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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Crianças em contextos de
violências sexuais: a gestão do
atendimento num Programa Sentinela de
Santa Catarina
Mestranda: Regina Ingrid Bragagnolo
Orientadora: Profª Drª Ana Maria Borges De Sousa
Florianópolis, abril de 2006.
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REGINA INGRID BRAGAGNOLO
Crianças em contextos de
violências sexuais: a gestão do
atendimento num Programa Sentinela de
Santa Catarina
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências da
Educação da UFSC, na Linha de Pesquisa Ensino e
Formação de Educadores, como exigência para obtenção
do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª Ana Maria Borges de Sousa
Florianópolis, abril de 2006.
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Verbo ser
Que vai ser quando crescer? – vivem perguntando em redor.
Que é ser? É Ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo, jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível ser? Dói? É bom? É triste?
Ser: pronunciado tão depressa e cabem tantas coisas (...)
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender.
Não vou ser. Não quero ser.
Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer
.
Carlos Drummond de Andrade
Sinceros agradecimentos...
A minha orientadora Aninha, referência de saber e afeto pela sua firmeza suave, pois essa
dissertação não teria sido possível sem seu trabalho, sua ajuda, sua paciência e sua
sensibilidade em me auxiliar na tentativa de parir-me como autora.
Ao meu companheiro Leandro pela cumplicidade, parceria aliados aos afetos sempre
presentes nos momentos de escrita mais tensos e aflituosos. Obrigada por dividir angustias,
incertezas, alegrias, utopias e principalmente pelo incentivo e compreensão.
Aos profissionais do Programa Sentinela pela vivência de proteção à cidadania praticada e
compartilhada e pela receptividade na realização dessa pesquisa.
As crianças e suas mães resistentes, com quem chorei, aprendi e descobri que somos maiores e
mais fortes que nossas circunstâncias e amarras.
Aos meus familiares que toleraram minhas ausências e suas presença em minha vida através
da eterna gratidão pelos gestos de bondade e estima inesquecíveis.
Aos amigos e sempre professores da formação em Psicologia Social do IPPSEA,
principalmente a Patrícia de Moraes Lima, pessoa especial em minha vida, em quem me
inspiro nos princípios de competência profissional.
As minhas queridas amigas incondicionais do Núcleo Vida e Cuidado, em especial a Deise
Rateke e Lucimara Maffei, Rosélia e Joelma pela colaboração e apoio dado nas trocas, nos
desabafos, nas brincadeiras enfim a cada instante que cultivamos nossos laços de amizades.
Aos professores(as) e colegas da pós-graduação pelos desafios postos.
Aos marafeiros que aos sábados a noite oportunizavam-me relaxar ao som da música Noite de
prazer de Cláudio Zoli dentre outros.
.
SUMÁRIO
SUMÁRIO.................................................................................................................................. 7
RESUMO ................................................................................................................................... 9
ABSTRACT.............................................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................11
RETALHOS QUE TECEM A PESQUISA ............................................................................ 17
1.1 Uma metáfora para apresentar: o caleidoscópio.............................................................. 18
1.2 Os meandros da Rede de Atenção à Infância................................................................... 20
1.3.1 Os ecos silenciados das violências no cotidiano escolar............................................... 27
1.4 Os fios que tecem as questões metodológicas................................................................... 30
CAPITULO II.......................................................................................................................... 37
AS TEIAS DAS VIOLÊNCIAS E O PROGRAMA SENTINELA ........................................ 37
2.1 Um ensaio de complexidade no olhar das violências....................................................... 38
2.3 Os retalhos que tecem as violências: sexualidade e gênero............................................. 48
CAPÍTULO III ........................................................................................................................ 60
INFÂNCIA: LUGARES E DISCURSOS............................................................................... 60
3.1 Breve cenários das violências que marcaram as histórias das infâncias no Brasil........ 61
3.2 O não lugar: ocultamento do discurso das crianças no Programa Sentinela................. 63
3.3 Olhares e lugares construídos: crianças e indícios de violências.................................... 69
3.4 As violências sexuais atreladas à perda da inocência...................................................... 73
3.5 Pobreza e violências: um entrelaçamento indissociável?................................................ 78
CAPÍTULO IV......................................................................................................................... 83
INFÂNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ................................................................................ 83
4.1 Histórias e amarras: breve trânsito pelos cenários das violências na infância e a
constituição das políticas públicas.......................................................................................... 84
4.2 O itinerário das crianças nos atendimentos: a gestão no Programa Sentinela.............. 91
4.3 As visitas domiciliares e a gestão do espaço privado........................................................ 94
4.4 A centralidade do processo terapêutico no Programa Sentinela..................................... 97
4.5 Aspectos pedagógicos da gestão do Programa Sentinela: cuidado e promoção de
políticas públicas.................................................................................................................... 101
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.... ...................................................................................... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………………..117
ANEXOS…………………………………………………………………………………….127
RESUMO
Esta dissertação de mestrado será apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
do Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina e está vinculada à
Linha de Pesquisa em Ensino e Formação de Educadores. Tem por objetivo discutir como as
concepções de violências dos(as) profissionais do Programa Sentinela tecem as ações
atinentes à gestão do cuidado no atendimento às crianças inseridas em contextos de violências
sexuais. A pesquisa foi realizada num dos Programas Sentinelas da Região da Grande
Florianópolis, tomando por referência os “casos” atendidos e os prontuários instaurados
durante os anos de 2004 e 2005. Dada a complexidade do tema, a opção metodológica foi
guiada por uma perspectiva etnográfica, para situar as nuances qualitativas implicadas em
cada uma das ações que dão movimento ao Programa. Nessa travessia pude investigar os
registros documentais e as rotinas dos profissionais, participar com eles dos “estudos de
casos” e das visitas domiciliares de atenção às crianças violentadas, bem como, trocar
impressões nos momentos de interdiálogos. A partir das mediações de Morin, Sousa,
Maffesoli e Foucault, problematizei como os procedimentos práticos realizados pelos(as)
profissionais, os discursos e os saberes sobre a infância, as violências e as famílias revelavam
as faces da gestão do cuidado nos processos de atenção realizados pelo Programa Sentinela.
Uma gestão multifacetada pelo viés da biopolítica, do cuidado de si, das reproduções de
violências e dos olhares adultocêntricos. Uma gestão que se move também pela falta de
investimentos nas políticas públicas, através da precarização de recursos humanos, financeiros
e materiais, o que prejudica a formação continuada dos profissionais que ali atuam e provoca
o não acolhimento das crianças violentadas, vergonhosamente deixadas nas filas de espera,
conforme a compreensão jurídico-normativa da intensidade de seu sofrimento, o que se revela
como um dos contornos das violências.
Palavra-chaves: violências sexuais, infâncias, políticas públicas.
ABSTRACT
This study aimed at presenting a discussion on how the conceptions of violence professionals
at the Programa Sentinela have define the actions addressing the care management of children
living in the context of sexual violence (abuse). The research was carried out in one of the
Programas Sentinela in the region of Florianópolis, based on the medical cases attended to
and the reports made from 2004 to 2005. Due to the complexity of the subject, the method
chosen was within an ethnographic perspective so that it was possible to identify the
qualitative nuances implied in each one of the actions giving movement to the Program. The
research involved investigating the documentations and the professionals’ routine,
participating with them in the “case studies” and in the home visits to the abused children, as
well as exchanging opinions during the conversations. Drawn on the mediations proposed by
Morin, Sousa, Maffesoli, and Foucault, the research question was how the practical
procedures used by the professionals, their discourses and their knowledge about childhood,
violence and the families revealed the faces of the care management in the attention processes
carried out by the Programa Sentinela. A management multifaceted by the perspective of
biopolitics, self care, abuse continuation, and adultcentric view. A management that is
characterized by the decrease in human, financial and material resources, which, in turn,
affects negatively the continuing education of the professionals causing a neglect in care of
the abused children who are shamefully abandoned in waiting lines, according to the juridical
and normative understanding of the intensity of their suffering, which is revealed as one of the
forms of the violence.
Key-words: sexual violence (abuse), childhood , public politics.
11
INTRODUÇÃO
Os prismas do campo: o encontro com o Programa Sentinela
Encontrar é algo que se faz sozinho. Encontrar é
também o que se faz quando se abrem os olhos
(Foucault, 2003:47).
O encontro com um dos Programas Sentinela da Região da Grande Florianópolis
1
aconteceu nos dois últimos anos, em razão das atividades realizadas pelo Núcleo Vida e
Cuidado
2
, do qual participo e que foi o local onde se originou o tema da presente pesquisa. No
ano de 2004 e 2005 pude acompanhar mais de perto alguns encaminhamentos realizados
pelos(as) profissionais
3
que ali atuavam, para compreender o contexto (relacional, familiar,
sócio-cultural) observado e, com isso, conciliar a reflexão sobre as ações de atendimento no
Programa Sentinela, pois, conforme Morin (2001:36), é preciso situar os dados em seu
contexto para que estes adquiram sentidos.
O foco do meu olhar estava dirigido à gestão do atendimento às crianças de zero a
doze anos
4
inseridas em contextos de violências. No decorrer da pesquisa pude constatar que o
financiamento destes Programas conta com a participação das esferas do governo federal e
municipal, em contrapartida, o município deve responsabilizar-se por garantir a coordenação,
por contratar um profissional que seja graduado no ensino superior, além do espaço físico com
os equipamentos indispensáveis à infra-estrutura, materiais de expediente, veículo e
combustível.
1
Não será identificado o município que o Programa está localizado em função do sigilo ético.
2
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Violências. É um espaço interinstitucional vinculado ao CED/UFSC,
com a parceria do IPPSEA (Instituto de Planejamento, Pesquisa Social e Estudos Avançados) e UDESC. Desde
2003, vem realizando pesquisa junto aos Programas que atendem crianças inseridas em contextos de violências
na Região da Grande Florianópolis.
3
As identidades dos sujeitos estão protegidas. O anonimato contempla não só o material escrito, mas também os
relatos verbais registrados durante as observações.
4
O Programa Sentinela é um programa que surgirão a partir do Estatuto da Criança e Adolescente, como base
sócio-educativo, orientação e apoio sócio familiar. Também atende adolescentes de treze a dezoito anos em
situações de violências e exploração sexual.
12
No município em que realizei a pesquisa, os investimentos destinados à infância e
juventude são mínimos. Por muitas vezes observei que os(as) profissionais do Programa
Sentinela escreviam ofícios solicitando recursos como, por exemplo, carro e motorista para as
visitas domiciliares junto às famílias das crianças abusadas
5
. Esses recursos estão respaldados
por um arcabouço legal e institucional que garante a efetivação das atividades e dos(as)
profissionais do Programa Sentinela.
O horário para as ações do Programa é diurno e está previsto o acompanhamento de
cinqüenta crianças e/ou adolescentes com seus familiares. O Governo Federal garante o
pagamento de três destes profissionais: um(a) pedagogo(a), um(a) assistente social e um(a)
psicólogo(a). Tais profissionais são contratados em regime de trinta horas semanais e contam
com o apoio de uma estagiária de Serviço Social, que realiza suas atividades num dos
períodos de atendimento. Aqui pode se observar uma face concreta da realidade dos maus-
tratos às infâncias, realidade esta expressa pela gestão municipal que não amplia a equipe de
profissionais em atendimento integral.
Na data de 21 de maio de 2005, catorze crianças e
adolescentes aguardavam atendimento na fila de espera, o que evidencia que as políticas
públicas de atenção e proteção à infância não contemplam as demandas municipais. Parece
haver um desrespeito ao que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e, por
conseqüência, a reedição de novos abusos, agora com o crivo da negligência e a inoperância
do poder local.
É importante ressaltar que, em 2004, o Programa Sentinela estava localizado num
prédio da prefeitura, juntamente com o Programa Sócio-Familiar, dispondo de uma secretária
para ambos. Nesse local havia salas de recepção, computação e cozinha compartilhadas e salas
separadas para os(as) profissionais de cada Programa, sendo que a maioria dos ambientes
estava decorada com inúmeros cartazes informativos destinados às crianças, com desenhos
ilustrativos e também com muitos brinquedos, principalmente bonecas, ursinhos e carrinhos.
Já em 2005, o Programa Sentinela foi transferido para outro prédio da prefeitura, mas a sua
estrutura permaneceu compartimentada por salas de atendimentos. Atualmente estão, nesse
prédio, outras políticas públicas que atendem crianças e adolescentes, dentre as quais: o
Plantão Social, o Programa Bolsa Família; o Apoio Sócio-familiar, o Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil, o programa de Liberdade Assistida e o Conselho Tutelar.
5
Em 1º de abril 2005, observei a pasta dos prontuários. Até essa data, havia 42 prontuários em processo de
atendimento e 52 crianças acompanhadas, sendo 9 meninos e 43 meninas. Essas crianças e adolescentes são
chamados casos diretos. Os casos indiretos dizem respeito as outras pessoas envolvidas (familiares). No arquivo
dos chamados prontuários mortos estão registrados 69 prontuários com 71 crianças que foram atendidas e seus
casos foram encerrados.
13
Durante essa morada deslocada (Geertz, 1978) neste campo, para mim até então
desconhecido, pude conviver com a equipe de profissionais, especialmente no ano de 2004. A
equipe era composta por uma psicóloga, uma assistente social, um pedagogo e uma graduanda
em Direito que, naquele momento atuava como coordenadora. Havia ainda um estagiário de
Psicologia e outro, estudante do curso de Direito. No ano de 2005 tive a chance de aprofundar
o meu contato com estas pessoas e passei a conviver mais de perto com a psicóloga, a
pedagoga e a assistente social. No âmbito desta convivência e de posse de algumas
informações pesquisadas, nasceu a oportunidade para elaborar algumas questões sobre o
fenômeno das violências e sobre a gestão do Programa Sentinela enquanto política pública
destinada às crianças e aos adolescentes.
Como um fenômeno multidimensional e complexo, vou considerar a violência sexual
no plural, portanto como violências, em razão da multiplicidade de aspectos que constituem
cada ato realizado. Um estupro, uma conduta exibicionista, uma prática sexual qualquer,
quando envolve uma criança e um adulto, não podem ser acontecimentos interpretados pelo
ato singular. Neles estão presentes inúmeras singularidades, atravessadas pela dor de um e
pelo prazer do outro, conjugando os medos com a dominação, a sujeição, a agressão física, o
não-compreendido, o imediato e o duradouro, pelo menos.
Acredito que distintas e emaranhadas manifestações de violências estão presentes na
dinâmica relacional: simbólicas, físicas, psicológicas. No contato com as crianças atendidas
pude constatar que as violências não acontecem separadas, geralmente são concomitantes,
pois marcam dimensões específicas de cada uma delas. As violências são corporificadas, no
entanto, as violências físicas aparecem algumas vezes nas marcas corporais (lesões,
queimaduras, hematomas); já as práticas simbólicas e psicológicas causam sofrimento interno,
dano à sua integridade emocional e social. Estas manifestações, entre outras, têm em comum a
violação dos direitos das infâncias, das suas humanidades, das suas escolhas, entre outros.
Assim, nesta multidimensionalidade, as violências são tecidas conjuntamente. Por isso,
vou tratar como formas abusivas as manifestações de negligência, coação, tortura corporal,
humilhação, punições, exploração sexual, trabalho infantil ilegal e insalubre, estimulação
sexual, realização ou tentativa de penetração sexual, seja pela via oral, anal ou genital. Tais
violências são concretas, são históricas, são culturais, produzidas no tecido social e dele se
nutrem. Contudo, são também fluídas, porque se escondem e se revelam num mesmo
movimento, cuja dinâmica nunca expressa a mesma face.
14
A problemática que discuto nessa dissertação foi tecida a partir do olhar inquieto em
direção às violências sexuais, que são lancinantes por seu caráter adultocêntrico
6
. O traçado
inicial, aos poucos foi se delineando através da visibilidade destas violências observadas no
processo de atendimento do Programa Sentinela. Assim, compreender como ocorriam às
estratégias de intervenção dos(as) profissionais do Programa incitou o meu olhar curioso
enquanto pesquisadora, muitas vezes causando ruídos e desconforto. A experiência de
reconhecimento do campo
7
e a aproximação com os sujeitos envolvidos, que se deu através do
contato realizado em dois momentos: primeiro no segundo semestre de 2004 com o registro
dos prontuários e outros documentos e o segundo no primeiro semestre de 2005 realizado na
perspectiva etnográfica, onde acompanhei os(as) profissionais nas suas rotinas de
atendimentos. Isso que me permitiu intuir algumas pistas para a continuidade e o
aprofundamento desta pesquisa. Assim, instalou-se em mim uma intensa impaciência, a partir
da qual surgiram alguns eixos que enfoco nessa dissertação: compreender os aspectos político-
sociais e teórico-práticos que orientam as ações do Programa Sentinela; mapear através dos
prontuários e outras fontes documentais (laudos periciais, registros em fichas evolutivas,
boletins de ocorrência), os procedimentos dos(as) profissionais no atendimento às crianças;
problematizar como os(as) profissionais concebem as violências sexuais praticadas contra as
infâncias e como estas concepções sustentam a gestão do atendimento no Programa Sentinela.
Entre múltiplas questões presentes no cenário da pesquisa, uma em particular
constituiu o ponto de partida para formular o objetivo desta dissertação: problematizar os
aspectos que tecem as ações do Programa Sentinela na gestão do atendimento às
crianças inseridas em contextos de violências sexuais. Neste espaço de tantos desafios, o
meu foco foi sendo melhor direcionado no sentido de desenhar o principal dessa pesquisa, ou
seja, o modo como esses(as) profissionais realizavam seus afazeres. Juntando os retalhos de
muitas observações formulei o meu problema de pesquisa, a partir dos adereços que o cenário
foi permitindo ver:
Como as concepções dos(as) profissionais sobre as violências sexuais praticadas contra
as infâncias, engendram as ações que dão sentido à gestão de atendimento no Programa
Sentinela?
6
Essa expressão refere-se à visão, ação no mundo centrada e organizada sob a ótica do adulto.
7
Penso o campo como o lócus, o espaço das relações que podem ser praticamente percebidas, ditas, construídas
segundo diferentes princípios de visão. Um espaço onde se manifestam as relações de poder, o que implica dizer
que ele se estrutura a partir da distribuição desigual e de um capital social que determina a posição que um agente
ocupa no seu espaço. (Bourdieu, 1983).
15
É a partir desse recorte que a organicidade dessa dissertação se configura. No primeiro
capítulo, Retalhos que tecem a pesquisa, apresento a metáfora do caleidoscópio para
localizar os pressupostos dessa dissertação. Em seguida, situo o contexto da rede de proteção à
infância, especificamente o Programa Sentinela. Nesse mesmo capítulo retomo a minha
trajetória pessoal e profissional, entrelaçando-a com a temática das violências e as questões
que tecem a metodologia na perspectiva etnográfica. No segundo capítulo, intitulado As teias
das violências e o Programa Sentinela, discuto as violências a partir do olhar da
complexidade, situando-as no Brasil e dentro do Programa Sentinela. Observo também as
várias faces das violências e como elas se materializam no campo da pesquisa realizada. Já no
terceiro capítulo, o qual intitulei Infâncias: lugares e discursos, problematizo a forma como a
gestão adultocêntrica permeia as práticas discursivas dos(as) profissionais do Programa
Sentinela, práticas discursivas estas referentes às crianças e com as quais se entrelaçam os
saberes médicos, jurídicos, psicológicos, pedagógicos, deterministas e biologizantes. O último
capítulo, Infâncias e Políticas Públicas, faço uma abordagem contornando algumas práticas
que são priorizadas pelo Programa nos atendimentos às crianças, com o desejo de
compreender como estas práticas se fazem formas que tecem a gestão dessa política pública.
Para elaborar os capítulos acima foi primordial o diálogo com alguns autores,
selecionados por mim pela identificação com suas reflexões e pelas contribuições que
apresentam para as temáticas que envolvem as discussões ora realizadas. As formulações
desses autores foram aprofundadas para que a tessitura teórico-metodológica tivesse
consistência.
Como desafio busquei enveredar por uma trilha sinuosa, cujos detalhes exigiam um
olhar que revelasse a complexidade dos cenários e seus adereços. Para isso, autores como
Morin, Maffesoli, Foucault e Sousa foram indispensáveis para transformar as roupagens que
vestiam o meu olhar inicial. Com eles e com as experiências do campo aprendi a estranhar o
conhecido previamente, a desterritorializar minhas certezas e as perspectivas positivistas que
comparam, confirmam e generalizam, afirmam verdades que acreditam esgotar as explicações
da realidade pesquisada.
Através da abordagem crítica de Michel Foucault compreendi, de modo possível,
como os discursos acerca das crianças, dos seus familiares, assim como das violências, são
produzidos por saberes que se materializam numa relação de poder, cujos efeitos são
expressos na gestão biopolítica do Programa Sentinela, por meio da produção de saberes, de
estratégias e de práticas. A perspectiva suscitada pelo pensamento foucaultiano, me permitiu
pensar as diferenças entre poder, violências e assujeitamento e a gestão do Programa pautada
16
na perspectiva do cuidado de si enquanto uma das práticas da governamentalidade atrelado ao
cuidado de si. Nesse sentido trago a concepção de um sujeito instaurado pelo olhar
foucaultiano, onde se constitui com as técnicas de si, juntamente por técnicas discursivas.
A leitura de Edgar Morin possibilitou que a minha incursão na pesquisa pudesse estar
pautada numa perspectiva teórico-metodológica plena de incertezas, onde as relações
dialógicas, recursivas e antagônicas, forjaram instâncias necessárias ao fenômeno pesquisado.
Esse autor me convidou para pensar a pluralidade do campo, procurando religar o que estava
separado e a ver onde as desordens semeiavam novas formas de organizações.
Mafessoli, por sua vez, orientou compreensão na multidimensionalidade das
“violências totalitárias”, como um elemento essencial da construção simbólica do social:
precisamente naquilo em que ela nos liga, ou nos realiza (Mafessoli, 2004:70). Também tecer
como as sínteses de violências totalitárias são marcadas pelo vazio e pela falta de dinamismo
entre os pólos do bem e mal, natureza e cultura, pensamento e sentimento dentre outros.
Assim, com esse autor pude realizar a crítica ao projeto homogêneo de domínio do sujeito,
visto enquanto uma unidade articulada, homogênea e racional, excluindo as desordens, os
caos, as contradições presentes no dinamismo social.
Com Sousa tive a oportunidade de apreender os vários desdobramentos que entrelaçam
as violências praticadas contra as crianças e a indispensabilidade do cuidado nas práticas de
atenção, enquanto uma conduta ético-estético das instituições responsáveis pela gestão do
atendimento às crianças inseridas em contextos de vulnerabilidade e onde as violências se
manifestam.
Os autores acima citados trabalham numa perspectiva que emprega o plural, como
elemento fundamental nas formas de olhar. Não se conformam à ordem da normatização, mas
transitam pela perspectiva das diferenças, que possibilita a percepção de diferentes sentidos
em função de diferentes modos de ler. Esses autores têm em comum uma certa hesitação, uma
tensão, uma interrogação, uma inquietação que promove a observação da heterogeneidade de
formas de ler o mundo.
17
CAPÍTULO I
RETALHOS QUE TECEM A PESQUISA
[...] a imagem religa, fornece vínculos, relaciona
todos os elementos do dado mundano entre si.
(Maffesoli, 1995:115)
18
1.1 Uma metáfora para apresentar: o caleidoscópio
A escrita do presente texto tem por desejo evidenciar a síntese que o processo de
pesquisa gestou nesses dois anos em que estive vinculada ao Mestrado, cuja inspiração
recorreu à metáfora do caleidoscópio: talvez um pequeno brinquedo, quem sabe, uma grande
criação. Múltiplas imagens, infinitas formas, cores e luzes misturam-se numa só sinfonia para
dizer que cada uma das partes que o olhar vê é uma totalidade identificada pelo olho que mira.
De longe, uma visão se decifra; de perto, uma outra, que também é a mesma, mas que se
revela aos olhos com a singularidade da aproximação. É essa metáfora que perpassa o meu
olhar, agora focado na configuração dessa dissertação, e que, embora tenha exigências
acadêmicas, não quer perder a liberdade possível de ver o tema da pesquisa abraçado pelo
movimento indissociável de chegar mais perto e afastar-se.
Aproximar-se da intimidade, voltar para olhar o atendimento dos(as) profissionais no
Programa Sentinela foi fundamental para construir o vínculo com esses sujeitos e buscar as
fontes da pesquisa (prontuários, fichas evolutivas, projeto técnico, referências bibliográficas,
dentre outras). Também houve a participação em estudos de caso, nas visitas domiciliares, nos
encontros e seminários dos quais os(as) profissionais participavam ao longo do 2º semestre de
2004 e 1º semestre de 2005. A intenção foi tecer os diálogos que possibilitariam a construção
da reflexão sobre o tema. Afastar-se, sempre que necessário, também foi indispensável para
vivenciar a experiência de ver-refletir o cenário e seus adereços, com as novas roupagens que
cada olhar-pensamento pode tornar visível. Olhar para o inominável, mais do que para o
nominado, a fim de desconfiar, desassossegar, estranhar e surpreender para não continuar
acreditando que nosso tempo, nosso espaço, nossa cultura, nossa língua, nossa mesmidade
significam todo o tempo, todo o espaço, toda a cultura, toda a língua, toda a humanidade
(Skliar, 2003:20). Foi com tal intencionalidade que iniciei essa dissertação, aberta às
necessidades que o campo empírico demandou nas interlocuções com os sujeitos e o
ambiente, onde complexas relações intersubjetivas estavam em contínua construção.
É a imagem do caleidoscópio, portanto, que me desafiou a compreender a
complexidade do tema que escolhi para pesquisar e que me orientou para re-conhecer as tantas
violências encarnadas nas violências sexuais, nas quais múltiplos aspectos estão envolvidos,
dentre os quais: as violências, as crianças, o agressor, o cenário e seus adereços, a dor de quem
sofre e a angústia de quem atende, a indignação diante do episódio, as implicações nebulosas
que eivam de conflitos as ocorrências. Ou seja, cada uma destas práticas está imersa num
19
acontecimento. E o acontecimento, segundo Foucault (Revel, 2005:58) sendo uma forma de
discurso
8
, permite observar a descontinuidade, as singularidades, os acasos, os traços
silenciosos, os fragmentos da existência que permite emergir ao mesmo tempo, dispositivos e
pontos de rupturas, planos de discurso e falas singulares, estratégias de poder e focos de
resistências. Isso me permitiu considerar os discursos dos(as) profissionais, sem a
preocupação com a freqüência e a repetição das narrativas. É isso que procurei considerar para
formular as narrativas trazidas do campo.
Constituída de uma humanidade que me deixou ser também a pesquisadora nesse
cenário, nem sempre foi possível distinguir a emoção sentida da razão crítica, ambas
misturadas em mim e nos meus registros. Lutei para não olhar de forma simplificada esta
problemática e, com isso, não cair nas armadilhas do engessamento, das fragmentações, dos
determinismos, das linearidades, dos binarismos, entendendo que a consciência dos limites do
conhecimento abre-nos o universo do conhecimento ao invés de fechá-lo. O verdadeiro
conhecimento é aquele que reconhece, em seu seio, a presença da incerteza e da ignorância
(Morin, 2002:34).
Envolvida pelos limites e possibilidades que carrego, adentrei na complexa teia que
compõe o fenômeno das violências sexuais contra as crianças, tendo como recorte a infância.
Assim, enfoco as crianças e não os(as) adolescentes do Programa Sentinela. Eis porque o meu
olhar não inclui as certezas, ele vai se movendo e gerando as imagens do que vejo, como no
caleidoscópio. Qualquer outro toque, me faz ver as imagens plenas de incertezas; com seu
caráter provisório, que seja dependendo do ângulo em que os espelhos eram colocados, as
imagens com suas diferenças iam se decifrando.
A tessitura dessa dissertação foi assim desafiada a ser um texto capaz de olhar o
contexto pesquisado, a fazer com que os olhares de aproximações e afastamentos se
entrecruzasse na forma de um contorno antropológico (Balandier, 1997), a fim de juntar os
fios articuladores, unir os retalhos, bordar as imagens e tecer todas as coisas causadas e
causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas ou imediatas, sustentadas por um elo que une
as mais distantes e as mais diferentes [formas de olhar] (Morin, 2001:37). Partindo, então, do
pressuposto de que tanto o caleidoscópio quanto a realidade não se deixam apreender por
inteiro, o olhar construído nessa dissertação é transitório e provisório.
8
São discursos que nos precedem, são constituídos historicamente e continuam nos atravessando. Um exemplo
de acontecimento que Foucault (Revel:2005) destacou foi a cisão entre loucura e não-loucura, onde analisa como
uma série de discursos, práticas, comportamentos, instituições que se constituíram historicamente e como essas
questões se estendem, se prolongaram no presente.
20
1.2 Os meandros da Rede de Atenção à Infância
Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos compõem uma parte considerável do
cenário brasileiro
9
. A Convenção da ONU sobre os direitos das crianças considera toda
pessoa, com menos de dezoito anos, uma criança. Assim sendo, leva-se em conta que 37% da
população mundial (Carlsson, 2000) é constituída por crianças, o que desconstrói a idéia de
que este é um grupo minoritário. A questão das violências atinge boa parte da infância e
permanecem silenciadas. Recentemente, a sua visibilidade tem sido intensificada pelas
conquistas das Políticas Sociais, Nacionais e Internacionais.
Em 2001, o Ministério da Previdência e Assistência Social, por meio da Secretaria de
Estado e Assistência Social criou os Programas Sentinelas
10
, objetivando ações estratégicas de
proteção às crianças e suas famílias que estivessem em situações de violências sexuais. O
surgimento desses Programas remete às inúmeras lutas dos movimentos e organizações
sociais, que articularam as políticas públicas para a infância e a adolescência. A indicação
desse tipo de Programa é registrada nas primeiras prescrições da Convenção Internacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente. A respeito das políticas públicas de assistência à
infância, o artigo 19 destaca:
Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas,
sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as
formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-
tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a
custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa
responsável por ela.
9
Na Base de Dados da Fundação ABRINQ, há o registro de 61 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, o
quais estão assim distribuídos: 23,1 milhões entre 0 e 6 anos e 27,2 milhões entre 7 e 14 anos. Essa população de
crianças e adolescente compõe 35,9% do cenário populacional do Brasil, sendo que 23, 5 milhões estão morando
na região Sudeste e 19,2, no Nordeste. Os dados retratam que a grande maioria das crianças e adolescentes
(77,9%) vive em áreas urbanas. Com relação à raça/etnia, a população infanto-juvenil distribui-se em 31 milhões
de brancos (51,2%), 25,8 milhões de pardos (42,7%), 3,2 milhões de negros (5,4%), 287 mil indígenas (0,5%) e
181 mil amarelos ou de origem asiática (0,3%).
10
O relatório da ONU (2003), sobre os Direitos da Criança, estima que existem Programas Sentinelas em
trezentos e quinze municípios, os quais atendem trinta e quatro mil crianças e seus familiares no Brasil. Ao
mesmo tempo, registra que ainda não foram implementados esses programas em sete estados brasileiros, os quais
não são citados pelo relatório. Capturado do site.www.onu.brasil.org.br/documento.php em 20-10-2004.
21
A formação de diversas associações que se articularam a outras em defesa dos direitos
da infância e da juventude no Brasil acabou influenciando a criação, em 1990, do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Pode-se destacar a luta dos movimentos sociais no bojo da
elaboração da Constituição de 1988, assim como o Ano Internacional da Criança, celebrado
em 1979, e a Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 1989. Também há a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, como um
documento jurídico internacional, integrado por representantes dos quarenta e três Estados-
membros da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Esse documento foi
aprovado pela Assembléia das Nações Unidas, em 1989, sendo expedido na comemoração dos
trinta anos da Declaração Universal dos Direitos da Criança.
