrevia. Desse modo, a relação entre querer/saber
e escrever é misteriosa. Vale dizer que Zazetsky copiava palavras para escrever e que não
eram palavras quaisquer - mesmo a simples cópia ultrapassava o gesto motor: há presença-
sujeito frente à alteridade do texto, como veremos ocorrer, também nos casos que
apresentarei no próximo capítulo.
Devo reiterar, nesse momento, que parto de pressuposto outro sobre linguagem e
sujeito, e a clínica com afásicos revela outras facetas da questão para mim. A leitura que eu
faço, sobre o sintoma de Zazetsky, é outra. Partindo de uma proposta em que a etiologia não
esgota a questão, podemos levantar outras que focalizem a relação afásico-escrita. Desde
uma posição teórica que reconhece a ordem própria da língua e sua alteridade em relação
ao falante certamente nos afastamos, também, por exigência lógica (e também clínica) do
sujeito do controle (Zazetsky pode muito bem ser tomado como um exemplar). Nessa direção,
apresento, a seguir, delineamentos teóricos sobre escrita. Eles têm como fonte e fundamento
as concepções de linguagem e de sujeito que dão sustentação a esta dissertação, como
anunciei na Introdução.
49
Fato que ilustra a heterogeneidade abordada nesta trabalho: Zazetsky não lê nem o que quis escrever – Mirela,
um dos próximos caso a ser abordado, não escreve o que quer mas lê o que quer.
55
3.2 Escrita: ocorrências e teorizações
O livro de Sônia Borges (2006)
50
, O quebra-cabeça: a alfabetização depois de Lacan,
como o título procura deixar claro de início, dá relevo ao equívoco contido na idéia de que a
escrita seja representação do pensamento, de que ela seja representação de segunda ordem.
Assim, o esquema cognitivista clássico é recusado pela autora:
Diz ela:
“ é [noção] central na Psicologia Cognitivista, que concebe [a
escrita] como inerente a qualquer atividade mental e a descreve como
um fenômeno psíquico da ordem da consciência, por ser esse um
processo cognitivo ... e intencional ...” (2001, 26).
Borges atinge, através da crítica à noção de cognitivista de representação, a de sujeito
epistêmico, como não poderia deixar de ser (sujeito como suporte e em controle de operações
mentais). Nesse espaço, sujeito é indivíduo (in-diviso, não-dividido); é uma unidade
destacada do mundo. O outro apenas servirá de fonte material da linguagem e esta, é matéira a
ser analisada por ele para ser internalizada como conhecimento. Esse processo leva ao
controle sobre o outro (regulação externa), sobre o mundo (para dominá-lo e transformá-lo) e
sobre si (auto-regulação). A escrita não poderia fugir a essa regra: o sujeito pode expressar
conhecimentos/emoções, assim como realizar intenções e vontades, utilizando-a como
instrumento. A proposta de Borges é outra, no que diz respeito à linguagem, ao sujeito e à
relação entre eles.
Representação, em seu trabalho, tem outra definição – a da psicanálise, que “implica a
dissolução ... da dicotomia sujeito/objeto e interioridade/exterioridade” (Borges, 2006: 103),
quer dizer, a dissolução da concepção-raíz sobre a existência de um sujeito com capacidades
perceptuais e analíticas refinadas o suficiente para segmentar o externo (incluindo aí a
50
Tese defendida em 1995, na PUCSP, cujo título, modificado para publicação era O quebra-cabeças da escrita:
a instância da letra na alfabetização
Pensamento Fala Escrita
56
linguagem) e para reconhecer o outro como semelhante. Note-se que, ao retirar do sujeito tais
capacidade, ele emerge como “em desamparo” (como disse Freud). Nessa outra condição, ele
nasce como objeto do outro, de que depende, inclusive, sua sobrevivência biológica. Há
outras conseqüências: desprovido de capacidades analíticas e dependente do outro, as marcas
estruturantes de uma vivência são inconscientes (mesmo que aflorem); Elas são, no traçado da
vida do sujeito, determinantes, embora estejam fora do controle do sujeito. Enfim,
representações têm relação com o inconsciente, com seu funcionamento (que implica
recalque... esquecimento).
Nesse enquadre, a escrita não pode ser considerada representação de um estado interno
(não há interno-externo), nem da oralidade (ambas são facetas da possibilidade de relação do
sujeito com a linguagem). Oralidade, escrita, gesto não são entidades autônomas e se o
fossem, não poderiam ser relacionadas entre si: há um funcionamento em jogo – o da
linguagem, que Saussure (1916) nomeou la langue e que Lacan nomeou de Outro (tesouro
dos significantes), articulando, nessa expressão, la langue e uma língua – aquela que fala o
sujeito e àquela a que ele se dirige para fala/escrever. Diz Borges:
“reconhecer o funcionamento da língua possibilita que as
investigações sobre a aquisição da escrita não mais reduzem à
relação dual oralidade/escrita, mas sobre a relação triádica
oralidade/escrita/língua. Reduzir este processo à mencionada relação
dual implica não só a dicotomização dessas formas, linguagem oral e
escrita, como a substancialização, de modo que a linguagem oral é
tomada como referente, e a escrita, como referência, numa relação
que é da ordem do signo” ( 2006:131)(grifos meus)
Assim, a relação sujeito-objeto, tão cara aos aporte cognitivistas é abandonada por
uma relação triádica: tanto na oralidade, quanto na escrita ela estará em questão:
LÍNGUA/OUTRO
sujeito outro (fala / escrita outra)
O inesperado e imprevisível podem, então, aparecer porque a língua é instância
equivocizante porque é alteridade e a dimensão da não-coincidência (entre Outro e
57
sujeito, assim como entre Outro e outro) se manifestam. O funcionamento da Língua/Outro
participa nas relações entre as letras, blocos de letras, entre palavras, produzindo
deslocamentos inesperados, como Borges mostra nas produções escritas de Palloma e
Rãimora.
Era uma vez um bichinho
Era uma vez um bixilom
malloma de demíre.
raide demar bom
os doma de inio
os dema doi
os dmo doi
Ds dosra demoú
A dma dãos
Palloma
A autora procura iluminar o funcionamento que comanda produções orais ou escritas,
que vem à luz nas estranhas combinatórias de letras. Falar em funcionamento da língua, desde
esta perspectiva é introduzir as operações metafórica e metonímica como leis da
linguagem. No texto de Palloma, vemos diversas composições estruturadas por montagens e
desmontagens (De Lemos, 2006): substituições de letras, palavras, frases (operação
metafórica), que alteram a seqüenciação sintagmática (operação metonímica). Fato é que algo
sempre se mantém, garantindo a relação entre os segmentos, mantendo coesão estrutural
entre eles (LIER-DeVITTO, 1998, 2003) ). Para Borges, importa iluminar esse jogo
simbólico em que palavras “ganham” ou “perdem” letras, vão se transformando (menos
interessante é procurar localizar, assinala a autora, de onde vêm “x” ou “y”). Dito de outro
modo, Borges sublinha que “cadeias significantes [do Outro] interferem nas que já estão
presentes na escrita da criança” (idem: 132).
As escritas de afásicos não estão “fora da lei” (expressão de Lier-DeVitto, 1998) e, na
diferença, mostram acontecimentos semelhantes.Vejamos um dado de Mirela
51
:
51
Dado que derá melhor explorado na apresentação deste caso realizada no próximo capítulo.
58
Chamo especial atenção para relações que se estabelecem a partir de “treir” e, depois,
a partir de “hris” destacados em verde.
A escrita Palloma é um texto, afirma Borges, embora ainda não faça cadeia, não
possa ser lida. É texto porque há movimento significante e porque é feito por um sujeito.
O que nele aparece, acrescenta Borges, são pontas de representações inconscientes, “são
cifras - pontas de um iceberg”. Segundo a autora, com Freud, sob o texto manifesto há
cadeias latentes movidas por um funcionamento inconsciente, que é indiferente às leis de
espaço e tempo cronológico. Há permanente conflito entre o tempo da sintagmatização,
portanto, e o do funcionamento inconsciente da linguagem e o do inconsciente produzem
59
caminhos e descaminhos textuais. Não seriam essas questões e considerações também válidas
para afásicos ... a despeito da lesão?
Outra questão importante abordada por Borges diz respeito à cópia. Nela, aparecem
“composições novas”, elementos irrompem onde não eram previstos e entram no texto de
Rãimora, denunciando o atravessamento de textos outros. Isso significa que, diferentemente
do que usualmente se advoga, a cópia não está preservada do funcionamento lingüístico-
discursivo, nem do inconsciente.
“a “repetição”, quando se trata da linguagem – processo simbólico –
, é sempre original. Por isso, pode-se dizer que as combinatórias
presentes em seus textos são, de certa forma, acontecimentos. Há
sujeito nestas estruturas. Estes remetem aos textos com os quais
entraram em relação, mas com diferença.” (idem:147)
Nas cópias há erros e que erros devem ser explicados. A discussão que a autora
desenvolve relativamente à leitura de textos iniciais de crianças também é bastante relevante.
