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Rosa Maria Santos Mundim
CRIAR UM MUNDO, ESTAR NO MUNDO:
A PROBLEMATIZAÇÃO DO AUTOR-LEITOR EM
ROMANCES DE EÇA DE QUEIRÓS E JOSÉ SARAMAGO
Tese apresentada ao Programa de Pós-gra-
duação em Letras da Pontifícia Universi-
dade Católica de Minas Gerais, como re-
quisito parcial para a obtenção do título
de Doutor em Literaturas de Língua Por-
tuguesa, elaborada sob a orientação da
Profa. Dra. Lélia Parreira Duarte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
2007
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CRIAR UM MUNDO, ESTAR NO MUNDO: A PROBLEMATIZAÇÃO DO AUTOR-
LEITOR EM ROMANCES DE EÇA DE QUEIRÓS E JOSÉ SARAMAGO.
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, aprovada em 29 de agosto de 2007 pela banca examinadora
constituída pelos professores:
________________________________________________
Professora Doutora Lélia Parreira Duarte (Orientadora)
_____________________________________________________
Professora Doutora Maria Thereza Abelha Alves (UFRJ - RJ)
_______________________________________________
Professora Doutora Dalva Calvão (UFF-RJ)
______________________________________________________
Professora Doutora Ivete Lara Camargos Walty (PUC Minas)
___________________________________________
Professor Doutor Onofre de Freitas (PUC Minas)
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AGRADECIMENTOS
Em especial à professora e orientadora Lélia Parreira Duarte,
que sabe com sabedoria e carinho dizer o “sim” e o “não”,
pela segura orientação que torna mais suave o caminho da escrita.
À professora Doutora Maria Cristina Firmino Santos, da Universidade de Évora,
cujas valiosas sugestões tornaram concretas as palavras de Fernando Pessoa:
“Que o mar unisse, já não separasse...”
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCMinas,
pela generosidade na acolhida e na partilha do saber.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCMinas,
pelo atendimento gentil e eficiente.
A todos: família, amigos, colegas, alunos,
pela presença e pelo apoio.
Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra,
página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente,
a implantar no homem que fui as personagens que criei.
Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou,
sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso,
uma promessa como tantas outras que de promessas não conseguiram passar....
(José Saramago, em discurso ao receber o Prêmio Nobel de Literatura)
Isolado no meu quarto, produzindo sem cessar, sem crítica externa, sem o critério alheio,
abismado na contemplação de mim mesmo, pasmado às vezes do meu gênio,
sucumbindo outras sob a certeza da minha imbecilidade,
arrisco-me a faire fausse route.
(Eça de Queirós, em carta a Ramalho Ortigão, Correspondência, 2000, p. 115)
5
RESUMO
Este trabalho investiga a figura do autor, que teve sua morte decretada no famoso texto de
Roland Barthes (1968), mas continua provocando debates nos meios literários. Para isso, ana-
lisa A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós e História do cerco de Lisboa, de José Sara-
mago, romances em que as personagens principais tornam-se autoras de narrativas que relêem
episódios da História portuguesa. Na trajetória dessas personagens e nos textos que escrevem,
estudam-se questões relativas à experiência da leitura, ao processo da escrita, à relação do es-
critor-leitor com o mundo e com outras obras literárias, além dos artifícios usados para questi-
onar o passado e o presente de Portugal.
PALAVRAS-CHAVE: autor; escrita; Literatura portuguesa; José Sara-
mago; Eça de Queirós
ABSTRACT
This work investigates the author, whose death Roland Barthes has announced in his famous
1968's essay. Despite Barthes' proclamation, the author continues provoking discussions in the
literary circles. With the purpose of contributing to this conversation, the dissertation analyses
A ilustre casa de Ramires, by Eça de Queirós and História do cerco de Lisboa, by José Sara-
mago, novels in which the protagonists become authors themselves and produce narratives
that reread episodes of Portuguese History. In considering the trajectory of these characters as
well as the texts they write, the work brings about questions related to the experience of rea-
ding, the process of writing, the relationship between the writer-reader in regards to the world
and literature and, finally, the artifices used to question those issues related to the past and the
present of Portugal.
KEY-WORDS: author; writing; Portuguese literature; José Saramago;
Eça de Queirós
6
SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................................................5
ABSTRACT................................................................................................................................5
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................8
O OUTRO, O MESMO...........................................................................................................9
NOVOS RELATOS DA MESMA HISTÓRIA....................................................................11
UMA BUSCA NOS “BOSQUES DA FICÇÃO”..................................................................13
I - POR MARES DESDE HÁ MUITO NAVEGADOS...........................................................15
UMA SENTENÇA RADICAL.............................................................................................15
... E UMA INDAGAÇÃO PROVOCADORA......................................................................18
UMA AUTÓPSIA IRÔNICA................................................................................................21
... E UMA BUSCA CUIDADOSA.......................................................................................23
UM RETORNO ANUNCIADO............................................................................................25
... E UMA PROPOSTA TENTADORA................................................................................28
II - “ENTRE A VAGA MENTIRA E A REALIDADE” (Cartas, cadernos e diálogos) ..........32
OS PORTUGAIS DE EÇA E SARAMAGO........................................................................36
NA BAGAGEM DOS VIAJANTES.....................................................................................40
UM INÍCIO DE CRIMES E PECADOS..............................................................................46
LEITURAS E LEITORES ...................................................................................................51
ESSE OFÍCIO DE ESCRITOR.............................................................................................55
UM LEGADO DE PALAVRAS...........................................................................................67
III - HISTÓRIA, CORAÇÃO, ESCRITA.................................................................................72
“EM PERIGOS E GUERRAS ESFORÇADOS...”...............................................................75
“NUMA MÃO SEMPRE A ESPADA E NOUTRA A PENA...”..........................................83
“OH PORTUGAL, HOJE ÉS NEVOEIRO...”......................................................................91
NAS TRAMAS DAPENÉLOPE SOMBRIA”...................................................................98
UM TECEDOR DA HISTÓRIA.........................................................................................103
IV - DESTE MUNDO E DE OUTROS..................................................................................110
OLHAR, VER, APONTAR.................................................................................................110
OS CENÁRIOS DA MODERNIDADE..............................................................................112
O MUNDO COMO UM QUADRO....................................................................................114
UM CERTO REALISMO...................................................................................................119
OUTRA VISÃO DA MEIA-IDADE PORTUGUESA ......................................................124
A TORRE DOS FIDALGOS..............................................................................................129
OS LUGARES DA HONRA E DO PODER......................................................................136
V - SINGULARIDADES DOS CERCOS DE LISBOA........................................................144
AS MÚLTIPLAS MODERNIDADES................................................................................144
MANUAIS DE OLHARES E ESCRITAS.........................................................................147
PINTAR E ESCREVER O MUNDO..................................................................................151
VIAGENS, PERCURSOS, DEFINIÇÕES DE ITINERÁRIOS.........................................155
UMA LISBOA DE PALAVRAS.........................................................................................158
DAS RUAS E JANELAS DE LISBOA..............................................................................165
A CIDADE COMO UM PALIMPSESTO..........................................................................167
7
VI - OS RISCOS, OS PONTOS, AS TRAMAS DO TEXTO................................................171
O OLHAR DO ESPELHO..................................................................................................171
SOBRE ESCOLHAS E MÁSCARAS ...............................................................................176
AS MARCAS DE UMA VOZ NARRATIVA.....................................................................177
UMA ESCRITA EM ABISMO...........................................................................................194
UM CERTO TOQUE DE IRONIA.....................................................................................208
VII - O CERCO DO AUTOR E DA ESCRITA......................................................................220
COMO UMA SUBIDA ARQUEJANTE............................................................................220
SOBRE MESTRES E APRENDIZES ...............................................................................222
Cruzando as fronteiras ........................................................................................................224
O NÃO, O SIM, O TALVEZ.... ..........................................................................................227
DE OUTRAS VOZES E OUTROS TEXTOS ...................................................................230
MUNDOS E SERES DE PAPEL........................................................................................237
NA VERTIGEM DA ESCRITA .........................................................................................241
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ................................................................................................250
“SIMPLES FAZEDORES DE LIVROS?” .........................................................................250
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................256
8
INTRODUÇÃO
Assim, minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
(Jorge Luis Borges, Obra Completa, v. II, p. 206) )
A origem e a criação do texto, a sua causa, a intenção e as estratégias que nele se con-
cretizam... Essas e outras questões importantes dos debates e reflexões literárias remetem para
a figura do autor, que segundo Victor Manuel de Aguiar e Silva, “(...) é aquele que está na ori-
gem de algo, aquele que faz produzir e crescer e que é também, em conformidade com o uso
jurídico do lexema, o garante (do vocábulo latino auctor, derivado de augere, 'aumenta', 'fazer
progredir', 'produzir') ...” (Silva, 1983, p. 206).
No E-Dicionário de termos literários, Helena Carvalhão Buescu lembra que a visão
sobre o autor tem sofrido mudanças através dos tempos, que variam desde o “auctor” da épo-
ca medieval, passando pelo “construtor” do Renascimento e pelo “gênio” do Romantismo, até
chegar ao morto/revivido autor da época atual. Segundo ainda Helena Buescu, a partir do iní-
cio do século XX, as idéias trazidas pelas tendências anti-historicistas (Formalismo russo, Es-
truturalismo, New Criticism) fazem com que se desloque o foco de atenção para o texto literá-
rio e sua imanência, restando ao autor apenas contentar-se em ter reconhecida sua presença
“antes” e “fora” do texto. (Buescu, 2007, p. 1-2)
Assim, poderia ser vista como lógica, para as idéias da época, a visão de autor apre-
sentada pelo crítico francês Roland Barthes, que num debate entre pensadores franceses, pu-
blicado em livro com o título de Escrever... Para quê? Para quem?, afirma:
Direi que, para mim, o autor não existe senão no momento em que produz, e não no
momento em que produziu. Na minha muito modesta escala, sinto-o muito profun-
damente: desde que escrevi um livro e que ele foi publicado, já nada mais tenho ver-
dadeiramente a dizer acerca dele, estou separado dele, não tenho com ele senão rela-
ções de gestão ou de propriedade. (Barthes, 1976, p. 19)
Pelas polêmicas que uma afirmação como essa provoca, pelo número de questões que
9
sua presença levanta, esse autor que ora se exalta, ora se nega, constitui, certamente, um per-
manente desafio para os estudiosos da literatura, um fascinante tema para estudo, embora a
busca por ele se revele também uma tarefa desafiadora.
O OUTRO, O MESMO
1
O que é um autor e onde verdadeiramente encontrá-lo? O que é escrever? O que suce-
de ao autor antes, durante e depois da escrita de um texto? Talvez um início de resposta a es-
sas perguntas possa ser buscado numa visão do autor no próprio momento da criação literária,
como a que a ver o texto escrito por Eduardo Prado, no décimo numero da Revista Moder-
na (20/11/1897). Nesse número, que presta uma homenagem a Eça de Queirós, inicia-se a pu-
blicação de A ilustre casa de Ramires e o amigo brasileiro assim descreve a rotina do famoso
romancista:
Todas as tardes, das quatro às sete horas, no último andar de uma casa escondida en-
tre árvores que restam do que foi o parque que os Orléans tiveram em Neuilly, Eça
de Queirós aproxima-se da mesa alta sobre a qual estão, ao lado de um vaso cheio de
flores da estação, muitas folhas de um grande papel cuidadosamente cortado e do-
brado, com largas margens. No verão, as janelas abertas dão para a frescura verde da
folhagem dos castanheiros e das tílias. No inverno, através dos vidros, vê ele a trama
dos finos galhos negros das árvores despidas; e os pardais vêm, em revoada, pousar
e saltitar no rebordo e na grade de ferro do balcão.
Quer entre pelo quarto a luz quente das tardes longas do estio, quer cedo se acenda a
pequena lâmpada de azeite, misturando a placidez da sua luz à claridade do lume,
quer sobre a mesa haja lilases de abril, rosas de julho, crisântemos de outubro ou vi-
oletas de janeiro às mesmas horas, à mesma mesa, com a mesma pena, o escritor
começa a escrever. (Prado, 2000, p. 54)
Um século mais tarde, o também escritor português José Saramago revela, em uma de
suas entrevistas, que tem o hábito de escrever pela manhã e no final da tarde a sua quota diária
de literatura (nunca mais que duas páginas), num escritório cujas janelas deixam ver o mar, na
casa branca de dois pavimentos chamada "A Casa", na ilha de Lanzarote. Sempre ao som de
Mozart, Bach ou Beethoven, Saramago cria seus textos e depois responde a algumas das car-
1 O título é o mesmo do livro de Jorge Luís Borges. (Obra completa, v. II)
10
tas que lhe chegam dos leitores de várias partes do mundo.
Essa imagem, que revela a rotina de Eça de Queirós e José Saramago no momento so-
litário de sua criação literária, leva-nos a fazer algumas perguntas: além da ordem e da simpli-
cidade dos rituais e dos gestos do ato de escrever, o que mais poderia vir a aproximar os dois
autores portugueses tão distantes no tempo e no espaço? Além de “lutar com palavras”, consi-
derariam os autores que teria o intelectual um papel a cumprir em relação ao seu tempo? Que
significaria ser um escritor português, na segunda metade do século XIX e no mundo de hoje?
No caso de Eça de Queirós, tal tarefa se traduz num estado de exaltação constante, de
angústia, de algumas breves alegrias. Na sua época, ser um autor revela-se mais difícil, pois
além do trabalho com a produção do texto, é preciso desdobrar-se também para as negocia-
ções em torno da publicação do livro, das propagandas, às vezes até de sua ilustração. Além
disso, o número de leitores é limitado. No seu caso específico, tudo parece agravar-se ainda
pela saúde delicada e os constantes problemas financeiros. Apesar disso, continua escrevendo
até o fim e deixa inacabada a revisão d'A ilustre casa de Ramires.
Já Saramago, como escritor dos tempos modernos, aceita a ajuda de editores e publici-
tários, escreve com o auxílio do computador e mantém, às vezes, polêmicas com a crítica e os
teóricos da literatura. Afirma não levar em conta a opinião alheia quando escreve e conserva
sempre uma postura reflexiva frente aos acontecimentos, embora declare não permitir que o
lado político se sobreponha ao estético em seus textos. Não tão idealista quanto Eça, nega que
as obras literárias influenciem o mundo ou mudem a História; todavia, continua no seu ofício
de escritor.