Nesse período, ocorreu o aparecimento maciço de Organizações Não-Governamentais
(ONGs) na América Latina. Em termos gerais, as ONGs apoiaram as iniciativas dos
Movimentos Sociais nas comunidades e ofereceram assistência técnica em diversas áreas,
assim como participando da obtenção de fundos necessários para a execução dos projetos
(Pilotti 1995).
Essas reformas institucionais sobre os direitos da mulher e da criança foram
promovidas inicialmente pelas discussões do movimento feminista dos Estados Unidos, que
ocorreram, em torno de 1930. Parece-me que as feministas já estavam associadas aos
movimentos sociais e denunciaram as formas de violências e as possibilidades de proteção às
crianças. Nesse contexto, surgiram registros do parlamento Francês aprovando duas leis: uma,
retirando o direito paternal ocasionado pelos maus tratos; outra, as sanções penais previstas
para os(as) agressores(as). Observa-se que são históricas as estratégias que instauraram,
através da verdade jurídica, as normas sociais, o que evidencia o surgimento, no século XX,
de um movimento internacional em prol dos direitos das minorias identitárias, consideradas
aqui como grupos de mulheres, crianças, negros e homossexuais, por exemplo.
Nesse período foram criados inúmeros organismos nacionais e internacionais que se
mobilizaram promovendo congressos, seminários, estudos e pesquisas direcionados à situação
das violências sexuais, pensando a elaboração de políticas para o enfrentamento contra os
abusos sexuais de crianças e adolescentes. Assim, destaco art. 3 da Convenção sobre os
Direitos das Crianças, cujo objetivo é orientar a tomada de decisões políticas que afetam esses
indivíduos.
§1 Em todas as ações que envolvem crianças, empreendidas por instituições
de bem-estar social públicas ou privadas, cortes de justiça, autoridades
22
administrativas ou corpos legislativos, os maiores interesses da criança serão
uma consideração primária.
§2 Os Estados-membros se comprometerão a assegurar à criança a proteção
e o cuidado, necessários ao seu bem-estar, levando em conta os direitos e
deveres de seus pais, tutores, ou outros indivíduos legalmente responsáveis
por ela e, tendo em vista este fim, tomarão todas as medidas legislativas e
administrativas adequadas.
§3 Os Estados-membros assegurarão que as instituições, serviços e
instalações responsáveis pelo cuidado e proteção à criança estarão de acordo
com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, particularmente
nas áreas de segurança e saúde, no número adequado de seu quadro de
funcionários, bem como na supervisão competente.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069, de 13/07/90, surge uma
elaboração mais detalhada dos direitos das crianças e dos adolescentes, já em forma de
diretrizes gerais para as políticas nessa área. O artigo 1º trata da Doutrina de Proteção Integral
(DPI), que reconhece as crianças e os adolescentes como cidadãos; garante a efetivação dos
direitos desta população; estabelece uma articulação do Estado com a sociedade na
operacionalização das políticas públicas, com controle social, através da criação dos
Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares.
O Conselho Tutelar foi um órgão criado em 1990, pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, que compartilha, junto ao Ministério Público, com a responsabilidade de atender
todos os casos de violação de direitos das crianças e dos adolescentes e garantir a rede de
promoção e defesa dos direitos destes sujeitos. Propõe ainda a assistência de, no mínimo uma
unidade em cada município, composto por cinco membros, escolhidos pela comunidade local,
de acordo com a lei municipal nº 2235/92. O referido conselho é um órgão autônomo, que não
integra o poder judiciário. Vincula-se à Prefeitura, mas a ela não se subordina. Sua fonte de
autoridade pública é a lei do Estatuto da Criança e do Adolescente e está sob a
responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. O
Conselho Municipal tem a função de controlar as políticas públicas municipais destinadas à
criança e ao adolescente, zelando para que sejam cumpridos os princípios da Convenção e do
Estatuto. O papel do Conselho Tutelar é atender crianças e adolescentes que tiveram seus
direitos violados.
É relevante salientar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, incorporou as
emendas da Constituição de 1988, a qual aponta que:
23
É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, a atenção para com a infância e a
adolescência desprotegida levou o Estado a criar ações específicas de cuidado com esses
sujeitos, bem como, ações de enfrentamento das violências que adulteram
11
o seu
desenvolvimento. Esse estatuto situou as crianças e os adolescentes como protagonistas de sua
história e não mais como coadjuvantes da história dos adultos. Para viabilizar as ações
previstas, tornou-se necessário descentralizar o poder de execução das ações e compartilhar
com todos os municípios os recursos destinados a esse fim. Para isso, a legislação determinou
que cada município instalasse os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, em
parceria com outras organizações da sociedade civil.
A partir dessas regulamentações, foram instalados três mil, quatrocentos e setenta e
sete Conselhos Tutelares, distribuídos em cinco mil, quinhentos e setenta e oito municípios
brasileiros. No entanto, a estrutura institucional e o sistema de garantias, previstos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente permaneceram e permanecem, em larga escala,
incompletos. Mais de um terço dos municípios ainda não possuem Conselhos Tutelares.
Muitos dos Conselhos que foram criados não demonstram capacidade técnica e não contam
com recursos necessários (Relatório da ONU, 2003). São esforços que as políticas públicas
tem feito, no entanto o Estatuto tem mais de quinze anos ainda não há Conselhos em algumas
cidades brasileiras, evidenciando a falta investimento para efetivação e ampliação dessa
política de atenção mínima.
Além dos Conselhos Tutelares, outros programas foram criados visando a efetivação
das garantias dos direitos das crianças e dos adolescentes consideradas em situação de risco,
garantias estas expressas no art. 90 do Estatuto da Criança e Adolescente, como medidas
sócio-educativas, através de orientação e apoio sócio-familiar, apoio sócio-educativo em meio
aberto, colocação familiar, abrigo, liberdade assistida, semiliberdade e internação.
Os Programas Sentinelas foram implantados após entrar em vigor o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Entre os seus objetivos está a articulação das medidas elaboradas
no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência e Exploração Sexual, para atender crianças
11
Esse termo é utilizado para ampliar a visibilidade das conseqüências produzidas pelas violências, que alteram
o processo de formação humana das crianças. Ver: Sousa, 2002.
24
e adolescentes que sofrem violências e exploração sexuais, e está vinculado ao Governo
Federal, ao Ministério da Assistência Social. Esse Plano previu comitês nacionais, estaduais e
municipais, compostos por representes da sociedade civil, das organizações de crianças e
jovens, de autoridades públicas e organizações internacionais, com o desígnio de monitorar as
ações de implementação do mesmo.
As reflexões construídas por esses mecanismos sociais responsáveis, visando a defesa
dos direitos das crianças e adolescentes, são fundamentais. No entanto, a desarticulação e a
fragilização das políticas de proteção me chamaram a atenção, pois cada unidade da rede age
de uma forma: o delegado e policiais, com os Boletins de Ocorrência; os Conselhos Tutelares
com as denúncias e encaminhamentos dos casos, o juiz é responsável pelos processos na
garantia de sua tramitação jurídica e produzir o veredicto. A partir desses procedimentos é que
se decide o afastamento do agressor. Essa fragmentação parece dificultar a operacionalização
das políticas públicas que têm a intenção de estar funcionando como uma rede interpolítica,
interinstitucional de proteção integral às crianças. Como o Sentinela é um dos Programas de
atendimento às crianças e adolescentes que têm algum histórico ou suspeita de violências
sexuais, procurei focalizar quais ações desses(as) profissionais que lá atuam, a partir da
perspectiva da rede compartilhada.
A proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente representa, sem dúvida, um
grande avanço no que se refere aos direitos, principalmente daqueles que têm suas
necessidades e sua cidadania ameaçadas. Ele é um marco na história da legislação brasileira.
Parece-me, porém, que o desafio está em garantir cotidianamente sua aplicação, em viabilizar
o que ele propõe, em efetivar os conselhos, em elaborar as políticas de atenção, pois a
inexistência das políticas públicas pode ser considerada um dos contornos das violências.
1.3 O encontro com a temática no percurso de uma trajetória
Sem minhas experiências de vida, não teria podido alimentar
minha cultura. Esta é marcada pelo concreto, pelo vivido, pelo
singular. Em conseqüência, minha vida, meu trabalho, minha
cultura nunca pararam de se alimentar mutuamente (Morin
2002c:43).
Na minha própria trajetória como professora das séries iniciais do Ensino
Fundamental, em momentos distintos, pude conviver com as várias faces das violências contra
25
a infância. E, como diz a epígrafe acima, não seria possível sistematizar as reflexões sem
mesclá-las com estas experiências, pois elas, de algum modo, orientaram-me no sentido de
apurar o foco. Do mesmo modo, no sentido de identificar o movimento fluído e multifacetado
que imprime a cada acontecimento um ritmo diferenciado e que se revela nos rostos das
crianças violentadas. Assim, a cada novo olhar sobre as faces que configuram as violências,
sobre o sofrimento de quem nem sempre as compreende, a confusão emocional que ronda a
experiência vivenciada, maior era a minha intenção de estar pesquisando o tema.
Minhas inquietações se tornaram mais latentes como professora. Após concluir o
magistério, decidi morar num município da Grande Florianópolis, já que havia prestado
vestibular para Pedagogia e também para Psicologia. Apaixonada pela arte de ensinar, e após
prestar um concurso público de ingresso para uma escola da rede municipal, comecei a
lecionar para as crianças que cursavam as primeiras séries do Ensino Fundamental. Foi numa
pequena escola que tive as primeiras sensações de ser reconhecida como educadora. Imersa
naquele espaço, cheia de perspectivas, de sonhos vivos e de angústias, atravessada pelas
indecisões, fui aprendendo com meus colegas os quesitos atribuídos à tarefa pedagógica.
Minha fala suave, meu sotaque carregado pelos “erres”, meu rosto jovem de tom rubro, meus
braços carregados de materiais revelavam para minhas colegas, e para a direção, o lugar que
tinha conquistado como educadora inexperiente.
Minha fragilidade de iniciante perante o grupo, já com larga trajetória profissional,
abriu espaços para que eu escutasse as inúmeras recomendações que ali emergiam de modo
polifônico e que pretendiam me mostrar o lugar e o papel que teria como professora jovem e
inexperiente: fazer cumprir, na sala de aula e fora dela, todos os quesitos disciplinares que
davam o tom de normatização à prática pedagógica, que revelavam o controle quase totalitário
da organização escolar. Jamais esquecerei as recomendações que recebi de uma profissional
no primeiro mês em que eu estava trabalhando; pois ela enfatizava: professora, não precisas
tolerar esses pirralhos. Quando fizerem bagunça, pegue bem forte, dê um beliscão no cangote
[nuca] que aí eles param. Só não podes deixar marcas no corpo.
Essa posição deveria ser assumida por mim no momento em que algum(a) aluno(a),
por qualquer razão, não se integrasse à autocracia normatizadora que pauta a lógica do dever-
ser. No entanto, quando isso ocorria, os(as) alunos(as) recorriam a outras formas de querer-
viver (Maffesoli, 1981), mesmo sendo rejeitados, censurados, rotulados como incapazes e
indisciplinados. As rotulações se repetiam e eu percebia que elas perpetuavam um nexo de
culpabilização individual do sujeito, atribuindo à criança responsabilidade por seus fracassos,
26
especialmente aqueles relativos à aprendizagem. Na solidão pedagógica, os educandos eram
vistos como problemas, indisciplinados e incapazes.
Nesse cenário, encontrava-me imersa de muitas tentativas, quase sempre envolta pelas
incertezas e tristezas. E mais, com um intenso sentimento de frustração por não conseguir
assumir “direito” esse lugar “perverso”, que fomenta a lógica que Foucault (1999) irá chamar
de domesticação e disciplinamento dos corpos. Segundo tal lógica, as intervenções incidem
primeiro sobre os corpos que irão contribuir para a constituição de um sujeito moral,
destinado a repetir, ou até produzir, o mesmo, pois lhe serão mostrados os riscos e os vícios
que poderá correr dentro e fora do espaço escolar. Assim, sentia-me desempenhando um papel
mesclado por violências, pois, ao mesmo tempo em que procurava garantir a ordem, as
obrigações e as normas, deparava-me com a diversidade dos elementos que compunham o
universo escolar. Essa diversidade impedia a permanência da tão almejada “tranqüilidade”, no
sentido o de frear a confusão e a desordem, de reabsorver a anarquia da vida, em suma,
substituir o politeísmo dos valores pelo monoteísmo do utilitarismo (Maffesoli, 1996:55).
Assim, ficava me questionando se deveria assumir o lugar que me era reservado como
educadora, voltando as minhas intervenções para a normatização dos corpos, para a disciplina,
ou se deveria assumir os fluxos contrários do cotidiano, dos não lugares e das diferenças.
Desconstruir essas formas de conceber e lidar com as crianças pode implicar diferir,
minar, perturbar e desestabilizar regras, crenças, costumes que constituem saberes e práticas,
aos quais imprime suas marcas. Derrida (1991: 08) cunha o conceito de differance, referindo-
se ao movimento que consiste em diferir, que designa o não ser idêntico, ser outro,
discernível. Diferir, nesse sentido, é temporizado por um desvio que suspende a consumação e
a satisfação do desejo da vontade, realizando-o, de fato, de um modo que lhe anula ou modera
o efeito. Portanto, ao eleger a desconstrução como movimento de desterritorialização,
caminha-se no sentido de questionar ou de analisar as verdades, apostando na idéia de que a
escola é lugar de conflitos, de construções e reconstruções. Com isso se está indicando um
modo de questionar ou de analisar as verdades e se está apostando que essa escola é lugar dos
conflitos, das construções e desconstruções, das humanidades e desumanidades, onde as
violências se fazem presentes. Essas violências cotidianas no processo de ensino, por vezes
desestabilizam, outras vezes anulam, podendo também reorganizar modos de pensar, de
interagir ou movimentar.
Em meio às violências visíveis e entre outras camufladas, sentia-me também
violentada pelo jeito como minhas companheiras me olhavam e pelos comentários que teciam,
indicando que eu não tinha domínio de classe. Não me preocupava em deixar os alunos em
27
silêncio. Esses e outros olhares despertavam em mim um sentimento de incompetência diante
do não-cumprimento dos padrões educativos ali tão desejados. Além disso, as falas das
pessoas próximas tinham o poder de despertar em mim um estado profundo de irritação, pois
em meio às suas ironias, constituíam-me como a professorinha sonhadora, que tinha corria
em direção à parada de ônibus, às seis e trinta da manhã e retornava às treze e trinta, para
receber no final do mês um salário vergonhoso.
Essas vivências marcavam meus projetos e as lágrimas caíam sobre a agenda onde
escrevia intensamente o que acreditava. Mesclava, com isso, o espaço íntimo do desabafo com
a convicção apaixonada pelo que escolhera fazer. Nesses momentos, quase sempre me sentia
aconchegada nas palavras de alguns mestres, como Paulo Freire e Rubem Alves. Nas palavras
amorosas de Freire (2003:10), sentia-me acolhida, relendo quase diariamente, a caminho da
escola alguns trechos como esse que destaco: estar vivo é assumir a Educação do sonho
cotidiano. Ensinar e aprender são [atos] movidos pelo desejo e pela paixão... É preciso
educar o medo e a coragem. Medo e coragem de ousar. Medo e coragem de romper com o
velho. Medo e coragem em construir o novo. Este é o drama de permanecer vivo... fazendo
educação.
Dois anos depois tive a oportunidade de fazer novo concurso público, para uma outra
escola do município da Grande Florianópolis. Nesse novo espaço de trabalho, pude
reconhecer-me de outra forma como profissional do magistério, pois, além de estar um pouco
mais informada com relação a outros suportes teórico-metodológicos, sobre os quais me
debruçava intensamente, sentia-me mais autorizada a realizar meu projeto profissional. Não
mais abalada pelas cobranças de professores e direção, incorporei fervorosamente como
suporte a abordagem histórico-cultural, porque acreditava ser o mais apropriado para minha
incursão no universo das aprendizagens. Encontrei em alguns colegas, na parceria com a
supervisora e com os(as) professores(as) da graduação um aconchego para discutir, esclarecer,
desaprender, restabelecer outras formas de pensar e intervir com as crianças.
1.3.1 Os ecos silenciados das violências no cotidiano escolar
Ao estabelecer uma relação dialógica com o universo de sujeitos citados acima, cujas
mediações foram fundamentais, comecei a ver o cenário escolar com outros olhos. Sentia estar
usando um novo “óculos”. A relação dialógica é definida por Morin (2003:36) como sendo o
princípio onde o complementar, o concorrente e o antagônico são instâncias necessárias,
conjuntamente à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno. Em
28
minha dissertação, essa prática dialógica se deu também pela mediação de alguns autores e
autoras, tais como Aquino (1997), Guimarães (1996), Machado (1997), Sousa (2002),
Restrepo (1998), com os quais aprendi que a escola é também um lugar social que produz e
reproduz violências, entre as quais, o fracasso escolar.
Desse modo, encontrei afinidade com a perspectiva que acompanha a concepção de
Sousa (2002: 56), quando ela aponta a escola como produtora das violências, dada a dicotomia
produzida socialmente entre a cultura escolar e a cultura social de referência dos alunos,
configurando um relacionamento que desconsidera a singularidade dos sujeitos, constituída
historicamente. Essa dicotomia ganha concretude no espaço escolar ao naturalizar, reforçar e
privilegiar a homogeneidade que tenta enquadrar a todos num mesmo lugar social. Conforme
Restrepo (1998: 65), a escola é incapaz de perceber a singularidade, pois não entende que
aprender é um gesto humano de comunhão, que radicalmente necessita da presença do outro,
de seus ensinamentos e condutas para efetivar-se. Para ele,
[...] a escola é violenta quando se nega a reconhecer que existem processos
de aprendizagem divergentes que entram em choque com a padronização
que se exige dos estudantes. Haverá violência educativa sempre e quando
continuarmos perpetuando um sistema de ensino que obriga a homogeneizar
os alunos na aula, a negar as singularidades, a tratar os alunos como se
todos tivessem as mesmas características e devessem responder às nossas
exigências com resultados iguais.
Se as violências emergem também através das formas de conceber a realidade, através
das idéias, dos valores e experiências vividas, ela ganha maior expressão quando sufoca os
mundos culturais dos sujeitos que são asfixiados na padronização. E isso acaba por gerar
situações conflitivas entre o coletivo de estudantes, já que principalmente os(as) educadoras
constituem práticas e representações baseadas em outra realidade, que não é a mesma dos
educandos. Sousa (2002) observa que se não houver a valorização da diversidade e das
diferenças culturais, étnicas, dentre outras presentes na escola, a resposta mais imediata desse
quadro poderá ser o fracasso escolar.
Essas questões presentes na instituição escolar transformam as crianças em sujeito
escolar/pedagógico, através de um saber que, ao ingressar no mundo escolar, está capturado
por uma lógica preexistente. Um devir-sujeito, recursivo e retroativo que se constitui num
espaço racionalizado e normatizado, onde as ações, os fazeres, saberes e dizeres estão
determinados. Um devir-criança que se universaliza com os parâmetros construídos
socialmente e historicamente, onde essa lógica acaba neutralizando, naturalizando os
29
binômios. Essas violências, pelo que já se sabe, contribuem de modo decisivo para o aumento
da evasão escolar, uma prática que não se reduz simplesmente ao estar fora da escola. A
evasão carrega consigo dimensões complexas que abarcam as questões identitárias, como, por
exemplo, usufruir o direito de estudar e expandir-se no interior da uma sociedade que exclui e
marginaliza (Sousa, 2002).
Incomodada com a naturalização dos modos de punição, com as práticas das
repetências, das advertências orais, das suspensões, dos rótulos e com a lógica da
culpabilização individual do educando, comecei a registrar minhas observações e a refletir
acerca dessa temática. Em inúmeros momentos me senti muito desconfortável por estar
percebendo que minhas intervenções poderiam estar violentado os(as) educando(as). Outros
incômodos foram se tornando cada vez mais presentes: durante nossos cursos de formação,
oferecidos pelos gestores dos órgãos públicos, não havia espaços de discussão destinados ao
tema das violências. Enquanto educadora sentia-me incapaz de lidar com as violências no
processo educativo e ficava me perguntando como incluir a temática nos projetos e nos
trabalhos preventivos que são realizados junto aos educandos, se seria possível garantir que
essa temática fosse incluída no Projeto Político Pedagógico, deixando de ser considerada (e
nem sempre viabilizada) um conteúdo transversal, na maioria das vezes esquecido pelos
professores.
Longe de compreender tantas inquietações, atravessada pelas angústias do querer ser-
no-mundo (Maffesoli, 1996), sentia-me uma educadora capaz de prestigiar a formação escolar
como um espaço de expansão da vida. Aos poucos descobria que as violências transitavam
entre a camuflagem e o visível, com manifestações ora subterrâneas, ora explicitas nas
inquietações que me levaram a buscar subsídios nas discussões que tratam das políticas
públicas, especialmente as formulações sobre a rede de atendimento e defesa dos direitos das
crianças e adolescentes, para melhor compreender as violências evidenciadas, pois pouco
sabia como proceder diante de alguns aspectos sutis que marcavam a corporeidade de alguns
educandos.
Depois de algumas leituras e instruções a respeito da rede de proteção às infâncias, tive
clareza do meu papel, enquanto educadora, no encaminhamento dos(as) educandos(as) que
suspeitávamos serem vitimas de violências. Inúmeros encaminhamentos sem retorno me
deixavam inconformada. Em meio às denúncias, vivi junto aos meus familiares a história de
abuso sexual de uma prima que, aos onze anos, narrou os episódios das agressões
experimentadas durante muito tempo com seu padrasto. As dores, os silêncios, os medos, as
30
angústias que compartilhei junto com a minha família culminaram com a minha indignação
com as filas de espera daqueles que precisavam ser atendidos pelo Programa Sentinela.
Essas trajetórias me impulsionaram a estudar a temática das violências e a ingressar
como pesquisadora no Núcleo Vida e Cuidado, onde encontrei a oportunidade para ampliar
sobre as questões que atravessam a ineficácia das políticas públicas no atendimento dos
direitos das crianças, viabilizando a construção dessa dissertação e intensificou minhas buscas
durante o contato com o Programa Sentinela, com a riqueza das experiências que
privilegiaram o campo da observação, enquanto espaço de aproximações, trocas, diálogos,
vivências que tecem uma realidade que sempre é mais rica do que as discussões que aqui
realizo.
1.4 Os fios que tecem as questões metodológicas
Ler significa reler, compreender e interpretar. Cada um lê com os olhos que
tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista
de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como os seus
olhos e qual a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A
cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial
conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como alguém vive, com
quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta,
como assume os dramas da vida e da morte e que esperança o animam. Isso
faz da compreensão sempre uma interpretação. (BOFF, 2000, 09)
A vista de um determinado ponto, conforme afirma Boff (2000), tem sido um dos
principais desafios de uma discussão metodológica contemporânea. Como fazer pesquisa e
produção de indicadores sociais quando o sujeito que pesquisa está envolvido com a questão
pesquisada e sempre a realiza de um lugar específico? Estas questões estiveram presentes na
minha trajetória. Por isto, houve um estado de ansiedade no momento da escolha dos focos
metodológicos para, concretizar as atividades de pesquisa. Esta ansiedade foi gerada pelas
incertezas e pela compreensão de que não há um método
12
a priori que responda ao processo
de investigação. O método, desta forma, foi sendo delineado no decorrer da pesquisa,
juntamente com as formulações teóricas e os aspectos vividos no campo empírico. Nesse
sentido, escolhi para realização dessa pesquisa uma abordagem qualitativa de cunho
12
O método é entendido como um rede, uma composição de pressupostos teóricos que tecem essa pesquisa.
Penso método a partir da definição de Morin (2003:29) como uma estratégia, um ensaio que nos permite
conhecer o conhecimento.
31
etnográfico
13
. A partir desta perspectiva, considerei fundamental a interação com os(as)
profissionais do Programa Sentinela, através do contato direto e prolongado com eles.
Minha incursão pelo campo das violências foi perpassada por limites e possibilidades.
Arrisquei-me numa certa aventura de estar lá (Geertz 1989) e é com os registros dessa estada
que inicio meus escritos. Fiz um esforço de atenção a cada gesto, palavra, por mais
insignificantes ou exóticos que pudessem parecer naquele momento. E assim se fez necessário
manter, de alguma forma, o exercício do estranhamento, ou seja, de tornar o familiar
desconhecido para não correr o risco de prestar atenção nas questões supostamente definidas
como as mais importantes. Trata-se de transformar o familiar em estranho (Magnani 1998:
18). Mas, este não significa um afastamento neutro, nem tampouco, buscar um mirante para
olhar, do alto, a paisagem.
Esse exercício de estranhamento, de tornar o familiar em desconhecido ocorreu
durante o ano de 2004 e 2005. Movida pelos objetivos da minha pesquisa, tive a oportunidade
de conviver com a equipe multiprofissional do Programa Sentinela e acompanhar os registros
construídos na forma de prontuários dos casos atendidos e encerrados
14
, bem como, pude
acessar as fichas evolutivas
15
, o projeto técnico
16
, o material de leitura dos(as) profissionais, o
material organizado por eles(as) como documentos, ofícios, relatórios, palestras, dentre outros.
No que se refere aos prontuários, investiguei dezoito casos aleatórios, dos oitenta e nove que
estavam em acompanhamento pelo Programa no ano de 2004. Nestes estão registradas as
características singulares das crianças acompanhadas, por etnia, escolaridade, religião, faixa
etária, com quem residem, condições socioeconômicas, assim como, os dados dos agressores e
os encaminhamentos realizados pelos(as) profissionais cujo roteiro está em Anexo. Esses
registros estão sendo agrupados em pastas dos atendimentos com as crianças, os adolescentes
e seus familiares. Utilizei o consentimento informado (também em Anexo), uma espécie de
autorização fornecida pelos(as) informantes, o que me permitiu a realização da pesquisa.
Nesse sentido, serão resguardados os nomes verdadeiros de meus/minhas informantes e os
depoimentos que não desejaram que fossem divulgados. Assim, acredito que este seja um dos
momentos mais importantes para o processo de colocar-se no lugar do “outro”, uma vez
13
Entendo que as questões de pesquisa podem ser melhor compreendidas quando são observadas no seu
ambiente habitual de ocorrência (Bogdan, 1994:48).
14
Estão arquivados em pastas chamadas de arquivos e prontuários mortos.
15
As fichas evolutivas são organizadas num livro que contém os dados de cada criança acompanhada. Nessas
fichas são registrados os encaminhamentos aprovados pelos profissionais.
16
O projeto técnico foi um documento elaborado, em maio de 2005, pelas profissionais do Programa Sentinela.
Nesse documento está registrado o foco do Programa, dos profissionais, bem como, as concepções acerca de
violências.
32
lembrando que, em Antropologia o observador é da mesma natureza que seu objeto. (Lèvi-
Strauss, 1974).
Com a psicóloga realizei algumas entrevistas informais, já que a mesma fazia
atendimentos junto às crianças e seus familiares, atendimentos estes que não acompanhei por
uma questão de sigilo profissional. Essas entrevistas consistiram numa conversa intencional,
com um roteiro prévio, já que não pude acompanhar todos seus afazeres cotidianos no
Programa Sentinela.
O universo das violências apresentado nos relatos dos(as) profissionais, pais, mães,
responsáveis outros pelas crianças e adolescentes não se apresenta com uma certa regularidade
e unicidade. Pelo contrário, apresenta-se como um conjunto fragmentado, polissêmico, onde
coexistem diferentes concepções de sujeito. Nesse sentido, as fragmentações dos discursos, as
redundâncias, os silêncios, o não-dito, os gestos não pronunciados foram tão significativos
quanto o dito discursivamente. Não tentei decifrar o discurso “falso” ou “verdadeiro” em
decorrência da adequação da realidade, mas procurei pensar em como se dão as
representações dessas realidades.
Durante a investigação procurei escutar os(as) informantes, então recorri a clássica
aventura do trabalho de campo ensinada pelo Malinowski (1976), procurando registrar as
questões próximas e distantes, pois o interesse em conhecê-los reside no fato de constituírem
arranjos diferentes e particulares. A pretensão com a perspectiva etnográfica é entender a
lógica informal do fluxo contínuo da vida cotidiana, além de alcançar as experiências, os
valores e o pensamento dos(as) informantes.
Em diversos momentos os discursos deixavam-me abalada emocionalmente. Foi
difícil, principalmente no início, registrar as notas de campo, pois a imagem das agressões
imputadas àquelas crianças contagiavam meus sonhos e meus pensamentos. As notas de
campo referem-se coletivamente a todas as informações registradas por relatos escritos
daquilo que ouvi, observei, experienciei e pensei no decurso do meu trabalho de campo no
Programa Sentinela. Inclui retratos dos sujeitos (sua aparência física, a maneira de se vestir e
estilos de falar e agir; e também as reconstruções dos diálogos tanto as conversas que
decorrem entre os sujeitos, quanto aquilo que os sujeitos me disseram em privado; a descrição
dos espaços físicos, as atividades, os acontecimentos e os procedimentos). Contemplei, desse
modo os comentários sobre minha relação com os(as) informantes, bem como, os sentimentos
por mim vividos de amizade, de partilha e empatia. A estratégia que utilizei foi registrar no
meu diário de campo as minhas indignações, os meus sofrimentos e envolvimentos, pois
voltava das visitas domiciliares com intensas enxaquecas ao relembrar os relatos das mães e
33
das crianças sobre seus sofrimentos, assim como as preocupações dos(as) profissionais em
proteger esses sujeitos. Para ilustrar trago algumas expressões das crianças e suas mães como:
[...] preferia estar morta [...] tenho muita vergonha de sair na rua. Quando
olham para mim, dizem que não sou mais virgem (adolescente de 15 anos,
suspeitam que foi estuprada pelo amigo do irmão).
[...] ele não para de me ameaçar de morte [...] não sabia mais o que fazer.
Depois de apanhar muito, sai da minha casa com as crianças só com a roupa
do corpo, sem nada mais (mãe de uma menina de 9 anos abusada pelo
padrasto).
Essas outras falas, somadas aos olhares cabisbaixos deixaram-me com tensões
musculares, transformando-se em noites em claro, com pesadelos, principalmente nos
momentos em que o choro era expressão das indignações sentidas. E é esse universo repleto
de situações adversas que retratei no diário de campo. Nele descrevi o que lá observei, mais
precisamente, o que vivi ao estar lá. Durante essa incursão no campo ficou evidente o quanto
a permanência no local de pesquisa foi fundamental para fazer o distanciamento necessário e
compreender a malha de significações que circunscreve as crianças e famílias atendidas pelo
Programa Sentinela.
Em toda a incursão ao campo fiquei atenta aos detalhes, tanto no que eles permitiram
ver, quanto naquilo que esconderam ou que não percebi diante dos meus olhos, o que
Mafessoli (1998:18) chama de ética das situações, onde podem se manifestar às emoções, os
afetos, os laços de cumplicidade, as resistências, as paixões que atraem, mas também
confundem, os silêncios e os silenciamentos, os entreditos, os gestos, os olhares de busca e de
confirmação.
Velho (1999:13) salienta que uma das tarefas mais difíceis da perspectiva etnográfica é
narrar um evento e transmitir o clima, o tom, a sucessão dos fatos no tempo, o número de
participantes, a reconstituição das interações do que está descrevendo. Foi exatamente essa
uma das tarefas na qual mais senti dificuldade, pois nenhum dado era trivial. E ficava por
muitos momentos debruçada, sobre o caderno para registrar o maior número de informações.