Neles, há palavras que podem ser lidas, mas há, também, muitas outras combinações
que não podem ser reconhecidas pelo outro como pertencentes à língua portuguesa – o que
não impede que a criança olhe para o texto e o leia – diga um texto, antes ouvido ou lido para
ela. A criança, de fato, fala/repete e significa (e ressignifica), nessa atividade, falas anteriores
e dá, um sentido ao ininteligível par ao que é ilegível e, com isso, faz, com isso uma promessa
séria de que escreverá e de que será leitora (Lier-DeVitto, comunicação pessoal).
Repetições, cópias, leituras, escritas e mudanças, no trabalho de Borges, são, como se
vê, explicadas como efeitos de operações simbólicas. A criança só repete porque encontrou
um lugar no discurso, oral ou escrito, do Outro – é dali que vem, diz ela, a possibilidade da
emergência do sujeito, na diferença. Do Outro vêm os “significantes” da criança em seu texto
escrito e: “o fato de a produção da criança [serem] ... “colagem” [e não retratos de outros]
sugere-nos que é preciso “olhar/escutar” essa escrita”(idem:148) ou seja considerar que há
algo, sob a escrita, que se oculta. Os erros, as não-coincidências, o obscuridade e ilegibilidade
das produções escritas são movimentos significantes que não escondem que ali há sujeito.
Vemos que Borges tocou em pontos essenciais da relação fala/escrita/leitura, que favorecerão
as discussões que pretendo encaminhar nesta dissertação. Há outra questão de importância,
que Borges aborda em seu livro. Vejamos, a título de ilustração, a escrita de Rãimora:
60
Figura 2
Este texto é formado pelas mesmas letras, mas em combinações diferentes. Tratam-
se das letras de seu nome: Rãimora Rodrigues de Alcântara, que fazia pouco tempo que a
menina havia “aprendido” a escrever. Não parece ser por acaso que, diz Borges, que crianças
comecem por aí e que seja por aí escrita comece. Note-se: ali proliferam o R, o A, o “de”.
Bosco (2004), retoma essa questão em sua tese, A errância da letra e do nome próprio na
escrita da criança . Ela dirá que, de fato, as letras das primeiras escritas da criança não são
aleatórias. Ela assinala que as escritas parte do nome próprio porque na escrita do nome, com
o qual a criança se identifica, a nomeia e a insere na rede significante. Além disso, essa
composição é marcada pelo um traço de distintividade e de unicidade cujas letras se destacam
das demais pelo significado que possuem para aquela criança. Essas letras não são quaisquer:
são marcas de identificação do sujeito na escrita. Note-se que a criança não lê, mas
61
reconhece as letras. Assim, ler é reconhecer-se no escrito, é portanto, mais do que ler
palavras, como pontuou Lier-DeVitto (comunicação pessoal).
Vimos que Borges aborda a questão do nome próprio, mais precisamente, ela aponta
para sua importância, para seu papel constitutivo da escrita inicial da criança. A insistência de
letras do nome próprio, compondo e recompondo o texto infantil, disse ela, “não significa
mais do que um uso das mesmas”
52
. No entanto, Mota reconhece que, como “significantes
que lhe foram fornecidos pela professora”, essas letras “marcarão, de modo especial, o
acesso dessa criança à escrita” (1995:144). Ao entrar em relação com significantes
subtraídos de outros textos, que circulam em sala de aula, o nome da criança passam a se
articular entre e com eles, o que possibilita a ressignificação do que ela escreve. As
combinatórias de letras são entendidas como acontecimentos que remetem, com diferença, aos
textos com os quais a criança entrou em relação - o nome escrito surge como o significante
que vai reger toda a composição gráfica.
No trabalho de Bosco (2003), mencionado em parágrafo anterior, o nome próprio
ganha, definitivamente, destaque e, como pudemos ler no capítulo dedicado aos afasiologistas
médicos, se algo fica retido é o reconhecimento do nome próprio, assim como a assinatura.
Os materiais analisados por Bosco incluem, além de assinaturas, textos inteiros
compostos com letras do nome da criança.
“dado o papel que [o nome] assume no percurso da relação da
criança com a escrita, impõe-se, a nosso ver, uma reflexão sobre seu
estatuto, sobre sua especificidade, considerando que não é qualquer
escrito que está em jogo nesse modo singular de escrever: tratam-se
de letras do nome da criança, significante que nomeia um sujeito em
sua língua materna, e seu traçado sobre o papel resulta na realização
de uma marca em que o sujeito está investido” (2003:8)
Segundo a autora, a escrita inicial da criança compõe um bloco aparentemente distante
da relação grafema-fonema, o que não significa que a oralidade esteja excluída deste
52
Oliveira (1998), ao abordar um texto de Rãimora, sujeito da tese de Borges (1995), em que apenas as letras do
nome entram em relação, faz menção à “historicidade do nome próprio”, como diz – uma palavra que se faz e
refaz, na medida em ela se singulariza como nome de alguém. Sua discussão não é, porém, extensa nem decisiva
a esse respeito, além de confirmar uma afirmação presente na Filosofia de que nome próprio, em si, não tem
referência, nem sentido. Diz ele; o nome próprio “é puro significante” ( 1995:151).
62
processo - afinal, a fala está presente tanto na leitura do outro, quanto na interação. As
manifestações escritas não estão apartadas das manifestações orais da língua já constituída da
qual a criança faz parte. De fato, acrescenta ela, as combinações estranhas na escrita de
crianças são reconhecível à língua – sua legibilidade mostra que ela se sobrepõe à
representação. A interpretação do significante “privilegia a associação e a combinação
[implicando]... a noção de legibilidade e não de representação” (idem: 157). Pode-se ler,
portanto, mesmo que aquilo que se lê não possa ser falado, oralizado. O outro, em sua leitura,
antecipa significações, ainda que os escritos da criança não sejam reconhecidos como
pertencentes ao sistema de escrita de uma língua.
É essa leitura que dá forma à textualidade e, mais, a leitura promove mudanças na
escrita da criança. Tais transformações indiciam outras, de subjetivação, como mostram a
insistência e as diversas composições realizadas com as letras do nome. Inicialmente
produzida por um outro, a escrita do nome acaba por responder pelas pressões da escrita. As
letras recompostas aparecem como signos, ocupando diferentes lugares/posições e adquirem
estatuto de letra escrita. Ora, a única condição para que isto ocorra é a assunção de que o
signo não tem significado per se - apenas na relação com o outro. Pode-se dizer, a partir
dessas considerações, que as escritas formadas a partir das letras do nome próprio abrem a
porta para a criança assumir uma posição de sujeito leitor/escritor.
Interessa, ainda, acompanhar o que diz Bosco a respeito da pergunta que ela faz: “por
que a criança elege as letras do nome e não quaisquer outras?”. A autora recusa a resposta
mais óbvia de que a criança usa as letras da “da primeira palavra” que “aprende”? A
pesquisadora, ao refletir e analisar realizações gráficas com função de assinatura, afirma que
o sujeito encontra-se ali investido. Tal afirmação advém do fato que a assinatura constitui um
escrito que (re)marca, graficamente, uma unidade lingüística já dotada de especificidade
gráfica. Ao marcá-la novamente, compondo com ela um arranjo gráfico singular, uma relação
particular entre o sujeito e seu nome se expõe. A esse respeito, convém lembrar que o nome
próprio está investido na assinatura, e nesse sentido podemos também dizer que esta última
retoma na escrita aquilo que fora passado primeiro pela fala do outro, na enunciação mesma
da nomeação; ou seja, na assinatura é passado o traço – único e distintivo – do sujeito.
Há, então, sublinha Bosco, um sentido especial nas letras do próprio nome para o
sujeito: ele não é um significante qualquer. Assim, Bosco toma o nome próprio como
metáfora do significante fundador de um sujeito - ela nos leva a entender que sua escrita
abriga um traço distintivo, passado ao ele na nomeação fundadora. Em sua análise da
escrita infantil, a autora, a partir de Allouch (1965), destaca:
63
“a prevalência (a) da antecipação do outro - tradução –; (b) da
disseminação das letras do nome, que permite o “pôr em relação”
entre significantes, forjando cadeias e, assim, possibilitando a
composição de uma série de elementos alfabéticos – transcrição –, e
(c) o encontro do escrito com o oral, que, com a homofonia, torna
possível tomar um a um os elementos grafados e realizar uma outra
escrita – transliteração (idem, 276)(ênfases minhas).
À luz dessas das categorias sublinhadas na citação acima, a escrita só é considerada
escrita a partir do momento que é traduzida pelo outro e transcrita pelo sujeito/escritor num
movimento de transliteração. A letra grafada nas primeiras escritas da criança não depende
necessariamente de uma relação fonêmica: ela é traço distintivo que não se transcreve nem se
traduz, mas que se transfere na transliteração. Somente em outro momento ela será transcrita
foneticamente. na combinatória de traçados e nas deformações propiciadas pelos elementos
do nome escrito (transcrição), coloca-se em jogo a homografia (transliteração), promovendo a
emergência de uma escrita na qual é possível verificar certo efeito de sentido (tradução).