Pode-se dizer que um importante ponto de encontro entre os dois romancistas estaria
nos inúmeros depoimentos em que eles, através de cartas, entrevistas e testemunhos, revelam
suas dúvidas e preocupações sobre os atos da leitura e escrita, sobre os papéis do escritor e do
leitor. Essa convergência entre Eça e Saramago se reitera ainda nos textos de ficção de ambos,
11
sempre que convidam o leitor a refletir, a questionar, a "traçar e abrir uma rota sua, pessoal",
segundo José Saramago; ou a tentar "ver verdadeiro", como desejava Eça de Queirós. Pelo
menos no caso desses autores, a solidão no momento da escrita não implica isolar-se do mun-
do, mas antes tê-lo sempre diante dos olhos, nele buscando inspiração e modelos para os seus
mundos de papel (seria apenas coincidência o fato de muitos escritores, reais ou fictícios, es-
creverem sempre perto de uma janela?).
NOVOS RELATOS DA MESMA HISTÓRIA
Com a escolha de romances de Eça de Queirós e José Saramago para objeto de estudo,
a visão do autor em duas épocas distintas da literatura portuguesa pode ser contemplada. Em
A ilustre casa de Ramires e História do cerco de Lisboa, ainda alguns aspectos que podem
dar relevância ao trabalho: as principais personagens são autores que escrevem a partir de tex-
tos alheios, há um entrecruzar de espaços, épocas e escritas, ambos constituem-se como narra-
tivas que fazem releituras bastante originais de épocas importantes da história de Portugal,
tudo isso permeado por reflexões sobre o papel do autor e sobre o ato de escrever.
O romance A ilustre casa de Ramires não é considerado apenas “mais um” entre os ro-
mances de Eça de Queirós, mas ocupa posição de destaque entre as narrativas escritas pelo
autor, tendo sido publicado como livro somente após a sua morte. A queirosiana Beatriz Berri-
ni, ao apresentar o romance na Obra Completa, fala sobre ele da seguinte maneira:
Embora tenha passado por sucessivas versões ou por isso mesmo A ilustre Casa
de Ramires é um dos mais perfeitos romances de Eça de Queiroz. Como disse de iní-
cio, Gonçalo é o protagonista absorvente, em torno de quem giram as demais perso-
nagens e tramas. Trata-se de uma das mais felizes criações de a de Queiroz, uma
de suas personagens mais bem delineadas: além de metonimicamente representar a
decadente aristocracia rural, é uma das figuras mais trabalhadas do ponto de vista
psicológico. (Berrini, 1997, p. 220)
Também o crítico Antonio Candido, no artigo “Ironia e latência”, afirma sobre a exce-
12
lência desse "livro encantador, que quanto mais lido, mais cativa": "A ilustre Casa é de fato
admiravelmente composto. Um virtuosismo raro faz o enredo desenvolver-se com equilíbrio
que surpreende, levando em conta que uma novela dentro do romance e que os dois se en-
caixam como partes necessárias do todo." (Candido, 2000, p. 17).
O livro História do cerco de Lisboa, de José Saramago, embora tenha sido publicado
cerca de apenas quinze anos (1989), foi motivo de estudo em diversos artigos, disserta-
ções e teses, que focalizaram, de preferência, as relações entre história e ficção, talvez por
essa tendência haver adquirido grande destaque em épocas mais recentes, com os estudos da
pós-modernidade voltados à problematização da História e à metaficção historiográfica.
Na mesma linha histórica e crítica do Memorial do Convento, romance que projetou
Saramago como nome de peso na cena literária, História do cerco de Lisboa tem como dife-
rencial, no entanto, um jogo de relações entre duas épocas: o presente e o passado. Raimundo
Silva, personagem-leitor e pesquisador, interroga esse passado “oficial” quando faz dele uma
leitura crítica e, modifica uma visão estabelecida quando introduz um “não” na revisão do
texto do historiador e, a partir das mudanças provocadas por essa transgressão, reescreve sua
própria interpretação sobre o cerco da capital portuguesa.
Como se pode perceber nos dois romances, ao escolher um momento expressivo da
História de Portugal para nele situar a trama, os autores são levados também a fazer a escolha
de uma atitude face a esse momento histórico e essa escolha irá se refletir na atitude do narra-
dor, na composição do espaço, no enfoque da temporalidade, na trama, nas personagens e na
linguagem. As condições para questionar e reescrever essa escrita oficial do passado, porém,
têm como base uma interação com a realidade em que vivem os autores e é fruto de uma leitu-
ra crítica dos relatos da História.
Com suas personagens, Eça e Saramago retomam textos antigos, tradicionais, "históri-
cos", que buscavam ratificar a grandeza e o poder de Portugal. Porém, a exemplo do que Rai-
13
mundo Silva faz conscientemente e Gonçalo Mendes Ramires parece realizar de forma quase
intuitiva, o "não" aparece quando o autor, ao reescrever a história, inverte certezas, verdades e
garantias presentes no texto original, quando então as relações entre mito, "verdade" e poder
são ironicamente desveladas. Assim também se revela ao leitor o caráter móvel e fugidio da
linguagem, que tem o poder de se recusar à fixação de sentidos e de cumprir o papel de servi-
dora passiva de ideologias.
No percurso que fazem, dos momentos iniciais às últimas páginas dos romances, essas
personagens ilustram etapas do processo de criação de um texto literário, mostram os cami-
nhos que o autor tem de trilhar e as escolhas que ele pode ser levado a fazer, num processo
que se mostra sempre alimentado por atos de leitura e escrita. Desse modo, somos levados a
partilhar de todas as reflexões, angústias, avanços e recuos próprios dessa caminhada, bem
como de seus objetivos; assim, esses textos constituem um precioso material para pesquisa.
UMA BUSCA NOS “BOSQUES DA FICÇÃO”
2
Todas essas questões, acima mencionadas (e mesmo outras que surgiram ao longo do
caminho, pois as narrativas não cessam de propô-las), constituem o objeto desta tese, que se
inicia com a leitura de seis textos teóricos sobre o autor e tem como ponto de partida aquele
estudo que, mesmo surgindo numa época agitada por movimentos de contestação, abala os
meios literários: “A morte do autor”, de Roland Barthes (1968). Outro estudo destacado é o de
Michel Foucault que, logo a seguir, acrescenta à sentença de Barthes uma reflexão sobre a po-
lêmica figura em: O que é um autor? (1969). Os demais textos analisam tais propostas e am-
pliam o debate sobre esses dois estudos seminais.
Depois de ouvir, dessa maneira, o que dizem os críticos, na segunda e terceira parte da
tese faz-se uma análise da relação dos autores com o espaço e o tempo em que vivem, dando-
2 O título remete ao livro de Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção.
14
se ênfase ao seu posicionamento em relação ao mundo e à escrita, na época em que criam os
romances A ilustre casa de Ramires e História do cerco de Lisboa, o que seria uma visão do
“estar no mundo” que cada escritor cumpre como ser humano. A palavra, então, é dada aos
próprios autores a de Queirós e José Saramago, que em cartas, depoimentos e entrevistas
discorrem sobre temas ligados ao ofício de escrever, ao inicio de sua vida como escritores e às
influências de outros autores e leituras na sua obra, à sua relação com os leitores e ao signifi-
cado da escrita e da literatura.
A partir da quarta parte, o autor é buscado no próprio texto dos romances, num estudo
do que seria o seu processo de “criar um mundo”. Desse modo, a procura pelo autor - e pelas
suas marcas, pelas suas escolhas na construção de um universo ficcional, pelos seus processos
de conduzir a narrativa, pelo seu trabalho com a linguagem, pelo “não” que ele acrescenta à
História oficial – passa a ser feito através da análise dos romances escolhidos.
Pode-se perceber que, durante todo o estudo, as dúvidas iniciais se fazem presentes e,
além disso, novas questões aparecem ao longo do caminho. A problematização da figura do
autor literário, que atravessou os limites do século e continua ainda em destaque na época de
hoje, seria afinal capaz de provocar a descoberta de respostas definitivas? Quem estaria à es-
pera do leitor, nos atalhos e armadilhas dos bosques da ficção?
15
I - POR MARES DESDE HÁ MUITO NAVEGADOS...
3
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
(Odes de Ricardo Reis, Obra completa, p. 291)
Qual seria a visão do “autor”na perspectiva dos críticos literários? Como seriam vistos
a sua função e o seu espaço? Em que momento da criação literária ele deveria ser buscado?
Para Carlos Reis, no Dicionário de Narratologia, o autor é inicialmente definido como: “(...)
uma entidade de projecção muito ampla, envolvendo aspectos e problemas exteriores à teoria
da narrativa e atinentes, de um modo geral, à problemática da criação literária, das funções so-
ciais da literatura, etc.” (Reis, 1998, p. 39).
Em O demônio da teoria, Antoine Compagnon, lembra-nos que “O ponto mais contro-
vertido dos estudos literários é o lugar que cabe ao autor“, acrescentando ainda queo debate
é tão agitado, tão veemente, que será o mais penoso de ser abordado (será também o capítulo
mais longo).” (Compagnon, 1992, p. 46).
Como se pode ver pelos exemplos, em qualquer texto de teoria que se proponha a tra-
tar de questões relativas ao Autor, a referência a tal nome parece sempre estar ligada a proble-
mas, debates, controvérsias. Falar do Autor parece ser colocar o num caminho repleto de
armadilhas e incontáveis perigos. Haveria uma explicação para tal celeuma? O que teria feito
dele essa figura tão controvertida, motivo de discussões que parecem nunca ter fim? Em que
momento se teria acirrado esse debate sobre a figuração autoral?
UMA SENTENÇA RADICAL...
Nos anos sessenta do século XX, um desejo de mudanças percorre o mundo. uma
3 O título remete ao terceiro verso, Canto I, de Os Lusíadas, de Luís de Camões.
16
espécie de rebelião contra tudo que represente a tradição e a autoridade. Dentre os mais ex-
pressivos símbolos de poder, uma figura representa, com perfeição, essa imagem: é a do Au-
tor, um ser quase tão onipotente como uma divindade, supostamente o guardião do sentido do
texto, aquele que, segundo o pensamento de muitos, detém a chave da intenção que ali estaria
contida, buscada incessantemente pelo leitor e pelo crítico. Não admira, portanto, que para ele
se voltem as atenções e até as animosidades.
Nessa mesma época, os meios literários são sacudidos por questionamentos, atingidos
por essa busca de mudanças e de desafio ao poder. Em 1967, Hans Robert Jauss abre o semes-
tre letivo da Universidade de Constança, na Alemanha, com a palestra “O que é e com que fim
se estuda a história da literatura?”. Seu propósito é reabilitar o estudo dessa disciplina, que se-
gundo ele, depois de haver reinado soberana por todo o século XIX, encontra-se em franca de-
cadência, motivada pela hegemonia das correntes estruturalistas. Os estudos literários, que até
então tinham o seu foco dirigido para o autor e o texto, voltam as suas luzes para outro foco,
como se pode perceber na afirmação de Hauss:
Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condi-
ções históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posiciona-
mento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos crité-
rios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade.
(Hauss, 1994, p. 8)
Assim, entre os teóricos da Literatura, o estudo da recepção do texto pelo leitor passa a
assumir o lugar de destaque. No entanto, um fato mais radical irá sacudir os meios literários.
Em 1968, o crítico literário francês Roland Barthes escreve um artigo que leva, no título,
“A morte do autor”, uma afirmação provocadora e essa proposta vai representar, por muito
tempo, como que uma bandeira daqueles que combatem as noções literárias tradicionais.
no início do seu ensaio, após uma citação de Balzac, o crítico faz a pergunta crucial
“de quem seria a voz que fala no texto?”, que se parece revelar como um artifício usado para
lhe proporcionar a chance de responder, com firmeza: “Jamais será possível saber, pela sim-
17
ples razão de que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem.” (Barthes, 1988, p.
66). Em seguida, Barthes lembra que o autor, tal como o conhecemos, é uma figura moderna,
surgida após a Idade Média, sob a influência de maneiras de pensar que dão importância à di-
mensão individual do ser humano, tais como o Empirismo inglês, o Racionalismo francês e a
de cunho pessoal trazida pela Reforma. Constata também que o reinado do autor ainda se
faz presente em livros de história literária, biografias e entrevistas de escritores e na própria
consciência dos literatos, sempre desejosos de unir a pessoa e a obra.
Mas esse poderio do autor tem sofrido alguns abalos e, paradoxalmente, segundo Ro-
land Barthes, foram alguns escritores (como Malllarmé, Proust e Valéry) que, com os questio-
namentos levantados por sua obra, contribuíram para reduzir esse “império do Autor”. Tam-
bém o movimento do Surrealismo, ao valorizar a experiência de uma escrita automática, ajuda
a “dessacralizar a famosa figura autoral. Com base ainda nos conceitos da Lingüística,
Barthes busca um apoio importante para a defesa da sua posição, pois é com base nela que
afirma que “a linguagem conhece um sujeito, não uma pessoa...” (Barthes,1988, p. 67).
Desse modo, na visão de Barthes, o texto moderno caracteriza-se pelo afastamento do
Autor, que dele se “distancia”, se “ausenta”. Em vez de ser visto como o passado do seu livro,
como o seu criador onipotente, o escritor moderno nasce no momento em que realiza o ato de
escrever, numa dinâmica que se repete indefinidamente: “(...) todo texto é escrito eternamente
aqui e agora.” (Barthes, 1988, p. 68).
Também é desmitificada pelo teórico a figura do Autor como criador, aquele que de-
tém um único sentido para a sua escritura, pois o texto representaria um espaço onde se cru-
zam várias escrituras, nenhuma delas podendo ser vista como original: ... o texto é um teci-
do de citações, saídas dos mil focos da cultura.” (Barthes, 1988, p. 69). Assim, o único poder
que parece restar ao escritor é o de trabalhar as escrituras à sua disposição, mesclá-las, fazê-
las opor-se umas às outras. Esse é o papel do “scriptor”, que Barthes faz suceder ao Autor e
18
que tem, entretanto, um privilégio: o de poder valer-se de um imenso dicionário, indefinida-
mente colocado à sua disposição. Decifrar um texto passa a ser, nessa concepção barthesiana,
uma tarefa inútil, pois seria como que fechar a escritura, que entretanto nunca cessa de propor
sentidos. (Barthes, 1988, p. 69)
Para finalizar, o autor de Aula volta ao seu ponto de partida, o texto de Balzac, para
dizer que o verdadeiro lugar na escritura deve ser ocupado, doravante, não pela figura de ori-
gem, mas por aquela que representa o seu destino: o leitor. Em vista disso, propõe então que o
mito seja invertido e que o Autor morra, para que possa ceder o seu lugar ao Leitor. (Barthes,
1988, p. 70)
... E UMA INDAGAÇÃO PROVOCADORA
Talvez ainda não refeito da proposta da “morte do autor”, o espaço acadêmico francês
é abalado, em 1969, pela conferência de Michel Foucault intitulada: “O que é um autor?”.