Ao longo da pesquisa, tentei produzir os estranhamentos, e as descobertas guiadas
pelos desejos pelas diferenças. A intenção era dessacralizar as perspectivas teóricas com as
quais aprendi a olhar o mundo, para não torná-las como dogmas, como fronteiras e territórios
delimitados e fechados. Tentei sair da lógica de um olhar pautado no dever-ser, dando
relevância às múltiplas linguagens situadas nos instantes da pesquisa em que os costumes
vacilavam e os desafios se apresentavam para a reflexão, ao considerar as situações naquilo
34
que elas têm de efêmero, de sombrio, de equívoco, mas também de grandioso. (Maffesoli,
1998: 12). Esse exercício, desafiou a pensar-me e interrogar-me como pesquisadora, tendo
como critério uma ética voltada para fortalecimento da vida.
Por vezes, nos estudos de caso sentia-me uma intrusa, pois parecia que o grupo estava
um pouco desconfortável com a minha presença. Também percebia um olhar “curioso” do
grupo sobre os meus registros, não sabendo muitas vezes como agir. Esses registros, presentes
no diário de campo, foram essenciais, pois permitiram revisitar inúmeras vezes o já registrado
e possibilitaram rever os conceitos e preconceitos e fazer o exercício do estranhamento
17
. As
notas de campo exigiram um disciplinamento constante, porque o tempo gasto nos registros
ocupava o dobro do tempo da observação, pois a intenção era realizar uma descrição
profunda
18
. No diário de campo não registrei dados ou provas, já que não tive como objetivo
confirmar ou infirmar hipóteses construídas previamente. Ao invés disso, procurei construir
sínteses explicativas à medida que os registros eram realizados e as peculiaridades que
enredam o empírico apareciam interrelacionadas. Não se trata, portanto, de buscar revelações
das “verdades”, mas considerar que o ato de conhecer, que o conhecimento consiste na
produção de sentidos. Ou seja, que não há verdades a serem descobertas ou reveladas porque
as vejo como ficção, invenção e criação. O conceito como produção e intervenção, e não
como descoberta ou reflexo. Assim, procuro não a verdade, mas as relações de poder que
possibilitam sua existência (...) (Corazza 2005: 05).
Percebi que fui estabelecendo sentidos sobre o campo, junto com meus registros
etnográficos, os quais procurei descrever os sentidos e significados meus acerca do vivido
quanto dos informantes. Nesse caso, as violências contra as infâncias. Por essa razão, talvez, o
desafio seja o de construir uma deontologia (Maffesoli, 1998: 19), que possa reconhecer em
cada situação a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o
corpo e o espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda.
A aventura pelo campo empírico não se consolida sem que o pesquisador saiba
conjugar a ousadia com a sensibilidade, a paciência com a persistência, a curiosidade com a
ética do cuidado com o que observa e descobre, o distanciamento com o vínculo com os
sujeitos envolvidos, a sistematização com o voltar-para-olhar o já visto.
17
Fonseca (2002) nomeia o estranhamento como um exercício relacionado à desconfiança diante das receitas
fixas, do familiar.
18
Definida por GEERTZ (1978:15) como uma descrição de uma pesquisa que envolve aspectos culturais,
entendendo que o homem está amarrado às teias de significado construídas por ele, sendo a cultura, a principal
delas. Esclarece que a cultura aproxima-se da idéia de sistemas organizados de símbolos e significantes que
orientam a existência humana.
35
Nesses momentos vivenciais emergiram múltiplas incertezas e múltiplos desafios
traduzidos nas seguintes questões: ao descrever as ações e expressões que são já significativas
para esses(as) profissionais, eu pesquisadora conseguia descrever as “teias de significados”
atribuídos por eles(as)? Como entender as linguagens com suas múltiplas nuances e que as
pessoas daqueles grupos estavam usando? Procurei me pautar numa compreensão ética de
cuidado, a fim de despojar-me de preconceitos, de instaurar as predisposições para construir
explicações que conduzissem a superação das aparências imediatas. Desta forma dediquei
grande quantidade do tempo para estar no Programa, observando-o como um lugar de morada
deslocada, numa tentativa de explicitar a malha de significações dos(as) informantes.
Senti que o tempo foi necessário nessa morada deslocada, pois nos primeiros dias no
Programa Sentinela, (os)as profissionais expressaram um certo desconforto com a minha
presença, ao diminuírem o tom da voz num canto da sala e ao perguntarem a mim se iria
avaliá-los(as). Nesses primeiros dias, os(as) profissionais orientaram-me a ficar numa sala
lendo os registros dos prontuários, das fichas evolutivas, enquanto eles(as) realizavam outros
encaminhamentos. As indicações de Leite (1996) me auxiliaram a compreender que a coleta
dos dados é definida pela interação com o grupo “nativo”, onde há o risco de limite para
acesso às informações, caso esse grupo demarque o espaço que o pesquisador pode ocupar.
À medida que os vínculos foram se estabelecendo, fui sendo convidada a acompanhá-
los(as) e, nesse convívio, aprendi o sentido da paciência institucional desses(as) profissionais
na realização dos seus encaminhamentos. Compartilhei sentimentos de esperança e
impotência, teci laços de afetividade e confiança. Com o tempo, passaram a me convidar a
pensar alguns encaminhamentos, propuseram-se a contar suas histórias pessoais e narraram
alguns descontentamentos e críticas em relação às rotinas e atividades do próprio Programa.
Foi nesse convívio que a relação de respeito e afetividade fez-se presente e permitiu
compreender muitos dos significados desconhecidos.
Trata-se de construir o que Maffesoli (1998:13) denomina como saber dionisíaco,
aquele que pode estar o mais próximo possível da temática pesquisada, que torne capaz a
integração também do caos ou que, pelo menos, conceda a este lugar que lhe é próprio. Para
ele, este é um saber que reconhece, mesmo que de modo paradoxal, a necessidade de
estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisível, da desordem e da efervescência, do
trágico e do não-racional. Coisas incontroláveis, imprevisíveis, mas não menos humanas. São
dimensões que, em escalas distintas, transversalizam as histórias, tanto as individuais, quanto
às coletivas.
36
Procurei questionar constantemente os(as) profissionais acerca das pautas que
apareciam, com o objetivo de perceber aquilo que eles experimentavam, o modo como eles
interpretavam as suas experiências e o modo como eles próprios estruturam o mundo social
em que vivem. Quando o questionamento emergia dos entre-diálogos, mesmo que não sejam
as palavras que revelem as informações, os gestos podem ser os grandes informantes do
cenário que se busca. Aí pode estar um fecundo ensejo à reflexão (Maffesoli, 1998: 18), para
compreender que o cenário e os atores procedem e organizam-se de acordo com uma
disposição que lhes é própria. Com isso, ao invés de querer apreendê-las no conceito, criam-
se os espaços para acompanhar os discursos que vão sendo tecidos naquele contexto.
Outro aspecto fundamental do procedimento etnográfico que procurei realizar ao longo
dessa pesquisa refere-se à construção de uma teoria nativa, constituída das categorias que
os(as) “nativos”, ou seja profissionais operavam. São palavras e expressões utilizadas pelos(a)
informantes e que expressam significados compartilhados pelo grupo de profissionais do
Programa Sentinela (Malinowski, 1997). Essa perspectiva etnográfica me auxiliou na pesquisa
sobre a definição das categorias “nativas” junto aos profissionais do Programa Sentinela,
como: prontuários, prontuários mortos, estudo de caso, visitas domiciliares, mães protetivas,
pais agressores, famílias desestruturadas, demanda reprimida, dentre outras.
Para tanto, procurei estar atenta para que as informações coletadas pudessem se
constituir em pistas e permitissem construir compreensões mais esclarecedoras do “objeto de
estudo”, conservando a ética das relações, para não utilizar a espetacularização como enredo
textual. Ponderando que o tema da investigação inclui as violências sexuais, esse cuidado é
ainda mais significativo.
Eis porque qualquer tentativa de simplificação poderá fazer-nos cair nas armadilhas do
engessamento, das fragmentações, dos determinismos, das linearidades, dos binarismos
(Morin, 2003). Nesse contexto de discussões, procurei me esforçar para não repetir a tradição
de pesquisa em educação em prescrever, direcionar, recomendar, encaminhar possíveis
soluções para problemas. Tentei me lançar na pluralidade, a desconfiar das certezas definitivas
e a operar com a provisoriedade, com o transitório, com o mutante.
Nesse sentido, e em conformidade com os limites e as possibilidades, minha intenção
nessa dissertação foi inserir-me na complexa teia que compõe os estudos do fenômeno das
violências sexuais contra a infância. Esse olhar não inclui certezas. Ao contrário, está repleto
de incertezas e sabe que posso identificar inúmeras questões com distintas reflexões, pois a
realidade não é apreendida por inteiro e meu olhar construído é transitório e provisório.
37
CAPITULO II
AS TEIAS DAS VIOLÊNCIAS E O PROGRAMA
SENTINELA
Todas as formas de violência têm em comum sua intolerância
diante da diferença e a resistência a permitir seu aparecimento
e crescimento. (Restrepo, 1998: 64)
38
2.1 Um ensaio de complexidade no olhar das violências
O imaginário está na ordem do dia, e com ele a multiplicidade
de sentidos que cada pessoa confere à sua existência
(Maffesoli, 2004: 97)
Na dissertação, minha escolha para pensar as violências é a objetividade entre
parêntese (Maturana, 1997:249-51), assumindo o fato de que nenhum olhar está desvinculado
das subjetividades que nos constitui, dos mundos que nos impregnam com suas cores, formas,
sentidos, por exemplo. Isso revela que o meu ser-no-mundo (Maffesoli, 1996) interage com o
campo empírico, com as leituras, com os encontros e desencontros que transversalizam a
aventura de adentrar o desconhecido – o problema de pesquisa – para construir as explicações
possíveis, que possam ser validadas por uma comunidade de observadores.
Como um fenômeno multifacetado, as violências sexuais impulsionam com suas
variadas manifestações distintos campos de conhecimento. Desafiam a Filosofia, o Direito, a
Psicologia, a Sociologia, a Educação, a Antropologia, no momento em que se debruçam sobre
o tema na tentativa de construírem argumentos plausíveis, tanto para conformarem a
sociedade, quanto para ativarem a sua capacidade de indignação. Com essas áreas do
conhecimento vou buscar aproximações explicativas, na forma de um contorno, de caráter
antropológico, onde está o movimento por dentro e por fora, de aproximações dos contextos
de observação etnográfica (Balandier, 1997 apud Sousa, 2002).
Ao falar de violências, busco compreendê-las a partir da perspectiva que escolhi para
discutir esse fenômeno, ou seja, a partir da complexidade. Assim, vou tomar como referência
os autores que dialogam com a teoria da complexidade, entre os quais Maffesoli (1981),
Maturana(2000), Morin(2002), Restrepo(1998) e Sousa (2002), que recusam as conseqüências
mutiladoras, redutoras, unidimensionais e simplistas para compreensão do fenômeno
abordado. A multidimensionalidade, entre outras categorias, será um pressuposto que norteará
o olhar sobre as violências, configurando seu caráter ambíguo e paradoxal. Essas
interlocuções, associadas às experiências do campo empírico, pretendem ampliar a
compreensão dessa temática.
Ao buscar aproximações acerca das violências, encontrei em grande parte da produção
bibliográfica o discurso das violências, atrelado aos aspectos físicos. Pouquíssimos são
aqueles que as relacionam com outras dimensões que afetam os sujeitos, como o emocional,
por exemplo. Cito o Dicionário de Política (1986:1291) como representativo desse discurso,
39
onde se encontra uma definição de violência relacionada à intervenção física de um indivíduo
ou grupo contra outro. Além disso, a intervenção física, na qual a violência consiste, tem por
finalidade destruir, ofender e coagir. Tal concepção traz implícita em sua conceituação a
noção de coerção ou força sobre o outro e o dano que se produz ao sujeito. Michaud (1998:23)
relata que a origem da palavra violência vem do latim “violentia”, significando uma
característica violenta, que remete a fúria e a força. O verbo “violare” significa tratar com
violência, transgredir e vis corresponde à força vital, força do corpo. Essas concepções trazem
a noção de coerção ou força sobre o outro e o dano que se produz ao sujeito violentado.
Também encontrei outras concepções divergentes e complementares a respeito das violências.
A Organização Mundial de Saúde, por exemplo, define as violências como a ameaça ou a
utilização intencional da força física e do poder contra si mesmo, contra outros e contra um
grupo ou uma comunidade (Krug, 2002:43).
Em Arendt (1973:230) está uma análise que permite pensar sobre a relação entre o
poder e a violência, especialmente nas obras “A Condição Humana”, “Sobre a Violência” e
“Sobre a Revolução”. A autora afirma que ambos – poder e violência - sempre foram
tomados como sinônimo, porque têm a mesma função, que seria um homem dominar outro
homem. As violências atingem o outro através da coerção, age sobre os corpos, ela força,
reclina, ela rompe, trinca, ela destrói, refuta, ela impõe, ela não deixa o outro escolher.
Enquanto o poder corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas agir de
comum acordo.
O ciclo de análise foucaultiana não se refere às violências, mas à descrição de técnicas
e saberes que historicamente organizam formas legítimas de assujeitamento. As técnicas de
assujeitamento se referem às maneiras de intensificar o exercício sobre os corpos dentro do
tempo e do espaço. Para Foucault, os corpos são claramente o teatro de uma multiplicidade de
relações de poder que não podem ser reduzidos somente a categoria física da violência
(Defert, 1996:95).
Conforme Foucault (1985), o poder moderno não é somente uma instância repressiva
do rei acima dos súditos, por exemplo, mas uma instância de controle e de produção sobre os
corpos. Segundo ele, ter o poder não significa estar em condições de impor a própria vontade
contra qualquer resistência. É antes dispor de um capital de confiança tal que o grupo delegue
aos detentores do poder a realização dos fins coletivos. Em vários momentos, Foucault
(1999:35), indica, em suas obras, que o poder é um conjunto de relações que atravessam por
toda a parte na espessura do corpo social:
40
Não tomar o poder como fenômeno de dominação maciço e homogêneo –
dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros,
de uma classe sobre as outras – ter bem em mente que o poder, exceto ao
considerá-lo de muito alto e de muito longe, não á algo que se partilhe
entre aqueles que o tem e que o detém, e aqueles que não o tem e que são
submetidos a ele. O poder deve ser analisado como uma coisa que circula,
ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia.
A partir da perspectiva foucaultiana, supõe-se que o poder que se exerce não é
concebido como propriedade, mas como estratégia, onde os efeitos de dominação não são
atribuídos a uma apropriação, mas a dispositivos, manobras, táticas de funcionamentos.
Foucault (apud Defert, 1996) discute o poder dentro das relações num campo de forças
dissimétricas e instáveis. Indica que o poder não está relacionado ao mal e nem pode ser
assimilado como categoria de dominação ou ainda menos, de forma negativa. Não é uma
substância mas um tipo particular de relação entre os indivíduos, marcada pela forma como
alguns homens podem determinar certas condutas de outros, porém, nunca de forma exaustiva
ou coercitiva. Assim, o poder não se concentra em um lugar preciso, não se fixa num papel,
não é privilégio de alguns ou de classes dominantes, mas efeito de um conjunto de posições
estratégicas.
A análise deste autor desconstrói o paradoxo entre poder e liberdade: o poder não tem
um caráter repressivo, mas produtivo e que pode inversamente enraizar o fenômeno da
resistência. A resistência se dá onde há poder, pois é inseparável das relações de poder,
assim, a resistência funda as relações de poder, quanto ela é as vezes o resultado dessas
relações, na medida que as relações de poder estão em todo lugar, a resistência é a
possibilidade de criar espaços de lutas e agenciar possibilidades de transformação em toda
parte. (Revel, 2005: 74) As resistências podem fundar novas relações de poder, tanto quanto,
novas relações de poder podem inversamente suscitar novas formas de resistência. Não é
contra o poder que nascem as lutas e as violências, mas contra certos efeitos do poder, contra
certos estados de dominação, num espaço que foi paradoxalmente aberto pelas relações de
poder.
Conforme Maffesoli (1981), as violências se constituem no interior das relações
sociais, embora se apresentem de formas diferenciadas. Por isso, ele compreende como um
elemento estruturador do fato social. O fato social se configura como ação emblemática e
difusa por suas visibilidades, conjugadas com as sombras que embaçam a visão dos agentes
envolvidos e atribuem a eles explicações diversas, como um arcabouço constante do humano,
41
presente em qualquer civilização. Este autor afirma que a imposição da lógica social pela
unidade se configura na “violência totalitária”, ocasionada pelo conflito estrutural marcado
pelo vazio e pela falta de dinamismo entre os pólos, interrompendo o ciclo natural de
renovação da sociedade e do individuo aumentando o conflito estrutural entre eles
(Maffesoli, 2004:70).
Desse modo, as violências não se caracterizam apenas como fator de desequilíbrio na
sociedade. Morin (1999: 90) indica que os fenômenos acontecem a partir de um complexo de
ordem, desordem e organização, onde não apenas a parte está no todo, mas o todo está na
parte. Ou seja, há um entrelaçamento de fios distintos e complementares, ambíguos que tecem
o fenômeno das violências como uma figura de desordem (Balandier, 1997 apud Sousa 2002),
indicando que o social apresenta-se sob a forma de configurações presididas pelo imaginário
que o constitui e dá sentido. Desta forma, todo movimento de ordem e desordem que também
compõe o social se manifesta de forma figurativa, legitimando os grandes emblemas das
sociedades contemporâneas.
Balandier (1997 apud Sousa 2002) revela que há um movimento no tecido social,
movimento este constituído de figuras de desordem que perturbam, desestabilizam a ordem
para gerar nova organização e produzir outras demandas, numa circularidade ascendente e
contínua. Essas desordens fundam as infâncias e adolescências silenciadas por meio de um
constrangimento, que tende a entorpecer sua humanização. Geram condutas que podem
ultrajar as relações, gerar tiranias, desqualificar seu autoconceito. Percebi, junto os(as)
profissionais do Sentinela, as desordens que as denúncias geravam no seio familiar. As
separações dos casais, as fugas para casas de outros familiares, outras cidades, enfim,
inúmeras formas de reorganização familiar ocorrem após a intervenção do Programa junto aos
familiares das crianças.
Ao se tratar das desordens que as violências provocam encontro na formulação de
Sousa (2002:83), uma compreensão do que estas podem ser consideradas: como todo e
qualquer processo que produz a desorganização emocional do sujeito, a partir de situações
em que este é submetido ao domínio e ao controle de um outro, ou seja, que a violência se
caracteriza por relações de domínio em que alguém é tratado como objeto. Em conformidade
com esta autora, penso que, nos atos de violências sexuais, as crianças são colocadas como
objetos de assujeitamento, de dominação, havendo uma ameaça à sua corporeidade a ponto de
uma desorganização emocional. É através dessa dinâmica relacional que se efetiva a dimensão
educativa entre crianças e adultos. Durante minha estada no campo, percebi que as expressões
de vergonha, de medo, de sofrimento eram corporificadas nas manifestações físicas e
42
psicológicas. Eis porque é importante um olhar que contemple as várias dimensões que podem
envolver o fenômeno das violências sexuais, como os aspectos éticos, afetivos, culturais,
físicos e psicológicos.
Penso ser complementar a concepção do grupo de especialistas que luta contra as
violências praticadas contra mulheres e crianças, do Conseil de L'Europe, localizado na
França, o qual considera como violências sexuais:
[...] todo ato, omissão ou conduta que levam ao sofrimento físico, sexual ou
mental; diretamente ou indiretamente; por meio da força, da sedução;
ameaça a todos outros modos como objeto de intimidar; punir, humilhar ou
de manter dentro do papel estereotipado ligado ao seu sexo que recusam
sua dignidade humana, sua autonomia sexual, sua integridade física, mental
e moral (Jarpard et Bown, 2003:77).
De maneira geral e na literatura internacional considera-se abuso sexual como:
comportamento sexual inadequado com uma criança. Inclui carícias nos
órgãos genitais da criança, do mesmo modo que a criança acariciando os
órgãos genitais do adulto, relações sexuais, incesto, estupro, sodomia,
exibicionismo e exploração sexual. Devem ser considerados abuso sexual
de criança aqueles atos cometidos por uma pessoa responsável pelo
cuidado da criança (por exemplo a babá, os pais, aquele que cuida da
criança diariamente) ou um parente da criança. Se um estranho comete
estes atos, isto deverá ser considerado agressão sexual e o caso será
tratado pela polícia e pelas cortes criminais (National Clearinghouse on
Child Abuse and Neglect 1999).
Nesse cenário o incesto é reconhecido como uma relação genitalizada ou erotizada
entre membros da mesma família, consangüínea ou não. Assim, todo abuso que acontece no
cenário doméstico, ensejado na relação consangüínea ou parental, é caracterizado como uma
relação incestuosa.
Alguns dados estatísticos, explicitados a seguir, exibem possíveis olhares fotográficos
do cenário que compõe esse universo marcado pelas violências contra as crianças, os quais
podem contribuir para elucidar os adereços implicados nessa dinâmica. O Sistema Nacional de
Combate à Exploração Sexual Infanto-juvenil, por exemplo, foi implantado em fevereiro de
1997 com o objetivo de receber, tratar, divulgar, monitorar e avaliar as denúncias de
exploração sexual contra as crianças e os adolescentes. Esse Sistema previu a existência de
Unidades de Referência em todo o território nacional, que são responsáveis pela recepção das
denúncias dos Estados e pelo retorno das informações que alimentam a Central de Dados,
43
instalada na Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência
(ABRAPIA). Em sua base de dados encontra-se uma pesquisa realizada entre fevereiro de
1997 a janeiro de 2003, onde estão registrados quatro mil, oitocentos e noventa e três casos de
violências sexuais. Destes, 68% estão relacionados à exploração sexual. Os 32% restantes, a
abusos sexuais. A respeito dos casos examinados, 69% referiam-se à prostituição infantil, 25%
a crimes virtuais e apenas 3% eram relativos a turismo sexual. Ainda 2% estavam
relacionados à produção e venda de material pornográfico e, apenas 1%, ao tráfico para fins de
exploração sexual.
Outro aspecto relevante refere-se ao Disque-Denúncia da ABRAPIA, que registrou no
período entre quinze de maio e quinze de novembro de 2003, três mil, oitocentas e setenta e
quatro denúncias de abusos e explorações sexuais de crianças e adolescentes. Desse número,
quinhentos e nove foram de casos de exploração sexual comercial; hum mil, duzentos e três
referentes a abuso sexual, e dois mil, cento e sessenta e dois diz respeito a outras formas,
como negligência, violência física e violência psicológica.
No Fórum Catarinense pelo Fim da Violência e da Exploração Sexual Infanto-Juvenil,
realizado em Florianópolis, em abril (2004), foram apresentados alguns dados, entre os quais
o recebimento, pela ABRAPIA, no ano de 2002, de mais mil e quinhentas denúncias de
abusos sexuais, sendo que 58% dos casos aconteceram dentro da família.
No jornal A Notícia, do ano de 2003, localizei uma matéria que trata do relatório da
Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, o qual apresenta quatrocentos e quatro
casos de estupros contra crianças e adolescentes, durante 2002, em nosso estado. Os(as)
profissionais do Programa Sentinela registram nos prontuários que a maior recorrência dos
casos acompanhados dizem respeito aos abusos sexuais com (71%), como pode-se visualizar
no gráfico abaixo:
DESCRIÇÕES DAS VIOLÊNCIAS SEXUAIS NOS
PRONTUÁRIOS
76%
6%
12%
6%
ABUSOS SEXUAIS
SUSPEITA QUE FOI
MOLESTADA
ESTUPRO
O CONSTA
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
44
Essas formas de violências são muitas vezes fluídas e difíceis de serem diferenciadas.
Quanto a compreensão dos(as) profissionais a respeito delas, foi possível perceber que
concebem o abuso sexual
19
como: [...] todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou
homossexual, entre um ou mais adulto e uma criança menos de 12 anos e adolescente com
menos de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para
obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa
20
. Esse modo de conceber
o abuso foi reafirmado em estudos de casos, ao apontarem que o agressor geralmente
manipula as genitálias ou realiza sexo oral para não deixar marcas na criança. Esse critério é
adotado pelos(as) profissionais que advogam(advogados e juristas) e criticado pelos(as)
profissionais do Sentinela, que afirmaram que o abusador usa de várias estratégias para não
deixar marcas, o que dificulta a comprovação laudal. É interessante pontuar que através do
diário de campo, constituído a cada dia de pesquisa percebi que em nenhum momento os(as)
profissionais teceram referência à pedofilia, seja em seus registros ou em discussões.
As violências sexuais são compostas por aspectos inconstantes, no entanto, parece-me
que todas geram uma certa ruptura simbólica, que pode ser traduzida pelas relações de
violação dos direitos humanos e muitas vezes pela quebra de relações sociais. Essas rupturas,
em analogia com o pensamento de Maturana (2000) e Heritier (1996), podem ser traduzidas
como a negação da humanidade do outro, vinculada a inúmeros ecos, movimentos, dimensões
difíceis de serem abarcadas. Nesse sentido procurarei dialogar com esse fenômeno complexo,
não como fator único, singular, isolado, mas contextualizado num conjunto de aspectos, de
influências que precisam ser apreendidos e integrados: as manifestações das violências sexuais
que afetam meninas e meninos submetidos ao abuso e à exploração adultocêntricas.
2.2 O cuidado de si das crianças como possibilidade de não assujeitamento
Não se deve pensar que todo o cuidado de si, como eixo
principal da arte de vida, fosse reservado somente aos adultos
(Foucault, 2004:111)
.
Os atos violentos contra as crianças extrapolam seu desejo e a sua vontade ao dominar,
ao desvalorizar e ao submeter. No momento em que se atinge ou se investe em uma pessoa de
19
Retirado de lâminas utilizadas pelos profissionais, principalmente o Pedagogo, nas oficinas realizadas junto
aos professores das escolas municipais e estaduais.
20
Pode-se perceber que partem do ECA, art. 2º, ao referirem-se às faixas etárias como: criança até 12 anos
incompletos e adolescente entre doze e dezoito anos de idade.
45
forma não aprovada socialmente, como é o caso das violências sexuais, levanta-se questões
éticas universais a partir da noção contemporânea de respeito aos Direitos Humanos (DH).
As violências sexuais configuram-se de múltiplas formas, em diferentes graus,
instituições e grupos. Algumas são constituídas nas relações entre adulto e criança, nas formas
de opressão e de desigualdade, de uma dominação que assinala os contornos adultocráticos
que tornam grave e complexa as dinâmicas sócio-afetivas e culturais estabelecidas entre o(a)
agressor(a) e as crianças.
O assujeitamento das crianças durante as violências aparece muitas vezes como jogos
de forças, de dominação organizados e observados nas formas sutis, onde as crianças também
expressam as várias reações, respostas diante dos atos, gerando inúmeros efeitos. Por isso, não
estou pensando a criança como vítima, pois estas reagem diante dos atos. No entanto, durante
as práticas de violências não há exercícios de poderes e sim de dominação que silenciam,
oprimem e assujeitam ela realizar atos não legítimos. Assim, estou considerando as violências
como atos de dominações que assujeitam as crianças.
As relações de poderes não são globais, massivas, elas estão difusas e distribuídas.
Uma relação de poder se articula com dois elementos que são indispensáveis: há um universo
que se abre durante a relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos e
intervenções possíveis; e que o outro (aquele sobre o qual se exerce) seja reconhecido e
mantido até o término como sujeito da ação (Foucault, 2003). É nessa esfera que concebo as
violências sexuais contra crianças como relações de assujeitamento e dominação. O
assujeitamento acontece no momento da violência. Foucault (1997) aponta que mecanismos
de sujeição não podem ser dissociados dos mecanismos de violência, por serem mecanismos
de dominação.
Um exemplo disso é a existência de inúmeras crianças e adolescentes que tomam
iniciativas e eles(as) próprios realizam suas denúncias de violências sexuais. Um dos casos
que me chamou atenção foi o de uma menina de 10 anos, que foi sozinha até a delegacia da
sua comunidade para realizar sua denúncia. Enfim eles(as) utilizam várias linguagens para
denunciarem suas violências. São bilhetes, cartas, recados, olhares, redações muitas vezes
enigmáticos e sigilosos para professores, mães, avós, amigos, vizinhos. Uma das meninas
acompanhadas pelo Programa contou para a mãe que era abusada através de uma carta:
Vou fugir de casa, o pai está fazendo sexo comigo.
(Menina de 9 anos abusada desde os 5 anos pelo pai).
46
Na maioria das vezes, a denúncia é feita a pessoas da confiança da criança, com quem
tem vínculos afetivos; outras se direcionam por pessoas que, sem vínculos anteriores, são
reconhecidas em espaços legítimos, como é o caso dos(as) profissionais das delegacias e dos
Programas Sentinelas.
Durante as visitas domiciliares, as mães relatavam a vergonha, o medo e a dor que elas
e suas filhas, ou filhos, estavam passando após os abusos:
Quando cheguei em casa fiquei desesperada, pois não achei minha filha.
Encontrei ela no banheiro, toda roxa, enrolada num lençol tentando se
enforcar. Estava toda assenguentada, machucada... Não estava entendendo
nada. Levamos ela direto para o hospital, onde ficou na UTI por alguns
dias. Depois fui saber que tinha sido violentada dentro da nossa própria
casa e ficou tão desesperada que tomou veneno de rato e tentou se enforcar.
Depois disso, não quis mais sair de casa, tem vergonha. Sempre foi a
melhor aluna, agora não quer mais sair de casa e nem ir a escola. Tenho
vergonha também. Não quero que ela conte isso mais para ninguém. Alguns
sabem e ficam falando no bairro.
(Mãe de uma menina de 15 anos, violentada
por um desconhecido).
As lágrimas da mãe que narrava indignada o acontecido e o corpo encurvado da
menina que não saía do chão, com olhar cabisbaixo, a tentativa de suicídios e o isolamento
social revelam a corporificação das violências nas dimensões sociais, afetivas e físicas.
Quanto ao suicídio, Saffiotti (1997) aponta que os casos de violências sexuais têm sido um
dos motivos comuns que tem levado principalmente adolescentes a tentarem o suicídio.
Segundo a autora (1997) a exposição à dor, ao sofrimento, às ameaças, o medo e o retorno da
violação sexual pode provocar tendências autodestrutivas e agressivas, aproximando a idéia de
suicídio. O CONANDA (2000: 331) acompanha essa observação, ao afirmar que o suicídio é
uma realidade no contexto da violência contra crianças.
No relato acima, a mãe narra um episódio no qual sua filha demonstra, através da
tentativa de suicídio, seu protesto, sua estratégia de desligamento do abuso e dos sofrimentos
que esses evocam. Naquele mesmo dia, continuava protestando corporalmente, trazendo a
visibilidade do sofrimento e as marcas das violências e exprimindo fisicamente o que não
expressava em palavras. Parecia gritar silenciosamente através das suas lágrimas e de seu
olhar cabisbaixo, numa refutação velada á dor.
Para Amaro (2003:113), a simbólica morte do corpo, através da tentativa de suicídio,
carrega a dor e a memória do abuso. É um gesto desesperado, ou quem sabe incrivelmente
lúcido, de quem reconhece o quão indigno e desumano é sofrer e ter de silenciar uma
47
violação, conviver com a ameaça muitas vezes dentro de casa e ter que manter segredo,
lembrar diariamente, submeter-se e assujeitar-se, sobreviver para, no dia seguinte, estar
novamente exposto à mesma e desumana humilhação. O movimento dessas crianças de
denunciarem e reagirem contra novas formas de violências desconstrói a idéia de que existe,
de um lado um dominador ativo e de outro, um dominado (vítima) passivo e coisificado. O
protesto dessas crianças, nas suas diferentes formas, pode ser pensado a partir do que Foucault
(1985:57) expõe sobre o cuidado de si. Ao fenômeno da cultura de si, ele refere-se ao cuidado
de si, caracterizado pela intensificação e valorização das relações de si para consigo. Relações
essas que não constituem exercícios de solidão e sim formas de agir e pensar enquanto prática
social. Nesse processo, a criança toma a si própria como objeto de conhecimento,
descobrindo-se, valorizando suas necessidades e, nessa perspectiva, organizando os
enfrentamentos práticos e as maneiras possíveis de evitar o assujeitamento.