Oliveira (1998), em: Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas, investiga
processos envolvidos na produção de texto. Num estudo caso, duas meninas conversam
enquanto escrevem em sala de aula – elas conversam sobre o texto em elaboração. O autor
aborda os efeitos desse diálogo sobre a escrita da redação escolar (e vice-versa): “...a questão
central ... é procurar saber quais relações são constitutivas entre aquele que produz um texto
e o próprio texto e do que dependem estas relações” (OLIVEIRA, 1998: 14). Além do
cruzamento de efeitos entre oralidade escrita que, segundo ele, respondem pela
textualização, Oliveira reflete sobre a rasura (“tropeços” desse caminho) aponta como parte
necessária ou constitutiva desse processo, inclusive em produções escritas por afáiscos, como
a de Mirela, apresentada abaixo:
64
Assim, tanto o processo de textualização, quanto a discussão sobre a rasura interessam
a este trabalho. Interessa, também o recorte metodológico pelo qual Oliveira optou, qual seja,
o de aproveitar a conversa entre as crianças na produção de “histórias inventadas” – o cenário
clínico só poderia ser concebido dessa forma. O diálogo entre clínico e paciente imbricam-se
necessariamente nos textos que são elaborados (e vice-versa), como se vê abaixo
53
:
T.
Æ
O que o senhor leu? Daí, o que o senhor lembra que o senhor pode falar?
X.
Æ
Tava chovendo (ri).
T.
Æ
É.
X.
Æ
Chovia mas o ... tava ... acabô os não tava arrumá, consertá as coisas, né?
Num-num no tempo, mas não ... Como é que eu vou falá? Ah, me perdi-perdi (ri).
T.
Æ
Tava chovendo ...
X.
Æ
Tava chovendo.
T.
Æ
Ahn?
X.
Æ
Depois tinha-tinha, o outro relógio. Tava expricá a ...a Como é que eu vô falá?
T.
Æ
Eles queriam consertar ...
X.
Æ
É.
T.
Æ
Eles queriam consertar ... Por quê? Por quê queriam que consertasse?
X.
Æ
Que tinha con - tinha con - consertar. Não!
T.
Æ
Tinha que consertar.
X.
Æ
Consertá. Mas a ...
T.
Æ
Por quê que tinha que consertar? Porque chovia muito?
X.
Æ
É. Tinha chuva.
T.
Æ
E o que acontecia quando chovia?
53
Segmento do relato de Fonseca (2002) sobre o caso “X”, que será comentado a seguir.
65
X.
Æ
[S.I.]
T.
Æ
O senhor conseguiu pegar? O quê que acontecia quando chovia? É que nem
aqui em São Paulo.
X.
Æ
Ah! Chuvas-chuvas ... teve é, como vai falá isso aqui? Ah, isso aqui (apontando
para uma palavra no texto – “inundação”).
T.
Æ
Isso, alaga tudo.
X.
Æ
É.
T.
Æ
Tem as inundações ...
X.
Æ
ções, é. Isso mesmo.
T.
Æ
E aí ele queria, aí ele falô que queria que consertassem as ruas prá num Ter
mais, num alagar toda vez que chovesse. É isso?
X.
Æ
Essa, é.
De fato, como se pode ver acima, na Clínica de Linguagem, conforme concebida pelo
grupo de Pesquisa “Aquisição, patologias e clínica de linguagem”, aposta-se precisamente nos
efeitos do cruzamento entre falas (no diálogo) e/ou entre outras formas de relação à alteridade,
que envolvam outra modalidade de linguagem: também as afetações entre escritas e falas
(vice-versa), leituras e falas, leituras e escrita (vice-versa) são vistas como motores de
mudança na clínica. Nessa direção, conduzi os casos que serão apresentados no capítulo
seguinte. No de Mirela, procuro mostrar uma escrita aprisionada num movimento
“metaforicamente metonímico” (Lier-DeVitto, 1998, 2001) e marcada por rasuras/
reformulações. Essa escrita, acredito, indica a presença de um intérprete nos intervalos do que
escreve. Uma vez justificada minha aproximação a esse pesquisador faço algumas
considerações sobre seu livro.
Oliveira sustenta que, na escrita do texto, as relações entre sujeito e texto produzem
posições: a daquele que procura garantir a grafia correta, a daquele que trata de buscar um
efeito de unidade. No primeiro caso, pode-se pensar, a relação predominante é aquela que
desloca o sujeito para a posição de “corretor” (a questão gramatical ganha relevo) já, no
segundo caso, estando em destaque o sentido, a coerência, o sujeito fica numa posição de
“intérprete”. Como se vê, não há posições subjetivas cristalizadas. O sujeito desloca-se
incessantemente entre posições (leitor, editor, intérprete, e outras). Esses movimentos que
visam à completude (textual e subjetiva) são apagados quando se encerra a escrita. Quando
66
lemos um texto, esquecemos do fato. O “texto pronto”
54
, sem dúvida, encobre o processo. A
esse respeito, ficamos ao lado de Oliveira: “o texto escrito é o congelamento de conflitos”
(idem, 1998: 49) – a não ser que ele “não fique pronto”, quer dizer, a não ser que algum tipo
de “curto-circuito” aconteça na relação sujeito-texto, como pode ocorrer com pessoas afásicas
que, muitas vezes, não conseguem colocar ponto final num texto, nem mesmo em uma
palavra do texto. Pessoas cujos deslocamentos subjetivos frente à linguagem e entre suas
modalidades assume um perfil dramático. No segmento abaixo, retirado de Oliveira, vemos as
crianças mudando incessantemente de posição (falante/escrevente/leitor/intérprete) e
assistimos, também, a mudanças até drásticas de direção textual - sem que tais deslocamentos
derrotem o processo de textualização: ao contrário, vai se produzindo a trajetória criativa de
uma história que não foi planejada, programada. Uma trajetória delineada pela dialética entre
falas, delas com o escrito (e vice-versa). Vejamos um segmento:
(1) Isabel: (lendo) era uma vez uma mãe muito má. Daí... vai...
(2) Nara: (escrevendo) era uma vez uma mãã... mã-e... muito má. Ponto. Tá
certo. Daí a filha gostava muito dela.
(3) Isabel: não... (rindo) gostava muito dela.
(4) Nara: Daí a mãe era muito má com a filha.
A direção de sentido aberta em (1) (Daí ...vai...) é primeiramente sugerida, em (2), por
Nara: “Daí a filha gostava muito dela”. Uma possibilidade é aquela que remete à irrupção de
textos referentes à relação terno-amoroso entre mães e filhos/as (ou de um texto familiar).
Textos, estes, que impedem a menina apagar (não ler), nesse momento e por instantes, o que
escreve: a mãe é má
55
. Esse sentido possível (sem dúvida), mas imprevisível é atestado pelo
riso de Isabel, acompanhado da “correção” do enunciado de Nara. Isabel a ele acrescenta um
“não”: a filha “não gostava muito dela” (da mãe). Em 4, outro inesperado: fica fora de foco o
sentimento da filha (gosta/não gosta) e volta a ficar questão a “mãe má” ... que era muito má
com a filha”. Oliveira chama, de fato, a atenção para isso. Diz ele que, no processo de
textualização, “as relações em jogo ... acabam tecendo as redes de interpretações que
54
Por “texto pronto”, entendo o produto de uma decisão daquele que escreve, ou seja, o efeito de um ponto final
que interrompe sua relação com aquele texto. Isso não significa, contudo, que o texto esteja “completo” – nem o
sujeito, nem o texto têm essa unidade.
55
O cruzamento com outros “textos” e “discursos”, segundo o autor, embora seja freqüente, ele acaba não sendo
predominante porque prevalece o plano imaginário da busca da unidade textual.
67
determinam as possibilidades de dizer aquilo que pode vir a ser significado” ( idem: 81), ou
seja, no processo de textualização há guinadas, há abertura para o imprevisível. Gostaria,
antes de continuar, de dar relevo ao fato de que, o processo de textualização é dinâmico, ele
comporta o imprevisível que pressiona o caminho que leva à conclusão do texto. E sobre
rasuras?
Rasuras são movimentos circulares, diz Oliveira. O sujeito estanca em palavras, que
se revolvem. Entende-se porque elas sempre implicam repetição: o sujeito escreve, reescreve,
rasura, reescreve. Borrões
56
e reformulações enunciativas são instanciações notáveis desse
movimento da linguagem sobre si mesma e ambos devem ser relacionados a um empenho de
ajuste à norma e de contenção do sentido. Algumas palavras “puxam” outras: esse
mecanismo pode produzir dispersão textual e divergências interpretativas. Em momentos
como esses, o sujeito é ultrapassado
57
: aparecem jogos de palavras, sentidos duplos e
inesperados, ambigüidade ... esse “incessante tecido de nossas conversações” (MILNER,
1978: 13) - há palavras sob palavras, para utilizar o título de livro de Starobinski (1971)
sobre os anagramas de Saussure
58
.
Rasuras são a expressão mais clara do imprevisível – manifestam de forma
sensível, como discutiu Glória Carvalho (1995) em profundidade, de que o saber é não todo
(há sempre falta aí) e de que, logicamente, o sujeito (falante ou escrevente) pode, sempre,
deslizar: ficar fora do controle, fora do sentido, sendo ultrapassado pelas operações da língua.