Para responder à questão proposta no título, Foucault faz uma análise detalhada de como se
construiu o que ele denomina a “monarquia do autor”, iniciando sua fala com uma citação de
Thomas Beckett: “Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala”. O conferen-
cista chama a atenção para a indiferença em relação à autoria revelada nessas palavras, atitude
que considera um dos “princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea”.
Em seguida, Michel Foucault aponta dois grandes temas que definem esse princípio
de apagamento da figura do autor. Em primeiro lugar, lembra a existência de uma escrita que
só se refere a si própria “(...) num espaço em que o sujeito é uma figura que sempre desapare-
ce.” (Foucault, 1992, p. 35). O segundo tema é o da proximidade da escrita com a morte, que
vai contra a antiga concepção de que a narrativa adiava o momento de sua chegada (como
n'As mil e uma noites) e imortalizava os heróis (como nas epopéias gregas). Foucault afirma
que, na concepção atual, a obra torna-se, pelo contrário, a assassina de seu autor e Proust,
19
Kafka e Flaubert seriam exemplos desse sacrifício. (Foucault, 1992, p. 36).
Numa tentativa de ocupar o espaço que fica vazio com esse desaparecimento do autor,
o filósofo francês propõe novas questões: O que é um nome de autor? E como funciona?
Lembra, inicialmente, que a ligação do nome do autor com o que lhe é atribuído é diferente
daquela ligação do nome próprio com a pessoa nomeada, pois um nome de autor não é so-
mente um elemento de um discurso, mas exerce nesse discurso um papel importante, que per-
mite reagrupar textos, delimitá-los, opô-los a outros textos e relacioná-los entre si.
Foucault lembra ainda que, na nossa civilização, alguns textos são providos da função
“autor” e outros não a possuem (como contrato, carta privada) e define como se processa essa
função : “O nome do autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra,
mas sim na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular.”
(Foucault, 1992, p. 46).
A nomeação dessa função-autor coloca, entretanto, outras questões para análise: Como
é que se caracteriza, na nossa cultura, um discurso portador da função-autor? Em que é que se
opõe aos outros discursos? Para esclarecê-las, quatro características dessa função são aponta-
das. A primeira é a de que os textos, os livros, os discursos começaram a ter autores quan-
do estes ficaram passíveis de punição, isto é, quando os discursos se tornaram transgressores
e, por outro lado, garantiram-se os direitos de propriedade ( séculos XVIII - XIX).
A segunda característica apontada é a de que a função autor não se exerce de forma
constante e universal sobre todos os discursos. Assim, houve um tempo em que textos hoje
considerados “literários” circulavam no anonimato, sem desvalorizar-se e sua própria antigui-
dade constituía uma garantia suficiente de sua qualidade. nos séculos XVII-XVIII, entre-
tanto, o discurso literário não seria valorizado se não fosse dotado da função autor.
A terceira característica apontada por Michel Foucault é que a função autor não se for-
ma espontaneamente pela atribuição de um discurso a uma pessoa que o produz, mas exige
20
uma série de operações específicas e complexas para que tal atribuição seja comprovada, sen-
do importante lembrar que .a crítica moderna ainda se utiliza de muitos dos critérios usados
pela tradição cristã para definir a autoria, rejeitar ou autenticar os textos estudados.
Segundo o teórico francês, a quarta característica é que a função autor não é uma sim-
ples reconstrução que se faz a partir de um texto, mas pode dar lugar a vários “eus”, a várias
posições - sujeito que podem ser ocupadas por classes diferentes de indivíduos. Em vista dis-
so, seria falso procurar o autor no escritor real; pois “(...) a função autor efectua-se na própria
cisão – nessa divisão e nessa distância.” (1992, p. 55).
Outra importante afirmação de Michel Foucault é que na ordem do discurso pode-se
ser autor de mais do que um livro, como, por exemplo, de uma teoria, de uma tradição, de
uma disciplina, em cujo interior outros autores poderão também se abrigar e tal fenômeno é
antigo e constante, como comprovam os exemplos de Homero e Aristóteles. A esses autores
singulares, que não se pode confundir com autores literários, de textos religiosos canônicos ou
fundadores de ciências, Foucault denomina “fundadores de discursividade”.
Para Michel Foucault, finalmente, depois que se observam as modificações históricas
que têm ocorrido em relação à figura do autor, percebe-se que não é indispensável que tal fun-
ção permaneça constante na sua forma e complexidade e é possível, até, imaginar uma cultura
em que a circulação e a recepção do discurso possam ocorrer sem que a função-autor se faça
presente. Assim, questões de hoje, como “Quem falou? “ou “Quem pode preencher a função
do sujeito?” deixariam de ter importância, e faria sentido a frase de Beckett que dá início à re-
flexão: “Que importa quem fala?” (Foucault, 1998, p. 71).
Em seguida à conferência, Michel Foucault responde a perguntas de seus debatedores.
Afirma, então, que sua fala teria sido uma tentativa de definir a maneira como a função autor
se exerce, em que domínios e em que condições ela se faz presente. Dessa forma, sua exposi-
ção nunca deveria ser usada para comprovar a afirmação de que o autor não existe. A polêmi-
21
ca em torno do autor, entretanto, não terminaria com o fim desse famoso debate.
UMA AUTÓPSIA IRÔNICA....
No livro Morte d'Author, an autopsy (Hix, 1990)
4
, a ironia se apresenta na figura
que ilustra a capa: uma reprodução do famoso quadro de Rembrandt, “Uma lição de anato-
mia”, em que estudiosos se debruçam sobre um cadáver a ser dissecado. No início do livro, ao
comparar o veredito da morte de Deus feita por Nietzsche ao anúncio da morte do autor feita
por Roland Barthes, o crítico também é irônico ao comentar:Se a proclamação de Nietzsche
é um obituário, a de Barthes é uma nota de suicídio”. (Hix, 1990, p. 3). Somos lembrados, as-
sim, de que o próprio Barthes é um autor e, mais grave ainda, de que ele faz a proclamação da
morte autoral escrevendo e assinando um texto.
Harvey Hix destaca, de início, um ponto em que todos os críticos estão de acordo (in-
clusive ele): o autor é uma figura dos tempos modernos. Lembra também que Barthes (e al-
guns outros teóricos) questionam o autor como proprietário do texto e detentor do direito à de-
terminação do seu significado; mas, para Hix, o ponto problemático entre os estudiosos é que
o autor seja visto como uma figura “homogênea”, singular e unitária.
Para Harvey L. Hix, a pergunta mais importante que os teóricos deveriam propor seria
então- “O que é um autor, exatamente”? - e afirma que essa questão só será esclarecida quan-
do for abandonada a suposição de homogeneidade, pois “(...) o termo 'autor' não descreve uma
função singular, mas abrange um conjunto de funções que, no caso de um texto dado não pre-
cisam ser, e muitas vezes não são executadas por um único indivíduo.” (Hix, 2000, p. 9).
A crítica, para H. L. Hix, não ofereceu ainda um retrato do autor capaz de abranger to-
dos esses significados. No livro ele se propõe, então, a fazer uma tentativa de ir além dessa
presunção de homogeneidade autoral. Para tal, analisa e confronta diversas teorias a respeito
4 As traduções dos trechos citados são de minha autoria.
22
de tal figura. Lembra, inicialmente, que a polêmica sobre a natureza e o status do autor está
centrada em dois tipos diferentes de reconhecimento.
Para Michel Foucault e Alexander Nehamas, por exemplo, a discussão estaria baseada
nas indagações decomo” se poderia reconhecer um autor: O que é um autor? Como ele é? -
o que seria uma questão de percepção. Para Roland Barthes e William Gass, a questão é “se”
é pertinente o reconhecimento do autor, para responder às perguntas: A presença de um autor
pode ser reconhecida? O autor mantém alguma autoridade sobre o significado de seu texto?,
o que seria uma questão de recepção. Esses pontos de vista, segundo Hix, mostram como cada
uma das visões se engana a respeito de um dos aspectos do autor em relação ao todo, por pri-
vilegiar a discussão, ora sobre o autor como origem/causa do texto, ora como função/efeito do
texto.
Sobre Jacques Derrida, Hix afirma que sua posição acrescenta pouco ao que é dito por
Roland Barthes, pois se este preconiza a “morte do autor”, aquele fala de “suicídio literário”,
da “morte pela escrita”; se Barthes diz que o autor está morto, Derrida afirma que o texto está
órfão e privado da assistência do pai ( Hix, 1990, p. 77). Enquanto a crítica tradicional, para
Hix, fala que o autor está “dentro” do texto, coloca-se naquilo que produz, os críticos con-
temporâneos, como Barthes e Derrida, que se rebelam contra a tradição, dizem que o autor
está “fora” do texto. Ambas as tendências, porém, concordam que esse espaço interior é o lu-
gar do poder e dos privilégios. (1990, p. 199)
Hix discute ainda outra questão importante no que diz respeito à criação autoral: o plá-
gio e seus limites. Mostra colocações de diversos teóricos, entre elas a do crítico Harold Blo-
om, que sustenta a opinião de que o plágio é aceitável moralmente em certas condições e até
mesmo necessário para a criação literária, lembrando apenas que, em relação à apropriação de
textos, deve ser feita a pergunta “Qual é a qualidade do material roubado?” (1990, p. 212).
Dessa maneira, ao nos apresentar aspectos dessa complexidade do autor, Harvey Hix
23
nos indício de um dos possíveis motivos pelos quais, talvez, essa figura continue sobrevi-
vendo a todas as ameaças, apesar de ter sido motivo até mesmo de um anúncio de morte.
... E UMA BUSCA CUIDADOSA...
Como se pode perceber, a partir da publicação dos textos de Roland Barthes e Michel
Foucault, muitos estudos continuam a ser feitos, buscando apoiar suas idéias, contestá-las ou
ampliar a discussão em torno da questão autoral. Entre estes, destaca-se o livro da professora
Helena Carvalhão Buescu, intitulado Em busca do autor perdido (1998). Assim como outros
teóricos haviam feito antes, a professora inicia também o seu texto com uma questão: “Por
que o autor é um problema? Busca com essa indagação, porém, não mais somente definir o
que é um autor, mas investigar a causa de tanta discussão em torno de tal figura.
Na perspectiva de Helena Buescu, quando Roland Barthes anuncia a morte do autor
(1968), retoma o tema da “morte de Deus” proposto por Nietzsche e o introduz nos estudos li-
terários, mas lembra que não se deve deixar de levar em conta, de modo especial, que ao dis-
tinguir entre o 'autor' que está morrendo e “ (...) o scriptor, ou a imagem autoral reconstruída a
partir da instância da leitura, a proposta de Barthes não pode evidentemente ser desligada da
alteração de paradigmas a que o fim dos anos 60 assiste, nomeadamente com a insistência na
figura do leitor...” (1998, p. 15).
Além do filósofo alemão, a estudiosa portuguesa lembra o criador da Psicanálise, Sig-
mund Freud, como outra presença a pontuar o texto. Isso pelo fato de Roland Barthes mostrar
que, na concepção histórica, o autor é visto como “pai” criador, anterior e exterior à escritura,
detentor de todos os seus significados. Assim, seria para confrontar esse poderio que Barthes
propõe a morte simbólica do autor, que cederia ao leitor o seu lugar. Essa posição do teórico
francês, sugerindo o afastamento do autor e defendendo uma concepção de uma linguagem
“que se fala”, auto-reflexiva e autogerada, leva Helena Buescu ao receio de que a questão do
24
sujeito e do discurso como fenômeno intersubjetivo e social não seja levada em conta, apesar
de sua extrema importância.
Helena Carvalhão Buescu analisa também o texto de Michel Foucault sobre a questão
autoral, observando que este mostra que o conceito de autor é variável, se levarmos em conta
momentos históricos diversos. Ressalta que Foucault introduz o conceito fundamental de
“função-autor”, mas lembra que essa função é também historicamente determinada e, por esse
motivo, pode ser configurada de diversas maneiras.
Diferenças entre Roland Barthes e Michel Foucault são apontadas: enquanto o primei-
ro refuta a importância das componentes biografista e intencionalista do autor e postula o seu
desaparecimento, o criador de As palavras e as coisas afasta biografia e intenção, porém es-
clarece que esse afastamento não anula o conceito de autor. Além disso, Foucault ressalta que
o “nome de autor”, com certeza, não é um nome como qualquer outro.
A ensaísta lembra ainda que a questão do autor tem sido motivo de discussão entre
teóricos de diversas tendências. Para ilustrar essa diversidade, são citadas diversas posições,
denominações e conceitos a esse respeito, como “autor implicado” (Booth, 1961), “Autor mo-
delo” (Eco, 1985 e 1995), “autor postulado” (Nehamas, 1981, 1986 e 1987, “autor inferido”
(Chatman, 1990; Rimmon-Kenan, 1983), “Autor textual” (Aguiar e Silva, 1986).
Entre tantas concepções teóricas, sua preferência recai na designação de autor textu-
al”,empregado por Aguiar e Silva (1986), pois para ela todas as outras “... implicam a consti-
tuição da instância autoral a partir de apenas uma série de pressupostos” (Buescu, 1998, p. 23)
ou seja, àquele que produz o texto, o autor; ou àquele que faz sua recepção, o leitor. Tentando
fugir dessa dicotomia, Helena Buescu informa, em seguida, que lhe interessa a possibilidade
de passar do binômio - narrador/leitor à relação triádica - autor textual/narrador/leitor.
Continuando sua argumentação, Helena Buescu reafirma sua convicção de que o ato
de leitura integra-se num processo de comunicação que é um ato social. De acordo com essa
25
concepção, nem se dirá apenas que o sentido seja imanente ao texto nem que caiba somente
ao leitor projetar sua subjetividade no texto que lê, mas deve-se lembrar também que haverá
nesse processo um espaço para o autor. Assim, para a estudiosa, o autor não está totalmente
fora nem dentro do texto, mas aparece como resultado de uma interação entre o texto e o lei-
tor no momento da leitura, num mútuo reconhecimento que faz parte de (...) um acto de co-
municação na qual a figura do autor representa, por si só, uma função e um figuração” (Bues-
cu, 1998, p. 43).
Essa exaustiva análise de Helena Buescu, por si só, revela a complexidade que envol-
ve a figura do autor, respondendo à pergunta lançada pelo título do livro. Assim, não teria fun-
damento a tentação de pensar que a discussão dos problemas que o envolvem poderia estar es-
gotada. O aparecimento de novos estudos vai revelar que muitas outras questões restam, ain-
da, para que os teóricos façam delas motivo de suas preocupações.
UM RETORNO ANUNCIADO...