Foucault (1985:48) aponta o cuidado de si como prolongamento da idéia de
governamentalidade
21
, no sentido de governo de si, ou na maneira como os sujeitos se
relacionam consigo mesmos e tornam possíveis as relações com os outros. Essa intensidade
das relações consigo tem como objetivo tomar a si próprio como objeto de conhecimento e
campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se e promover salvação. Essa
relação, também pensada como a arte da existência, configurou-se nas atitudes das crianças,
das famílias, das(os) professores(as), das(os) vizinhas(os) que realizam a denúncia com a
intenção de promover uma ruptura do contexto das violências, afastando o(a) agressor(a) do
quadro de possibilidades do abuso ser praticado novamente.
As análises do Foucault (1985) permitem pensar como essas crianças, através da
renúncia do abuso, através de cartas, recados e denúncias estão instaurando um procedimento
de cuidado de si. No entanto, para que elas tenham condições de afirmar-se como insurgentes
civis frente às violências habituais e poderem dizer não, necessitam da gestão do cuidado das
instituições, por meio de políticas públicas que gerem processos educativos e protetivos. Do
contrário, crianças e adolescentes continuarão a engrossar as estatísticas das mortes, dos casos
de abandonos, dos abusos adultocêntricos, aprofundando uma das marcas mais gritantes do
século XX: a intensificação da dor e do sofrimento humano.
21
Essa governamentalidade segundo Foucault (2000) emerge no século XVI, assumindo formas variadas no
século XVII como por exemplo a preocupação central do governo das crianças que a pedagogia desenvolveu
nessa época.
48
2.3 Os retalhos que tecem as violências: sexualidade e gênero
Um olhar desde o sumidouro
Pode ser uma visão do mundo.
A rebelião consiste em olhar a rosa
Nos seus inúmeros retalhos
Até se pulverizarem os olhos.
(Skliar, 2003:67)
As violências como fio articulador, nesta dissertação, são pensadas unindo os retalhos
inicialmente das questões que envolvem a sexualidade infantil presente na história da
humanidade para, em seguida, tecer a polifonia das violências que juntas se configuram.
Voltar o olhar para as violências sexuais contra as infâncias não é uma aventura de fácil
lineamento, devido aos muitos fatores relacionados às características deste fenômeno. Assim,
não é possível conceituar violências com base apenas na noção simples e particularizada do
crime, do ato provocado nas crianças, ou até mesmo na cumplicidade que torna o fenômeno
velado. Faz-se necessário discutir essas práticas através das complexas relações que são
organizadas no conjunto da sociedade. Trata-se de incluir, no fenômeno das violências sexuais
contra crianças, a reflexão sobre saberes e atitudes morais que foram incorporados e
permanecem vigentes em relação à sexualidade.
Ariés (1981) faz alusão sobre essa questão apresentando dois momentos na história da
humanidade. Primeiramente, descreve que o hábito de brincar com a sexualidade das crianças
fazia parte de uma tradição muito difundida durante o século XVIII. Os homens, sem
repugnância, brincavam com as crianças publicamente, através de gestos e contatos físicos
com os órgãos genitais, que só passavam a ser proibidos quando elas atingiam a puberdade.
Essas formas adultocêntricas de relacionar-se com as crianças eram instituídas por se acreditar
que os impúberes fossem alheios e indiferentes à sexualidade. Portanto, os gestos e as alusões
não tinham conseqüências sobre o seu desenvolvimento e tornavam-se gratuitos; perdiam sua
especificidade sexual, neutralizavam-se. Também isso ocorria porque ainda não existia o
sentimento de que as referências aos assuntos sexuais pudessem macular a inocência infantil
(Ariès, 1981).
O segundo momento do século XVIII, fundante de inúmeras formas de relação com as
crianças, configura-se através do conselho do confessor, criado pela igreja a fim de difundir
novas idéias que viessem preservar as infâncias de possíveis conseqüências dos
comportamentos sexuais adultos, vistos, até então, sem qualquer sentimento de culpa. Pensou-
49
se, então, nas modificações de hábitos estabelecidos com relação às crianças, para evitar que
elas se beijassem, se tocassem, assim como coibir a promiscuidade entre pequenos e grandes,
impedindo-os de dormir numa mesma cama com pessoas mais velhas, mesmo que estas
fossem do mesmo sexo. Os romances e comédias eram desaconselhados, assim como as
canções populares, pois argumentavam que elas exprimiam paixões desregradas, cheias de
equívocos indecentes. Esses não eram permitidos, por não serem considerados jogos
educativos (Ariès, 1981).
Foucault (1985) pesquisa a sexualidade analisando como os poderes se articulam nos
jogos de verdade, fazendo das práticas e dos discursos da religião, da ciência, da moral, da
economia e da política instrumento de subjetivação e uma ferramenta do poder. Foucault
(1985) evidenciou a formação de uma atitude moral em relação à sexualidade: por meio da
reconstituição das estruturas políticas, na relação entre domínio de si e domínio sobre os
outros, a partir das modalidades de conhecimento. Assim, descreve como ela foi normatizada,
a partir das exigências das leis sociais, morais e políticas.
O referido autor descreve como o nascimento da “disciplina”, isso é, como um tipo de
governamentalidade
22
, cuja a racionalidade é uma economia política, sofre modificações na
medida em que o governo dos indivíduos é contemplado por um controle das populações, por
meio de uma série de biopoderes que administram a vida, a higiene, a sexualidade, por
exemplo (Revel 2005:67).
A sexualidade, por sua vez, é compreendida por Louro (2001:11) como resultado de
diferentes formas discursivas, arranjos e enunciados que se fizeram presentes ao longo do
tempo, ou seja, (...) podemos entender a sexualidade envolvendo rituais, linguagens,
fantasias, representações, símbolos e convenções. Desse modo, ela engloba os processos
profundamente culturais e plurais. Essa concepção sobre a sexualidade se aproxima das
discussões de gênero, um conceito que vem sendo pensado a partir de diferentes perspectivas,
principalmente pelos movimentos feministas, com o intuito de provocar e desestabilizar os
padrões de normatização que são estabelecidos culturalmente pelas diferenças construídas
socialmente entre homens e mulheres. Scott (1990) caracteriza o gênero como uma categoria
útil de análise histórica, onde podem ser percebidas as relações de poder que se estabelecem
entre pessoas do sexo masculino e feminino.
22
A governamentalidade, segundo Revel (2005:54), diz respeito à matriz da racionalidade, que não tem a ver
nem como o soberano de justiça, nem com o modelo maquiavélico do príncipe. É um conjunto construído pelas
instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa formula bastante
específica e complexa de poder.
50
São nessas relações de gênero, pautadas pelas hierarquias constituídas por
representações históricas de homens e mulheres, que as violências sexuais também acontecem.
É o que se percebe no gráfico abaixo, o qual demonstra que a maioria das crianças
acompanhadas pelo Programa Sentinela é constituída de meninas:
Sexo das crianças e adolescentes
acompanhadas
17%
83%
MASCULINO
FEMININO
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
Ainda em relação ao perfil dessas crianças, a maioria (55%) tem até 12 anos; 39% tem
de 12 a 18 anos e 6% não consta nos registros. Destas, 55% são registradas como brancas,
17% pardas, 6% negras, sendo que 22% não estavam descritos.
O gráfico aponta que a maioria das crianças abusadas é composta por mulheres,
revelando o entrelaçamento com as relações de gênero, enquanto elementos construídos nas
convivências sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos (Scott, 1990:16).
O Relatório da ONU indica que quinhentas mil garotas, com idade entre cinco e quatorze anos
trabalham como empregadas domésticas: uma forma invisível de trabalho infantil e que as
expõe ao risco de exploração sexual. São meninas que entram também no cenário do trabalho
infantil a partir da prostituição, da pornografia, da exploração, por exemplo, e que aos poucos
vão aprendendo os papéis que devem desempenhar nos palcos da vida, especialmente nas
grandes metrópoles. Louro (2001:13) destaca, no entanto, que essas crianças não são passivas
absolutas, receptoras incondicionais de imposições. Algumas se envolvem e são envolvidas
nessas aprendizagens, por isso reagem, respondem, recusam ou assumem inteiramente. Esses
51
dados descortinam as relações verticalizadas entre homens e mulheres: sabe-se o que falar e
sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder, quem pode falar e quem deve silenciar.
Essas relações estabelecidas socialmente naturalizaram alguns atributos como próprios
da feminilidade, como por exemplo a passividade, a fragilidade, e por outro lado, reforçam a
idéia de homens viris, dominadores e fortes. Esses atributos constituem corpos masculinos que
se sentem legitimados socialmente para assujeitar mulheres, aqui muitas delas filhas ou
enteadas, como se pode perceber no próximo gráfico abaixo, onde 29% dos agressores são
pais biológicos e 41% padrastos.
Apesar dos indicadores sociais demonstrarem que o número maior de crianças
violentadas é de meninas, não se pode excluir a possibilidades de meninos serem abusados.
Um dos aspectos sociais que pode estar atrelado ao não acesso dos meninos aos Programas
Sentinelas é o imaginário social que se estabelece em torno das questões da sexualidade
masculina. Em uma reunião de estudo de caso, os(as) profissionais relataram que um dos
meninos acompanhados pelo Programa Sentinela estava vivendo um processo de
estigmatização; chamavam-no de “bichinha”, pois foi abordado tendo contato sexual com seu
amigo de infância. Nesse rótulo de “bichinha” há uma violência simbólica, que parte do
pressuposto de que o menino viveu uma relação homoafetiva e está fora do padrão de
normalidade. Para Louro (2000), a normalidade é representada pelo heterossexual, onde a
identidade masculina e feminina se ajusta às representações hegemônicas do gênero. Louro
(1992) afirma que esse aspecto relacional entre os sexos é uma instância de fabricação, dentro
das lógicas polarizadas, e constituem as masculinidades e feminilidades, assumido também
pela vigilância e pela censura da sexualidade, as orientações pelo alcance da normalidade.
A idéia de que a exposição do menino junto à rede de atentimento poderá ser algo que
o estigmatize perante o grupo social e marque a sua identidade sexual, pode ser um dos
componentes que impede algumas famílias de realizarem a denúncia. As denúncias também
são silenciadas porque grande parte delas acontecem no seio familiar, como pode-se observar
no gráfico abaixo, onde um dos perfis dos agressores diz respeito ao pertencimento ou
proximidade do núcleo familiar:
52
PERFIL DO AGRESSOR
29%
41%
18%
6%
6%
PAI
PADRASTO
PARENTE (, TIO,
IRMÃO)
CONHECIDO DA
FAMÍLIA
DESCONHECIDO
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
Por ser no seio familiar que a maioria dessas violências acontecem, a casa é o lugar
onde se centram os episódios destas violências. Para Almeida (1999: 264), a casa é
reconhecida como o lugar do feminino e passa a ter sentidos para os homens, que significam
esse espaço como atrelado ao prazer, ao gozo, à proteção e ao acolhimento. São os homens
com história de agressão contra mulheres e crianças. O gráfico anterior permite pensar nas
visibilidades declaradas, onde somente os homens são os agressores. Essa amostragem
anuncia que há uma invisibilidade das mulheres como agressoras e que essa invisibilidade não
as inclui como abusadoras, um dado que parece também ser um construto histórico e cultural,
marcado pelas questões de gênero. É atribuído à mulher, à mãe, o sentimento de afeto, por ser
materna e cuidadora, ou seja, por ser incapaz de cometer atos abusivos com relação às
crianças.
A masculinidade e a feminilidade, ambas são construídas socialmente, portanto são
dimensões instáveis, históricas e relacionais. Elas se instauram onde são moldados os
estereótipos de mulher, baseados no sentimentalismo, no seu caráter afetuoso e maternal. Já ao
homem é cobrado o isolamento emocional, pois exprimir afeto remete ao perigo da
feminização. Restrepo (1998:13) salienta que por trás da figura da bondade podem esconder-
se na maternidade uma exagerada ambição de domínio e uma tirania milimétirca da mãe
sobre aqueles a quem protege. Ou seja, pode-se encontrar dureza inusitada e violências
geradas por mulheres, bem como, comportamentos ternos e afetuosos por parte dos homens.
A introdução de homens em espaços legitimados para as mulheres, como na educação
infantil, tem gerado, segundo Sayao (2003), preocupações e ansiedades aos pais das crianças
53
de creches e pré-escolas, por estes pensarem nas hipóteses de abusos sexuais. Essas
associações de homens educadores com violências contra crianças demonstram os discursos
arraigados nos estereótipos de masculinidade, que conferem determinados papéis aos homens.
2.3.1 O discurso sobre os homens agressores e mães protetivas: em busca de sentidos
Numa pesquisa realizada por Muszkat (2001), esta autora percebeu através do contato
direto com homens que têm histórias de agressão contra mulheres e crianças, que há nos seus
discursos justificativas das agressões relacionadas à necessidade de terem triunfo sobre a
mulher para afirmarem sua virilidade. Os relatos dos(as) profissionais do Programa Sentinela
afirmam que muitos agressores negam sua responsabilidade no ato, colocando nos(as)
filhos(as) a responsabilidade pelo ocorrido: ela me provoca, ela me seduz, não consigo me
controlar. Dizem ter sido provocados e tomados por outra entidade, ou que possuem algum
problema psicológico:
[...] fico tomado por outra entidade, não sei o que acontece comigo.
[...] tenho um problema, preciso de ajuda, preciso de um psiquiatra (Falas
dos agressores presente nos registros dos prontuários do diário de campo)
Criando inúmeros discursos inspirados na lógica de sua vitimização, as quais
deságuam nos atendimentos dos(as) profissionais que trabalham nessa área, complexos
aspectos revelam que o agressor coloca-se com a necessita de tratamento.
Quando o agressor vem ao programa, ele está perdido. A questão que
trabalho é a dependência química. Tento ajudá-lo a pensar o que ele pode
fazer, o que pode arrumar de serviço, qualquer coisa que faça com que sua
família o veja diferente. Tem que levantar o auto-estima, senão as prisões
vão ficar cada vez mais lotadas. Um deles ficou um ano e um pouco comigo.
Ele coloca a partir do vínculo comigo as situações que vivenciou. Ele relata
que não fez, mas fica subentendido que fez
(Fala da psicóloga do Programa
Sentinela).
Parece haver uma tendência em associar os(as) agressores(as) às categorias
psicopatológicas e a dependência química, portanto, a estados desqualificadores, como se com
isso pudessem encontrar justificativas para as práticas de violências.
54
O agressor bebe nos finais de semana. O agressor precisa de um trabalho
psicológico ou psiquiátrico. O agressor faz uso de maconha. Ao beber
muito o padrasto era grosso... O pai é alcoólatra. Bebia muito bebida
alcoólica.
(Fragmentos dos registros dos(as) profissionais encontrados nos
prontuários).
As questões dialogadas nas entrevistas de acolhida dizem respeito aos chamados
aspectos toxicológicos, os quais contemplam perguntas acerca do uso e, do tempo de uso, do
tipo de droga, do histórico familiar na relação com as drogas. O Programa cadastra os
seguintes dados complementares referentes ao agressor: suspeita de deficiência mental,
portador de deficiência física, visual, auditiva e etc. É preciso rastrear o que tem e o que não
tem sentido quando se atribui a responsabilidade de um conflito familiar ao uso de bebida. A
alusão ao alcoolismo, segundo Gregori (1993:145), revela um estereótipo atribuído, ao
masculino onde a ‘bebedeira’ como fraqueza apresenta uma conotação de trauma ou doença,
como algo que demanda ajuda e controle fora do seio familiar, com especialistas (médicos,
psicólogos). É nesse discurso médico-patológico que se pauta a maioria dos encaminhamentos
do Programa Sentinela o que traz desdobramentos tanto para a gestão do cuidado com a
criança violentada, quanto para o agressor.
Os endereçamentos dessas questões realizadas pelos (as) profissionais marcam as
possíveis estratégias utilizadas na busca de compreender as atitudes do agressor por meio de
justificativas biológicas e comportamentais. Historicamente, as ciências sociais e biológicas
explicaram, por meio de pesquisas, os perfis dos agressores, associando as patologias somente
aos aspectos biológicos, assim como, as atitudes agressivas aos usuários de álcool
23
. Ambas
“verdades” pensadas pelas ciências parecem considerar o agressor como um doente, e este
seria um fator das causas que o levaram a agir, como se pode observar na fala da psicóloga do
Programa Sentinela:
[...]essa pessoa tem transtorno mental. Pode ser dependente químico,
doente e até vadio. [...] ele relata que trabalha numa empresa de navio
onde cheira muita cola. Ele é um dependente químico e também a questão
da pobreza é presente, pois moram numa casa com dois cômodos e dormem
todos juntos. Disse que confundiu sua esposa e teve relação com a filha. Na
verdade, pode ser a questão da dependência química que pode interferir,
pois não se tem noção da realidade.
(Fala da psicóloga do Programa Sentinela).
23
O uso do álcool, segundo Muszkat (1998:225), exerce dupla função: mantém a sociabilidade na esfera pública
e funciona com álibi para a inadequação de comportamentos na esfera doméstica.
55
Na perspectiva da complexidade, é importante desestabilizar o discurso binário, aquele
afirma os agressores(as) como doentes, patológicos e usuários de alguma droga. Esses
discursos tendem a reduzir os(as) sujeitos(as) a essas desqualificações, nomeando as razões e
causas de tais violências. Qualificam-se as pessoas tendo como referência o bem e o mal, o
certo e o errado, definidos no imaginário construído socialmente, onde o contraditório, o
aleatório, a pluralidade existente no indivíduo e são considerados desvios e erros, devendo
ser reduzidos ou eliminados (Maffesoli, 2004:159)
Parece-me ser importante considerar que esses sujeitos são homens que interagem com
mulheres e crianças, com suas próprias representações sobre masculinidades e paternidade. As
violências criam desconforto, mal-estar, sendo o agressor caracterizado como alguém negativo
e destruidor. No entanto, nesta dissertação, procuro pensar que os(as) agressores(as) não se
constituem somente de desumanidades, de covardias, de monstruosidades.
São seres humanos encharcados por uma multidimensionalidade que os faz singulares
e plurais, do mesmo modo, sapiens e demens (Morin, 1999). Neste sentido, a desumanidade
que expressam através das violências sexuais que praticam contra uma criança, é uma
extensão sinuosa da sua humanidade. O indivíduo tem, portanto, uma identidade social, a
única capaz de permitir que ele se realize, mas também capaz de subjugá-lo (Morin,
2002:170). Para o autor, nada é mais humano em nós do que a nossa possível desumanidade.
Em momentos de convivência como os(as) profissionais dos outros Sentinelas da
Grande Florianópolis, estes relatavam que as crianças demonstravam afeto pelos agressores no
momento em que estes eram detidos pelos policiais. Narravam que elas choravam, abraçavam-
se a eles e pediam para que não os levassem. Esses episódios, muitas vezes, eram
insuportáveis diante do olhar dos(as) profissionais.
Através desses relatos parece que o agressor se constitui e se move no entrelaçamento
entre afeto e o desafeto, a humanidade e a desumanidade. Essa pluralidade mostra a
contradição dos afetos quando estes são reduzidos a uma unidade homogênea, já que ele não é
o mesmo quando está apaixonado ou enraivecido, que ele mesmo pode viver situações que o
fazem pegar outro caminho, em vez do que deveria (Morin 2002:18). A
multidimensionalidade humana, tem um princípio de reconhecimento do politeísmo que
integra a lógica contraditorial e os vários elementos heterogêneos que compõem o real, o
social e o indivíduo (Mafessoli, 2004).
Reconhecer a humanidade em quem afirmo ser desumano - acusado(a) - é reconhecer
que muitas dimensões nos constituem. A sociedade, porém, é alicerçada sobre alguns mitos e
um deles é sobre o da bondade humana. Nós aprendemos que devemos ser apenas bons,
56
sempre bons, o que segundo Maffesoli (2004), faz parte de uma racionalidade ocidental que
herdamos do monismo cristão, que valoriza a ordem, a hierarquia, a perfeição e o dever-ser
representados pela imagem de um Deus único. Assim, exclui-se a desordem, o caos, a
contradição, associando o diabo ao mal e o Deus ao bem. A ética e a moral são tecidas pela
perfeição e pelo dever ser.
Essa compreensão prática pautada no bem, faz com que tenhamos dificuldade para
reconhecer que somos, a um só tempo, sapiens e demens e que temos a capacidade em
manifestar uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças
brutais de humor; em carregar consigo uma fonte permanente de delírio; em ver na virtude de
sacrifícios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a mitos e deuses de sua
imaginação (Morin 1998b:07). A complexidade permite compreender o ser humano pela
coexistência da dimensão sapiens, imbuída da inteligência, da capacidade de compreender e
aprender e, do demens metaforicamente caracterizado como demoníaco. Ambas são
dimensões próprias das pessoas: a capacidade de produzirem o mal, de serem perversos, ruins,
de fazerem mal ao outro, de produzirem dor, mas também de amarem e cuidarem.
Conceber o humano nesta multidimensionalidade convida-nos a refletir sobre o
movimento ambíguo de enquadrar o(a) violentador(a) numa lógica de pura desqualificação,
orientada por uma visão de mundo binária. Conceber o humano na sua complexidade, implica,
como aponta Morin (2002:07), construir uma reflexão que rejunte os laços da realidade, que
pratique o abraço entre o uno e o diverso para reconhecer cada um de nós como seres
banhados por sentidos e significados. Na reflexão o observador se revela, conforme o lugar
social de onde fala.
A possibilidade de não recairmos nas unidimensionalidade, do olhar é nos mantermos
atentos ao princípio dialógico, que une duas noções consideradas antagônicas e, ao mesmo
tempo complementares. Morin (2002:16) utiliza uma metáfora que amplia o olhar sobre o
mundo, mas sem que se caia na armadilha da simplificação:
A lagarta envolta pela crisálida começa por destruir seu organismo de
larva, à exceção de seu sistema nervoso. Esse trabalho de autodestruição é,
ao mesmo tempo, um trabalho de auto-criação de onde emerge um novo ser,
outro, com a mesma identidade. Ao final da metamorfose aparece a
borboleta, de inicio paralisada, entorpecida... até que, subitamente, ela
estende as asas e alça vôo (Morin, 2002:08).
57
Configurar os agressores é um dos modos de revelar concepções de violências que
estão atreladas ao aspecto da violação, da transgressão de regras e normas aceitas por uma
coletividade e pelo contexto jurídico. Nesse sentido, o individuo violento é aquele(a) que põe
em risco a vida da comunidade, contribuindo para seu desequilíbrio.
A compreensão das violências, com a inspiração de Maffesoli (1981), considera não
apenas o aspecto de transgressão de normas, mas também o seu caráter polifônico e
polivalente de resistência e confronto. Por isso, o(a) agressor(a) não pode ser pensado como
uma conseqüência exclusiva da formação patológica. Ele(a) é também, sujeito que vive numa
sociedade violenta e discriminatória, onde seu ser-no-mundo pode estar relacionado a diversos
fatores. A deteriorização do quadro social brasileiro, através das desigualdades distributivas,
do desemprego, da marginalização e a inexistência de políticas públicas voltados a essa
parcela da população constituem pano de fundo que alimenta a multiplicação das violências
em suas diferentes performances.
Interessante perceber que as violências se manifestam de diferentes formas no âmbito
social: aceita-se as formas de punição e correção do(a) agressor(a) exercida pelo Estado,
através das atividades legislativas e jurídicas. Muitas vezes, essa forma de lidar com os
agressores impede o diálogo e a sua reeducação afetiva, rotulando-os como anormais que
devem ser corrigidos. Convive-se numa lógica social, na qual não se vê nenhum problema no
fato das violências serem combatidas com outras próprias violências, através dos sistemas
coercitivos.
Para Foucault (2003: 81), o crime não é algo aparentado com o pecado ou a falta; é
algo que danifica a sociedade, é um dano social, uma perturbação, um incômodo para toda a
sociedade. O(a) criminoso(a) é visto como aquele que danifica, perturba a sociedade. É
aquele(a) que rompeu o pacto social. Em decorrência, surgem as leis penais com a função de
reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social
[...] toda penalidade passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos,
se esta em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são
capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. (Foucault,
2003:85)
Outra questão entrelaçada pela discussão de gênero é a freqüência de casos onde as
mulheres se sentem culpadas pelas ocorrências de violências sexuais com seus (as) filhos(as):
58
[...] não sei como não percebi, não acredito que eu deixei isso acontecer
com minha filha.
[...] e eu tivesse ficado em casa, não devia ter assumido aquele emprego.
Nada tinha acontecido
(Relato das mães durante as visitas domiciliares).
Essa auto-culpabilidade das mulheres e mães é alimentada pelo discurso dos(as)
profissionais do Programa Sentinela, ao afirmarem que a mãe estava sempre muito ocupada
trabalhando. Parece-me que há uma certa responsabilização, pela sua ausência, reforçando o
lugar da mulher como a “cuidadora” do lar e dos(as) filhas(os). Essa questão é apresentada em
outros momentos:
[...] a professora o levou para casa e relatou o fato a seus pais. A mãe achou
melhor não denunciar o caso. A mãe por falta de tempo não retornou.
(Fragmento do caso Breno – apresentado pelos(as) profissionais do Programa
Sentinela na Jornada Catarinense pelo fim da exploração e violência infanto-juvenil).
A idéia de uma mãe virtuosa a cuidar dos filhos é expressa pelos(as) profissionais do
Sentinela, os quais as qualificam como protetiva e não protetiva. Mães protetivas são termos
usuais entre os(as) profissionais do Sentinela, associados ao fato de haver riscos de
reincidência das violências. Um dos fatores que eles caracterizam uma presença de uma mãe
protetiva, remete aquela mulher que procura manter vínculos de comunicação com o
Programa Sentinela. Esses atributos fazem parte das condições necessárias para construção de
um homem-de-bem, capital cultural que herdamos das aspirações dos higienistas (Costa
2004). Isso me faz pensar na cultura ocidental, onde há uma distinção clara dos papéis
destinados ao pai, a quem é dada a responsabilidade de prover financeira e moralmente a
família, enquanto a mãe é a cuidadora, “naturalmente” afetiva e responsável pelo crescimento
e educação dos seus filhos.
Segundo Fonseca (1998:204), o modelo de família onde a mãe deve ser a cuidadora
toma forma a partir do fortalecimento do movimento higienista do início do século XIX,
quando se delineou uma concepção de família nuclear e com papéis específicos para seus
integrantes. Nesse processo, forjou-se o papel da mulher, distinto daquele criado para o
homem e para a criança. À mulher cabia a responsabilidade de manutenção da moral familiar
e da educação dos filhos; ao homem, a tarefa de prover economicamente a família; a criança
deveria ser disciplinada, conforme normas sociais vigentes.
Ao afirmar a idéia de que a mãe é a figura protetiva, mais uma vez, reforça-se o lugar
que ela não deve ocupar, ou seja, o lugar de agressora. E isso se deve ao fato da sua imagem
estar atrelada ao cuidado, à proteção. Talvez essa seja uma das questões que torna difícil o
59
reconhecimento das desordens que as violências geram, como restritos universos masculinos.
No entanto, é bom destacar, estas são realizadas também por mulheres.
As violências exercidas no âmbito familiar podem ser configuradas como um dos
fatores por onde as desordens, se manifestam. Pelo fato de gerar um desconforto social, as
violências desestabilizam, inclusive, a concepção predominante de instituição familiar
destinada à educação dos(as) filhos(as).
A produção de verdades, para Foucault (2003), se configura pelas regularidades
discursivas, onde as formas enunciadas consistem de relações intrínsecas entre saber e poder.
Aqui se torna necessário questionar como a relação de saber confere aos corpos masculinos e
femininos, uma classificação binária, onde se depositam as normalidades e patologias em
relação aos homens como agressores, enquanto as mulheres são concebidas como protetivas.
Esses discursos estabelecem, em certos casos, o biopoder na medida que se tem
compartilhado nas políticas públicas para a infância, os discursos sobre os corpos das crianças,
dos agressores e de suas famílias pelos(as) profissionais do Programa Sentinela se definem
como os detentores de poder sobre a vida dessas pessoas. Aqui o biopoder é entendido pela
perspectiva foucaultina (Caliman: 2002) como poder sobre a vida, enquanto técnica sobre o
corpo individual e coletivo, expresso tanto pelas tecnologias disciplinares quanto pela
biopolítica. O conceito biopolítica foi escrito em seu curso no Collège de France (1978-1979)
em “Naissance de la biopolitique” como maneira através do qual passa-se racionalizar a partir
do século XVIII problemas da prática governamental, tomados desde então como fenômenos
próprios da população, como saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça dentre outros.
(Filho, 1998:123).
Nessa biopolítica enfoca-se segundo Filho (1998: 123) o “interesse geral” como
interesse da população. Esse foco pode ser observado na gestão do Programa Sentinela na
medida em que este universaliza as crianças, as mães, os agressores, as sexualidade,
desconsiderando que existe toda uma multiplicidade de figuras de subjetividades que remetem
a formas de ser e modos de vida plurais.
60
CAPÍTULO III
INFÂNCIA: LUGARES E DISCURSOS
A história da humanidade sempre foi a história dos
adultos.
Haim Grusprun (1985:17).
61
3.1 Breve cenários das violências que marcaram as histórias das infâncias no Brasil
O cenário das violências na história das crianças é entrecortado pelos olhares
adultocêntricos
24
e adultocráticos
25
do controle e da dominação, portanto, por uma relação que
constitui a inferioridade da infância. Isso permanece em alguns momentos, como podemos
observar nesse subcapítulo.
As ações dos jesuítas ao chegarem ao Brasil estavam voltadas à disciplina das crianças,
pois, segundo eles, a qual (...) carecia de ordem que exprimisse a marca civilizatória da
metrópole na colônia, mediante a instalação de vilas, capelas e a semeadura dos campos, mas
as almas indígenas deveriam ser ordenadas e adestradas para receber a semeadura da
palavra de Deus (Priore, 1995:10-1).
Os primeiros séculos de colonização, como lembra Priore (1999), são marcados por
representações da infância. Estas, difundidas pelos jesuítas, referiam-se às crianças como seres
místicos, cuja fé as ajudaria a suportar a dor e a agonia física. Assim, deveriam imitar Jesus,
através de características humanas: o olhar, o perfume e os gestos divinizados, somados a sua
doçura, inocência e afabilidade, tocariam a todos que a cercassem. Cabia aos pais e às mães
assumirem um papel grandioso, ao espelharem-se no divino, onde Deus os ensina que amar é
castigar e dar trabalhos (Priore, 1999:65). Nesse sentido posso afirmar que as violências
físicas são construtos histórico-culturais como práxis, são reconhecidas de caráter educativo.
Sousa (2002a) denuncia que ao aceitarmos o castigo como redenção dos desvios,
principalmente daqueles que provocam dores, de algum modo corroboramos com a crença de
que o sacrifício enobrece e ensina.
Essa forma de intervenção adultocêntrica, hoje institucionalizada em vários espaços,
submete milhares de crianças às inúmeras violências que marcam sua corporiedade e ainda, os
silêncios nas sombras das práticas educativas. São condutas que emergem na expressão dos
gestos, dos sinais, dos movimentos, na acolhida ou rejeição faciais, dentre outras linguagens.