A textualização (diferentemente do “texto concluído”) dilui essa ilusão e expõe a tensão
constitutiva entre previsível e imprevisível. Se for “constitutiva”, a rasura não é mero erro ou
borrão. Há outras marcas importantes, acrescenta ele: pausas, hesitações, aglutinações e
repetições também são estruturantes do texto e expressões de uma subjetividade que “não faz
um”.
As rasuras são expressão da própria cisão do sujeito. Entende-se porque para
Oliveira, na Escola, “a rasura é uma marca que deve ser eliminada” (op.cit., 1998:59), já
56
Há vária maneiras de rasurar. A rasura seguida da reescrita idêntica, mas aceitável pelo escritor, aponta a
opacidade da própria grafia para o sujeito, pontua Oliveira. Já o risco sobre a palavra ou letra, funciona como
uma espécie de barreira, produzindo o efeito de homogeneidade da grafia. A diferença aparece como algo errado
e por isso deve ser corrigido.
57
No segmento ilustrativo, que comentei acima, embora, a meu ver, não haja propriamente rasura, há reparos e
divergências: há conflito entre as duas meninas, mas não só: há, também, indício de outro tipo de
atravessamento, que explicita a divisão do sujeito em escritor e leitor (ver diferença entre os enunciados 2 e 4, de
Nara).
58
Oliveira também usa essa expressão (1998: 105).
68
que reina ali a concepção de que a linguagem é instrumento do pensamento. Nesse modo
cognitivista de pensar (e agir), a rasura seria nada mais do que reflexo de um desacordo entre
o pensamento e escrita. A direção apontada pelo autor, em consonância com o que
testemunho na clínica de linguagem com afásicos, é outra. Para ele, a partir da proposta
Interacionista de Cláudia Lemos
59
, a rasura mostra um sujeito que não está no controle
60
. A
rasura é transborda o texto escrito e há, sem dúvida, espaço para teorização.A rasura, de fato,
não é resto a ser desconsiderado porque ela é constitutiva da própria escrita (como já disse).
Vejamos abaixo um segmento de texto, que nos permitira entrever um pouco dessa discussão.
Trata-se de uma afásica que ao ler o que eu havia escrito, não parecia satisfeita. Disse a ela,
então, que ditasse para eu escrever e registrei o que ela disse:
Há muitas gerações, as pessoas tinham vergonha de beijar, porque era
pecado.”
Pedi a ela que copiasse e ela escreve:
“Há muitas gerações, as perroas /// pessoas tinham vergonha de
beijá, pois era pecado.”
Note-se que, mesmo copiando um texto (ditado por ela e escrito por mim), os dois
textos não coincidem. Ao copiar, ela substitui /ss/ por /rr/; escreve como lê e fala [beijá] por
[beijar] e substitui [porque] por [pois]. Podemos, nesse ponto, escutar o que diz Núbia Faria a
respeito de modificações de letras de cantigas infantis, que, a meu ver, aplicam-se também a
desvios em cópias. Segundo ela, essas alterações refletem deslocamentos do sujeito (como
antes sugeriu Mota, 1995). Visto por esse prisma, “... o texto, ainda que memorizado, ... não
pode ser dominado ... por uma [suposta] consciência toda-poderosa” (1997: 119). Digamos
que “o texto-matriz”, ainda que disponível como modelo, não controla a escrita - vimos,
59
Neste trabalho de 1998, Oliveira mantinha-se filiado á proposta de De Lemos. A partir de 2000 toma outro
caminho: aproxima-se de Authier-Révus (da Análise do Discurso) e de Willemar. Interessa-me seu trabalho de
1998.
60
Na literatura do campo da Educação e da Aquisição da Escrita, a discussão a este respeito é bastante escassa,
deixando a possibilidade de apenas uma interpretação, segundo o autor: a de que a rasura, enquanto correção do
que está errado, é procedimento metalingüístico – operação cognitiva de um sujeito sobre a própria fala/escrita.
Sobre isso, ver, também, Lier-DeVitto (1998); Lier-DeVitto & Fonseca (1998).
69
acima, que a há deslocamentos em relação ao texto-base. Quando a escrita feita por essa
paciente é sem texto-modelo, é “espontânea”, como se diz na literatura, a situação é mais
difícil para ela. O compasso lento de sua escrita, a detém no detalhe e uma palavra sequer é
realizada sem tropeços porque esse lineamento é feito de vãos (pontos cruzamentos
significantes) - de vãos abertos à disposição de elementos inesperados (indesejados!) que
podem atrapalhar, como freqüentemente acontece, uma direção textual almejada.
Uma palavra é um “acorde” e, nesse sentido, é unidade e não uma soma de unidades
menores. Esse acorde, disse Saussure (1916: 85), é “uma carta forçada” ao sujeito – sua
realização não é consciente. Entende-se, assim, porque “o movimento metonímico impele o
sujeito para uma certa direção, quer ele queira, quer não(FARIA, 1997: 120) (ênfase
minha). O “jogo da forca”, que essa paciente utilizava na tentativa de encontrar as partes
constituintes de uma palavra, vai em sentido contrário ao sugerido por Saussure. Nesse jogo, a
paciente procurava “trazer para a consciência” a palavra desejada, mas um segmento
indesejado sempre acabava aparecendo. Esta moça apoiava-se, de fato, na ilusão de que
poderia controlar sua produção com “maior facilidade” caso soubesse “quantas letras tem a
palavra”, mas ela é ultrapassada nessa tentativa e nessa ilusão - ela não consegue escrever
aquilo que tinha vontade de escrever. Fica exposta, na escrita desta afásica, a alteridade
radical da linguagem em relação ao sujeito e a relação complexa do sujeito com sua leitura e
escrita.
Tendo situado o espaço de discussões sobre leitura e escrita, que subjazem aos efeitos
que as produções de afásicos puderam exercer (e exercem) sobre mim na clínica de
linguagem, passo, a seguir, a apresentação de casos. Eles serão introduzidos pelo do Sr. X. -
um breve relato de Fonseca (2002) - que, a partir de pressupostos teóricos como os que
procurei apresentar, pôde surpreender a função da leitura/escrita na clínica com afásicos. Os
casos seguintes são de pacientes atendidos por mim.
70
Capítulo 4
Efeitos clínicos no atendimento de afásicos
4.1. Sr. X: sobre a mútua afetação entre modalidades de linguagem
Segundo Fonseca (2002), “X”
61
apresentava um problema exclusivamente lingüístico
tanto na fala, quanto na escrita, porém, diferente em cada uma das modalidades. O
“exclusivamente” no enunciado acima indica que ele não tinha qualquer comprometimento
motor que impedisse a manifestação da fala ou da escrita (em termos médico, não estava em
questão uma apraxia).
A fala era aprisionada
62
no sentido de que era composta por um “vai-vém de
segmentos e hesitações - uma fala que se perde antes de ser concluída”. No entanto, essa
característica não impedia que ela fosse interpretada pelo outro. Com relação à leitura, X. lia
mas não apreendia o sentido, ficava em “fragmentos” e, no que diz respeito à escrita, ela
estava também alterada: ele escrevia apenas seu nome.
A terapeuta, após algum tempo de atendimento, em que se ateve à queixa principal do
paciente sobre a fala, decide, por razões teóricas - “o reconhecimento da complexa relação
entre as modalidades [da linguagem]” (FONSECA, 2002: 216), que ressignificou outras
vivências clínicas, ela decide introduzir a leitura e a escrita como trabalho sistemático no
atendimento de X. A A pesquisadora apostou na hipótese de que a mútua determinação entre
oralidade e escrita poderia promover transformações em todas as modalidades (fala, leitura e
escrita).
61
O paciente foi atendido no CAAf (Centro de Atendimento à Afásicos) na DERDIC/PUC-SP, por uma aluna de
Fonseca e, posteriormente, por ela.
62
O sintoma faz com que a fala não tenha movimento, tornando o paciente aprisionado nela (ver Lier-DeVitto &
Arantes, 1998).
71
Num primeiro momento, o paciente resistiu à introdução da escrita, mas logo se
engajou na proposta da fonoaudióloga de “copiar” textos em casa. O que estava no horizonte
de Fonseca era a possibilidade de que a “imersão em textos” pudesse, de algum modo,
impulsionar uma escrita paralisada, ou seja, uma escrita que fosse além do nome próprio. O
sucesso de sua aposta apareceu, na escrita, na fala e na leitura.
X podia ler em voz baixa e parecia entender o que lia e quando o fazia em voz alta,
“não entendia”. Os textos copiados em casa eram lidos “em voz alta” na sessão, pela
terapeuta, que foi surpreendida pelas interrupções que o paciente fazia em sua leitura para
dizer a palavra subseqüente esperada – ele havia lido o texto e não unicamente copiado.
Depois de algum tempo, palavras começaram a ser escritas. A fala melhorou: ficou menos
marcada por hesitações e invadida por segmentos da leitura e esta, em voz alta, ganhou
fluência. Vejamos o resumo desse atendimento, que nos apresenta Fonseca:
“De início, resistência. Depois, um olhar sem ler. Disse a ele que a
escrita poderia ajudar a melhorar a fala. Com o texto à nossa frente,
eu lia passando o dedo sob as linhas e pedia a ele para me
acompanhar. Surpreendentemente, algumas vezes, ele me
interrompia, pronunciando a palavra seguinte (ainda não lida) – o
senhor (X.) lia. Eu repetia a palavra e continuava a leitura.