O autor: morte, ausência, multiplicidade, desaparecimento, autópsia. Os intermináveis
debates, as exaustivas buscas, todas as controvérsias apenas servem como comprovação de
que, na verdade, ele nunca esteve ausente da cena literária. Assim, é justificável que, em The
Death and Return of the Author,
5
o professor Seán Burke, da Universidade de Durham, con-
clua, ao final do Prólogo, que (...) nunca o conceito de autor está mais vivo do que quando
ele foi declarado morto.” (Burke, 2004, p. 7).
Seán Burke inicia sua análise pelo que denomina “A pré-história do autor”, afirmando
que, daqueles escritores que Barthes, Foucault e Derrida apontam como precursores da morte
autoral, apenas Mallarmé poderia ter lugar garantido, pois já pregava a autonomia da escrita, o
poder da linguagem para se organizar sem intervenção subjetiva, a noção de intertextualidade
5 A tradução dos trechos citados é de minha autoria.
26
de toda literatura, o apagamento daquele que produz o texto. Mas, ao mesmo tempo, observa
que essas colocações representam uma contradição óbvia, pois é do seu próprio lugar de
“autor” que Mallarmé, por exemplo, fala do “desaparecimento do autor” (Burke, 2004, p. 9).
Burke propõe-se a fazer, no seu livro, uma leitura atenta dos discursos anti-autorais e
inicia tal leitura com o texto “A morte do autor”, de Barthes, que representa, segundo ele, “a
mais influente reflexão sobre a questão de autoria nos tempos modernos.” (Burke, 2004, p.
19) . Para Burke, entretanto, os críticos que contestaram as teses barthesianas quase nunca se
aprofundaram além de uma análise superficial do texto.
Burke chama a atenção para o fato de que Roland Barthes produz seu famoso ensaio
quando se prepara para escrever também a análise da novela Sarrasine, de Balzac, publicado
com o nome de S/Z., no qual substitui a perspectiva do autor pela do leitor, como produtor do
sentido do texto. Segundo Burke, nesse texto Barthes parte de um falso pressuposto: se o esta-
tuto de mestre for negado ao autor, o próprio conceito de autor perde sua razão de ser. Mas
lembra que, se esse autor parece pronto para morrer, é porque, na verdade, tal tipo de autor
nunca teria existido. Assim, Burke diz que em Sade, Fourier, Loyola (1971), o próprio
Barthes fala do “retorno do autor” como “desejo do leitor” e como um “convidado” do texto”
(Burke, 2004, p. 31).
Seán Burke lembra também que a complexidade da colocação do autor no texto reve-
la-se na exaustiva análise que Roland Barthes faz da novela Sarrazine: ao desconstruí-la e
reinterpretá-la, o crítico revela os artifícios usados por Balzac para compor esse texto, supos-
tamente um modelo da objetividade do autor. Para Burke, S/Z é o texto da morte e do retorno
do autor e o leitor, depois de fazer a leitura da análise barthesiana, não consegue mais ler
Sarrazine inocentemente. (Burke, 2004, p. 48)
Para mostrar ainda que o autor não é, como dizem os seus detratores, necessariamente
um tirano, lembra Seán Burke que, muitos anos antes, Bakhtin percebera a necessidade de
27
fazer oposição às concepções mimética e univocal do texto. Isso porque, nos seus estudos, o
teórico russo mostra que os textos de autores por ele denominados polifônicos, como Rabe-
lais, Dostoiévski e Swift, revelam que a voz autoral não domina as outras vozes textuais. Na
realidade, nos livros desses escritores, a voz autoral torna-se uma dentre muitas outras. (Bur-
ke, 2004, p. 49).
Continuando sua análise, Burke lembra tendências recentes que questionam a autori-
dade autoral, como os Formalistas russos, os “New Critics”, a Crítica Feminista, os Descons-
trucionistas. O teórico cita ainda Michel Foucault que, em As palavras e as coisas (1966),
lança a provocativa idéia de que o homem, concebido como sujeito ou objeto, estaria fadado
ao desaparecimento e indaga, então, se essas duas mortes anunciadas – a do autor, por Barthes
e a do homem, por Foucault - não seriam “uma só e mesma morte.” (Burke, 2004, p. 66).
Na Conclusão, Burke afirma que “Em todo lugar, sob os auspícios de sua ausência, o
conceito de autor permanece ativo, a noção do retorno do autor sendo simplesmente o tardio
reconhecimento da cegueira da crítica.” (Burke, 1992, p. 172). Além disso, lembra que, no
mundo moderno, testemunhamos também as profecias da “morte” de Deus, do homem, da re-
presentação, da metafísica, do livro, do humanismo burguês, sendo então a morte do autor
apenas um resultado inevitável de todos esses supostos desaparecimentos.
Para Seán Burke, outras noções importantes a considerar atualmente, como a inter-
textualidade e os limites entre o trabalho do autor e o do crítico, que às vezes se revelam tê-
nues, por colocarem em foco as questões de influência e revisão. Esse relacionamento levan-
taria a uma questão: certos escritores deveriam ser classificados como críticos ou autores?
Ou até mesmo como críticos e autores? Burke ressalta que esses críticos revivificam os textos
por eles analisados, descobrem significados e abrem novas possibilidades de leitura, tornando-
se mais do que meramente críticos e cita Fragmentos de um discurso amoroso e A câmara
clara como “trabalhos de um autor” (Burke, 2004, p. 179).
28
Finalmente, Seán Burke afirma que o avanço da tecnologia faz com que a intenção do
autor e as estratégias do texto sejam postas de lado, pela interatividade do leitor moderno com
o texto e lembra que a releitura de Balzac, em S/Z, pode ser vista como um prenúncio da des-
construção hipertextual de hoje. Admite que a disseminação do hipertexto termine por dissol-
ver categorias como autoria, individualidade e subjetivismo e que o conceito de autor, atrela-
do à cultura do livro, talvez se enfraqueça à medida em que este perca importância. Mas res-
salta que podemos, mesmo em meio a tantas mudanças e dilemas, revisitar e refazer nossos
conceitos de textualidade, leitura e autoria, ou até propor novas formas de “ler” o autor.
... E UMA PROPOSTA TENTADORA
Depois de tentativas de definição e ressurreição de um autor que já se pretendia morto,
em meio a reflexões sobre problemas colocados pela atuação do autor no texto, pela sua rela-
ção com o leitor e pelas dúvidas sobre a sua função num mundo virtual, Manuel Gusmão, no
artigo “Anonimato ou alterização” (2000), vem colocar a proposta de uma nova maneira de
leitura da questão autoral. Gusmão lembra que o autor deve ser visto como objeto de uma
“instabilização multiforme” ao longo da modernidade e propõe uma reflexão sobre dois mo-
dos de representar as figurações autorais.
Ao primeiro modo de configuração do autor, Gusmão denomina “anonimato”, posição
que seria sugerida pelos escritos de Mallarmé, por uma formulação de Foucault e pela versão
de Barthes da “morte do autor”. Ao segundo modo proposto denomina “alterização”, maneira
de configuração autoral que remeteria ao poeta Rimbaud. Lembra, porém, que o seu trabalho
não é uma reflexão definitiva sobre a questão do autor, assim como o texto de Barthes não re-
presentou o início ou o fim da crítica da relevância hermenêutica da função dos autores (antes
já feita também por outros “poetas críticos”, como Valéry, Proust, Eliot...).
Segundo Gusmão, ao criticar a noção de Deus como “pai”, Barthes critica a noção de
29
autor como “anterioridade genética ou origem absoluta da obra”. Ao dizer que, na concepção
tradicional, livro e autor colocam-se numa mesma linha, como um “antes” e um “depois” do
texto, o teórico francês parece mostrar o tempo como um contínuo linear e irreversível, dese-
jando quebrar essa linha e interromper a relação de filiação. O teórico lembra que Roland
Barthes também critica o Autor como proprietário, destinador e guardião de um sentido que
deve ser decifrado pelo leitor, pois a escrita na verdade não precisaria ser decifrada, mas des-
lindada, percorrida. Para Manuel Gusmão, esse afastamento do autor proposto por Barthes
tem como finalidade, assim, a abertura a uma pluralidade de sentidos. (Gusmão, 2000, p.3)
Por outro lado, segundo Gusmão, com o afastamento do mito do autor cria-se um novo
mito, o do leitor, que em alguns aspectos parece ser uma inversão do primeiro. Esse leitor,
para Manuel Gusmão, poderia ser visto como uma metonímia da leitura, pelo fato de ser uma
personagem apenas conceitual, não estar inscrito no texto e receber atributos do scriptor, pois,
como ele, não tem história ou biografia. Nessa acepção, talvez leitor e scriptor, como antes o
Crítico e o Autor, possam representar, no texto de Barthes, a parceria da escrita e da leitura.
O ensaísta lembra, porém, que essa figura do leitor barthesiano reduz em demasia a di-
mensão complexa de historicidade da leitura, pois “Nenhum leitor lê, sem recolher, lembran-
do e esquecendo, transfigurando a sua variável experiência de leitura, da vida e do mundo...”
(Gusmão, 2000, p. 5). Para o crítico português, o próprio Barthes, de certa forma, desmente-se
depois no texto Aula e quando relê A montanha mágica, estudos em que leva a temporalidade
histórica em consideração.
Manuel Gusmão faz então duas observações; a primeira é que a crítica feita por
Barthes às representações do Autor como pai e proprietário é ainda hoje incontestável. Mas,
segundo seu ponto de vista, a “morte do autor” determinada pelo teórico francês apaga proble-
mas sem lhes ter dado solução, podendo ser caracterizada, talvez, como a uma versão excessi-
vamente rígida da poética de Mallarmé. Outra limitação que Gusmão aponta, na proposta de
30
Barthes, é que a sua leitura se limita apenas à literatura francesa da modernidade ou à sua pré-
história. Também nota que o crítico francês não faz referência a Rimbaud, um autor que atra-
vessa toda a modernidade e em cujos versos já se pode ler a crise do sujeito, não propriamen-
te como o desaparecimento do autor, mas como um processo de “estranhamento e
alterização”.
Diferentemente do que faz Roland Barthes, as noções de alteridade e alterização que
Gusmão propõe permitem que se olhe para fora da literatura francesa, buscando exemplos em
outras literaturas. Manuel Gusmão lembra também que o autor está antes, depois, fora e den-
tro do texto, mas não é o mesmo em cada uma dessas dimensões. Segundo ele, “O autor au-
senta-se de facto - e essa é uma das condições para que o texto possa ser lido - , mas sobra,
como rastro e como resto figurais, de um trabalho, de uma passagem.” (Gusmão, 2000, p. 7).
Para ilustrar, por fim, o que considera um exemplo de “um autor de autores', um autor
“multipolar”, Manuel Gusmão evoca o nome de Fernando Pessoa. Nesse poeta, o ensaísta
que a autoria se mostra como um diálogo múltiplo e descentrado, sendo os heterônimos jogos
de linguagem que interagem entre si, no quadro de uma enunciação polifônica. Quando anali-
sa o poema “Autopsicografia”, Gusmão mostra que o leitor deve ler com sua experiência de
vida, precisa ser capaz de ler a sua dor, mas deve reservar um espaço também para uma dor
que está escrita no texto, num processo que leve à consciência da alterização autoral, mas
também à percepção de alteridade do leitor em relação ao texto.
Manuel Gusmão lembra, finalmente, que a configuração da relação escrita-leitura que
se apresenta nesse poema de Pessoa lembra a experiência por nós vivida na leitura de algum
texto que nos “ensina a viver” ou nos mostra que “depois deles já não sabemos nada” e con-
clui: “Um autor é também um nome para designar a possibilidade de tal experiência: o nome
de um agente na linguagem que, não está no texto que lemos, onde nós, entretanto, 've-
mos' uma impressão ou inscrição que nos marca.” (Gusmão, 2000, p. 12).
31
Assim, a análise de Gusmão mostra a importância da relação autor/texto/leitor, afir-
mando mesmo que também o leitor pode “escrever” a sua leitura. Sem que, para isso, seja pre-
ciso condenar o autor à morte... Uma morte que parece cada vez mais improvável, quando se
constata que continuam as indagações, tornando a figura do autor um dos grandes desafios no
campo dos estudos literários: O que é, exatamente, esse autor, desaparecido ou morto, objeto
de minuciosa dissecação e exaustiva busca? Por que o problema que ele representa parece
nunca encontrar uma solução? Quais poderiam ser as suas configurações no texto literário?
Como se pode perceber por essa leitura de alguns significativos estudos críticos a res-
peito do Autor, e embora diversos teóricos e correntes continuem a se posicionar, sempre ha-
verá espaço e tema para novas discussões. Até agora, no entanto, foram ouvidas apenas as pa-
lavras da crítica literária. O que pensaria dessas questões o próprio autor? Como esses temas
se fariam apresentar no texto literário? De que maneira a narrativa de um personagem-autor
lidaria com os problemas que o autor-pessoa vivencia? Como se mostraria, num romance, o
processo da escrita de um texto ? Qual seria a relação do escritor-pessoa com o autor-criador?
De que modo o mundo real atinge o mundo escrito das páginas da ficção e atua nas escolhas
que o escritor faz, ao escrever?
De acordo com a proposta de Manuel Gusmão, deve-se ir ao texto para ali buscar, a
exemplo do que ele próprio executa com o poema de Pessoa, as representações da alteridade
do autor. Assim, a proposta deste estudo é buscar, na análise dos romances A ilustre casa de
Ramires, de Eça de Queirós, e História do cerco de Lisboa, de José Saramago, e nas represen-
tações dos autores nesses textos, a resposta para inúmeras questões que sempre estão a se fa-
zer, a respeito do autor e da criação do texto literário. Ou, quem sabe, talvez, terminar pela
formulação de novas indagações.
32
II - “ENTRE A VAGA MENTIRA E A REALIDADE”
6
(CARTAS, CADERNOS E DIÁLOGOS)
Pobre de mim, eu permaneço em tudo,
em todas as coisas, um mero artista!
(Eça de Queirós em carta a Emília de Castro, Correspondência, p. 499)
Quem me acode? Quem me ajudará a explicar-me a mim mesmo?
(José Saramago, Cadernos de Lanzarote, p. 60)
algum tempo atrás, se fôssemos levar em conta a precariedade dos arquivos da
época e a fase ainda inicial dos estudos ligados à crítica genética, teria sido uma tarefa dificíli-
ma entender o que Eça de Queirós disse, a respeito da criação do texto literário e da figura do
autor. No entanto, a publicação da Obra completa, organizada pela professora Beatriz Berrini
(2000) e editada pela Nova Fronteira para homenagear o centenário de morte do escritor, fez
com que esse trabalho se tornasse bem menos árduo.