24
Entendo como relações adultocêntricas aquelas centradas nos interesses dos adultos. Essas relações fazem com
que os adultos exerçam seu poder em relação as crianças e os adolescentes, considerando-se a assimetria presente
na relação entre eles Sousa (2002).
25
Considero como adultocráticas as estruturas sociais constituídas oficialmente, cuja ênfase se assenta na
burocracia vertical, jurídico-normativa, a qual orienta a implementação das políticas públicas para a infância e
adolescência Sousa (2002).
62
No seio das tensões produzidas no processo de colonização, os estrangeiros
incompreendiam o modo de ser dos denominados selvagens e seus hábitos tropicais.
Reclamavam dos mosquitos, do calor, da falta de cuidado com a cidade, dos costumes
desordenados e das crianças, chegando a considerá-las como piores que mosquito hostil
(Maiad, 1999:139).
Imersos em concepções eurocêntricas
26
, os colonizadores viam as crianças como
secundárias, como seres ignorados no convívio social, principalmente as negras. Scarano
(1999:10) narra uma concepção própria da época, cuja compreensão atualmente parece ser
complexa, de que a morte não era considerada uma tragédia, pois outras crianças as
substituiriam. Além disso, o autor evidencia outra questão interessante, ressaltando que os
colonizadores preocupavam-se com o bom tratamento destinado aos animais que os serviam,
no caso, os cavalos, mais do que com os escravos que também os serviam nas tarefas
cotidianas. As crianças negras, que não podiam participar do trabalho e com ele propiciar mais
lucro aos proprietários, eram esquecidas.
Esses enunciados permitem dialogar sobre a existência de uma ética relacional, da qual
emergem atos de violências expressos pelo racismo, pela discriminação, ainda tão fortemente
arraigada entre nós. Com relação às questões raciais, por exemplo, pode-se fazer um paralelo
com as violências situadas entre o passado e o presente, à medida que se têm suas marcas
guardadas ainda hoje, as quais afetam crianças e adolescentes negros. No Relatório da ONU
(2003) há a denúncia de que as pessoas traficadas para fins sexuais são, predominantemente,
do sexo feminino, adolescentes de origem afro-brasileira, com idade entre quinze e dezessete
anos, correspondendo a cerca 30% do total de sujeitos submetidos a esta atrocidade do
mercado. Ainda 80% das mulheres traficadas se tornaram mães.
No decorrer da pesquisa, os(as) profissionais do Programa Sentinela acompanhavam
uma adolescente negra que foi estuprada por um desconhecido. Conforme os(as) profissionais,
depois de alguns anos, ela engravidou e foi expulsa de sua casa pelos seus pais que falavam:
Não queremos mais uma boca para comer. Ao sair de casa, foi morar com um homem que
não era o pai do seu filho. Retornou ao Programa Sentinela, para denunciar que o
companheiro estava violentando diariamente. Nesse mesmo dia ouvi um comentário dos(as)
profissionais insinuando que ela talvez tivesse abortado seu filho, pois estava no hospital com
hemorragia.
26
O eurocentrismo é uma expressão que designa as concepções atreladas às idéias européias, tidas como centrais,
verdadeiras, superiores em relação a outras formas de culturas, a outros povos e nações.
63
O breve retrato das inúmeras violências presentes na história dessa menina negra
configura, ainda que parcialmente, os cenários assinalados anteriormente. Tais práticas
continuam sendo violentas, e sua brutalidade é visível nos corpos das crianças, produzindo
efeitos na constituição de subjetividades.
3.2 O não lugar: ocultamento do discurso das crianças no Programa Sentinela
O outro já foi suficientemente massacrado. Ignorado. Silenciado. Assimilado.
Industrializado. Globalizado. Cibernetizado. Protegido. Envolto. Excluído.
Expulso. Incluído. Integrado. E novamente assassinado. Violentado.
Obscurecido. Branqueado. Anormalizado. Excessivamente normalizado. E
voltou a estar fora e a estar dentro. A viver em uma porta giratória. O outro já
foi medido demais para que tornemos a calibrá-lo em um laboratório
desapaixonado e sepulcral (Skliar, 2003:29).
Sob a ótica da cultura adultocêntrica, algumas relações estão sendo estabelecidas:
Entre os(as) profissionais do Programa Sentinela e os familiares das crianças inseridas em
contextos de violências, entre os pais e mães; entre adultos e crianças. Essas relações são
mescladas por discursos, os quais denomino como pedagógicos médicos, jurídico,
psicológico, determinista e biologizantes, para citar alguns. Outros discursos podem ser
reconhecidos como silenciados. Eles estão presentes nas crianças violentadas, e se revelam, de
modo especial, nos processos de atendimento que são de responsabilidade do(as) profissionais
do Programa Sentinela. É com base no pensamento de Foucault e de seus interlocutores que
vou tecer alguns enunciados sobre eles.
Conforme Foucault (1996), o discurso se organiza e se materializa numa relação de
poder e numa realidade corpórea. O discurso é reificado, produzido num espaço que o autor
chama de biopoder, enquanto biopolítica, mediante dispositivos disciplinares que têm o corpo
como objeto e as instituições, nesse caso, as famílias e as políticas públicas. A biopolítica
expressa a presença dos aparatos do Estado na vida das populações. Assim, o discurso, na
ótica deste autor, é uma produção social e política, uma partícula atomizada, visto que se
revela na tessitura de outros discursos. Ou seja, os discursos são tomados como um conjunto
de estratégias que constituem os sujeitos de conhecimento. Eles controlam, selecionam,
organizam e redistribuem procedimentos que têm a função de conjugar seus poderes, por meio
da produção de saberes, de estratégias e de práticas Foucault (2003:11).
64
Ao pesquisar nos prontuários do Programa, deparei-me com o fato de que neles
estavam registradas as falas dos técnicos, representando as vozes institucionais, enquanto as
vozes das crianças e dos adolescentes não apareciam. As fichas de atendimento – registros dos
casos encaminhados continham os seguintes dados sobre as crianças: nome, endereço, idade,
nacionalidade, escola que estuda, religião, composição da família e atividades que participa,
identificação da família, vida escolar da criança, situação socioeconômica e cultural, dinâmica
familiar, histórico das queixas. Segundo os(as) profissionais, esse material é encaminhado
pelo Governo Federal como roteiro para intervenções (como pode ser observado em anexo).
Na pesquisa por mim realizada, percebi que inúmeras informações estavam incompletas nos
prontuários e os discursos das crianças não estavam registradas em nenhum espaço. Os
campos eram preenchidos a partir da entrevista realizada com os responsáveis pelas crianças.
As vozes das crianças podem estar silenciadas porque as consideram como sujeitos de
menoridade e sem legitimidade? Essa invisibilidade das vozes das crianças nos prontuários é
mortificada em vida por especialistas, devido ao fato de constituírem saberes que acreditam
que elas não possuem? Esses silenciamentos das crianças podem evidenciar resquícios da
ciência positivista que nos ensinou a atribuir o saber a poucas pessoas, àquelas que têm
legitimidade de falar, que são reconhecidas como aquelas que sabem? Ao que parece, no
Programa Sentinela, os(as) profissionais se situam como técnicos(as) especializados(as) e
passam a ser então aqueles que detêm o saber como especialistas. Suas falas, seus pareceres
são reconhecidos e seus enunciados têm estatuto de verdades, instaurando formas de perceber
às violências e formas de pensar as crianças .
Não esperava encontrar nos prontuários longas narrativas sobre os relatos das crianças,
mesmo sabendo que há uma prática realizada pelos(as) profissionais, de escuta dessas
crianças, principalmente no atendimento psicológico. Apenas aponto esse não-lugar, esse não-
estatuto de “verdade” que as falas das crianças parecem ter e que se encontram expressos no
silenciamento de suas vozes.
As vozes silenciadas das crianças, fazem parte da história, como referencia em
pesquisas de Ariès (1981), Pilotti (1995), Priore (1995), Marcílio (1998), Freitas (1997),
Mendez (1998), Koan (2003) e Sousa (2002). Estas revelam como os lugares, as marcas, as
concepções da infância, são construtos dos adultos e podem ser pensadas como memórias
culturais aprendidas e reproduzidas pelos(as) profissionais do Programa Sentinela. Nas
literaturas acima citadas encontram-se as diferenciações entre as categorias sociais de criança
e infância. Para esses autores são dimensões indissociáveis e uma só pode ser problematizada
65
na interlocução com a outra, pois são concepções não constituídas de forma homogênea e
universal.
Maiad (1999:140) cita o século XIX como o marco da descoberta humanista da
especificidade das crianças e dos adolescentes, como idades de vida. Assim, os termos
criança, adolescente e menino, aparecem em dicionários a partir de 1830. O termo menina
surge primeiro e recebe um tratamento carinhoso. Só mais tarde, também como designativo de
creança ou pessoa do sexo feminino, indica que ela está no período da meninice.
As reflexões de Kohan (2003:20) ajudam na compreensão das concepções da infância
que estão presentes no cotidiano. Ele retoma a origem etimológica da palavra infância,
infantia, que no latim designa a ausência da fala. Ariès (1981:6) confirma essa concepção ao
falar sobre os chamados enfant, relacionados à idéia de não-falante já que nessa fase a pessoa
não pode falar bem e nem formar palavras completas, afinal, não tem seus dentes bem
ordenados e firmes.
Maiad (1999:141) destaca ainda que o período de desenvolvimento intelectual da
criança era denominado meninice, cujo significado relacionava-se às próprias ações do
menino, ou ainda, à falta de juízo quando comparado ao adulto. Essa idéia aponta que a
infância é diferenciada do adulto devido às características aspectos que as crianças ainda não
possuem. Kramer (1984) lembra que essa concepção ainda é significada toda vez que se pensa
a criança a partir do adulto, da [...] falta de idade, da maturidade e da adequada integração
social e ainda, da definição de papéis que são desempenhados. Em contraposição a isso, a
autora aponta a necessidade de entender a criança a partir do seu contexto social, a partir da
sua condição infantil e não como natureza infantil, pois esta remete a uma compreensão
abstrata, distanciando-a das condições objetivas de vida. É neste jogo de termos e significados
que, historicamente, ocorreram algumas alterações.
Kohan (2003) re-visita as obras dos filósofos e mostra que as noções de infância são
discursos, isto é, verdades reveladas ao longo da história, profundamente enraizadas presentes
no nosso cotidiano. Discute a constituição de um discurso relacionado aos possíveis
fundamentos constituídos nos primeiros momentos da vida como extremamente importantes,
pois a vida é uma seqüência do desenvolvimento, como devir-progressivo, como um fruto que
será resultado das sementes plantadas na infância. Também descreve os atributos às crianças
como seres sem razão, compreensão ou juízo, atrelando a infância a algumas características,
tais como, ingênuas, débeis, limitadas, inferiores, incompletas e sem forma, sendo o adulto
responsável por dar-lhes uma forma, uma modelagem.
66
Os séculos passaram e penso que encontramos, ainda hoje, diversos discursos
estabelecendo verdades acerca dessas concepções da infância socrática e platônica. São
discursos que se referem às crianças como objetos que podem inclusive, serem abusadas já
que são ingênuas, incapazes de reagir perante os atos de violências. Nesse entrelaçamento, um
conjunto de concepções em torno da infância, sendo desenhado para justificar os
silenciamentos e negar seus interesses. Isso se reproduz nas práticas dos(as) profissionais do
Programa Sentinela e produz encaminhamentos que legitimam os saberes médicos com suas
patologizações do mundo social, os saberes jurídicos com suas normatizações apriorísticas,
ainda que diante da dor do outro. São saberes que decompõem o corpo da criança violentada
para dissociar o psicológico do físico, o emocional do racional, a subjetividade da objetividade
manifesta nos laudos periciais.
Essa construção social do não-lugar da infância e da criança forja as verdades dos
adultos, profissionais do Programa Sentinela, assim como os(as) profissionais da área da
saúde, tais como médicos(as) e enfermeiros(as), e dos espaços jurídicos, como juízes(as) e
delegados(as). Um dos primeiros procedimentos que os(as) profissionais do Programa
realizam no atendimento da maioria das crianças e adolescentes é o encaminhamento destes ao
setor responsável pelo Exame de Lesão Corporal. O gráfico abaixo revela que a maioria das
crianças atendidas pelo Programa Sentinela realizou o Exame de Lesão Corporal no Instituto
Médico Legal (IML):
Realização de Exame de Lesão Corporal
22%
78%
O
SIM, IML
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
67
Isso indica que esse exame tem maior validade e está acima do sofrimento e da palavra
de uma criança violentada. Ao realizá-lo, os(as) médicos(as) emitem um laudo que os órgãos
jurídicos exigem para encaminhamento do processo penal. Desta forma, a prova da verdade é
estabelecida segundo Foucault (2003:33), não por, uma testemunha, um inquérito, mas por
um jogo de prova. O dispositivo jurídico amplia a supervalorização da medicina, que terá o
poder e a tarefa de apresentar o laudo ginecológico para comprovação ou não da violência
sexual. São saberes médicos e jurídicos que exercem o poder mediante a produção da verdade
(Foucault, 1999:29).
É possível fazer uma analogia entre o Exame de Lesão Corporal como um instrumento
de poder, legitimador, de certa maneira o poder médico Foucault (2003). Essa relação do saber
médico como estatuto de verdade não se dá em âmbito individual, de alguns profissionais do
Programa Sentinela, é uma questão presente no imaginário coletivo. No exame há um ritual de
poder que se cruza com o estabelecimento de verdades, que manifesta a sujeição dos que são
percebidos como objetos. As marcas que o abuso puderam ou não deixar no corpo das
crianças compõe o processo de inquérito, que é uma forma política, uma forma de gestão, de
exercício de poder que por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira na cultura
ocidental de autenticar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como
verdadeiras e de transmitir (Foucault, 2003:78).
Outra questão que me chamou a atenção a respeito do saber médico foi uso da
linguagem clinica ao denominar as pastas das crianças acompanhadas, de prontuários ou
casos. No momento em que a criança passa a ser atendida pelos(as) profissionais do Sentinela,
abre-se um arquivo com uma numeração, isto é abre-se um prontuário. É importante destacar
que este termo remete a uma linguagem médica, representativa de um determinado tipo de
relação entre poder e saber, entre poder da medicina e o conhecimento que ela estabelece. O
prontuário, o caso é uma linguagem utilizada também nos postos de saúde, nos hospitais e
manicômios, a fim de identificar os sujeitos e seus estados de adoecimento. Segundo Foucault
(1987) “o caso” é um indivíduo mensurado e descrito em sua individualidade. É o indivíduo
classificado e comparado aos outros. É objeto de conhecimento e a entrada do poder. No
momento em que os(as) profissionais utilizam essa linguagem médica sem questioná-la,
partem do pressuposto de que as crianças têm alguma “doença”, alguma “anormalidade”,
alguma “patologia”, ou seja justificam juridicamente a prática das violências que ela sofreu.
Nessa burocracia institucional, as pessoas são tratadas como prontuários, casos,
números, processos. No entanto, os(as) profissionais do Sentinela esforçam-se para realizar
um movimento de aproximação: saber os nomes das crianças que atendem e de seus
68
familiares; conhecer a história de vida destas pessoas e as estratégias de intervenções já
realizadas.
O Boletim de Ocorrência é também um dos primeiros procedimentos que os(as)
profissionais do Programa Sentinela se preocupam em localizar para encaminhar as crianças a
outros órgãos da rede. Nele, o discurso da criança não tem o mesmo valor que dos(as)
profissionais e sua palavra é considerada nula, não é acolhida porque não tem o estatuto de
verdade. Apenas o registro dos(as) profissionais da delegacia é reconhecido como fala
explicativa para compor o processo. Outra questão presente nos procedimentos realizados,
após a denúncia das violências sexuais, é a abertura do processo criminal contra o(a)
agressor(a). Caso haja o flagrante, a prisão preventiva acontece antes do processo ser julgado.
No entanto, esse flagrante do ato das violências, como prova, somente é reconhecido quando
há presença dos(as) profissionais do Programa Sentinela, do Conselho Tutelar e policiais. Esse
dado evidencia que apresentação da prova e do laudo do flagrante, como uma modalidade
recorrente da gestão do atendimento, onde o flagrante delito, caso em que um indivíduo era
surpreendido no exato momento em que cometia o crime, deriva de um certo tipo de relações
de poder, de uma maneira de exercer o poder Foucault (2003;28). Nesse sentido, o poder está
localizado nas vozes dos(as) profissionais e dos(as) policiais que testemunham o ocorrido, em
detrimento das vozes das crianças, de suas mães, das vizinhas que vivenciaram, de algum
modo, o cenário das violências.
Em alguns casos, as mães, juntamente com suas filhas, são orientadas a reconstituir o
cenário das violências para que o ato de flagrante aconteça. Aqui, a política de atenção à
criança também é violentadora, pois legitima esse procedimento, e obriga a criança a
vivenciar, novamente, as violências para comprovar o que já vinha experienciando por algum
tempo. Por outro lado, esse cenário indica, que a criança não é passiva inteiramente, que ela
tem o poder de comprovar os abusos e produzir sistemas de proteção, mesmo que
contraditórios.
O inquérito, enquanto processo de investigação, não é um conteúdo, mas uma forma
de saber, situada, nesse caso, nos saberes externos (médico e jurídico) ao Programa Sentinela,
como mediações que definem os procedimentos pautados na prova, preocupados em descobrir
quem tem a razão: o(a) denunciante ou o(a) agressor(a) Foucault (2003:77).
O discurso dos adultos como verdades, em detrimento dos discursos das crianças,
define em muitos aspectos as práticas do Programa Sentinela. Ou seja, o discurso do
profissional de medicina, na realização do Exame de Lesão corporal; o discurso do delegado
ou dos policiais, no registro do Boletim de Ocorrência. O discurso pedagógico, uma
69
manifestação viva nas fala dos(as) profissionais do Programa Sentinela, é carregado de um
saber assistencialista. Ele funda as práticas que se materializam no cotidiano e, muitas vezes, é
confundido como cuidado no processo de atenção à criança imersa em contextos de
violências. Diferente do cuidado que se pauta no reconhecimento da legitimidade do outro, da
criança, ele é determinista e judicativo, o que o faz tão prescritivo quanto o discurso médico e
o jurídico. Portanto, a verdade desse saber formula prescrições que regularizam os
procedimentos adotados pelos(as) profissionais do Programa.
A gestão do atendimento, nesse sentido, se revela ambígua porque é atravessada por
condutas que também violentam, ainda que simbolicamente, os sentidos e significados que são
próprios das crianças nas experiências de violências. Como uma gestão adultocêntrica, ela
assegura o status das verdades as ações institucionais enquanto, no mesmo movimento, produz
silenciamentos de crianças e adolescentes.
Nessa ambigüidade estão as insuficiências das práticas das políticas públicas de
atenção e cuidado para com esses sujeitos. Do mesmo modo, as intrínsecas limitações da
Doutrina de Proteção Integral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente. Nela está
contida ainda, a incidência e a re-incidência do sofrimento brutal de milhares de meninos e
meninas, com poucas esperanças de encontrarem alívio nos dramas suportados todos os dias.
Se não sabem eles sentem que a sua dor tem pressa, pois é vida, a sua e a dos seus pares, que
estão sendo ameaçados.
3.3 Olhares e lugares construídos: crianças e indícios de violências
O olho observa atos, desatinos.
É um só em nenhum rosto.
Só ele, o olho, fixo, penetrante.
Existe por si mesmo, verdade e mentira,
calor e frio, verão e inverno, ser e não,
no mesmo instante, o olho no canto,
chora e ri, o agora do povo.
(Pinheiro Neto, 1998:32)
A infância moderna se constitui através dos olhares, dos saberes pedagógicos,
psicológicos, médicos, por exemplo. São olhares e saberes que percebem e negam as
particularidades vividas pelas crianças e que instauram formas legítimas de intervenção para
com elas. As práticas não-legítimas, como é o caso das violências sexuais, têm sido alvo de
questionamento e enfrentamento, tanto no interior da sociedade brasileira, quanto fora dela,
70
em espaços internacionais como é o caso, para ilustrar, da Defense for Children, da
Organização das Nações Unidas.
As intervenções dos(as) profissionais do Programa Sentinela são pautadas por um
olhar que é centrado nos indícios e/ou suspeitas de violências sexuais, como tentativa de
nomear as marcas, as condutas, os perfis dos corpos das crianças, a fim de localizar possíveis
suspeitas destas violências. No Projeto Técnico eles(as) registram que serão utilizados para o
planejamento de intervenção, acompanhamento e avaliação do trabalho técnico os seguintes
indicadores:
Comportamento/Sentimento
Medo ou mesmo pânico de certa pessoa ou sentimento generalizado de
desagrado quando a criança é deixada sozinha em algum lugar com alguém.
Medo do escuro ou de lugares fechados.
Mudanças extremas, súbitas e inexplicadas no comportamento, como
oscilações no humor entre retraída e extrovertida.
Mal-estar pela sensação de modificação do corpo e confusão de idade.
Regressão a comportamentos infantis, como choro excessivo sem
causa aparente, enurese, chupar os dedos.
Sinais corporais ou provas materiais:
Enfermidades psicossomáticas, que são uma série de problemas de
saúde sem aparente causa clínica, como dor de cabeça, erupções na pele,
vômitos e outras dificuldades digestivas, que têm, na realidade, fundo
psicológico e emocional.
Doenças sexualmente transmissíveis (DSTs, incluindo aids),
diagnosticadas com coceira na área genital, infecção urinárias, odor vaginal,
corrimento ou outras secreções vaginais e penianas, cólicas intestinais.
Dificuldade de engolir devido a inflamação causada pela gonorréia na
garganta (amídalas) ou reflexo de engasgo hiperativo e vômitos (por causa
de sexo oral).
Hábitos, cuidados corporais e higiênicos
Abandono de comportamento infantil, de laços afetivos, de antigos
hábitos lúdicos, de fantasias, ainda que temporariamente.
Mudança de hábito alimentar - perda de apetite (anorexia) ou excesso
de alimentação (obesidade).
Padrão de sono perturbado por pesadelos freqüentes, agitação noturna,
gritos, suores, provocados pelo terror de adormecer e sofrer abuso.
71
Aparência descuidada e suja pela relutância em trocar de roupa .
(Fragmentos do Projeto Técnico do Programa Sentinela)
Na reunião de elaboração desse Projeto, uma das profissionais sugeriu a listagem dos
chamados indícios de violências, ou seja, elencar os indicadores acima citados e que as
crianças com suspeita de abusos sexuais podem apresentar. Todas as profissionais
concordaram, iniciando a discussão sobre como esses indicadores deveriam aparecer no
projeto. A coordenadora sugeriu que cada profissional ficasse responsável por alguns
indicadores, no sentido de verificar as suspeitas físicas e comportamentais junto com a
família e a própria vitima. Ressaltou que também é necessário avaliar os efeitos, a longo
prazo, e se esses efeitos não deveriam aparecer, pois estamos acompanhando essa criança.
Destacou que era indispensável delimitar o prazo para verificá-los, e indicou por dois meses
para conclusão dos trabalhos. Propôs também que, ao final do processo, estes indicadores
fossem utilizados para avaliação.
Esse conjunto de suspeitas indica que é, por meio de aspectos revelados nos sinais
corporais, nos sentimentos, assim como nos hábitos corporais e higiênicos, que estão
configurando o quadro dos abusos. Nasce em mim mais uma pergunta: será apenas pela
observação dos sinais físicos e comportamentais que se poderá identificar as suspeitas das
violências? É necessário enquadrar as crianças nos quesitos apresentados em quadros de
sinais? Será que os indicadores, sob o ponto de vista dos(as) educadores(as), podem gerar
conclusões precipitadas ou reducionistas? Quais os cuidados para que a nomeação das
suspeitas não se torne instrumento de estigmatização, constrangimento e exclusão? As
possíveis respostas para esses questionamentos longe de serem concluídas, e mesmo que
ficassem claramente delineadas, não passariam de aportes explicativos provisórios.
O que se observa são relações de poder construídas pelos saberes médicos e
psicológicos que mais uma vez reforçam o lugar da produção de verdades, pois, mais uma
vez, o relato das crianças parece não ser contabilizado. As verdades enunciadas através desses
discursos são prescritivas e se fazem valer na medida em que corroboram um cenário sem
espaço para a dúvida. Elas tecem veredictos que decidem os encaminhamentos subseqüentes,
nem sempre os mais acertados.
Por ter seu discurso silenciado, a criança fica sem rosto, sem língua, sem sua
corporeidade. Essa privação das linguagens gera um corpo produzido por saberes médicos e
psicológicos, que lhe confere aqui um mesmo rosto, uma mesma língua e uma mesma
72
corporeidade, descritos pelos indícios de violências. Ao classificar os indícios daquilo que
pode ser identificado por violências, estão demarcando fronteiras que são, de certa forma, atos
de classificação:
[...] é em si mesmo um ato de exclusão e de inclusão, que supõe coerção e
violência, podemos dizer agora que toda espacialidade produzida,
inventada, normalizada, traduzida e ou representada como espaço único de
exclusão inclusão é um ato de perversão. Perversão na insistência do
mesmo e perversão na eterna reprodução do outro como o mesmo. Dois
lados, quase idênticos, da perversão da mesmidade. Perversão do só poder
ser dentro e só poder ser fora, perversão em rejeitar, impedir, proibir os
não-espaços, a falta de espaços, os espaços híbrido, as fronteiras, a
passagem entre fronteiras, a vida nas fronteiras, os espaços outros (Sckiar,
2003: 66).
Como dar outro lugar a essa infância e a essas crianças, que não sejam apenas aquele
conferido pelos saberes médicos e psicológicos? Como quebrar o paradigma que faz com que
os adultos enquadrem as crianças nos indícios? Será que os(as) profissionais, através da
legitimação destes saberes, não acabam produzindo os indícios que procuram? Nas visitas
domiciliares realizadas pelos(as) profissionais do Programa, como estes dão sentido aos
indícios das violências? Após o contato com as crianças pude observar que ficavam
enumerando os efeitos das violências, como por exemplo: [...] essa menina é muita
infantilizada... [...] essa menina foi mesmo violentada, pois está reprovando na escola. Dá
para perceber que ela não está escrevendo muito bem. (Notas de meu diário de campo).
A ciência positivista se de um lado gerou avanços, de outro deixou inúmeros
resquícios, os quais forjam nos(as) profissionais olhares assentados nos saberes produzidos,
fechando as brechas para a percepção de que não há um único movimento, uma única forma
das crianças reagirem diante das violências. Há todo um campo de possibilidades destas
crianças se expressarem, contudo tais possibilidades, geralmente não são contempladas em
face da ênfase nos olhares médicos e psicológicos, considerados nos discursos legitimados.
Na diversidade das práticas de violências para com as crianças está o vínculo dos
adultos para com as diferentes concepções de infância. A gestão do Programa Sentinela é
legitimada por concepções que embasam as ações presentes. A reificação de um discurso que
afirma a criança como sendo uma categoria “universal”, com um determinado padrão de
comportamento, favorece a discriminação daquelas que não se enquadram dentro desse
padrão preestabelecido. A ausência de reconhecimento teórico e prático e metodológico do
lugar da criança nas suas relações institucionais, promove condutas profissionais afirmativas
73
de um modo-de-ser-no-mundo (Maffesoli, 1996) homogêneo e afeito à diversidade. Essas
condutas, ao longo do tempo se cristalizam, por isso, perdem as oportunidades para vivenciar
a curiosidade, encontrar o efêmero e o mais estável, dizer o não e mover o velho.
3.4 As violências sexuais atreladas à perda da inocência
Nesse sub-capítulo abordo a forma como as crianças são percebidas como seres
inocentes, indefesos, angelicais, uma concepção de infância presente também nos afazeres
dos(as) profissionais do Sentinela e como tal, é alterada após a confirmação do abuso sexual.
A forma como a infância é concebida, herdamos de um processo histórico. Áries (1981:17)
ressalta que no período medieval, desconhecia-se a infância, pois essa fase era considerada
como um período de transição, rapidamente superado. O que diferenciava o universo infantil
do mundo adulto era o tamanho corporal. Esse significado era legítimo naquele tempo e
naquela cultura, apresentado em inúmeros museus da França, em painéis datados de 1610,
onde aparecem, ao lado de homens, crianças trajadas com vestido, avental e uma grande touca
enfeitada com plumas. Esse cenário revelava um sentimento em relação à infância, que
autorizava as crianças a conviver no universo dos adultos desde muito cedo, pois não havia a
distinção que hoje fazemos das suas particularidades. Parece-me que essas crianças entravam
em cena ocupando outro lugar, pois havia outra forma cultural de organizar e de intervir junto
aos chamados infantes, o que não se pode considerar como negligência, abandono ou
desprezo, como muito se anunciou em determinados momentos da história.
O sentido de inocência infantil é chamado por Ariès (1981:91) de dupla atitude moral
com relação à infância. Quando é necessário preservá-la da sujeira da vida e, especialmente,
da sexualidade, para com isso fortalecer o desenvolvimento do caráter e da razão. Essas
atitudes morais foram reforçadas pelas famílias eclesiásticas que, durante os séculos XVI e
XVII, preocupavam-se em disciplinar e racionalizar os costumes de suas crianças,
consideradas como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que
era preciso, ao mesmo tempo preservar e disciplinar (Ariès, 1981:105).
Ao nomear a infância através de características como “incompleta”, “ingênua”,
“frágil”, “inocente” outras associações emergiram entre a pureza e a incapacidade da criança
em sentir prazer, ou desejo com seu próprio corpo. Essas crianças eram pensadas como
sujeitos destituídos de sexualidade. Aproximá-las dos prazeres eróticos equivaleria a
profanar sua própria natureza, havendo a dessexualização de sua infância que era um valor
fundamental da civilização judaico-cristã (Neckel 2003: 58).
74
Durante a pesquisa constatei que havia, por parte dos(as) profissionais um desejo de
que as crianças sejam preservadas dos perigos do mundo, sendo a sexualidade concebida
como um elemento sujo que precisa ser extirpado do mundo infantil. Em diversos momentos,
observei como essa dessexualização das crianças integravam as descrições das suspeitas de
violências sexuais, bem como, se materializavam na fala de uma dos(as) profissionais quando
esta se referia à sexualidade infantil:
[...] saber a hora e a melhor maneira de falar sobre a sexualidade com as
crianças e seus pais é muito importante. Em muitas crianças a sexualidade
já esta aflorada, e não é normal. Meninas que apresentam-se muito
interessada em meninos podem estarem sendo violentadas, ou podem estar
vendo muita pornografia em casa
(Notas do diário de campo).
A fala da profissional citada foi pronunciada durante uma visita nas escolas da região e
foi reforçada pelo Projeto Técnico, onde se encontram os indicadores relacionados à
sexualidade, os quais devem ser observados pelos(as) profissionais como critérios do
diagnóstico de abuso sexual:
Interesse ou conhecimento súbitos e não usuais sobre questões
sexuais.
Expressão de afeto sensualizada ou mesmo, certo grau de provocação
erótica, inapropriado para uma criança.
Desenvolvimento de brincadeiras sexuais persistentes com amigos,
animais e brinquedos.
Masturbar-se compulsivamente.
Relato de avanços sexuais por parentes, responsáveis ou outros
adultos.
Desenhar órgãos genitais com detalhes e características além de sua
capacidade etária.
(Fragmentos do Projeto Técnico do Programa Sentinela)
Esses indícios, assim como a fala dos(as) profissionais no Programa Sentinela e nas
escolas, estão permeados por saberes pedagógicos instituídos que fixam a infância em etapas
distintas, com estágios nos quais deve ser vivida a sexualidade. A idéia da maturidade sexual
dá a entender que existe uma preparação de estágios para que as crianças tenham qualquer tipo
75
de experiência no âmbito da sua sexualidade. No momento em que apontam os critérios acima
relacionados, observa-se o reforço de uma concepção de sexualidade não atrelada à dimensão
humana, da qual são expressões vivas de qualquer ser humano em qualquer momento de sua
vida.