(idem,238)”.
Fonseca conclui: a leitura “em voz alta” possibilitou um “escutar-se” em outra
posição (escutar uma fala fluente, porque fala outra e do outro, na própria voz). ir. Efeitos da
leitura silenciosa apareceram na fala: pedaços de textos lidos passavam a compô-la. Assim, a
escrita penetrava a fala e mais do que isso – a escrita deixou de ser apenas a do seu
próprio nome, passando a ser composta por palavras lidas e/ ou faladas, ou seja, a fala
também penetrou a escrita. Note-se que a noção de prompting não se articula nesta aposta e
proposta de Fonseca porque não é tratada como representação de segunda ordem. Ela não
tem função “disparadora” da fala e nem é “facilitadora” no trabalho ela. A suposição teórica
destra autora é bem diferente da outras já apresentadas nesta dissertação. Fonseca teve escuta
para ordem própria da língua e pôde sustentar que fala/leitura/escrita/cópia são modalidades
de manifestação em um só domínio - por isso é que elas podem afetar-se mutuamente
porque são articuláveis entre si. Acompanho a aposta de Fonseca e discuto, abaixo, dois
atendimentos que conduzi.
72
4.2. O atendimento de Mirela:
Comecei atender Mirela no CAAf – DERDIC/PUC-SP em junho de 2006. Na primeira
entrevista
63
, quando perguntei sobre o porquê de sua procura por atendimento, ela responde,
prontamente, que estava ali para “melhorar a fala e conseguir escrever”. Ela acrescenta, na
seqüência, que sua nova condição havia sido provocada por um tumor no Sistema Nervoso
Central (SNC). Aos 25 anos de idade, diz que foi muito difícil receber o diagnóstico médico,
mas que muito menos difícil do que a realidade de sua condição sintomática. Cabe assinalar
que além da afasia, Mirela apresentava seqüela motora nos membros superior e inferior
direito, mas que impunham pouca limitação – ela era independente para realizar suas
atividades diárias.
Fiquei interrogada pelo fato dela, tão nova que era, não demonstrar sofrimento e de
não notar, em seu dizer, qualquer tom de lamento em função da afasia. Pareceu-me, ao
contrário, que ela pretendia mostrar que havia superado ou estava superando seus problemas
64
e, inclusive, que sentia alguma satisfação ao me contar o sucesso deste enfrentamento – o que,
devo dizer, é infreqüente com afásicos.
Paradoxal, contudo, era que o discurso dessa moça não era absolutamente compatível
com sua aparência física e com o modo que se apresentava: vinha (sempre) vestida com
camisetas com temas infantis; com fivelas coloridas no cabelo; entrava de cabeça baixa e com
os ombros caídos; tinha a pele bastante branca e olheiras profundas - Mirela parecia inspirar
63
Aqui, remeto o leitor às discussões realizadas por Fonseca (2000, 2003, 2006) acerca do procedimento de
entrevista. Adianto que, segundo esta autora, a convocação do próprio paciente, com sua condição, para falar
sobre seu sintoma, garante “o fundamento ético incontornável do método numa clínica que pode ser dita de
linguagem. [Garante, portanto o] compromisso com a fala (...) e com o paciente” (FONSECA e VORCARO,
2006: 423). Indico, também, a leitura de Marcolino (2004) e Catrini (2005).
64
Mirela fez questão, por exemplo, de afirmar que “não admitia depender dos outros” e que, por isso, estava
fazendo auto-escola para adaptar o carro às suas atuais condições e que voltaria a dirigir em breve. Disse,
também, que estava procurando outras atividades laborais porque pretendia ter renda financeira e contribuir no
pagamento dos tratamentos de que necessitava. Ela acrescentou que “não considerava justo” com o namorado
manter uma relação (mesmo que iniciada há cinco anos) com uma pessoa como ela, razão pela qual havia
tomado a iniciativa de terminar o namoro.
73
cuidados
65
. Dito de outro modo: havia uma nítida dissociação entre a determinação de sua
fala e o modo como se apresentava para o outro – duas posições que pareciam antagônicas.
Chamava a atenção, também, que esta era a quarta tentativa de atendimento
fonoaudiológico de Mirela. A primeira fonoaudióloga, disse ela, não havia atendido às suas
expectativas e, por sua decisão (de Mirela), foi logo substituída por outra - a quem ela
atribui a grande melhora de sua fala. De acordo com a paciente, antes do início do referido
atendimento, ela podia falar muito pouco e “com muitas alterações articulatórias”. Depois
dele, passou a falar mais. Porém, o atendimento teve que ser interrompido porque a família
não tinha possibilidades financeiras para sustentá-lo. A terceira fonoaudióloga, trabalhava
numa instituição em que o tratamento para afásicos tem o tempo estabelecido e pré-
determinado de 3 meses para se realizar. Ao término desse período, Mirela foi encaminhada
à DERDIC.
Vejamos: essa moça sustentou a demanda para esta clínica apesar de sucessivas
frustrações, independentemente do motivo que levou ao abandono dos tratamentos. Esse
histórico não é irrelevante porque participa do seu novo pedido de atendimento, desta vez,
para a DERDIC. Assim ela chega a mim e diz que seu objetivo nesta clínica era: “melhorar a
fala e conseguir escrever”. Ora, aparentemente uma demanda clara estava, de fato, enunciada.
No entanto, algo me inquietava e eu questiona se seria esta a demanda.
Dei início ao processo de avaliação de linguagem. Pude notar que, apesar da queixa
ser prioritariamente sobre a escrita, sua fala também se encotrava alterada: havia dispersão
do sentido, hesitações, pausas, segmentações. Ela insistia que tinha “muita dificuldade com
a flexão verbal, que não conseguia falar muito rápido, mas que sua fala comunicava”. Com
relação à escrita, Mirela disse que podia ler, mas que não conseguia escrever. - o que a
perturbava muito, mesmo porque era professora de inglês/português e tinha na escrita um
instrumento de trabalho. Para Mirela, a escrita “fazia falta” porque escrevia diário e utilizava
bastante a Internet. A paciente chegou a dizer que, antes da afasia, “tinha mais facilidade e
fluência” na escrita do que na fala. Naquele momento, um lamento sobre não conseguir
escrever me pareceu suficiente para iniciar o atendimento. Segui com a avaliação de
linguagem acreditando que, no cruzamento fala/leitura/escrita, poderia me deparar com
mudanças subjetivas e sintomáticas, podendo assim, incidir nestes lugares. Pedi que
escolhesse um texto para ler em voz alta (jun/2007).
65
Vale dizer, por exemplo, que seus pais foram solicitados por ela para discutir questões relativas ao pagamento
das sessões, à marcação/remarcação de atendimentos, bem como para encaminhar outros atendimentos (terapia
ocupacional, fisioterapia, etc.).
74
Para esta leitura (anexo 1) ela escolhe uma crônica de Ivan Ângelo que falava sobre
beijos de antigamente e atuais. Na leitura, muitas pausas, hesitações, reformulações (estas
últimas, indicativas de que Mirela tinha escuta para a própria fala). Devo ressaltar que a
leitura deste texto, desconhecido por ela, foi se tornando cada vez mais fluente e que não
houve fuga de sentido. Quando ela terminou, pedi que me contasse o que havia entendido
66
.
Anotei o seguinte
67
:
“Há muitas gerações, não faz muito tempo, não tinha muita noção os
beijos... era diferente porque.... era diferente porque, assim: antes, um
beijo, por exemplo ... “não pode beijar! É pecado!”
Mostrei o que eu havia escrito para Mirela ler. Ela leu e, parecendo não concordar com
o que havia lido, pediu para levar o texto original para ler em casa. Na sessão seguinte, ela leu
ainda melhor que antes. Solicitei que contasse, novamente, o que havia lido e repeti o mesmo
procedimento:
“O texto fala que em outra época os beijos eram secretos, por
exemplo, não era público... antes, só amiga sabia, hoje, mãe, pai, todo
mundo. O beijo era um troféu: “e aí, já beijou?” Não tinha tanto
carinho. Hoje, até na Internet... até marca horário. Antes, por
exemplo... no carnaval... as meninas até desmaiavam de tanto
esperar. Hoje não.”
Ao ler o que eu havia escrito (sua fala), Michele não parecia satisfeita. Disse a ela,
então, que ditasse para eu escrever – neste momento escrevi por ela:
“Há muitas gerações, as pessoas tinham vergonha de beijar, porque
era pecado.”.
Disse, então, que ela copiasse o que eu havia escrito:
66
Enquanto ela respondia, eu consegui fazer algumas anotações. Naquela sessão, eu não tinha levado o gravador.
67
Minhas anotações serão registradas em verde.
75
ESCRITA M1
Note-se que, mesmo copiando e procurando aproximar o traçado da escrita ao de
minha escrita, os dois textos não coincidem. Ao copiar, ela substitui /ss/ por /rr/; escreve
como lê e fala [beijá] por [beijar] e substitui [porque] por [pois]. Ela, na verdade, toma
distância da cópia e aparece ali. Diferente do usualmente concebido, podemos afirmar, junto
com Borges (2006), que a cópia não está protegida do funcionamento lingüístico-discursivo.