A pesquisadora informa, na Introdução Geral à Correspondência de Eça de Queiroz
(2000), que as cartas compiladas nesse volume de 966 páginas, com 74 textos divulgados pela
primeira vez, abrangem e ampliam tudo o que fora publicado, até então, em matéria de cartas
do escritor. Beatriz Berrini esclarece, porém, que o tomo é ainda uma obra “em aberto”, pois
novos acréscimos poderão surgir no decorrer de futuras pesquisas. Ainda assim, a qualidade
do trabalho efetuado permite que se possa conhecer muito sobre o autor e a época em que ele
viveu. Qual seria, entretanto, a relevância desses textos, do ponto de vista de uma pesquisa li-
terária?
Ainda na Introdução, ao discorrer sobre o papel da correspondência de um escritor,
Beatriz Berrini ressalta, no estudo da obra queirosiana, a importância das cartas, uma vez que
No caso de Eça de Queiroz, é possível através da correspondência ver o germinar de
uma idéia sua ou o desenho de um plano de trabalho; acompanhar o seu desenvolvi-
mento; tomar conhecimento das dificuldades de edição e posteriores e sucessivas
correções de provas; como ainda chegar a saber o porquê do abandono de determi-
nado manuscrito ou a desistência de uma coleção já esboçada. Ou então, capta-se
6O título remete a verso do poema “Minha vida é poética”, de Ana Hatherly.
33
uma confidência a um amigo íntimo a respeito do silêncio da crítica, nesta ou naque-
la carta; outra revelará uma particular perspectiva estética; noutros momentos, a lei-
tura de missivas proporcionará a exposição e a análise crítica do autor a respeito de
suas próprias criações, numa auto avaliação lúcida e implacável. (Berrini, 2000, p.
13-14)
Além disso, a pesquisadora lembra que Eça de Queirós se serve das cartas não para
correspondência, mas também com outras finalidades. Dá, como exemplos disso, entre outros,
textos memorialistas aparentemente destinados a Carlos Mayer e publicados pela Gazeta de
Portugal (1866/1867), o perfil de Ramalho Ortigão em uma carta dirigida a Joaquim de Araú-
jo e publicada na Renascença (1878), além do conhecido prefácio aos Azulejos (1886) do
Conde de Arnoso, escrito em forma de uma missiva. Nesses textos, embora pareça dirigir-se
apenas a um destinatário em particular, Eça faz uso do recurso das cartas para falar ao públi-
co, expondo idéias e expressando opiniões a respeito de temas estéticos e literários.
É ainda através de cartas publicadas em jornais que o autor, muitas vezes, agradece
opiniões favoráveis a respeito de seus livros ou defende-se de críticas, como no caso do famo-
so texto intitulado Tomás de Alencar, uma explicação (08/02/1889), publicada no jornal de
Lisboa O Tempo, em resposta à sátira de Bulhão Pato, O grande Maia. Desse modo, as cartas
do escritor acabam por suprir lacunas, iluminar pontos obscuros, esclarecer detalhes a respeito
de sua obra e apresentar sua opinião a respeito de questões ligadas à criação artística, ao escri-
tor e ao texto literário.
No caso de José Saramago, a tarefa de ouvir o que ele tem a dizer aos leitores e pes-
quisadores de sua obra torna-se bem mais simples, pois, como um autor do nosso tempo, tem
à sua disposição inúmeros veículos de comunicação e não se faz de rogado em usá-los. A ima-
gem do escritor e suas palavras estão presentes em entrevistas de jornais, revistas, televisão e
filmes. Tal abundância de informações, entretanto, cria o problema de acúmulo de material, o
que acaba por forçar a uma escolha, que certamente leva a deixar de lado algumas informa-
ções valiosas.
34
O próprio escritor, entretanto, colabora com os estudiosos de sua obra, ao lançar os
Cadernos de Lanzarote (1998) e Cadernos de Lanzarote II (1999). No primeiro volume, estão
incluídos os diários relativos aos anos de 1993, 1994 e 1995. No segundo, podemos ler o rela-
to de fatos correspondentes aos anos de 1996 e 1997. Esses volumes abrangem uma etapa sig-
nificativa da vida literária do autor, já por essa época bastante conhecido e com diversos livros
publicados em Portugal e no exterior, vivendo uma fase de produção de romances com suces-
so de público e crítica, prestes a ser agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Segundo informações do próprio José Saramago, no primeiro registro feito
(15/04/1093), os cadernos começaram a ser escritos por sugestão de parentes. Apesar da im-
pressão inicial causada pela forma e disposição dos textos, percebe-se que não se trata de um
diário comum, pois se o autor comenta fatos corriqueiros da vida, também faz reflexões e re-
latos sobre o mundo literário e sobre a sua atividade profissional. O leitor tem, além disso, a
chance de acompanhar o nascimento e o processo de escrita de alguns de seus romances.
Numa apresentação ao primeiro volume, o próprio autor dos Cadernos informa a
quem o lê: “Este livro, que vida havendo e saúde não faltando terá continuação, é um diário.”
(Saramago, 1998, p. 9) Lembra, porém, a um possível leitor desavisado, que “Ninguém escre-
ve um diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com uma
personagem.” (p. 9). Já quase concluindo o texto, Saramago confessa ainda ter sentido “ (...) a
necessidade de juntar aos sinais que me identificam um certo olhar sobre mim mesmo. O
olhar do espelho. Sujeito-me portanto ao risco de insinceridade por buscar o seu contrário.”
(p. 10). Entretanto, essa confessada insinceridade não impede que, nessas páginas, muito a
respeito dos pensamentos e processos de criação do autor possa ser revelado.
Além da leitura dos Cadernos, outra escolha de material para pesquisa deveria caber,
obviamente, às entrevistas e como se disse, o número delas é imenso. Entretanto, aquela
que parece ser a mais completa foi publicada com o título de Diálogos com José Saramago
35
(1998), como resultado de um encontro de três dias e sete horas de gravação com o professor
Carlos Reis, na própria casa do escritor. Essa entrevista, por sua vez, está registrada nos Ca-
dernos de Lanzarote II (p 295-296) e o escritor termina seu relato sobre a conversa, dizendo,
de modo provocador: “Durante oito horas atendi a perguntas e procurei as respostas. Disse
tudo. Disse tudo?” (p. 296).
Tal atitude questionadora talvez se deva, também, ao fato de que Carlos Reis tenha
sido um minucioso e atento entrevistador, tanto que o autor português revela, na Abertura do
livro : “Estou um pouco assustado, pois não é o mesmo ser entrevistado mais ou menos despa-
chadamente por um jornalista e ser alvo das atenções e curiosidades de um professor universi-
tário...” (Saramago, 1998, p. 31).
Também o próprio entrevistador Carlos Reis, na Apresentação do livro, justifica tais
cuidados quando aponta os objetivos e futuras utilidades da conversa:
(...) os diálogos com José Saramago revelam, por certo, alguma coisa do seu pensa-
mento estético e da sua forma de estar na vida, como escritor, mas também como ci-
dadão. É isso que terá sido retido e (já agora) disponibilizado para leitores de diversa
motivação: do leitor corrente dos romances de Saramago ao estudioso da sua obra,
passando pelo professor que trabalha com os seus textos e pelo estudante que (su-
postamente) os lê. (Reis, 1998, p. 9)
Além disso, percebe-se que essa não é uma entrevista corriqueira, quando Carlos Reis
revela que teve o cuidado de separar as questões em sete temas que explora exaustivamente,
tudo isso para buscar aquilo que ele denomina “um esboço de poética” de um escritor chama-
do José Saramago. Ainda para auxiliar o leitor em uma leitura proveitosa da entrevista, na in-
trodução intitulada O escritor em construção, Carlos Reis faz uma análise da trajetória literá-
ria percorrida por José Saramago, mostrando os caminhos de sua escrita desde o romance Ter-
ra do pecado (1947).
Como se pode perceber, tanto as cartas da Correspondência de Eça quanto os Cader-
nos e os Diálogos de Saramago mostram-se importantes para um encontro mais profundo com
36
aquele escritor que está por trás de seus textos. Deve-se atentar, entretanto (e as próprias pala-
vras de Saramago confirmam isso), para o fato de que, quando o autor “se escreve”, em car-
tas, entrevistas, depoimentos e relatos, a vida pessoal se transforma, de certo modo, em litera-
tura, o escritor passa a ser como que personagem de si mesmo, e muitas vezes passa a repre-
sentar aqueles papéis que dele esperam as editoras, a crítica e até mesmo os próprios leitores.
Assim, através de suas palavras, mas tentando sempre confrontá-las entre si e com
suas próprias atitudes, pode-se então buscar a origem daquilo que marca a escrita desses auto-
res como singular e inconfundível, tentando responder às questões: Como os autores se escre-
vem, quando são eles mesmos as personagens enfocadas? Em que medida essa escrita que os
autores fazem de si mesmos ajuda o leitor a ter uma visão mais profunda do processo de cria-
ção literária e, conseqüentemente, do que os textos desses escritores podem lhe dizer?
OS PORTUGAIS DE EÇA E SARAMAGO
Ver a pátria de longe, tornar a ela como visitante, ter por ela um sentimento de amor
que, entretanto, não impede um olhar crítico. Voltar a ela muitas vezes de memória, ser capaz
de recriá-la em paisagem e figuras humanas. Nem sempre ter suas idéias compreendidas pelos
próprios portugueses, ver seus textos muitas vezes deliberadamente ignorados e até mesmo
atacados. Todas essas experiências em relação à terra natal são compartilhadas, curiosamente,
pelos dois escritores lusos nascidos em diferentes épocas, Eça de Queirós e José Saramago.
Eça de Queirós vive grande parte de sua vida longe de Portugal, por razões profissio-
nais. A partir de sua nomeação como diplomata, para representar seu país em Havana (1872),
retorna à sua terra como visitante e vem mesmo a morrer longe dela, em Paris (1900). No
entanto, é Portugal que ele escolhe como cenário de sua ficção e reconstrói esse espaço com
visões diversas que às vezes parecem mesmo conflitantes, ora lançando-lhe olhares benignos
de filho devotado, ora censurando-lhe as mazelas com severidade. Assim, de seu primeiro
37
posto em Havana (1873), escreve ao amigo Ramalho Ortigão para confessar a nostalgia da
terra natal, de onde partira há pouco e cujos defeitos, de longe, passara até a apreciar:
Como Madame de Staël, eu tenho saudadesdo enxurro do Rocio. - Você não com-
preende decerto este sentimento porque nunca esteve exilado. O exílio importa a
glorificação da pátria. Estar longe é um grande telescópio – para as virtudes da terra,
onde se vestiu a primeira camisa. Assim eu de Portugal esqueci o mau – e constante-
mente penso nas belas estradas do Minho, nas aldeotas brancas e frias! - no bom vi-
nho verde que eleva a alma, nos castanheiros, cheios de pássaros, que se curvam e
roçam (?) por cima do alpendre do ferrador...etc. etc. (Queirós, 2000, v. IV, p.101)
Anos mais tarde, como cônsul em Newcastle e mais habituado a viver longe da pá-
tria, tendo conhecido e visitado outros lugares, o romancista português tem a respeito de
sua terra uma visão mais pessimista e bastante crítica. Depois de haver revelado a decadência
moral da província em O crime do padre Amaro, defende em carta a Teófilo Braga
(12/03/1878) o retrato da família lisboeta apresentado em O primo Basílio, ao afirmar: “A mi-
nha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde
1830 e mostrar -lhe, como num espelho, que triste país eles formam- eles e elas. É o meu
fim nas Cenas da Vida Portuguesa.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 918).
Em meio à escrita do romance que tem Luísa como protagonista, um mês depois o au-
tor escreve ao amigo Ramalho Ortigão (Newcastle, 08/04/1878). Lamenta, com uma preocu-
pação que estará sempre a atormentá-lo e mesmo como escritor influenciado pelas idéias do
Realismo, que a distância de Portugal e a falta da observação direta do espaço natal possam
impedi-lo de usar as tintas da realidade, da maneira fiel como desejaria:
Eu trabalho nas Cenas Portuguesas, mas sob a influência do desalento. Convenci-
me que um artista não pode trabalhar longe do meio em que está a sua matéria artís-
tica: Balzac (si licitus est...etc etc.) não poderia escrever a Comédia Humana em
Manchester, e Zola não lograria fazer uma linha dos Rougon em Cardiff: eu não pos-
so pintar Portugal em Newcastle (...) vou escrevendo, por processos puramente lite-
rários, e a priori, uma sociedade de convenção, talhada de memória.” (Queirós,
2000, v. IV, p. 123)
Esse afastamento físico não implica, porém, o desligamento do escritor quanto aos
destinos da pátria. em Paris (10/08/1891) escreve ao Conde de Arnoso, preocupado com a
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provável queda da monarquia portuguesa e as incertezas do futuro: “E com o triunfo da Revo-
lução eu creio que Portugal acabou. o escrever isto faz vir as lágrimas aos olhos mas
para mim é quase certo que a desaparição do Reino de Portugal há-de ser a grande tragédia do
fim do século.” (p. 304).
Apesar dos temores do escritor, entretanto, as mudanças não provocam a ruína de Por-
tugal. Quanto à obra literária, o fato de viver longe de sua pátria não faz com que os textos de
Eça de Queirós se tornem menos vivos ou contundentes. Essa distância acaba até por lhes dar
uma nova dimensão, como lembra Beatriz Berrini:
Com efeito, viver longe de Portugal, em vez de levá-lo à literatura puramente fantás-
tica e humorística, como temia, permitiu-lhe o indispensável estranhamento da reali-
dade portuguesa, que lhe possibilitou a sua recriação na imaginação, dentro do qua-
dro do mundo moderno. Longe do solo pátrio, viu-se liberto dos comprometimentos
pessoais e das marcas do subjetivismo, do confessionalismo, enfim. (Berrini, 1997,
p. 36)
Já o escritor José Saramago é um exilado, mas por vontade própria. Em 1992, o gover-
no de Portugal, através do Secretário de Cultura, veta a indicação do seu romance O Evange-
lho segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu, porque ofende as crenças religiosas do
povo e “não representa Portugal”. O escritor, magoado, decide mudar-se então para Lanzaro-
te, nas Ilhas Canárias. As facilidades de locomoção no mundo moderno fazem com que ele,
porém, possa retornar sempre à sua pátria para visitas, compromissos literários ou homena-
gens. Entretanto, assim como Eça de Queirós, faz da terra portuguesa e de sua gente a matéria
fulcral de sua produção literária, mesmo escrevendo longe dela.
Sobre Portugal, tem quase sempre uma visão bastante crítica, como podemos observar
na anotação feita em 02/12/1994, no Cadernos de Lanzarote I, a respeito da eterna dependên-
cia portuguesa em relação a outros países economicamente mais fortes: A ameaça de perda
de independência nacional é, conseqüentemente, mais forte do que nunca, não por efeito de
qualquer tipo de absorção violenta, mas por um processo lento, de mesquinha e servil dissolu-
39
ção.” (Saramago, 1998, p. 417).