Na interlocução com os espaços escolares, esses(as) profissionais geralmente dialogam
com os(as) diretores(as), os(as) orientadores(as) e professores(as), a fim de confirmar
possíveis suspeitas, se há evidências de sentimentos inadequados, atitudes que revelam
indicadores de violências. Numa das visitas institucionais os(as) profissionais realizaram
algumas perguntas ao diretor de uma escola:
A menina parece infantilizada?
Foi avaliado do ponto de vista cognitivo?
Como ela é na escola?
Ela tem amigos?
Tem história de agressividade na escola?
Ela tem namorados?
(Notas do diário de campo)
Essas e outras questões tangenciam a cristalização da infância focalizada na esfera
patológica, anormal que rotula para saber se ela é infantilizada e sua avaliação cognitiva é
condizente. Acerca das violências, parece-me que há fragmentos de cuidados com seu
convívio social (se tem amigos), com seu comportamento (agressivo) e com a sua sexualidade
(namorados). É importante frisar que os(as) profissionais do Sentinela legitimam os saberes
elaborados sobre os indicadores das violências, porque alicerçam as descrições em
diagnósticos que definem as formas das crianças e adolescentes se comportarem social e
afetivamente. Geralmente, o(a) pedagogo(a) solicita aos educadores(as) da escola relatórios
referentes ao comportamento da criança, como detalhes sobre o modo como se relaciona, se
comparece na escola e o perfil dela nas avaliações pedagógicas.
Nesta ambigüidade ao mesmo tempo em que são reforçadas as concepções de infância
atreladas à pureza, há a referência ao ato sexual como pecado, já que os discursos falam sobre
uma certa corrupção da integridade e do futuro da criança que foi abusada, se porvir, a
infância é enclausurada no determinismo que, a priori, sela seu destino e rejeita a plasticidade
de sua existência. No caso Breno, registram que ele:
[...] passou a ficar muito tempo sozinho em silêncio, ficava muito triste, não
mais brincava na rua, na escola já quase não falava e ficava a maior parte do
tempo afastado dos colegas.... e ao final do ano letivo foi reprovado.
76
(Fragmento do caso Breno – apresentado pelos(as) profissionais do Programa
Sentinela na Jornada Catarinense pelo fim da exploração e violência infanto-juvenil).
O caso Breno anuncia em paradoxo entre a compreensão de uma infância que é, a um
só tempo, ingênua e transgressora, que ganha vida entre a inocência e a agressão. Esse caso
remete ao envolvimento de Breno, um menino de nove anos, com um garoto de treze anos. Os
dois eram amigos e conviviam nos espaços das ruas e das brincadeiras. No relato do
prontuário destaca-se que:
seus amigos eram geralmente mais velhos do que Breno, cerca de três a
cinco anos. Após as aulas eles se encontravam na rua, onde passavam a
maior parte do tempo. Em uma tarde, após a aula, Breno foi convidado a ir
à casa de um dos seus vizinhos, pois os pais dele haviam viajado. Este
vizinho tinha treze anos e, por ser mais velho que Breno, era sempre quem o
ajudava, cuidava dele e o defendia dos outros. Porém nesta tarde a situação
se transformou. Em uma das brincadeiras ele foi obrigado a tirar a sua
calça e forçado a fazer sexo oral. O vizinho disse que se ele não o fizesse,
ele o entregaria para os outros e contaria a sua mãe que seu filho era “um
viadinho”. A ameaça, a culpa e o medo o levaram ao silêncio.
Esse episódio foi discutido na Jornada Catarinense pela Infância e Adolescência
Protegida contra a violência e a exploração sexual infanto-juvenil. Nesse dia, havia num
auditório da cidade em que realizei a pesquisa, aproximadamente trezentos profissionais das
áreas da Educação, da Psicologia, do Serviço Social e do Direito. Na discussão acerca do caso,
foram unânimes os comentários a respeito de uma criança (Breno) inocente e assujeitada que,
após ter sido abusada, foi corrompida:
o comportamento de Breno após o abuso se modificou. [...] a turma da rua
convidou Breno para uma festa de aniversário... lá toda a turma ingeriu
bebidas alcoólicas, inclusive Breno e saíram a pé para tentar comprar
maconha num bairro próximo.
Naquele evento parecia fato consumado a futura delinqüência de Breno, o que remete a
um determinismo insuportável que não se vê qualquer abertura para que um agredido não se
converta em agressor. O promotor, presente no debate ressalta:
[...] teremos muito Brenos repetindo o que fizeram com ele. O Breno
amanhã será um cliente da Promotoria, será um menor infrator, um menor
da casa lar, será o delinqüente do amanhã.
77
O discurso jurídico-normativo é impiedoso na sua rigidez e consolida os resquícios de
uma sociedade falso-moralista e excludente. Uma forma de pensar que Maffesoli (2004)
chama de dicotômico, onde o bem é corrompido pelo mal. O bem aqui é configurado pela
ingenuidade, inocência, absoluta e seu governo de si, que são corrompidas pelo mal que se
relaciona ao pecado, ao proibido. Na escola, as crianças violentadas necessariamente
fracassam; nas ruas, elas são bandidas; e pela experiência de vida serão, indiscutivelmente, os
agressores do amanhã. Portanto, para que tornar a Doutrina de Proteção Integral efetiva e
eficiente? Para que investir em sujeitos, a princípio fadado às desgraças sociais? Basta
assegurar alguns procedimentos básicos, afinal, perderam a humanidade prevalente. O
discurso reafirma o lugar da política pública como agente de ação, embora aquele a quem ela
se destina, não possa ser recuperado de sua dor.
Na entrevista com a psicóloga, ela reafirma essa forma de pensar as violências como
determinismos de causa-efeito ao apontar: [...] uma violência vêm seguida de outra. A partir
do momento que sofre abuso, você se torna violento. Violência não só para matar, é um
temperamento, uma forma de agir. É uma cadeia, não tem como desvincular.
O Caso Breno não é apenas uma história simbólica que os(as) profissionais utilizaram
para discussão na Jornada Catarinense da Infância e Adolescência. No Programa Sentinela,
os(as) profissionais acompanhavam também um menino de 12 anos, considerado por eles de
agressor. Em relato a outra profissional da Grande Florianópolis, uma das atendentes afirmava
que acompanhou um menino que viveu um caso muito semelhante ao Breno, onde havia jogos
sexuais com seu amigo e foi encaminhado para o Programa de Liberdade Assistida que
trabalha com adolescentes em conflito com a lei. Nesses episódios, consideram-se os jogos
sexuais entre amigos como práticas valoradas como pecado, crime, perversão, maldade e
outros congêneres. Enfim, um conjunto de acontecimentos que transgridem ou negam, em
algum nível a regra social, pois dois meninos estão se tocando, tendo uma relação afetivo-
sexual. Gostaria de destacar que não estou desconsiderando a possibilidade de haver uma
relação de violência nesses jogos afetivos-sexuais entre amigos, no entanto, vejo a
necessidade de ouvir os adolescentes, pois nesse cenário, houve apenas o olhar dos adultos
relatando o que eles entenderam dos episódios.
O que se observa nesse caso é a fala dos pais que apontam o amigo do filho como
sendo o agressor. Há também a fala dos(as) profissionais que definem os jogos sexuais entre
os dois meninos como atos de violência sexuais. O veredicto revelado nas falas desses adultos
tem o poder de tornar realidade os episódios narrados por eles. Ou seja, alguns discursos têm
78
status de verdades, sendo capazes de condenar o menino, dando-lhe uma nova identidade, a de
agressor. O(a) agressor(a), segundo Almeida (1999) ao ser caracterizado desta forma passa
por sentimentos de culpa, depreciação social, que passam a fazer parte do processo de
constituição de uma nova identidade para este indivíduo.
De qualquer modo, para o Programa Sentinela o caso se caracteriza como experiência
de contato afetivo-sexual entre agressor e agredido, portanto como violência sexual. Há uma
preocupação em controlar a sexualidade das crianças e dos adolescentes, colocando-os dentro
de padrões de normalidade e anormalidade. Esse episódio liga-se também as formas como se
relaciona com as questões da sexualidade que segundo Foucault (1985:138) encontra-se ao
lado da norma, do saber, da vida, do sentido, das disciplinas e das regulamentações. Essa
biopolítica está presente na gestão do atendimento e se expressa nos vários discursos sobre a
infância e as sexualidades, reconhecido pela mesmidade como o único tempo possível, um
tempo do outro que foi inventado, domesticado, usurpado, ordenado, traduzido e governado a
partir das metáforas temporais da repetição, do constante, do ciclíco, do linear, do circular.
(Skliar, 2003:39).
3.5 Pobreza e violências: um entrelaçamento indissociável?
Os discursos dos(as) profissionais do Programa Sentinela revelam um certo
determinismo biologizante que além de apontar as causas morais para detectar os motivos do
abuso das crianças, localiza-as no modo de viver de suas famílias e das pessoas que as cercam,
como se pode observar nos indicadores da conduta dos Pais e Responsáveis:
As famílias incestuosas tendem a ser quietas, relacionam-se pouco. Os
pais são autoritários e as mães, submissas.
O autor do abuso tende a ser extremamente protetor, zeloso da
criança e/ou adolescente ou possessivo com a criança/adolescente,
negando-lhe contatos sociais normais. Lembre-se, porém de que manifestar
carinho para com filhos é importante para um crescimento saudável.
O autor do abuso pode ser sedutor, insinuante, especialmente com
crianças e/ou adolescentes.
O autor do abuso pode crer que o contato sexual é uma forma de
amor familiar.
O autor do abuso pode acusar a criança de promiscuidade ou sedução
sexual ou ainda acreditar que ela tem atividade sexual fora de casa.
79
O autor do abuso pode contar histórias, referindo-se a outro autor da
agressão a fim de proteger um membro da família.
É freqüente o autor da agressão ter sofrido esse tipo de abuso na
infância (físico, sexual, emocional).
Membros da família podem fazer uso de substâncias como álcool,
outras drogas lícitas ou ilícitas.
(Fragmentos do Projeto Técnico do Programa Sentinela)
Os registros expressos no Projeto Técnico afirmam os modelos hegemônicos de
família e de agressores. A proposta de enquadramento destes aparece freqüentemente em
outros momentos da atuação dos(as) profissionais, especialmente durante as visitas
domiciliares.
O direcionamento da prática dos(as) profissionais do Programa a partir desses
indicadores, é demarcado pela coordenadora ao afirmar que [...] no acolhimento de um caso
novo, a equipe terá inicialmente 30 dias para o reconhecimento dos indicadores encontrados
na vítima e sua família. A partir deste reconhecimento, será realizado o planejamento das
intervenções. Nos prontuários, estão registrados o nome, a idade, a profissão e a renda de cada
componente familiar. Os arranjos familiares que encontrei nos prontuários pesquisados
revelam os dados apresentados no gráfico a seguir:
COMPOSIÇÃO FAMILIAR DAS CRIANÇAS
28%
11%
39%
22%
FAMÍLIA NUCLEAR
(MÃE, PAI E FILHOS(AS)
FAMÍLIA GESTADA PELA
MÃE COM AGREGAÇÃO
DE OUTROS PARENTES
FAMÍLIA COMPOSTA
POR PRESENÇA DE
MADRASTA OU
PADRASTO
FAMÍLIA GESTADA
SOMENTE PELA MÃE
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
Durante a entrevista, a psicóloga também acentua que as violências estão relacionadas
ao seio familiar e sua forma de organizar-se:
80
Penso a violência sexual como um todo. Na verdade a estrutura familiar
está comprometida quando acontece um abuso. Aquela mãe sem educação
adequada foi criada solta e isso diz que a pessoa já sofreu a violência do
esquecimento. Então ela passa a violar a criança pequena. Os valores vão
se perdendo
.
Essa crença dos(as) profissionais relacionadas a estrutura familiar, são formas de
pensar que atravessaram o século XX e adquirem contornos diversos em cada momento. Desta
forma, as suas intervenções parecem, muitas vezes, seguir a direção de uma normatização, do
estabelecimento de regras e condutas ideais. Ou como ressalta Costa (2004), a relação que
os(as) profissionais das áreas da saúde, educação e assistência tem com as famílias se
estabelece através de parâmetros simplórios, a partir de ideais burgueses de vida, para
determinar, as intervenções junto com às famílias, o que é bom e ruim. A extrema
complexidade do mundo é reduzida aos binarismos para identificar uma família saudável, não
saudável, protetiva e não protetiva, adequada e não adequada, desestruturada. E aquelas que
estão na “irregularidade” acabam sendo condenadas pela situação de pobreza, sendo que suas
experiências singulares são descartadas em favor de normatividades, regras e modelos
apresentados com ideais.
Esse Programa, como parte das políticas públicas para a infância, tem suas ações
voltadas para o atendimento de pessoas, na sua maioria, em condição de vulnerabilidade
econômica:
Fonte: Prontuários do Programa Sentinela, 2004.
O gráfico acima, conjugado com outras condições configura o quadro de
vulnerabilidade econômica: 28% dessas famílias não possuem água com tratamento; 17% tem
iluminação sem relógio; 17% tem fossa rudimentar e 11% não têm lixo coletado.
CONDIÇÃO HABITACIONAL DAS CRIANÇAS
61%
28%
11%
CASA PRÓPRIA DE
MADEIRA
CASA PRÓPRIA DE
ALVENARIA
CASA ALUGADA DE
MADEIRA
81
Os discursos de uma família desestruturada estão associados à violência e à pobreza e
presentes em muitas falas dos(as) profissionais, como por exemplo: [...] não adianta. Pode
ver, essa família é desestruturada. Não tem suporte familiar. A pobreza leva a essas
condições de violência. Nesse sentido, as questões sociais são transformadas em problemas
individuais, deixando ausente o poder público e sua responsabilidade com relação à garantia
de proteção aos direitos conquistados constitucionalmente.
Os(as) profissionais reafirmaram, algumas vezes, que é nas classes populares que as
violências mais se manifestam, não reconhecendo e não nomeando a sua presença em outras
classes sociais. A pobreza aparece como pano de fundo na maioria dos casos, predominando
as propostas de assistência e os componentes de moralização, culpabilização e tutela.
Segundo Arpini (2003:37), as diferenças socioeconômicas construídas historicamente
estabeleceram relações entre violência e pobreza, a partir do processo acusatório e repressivo
dos grupos dominantes, baseado na relação simplista de causa e efeito que leva a obscurecer o
entendimento do que realmente se passa, onde a violência passa a ser vista como
comportamento que decorre necessária e exclusivamente desse grupo social. Essas
concepções ganham maior concretude nos espaços de proposição das políticas públicas e a
ênfase recaía na naturalização dos acontecimentos, no reforço da associação entre pobreza e
desvio para privilegiar a homogeneidade e enquadrar a todos num mesmo lugar social. As
políticas públicas, desse modo, vão sendo tecidas numa sociedade normalizadora, com efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (Foucault 1985:135).
Então, deposita se a responsabilidade nos “ombros” das crianças, dos jovens e de suas
famílias, culpando-os por sua pobreza e pelos problemas que ela acarreta. Esse aspecto pode
ser um dos efeitos da gestão do cuidado do Programa Sentinela, voltada ao
redimensionamento da família para gestar o espaço da convivência entre membros, um espaço
privado, agora ocupado pela intervenção institucional:
[...] a casa onde mora é grande, organizada e limpa.
[...] a casa era simples, dentro dos limites (falta móveis). É bem arrumada
[...] a mãe relata que a menina abandonou a escola simplesmente não
queria ir mais. A mãe pareceu não dar importância, pois os sete filhos estão
fora da escola.
[...] a casa fica próxima do mangue. A casa é simples, de chão batido, mas
limpa e organizada.
(Falas dos(as) profissionais presentes nos prontuários).
No momento em que os(as) profissionais direcionam suas observações em relação à
forma apropriada de organização familiar e doméstica, sugerem estar pautados em modelos
82
higienistas, elaborados pela medicina que começou a intensificar suas intervenções na higiene
pública para fortalecer o discurso patológico e nomear os desvios. Ou seja, para rotular alguns
comportamentos como desviantes. É novamente a biopolítica exercida pela medicina como
meio de controle sobre os corpos e onde (...) o poder intervém, sobretudo nesse nível, para
aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências
(Foucault, 1999:73).
São cenários que evidenciam porque as políticas públicas são endereçadas às classes
populares. Elas gestam uma biopolítica como medida de controle dos grupos sociais porque
partem do pressuposto de que há uma patologia social, materializada na família não protetiva,
desestruturada, não adequada, por exemplo. Essa associação direta entre pobreza e violências
reforça os estigmas de causa e efeito e consolida a linearidade dos diversos olhares presentes
nas ações institucionais. E ainda, produz encaminhamentos preconceituosos e punitivos, os
quais sujeitam as crianças e suas famílias, em muitas ocasiões, a constrangimentos públicos.
Nesse reducionismo se atribui desvalor ao âmbito popular, como lugar social das
faltas: de caráter, de higiene, de capacidade, de proteger, de ser normal, de ser bom, entre
tantas outras. Aí se delineia o modelo de atenção às crianças imersos em contextos de
violências.
83
CAPÍTULO IV
INFÂNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS
[...] um olhar ecológico e criativo de vida, portanto, o que lhe dá suporte
é a defesa incondicional da vida, como eixo estético de uma convivialidade que
prima por uma ética pautada na crença de que a felicidade, a dignidade, a
amorosidade, o cuidado, o pertencimento, os entrelaçamentos do conjunto
numa abrangência relacional e interdependente, não são utopias futuras, são
condições de conservação de vida mesma em sua dinâmica (Sousa, 2002:244).
84
4.1 Histórias e amarras: breve trânsito pelos cenários das violências na infância e a
constituição das políticas públicas
Como o Programa Sentinela é um dos projetos que está vinculado às condições de
atenção destinadas ao atendimento das crianças em contextos de violências, nesse capítulo
trago as discussões da gestão do atendimento, a partir das observações de campo. Durante a
minha estada no Programa, acompanhei a trajetória do atendimento das crianças e
adolescentes, os procedimentos que lá foram realizados, entre os quais realização da denúncia;
encaminhamento para o Conselho Tutelar; demanda reprimida; acolhimento do caso; registro
do Boletim de Ocorrência; exame de Lesão Corporal; visitas domiciliares e institucionais;
processos psicoterapêuticos; estudos de casos e desligamento das crianças do Programa.
Esses procedimentos não são efetivados de modo linear; eles acontecem de forma dinâmica e
simultânea, conforme as crianças acompanhadas.
Dando continuidade ao percurso pelas trilhas da infância, procuro nomear outras cenas
e outros lugares que as crianças assumem dentro das políticas públicas. É um esforço para
dialogar com aspectos importantes que marcam a trajetória das crianças com a problemática
das violências sexuais, bem como as condições de atenção
27
que o poder público
proporcionam em cada município, em cada Estado. Percorrer parte dessa história e procurar
compreender como são implementadas as políticas de assistência à infância, durante os
séculos XIX e XX, permite-me problematizar como as relações adultocêntricas foram sendo
tecidas e como estão presentes nas políticas públicas para as infâncias de hoje.
Lopez (1997:10) diz que o reconhecimento da infância ocasionou, paulatinamente,
mudanças nas formas da sociedade relacionar-se com as crianças, tanto na esfera privada,
quanto na pública. As novas concepções de infância que emergiram a partir de muitas
mudanças geraram movimentos de luta contra as violências impetradas às crianças.
Pilotti (1995), compreende que o desenvolvimento da assistência à infância se dá em
três momentos importantes: no primeiro, há o predomínio da “caridade e da filantropia”; no
segundo, ocorre a consolidação do “sistema jurídico-administrativo” e, finalmente no terceiro,
o fortalecimento das “alternativas não-governamentais”.
Quanto ao primeiro momento, o autor salienta que o predomínio da caridade e da
filantropia foi possível com a chegada das congregações católicas na América Latina, as
27
As condições de atenção às quais me refiro contemplam o vínculo entre a rede de atendimento à infância e à
adolescência e as políticas públicas destinadas a esta população.
85
quais se localizavam no interior de hospitais, ou próximos a eles, sendo as esmolas e as
doações as principais fontes financeiras que viabilizavam os custos operativos. Essas
instituições eram endereçadas para as intervenções as crianças órfãs, à chamada infância
desvalida. Nesse contexto, constituíram-se inúmeras ações filantrópicas por parte da elite,
com a intenção de oferecer assistência em troca de favores (Pilotti, 1995).
Rizzini (1995) reafirma a preocupação do governo imperial com a chamada infância
desvalida
28
, destacando que essa foi uma das primeiras medidas do poder público para efetivar
o atendimento às crianças. Esses asilos eram “internatos” e o atendimento era destinado às
crianças de famílias empobrecidas, tendo uma proposta pedagógica orientada para a formação
do trabalho de baixa qualificação. Lima (1997) critica esse projeto para a infância pobre, pois
o mesmo era destinado à qualificação de mão-de-obra barata, tão desejada no processo de
industrialização. Estas, dentre outras, podem ser consideradas expressões gritantes de
violências cometidas contra esses sujeitos e que ainda orientam os diversos programas
educativos para meninos e meninas das classes populares. São manifestações de violências
que reforçam o modelo vigente, convencionado para os filhos dos pobres, com as justificativas
de que nestas instituições, muitas delas sub-humanas, encontravam garantias e recebiam
qualificação profissional. Em sua maioria, ao que se sabe, isso contribuiu para ampliar o
contingente da mão-de-obra barata.
Nesse mesmo período histórico, ou seja, em torno de 1874, se institucionalizou a
Casa do Exposto ou Roda do Exposto”, destinada ao cuidado dos menores abandonados.
Foi criada também a “Escola de Aprendizes de Marinheiros”, para onde deveriam ser
encaminhados os jovens abandonados, desde que maiores de doze anos. Em 1899, nasceu o
“Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Brasil”, com a intenção de regular a vida e a
saúde dos recém-nascidos pobres, das amas de leite, dos menores trabalhadores daqueles e
considerados criminosos.
Ao observar a história, percebe-se a importância desses acontecimentos na
configuração do que está sendo feito atualmente, ou seja, indicadores de hoje evidenciam a
herança construída ao longo do tempo para as crianças. Estatísticas sobre o Trabalho Infantil,
do ano de 2001, indicam que cinco milhões de crianças e adolescente, com idade entre cinco e
dezessete anos, estão envolvidos em trabalhos ilegais. Crescem longe da escola porque
constituem parte da mão-de-obra explorada através do trabalho brutal, com características que
nos remetem ao escravismo formal. Ainda 22% das crianças que trabalham não freqüentam a
28
Kramer (1984) aponta que o Código Civil daquela época relacionava a idéia de “menor desvalido” com a de
menor delinqüente ou criminoso.
86
escola (Relatório da ONU). No Programa Sentinela, os registros dos prontuários, consultados
no decorrer da pesquisa, mostram que essas violências se configuram pelo aliciamento de
meninas, muitas delas adolescentes, bem como de meninos que, desde muito cedo,
trabalhando nas ruas com a venda de alimentos e cuja pequena renda contribui para a sua
sobrevivência. Estes engrossam as estatísticas dos que estão fora da escola.
Os espaços institucionais para os quais se encaminhavam às crianças foram
estabelecidos a partir de mecanismos prescritos pelos médicos higienistas. Costa (2004:55)
aponta que os médicos do século XIX mencionavam a falta de educação física, moral e
intelectual das mães. Dessa forma, a intenção era preservar a infância da destruição que a
condenava, uma medida apontada como solução para os problemas sociais da época. Essas
questões podem dialogar com as reflexões de Kohan (2003), quando este se refere à infância
como material da política, necessário para fomentá-la e para afirmar a perspectiva de um
futuro melhor, instaurando a marca do poder e da normatividade sobre uma série de
instituições formadoras.
A biopolítica exercida pela medicina, através da criação de programas e campanhas de
combate à desnutrição, de incentivo à vacinação, juntamente com diversos estudos e pesquisas
de cunho médico, objetivou unificar os serviços relativos à higiene da maternidade e da
infância. Nesses organismos permanecia a tendência médico–higienista, individual e
assistencialista para integrar programas de fortalecimento da família e de educação sanitária,
visando substituir o hábito de colocar os menores abandonados em internatos por métodos
mais adequados: permanência da criança no próprio lar recuperado, colaboração familiar e
adoção (Kramer 1984:35).
São contextos que ilustram como as políticas públicas foram tecidas com base num
modelo asséptico, incapaz de reconhecer e/ou legitimar as diferenças e os diferentes, mas
apenas tolerá-los. A tolerância tem uma dimensão política perversa, conforme Maturana
(2002), já que ela se constitui apenas na postergação da negação do outro, em sua
legitimidade. É tolerável aquele a quem não se suporta na convivência e para quem são
criadas estratégias de destruição, de humilhações públicas. Para Dallari (2003); por essa
atitude é desigual pois que, simbolicamente, se diz: vou aceitar o mal menor para evitar o mal
maior.
Outro período apontado por Pilotti (1995) corresponde à etapa durante a qual se
consolida o sistema jurídico-adminstrativo. A administração da justiça e proteção para
crianças e jovens considerava a existência de instituições especializadas no recebimento destes
que, na opinião do tribunal, careciam de proteção e/ou reabilitação. Assim sendo, delega-se ao
87
poder público a responsabilidade pela proteção e pelo atendimento à infância. Mas as
iniciativas particulares são também convocadas, assim como as associações religiosas e as
organizações leigas, os médicos e os educadores. Dessa forma, o governo divide a sua função
com as organizações da sociedade civil, mas centraliza a direção e o controle das políticas
apenas no atendimento de crianças e adolescentes empobrecidos (Kramer, 1984:63).
A criação do Departamento Nacional da Criança (DNC), assim como os programas e
as campanhas a ele destinados, objetivaram unificar os serviços relativos não só à higiene da
maternidade e da infância, como também à assistência social de ambos. Essas convergências
movimentaram a invenção dos Clubes de Mães, promoveram a criação de centros de
recreação, principalmente em áreas anexas às igrejas, pois o lazer era considerado uma arma
importante na luta contra as atitudes anti-sociais. Defendia-se que o atendimento nestes
espaços deveria ser organizado e executado pelos setores médicos (Kramer, 1984). Nesse
contexto, foi criado o Código de Menores, elaborado em 1927, onde se concretizaram as
estruturas burocrático-governamentais encarregadas de oferecer os serviços à infância, tais
como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), no Brasil, e o Serviço
Nacional dos Menores (SENAME) no Chile (Pilotti, 1995).
A FUNABEM teria por função principal exercer a vigilância sobre os menores a partir
de sua condição de carenciado, isto é, próximo à situação de marginalização social. A sua
orientação era corretiva e punitiva. Rizini (1995)
assinala que o antigo Código de Menores
(1979) apenas faz transparecer que, se não há condições para absorver toda a população
infanto-juvenil no trabalho, deve-se garantir a adequação constante dos comportamentos
desviantes ao padrão normativo, tornando-os capazes para a competição no mercado.
Essas questões foram nomeadas por Foucault (1987) como tecnologias do eu, as quais
desvelam-se nos processos de subjetivações vinculados ao poder de controle externo. Percebe-
se que as instituições do Estado procuram “curar” as patologias sociais e “disciplinar” o
comportamento dos indivíduos, por meio da biopolítica. Ou ainda, que a pretensão era
esconder a “feiúra” associada à pobreza. O que significava trabalhar com a categoria “menor”
naquele contexto? O “menor” representava uma figura estigmatizante, que estabelecia uma
clara distinção entre crianças “normais” e “menores”, cuja irregularidade, em geral, consistia
no fato de serem pobres.
Um dos últimos momentos apontados por Pilotti (1995) refere-se ao aparecimento
maciço de Organizações Não-Governamentais (ONGs) na América Latina. Em termos
gerais, as ONGs nasceram para apoiar as iniciativas dos Movimentos Sociais nas
88
comunidades, disponibilizando assistência técnica em diversas áreas, assim como orientando a
captação de recursos necessários para a execução dos projetos.
Encontrei em Chamberland (2003:11) o registro das reformas institucionais sobre os
direitos da mulher e da criança. Essas reformas foram promovidas inicialmente pelas
discussões do Movimento Feminista dos Estados Unidos, por volta de 1930. Parece-me que
essas feministas já estavam associadas aos movimentos sociais e denunciaram as violências na
mesma medida em que buscavam possibilidades de proteção às crianças. Nesse período, há
registros do parlamento Francês aprovando duas leis: uma, retirando o direito paternal
ocasionado pelos maus-tratos; outra, imputando as sanções penais prevista para os(as)
agressores(as). Eis ai as estratégias históricas que instauram, através da verdade jurídica, as
normas sociais. Isso corrobora a afirmação de que o movimento internacional do século XX já
estava engajado nas lutas pelos direitos das minorias identitárias, consideradas aqui como
grupos de mulheres, crianças, negros e homossexuais, por exemplo.
Também a formação, no Brasil, de diversas associações que se articularam a outras em
defesa dos direitos da infância e da juventude acabou por influenciar a criação em 1990, do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Pode-se destacar, no mesmo período, a luta dos
movimentos sociais que nasciam no bojo da elaboração da Constituição de 1988, assim como
o Ano Internacional da Criança, celebrado em 1979, e a Convenção dos Direitos da Criança,
aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1989. Há ainda a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, um documento jurídico internacional, integrado por
representantes dos quarenta e três Estados-membros da Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas. Esse documento foi aprovado pela Assembléia das Nações Unidas, em 1989,
sendo expedido na comemoração dos trinta anos da Declaração Universal dos Direitos da
Criança.
A respeito das políticas públicas de assistência à infância, o Artigo 19 da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança destaca:
os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas,
sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as
formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-
tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob
a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa
responsável por ela. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme
apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas
sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e as
pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de
prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma
89
instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos
casos acima mencionados de maus-tratos à criança e, conforme o caso,
para a intervenção judiciária.
Nesse contexto, inúmeros organismos nacionais e internacionais se mobilizaram
promovendo congressos, seminários, estudos e pesquisas direcionados à situação das
violências sexuais, propondo políticas para o enfrentamento contra toda forma de abuso e
exploração sexual de crianças e adolescentes. Como, destaca o Artigo 3° da Convenção sobre
os Direitos das Crianças, cujo objetivo é orientar a tomada de decisões nas políticas que
afetam esses indivíduos:
§1 Em todas as suas ações que envolvem crianças, empreendidas por
instituições de bem-estar social públicas ou privadas, cortes de justiça,
autoridades administrativas ou corpos legislativos, os maiores interesses da
criança serão uma consideração primária.
§2 Os Estados-membros se comprometerão a assegurar à criança a proteção
e o cuidado, necessários ao seu bem-estar, levando em conta os direitos e
deveres de seus pais, tutores, ou outros indivíduos legalmente responsáveis
por ela e, tendo em vista este fim, tomarão todas as medidas legislativas e
administrativas adequadas.