A autora afirma ainda que:
“a “repetição”, quando se trata da linguagem – processo simbólico –
, é sempre original. Por isso, pode-se dizer que as combinatórias
presentes em seus textos são, de certa forma, acontecimentos. Há
sujeito nestas estruturas. Estes remetem aos textos com os quais
entraram em relação, mas com diferença.” (idem:147)
De fato, o que vemos na “cópia” de Mirela é que cópia não é reprodução e, não é,
porque há sujeito que interpreta o que lê, o que escuta e o que escreve, mesmo sendo afásico.
Na verdade, foi essa não coincidência que me motivou: parecia possível haver movimento e
transformações na escrita.
O passo subseqüente, nesse atendimento, foi o aparecimento de uma escrita “própria”,
desencadeada pela crônica lida:
76
ESCRITA M2
Começo chamando a atenção para a forte diferença entre “ texto copiado” e “texto
espontâneo”. Neste último, o traçado deixa de ser feito em letra cursiva, aparecem erros
inesperados de pontuação, inversões sintáticas inaceitáveis (que ela rasura e arranja, como na
última parte do enunciado acima). Essa escrita abalada, perturbada, mostra ainda assim que há
intérprete, que lê, rasura e corrige. Entendi que poderia contar com esta posição subjetiva, no
caso de Mirela.
Segundo Oliveira (1998), a partir da proposta de Claudia Lemos, temos que o erro
mostra um sujeito “fora do controle”, movido pela linguagem e a rasura, um sujeito que é
afetado pelo que escreve. Este movimento de retorno sobre o escrito, caracteriza o jogo da
linguagem sobre a linguagem. Rasura, então, não é erro, mas efeito de sujeito na estrutura, de
sua escuta para o que lê e escreve.
Outro ponto que destaco é o de que, nos “erros”, “substituições” e “acréscimos”, nota-
se a fala na escrita e apreende-se a relação tensa entre sujeito e texto. Mirela, esta moça
afásica, faz presença – interpreta o quê copia e enquanto copia. Ou seja, escrita não é gesto
mecânico e nem mesmo quando é cópia. Há sempre em questão um corpo significante
(Vasconcellos, 1999 e outros).
Além de ter concluído que podia contar com uma “leitora” da própria escrita e da do
outro, entendi que poderia, também, explorar outra possibilidade teórica: a de que escrita e
fala/leitura se interpenetram. Procurei pôr em movimento esta complexa relação
68
. No
segmento abaixo, ela fala enquanto escreve:
68
Nessa direção, solicitava a Mirela que contasse o que havia lido; que lesse o que havia escrito; que copiasse e
falasse o que havia copiado; que “escrevesse o que havia falado; que escrevesse comigo e que escrevesse o que
quisesse.
77
Segmento 1 – out/2007
T - Eu queria que você me dissesse ... o quê você espera desse
atendimento que você tanto queria, que é a hidro. Só que eu
queria que você me dissesse pela escrita, tá? Então a gente vai
fazer o seguinte: pergunta e resposta através da escrita.
M - Mas eu tenho que escrever?!(espantada)
T - Lógico!
M - Mas eu não sei escrever!
T - Vamos ver...
M – ( )
T - (escrevendo) “O que você espera conseguir com o atendimento
na AACD?”
M - (lendo em voz alta, de forma pausada e segmentada, em baixa
intensidade) O-que-você-es-pe-ra //con-se-guir-com-o-tra-ta-men-to-
da-AACD? Hum.... ( ) nossa::: muitas pessoas, acho, muitas pessoas
fala que o tratamento ... é tudo, né?... muitas coisas (risos)
T - Tratamento ... O quê você ia dizer? Muitas pessoas falam que o
tratamento ...
M - Não, então é que eu achei que estava falando da hidro...
T - Mas pode ser
M - Eu lutei. Lutei? Ah, acho que a palavra eu sei que é essa... pra
começar a AACD... minha mãe, meu pai, sabe?... “não”, é bom... aí
eu, sabe, eu consegui a DMR então, deixei, depois eu consegui, tava
preocupada, né, porque a fono tava muito... nem meia hora quando
tem::: sabe? Aí eu tava começando a ficar meio preocupada e então::::
a fono da DMR, ela que indicou aqui, quando eu comecei fazer na
PUC, eu tava sossegada, sabe? Então eu nem pensei mais nisso, aí eu
tava de alta... aí eu tava pensando, nossa, hidro, hidro, hidro...
Vamos ver, eu achei, eu achei, que eu vou fazer só o que eu queria,
que eu ia fazer hidro::: que mais... nem lembro mais o que tem... mas
não é assim... a primeira vez tem uma en::trevista com a médica, aí:::
assim, é legal mas muito triste, não é triste... a sala que fica esperando
esta médica, as crianças é muito triste sabe, não é:::: uma criança feliz,
ah! todo mundo tem problema, eu sei, eu tenho, só porque é criança
78
não tem problema, tem::: físico e::: outras coisas mental, mas eu
achei, senti que, sabe, mui::to triste sabe, crianças, mãe, pai, sabe,
tudo, nossa não (SI) ai não quero não::: minha mãe, pai ah vamos lá,
vai, vai, vai... tô indo né... aí começou perguntar as pessoas... fiz
tratamento na AACD, metade de pessoas fala que::: não gostou, teve
que pagar muitas coisas, outra fala que as pessoas fala que um
tratamento melhor do Brasil... então assim, que eu es-espero...
continuar meu tratamento, também... T.O. e mais T.O. e
fisioterapeuta, fisioterapeuta (falando baixinho como se estivesse
verificando se estava certo) é, T.O. e::: é, porque a::; fono eu tô, eu
acho que eu tô::: já re-sol-vi-da, acho... que que eu espero (risos)
tenho que escrever? Falei certinho, não falei?
T - Falei para você escrever...
M - Falei muito, né? Então eu vou resumir... continuar-continuar-
continuar (escrevendo) continuar, o verbo eu não sei agora..
continuar::: ar....
(...)
M - Espera conseguir (lendo) com... os verbo é difícil (risos)
T - Verbo é difícil? Nome é fácil?
M - Não agora e li os verbos eu sei que está:::: nossa senhora, é:::
sempre gostei de por:::tuguês agora os verbo pra mim, eu sei tá errado
mas...
T - O que está errado aí?
M - Quero falar... con-tinuar... continuar.... o tratamento.
T - Escreve do jeito que vc acha e a gente vai vendo...
M - Eita... quase vai (escrevendo) conseguir, não é conseguir con-
tinuar.. con-tinuar, nãnãnã, continuar... eu, meu, meu, meu, meu, meu,
meu, tra-ta-mento, tra-.... tem esse (escrevendo as letras de tratamento
desordenadamente)... não sei não... continuar o meu...
O resultado desse diálogo na escrita foi o seguinte:
79
ESCRITA M3
80
ESCRITA M4 – folha de “rascunho”
81
O primeiro comentário a fazer frente a essa escrita de Mirela é que ela não é, nem
mesmo, “disfarce” da sua fala (expressão de Saussure) – na escrita, a sucessão pausada
produz um outro tempo, um tempo escandido, que vai abrindo espaço para uma outra jogada,
para uma outra lógica significante: a do paralelismo. Ao incidir “conscientemente” sobre
palavras e seqüências, a cadência própria de uma língua se esgarça e, por isso Mirela gira nos
movimentos da escrita: é traída em seu “querer dizer” pela emergência, nos vãos de uma
segmentação forçada, segmentos inesperados. Dito de outro modo, o processo de
textualização fica abalado por intervenções de segmentos convocados por ecos de
significantes sem que ela possa, ali, sustentar-se.
Mirela se escuta, como disse, mas, como disse Lacan (...) ela “fica ao lado do que
quer dizer”. Ela tenta “passar a limpo”, mas o quê? O texto que ela não pôde escrever e que
não se pode ler. Nesse sentido, chama a atenção que para as múltiplas tentativas de escrita,
para o vai-e-vém incontornável do enunciado, para o “espaço de rascunho” que deveria ficar
longe dos olhos dos outros. Também no rascunho, ela apaga, rabisca, reescreve, escreve ao
lado ou embaixo, completa palavras – ou seja, ela rasura no rascunho – um esforço de
reformulação que é fadado fracasso.
A pretensão de Mirela nesse empreendimento era apresentar à terapeuta um “produto
final”, “limpo”, sem oscilações (destacado em vermelho na escrita M3). Mirela sabe que, na
escrita, o produto apaga o processo e quer, mas não pode oferecer esse produto – ela
aparece infalivelmente no traçado irregular das letras, nos erros, nos espelhamentos que não
pode conter (ver seqüências geradas de “trei/trpir ...” e outra de “ hris/hrn ...”, no destaque em
verde nas escritas M3 e M4). No caso dessa afásica (e de muitos outros), o produto não
apagava o processo – esse pode ser visto como o drama deste atendimento.
Durante esse embate com a escrita, se na fala Mirela não podia conter seus desarranjos
na escrita, a minha podia produzir algum efeito estruturante porque continha (por vezes) o
processo de substituições inesperadas de uma letra por outra.