O escritor informa então que esse desabafo é feito após a leitura de um artigo de Pedro
Ramos de Almeida sobre o “protectorado” português na União Européia. Tal artigo é elogiado
por Saramago, que dele recolhe a citação final (coincidentemente, de Eça de Queirós), à qual
acrescenta um comentário irônico:
'Qualquer dia, Portugal não é um país, mas um sítio. E ainda mais mal frequenta-
do...' Quem foi que escreveu este sarcástico e doloroso prognóstico? Um violento e
apaixonado antieuropeísta? Um retrógrado ultramontano? Um comunista despeita-
do? Não senhor, não foi nenhum deles: o autor deste arranhão brutal na nossa cons-
ciência, se ainda a temos e para alguma coisa nos serve, foi um escritor português
chamado Eça de Queiroz... (Saramago, 1998, p. 417-418)
Essa visão um tanto pessimista, porém, não impede que o escritor tenha consciência de
suas origens e, sempre que possível, faça uma reafirmação de seus laços portugueses: “ Toda
a gente sabe que Lanzarote não é a minha terra, e eu nunca consentirei que se esqueça que o
meu lugar de origem, o autêntico, o natural, o de raiz, flor e fruto, é a Azinhaga, com tudo o
que, de norte a sul e de este a oeste, chamado Portugal, a rodeia.” (Saramago, 1998, p. 96).
Nos Diálogos, indagado sobre um dos temas fortes de sua obra, o autor de Memorial
do Convento renova sua ligação afetiva com a terra natal, lembrando que essa é uma caracte-
rística comum a outros autores portugueses:
Bom, o tema forte será Portugal, uma vez que dele falo e falo sempre com uma espé-
cie de dor. Coisa que também não é inédita na relação entre os escritores portugue-
ses e a nossa terra, traduzindo uma espécie de desespero por não podermos ou não
querermos sair desta espécie de mesquinhez que nos caracteriza em parte...(Sarama-
go, 1998, p. 145)
José Saramago tenta então explicar e justificar o motivo dessa dor, talvez porque sua
terra não corresponda ao que dela sempre esperou. Busca uma ajuda para isso, na lembrança
de uma célebre frase de Garrett: “A terra é pequena e a gente que nela vive também não é
grande”, lamentando que aquilo que era dito então do povo luso pode ser considerado verda-
deiro até hoje. Finalmente, após afirmar que o discurso autoritário sempre imposto nas aulas
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de História versa sobre uma suposta superioridade portuguesa que já não é capaz de seduzi-lo,
chega a uma constatação: “Quero dizer: gosto da minha terra, mas deixei de a idealizar”. (Sa-
ramago, 1998, p. 146).
O afastamento de Portugal, portanto, pelo menos no caso de Eça de Queirós e José Sa-
ramago, parece ter o lado positivo de haver contribuído para o aprimoramento de um olhar
crítico sobre o povo e a terra portugueses, o que constitui uma marca essencial da obra de am-
bos. Além dessa particularidade similar em suas vidas, o que mais poderia ter contribuído para
a formação desse olhar crítico, às vezes ambíguo, dos dois escritores ?
NA BAGAGEM DOS VIAJANTES
7
Outro ponto comum e, aparentemente, de importância para a escrita de Eça de Queirós
e José Saramago, é que ambos têm parte de sua vida ligada à atividade jornalística. Eça até
mesmo faz sua estréia literária na Gazeta de Portugal, com a publicação das Notas marginais
(1866), como faz questão de lembrar na carta a seu editor Ernesto Chardron (Lisboa,
30/05/1883): “Não sei se V. Exa. sabe que eu debutei nas letras por uns folhetins escritos na
Gazeta de Portugal. Esses folhetins ganharam então uma celebridade singular, e fala-se ainda
hoje neles, apesar de que agora são introuvables. Estou com idéia de publicá-los reunidos num
livro.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 856).
Na verdade, o jovem Eça é mesmo o fundador do Distrito de Évora (1867), publicação
em que exerce múltiplas funções, apesar de oficialmente ocupar o cargo de redator. Depois de
alguns meses deixa o jornal, mas continua próximo das redações, pois escreve para a Gazeta
de Portugal. Em 1870, em colaboração com Ramalho Ortigão, produz em forma de folhetim
o romance O Mistério da Estrada de Sintra, para o Diário de Notícias. Ainda em parceria
com Ramalho Ortigão, cria a publicação mensal As Farpas (1871/1872), em que analisa, com
7 O título remete ao livro A bagagem do viajante, de José Saramago.
41
ironia às vezes até agressiva, os acontecimentos da sociedade portuguesa de sua época. Cola-
bora, além disso, em diversos órgãos de imprensa com artigos, cartas sobre atualidades, crôni-
cas e contos.
Não param aí, porém, as ligações de Eça de Queirós com o meio jornalístico. O crime
do Padre Amaro (1875), seu primeiro romance, é publicado inicialmente na Revista Ociden-
tal. Outros também serão publicados em jornais e revistas, como a novela O Mandarim, no
Diário de Portugal (1880) e A Relíquia (1887), na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. A
correspondência de Fradique Mendes (1888-1900) aparece simultaneamente em órgãos da
imprensa do Brasil e de Portugal e A ilustre casa de Ramires (1897-1899) tem partes ofereci-
das aos leitores da Revista Moderna (Paris).
Esse número elevado de colaborações em publicações diversas, segundo o Dicionário
de Eça de Queiroz, teria no entanto uma explicação: “Uma das motivações de Eça para escre-
ver em jornais e revistas é, de facto, a necessidade de obviar à insuficiência dos seus honorári-
os como cônsul com as achegas das colaborações jornalísticas necessidade que se torna
mais imperiosa quando o escritor constitui família.” (Baptista, 1988, p. 325).
Tem-se a impressão, porém, de que nem o motivo de complementar a renda leva o
escritor português a colaborar em jornais e revistas de Portugal e do Brasil. Na verdade, a pai-
xão pelas redações nunca o abandonará, tanto que, durante toda a vida, persegue o sonho de
criar uma revista. Assim, quando consegue fundar a Revista de Portugal (1889), não mede es-
forços para promovê-la, arranjar-lhe colaboradores de qualidade e fazer dela uma publicação
de alto nível, como se pode perceber na entusiasmada carta (Paris, 18/11/1888) em que convi-
da Camilo Castelo Branco a ser um dos colaboradores:
Acima dos partidos, das escolas, dos currículos, de tudo quanto é limitado e transitó-
rio, a Revista de Portugal pretende ser a expressão fiel da nossa atividade na criação
literária, na invenção artística, na investigação histórica, na análise crítica, em tudo
quanto é do domínio do Espírito, ou imaginando ou estudando. (Queirós, 2000, v.
IV, p. 930)
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A parte mais difícil, porém, não é conseguir esses bons colaboradores para a Revista,
mas torná-la financeiramente viável. Nesse ponto também Eça parece incansável, desdobran-
do-se na tarefa de dar sugestões e incentivar os amigos, como se pode perceber na carta ende-
reçada ao secretário da revista, Luiz de Magalhães (Paris, 6/09/1890):É um novo e desespe-
rado esforço que se faz - e em que é necessário, e de boa amizade, que dêem o seu auxílio os
colaboradores e amigos da Revista. Faço pois um apelo tanto ao amigo como ao escritor e
peço-lhe um artigo, dois artigos, três artigos!” (p. 210).
Apesar de todos os esforços dispendidos, durante viagem a Portugal, o autor de A ca-
pital toma conhecimento da situação aflitiva da revista, sem a esperança de uma perspectiva
favorável. A decepção do escritor português com a indiferença dos leitores é revelada então
numa carta à esposa (Porto, 22/03/1890): “Os negócios da Revista não vão bem, nem suponho
que por ela jamais se possa fazer um sou a não ser transformando-a numa Revista popular,
ao gosto do Público, mal educado e superficial. É o que, naturalmente, se fará.” (p. 540).
Dois anos depois do encerramento da Revista, Eça de Queirós tenta revivê-la noutros
moldes, com o nome de O Serão. Chega a escrever a amigos anunciando seus planos, mas o
projeto, apesar de seus esforços, não consegue ir à frente. Essas experiências negativas não
impedem, porém, que o autor colabore ativamente com o brasileiro Martinho Botelho, quando
este edita em Paris a Revista Moderna (1897-1899), para a qual escreve o artigo de apresenta-
ção do primeiro número e produz artigos, contos e capítulos de romances.
Já tocado talvez pelas experiências negativas de tentativas anteriores, Eça não se mos-
tra esperançoso quanto ao futuro da nova publicação. Tanto que escreve ao Conde de Arnoso
(28/07/1897), com uma certa resignação bem-humorada: “Agora, ultimamente, foi um jornal,
uma Revista Moderna de que talvez te chegasse aí um número desgarrado, jornal em que fun-
damos aqui grandes e douradas esperanças, e que uma Direção deliciosamente inepta já irre-
paravelmente estragou.” (p. 322) Das experiências ligadas ao mundo da imprensa, ainda faz
43
parte a publicação dos Almanaques Enciclopédicos (1896- 1897), espécie de jornais anuais
que Eça prefacia, co-organiza e em que publica o conto Adão e Eva no Paraíso.
Talvez essa vivência ligada ao universo das publicações jornalísticas explique as mui-
tas referências a tal espaço que irão pontuar os romances queirosianos, nem sempre revelado-
res de uma visão positiva. Assim, por exemplo, no romance A capital!, o leitor é levado a co-
nhecer aspectos não muito lisonjeiros dos ambientes jornalísticos e literários de Lisboa,
freqüentados pelo personagem Artur Corvelo. Em Os Maias, menção a um projeto frustra-
do de Carlos da Maia e João da Ega, para editar uma Revista de Portugal, publicação educati-
va que se oporia à imprensa representada pelo personagem Palma Cavalão, que exerce com
naturalidade a calúnia, na Corneta do Diabo.
Em algumas páginas, porém, o jornalismo pode ser encarado com uma certa compla-
cência, apesar de todos os aspectos negativos. Assim é que, numa carta escrita a Bento de S.
para dissuadi-lo de fundar um jornal, a personagem Fradique Mendes discorre longamente so-
bre os males das páginas da imprensa, portadoras para ele de “juízos ligeiros”, causadoras de
“vaidade” e “intolerância', produtos essencialmente maléficos” e “velhacos”. No entanto, ao
despedir-se porque já são onze horas, Fradique diz: “ (...) e eu tenho pressa de a findar, para ir,
antes do almoço, ler os meus jornais, com delícia.” (Queirós, 1997, v. II, p. 174).
De outra natureza serão as atribulações pelas quais passa o escritor português José Sa-
ramago, ao dedicar-se às atividades jornalísticas. O fato de viver numa época em que a censu-
ra do governo salazarista é exercida com todo o rigor e a liberdade dos intelectuais é quase
inexistente faz com que o ato de escrever se torne, então, potencialmente perigoso e frustran-
te. Desse tempo nebuloso são as crônicas aparentemente inocentes produzidas para o diário A
capital (1969), que irão ser publicadas com o título Deste mundo e do outro (1971). Saramago
ainda escreve textos para A capital e Jornal do Fundão (1971/1972), que irá depois reunir
como A bagagem do viajante (1973). Publica também As opiniões que o DL teve (1974), com
44
os editoriais escritos para o Diário de Lisboa (1972/1973) e, finalmente, Apontamentos
(1976), reunindo textos que escreve como Diretor-adjunto do Diário de Notícias (1975).
Sobre essa fase de escrita para jornais numa época de escassa liberdade, em que as pa-
lavras nem sempre dizem o que aparentam à primeira vista, o autor faz uma interessante ob-
servação nos Cadernos II (20/08/1996). Relata que uma estudante brasileira envia-lhe um pro-
jeto de pesquisa com a insinuação de que, nas crônicas escritas na época da ditadura, as opi-
niões emitidas não seriam propriamente aquelas do escritor, mas as permitidas pela direção
do jornal. Saramago refuta com veemência essa informação, ao afirmar:
(...) declaro que a orientação política dos dois jornais, a que se expressou nos respec-
tivos editoriais, foi aquela que a minha consciência cívica e as minhas convicções
ideológicas determinaram, sem sujeição a ordens, viessem elas donde viessem, tanto
de dentro como de fora. Nada mais e nada menos. Com todas as consequências ima-
gináveis... ( Saramago, 1999, p. 205)
A espécie de auto-censura que os escritores eram obrigados a fazer nessa época revela-
se em outra confidência feita antes, no Cadernos II (29/05/1996): “Vai para 25 anos, ou
os fez, publiquei no Jornal do Fundão, onde então semanalmente colaborava, uma crónica
com o título “A máquina”. Nela falava de alguém a quem, por causa da censura de então, não
pude dar nome, mas que nomeio agora...” (p. 147). Quem desejar outro registro contundente
do que ocorre nesses anos sombrios pode encontrá-lo também na peça teatral A noite, cuja
ação se inicia na redação de um jornal de Lisboa, na véspera do dia em que eclode o movi-
mento que traz de volta a democracia, conhecido como “Revolução dos Cravos”.
Apesar de todos esse contratempos próprios da época, a professora Maria Alzira Seixo,
conhecida estudiosa da obra saramaguiana, considera essa fase da escrita das crônicas jorna-
lísticas muito importante no processo de “maturação socioliterária e estética do autor”, obser-
vando que nelas estão presentes a qualidade literária do texto e marcas de sua futura ficção
romanesca: (...) a crónica de José Saramago quase sempre se articula em torno desses três
polos: o tempo, o sujeito e a palavra que fabula a experiência que esse mesmo sujeito entrete-
45
ce com o seu tempo.” (Seixo, 1999, p. 17).
Nos Diálogos, é o próprio escritor que afirma ao professor Carlos Reis a importância
da leitura dessas crônicas, para aqueles que desejem conhecê-lo e à sua concepção de mundo:
Acho (o estudioso pode ter outra opinião, perfeitamente legítima e se calhar muito
mais fundada), acho que, para entender aquele que eu sou, que ir às crónicas. As
crónicas dizem tudo (e provavelmente mais do que a obra que veio depois) aquilo
que eu sou como pessoa, como sensibilidade, como percepção das coisas, como en-
tendimento do mundo: tudo isso está nas crónicas. (Saramago, 1998, p. 42)
Embora afirme também que, nesses textos produzidos para jornais haja embriões de
coisas que vieram a ser tratadas mais tarde”, José Saramago faz uma ressalva importante: “No
meu caso, quando eu digo das minhas crónicas que que lê-las porque está tudo, que
acrescentar que está lá tudo, menos o romancista que vim a ser.” (Saramago, 1998, p. 52).