§3 Os Estados-membros assegurarão que as instituições, serviços e
instalações responsáveis pelo cuidado e proteção à criança estarão de acordo
com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, particularmente
nas áreas de segurança e saúde, no número adequado de seu quadro de
funcionários, bem como na supervisão competente.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente tem-se uma elaboração mais detalhada
dos direitos das crianças e dos adolescentes, já em forma de diretrizes gerais para as políticas
nessa área. O Estatuto prevê, expressamente, em seu artigo 1º, a Doutrina da Proteção Integral
(DPI), que reconhece a criança e o adolescente como cidadãos, garante a efetivação dos seus
direitos, estabelece a articulação entre o Estado e a sociedade civil na operacionalização das
políticas para a infância, bem como a criação dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos
Tutelares. Rege ainda que, em cada município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar,
composto por cinco membros escolhidos pela comunidade local, de acordo com a lei
municipal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, através da Lei complementar nº 8069, de 13
de julho de 1990, incorporou as emendas da Constituição de 1988, as quais afirmam que:
90
É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, a atenção para com os sujeitos em
situações de vulnerabilidade e inseridos em contextos de violências passa a ser
responsabilidade do Estado, a quem cabe criar ações específicas de cuidado e enfrentamento
das violências que adulteram o seu desenvolvimento. É esse Estatuto que vai situar as crianças
e os adolescentes como protagonistas de sua história e não mais como coadjuvantes da história
dos adultos. Para viabilizar as ações previstas, tornou-se necessário descentralizar o poder de
execução das ações e compartilhar com todos os municípios os recursos destinados a esse fim.
Para isso, a legislação determinou que cada município instalasse Conselhos de Direitos da
Criança e do Adolescente, em parceria com outras organizações da Sociedade Civil.
Com essas regulamentações foram instalados os Conselhos Tutelares
29
no Brasil. No
entanto, a estrutura institucional e o sistema de garantias, previstos pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente permanece, em larga escala, incompletos. Mais de um terço dos municípios
ainda não possuem Conselhos Tutelares. Muitos dos Conselhos que existem não demonstram
capacidade técnica e não contam com recursos necessários (Relatório da ONU, 2003). Além
dos Conselhos Tutelares, outros programas foram criados visando a efetivação das garantias
dos direitos das crianças e dos adolescentes. Dentre eles, os Programas Sentinelas, Programa
Acorde, SOS Criança, Apoio Sócio-Familiar, Atendimento Sócio-Educativo.
Essa breve retomada histórica, dessa forma, constitui um campo de possibilidades para
encontrar os fios que tecem o passado e se entrelaçam com o presente, em seus vários
momentos. Segundo a Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças, esses programas
têm se revelado como órgãos importantes para receber as denúncias encaminhadas pelos
Conselhos Tutelares e para proceder aos atendimentos. Tais denúncias têm aumentado
consideravelmente, como demonstram os registros gravados nos prontuários deste Programa,
indicando que as violências ganharam maior visibilidade a partir do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Estou consciente de que os indicadores apresentados nesta dissertação são uma
amostra parcial dos lugares sociais destinados à população infanto-juvenil e que,
29
Há, atualmente, três mil, quatrocentos e setenta e sete Conselhos Tutelares distribuídos em cinco mil,
quinhentos e setenta e oito municípios brasileiros.
91
historicamente, inaugurou um modelo de atendimento que constituiu as Políticas Públicas de
atenção e cuidado. Os Programas Sentinela, um destes projetos, têm se revelado como órgãos
importantes para receber as denúncias encaminhadas pelos Conselhos Tutelares e para
proceder aos atendimentos. Tais denúncias têm aumentado consideravelmente, como
demonstram os registros gravados nos prontuários deste Programa, indicando que as
violências ganharam maior visibilidade a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente.
4.2 O itinerário das crianças nos atendimentos: a gestão no Programa Sentinela
O primeiro encaminhamento realizado após o ato de abuso diz respeito aos registros
das denúncias. É através do Conselho Tutelar
30
que os casos de violências contra as crianças
chegam ao Programa Sentinela, pois ele é responsável pelo registro e encaminhamento da
denúncia. Mesmo que o primeiro contato e registro da denúncia seja feito em alguma
delegacia de polícia, na Promotoria Pública ou Juizado da Infância e da Juventude, hospital ou
postos de saúde, o próximo passo será o encaminhamento para Conselho Tutelar.
Essa responsabilidade do Conselho Tutelar é uma das medidas de proteção prescrita no
Estatuto da Criança e do Adolescente. Após a realização de um parecer técnico, os(as)
Conselheiros(as) Tutelares encaminham o caso ao Programa Sentinela que, na maioria das
vezes, acomoda a denúncia na chamada “demanda reprimida”, ou seja, as denúncias ficam na
fila de espera
31
. Conforme o número de profissionais
32
, cinqüenta crianças são atendidas, ou
seja, o Programa é responsável pelo acolhimento e investigação dessa demanda e para isso
tem um(a) profissional de cada área. No momento em que se encerra um prontuário, inicia-se
outro, aquele que está na fila de espera. As famílias estão envolvidas nas intervenções
propostas, tanto as mães, quanto os demais integrantes, bem como os(as) agressores(as). Esse
cenário se apresenta como um primeiro indicador da gestão do atendimento das políticas para
a infância, configuradas pela escassez de profissionais que atendam toda a demanda das
crianças deixadas (com sua dor) nas filas de espera. A falta de políticas para seu
acompanhamento e proteção imediatos se constitui como uma violência, no sentido de não
30
Órgão criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, com a finalidade de atender todos os casos
de violação de direitos das crianças e dos adolescentes. Com a lei 8069/90, o Conselho Tutelar passa a
compartilhar responsabilidades com o Ministério Público. Com isso, constitui-se um dos principais órgãos da
rede de promoção e defesa dos direitos dessa população.
31
Na data de 21 de maio de 2005, 14 pessoas, crianças e adolescentes, aguardavam atendimento nesta fila. As
políticas públicas de atendimento e proteção à infância não contemplam as necessidades municipais.
92
estar protegendo as crianças que, por lei, devem ser amparadas. A falta de atendimento se
insere num quadro nacional, em outras políticas públicas para a infância, sendo que o baixo
investimento tem ocasionado filas de esperas.
Existem alguns atendimentos com crianças e adolescentes para os quais a equipe dá
prioridade, seguindo os critérios de emergência; assim, não permanecem na demanda
reprimida. A emergência é centrada nas possibilidades de riscos daqueles casos percebidos
como circunstâncias graves e que envolvem bebês, crianças que chegaram com marcas
corporais, adolescentes em depressão e que tentaram suicídio. Essa é uma dinâmica complexa
que se expressa nas seleções dos(as) profissionais do Programa Sentinela e do Conselho
Tutelar. Ao escolherem crianças e ou adolescentes da fila de espera, a partir dos cenários que
os(as) profissionais chamam de mais sangrentos, ou sangrias desatadas, alguns sujeitos
ganham maior atenção, em detrimento de outras, parecendo que algumas denúncias são mais
urgentes do que outras, e essa é uma questão subjetiva.
As violências mais sangrentas são prioridades no atendimento, devido a uma relação
existente entre sofrimento alheio e sua visibilidade. A visibilidade das violências que
aparecem registradas nas marcas corporais (por meio de hematomas, sangramentos, por
exemplo) parece ser consideradas como violências com maior intensidade, gerando mais
preocupação por parte dos(as) profissionais. Sontag (2003) descreve como historicamente a
dor do outro tem sido motivo de atenção, de especulação e de curiosidade. Em sua obra,
intitulada “Diante da dor do outro”, a autora discute a intensificação do trabalho da mídia
diante de alguns eventos, como a queda das torres gêmeas em Nova York e a invasão dos
Estados Unidos no Oriente Médio, acontecimentos que envolvem a dor e o sofrimento alheio.
A espetacularização das violências se dá no plano das visibilidades. No entanto, como
quantificar as dores dos outros? E as violências psicológicas, simbólicas, ou mesmos sexuais,
que não deixam marcas, são consideradas como menor sofrimento?
Para sair da demanda reprimida, os(as) profissionais do Programa Sentinela realizam o
primeiro encaminhamento, o qual chamam de acolhimento. Geralmente, esse procedimento é
feito pela Assistente Social, que dá início ao prontuário da criança e/ou adolescente através da
entrevista
33
. Esse primeiro contato é realizado na residência da criança e/ou nas dependências
32
Esse serviço de proteção é contemplando no mínimo por profissionais do serviço social, psicologia e
pedagogia, conforme artigo 87, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente.
33
O roteiro dessa entrevista de acolhimento que esse Programa Sentinela utiliza, vem junto com a documentação
encaminhada pelo Governo Federal. Existem inúmeros campos de informações que são preenchidas de acordo
com os dados fornecidos pelos responsáveis pela criança e/ou adolescente: dados de identificação e localização:
da(s) vítima(s) e seus responsáveis; do(s) suposto(s) agressor(es); e da situação, episódio e/ou ameaça eminente
de violência.
93
do Programa. Os(as) profissionais apresentam ao Programa Sentinela sua forma de trabalho,
deixando claro que a criança estará sendo acompanhada
34
. Investigam os registros das
denúncias e acordam com os envolvidos os acompanhamentos com a psicóloga. Quase
sempre, procuram verificar se houve registro de Ocorrência Policial e se este não foi
realizado, as crianças são encaminhadas para a Delegacia de Polícia mais próxima do local
onde ocorreu o fato, com o objetivo de efetuar a denúncia. Se houve lesões ou suspeita de
lesões físicas, as crianças são conduzidas aos hospitais e ao Instituto de Medicina Legal
(IML). Esses encaminhamentos são freqüentes na maioria dos atendimentos, como já
apresentado no capítulo anterior, e geralmente encontram-se anexadas nos prontuários, as
cópias do Boletim de Ocorrência e o Laudo do IML.
O encaminhamento dessas crianças tanto para o registro do Boletim de Ocorrência,
quanto para o Instituto de Medicina Legal deve merecer reflexão pela gestão do Programa,
pois estes procedimentos podem estar gerando outras violências simbólicas, sutis,
dissimuladas pela estigmatização e pelo reconhecimento da criança ter sido abusada
sexualmente. Uma adolescente relatou que ficou muito constrangida ao realizar o Boletim de
Ocorrência pois, segundo ela, o delegado falava alto para a sua mãe: eu não vou registrar o
BO pois sua filha não foi estuprada. Olha para o corpo dela. Ela já era mulher. De acordo
com depoimento da mãe, ela teve que mostrar ao delegado a marca no corpo da menina para
que ele realizasse o registro da ocorrência. Numa sociedade patriarcal como a nossa, os ranços
machistas e autocráticos transversalizam as experiências vividas pelas comunidades. Nelas, a
deslegitimização do outro é marca significativa, especialmente quando a relação se faz entre
adultos-crianças, ou adultos-adolescentes. Nesses flancos estão expressos os estilos de
atendimentos nas instituições públicas, mescladas pelo desrespeito, pela sujeição da população
aos interesses pessoais e privados, pela humilhação de aguardar a atenção do servidor público,
como se ali esperasse por um favor particular.
Conforme Paugam (1999), a desqualificação social é uma experiência humilhante, que
produz a desestabilização nas relações com os outros e afeta o sujeito contribuindo, muitas
vezes, no incremento do sofrimento de inferioridade social. Em geral o sentimento de culpa,
para o autor, também é experimentado pelos pais quando estes se deparam com a
34
Em muitas visitas domiciliares onde era realizado o primeiro contato, eu percebi o quanto as profissionais
procuraram persuadir as crianças e seus familiares a participar dos atendimentos do Programa, diante das suas
resistências.
94
impossibilidade de vencerem os obstáculos encontrados, tendo a sensação de fracasso pessoal
pelo qual se acusam e são, ao mesmo tempo, acusados.
Esses episódios de constrangimento e de estigmatização podem deixar outras marcas,
extremamente profundas, na forma como esta adolescente vai construir sua imagem social a
partir das desqualificações, pois sua identidade se constitui no entrelaçamento do emocional
como racional. O racional se constitui nas coerências operacionais dos sistemas
argumentativos que construímos na linguagem. (Maturana, 2002:18) Como se observa nesta
dissertação, o Programa Sentinela e as políticas de atenção à infância, ao legitimar tais
procedimentos, estão sendo responsáveis pela afirmação do rótulo, de estigmatização e
desqualificação dessas crianças, revelando-se com uma gestão que também é permeada por
práticas de violências.
4.3 As visitas domiciliares e a gestão do espaço privado
As visitas domiciliares são atividades realizadas pelos(as) profissionais, os quais se
deslocam até as casas das crianças e as visitas institucionais são feitos nas escolas, nos postos
de saúde, nas delegacias, nos hospitais. Estas articulações realizadas com o auxílio de um
carro e de um motorista, condições elementares fornecidas pela Prefeitura Municipal duas
vezes por semana para o Programa Sentinela, já que são utilizadas também pelo Programa
Apoio Sócio Familiar. Houve ocorrência em que os(as) profissionais não realizaram as visitas
por não haver o recurso do transporte. Novamente se observa como a escassez de
investimentos nas políticas públicas para a infância impede que as atividades dos(as)
profissionais do Programa Sentinela alcancem a eficiência necessária.
Em minha estada no Programa Sentinela esse fato ocorreu duas vezes, sendo que
os(as) profissionais, após um mês de espera conseguiram esse recurso (o carro), por meio de
um ofício onde descreveram a situação aos responsáveis políticos. Esse anuncia as
precariedades que compõem a gestão do atendimento e denuncia a sua insuficiência e os seus
limites, mesmo na pela esfera jurídico-normativa, pois as dificuldades, entre as quais as de
ordem burocrática e a escassez dos recursos, dificultam a continuidade do trabalho para cuidar
dessas crianças em contextos de violências.
Nas visitas domiciliares, os(as) profissionais se preocupavam em desvelar os segredos,
as coisas mal contadas, a rotina das crianças, a possibilidade do agressor estar realizando
outros abusos. Observei, durante a pesquisa, que a assistente social é aquela que geralmente
produz os laudos e pareceres dos acompanhamentos das crianças e adolescentes, cujos
95
relatórios passam a fazer parte do processo e embasam as decisões do juiz. Nesses pareceres
constam os relatos sobre o cotidiano das crianças, os hábitos do agressor, enfim, as
informações sobre as famílias para identificação de outras possibilidades de riscos, como
aponta a referida profissional.
Nessas visitas domiciliares, me chamou a atenção o fato de que, por inúmeras vezes
os(as) profissionais direcionavam o encontro para a entrega de passes (vale passagem de
ônibus) para as crianças e para um(a) responsável, em sentido de proporcionar-lhes o
deslocamento do atendimento psicológico no Programa Sentinela. A entrega dos vales
transportes pode ser considerada como uma prática assistencialista, uma marca na história das
Políticas Públicas no Brasil, que se constituiu a partir da preocupação com a classe pobre. Para
Nascimento (2003:55) na década de 70, devido a preocupação em formar uma nação em
conformidade com os projetos de progresso, segurança e desenvolvimento, a atuação dos
especialistas em desenvolvimento social tornou-se rotineira. Ainda esclarece que a rede social
não-normatizada de proteção
35
, funcionou até o final do século dezenove e início do século
vinte e passou a dar lugar a outro modelo de proteção, denominado proteção de Estado.
O Programa Sentinela continua legitimando essa ordem de proteção criada pelo
Estado, já que seu papel inclui, também, a busca de soluções como se observa:
na ficha evolutiva há registros que a assistente social providencia
medicamento para uma criança como pé machucado, marca consultas
médicas, vacinação, articula bolsa escola, organiza a cesta básica, doações
de roupas, material para construção de um lavabo, transporte para auxiliar
a entrega do material de construção.
Em outro episódio registram: Mãe vem ao programa buscar a cesta básica
e procura ajuda para conseguir legalizar o terreno que é herdado da sogra.
Programa auxiliar a mãe pois a filha mais velha usa drogas e a agride
(Notas do diário de campo).
O atendimento às famílias pobres vem se revestindo do cunho assistencialista e tutelar,
onde membros deste arranjos são tratados não como sujeitos de direitos, mas como receptores
de caridade e esmolas. Parece não ser mais possível o funcionamento de uma rede de
atendimento à infância que se constitua por outras vias, que não aquela que trilham os
caminhos do assistencialismo. Uma questão significativa refere-se as matrizes que nortearam
35
Esse autor analisa as transformações ocorridas, quando a proteção de crianças acontecia por proximidades nos
espaços familiares e na convivência com vizinhos e amigos, agora modificada pela proteção estatal e jurídica.
96
a história e a trajetória do campo da psicologia e do serviço social: a visão assistencialista e
clientelista e a concepção biológica e dicotômica (saúde e doença, normal e patológico,
tratamento e prevenção) (Costa, 2004). Essas referências fizeram parte da formação desses
profissionais e ainda se fazem presentes nos momentos em que estes trabalham com essa
lógica, gestando uma relação direta entre o benefício concedido ao Programa Sentinela e a
cobrança junto à família para estar acompanhando a criança nos atendimentos psicológicos. A
sedução se materializa pela construção da dependência, como mostra a fala a seguir:
não adianta. Se não tem algum beneficio para a família ela não
comparece. Eles chegam no programa já pedindo a cesta básica, o
vale transporte e outras tantas ajudas.
Ás famílias é atribuída a culpa pelo assistencialismo, sem que se faça uma reflexão
conseqüente sobre a cultura da dependência é do favoritismo que marcar a gestão política.
Essa lógica de política pública também se institui numa relação de poder, onde por um lado
existe a família que cobra o benefício, por ser tratar de uma política pública, e, de outro lado,
profissionais legitimando essa lógica assistencial. Fica explícito que, quando as famílias não
conseguem “assumir” por si só seu papel e suas funções na ordem social vigente, são tutelados
por saberes qualificados e competentes. O discurso da competência, é apontado por Foucault
(1996:11) como sendo o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da
hierarquia organizacional.
Dessa maneira, o aparato institucional do Programa Sentinela vai produzindo um
processo de desqualificação das formas de vida das famílias pobres, procurando gestar o
espaço privado e reforça a idéia de arranjos familiares incapazes de solucionar seus
problemas. Ao mesmo tempo, o atendimento amplia os espaços de assistência especializada
através dos discursos competentes e das práticas de moralização e culpabilização. Paugam
(1999) reconhece que as pessoas, em condições socioeconômicas de pobreza sentem-se
culpadas por freqüentarem os espaços de assistência, havendo uma conseqüente perda da
autonomia e a emergência da desqualificação social desses suspeitos. As intervenções junto
às famílias sugerem a expectativa que os(as) profissionais tem na mudança da forma de
organização do espaço privado:
se o Sentinela der em cima da família, eu acreditou que terá mudança, que
terá evolução. A família tem falta de perspectiva, há uma miséria na moral,
há falta de valores
(Notas do diário de campo).
97
Há uma violência dissimulada que se concretiza na relação entre os dirigentes do
processo com as crianças, com seus familiares, quando a intenção da intervenção implica
necessariamente, na idéia de transformá-los, de torná-los outra pessoa. Tudo se dá a partir do
pressuposto de que se têm caminhos a oferecer, ou certezas do que é melhor para eles, mas é a
rejeição de suas vidas e de suas histórias que se configura como uma das faces das violências.
São os saberes dos(as) profissionais que engendram a mecânica de poder que [...] atua a
partir de verdades desqualificadoras das famílias (Foucault, 2003). São os preconceitos para
com o estilo de viver das pessoas empobrecidas.
Penso que o Programa Sentinela, como uma das políticas públicas endereçadas à
infância e adolescência, se constitui também a partir de uma gestão biopolítica do espaço
privado, cuja finalidade é fixar os indivíduos aos aparelhos de normatização, buscando
enquadrá-los ao longo de sua existência e controlá-los ao nível de suas virtualidades Foucault
(2003). Nesse espaço do controle social, próprio da sociedade disciplinar, um dos pontos de
sustentação é a vigilância sobre a família. Aqui a vigilância está sendo manifesta através das
intervenções dos(as) profissionais que apontam como as famílias devem se organizar, devem
se relacionar com seus filhos, com suas sexualidades, com suas rotinas, com seus afazeres. De
acordo Foucault (2003), essa vigilância ganha força na preocupação com a prevenção. As
práticas preventivas aparecem no cenário do Programa Sentinela através da preocupação
dos(as) profissionais com as mudanças da organização familiar, acreditando que elas vão
evitar reincidências das violências no âmbito doméstico.
4.4 A centralidade do processo terapêutico no Programa Sentinela
A preocupação e a cobrança dos(as) profissionais para que as crianças sejam
acompanhadas e participem dos atendimentos psicológicos, cimentam a supervalorização que
é dada a esse encaminhamento por todo o grupo de profissionais do Sentinela. Nos registros
dos prontuários percebi que as crianças, cujos processos estavam em andamento eram
acompanhadas pela psicóloga. Quando a criança e seu(sua) responsável não comparecia ao
atendimento, a psicóloga comunicava os(as) outros(as) profissionais durante o estudo de caso
e essas realizavam um contato, via telefone, ou retornavam a visita domiciliar, a fim de saber
os motivos dos(as) mesmas(os) não compareceram. Inúmeras vezes, nas visitas domiciliares
que acompanhei, não havia outra questão abordada junto à família ou à própria criança, a não
ser uma certa cobrança por faltarem aos encontros com a psicóloga: se não houver o
comparecimento em outros atendimentos psicológicos agendados teremos que reavaliar se
98
ela continuará participando dos Programas. A fala dessa profissional era permeada pelas
justificativas das quais desligamento do caso, poderia ser realizado, caso não comparecesse
dos atendimentos psicológicos, e, por haver uma fila de espera de crianças e adolescentes para
serem atendidas.
Essa supervalorização do profissional da psicologia, ou seja, a ênfase no atendimento
psicoterapêutico do Programa Sentinela, carrega o status da psicologia centrada no indivíduo,
que procura localizar os problemas e atribuir-se a função de resolvê-los. Ficam assim
excluídas as questões sociais que perpassam e constituem a vida do sujeito, afirmando-se
práticas psicoterapêuticas que, na maioria das vezes, são marcadas pela intimização, pela
responsabilização e patologização do indivíduo, como revela a fala da psicóloga:
O ser humano está formando sua personalidade. Se não entrar nessas
questões emocionais que o abuso provoca vai estourar lá na frente, em
transtornos, em patologias.
Então ela diz:
Tenho feito terapia semanal, quinzenal e apoios mensais para as demandas
reprimidas, que seria uma terapia de suporte, acolhimento para ela
suportar. É um outro nível de atenção. Penso que essas pessoas estão sem
noção, pois são vítimas de novo. Se não der suporte pode se perder uma
vida. Algumas tentam se suicidar.
O discurso psicológico se encontrava disseminado em todas as falas, pautando
determinadas práticas, ainda hoje hegemônicas, que dissociam os indivíduos da sociedade,
que concebem como duas instâncias isoladas que apenas se complementam. Isso reduz a
subjetividade a uma pura dimensão psicológica interior, isolando-a do contexto mais amplo. A
psicóloga comenta: Meu trabalho é clinico. Tenho muito vínculo e hoje me preocupo se a
outra psicóloga irá proteger as crianças. Ela definiu seu trabalho como clínico; porque todos
as outras profissionais reconhecem meu trabalho como fundamental. Essa questão esta
presente no Projeto Técnico que, e segundo a assistente social, é um documento que será o
parâmetro para atuação de cada profissional. Falam da necessidade desse Projeto Técnico
justificando que a psicóloga anterior fazia visitas e não tinha atendimento individual,
terapêutico. Hoje eu faço esse trabalho clínico, pois minha função é trabalhar como o
emocional, ressalta a psicóloga.
99
Percebo, desta maneira, que a demanda endereçada ao psicólogo solicita a função de
um perito do “individual”, que assume uma postura neutra e que desvenda os “mistérios,
desejos e verdades” intrínsecas aos sujeitos:
a função da psicologia dentro do Programa é tratar da vítima, a mãe, ou a
pessoa responsável que sofreu junto o trauma. Trabalho a dor que é um
trauma muito forte, pois você passa a vida sem esquecer. É importante que
elas coloquem para fora. Tenho que dar suporte para elas superarem o
sofrimento.
Quero atender todo mundo. Se eu não atender essa demanda do estresse vai
passar para outras questões, vai comprometer todo o ser intimo, seu ritmo,
sua família e seu filho.
Esse discurso revela como o saber psicológico se reafirma como verdadeiro e
necessário, tecendo relações de poder através dos paradigmas cientificistas, de tratar o
trauma, o íntimo, o ritmo. Essa função da psicologia é legitimada desde antes e na
contemporaneidade, a partir da intensificação de técnicas de sujeição dos corpos, através de
modelos de verdade e formas de viver que, alegam decodificam a realidade por inteiro.
A centralidade do trabalho psicoterápico pode estar relacionado a intensidade das
relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a tomar a si próprio objeto de
conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se, e promover a
própria salvação. No momento que a psicóloga aponta
tenho que dar suporte para elas
superarem o sofrimento expressa uma certa
intensificação da psicoterapia nas relações consigo
Foucault (2004) denomina como a cultura de si, como arte da existência, como um tema da
cultura grega (heautou epimeleisthai) que tem como característica o cuidado de si, que
fundamenta a sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prática.
Foucault (2004:144) aponta que os terapeutas
36
procuravam curar doenças provocadas
pelos prazeres, desejos, desgostos, temores, cobiças, estultices, injustiças e a profusão infinita
de paixões. Essas questões segundo ele tem um lugar de referência o cuidado de si, na medida
que procura direcionar suas intervenções para o domínio de si.
Ao mesmo tempo em que a prática da psicologia pode estar voltada para o cuidado de
si
, ela reforça um saber que
vem carregado de uma bagagem teórica, de concepções dicotômicas
36
Segundo Focault (2004:120) a origem da palavra terapeuta vem do grego (tehrapeúein), que dizer curar,
cuidar-se e prestar culto a si mesmo.
100
entre saúde e doença, entre o normal patológico, ao apontar:
Se não entrar nessas questões
emocionais que o provoca isso estourar lá na frente, em transtornos, em patologias.
As colocações aqui ressaltadas não tem por intenção desqualificar a psicologia, de
culpar os (as) psicólogos(a). Busca problematizar seus fazeres, por entender que esse
profissional é mais um dos fios que tecem as redes de atenção práticas, com suas políticas
públicas e sociais, reconhecidos nesse cenário como especialistas. É importante salientar que
sobre o viés positivista e reducionista que a psicologia se constituiu “psicologizando” as
relações sociais. Nesse espaço, a prática psicológica também vem se afirmando basicamente
como técnica de exame, ou seja, como um procedimento que resgata cientificamente o
inquérito na produção de uma verdade (Foucault, 2003).
No chamado Livro de Registro, onde os(as) profissionais anotam em tópicos os
afazeres que cada um deles realiza diariamente. Encontram-se os registros da psicóloga com a
reafirmação freqüente dos atendimentos psicológicos que foram realizados e os agendamentos
seguintes. Não havia outros registros nos atendimentos dos prontuários e nas fichas
evolutivas, pois segundo ela, o sigilo profissional não me permite falar de questões muito
íntimas das pessoas. O discurso do sigilo e da ética parece explicitar uma relação de saber-
poder, no sentido de que, a não revelação, pode estar relacionada, com um status diferenciado
por saber algo a “mais” ou diferente (conhecimento específico), sobre o que não pode ser
compartilhado. Vale dizer que estas situações dificultaram e ainda dificultam o trabalho
interdisciplinar, um dos focos do Programa. Como pensar a interdisciplinaridade, se para
realizá-la, é necessário discutir os casos e as intervenções coletivamente?
Outro aspecto importante das visitas domiciliares remete às intervenções nos espaços
domésticos, pois quando a denúncia não é advinda do seio familiar, o acompanhamento
dos(as) profissionais do Programa Sentinela é dificultado pelas resistências dos seus
integrantes. As resistências que os(as) profissionais denominam, referem-se ao não
comparecimento das crianças e de seus familiares nos agendamentos realizados pelos(as)
profissionais. Diante destes recursos os(as) profissionais realizavam alguns procedimentos: a
assistente social e a pedagoga entrava em contato pelo telefone, iam até as escolas e
residências afim de dialogarem a respeito do não comparecimento.
Acompanhei alguns desligamentos realizados durante as visitas domiciliares, onde era
comunicado às famílias que estas estavam sendo desligadas por falta de adesão ao
101
atendimento psicológico
37
. Ao fazer o desligamento dos casos, os registros ficavam nos
chamados arquivos mortos, uma pasta com prontuários encerrados pelo Programa Sentinela
38
.
O desligamento da criança e de seus familiares do Programa Sentinela, em razão do
comparecimento aos atendimentos psicológicos mostra-se novamente gestão biopolítica,
porque ali se estabelece uma lógica, de certa forma punitiva que encaminha para ao encerrar o
atendimento, justificando pelas faltas consecutivas. Nas visitas domiciliares, era enfático o
discurso ameaçador dos(as) profissionais com relação ao encerramento dos
acompanhamentos, caso não houvesse assiduidade na freqüência aos atendimentos
psicológicos. Esse discurso ameaçador, de controle e vigilância para Foucault liga-se ao
desenvolvimento da governamentalidade, aonde a técnica de governo viria a ter maior
impacto histórico posto que refletia o propósito de codificar o conjunto das relações sociais
que reclamavam a intervenção, a um tempo racionalizadora, reguladora e regulamentadora
do Estado. (apud Ramos, 2005:18) A governamentalidade ligada a dinâmica de controle sobre
os atendimentos psicológicos estabelece uma relação entre o “mundo” psíquico e o cuidado da
criança, sem questionar se o atendimento psicológico garante a proteção integral dessa
criança.
4.5 Aspectos pedagógicos da gestão do Programa Sentinela: cuidado e promoção de
políticas públicas
Nesse subcapítulo, puxo outros fios que configuram a gestão do atendimento no
Programa Sentinela como espaço articulador de políticas públicas para atenção, assim como
os aspectos políticos e sociais relacionados com o desenvolvimento de crianças e
adolescentes.
Um deles refere-se ao aspecto da rotina dos(as) profissionais do Programa Sentinela,
com os chamados Estudos de Casos. São reuniões semanais, com a participação de todos(as)
os(as) profissionais para discutir as discussões e organizar as intervenções dentro de
padronizações. Inicialmente, os casos agendados para a discussão coletiva a partir do número
do prontuário, com a troca de informações a respeito dos atendimentos realizados. Daí
decorria o planejamento para criar outras possibilidades de intervenção e acordo das
37
Neles encontrei outros motivos referentes ao desligamento relacionando com casos onde o agressor não se
encontrava próximo da criança; outros a migração da família para outras cidades ou mesmo de residência, não
havendo mais contatos.
102
responsabilidades de cada profissional. Nessas reuniões, conflitos e consensos em relação aos
olhares acerca das violências e das possíveis intervenções, mediavam as relações.
Quanto à metodologia utilizada pelos(as) profissionais para acompanhar os Estudos de
Casos, observei que estes utilizam uma abordagem multidisciplinar, o que confere a cada um
deles uma função específica no acompanhamento e no encaminhamento dos casos, como
observavam os(as) profissionais:
Por fim, ficou definido que a psicologia deve enfocar a psicoterapia,
pedagoga a escola e serviço social a família.
[...]que o serviço social pouco intervém com a vítima para não haver
confusão de papéis (Registros dos diários de campos).
Desse modo, nos encontros semanais os(as) profissionais, conforme a área de
formação, compartilhavam suas percepções sobre os encaminhamentos, apresentavam suas
hipóteses e traçam diretrizes para a continuidade das ações. Ao que me parece, os afazeres de
cada profissional do Programa Sentinela permaneciam fragmentados para compreender o
problema das violências e direcionar foco de intervenção: a “família”, campo de atuação do
assistente social; a “criança”, sujeito da psicóloga e a “escola”, espaço do pedagogo. O Estudo
de Caso é uma das dinâmicas interna do Programa Sentinela, uma prática revela a interlocução
possível entre os(as) profissionais e os encaminhamentos realizados.
No momento em que os(as) profissionais do Programa adotam campos e afazeres que
privilegiam as posturas dicotomizantes, acabam gestando um atendimento fragmentado, que
passa a ser percebido em três espaços distintos: da família, da escola e das crianças. Há uma
carência na importância do fortalecimento de uma rede de atendimento que se estenda às
diversas instâncias que compõem o tecido social, engendrada como um todo, onde família,
crianças e escola sejam espaços interconectados constituem e se alteram conjuntamente, já que
são interdependentes e complementares.