Surpreendentemente, quatro meses após o início do tratamento, Mirela informa que
havia realizado uma prova dissertativa, num curso de atualização profissional. Para isso,
apresentou-se como “deficiente” na escrita: ditou as respostas da prova, leu e depois corrigiu
o texto com a pessoa que havia escrito para ela
69
- Ali, ela “passou a limpo”.
69
Tal possibilidade mostrou-se com clareza quando ela se propôs a não esconder sua condição em favor de seus
objetivos. Mirela pretendia, como disse em sessões de atendimento, expor sua afasia em benefício próprio e da
família: pretendia se inscrever em um concurso para ganhar a reforma de sua casa, por exemplo. Um certo
82
Certo é que, apesar desse “sucesso”, a escrita continuava a colocar Mirela frente à sua
condição de afásica e Mirela resistia à minha insistência de manter o tratamento porque havia
sinais de que a direção tomada produzia efeitos. Sua resistência se manifestava num dizer
monológico, ininterrupto e hesitante. Nele, ela falava de conquistas e enaltecimentos pessoais
– e isso chamava minha atenção, mas ela falhava na escrita. Procurei conter essa fala,
retomando sua queixa de “não consigo escrever”; propus que trabalhássemos juntas a escrita.
Eu procurava implicá-la em sua queixa, mas Mirela ficou frente a frente com sua dificuldade,
com seus limites. Posso dizer que ela ficou nessa trama e com esse drama e abandonou o
tratamento, antes que pudesse se beneficiar dos efeitos que começavam a aparecer. Mirela
caminhou, então, para a quinta tentativa de atendimento fonoaudiológico.
Visto de hoje, posso dizer que Mirela não pôde suportar os efeitos, nela, de seu
sintoma e nem das discretas, mas efetivas mudanças produzidas pelo atendimento - Mirela
“não podia falhar”. Eu investia precisamente ali (onde ela falhava) - no espaço para o qual ela
queria/mas/não queria olhar. Recuperando minha intuição clínica inicial, posso dizer que,
por um lado, a decisão de abandonar a terapia foi tomada pela “mulher decidida”, mas que
venceu “a menina aplicada que queria aprender a escrever” e que não suportava seus “erros”.
Por outro lado, penso hoje que minha insistência, quando teve início a resistência de Mirela
ao tratamento, deve ser interrogada.
Para trabalhar esta questão, é preciso, como assinalou Catrini (2005), abordar a
problemática da transferência. Este caso, como muitos outros (e inclusive o seguinte),
levantam esse problema para a Clínica de Linguagem e, ao registrar esse atendimento, espero,
que ele represente uma contribuição para o encaminhamento dessa discussão clínica tão
necessária e importante.
“gozo” na condição afásica me chamava a atenção. Me parece que ela procurava maneiras de tirar proveito de
seu sintoma. Enfrentá-lo, então, colocava em causa, também, o abandono destes benefícios.
83
4.3. O atendimento de Josué Carlos Xaves:
Sr. Josué Carlos Xaves procurou atendimento no CAAf da DERDIC/PUC-SP, após 6
anos de ter sofrido um AVC, tendo como seqüelas: afasia grave e hemiparesia esquerda de
membros superiores e inferiores. Seu atendimento teve dois tempos naquela instituição, onde
comecei a atendê-lo em 2005. Antes disso, ele já havia sido recebido, em 2004, por outra
fonoaudióloga, que, num primeiro momento, havia caracterizado sua fala como sendo
sustentada exclusivamente por estereotipias como “tudo bem”, “olha”, “aqui ó”, “é isso aí”,
“muito bom, muito bom” e acompanhada por gestos não menos repetitivos. A terapêutica,
aplicada então, pôde reduzir a quantidade dessas manifestações o que favoreceu o
aparecimento de outras produções, ainda que ocorressem apenas em alguns momentos
restritos das sessões fonoaudiológicas. Esse resultado, disse a fonoaudióloga, teria sido
promovido pelos “efeitos do cruzamento entre fala/leitura/escrita/gestos” introduzidos nesses
encontros. Outro recurso que começava a ser implementado, com esse paciente, poucos meses
antes do atendimento ser interrompido, foi uso do PCS (Picture Communication Symbols).
Contudo, sua eficácia clínica não pôde ser avaliada.
Em minha primeira sessão com o Sr. Josué, ele compareceu sozinho. No diálogo
comigo, respondia com fala e com escrita. A fala, correspondia às estereotipias já
mencionadas. A escrita para mim, nesse momento, era composta apenas por números.
Reconheci nessa escrita estranha e que não se lia, uma presença: Sr. Josué “queria responder”.
Nessa mesma sessão, uma surpresa: uma fala diferente, outra, que não aquela estereotipada, o
que pareceu-me promissor porque, diferentemente do que eu havia recebido, o Sr. Josué,
produziu algo além de suas estereotipias. Um apontamento: ele levou sua prancha do PCS,
mas ela não foi utilizada (nem nesta sessão e nem em outras).
Pude logo constatar que repetir a minha fala era uma forma de bloquear a irrupção
insistente e indesejada das mesmas palavras. Propus que lêssemos: eu lia com e para ele
pequenos textos e ele procurava repetir. Em meu horizonte, mais do que a verificação da
preservação (ou não) dessas habilidades, eu visava a possibilidade dele poder “escutar-se
numa fala outra” e de assumir a posição de falante/leitor. Bem, Josué escolhia os textos, fazia
cópias (com diferença) e era capaz de, na sessão seguinte dizer onde havíamos parado - ele
lia, portanto. Também, sua leitura em voz alta, em repetição à minha, vinha com trocas e
84
distorções fonêmicas, mas era inteligível
70
. Nessa leitura/repetição notei, também, que em
alguns raríssimos momentos, Josué se antecipava ao texto e palavras (daquele texto ou de
outro) surgiam. Esses acontecimentos o deixavam visivelmente entusiasmado, embora não
fossem sustentados.
Os erros de cópias não eram reconhecidos por ele. Foi só depois de meus
assinalamentos para a diferença entre o texto de base e o seu que começaram a ocorrer
rasuras, mesmo que raramente chegassem a corresponder às palavras do texto. Apesar de todo
o empenho e da variedade de propostas feitas a ele, sua fala e escrita mantinham-se
esclerosadas, duras, sem mobilidade. Quando solicitava que escrevesse o que quisesse, Sr.
Josué ora respondia prontamente e escrevia, ora indicava (com gestos/expressões) que não
conseguia/conseguiria. Se eu pedisse para escrever seu nome, ele podia escrever, numa
mesma sessão: (1) josué (em minúsculas), (2) JOSUÉ (em maiúsculas), (3) Josué (com
acento) ,(4) Josué Car Xaves, (5) Josué CArlos – Carlos Xaves, (6) JO, (7) JO53 (com
letras e números) . Essas estranhas composições que envolviam maiúsculas e minúsculas,
nome e sobrenome, letras e números, indicavam a indeterminação da matéria gráfica para ele,
um homem que uma vez já pôde escrever. Estranho, mesmo, não se tratar de uma escrita
qualquer e, sim, da escrita do seu nome
71
. Bosco (2003) sustenta o nome próprio é o lugar da
identificação do sujeito na escrita. Na assinatura, portanto, ele fica investido pois ela
proporciona uma relação particular entre o ele e seu nome. Não se segmentam nomes
próprios, mas o Sr. Josué segmentava o próprio. Assim, a técnica da escrita parecia não ter-se
perdido (ele podia copiar), mas ele havia perdido sua condição de escritor – nem mesmo seu
nome próprio ficou preservado, perdeu-se entre números na massa indistinta da matéria
gráfica. Algumas mudanças, notáveis na leitura, na cópia, nas repetições com diferença, não
obscureciam a gravidade de sua condição.
Com essa avaliação, retomei o atendimento seis meses depois, com a certeza de que
Josué se beneficiaria do uso de um “sistema alternativo de comunicação”. Quero deixar claro
que, em meu horizonte, estava a possibilidade de que os símbolos que compõe este sistema
poderiam movimentar a fala/escrita do paciente, já que, como mostrou Vasconcellos (1999),
70
Interessante que Josué não conseguia ler/repetir mais do que duas palavras em seqüência mas isso não o
impedia de progredir no texto. Ao contrário, nessa atividade palavras (que ele não escutava em sua voz) eram
faladas e o surpreendiam.
71
Convém lembrar que Goldstein e Luria, presentes neste trabalho, observaram e registraram, cada um à sua
vez, que o nome próprio é, muitas vezes a única escrita que fica preservada.
85
eles símbolos crianças PC (que não oralizam) podem se comunicar através deles. Além disso,
nos dados analisados por ela, vemos que oralidade, escrita e “símbolos” gráficos se cruzam.