Curiosamente, esse romancista impulso à fase definitiva de sua carreira de roman-
cista com um acontecimento também ligado aos jornais. Em 1975, o escritor exerce o cargo
de Diretor-adjunto do Diário de Notícias, quando ocorre um contragolpe, com o fim de sus-
pender o curso que tomava a Revolução dos Cravos. Uma das conseqüências desse fato é a
sua demissão do jornal, mas ele decide não procurar novo emprego e parte para viver alguns
meses junto a camponeses do Alentejo. Essa experiência do ambiente rural de sua terra ofere-
ce-lhe o material necessário para escrever aquele que seria, segundo Maria Alzira Seixo
(1987, p. 38) “o seu primeiro grande romance”, Levantado do chão.
Ainda que declare nunca se ter considerado um jornalista propriamente dito, por ter
sempre exercido nas redações funções administrativas, José Saramago continua até hoje a co-
laborar em jornais e revistas, quando solicitado, mesmo que às vezes isso o leve a momentos
de dúvida, como revela nos Cadernos II (30/03/1996):
uma semana, mais ou menos, Vicente Verdú pediu-me um artigo para El País, a
publicar por ocasião do aniversário. Estive inclinado a responder-lhe que não tinha
nada para dizer, ou que nestes momentos não me apetecia, ou que perdi a fé na eficá-
cia dos milhares (ou serão milhões?) de artigos que se escrevem diariamente no
mundo, sem falar nas crónicas de rádio e da televisão, que não serão menos. Depois,
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a recordação, ajudada por Pilar, de umas quantas velhas questões que me preocupam
fez-me deitar as mãos ao trabalho... (Saramago, 1999, p. 96)
Nem sempre, porém, o autor deixa-se convencer a colaborar, principalmente se o pedi-
do envolve assuntos ou personalidades com que não tenha afinidades. A respeito de um pedi-
do feito pelo mesmo jornal espanhol (13/08/1996), para escrever um artigo sobre o marechal
António de Spínola, diz: “Respondi-lhes que tempo sempre se arranjaria, mas que de facto,
não estava interessado nem me apetecia..” (Saramago, 1999, p. 201).
Assim, na bagagem desses dois viajantes portugueses, jornais e revistas encontram
sempre espaço de destaque, mesmo porque o mundo e os homens que aparecem diariamente
nas páginas da imprensa serão sempre motivo de inspiração para seus romances. Na verdade,
desde o início da vida literária, quando escrevem o primeiro romance, esses escritores preten-
dem construir, em suas páginas de ficção, uma imagem do que se pretende dizer o “real”.
UM INÍCIO DE CRIMES E PECADOS
Na trajetória literária de Eça de Queirós há, desde os textos jornalísticos da juventude,
um caminho traçado de modo claro e coerente, que acabará por levá-lo à escolha consciente
da carreira de romancista. No texto "Escritas, escreventes, escritores", Beatriz Berrini lembra
que a publicação do primeiro romance do autor, aos trinta anos, é um marco nesse percurso
que já vinha sendo trilhado:
Penso quea de Queiroz se descobre escritor depois de lento amadurecimento. Ao
iniciar a publicação de O crime do padre Amaro, está com trinta anos. Fizera já algu-
mas experiências jornalísticas: folhetins para a Gazeta de Portugal, direcção do Dis-
trito de Évora, colaboração para o Diário de Notícias... (...) Foi somente com a pu-
blicação, primeiro parcialmente na Revista Ocidental e depois em livro de O Crime
do padre Amaro que Eça se sentiu verdadeiramente escritor. Popularidade e fama vi-
rão mais tarde. (Berrini, 1985, p. 107)
É importante observar que esse primeiro romance é publicado em forma de folhetim
(1875). Essa versão publicada não agrada, porém, ao criador do padre Amaro, que não pudera
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fazer a revisão das provas tipográficas (fase da escrita a que dá extrema importância) e o abor-
recimento que esse "desastre literário" causa vai levá-lo a reescrever o texto e publicá-lo em
forma de livro, um ano depois (1876). Nessa segunda edição, o escritor não se limita apenas a
corrigir as provas, mas faz modificações que mudam a própria feição do romance. em
1880 aparece a terceira versão, definitiva, também com correções.
Helena Cidade Moura, ao introduzir a Edição Crítica de O crime do padre Amaro,
mostra que essa busca pelo texto apurado fazia parte da personalidade do escritor, mas somen-
te ela não explica o retorno, tantas vezes, ao livro. Lembra ainda que a edição de 1875, consi-
derada ainda "rascunho", já possuía "pelo menos quatro anos de existência", pois o próprio
Eça revela que o lera a amigos, em 1871. Helena Cidade Moura indaga: “Seria a "fatal ten-
dência para rever livros velhos", de que se queixa a Ramalho, ou a consciência do valor desta
sua obra que o levou a acarinhá-la?” (Moura, 1964, p. VIII) .
Esse desvelo do escritor pelo seu primeiro romance fica evidente também na forma
como acompanha e estimula sua trajetória, mesmo de longe, mostrando-se sempre disposto a
reelaborar e valorizar o seu texto. Vários exemplos disso aparecem na Correspondência,
como no caso da proposta feita ao editor Ernesto Chardron (Newcastle, 04/04/1878);
Que me diz duma edição do Crime do padre Amaro ilustrada? (...) Eu aumentaria e
corrigiria e amplificaria o romance: tenho mesmo um exemplar onde muitas coi-
sas novas são apontadas: - talvez não fosse má especulação – e decerto para mim era
agradável ver o Pe. Amaro com pinturas: pense nisso. (Queirós, 2000, v. IV, p. 828)
Dez anos mais tarde e escritor consagrado, em carta a Jules Genelioux (Bristol,
12/09/1888), Eça lamenta o baixo preço proposto pelo editor para a terceira edição do livro e
desabafa: “J'ai tant travaillé à ce livre!” (Queirós, 2000, v. IV, p. p. 861). Mesmo em cartas
pessoais manifesta uma certa predileção pelo seu primeiro romance, como no comentário feito
a Oliveira Martins ((Paris, 28/01/1890): “A propósito de romances: o Primo Basílio, esse fait-
Lisbonne, foi traduzido em inglês, alemão, sueco e holandês, nestes últimos seis meses! Que
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atroz injustiça para o pobre Padre Amaro!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 264).
Um detalhe interessante a respeito desse primeiro romance, segundo o queirosiano
Carlos Reis (2000, p. 15-16), é que por tantas vezes Eça de Queirós esteve debruçado em suas
páginas no esforço de aprimorar a escrita, que nas diferentes versões pode-se perceber várias
tendências literárias da época. Assim, a primeira versão elabora, na figura do Padre Amaro,
uma personagem de conotações românticas, ainda dividida entre culpas e desejos.
a segunda edição marca o início da fase naturalista do autor, com Amaro sendo le-
vado a agir principalmente pela influência da educação e do ambiente em que se encontra in-
serido, enquanto na terceira e definitiva versão esses aspectos tornam-se atenuados, com mu-
danças relativas a situações e personagens. No entanto, embora com o evoluir da carreira de
romancista, Eça se afaste gradativamente dos ideais do realismo/ naturalismo que esse livro
ilustra, parece ter conservado sempre, pelo seu primeiro romance, uma relação de afetividade.
Já o escritor José Saramago publica seu primeiro livro, Terra do Pecado, quando conta
apenas vinte e cinco anos, em 1947. Por essa época, em Portugal, está em voga o movimento
neo-realista, cujos traços podem ser percebidos nas obras então escritas por autores como Al-
ves Redol, Vergílio Ferreira, Fernando Namora e Miguel Torga, entre outros. Por outro lado,
também se forma, nesse ano, o Grupo Surrealista de Lisboa, em que aparecem nomes como
Cesariny, O' Neill, António Pedro e José-Augusto França.
O primeiro romance de Saramago conta a história de uma viúva que, segundo o narra-
dor,lutava desesperadamente com os seus pesadelos e os seus fantasmas” e, apesar da trama
revelar alguma coloração social, esse aspecto não tem papel tão relevante como na de outros
autores ligados à ficção neo-realista da época. Sem se ligar, portanto, a uma das tendências
que marcam presença nesse tempo, José Saramago faz uma estréia que passa praticamente
despercebida nos meios literários.
Talvez por esse motivo, publica depois apenas livros de crônicas e poesias e mantém-
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se em silêncio como romancista durante trinta anos, retomando a escrita desse gênero com
a publicação do Manual de pintura e caligrafia (1977). O professor Carlos Reis, na Introdu-
ção dos Diálogos, mostra que Saramago tem uma atitude diferente daquela de vários autores
portugueses, em relação ao seu texto inicial. Assim, segundo informa Carlos Reis, o próprio
autor classifica seu romance como “o livro de uma inexperiência vital” e
No esquecimento deixou-o, de facto, o escritor por muitos anos, recusando-se a fa-
zer o que outros, com mais ou menos dificuldade e drama íntimo, fizeram: voltar ao
texto, refazê-lo, republicá-lo e relançá-lo no mundo, para viver uma vida nova. Mui-
tos assim o procederam: Eça, antes de mais, com o seu Crime do Padre Amaro, es-
crito em três versões no lapso de menos de dez anos... (Reis, 1998, p. 12)
A impressão que se tem, então, é de que o escritor se distancia desse momento inicial
como de uma fase superada em sua trajetória literária. Assim, na entrevista nos Diálogos aler-
ta os leitores para que não se conclua que ele tenha se preparado desde jovem para ser escritor
e afirma: (...) acontece que eu não me preparei: aquele senhor escreveu aquele livro, mas
não com a consciência de que se tinha preparado para ser escritor.” (Saramago, 1998, p. 35).
Uma revelação curiosa que o autor faz sobre o livro, na mesma entrevista, (p. 40) é
que o título inicial seria A Viúva, mas o editor imaginou que esse não era um título suficiente-
mente atraente e sugeriu um outro mais expressivo. Então, segundo Saramago, como um jo-
vem iniciante que queria “ver o livro fora”, aceitou o título Terra do Pecado. Outra revela-
ção interessante é que, na história dessa mulher que perdeu o marido e se angustia na tentati-
va de refazer a vida, “(...) uma criada que se chama Benedita e que vem em linha recta da
Juliana d'O primo Basílio, quer dizer, é o mesmo tipo de pessoa.” (Saramago, 1998, p. 40).
Após essa estréia não muito promissora, por muito tempo o autor recusa-se a ver seu
primeiro romance reeditado e não se mostra disposto a ocupar-se dele outra vez. Na verdade,
parece mesmo não incluí-lo quando faz um inventário de seu trajeto como romancista e elabo-
ra planos para o futuro, no Cadernos II (11/07/1996):
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Mas estes oito romances publicados em menos de vinte anos acostumaram-me mal
(não precisei da opinião da crítica para saber que vim crescendo), levaram-me a crer
que isto não pararia, ou quando parasse a vida. E agora, com alguma vida ainda
por diante (espero-o, ao menos), encontro-me com uma pedra no meio do caminho:
“Depois do Ensaio, quê? (Saramago, 1999, p. 169)
Porém, no mesmo Cadernos II (02/01/1997), o escritor português informa que, apesar
de suas resistências, a Editorial Caminho vai reeditar Terra do Pecado. Solicitado a escrever
uma Introdução para o livro, Saramago prefere chamá-la, sugestivamente, de Aviso. Ali, pro-
cura destacar a inexperiência juvenil por trás da escrita desse romance, ao revelar que “Não
sabe dizer como depois lhe veio a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que
de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada e, menos ainda, se existe o menos que
nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar.” (Saramago, 1999, p. 407).
Ao finalizar o Aviso, o hoje renomado escritor ironiza a si próprio e às reviravoltas da
vida, quando diz: “Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao
autor de A viúva” (Saramago, 1999, p. 408). Embora Maria Alzira Seixo concorde com a pou-
ca representatividade do romance na obra do escritor, essa opinião pouco favorável a respeito
desse livro da juventude, não é, porém, compartilhada por Carlos Reis, que afirma:
Mais de meio século depois de um romance que praticamente não teve vida própria,
percebe-se que esse projecto foi lentamente sedimentado e solidamente enraizado,
para poder afirmar a sua pertinência e dar vida a outros romances: aos que não lem-
bram expressamente Terra do Pecado, mas que talvez não pudessem existir sem ele.
(Reis, 1998, p. 15)
Por essa trajetória literária de Eça de Queirós e José Saramago pode-se perceber, de
toda maneira, que um escritor, de modo geral, não surge de repente, mas cumpre uma rota que
vai sendo sedimentada pouco a pouco; e no caminho por que tem de passar, antes que a matu-
ridade de sua escrita seja enfim alcançada, devem cruzar-se experiências de muitas leituras e
as colaborações e críticas de muitos leitores.
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LEITURAS E LEITORES
Na época em que vive Eça de Queirós, a influência da cultura francesa é avassaladora
e o escritor, que se coloca sempre participante dos acontecimentos que o cercam, não poderia
fugir a esse fato. No entanto, o autor de Os Maias não sofre passivamente essa influência, e
em carta a Oliveira Martins (Angers, 10/05/1884), faz uma espécie de autocrítica de sua reve-
rência pelos valores da pátria de Balzac:
Eu mesmo não mereço ser excetuado da legião melancólica e servil dos imitadores.
Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo francês - ex-
ceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa,
num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor de bacalhau de cebolada. Em
tudo o mais, francês, de província (Queirós, 2000, v. IV, p. 236)
Além disso, Eça é capaz de confessar, na mesma carta a Oliveira Martins, que só atra-
vés da leitura de seus ensaios lhe vem o parco conhecimento da História e cultura portugue-
sas: “Só desde que tu escreveste a História de Portugal é que eu sei que existiu, antes do Fon-
tes, uma pátria portuguesa com os seus reis, os seus costumes, uma literatura telle quelle, uns
heróis, um ideal comum, e um feitio próprio.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 236).
O romancista não deixa de ressaltar, porém, que essa postura não é um pecado apenas
seu, mas é comum à elite portuguesa. Como autor sempre empenhado em dar de sua terra um
retrato fidedigno, deplora os efeitos que tal alheamento da realidade possa causar à sua escrita
em termos de credibilidade: “Como é feito por dentro o português de Guimarães e de Chaves?
Não sei. O Padre Amaro é mais adivinhado do que observado.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 236).
É compreensível, portanto, que as preferências literárias do criador d'O mandarim re-
caiam sobre autores franceses, antes de se voltarem para os próprios escritores de sua terra.