No decorrer da pesquisa os(as) profissionais do Sentinela demonstraram seus vínculos
com os Conselhos Tutelares, e a não articulação com outros Programas Sentinelas de outras
cidades próximas, por exemplo. Ao contrário, através dos seus discursos constatei que há um
quadro de tensão entre os(as) profissionais dos Programas Sentinelas da Região da Grande
Florianópolis, o qual expressa as possíveis dissintonias e até uma possível negligência na
atenção às necessidades dessas crianças que muitas vezes circulam entre as cidades dessa
38
Na data de 22-06-2005 haviam nesse arquivo morto registrados 69 prontuários com 71 crianças e adolescentes
que foram atendidas.
103
região. No momento que uma criança é desligada do Programa devido à sua mudança
residencial, os profissionais procuram informar ao Conselho Tutelar da cidade onde a criança
foi morar (caso saibam, pois inúmeras vezes os vizinhos e a escola não sabem informar). Essa
seria uma das questões essenciais para um trabalho em rede dos Programas Sentinelas, onde
os engajamentos dos municípios e de todos os segmentos do poder públicos pudessem estar
articulados para estabelecer outros vínculos qualificar a gestão do cuidado em relação à
violência contra crianças e adolescentes.
A desarticulação e a fragilização das políticas de proteção me chamou a atenção
porque cada uma das unidades, age de uma forma: o delegado e os policiais, cuidam dos
Boletins de Ocorrências, os Conselhos Tutelares, das denúncias e encaminhamentos dos
casos, o juiz, procura afastar o agressor, os (as) professores(as) assumem o atendimento o que
dificulta a operacionalização das políticas públicas, para que os procedimentos sejam mais
ágeis e a intenção de agir como uma rede interpolítica, interinstitucional e de proteção integral
as crianças.
Durante minha permanência em campo observei como são precárias também as
interlocuções entre o Programa Sentinela e os demais órgãos públicos, responsáveis pelos
encaminhamentos judiciais. Em todos os momentos dos quais participei acompanhando os
procedimentos junto aos profissionais do Programa, era marcante o fato de que os contatos
com o Promotor se davam nos momentos de organização das atividades, onde se encontravam
nos espaços onde ocorriam algumas conferências, como os Encontros Estaduais e Municipais
organizados pelo Conselho de Direitos. Geralmente, nessa interlocução com os(as)
profissionais do Programa Sentinela endereçavam suas atividades para implementação de
políticas públicas para às infâncias:
- Participação de representantes no Conselho de Direitos da Criança e Adolescente
39
,
como tentativa de contribuir para criar estratégias interativas junto às políticas públicas para
infância e a adolescência, como por exemplo na organização do Fórum Municipal pelo Fim da
Violência e da Exploração Sexual Infanto-Juvenil. No dia 18 de maio, os(as) profissionais
organizam uma campanha contra a violência e o abuso sexual, arrecadavam verbas junto a
algumas instituições para viabilizar a panfletagem e distribuição de camisetas nesse dia.
39
Está organizado por comissões em nível municipal, onde compõe-se por alguns membros de representação
(promotor da Vara da Infância, diretores de escolas, profissionais da área da saúde dentre outros), que se reúnem
mensalmente com o objetivo de avaliar e propor novas ações referentes as políticas públicas da infância e
adolescência.
104
- Os(as) profissionais apresentavam, através de ofício e diálogos com a esfera pública,
às deficiências do Programa Sentinela como política pública, devido a falta de recursos, falta
de profissionais para atender a demanda em espera. Essa denúncia é reivindicada e
formalizada na audiência pública da Jornada Catarinense pela infância e adolescência
Protegida e contra os maus-tratos e a violência e exploração sexual infanto-juvenil, realizada
em 19 de maio de 2005, na cidade onde realizei a pesquisa;
- Em relação ao caráter educativo das ações, os(as) profissionais mantém a
interlocução com as escolas, buscando vincular vagas para as crianças e adolescentes em
atendimento, nos recursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA); investigam se as
matriculas das crianças foram realizadas e se elas estão estudando; realizam inscrição para
outros cursos complementares, como os de computação, dança, trabalhos manuais, dentre
outros.
- Encaminham para as escolas os materiais informativos como o Guia de Identificação
sobre Abuso e Exploração Sexual, elaborado pelo MEC, a fim de informar aos professores(as)
como funcionam as políticas publicas para as infâncias e aos encaminhamentos que eles
poderão estar realizando caso haja suspeita de violências sexuais com algum educando. Essa
articulação entre as escolas e os(as) profissionais da educação se revela como uma estratégia
importante para a gestão do atendimento das crianças, pois esses(as) profissionais são os
atores sociais que mais realizam denúncias de suspeitas de violências no Conselho Tutelar.
Assim, percebe-se que a escola ocupa um papel importante na gestão do cuidado com as
crianças, como investigadora e mediadora do Programa Sentinela, mesmo com suas tantas
contradições.
Em inúmeros casos os(as) profissionais da educação percebem, através dos discursos
dos avós, de alunos e de pessoas da comunidade, a suspeita da violência e encaminham ao
Conselho Tutelar. A denúncia é realizada principalmente pela direção e pelos orientadores(as)
educacionais, não aparecendo em nenhum momento os professores(as) como protagonistas
que fazem esse encaminhamento. No entanto, não se pode esquecer que nas escolas esses(as)
profissionais exercem esse papel informando aos dirigentes, o que me faz considerar a
possibilidade de que professoras(es) também estarem fazendo parte dessa rede de denuncias.
Esse aspecto pode indicar ainda que a escola tem sido uma das formuladoras de políticas
públicas de atenção e proteção à infância violentada, na medida em que dá maior visibilidade
às ocorrências de abusos sexuais. Paradoxalmente, essas escolas ocupam um lugar de
expansão da vida, onde vida e conhecimento se constroem mutuamente, num movimento de
promoção que humaniza e hominiza os sujeitos que educa (Sousa 2002). Essa promoção se dá
105
no âmbito do reconhecimento das crianças e dos adolescentes, através do respeito ás suas
dimensões humanas. Sabe-se que as violências são práticas invasivas que exigem intervenções
ás suas assertivas.
Chamou a minha atenção o acompanhamento que o Programa continua realizando com
alguns jovens, anteriormente atendidos e que freqüentemente retornam ao Sentinela. A
Assistente Social relata que uma moça, que hoje tem mais de 18 anos, continua mantendo
vínculo com o Programa, pois está sendo agredida pelo companheiro com que se casou.
Segundo ela:
[...] a moça disse que confia no programa e, sempre quando precisou de
proteção e solicitou auxílio, inclusive para ajudá-la a decidir se deveria
casar-se; ajuda a moça retirar suas coisas da casa onde morava, pois não
que mais ficar apanhando; hoje está grávida e a auxiliamos nos exames
pré-natais
(Registros dos diários de campos).
Outro encaminhamento realizado pelos(as) profissionais e que pode ser enunciado
como uma estratégia da gestão do cuidado, diz respeito ao contato que estes(as) profissionais
realizaram com os vizinhos de uma criança, a fim de que esses pudessem protegê-la quando
ela se encontrasse sozinha, pois nesses momentos que o agressor atua. Essas questões
relacionais, ao que parece, podem expressar que a gestão do cuidado se pauta também pelo
envolvimento com os segmentos da população, na luta em defesa das crianças em contextos
das violências, a fim de fortalecer ações conjuntas que tenham sentido para coibir as
violências e garantir os direitos.
Foucault (1985:58) aponta que o cuidado de si ou os cuidados que se têm com o
cuidado que os outros devem ter consigo mesmo, aparecem também como características das
relações sociais. Aponta que o cuidado de si se constitui de forma intrinsecamente ligada a um
serviço da alma que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um
sistema de obrigações recíprocas.
Sousa (2002), a gestão do cuidado pressupõe a disponibilidade afetiva para formar
laços entre o adulto e a criança, os mais velhos e os mais jovens. Cuidar é uma atitude que se
materializa através do respeito entre os sujeitos em convivência, através da escuta sensível de
suas histórias, da empatia para forjar o principio de legitimidade entre um EU e um TU, uma
unidade constitutiva do NÓS. Cuidar expressa um ato de amor pelo outro, especialmente
quando se está diante da sua dor. Cuidar é não esperar que os outros façam aquilo que eu,
106
como humano singular, não me disponho a realizar. Cuidar do outro é a mais bela expressão e
extensão do cuidado consigo.
107
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES....
Preferimos mudar a educação – e mudá-la sempre – antes de perguntar-nos
pela pergunta; preferimos ocupar-nos mais do ideal, como normal, que do
grotesco, como humano. Preferimos fazer metástase educativa a cada
momento. Subjuga-nos transformar a transformação, esquecendo – ou então
negando – todo ponto de partida; e a voragem de uma mudança que faça da
educação algo parecido com um Paraíso tão improvável quanto impossível.
(Núbia Pérez de Lara Ferre, 2003:15)
108
Finalizar é preciso, porque concluir não é possível.
Os inomináveis são os que não são nem isso nem aquilo. Aquilo que
não se presta ao jogo da oposição nem de sua lógica. Aquilo que
deixa a ordem sem efeito, que a desordena. Os inomináveis fragilizam
todo conhecimento, toda determinação. São por isso mesmo a
indeterminação o adiamento do conhecimento, o deixar para depois –
e sempre para depois – toda definição toda catalogação. E, ao chegar
esse depois, deixar outra vez de lado a certeza de todo nome para
continuar órfãos e órfãs do malefício da ordem. (Skliar, 2003:55).
Os inomináveis aos quais se refere Skliar (2003) podem ser pensados aqui como as
violências sexuais, enquanto fenômenos instáveis e com muitos ruídos, que se entrelaçam em
movimentos de ordens e desordens. Assim como o caleidoscópio configura inúmeras imagens
a cada movimento dos espelhos, as violências contra a infância não encerram uma única face,
uma única forma de acontecer. Elas estão em diversos campos e anunciam diferentes
possibilidades, algumas nomeáveis, outras inomináveis. Como Jurandi Freire Costa (1992)
escreveu em “o amor que não ousa dizer o nome”, as violências sexuais são subterrâneas,
muitas vezes não-ditas porque geram desconfortos e mal-estar ao vir à tona. Talvez essa seja
uma pista para entender porque as violências sexuais, na história da humanidade são veladas,
e nem sempre reconhecidas como um crime hediondo, como por exemplo, a relação
incestuosa, hoje ajuizada como pedofilia, na maior parte dos contextos onde ela ocorre.
Aprender a lidar com as ambigüidades das violências, dos informantes da pesquisa, da
minha própria condição enquanto pesquisadora foi extremamente desafiador para a construção
dessa dissertação. A tentativa de sair do lugar que a ciência instaurou para o pesquisador(a),
responsável por decifrar, identificar e mensurar os germes das violências, traçar os perfis das
crianças e dos agressores, suscitar as generalizações, se revelou como a minha intenção
principal nessa pesquisa. Com ela tive a oportunidade de reconhecer que o meu olhar esteve,
todo o tempo, composto pelos diálogos e pelas escutas, a partir dos lugares que me
constituíram; que as minhas limitações e fragilidades estão presentes na construção dessa
dissertação, uma síntese possível e provisória sobre o tema.
Escutar os(as) profissionais do Programa Sentinela, observar seu cotidiano, suas
adversidades e compreender suas estratégias de intervenção, só foi possível pela a
aproximação com a abordagem etnográfica. Esta me possibilitou conviver com eles(as) para
compreender as formas convencionais de refletirem sobre as violências, a infância, a
109
sexualidade, as famílias e suas implicações na gestão de atendimento dos sujeitos violentados.
Sinto essa experiência em campo como um deslocamento e embora aquele Programa
Sentinela já fosse conhecido de outras estadas, agora eu o olhava com outros olhos, com outra
intenção. Minha estada não se limitava a chegar lá, olhar e anotar o que observava ou ouvia,
ou a coletar as informações. Como tive uma permanência mais prolongada junto às rotinas
cotidianas dos(as) profissionais, acabei participando das reflexões sobre os assuntos em
questão nas reuniões de estudos de casos, nos seminários e nas visitas domiciliares. Essa foi
uma das experiências que fui descobrindo em campo, pois tinha aprendido anteriormente a
realizar pesquisa me colocando distante e neutra da e na relação, sem a possibilidade de me
misturar com o “objeto” de estudo. Com isso passei a registrar no diário de campo aquilo que
acontecia no espaço pesquisado e aquilo que eu sentia estando lá.
A noção de incompletude e o contorno de meus limites estão vivos nesse texto. Por
isso não trago comigo a pretensão de ter esgotado os sentidos presentes no cenário da
pesquisa, pois sei que apenas proporcionei as compreensões existentes, uma outra
compreensão acerca da gestão do atendimento no Programa Sentinela. No encontro com os
procedimentos práticos realizados pelos(as) profissionais, com os discursos sobre a infância,
as violências e as famílias pude reconhecer como se revelavam as faces da gestão do cuidado
que atravessam os atendimentos. Ela se apresentava multifacetada pelo viés da biopolítica, do
cuidado de si e da reprodução das violências, quase sempre, pautadas por olhares
adultocêntricos.
A gestão do Programa Sentinela revela-se biopolítica na medida em que suas
intervenções operam de forma individualizante - uma criança de cada vez no atendimento
psicológico -, e de forma coletiva – na forma de ver as famílias. A presença da biopolítica é
manifesta em nome da saúde e do bem-estar das pessoas, o que pode ser evidenciado através
da atuação dos(as) profissionais quando procuram governar as crianças e seus familiares. Essa
forma de governamentalidade, de acordo com Foucault (2004:169), está ligada ao governo de
si, ao governo das almas, ao governo das condutas, ao governo das populações. Assim, essa
gestão é marcada por subsídios que dizem respeito à saúde, ao bem-estar e à proteção dos
sujeitos, bem como, pela atenção formal destinada às crianças, no intuito de ocupar o lugar da
governamentalidade através das intervenções dos(as) profissionais. Nesse percurso e
agarrados(as) aos procedimentos normatizadores, os(as) profissionais cumprem o governo de
si mesmos através das formas que atribuem às crianças e seus familiares, confiantes de que,
com isso, podem evitar a incidência de outras violências. Esse olhar religa-se ao pressuposto
110
de que, nas práticas destes(as) profissionais, a responsabilidade, a obediência, a confissão e a
mortificação do eu, estão presentes.
Por essa razão sensível, acredito que a governamentalidade, como exercício de poder-
dominação-obediência sobre os sujeitos, se configura como fundamento das ações que são
efetivadas pelo Programa Sentinela, especialmente quando este realiza alguns de seus
encaminhamentos. Como amostra destaco os mandatos repressivos, assoalhados através da
ameaça ou da ação de desligamento da criança, caso ela não compareça aos atendimentos
psicológicos agendados. Como uma modalidade de gestão, essa forma de governamentalidade
não abarca o controle absoluto dos sujeitos porque esses não podem ser reduzidos à condição
de massa coletiva dos seus fenômenos globais, como salienta Foucault (1999). Para o autor é
necessário gerir a governamentalidade em profundidade, indo ao encontro das minúcias, de
cada detalhe, para assegurar a sistematização de políticas de individualização.
Nesse sentido, a gestão do Programa Sentinela atua também com práticas de repressão,
as quais se constituem em dispositivos que têm uma certa função produtiva, aquela que visa
dar concretude a alguns efeitos positivos na produção das subjetividades. Na concepção
dos(as) profissionais do Programa, esse efeito positivo, embora regulador, aparece relacionado
à visão salvacionista que atribuem aos atendimentos psicológicos, certos de que estes irão
apagar o trauma e a dor experimentados pelas crianças que viveram os contextos das
violências. Com isso, eles acreditam que estão produzindo ações preventivas, para que os
sujeitos agredidos de agora não se transformem nos futuros agressores. Apagam do cenário
das relações a plasticidade que tem o ser humano de reeditar o roteiro de sua história, de
atribuir significados e sentidos à sua dor, distintos daqueles que ora são prescritos pela
conduta dos(as) profissionais em serviço.
Conservam-se, desse modo e em distintas situações, presos(as) aos fundamentos mais
conservadores da chamada psicologia do desenvolvimento, aqueles que assentavam sua fé em
cada etapa da vida do ser humano, enquanto ciclos não apenas diferentes, mas dissociados
entre si. Para essa corrente, no princípio da vida, durante a infância e até o início da idade
adulta, as defesas inatas que trazemos são úteis para nos colocar num rumo linear de nossa
existência, por isso, precisamos que os adultos decidam por nós todo o tempo, não escutem o
que sentimos e não perguntem por nossos desejos, afinal, o governo do outro sobre as nossas
subjetividades transforma-se em regra para a manutenção da nossa própria vida. Será?
Somente na fase adulta e após o acordar da consciência sobre as experiências vividas é que
111
estamos aptos para saber o que podemos ou não fazer com as vivências destas etapas? E ainda
quando adultos, continuamos a internalizar os mandatos externos de que necessitamos,
portanto, permanecer assistidos e em tratamentos psicoterápicos para então superarmos os
limitadores de nosso autodesenvolvimento.
Esses vários aspectos atravessaram os cursos superiores de formação destes(as)
profissionais, impedindo que muitos pudessem abandonar a sobranceira visão determinista
que define, a priori, o quantum cada um de nós é capaz de cruzar os portais de nossa
humanidade para alcançar a profundidade de nosso processo ontológico, de expansão de
consciência e de evolução, com as mediações do mundo em movimento. Imbuídos desses
referenciais vários(as) profissionais se deparam com a impotência de muitas de suas ações, e
se defrontam com outros desafios, aos quais se apegam, por vezes de forma intransponível,
tanto para justificar porque agem de um certo jeito, quanto para colher os benefícios de seus
acertos em continuar atuando assim.
Considero, portanto, que não é apressado afirmar que no âmbito das ações do
Programa Sentinela encontra-se uma gestão de atendimentos, que produz e reproduz
violências simbólicas, através da criação de estigmas, como no caso do menino considerado
um agressor pelos(as) profissionais; por meio de uma autoridade verticalizada, arrogada sobre
as relações com as pessoas em atendimento; e ainda, pelos discursos que normatizam as
práticas de atenção. São discursos quase sempre binários, que simplificam as realidades
atendidas: menino-agressor, menino-bichinha, pai ou padrasto-agressor, mães-protetivas e
coniventes, família-protetiva e não-protetiva. Nesses lugares atribuídos aos sujeitos atendidos,
o contraditório, o aleatório e a pluralidade existente no indivíduo se misturam e, por vezes, são
considerados desvios e erros que devem ser reduzidos ou eliminados (Maffesoli, 2004:159).
Desestabilizar os discursos que produzem verdades sobre os corpos das crianças e de
seus familiares me parece uma atitude de caráter fundamental, pois eles não podem ser
universalizados ou reduzidos às categorias apriorísticas. Ao se universalizar um sujeito que é
singular e plural, não se reconhece suas tantas outras possibilidades. Como aponta Skliar
(2003:75), os vários outros da indolência, o outro da violência, o outro dependente das
drogas, o outro da deficiência, o outro da infância, o outro da língua, o outro da
aprendizagem não são refletidos também como indecifráveis inteiramente, não são
compreendidos como humanos modulados por multiplicidades que figuram através de suas
subjetividades, mesmo quando aparecem no encontro entre os agressores, as crianças e seus
112
familiares. Remete-se às formas de agir no presente, surgem a partir de modos de vida
culturalmente plurais.
No decorrer da pesquisa observei que muitas manifestações de violências eram
contornadas por certas dissimulações na hora do atendimento, as quais eram assentadas no
modelo padronizado de relação entre as crianças e seus familiares. Mesmo quando a intenção
da intervenção implicava na idéia-desejo de transformá-los, de torná-los outras pessoas e sem
sofrimentos, os(as) profissionais partiam do pressuposto de que apenas eles tinham caminhos
acertados a indicar, ou estavam apoiados na certeza de que sabiam o que era melhor e mais
adequado para quem estava lidando com os contextos das violências. Nestas intervenções
junto às famílias, configurava o melhor estilo para que elas se relacionassem com a sua
sexualidade, para que organizassem as suas rotinas, conjugando um rosário de prescrições
pautadas na lógica do dever-ser, e não na experiência de poder-ser (Maffesoli, 1996). Dessa
forma explicitavam a rejeição pelo estilo de viver das camadas populares, desprezavam seus
traços culturais e negavam a sua legitimidade à medida que esquadrinhavam suas vidas e suas
histórias. Talvez essas condutas relacionais sejam entrecortadas por outras faces das
violências.
As filas de espera, batizadas como demandas reprimidas, o número reduzido de
profissionais, a precariedade dos recursos de trabalho, entre outras limitações expressam a
insuficiência das políticas de atenção destinadas às crianças e adolescentes imersos em
contextos de vulnerabilidades sociais, com conseqüências desastrosas para a implantação
efetiva de uma gestão do cuidado. Além desse cenário, outros aspectos cerceiam a ampliação
das políticas públicas, no sentido de assegurar a todas as crianças e aos adolescentes, com suas
famílias, a atenção necessária e qualificadora de suas experiências. Não podemos esquecer
que as violências continuam em pauta e que há inúmeras crianças deixadas sem proteção
integral, e vulneráveis tanto as incidências, quanto às reincidências.
Também não podemos esquecer o esforço destes(as) profissionais para realizar
afazeres de prevenção junto as escolas, assim como, para avivar todos os anos as campanhas
relativas ao “18 de Maio - Dia Nacional de Combate à Violência e à Exploração Sexual
Infanto-Juvenil”. Seus compromissos políticos em defesa do enfrentamento destas violências
chamam a atenção da sociedade e dos poderes públicos para as suas responsabilidades com os
meninos e as meninas que permanecem em lugares de riscos. Lutam corajosamente com
parcos recursos para assegurar a dignidade de suas ações e ainda assim, convivem com o
descaso das autoridades. Em determinadas campanhas, os recursos são subsidiados pela
sociedade civil, através de parcerias com algumas empresas. É essa insuficiência de
113
responsabilidade dos gestores e de investimentos contínuos no Programa, que têm favorecido
para o não acompanhamento sistemático de crianças e adolescentes violentados. O descaso
público pode ser considerado, pelo exposto, formas de legitimar as violências.
Na complexidade desta reflexão não posso deixar de ressaltar que a gestão do
atendimento no Programa Sentinela é marcada por fazeres e saberes adultocêntricos, que
contribuem para alimentar os silenciamentos das vozes das crianças, cada vez mais
substituídas pelos procedimentos e discursos jurídicos. Sobre elas, e sem o seu consentimento,
os rituais de atenção criam Boletins de Ocorrências, abrem os Prontuários, tecem Laudos
Periciais, consolidam Veredictos Médicos, arrolam Processos, realizam Audiências, agendam
Atendimentos, invadem seus corpos através da obrigatoriedade do Exame de Lesão Corporal
para gerar a prova do crime, para citar os mais procedentes. Nesse labirinto de
normatividades, os saberes e vivências das crianças e dos adolescentes são negados para que
possam ganhar legitimidade os saberes institucionais.
Afinal, quem disse que criança fala e que adolescente pensa? Os adultos existem para
falar e pensar por eles, para interpretar o que sentem sem qualquer brecha para a dúvida.
Criança não sabe o que quer, adolescente é confuso, irritante, por isso podem, inclusive, ser
violentados de muitas maneiras. Desde antes do nascimento que a sociedade determina seus
destinos e lacra as portas mais vitais para a construção de suas identidades: a escuta sensível
de seus mundos. Será que estes sujeitos são capazes de anunciar outros indicadores dos
abusos, além daqueles que estão delineados pelos códigos de condutas institucionais? Que
outras veracidades eles podem enunciar para que os adultos cuidem deles sem asfixiá-los? Se
há respostas para essas perguntas, elas escapam às prescrições porque carecem da fala dos
interessados: crianças e adolescentes.
Como problematizei no texto dessa dissertação, os diferentes saberes dos(as)
profissionais sobre as crianças, os adolescentes, as famílias e as violências sexuais, são
arquitetados pelos saberes médicos, pedagógicos, psicológicos, entre outros. São eles que
matizam as relações de poder no movimento mesmo em que organizam algumas práticas de
seu cotidiano. Esses saberes reforçam que há uma relação causal e determinista sobre os
corpos desses sujeitos, partindo da idéia de que eles serão o resultado de seu presente, isto é,
daquilo que lhes aconteceu: serão futuros agressores.
Vale ainda salientar que os chamados indícios ou indicadores das violências sexuais
estão fortemente focalizados nos sinais corporais, geralmente naqueles que são visíveis aos
exames. No entanto, as violências criam campos de sentidos que se expressam em outras
dimensões do ser humano, agregando seus corpos biológico, racio-emocional, antropo-
114
sociológico, por exemplo, alcançando a sua afetividade, seu âmbito relacional para
desmistificar a noção de que os indicadores são observados apenas na pele das crianças
violentadas. A maneira de classificar a intensidade da prática de violência e comprovar o
crime se faz através dos indícios daquilo que pode ser identificado, demarcando as fronteiras
dos saberes especializados que determinam aquilo que dever ser encontrado. De modo
ambíguo, muito destas ações pode evidenciar que a gestão do Programa Sentinela se volta
também para o cuidado de si, na medida em que dá uma importância intensificada ao exame
do corpo para cumprir o imperativo jurídico-normativo. Conforme Foucault (1985:50):
[...] o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o
preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é, em todo
caso, um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes.
Ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se
comportar, impregnou formas de viver, desenvolveu-se em
procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas,
desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim, uma
prática social que deu lugar às relações interindividuais, às trocas de
comunicações e até mesmo, às instituições; ele proporcionou, enfim, um
certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber.
Essa dinâmica da gestão do cuidado de si está expressa nas intervenções dos(as)
profissionais, cujo foco está direcionado para a preocupação em criar estratégias que impeçam
as crianças de serem violentadas novamente, e assegurem para que elas sejam protegidas e
superem os traumas experienciados através das violências. Na perspectiva do cuidado de si se
torna fundamental que os(as) profissionais se debrucem sobre as crianças e os adolescentes,
ampliando os espaços da escuta e do reconhecimento de sua legitimidade, de seu tempo e de
suas experiências. Sousa (2003:11) ressalta que é necessário respeitar as crianças, aceitando-as
com a sua dor, confiando na sua palavra, identificando as formas que estas encontram para
expressão do que sentem. Por isso é indispensável partir do princípio de que as crianças não
mentem, então, elas jamais devem ser obrigadas a construir autojustificativas, porque essa
prática é também autoritária e violenta.
Não é o trabalho terapêutico individualizado que garante o cuidado de si. Na minha
opinião o atendimento isolado pode impedir que as crianças percebam os meandros dessa
atividade e que partilhem com o(as) profissional uma condição comum. Atendimentos em
grupos criam cenários coletivos e anunciam estratégias de cuidado de si, tanto para a
superação dos preconceitos e dos estigmas, quanto das outras violências. Nessa perspectiva
115
está o cuidado de si, como eixo principal da arte da vida, não fosse reservado somente aos
adultos (Focault, 2004:111). É nesse sentido que emerge a gestão do cuidado, associada a uma
ética de convivência e a uma estética do sentir em comum (Maffesoli, 1996), onde o respeito
pelo outro é o pressuposto basilar de toda relação, seja ela pessoal ou profissional. A ética do
cuidado se vale do princípio da sensibilidade às necessidades do outro como legítimo ser-no-
mundo (Maffesoli, 1996), diferenciado do direito fundamentado pela psicologia do
desenvolvimento moral
40
, onde a criança é pensada a partir do que deve-ser. Essa perspectiva
de cuidar do outro foge do principio da universalização, aquele que se endereça por
normativas e se impõe a todos com as mesmas características (Foucault 2004:138).
Conceber teórica e praticamente a criança e o adolescente como sujeitos de
pluralidades, cujas identidades são indissociáveis de suas histórias e de todos os adereços a ela
adensados na trajetória, pode se configurar como uma conduta relacional que cuida de sua
integridade. Há uma criança ou um adolescente que estão aquém e além da percepção
imediata e conhecida, que não são uma síntese de um caso, que não cabem inteiros nos
registros de seus prontuários, que não são exclusivamente vitimizados, que não suportam ser
decompostos em sua unidade corpórea, sem que as políticas de atenção levem em conta a
totalidade abrangente de seu ser-no-mundo, no presente e no contexto de sua cultura.
Desse modo a gestão do cuidado está implicada em aportes ético-estéticos e afetivo-
políticos. Uma ética que se referencia no reconhecimento do outro, como legitimo outro na
convivência (Maturana, 2000), com as diferenças que marcam os princípios da alteridade;
uma estética que atribui sentidos ao ser-estar em comunidade, onde as práticas e as formas
discursivas constituem os processos de subjetivação dos(as) profissionais, das crianças, dos
adolescentes e de seus familiares; uma afetividade que situa um e outro em relação, integrados
ao ambiente onde suas histórias acontecem; e uma política que se manifesta como práticas
implicadas em questões sociais que, a todo o momento, atravessam o cotidiano dos sujeitos
com suas culturas. É, portanto, uma gestão do cuidado, onde a ética e a estética privilegiam o
humano, a sua existência, contemplam a sua escuta e os seus silêncios, acolhem suas emoções
e seus sentimentos. Uma gestão do cuidado que se afirma por ações afetivo-políticas e que,
por isso, reconhece as experiências como não homogêneas e a defesa da vida como
radicalidade dos princípios públicos. Uma gestão do cuidado que guarda paradoxos e
ambigüidades, mesmo quando se revela por meio dos esforços empreendidos pelos(as)
40
Segundo Dallari (2003), para os gregos a “ética” significava “costumes”. Aponta que a ética atual tem origem
no ethos grego, e que é traduzida como mores (moral). Assim, muitas éticas são reconhecidas pelo viés da
moralidade.
116
profissionais para que as suas ações sejam indispensáveis ao enfrentamento das violências
sexuais, tarefa primeira que dá sentido à existência e conservação do Programa Sentinela.
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polêmica).
126
127
ANEXOS:
128
Roteiro prévio na investigação dos Prontuários do Programa Sentinela
1- Sexo:
2- Idade:
3- Bairro residencial:
4- Raça:
5- Naturalidade:
6- Tipo de violência registrada:
7- Outras violências associadas:
8- Data de início do acompanhamento:
9- Escola onde estuda:
10- Série:
11- Órgãos responsáveis pelo encaminhamento ao Programa:
12- Realização de exames de Lesão Corporal:
13- Associação da violência com a saída de casa:
14- Objetos utilizados no ato da agressão:
15- Violência associada a comprometimentos psicológicos (quais):
16- Denuncias provinda da comunidade:
17- Discurso da comunidade sobre a criança e sobre a família:
18- Data da primeira denuncia:
19- Data da primeira intervenção:
20- Encaminhamentos que já foram realizados:
21- Programas que a família foi ou/é atendida:
22- Composição família da criança:
23- Condições habitacionais:
24- Redes de apoio familiar:
25- Dados que o programa cadastra os seguintes dados complementares referentes do(a)
agressor(a) (suspeita de deficiência mental, portador de deficiência física, visual,
auditiva)
26- Dados que o programa cadastra o perfil da criança (a ficha de preenchimento de
filiação é igual do perfil do agressor) – nome, idade, sexo, raça, filiação, naturalidade,
registro de nascimento, religião, praticante ou não, nome do responsável e grau de
parentesco, dados escolares, escola, série, turno, endereço da escola, professora,
repetente, quantas vezes.
27- Aspectos comportamentais registrados pelos programas.
28-
Aspectos relevantes dos relatórios psicológicos:
29- Aspectos relevantes dos relatório dos assistentes sociais
30- Aspectos relevantes dos relatórios dos pedagogos
129
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