Propus ao Sr Josué, então, a (re)introdução do PCS. Ele já havia passado por isso no
atendimento anterior e respondeu com entusiasmo à “nova” aposta e, sem dúvida ele parecia
ter razão. A seguir, trago um segmento de sessão em que o Josué se utiliza dos símbolos
para iniciar uma narrativa:
1. J: (apontando a figura do “bolo”) É isso aí, é isso aí!
2. T: O que que tem o bolo?
3. J: Olha.... é isso , é isso ... olha, isso aqui... parabéns à
você... (cantando)
4. T: Aniversário? Aniversário de quem?
5. J: (faz sim com a cabeça) Do::::.. ai caramba... do:::... é isso
aí, é isso aí (fazendo gesto indicativo de pequeno)
6. T: Do seu neto? O pequeno?
7. J: I::::sso:::!!!! Olha lá... (risos) “parabéns à você, nesta data
querida (canta a música inteira)
8. T: (canta junto) Foi ou vai ser?
9. J: Vai ser, vai ser (pega a caneta e a folha de papel)
10. T: Quantos anos?
11. J: (escreve o número 1)
12. T: Um aninho?!
13. J: Isso! Um aninho!
O Sr. Josué instiga a terapeuta a participar do diáologo introduzido por ele. Através de
um símbolo, dá o ponto de partida e, na relação fala/escrita/gestos/símbolo, faz laço com a
fala do outro e sustenta o encadeamento. Na sua “produção espontânea” ultrapassa o nível da
palavra: é um segmento, um texto sustentado e produzido por ele. Neste pequeno trecho,
temos estereotipias (1, 3, 5) aliadas a outras palavras; a escrita entrando no lugar da fala (11) e
o gesto fazendo complemento ao seu enunciado (5). Nessa composição, as estereotipias,
embora notáveis, vêm no interior de um diálogo e, ali articuladas, perdem o peso de
“estereotipias típicas”.
86
É fato que, assim como antes da introdução do PCS, as mudanças se restringiam às
sessões fonoaudiológicas. Sua fala não mudou ao ponto de se tornar interpretável,
“comunicativa”, mas o paciente pôde escutar-se e surpeender-se em novas posições. A “fala
pela escrita” muitas vezes viabilizou a retomada/sustentação de uma direção dialógica pelo Sr.
Josué (restringindo, de certo modo, a interpretação do outro) – ainda que não de modo
permanente e sistemático.
Eu via nessa oscilação menos do que impossibilidade clínica, um certo
desinvestimento do paciente. Faltas e desistência de participação nos grupos do CAAf
72
começaram a ocorrer. Fato é que, o Sr. Josué era trazido para o atendimento por familiares e
muitas vezes, me interroguei se seu visível desgaste e desânimo eram dele ou da família. Mais
de uma vez, convoquei todos para entrevistas e ouvia que ele era trazido para a DERDIC, por
obrigação e não por acreditar que ele viria a melhorar. Diziam que já havia passado muito
tempo do episódio do AVC e sem mudanças. Cheguei a sinalizar que uma clínica outra (a
psicanalítica) poderia ajudá-los neste enfrentamento. Meus argumentos e tentativas de mantê-
lo ligado à terapia e ao CAAf fracassaram - era o fim do tratamento.
No olhar retroativo que agora realizo sobre esse atendimento, várias questões
73
podem
ser levantadas. Fico, porém, com aquela que também perpassa a apresentação do caso anterior
(de Mirela): o abandono do tratamento. Questão que ambos têm em comum, mas que deve
receber respostas diferentes, a meu ver. Devemos considerar que as condições lingüísticas de
cada um deles era bastante diferente e que isso permitia a Mirela que se apresentava
“determinada” e “autônoma”. Quanto ao Sr. Josué, a situação era bastante outra – ele era
“dependente” tanto da interpretação do outro e, por isso, também para se locomover até o
local do atendimento. No caso de Mirela, penso que o abandono do atendimento esteve, em
parte, ligado ao fato de que dela não suportar o olhar do outro-terapeuta para sua escrita
(frágil, titubeante), que desafiava sua aparência de “adulta autônoma”. Há outra parte, vejo
hoje, que pode ser relacionada ao conflito que minha insistência de “vamos enfrentar sua
dificuldade” estabeleceu – lembre-se que sua demanda era essa. Uma questão de manejo entra
aí: no complemento que fiz à demanda de Mirela, um conflito emergiu - um conflito cuja
solução foi a do abandono do atendimento. Assim, entendo que minha insistência despertou
72
O Sr. Josué era um assiduo participante dos grupos de artes, teatro e atualidades que constituem o “Ponto de
Encontro” do CAAf. Em todos estes espaços ele se destacava demonstrando empenho e habilidade em realizar as
propostas. Era um membro importante para o funcionamento destes grupos.
73
Como por exemplo: (1) por que a prancha do PCS não foi utilizada desde a primeira entrevista, já que o
paciente a trouxe? (2) por que a insistência no “procedimento” de cruzamento fala/leitura/escrita?
87
sua resistência ao tratamento. Note-se que, como Catrini (2003), acredito ser importante
uma discussão sobre transferência na Clínica de Linguagem.
A condição sintomática do Sr. Josué, que permaneceu em atendimento por 1 ano e
meio, foi diversa, conforme meu entendimento. Ao logo do tratamento, minha insistência em
conduzi-lo a partir de atividades de leitura/escrita não encontrou resistência, o que também
deve ser levado em consideração. O que estaria no horizonte desta insistência? Penso que um
desejo meu de que sua fala pudesse ser descolada da estereotipia e decolar. Frente ao
persistente fracasso desse empreendimento clínico, sugiro a reintrodução do PCS. Após
meses, o Sr. Josué respondeu com entusiasmo à “nova proposta”, assim como sua família.
Contudo, sua recusa, no tratamento, ao uso sistemático desse sistema alternativo de
comunicação, indicava a presença de conflitos e do abandono do tratamento (de que a família
participou de modo importante). Diferente que possa ser este caso, a solução do conflito foi a
mesma – fim de atendimento. Acredito que os dois casos, abordados aqui, tenham um valor
para as discussões sobre a Clínica de Linguagem e penso que a questão clínica maior que ele
suscita seja aquela sobre escuta e manejo de crises que se manifestam como um conflito que
vem sob a forma de resistência ao tratamento .
88
CONCLUSÃO
Neste trabalho, procurei abordar a relação fala-leitura-escrita na afasiologia. Isto
porque, a heterogeneidade sintomática, entre estas duas manifestações da linguagem, e a
marginalidade desta investigação nos estudos afasiológicos, sempre me intrigou. Na
investigação sobre esta relação no âmbito dos afasiologistas, apresentada no capítulo 1, pude
constatar que a escrita se apresenta como instrumento e, portanto, representação (seja do
pensamento, seja da fala). Não surpreendente, pude ver também que, leitura e escrita ocupam
importantes papéis nas decisões diagnósticas mas são poucos exploradas na clínica. Fato
justificável uma vez que tais autores se comprometem com questões médicas/psicológicas e
não de linguagem – por isso encaminham. Vale a pena destacar, no entanto, que todos os
autores investigados se depararm com a mesma heterogeneidade que me impulsionou neste
trabalho (que sintomas na fala e na leitura/escrita não coincidem) mas não vão além da
minunciosa descrição sintomática.
Na Clínica Fonoaudiológica, discutida no capítulo 2, chama atenção que pouca
diferença há com o raciocínio afasiológico. Mesmo dizendo sobre uma clínica de reeducação,
Basso, por exemplo, não se afasta da descrição organicista do sintoma, utilizando a escrita
como diferencial diagnóstico em sua avaliação. Em sua clínica, atribui à esta manifestação da
linguagem o papel de prompting da oralidade e afirma que, caso esteja alterada (a escrita),
dificilmente poderá ser “recuperada/reeducada”. Santana, por sua vez, propõe uma clínica em
que a etiologia ou a descrição sintomática cede espaço à manifestação sintomática e seu
impacto social. Porém, como procurei demonstrar, não se afasta de Basso ao considerar a
escrita como instrumento do pensamento, propulsor da oralidade. Na apresentação das duas
fonoaudiólogas representantes do cenário do campo, chama a atenção que uma Clínica
Fonoaudiológica, comprometida com a linguagem por definição, não vá além das observações
sintomáticas realizadas por afasiologistas da Clínica Médica e/ou Neuropsicológica.
Um ponto de virada pareceu-me necessário. Trouxe à cena, então, os capítulos 3 e 4
apresentando um novo olhar sobre a leitura/escrita através de esclarecimentos teóricos sobre a
escrita e discussões de casos clínicos. O primeiro deles, Zazetsky, ilustrou a interpretação de
Luria sobre os sintomas afásicos e permitiu a introdução de uma discussão com diferença.
89
Comprometida com a Clínica de Linguagem, introduzi a apresentação dos casos para além da
interpretação dos dados: manejo clínico e transferência se impuseram como discussão
necessária para esta clínica.
Neste trajeto, chamou a atenção que todos os pesquisadores (afasiologistas e
fonoaudiólogos) investigados notaram e registraram os mesmos acontecimentos
surpreendentes e misteriosos na fala/leitura/escrita. Posso concluir dizendo que eles observam
sinais da doença (que compõem o quadro nosográfico das afasias) mas não refletem sobre a
relação afásico-leitura/escrita, nem sobre efeitos clínicos. Desse modo, não podem levantar
questões sobre os impasses vividos nessa clínica, como vimos na apresentação do caso de
Zazetsky, e diferente do que procurei demonstrar nos relatos dos casos de Mirela e Josué
Xaves. Espero então, que nesse empenho, este trabalho possa, para além da afasia, contribuir
para a discussão sobre impasses e manejos na Clínica de Linguagem.
90
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