Entretanto, por influência, talvez, de sua função como cônsul na Inglaterra, acrescenta aos
seus prediletos o nome de Charles Dickens. Numa carta a Silva Pinto (1876?), em que lhe
agradece um artigo sobre O crime do padre Amaro, o escritor faz uma espécie de declaração
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dos nomes cuja obra admira:
(...) você classificou admiravelmente o meu trabalho, filiando-me nos romances de
realismo psicológico. Balzac, com efeito, é o meu mestre... ele é com Dickens, certa-
mente, o maior criador na arte moderna: mas é necessário não ser ingrato para com a
influência que tem no realismo Gustave Flaubert – o seu estilo, a sua profunda ciên-
cia dos temperamentos tem feito na arte contemporânea uma revolução importante.
Eu procuro filiar-me nestes dois grandes artistas: Balzac e Flaubert. (Queirós, 2000,
v. IV, p. 916)
Além desses autores a quem aprecia, também o romancista Victor Hugo é lembrado
por Eça de Queirós como opai espiritual” da sua geração. Em carta a Mariano Pina (Bristol,
24/05/1885), por ocasião da morte do escritor francês, escusa-se por não se sentir emocional-
mente capaz de produzir um texto isento sobre ele: “Eu, como V. Sabe, sou um Hugólatra: te-
nho a paixão do mestre: e nesses dias depois da morte dele, não me sentia capaz de o criticar,
apenas deitar flores sobre o seu caixão.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 177).
Tais preferências, certamente, deixam marcas na escrita do autor; elas são apontadas
ora como um traço positivo, ora como ponto negativo de sua obra, de acordo com as tendênci-
as dos estudiosos. Segundo o pesquisador Alfredo de Campos Matos, no Dicionário de Eça
de Queiroz, essas influências são nomeadas pelos críticos com títulos tão diversos, como:
“Fontes, reminiscências, recriações, pastiches, plágios, e, mais modernamente, intertextualida-
de....” (Matos, 1988, p. 527). Tais variações são vistas com naturalidade pelo pesquisador,
que assim completa seu comentário:
Não admira que um sem-número de textos queirosianos de carácter jornalístico e fic-
cional demonstrem reminiscências, mais ou menos directas, mais ou menos exten-
sas, das leituras que fez de Victor Hugo, Gautier, Flaubert, Renan, Zola e outros es-
critores como Alphonse Karr e Jules Verne, por forma a dar origem a acusações de
“plágio”, ora feitas com espírito condenatório, e segundo critérios de compreensão
literária usualmente limitadas, ora com uma visão mais tolerante .... (Matos, 1988, p.
526)
Além dessas preferências em matéria de autores, Eça de Queirós parece um leitor de
horizontes diversificados, que além dos clássicos, às vezes busca outro tipo de leitura. Assim,
solicita por carta a Carlos Mayer (Rossio, 26), que lhe envie um romance divertido (capa e
53
espada)” que bem com nevralgia (p. 397) ou ao Conde de Arnoso (Paris, 20/07/1889), que
lhe remeta os grossos livros” da Portugaliae Monumenta Historica que irão ajudá-lo nas
pesquisas para a escrita d'A Ilustre Casa de Ramires. (Queirós, 2000, v. IV, p.341).
Como se pode perceber, pela leitura das suas cartas e dos textos ficcionais e jornalísti-
cos, Eça de Queirós recebeu uma formação cultural de cunho aristocrático, tendo sempre vivi-
do cercado de livros e literatos, num ambiente propício e condizente à formação de escritor,
embora se possa notar que só na maturidade passe a valorizar e defender, com mais empenho,
os escritores e a cultura de Portugal. Além disso, tem com os amigos intelectuais, durante toda
a vida, um permanente diálogo sobre os mais variados temas culturais e, após o casamento,
conquista mesmo na esposa Emília uma confidente de seus escritos e de suas leituras.
José Saramago, por outro lado, é criado num ambiente humilde, tem avós iletrados e
refere-se, em suas memórias de infância, a apenas um livroseu”, adquirido pela mãe quando
ele tinha doze ou treze anos. No entanto, revela ter sempre sentido atração pelos livros. Assim,
quando aluno de curso técnico numa escola pública e exercendo a profissão de serralheiro,
freqüenta, à noite, uma biblioteca popular. A importância atribuída à leitura na sua formação
pode ser comprovada, porém, pelo depoimento nos Diálogos a Carlos Reis:
Eu tenho ideia e isto é uma banalidade: será mais uma de que ninguém escreve
se não leu. E, embora por circunstâncias da minha vida familiar, eu não tivesse sido
contemplado com uma biblioteca à nascença, ler foi uma coisa que começou quando
eu era garoto (seis, sete anos) e comecei a ir à escola. Lembro-me muito bem que o
meu pai comprava ou melhor, davam-lhe o Diário de Notícias, ia para casa e le-
vava o jornal, estava eu a aprender a ler na Escola Martens Ferrão: quase diria, en-
tão, que aprendi a ler com o Diário de Notícias... (Saramago, 1998, p. 34)
Uma passagem na vida do escritor, ligada ao fascínio pelos livros, está registrada nos
Cadernos II, na referência a uma carta de Madalena O'Neill, recordando-lhe uma época em
que ele, então um senhor “muito alto e muito magro, com uns óculos de aro castanho”, orga-
niza os livros da biblioteca do pai dela, encantando a filha criança. Pelo seu alheamento de en-
tão, desculpa-se o escritor, justificando-o pela fascinação que o espaço dos livros lhe causava:
54
“O que ele queria era estar sozinho na biblioteca ente os velhos livros, a respirar o cheiro do
papel antigo, a carneira das encadernações, o pó dos tempos.” (Saramago, 1999, p. 180).
Ainda nos Diálogos, o autor faz uma certa restrição aos textos lidos, talvez de forma
um tanto alheatória, na juventude, pois afirma que Terra do Pecado “(...) resulta do seguimen-
to de leituras mal arrumadas e mal organizadas” (p. 35) e que a essas leituras seguiram-se ou-
tras, que são as que importam para o escritor que hoje é. Revela ainda que, “como toda
gente”, leu Eça e Camões e ainda jovem se impressionou com os versos de Fernando Pessoa,
especialmente os do heterônimo Ricardo Reis. Aponta, entretanto, como sua leitura de “acção
profunda”, o livro Húmus, de Raul Brandão.
No discurso que profere por ocasião de homenagem prestada ao prêmio Nobel em Lis-
boa (14/10/1998), Carlos Reis ressalta a longa aprendizagem de escrita de Saramago. Referin-
do-se à herança literária do escritor, Reis aponta três presenças deforte carga matricial”: Pa-
dre António Vieira, que cultivou uma escrita em que cada palavra, mesmo a mais insignifi-
cante, tem seu lugar próprio”; Almeida Garrett, que, inovador, criou a língua literária moderna
e valorizou a terra portuguesa como motivo e como tema” e Eça de Queirós, “pela via de
uma ironia crítica que a muitos desconcertou e desconcerta ainda.” (Reis, 1998, p. 169-170)
É o próprio José Saramago, porém, que nos faz a revelação definitiva sobre autores e
leituras de sua predileção, nos Cadernos II (21/07/1996). Segundo ele, quando solicitado por
uma revista espanhola a preencher, com nomes de autores e os motivos de sua preferência,
uma “árvore genealógica literária”, assim descreve e explica a sua escolha:
A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque,
como escrevi no Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele
vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que
quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma
casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era;
Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul
Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser génio para escrever um livro ge-
nial, o Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta
por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero;
Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luís Borges, porque
inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a
55
triste. (Saramago, 1999, p. 179)
Hoje, o menino que na infância teve poucas oportunidades de leituras literárias, vive,
em sua casa de Lanzarote, rodeado pela presença desses autores de sua predileção e pode en-
tregar-se à sua antiga paixão pelos livros. Na esposa Pilar, jornalista (de quem Saramago usa
mesmo alguns escritos no Cadernos II), tem uma leitora atenta e crítica de seus textos e uma
parceira para discussões literárias, além de tradutora de seus livros para o espanhol. Assim
como acontecia com Eça de Queirós, tem com outros autores contemporâneos, portugueses e
estrangeiros, relacionamentos que vão da amizade fraterna e admiração à hostilidade declara-
da, como confessa às vezes nas anotações de seus diários.
Nessa caminhada dos escritores pelos “bosques da ficção” alheia, portanto, vai-se enri-
quecendo a bagagem desses viajantes das letras portuguesas. Essas leituras vão fazer parte da-
quela herança que vai ajudar a criar, depois, uma forma de escrita que constrói um espaço pró-
prio e marca, para os seus leitores, uma maneira singular de ler o mundo e os homens.
ESSE OFÍCIO DE ESCRITOR
8
O que significa ser escritor em Portugal, na segunda metade do século XIX, e como se
faz a trajetória literária de Eça de Queirós?
Ao iniciar a carreira de romancista, quando termina de escrever O crime do padre
Amaro, o escritor dirigira o Distrito de Évora, publicara em parceria com Ramalho Orti-
gão As farpas e, em folhetim, no Diário de Notícias, O mistério da Estrada de Sintra, não sen-
do, portanto, desconhecido nos meios literários. Além do mais, tem bom relacionamento nos
círculos intelectualizados de Portugal. Isso, porém, não impede que, ao tentar a publicação do
romance, tenha de solicitar o empenho de Ramalho Ortigão e até se disponha a aceitar condi-
ções não muito vantajosas, como revela a carta ao amigo (Newcastle, 17/05/1875):
8 O título remete ao livro Esse ofício do verso, de Jorge Luis Borges.
56
V. lhe poderia escrever renovando em meu nome a proposição seguinte: vender-lhe a
edição do Padre Amaro, a tanto o volume. Este tanto, ele que o marque. - porque
desde que eu estou disposto a abstrair neste mau negócio de toda a idéia de ganho
o tanto é-me indiferente contanto que não seja um tanto vil e humilhante. (Queirós,
2000, v. IV, p. 113)
É interessante notar que, nessa carta, o autor de A ilustre casa de Ramires revela
preocupação com o leitor, e nesse sentido instruções ao amigo sobre o preço do livro a ser
negociado: “Neste ponto V. é melhor juiz que eu: V. decidirá, com zelo pelo amigo e com be-
nevolência pelo público” (Queirós, 2000, v. IV, p. 113).
Também são bastante conhecidas as opiniões que Eça revela sobre o leitor, ao escre-
ver uma década depois a carta-prefácio (p. 1791) para o livro Azulejos, do Conde de Arnoso
(Bristol, 12/06/1886). Mostra então uma visão romântica, mas não pragmática e até mesmo´
um pouco preconceituosa do valor desse novo consumidor de textos, trazido pela democrati-
zação da leitura e pelas transformações por que passa o mundo. Nessa carta, ele lamenta a
perda do antigo leitor aristocrata da época de Voltaire, uma pessoa culta e de gosto refinado,
que ocupava seus momentos de ócio a ler, e que se chamava 'o Leitor', muito diferente da
multidão rude do seu tempo, que ele chama de “o Público”.
O autor de Os Maias acusa então a Revolução Francesa e a Industrialização por essa
substituição do indivíduo pelas multidões e mostra como decaiu a qualidade dessa relação en-
tre aquele que escreve e aquele que o lê:
Foi então que se sumiu o Leitor, o antigo Leitor, discípulo e confidente, sentado lon-
ge dos ruídos incultos sob o claro busto de Minerva, o Leitor amigo com quem se
conversava deliciosamente em longos, loquazes Proêmios e em lugar dele o homem
de letras viu diante de si a turba que se chama o Público, que lê alto e à pressa no ru-
mor das ruas. (Queirós, 2000, v. III, p. 1792-1793)
Mesmo esse criticado mas providencial aumento do público leitor, entretanto, e um nú-
mero fiel de leitores (também no Brasil) não é capaz de impedir que Eça de Queirós se debata,
durante toda a vida, com problemas financeiros. Ressalte-se ainda que ele não se pode dar ao
luxo de tornar-se escritor profissional, pois exerce até a morte o cargo de cônsul de Portugal e,
57
mesmo assim, deixa a família em difícil situação financeira. A respeito desse assunto, na
sua correspondência variados exemplos de queixas e solicitações de dinheiro a amigos, como
acontece desde a carta de 1871, a Ramalho Ortigão; “Não sei se V. tem algum dinheiro
farpal: se tem peço que me mande algum, pouco, o bastante para um bilhete do caminho de
ferro, nada mais...” (Queirós, 2000, v. IV, p. 97).
Nem a passagem dos anos é capaz de trazer melhorias à situação financeira do escritor,
pois em outra missiva ao amigo Ramalho (Newcastle, 17/01/1978). Eça queixa-se do efeito
maléfico das finanças precárias até na sua produção literária, ao contrário do que acontecer
à escrita de outros autores: “As dívidas serviram a Balzac para aprofundar o mundo bancário,
agiota, notário e forense; mas eu nem tenho essa consolação, que as dívidas me tragam a reve-
lação de tipos essenciais: elas servem para me envelhecer e me bestificar.” (Queirós, 2000,
v. IV, p. 118).
Mesmo na ocasião do casamento, o escritor tem de recorrer novamente ao amigo Orti-
gão (Porto, 14/01/1886) e assinar letras de empréstimos para iniciar a nova vida “Como você
compreende, o meu desejo é ter algum numerário em mão no momento de casar: tudo está
pois bem, se o resto da soma se puder obter para o fim do mês, que é a data provável do meu
casamento”. (Queirós, 2000, v. IV, p. 155). Um ano depois (Porto, 01/02/1886), confidencia
ao amigo que recebera adiantamento do editor Genelioux, que, entretanto, não é bastante para
que ele não precise assinar uma letra junto a credores.
Também em várias cartas à esposa, nota-se a preocupação do autor com a questão fi-
nanceira. Assim, pede-lhe sempre que seja comedida em matéria das despesas domésticas e
que procure apenas casas de preço razoável para morar ou alugar para temporadas de férias.
No entanto, apesar desses cuidados, parece nunca ter conseguido viver em paz com as finan-
ças, tanto que o governo de Portugal sente-se na obrigação de conceder uma pensão especial à
viúva Emília, após a morte do escritor.
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A essas preocupações financeiras, o autor acrescenta ainda as angústias que o próprio
ofício de escrever suscita e, desde a época da produção do Padre Amaro, Eça toma Ramalho
Ortigão como confidente de suas dúvidas, como na carta (Newcastle, 03/11/1877), em que
não com perspectivas otimistas o futuro de sua criação literária: “E o que é triste é que me
desespero por isso. Nunca hei-de fazer nada como o Pai Goriot: e [se] Você soubesse a me-
lancolia em tal caso, da palavra nunca!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 117).
Outro motivo de angústia para Eça de Queirós são as provas que antecedem a publica-
ção dos livros, período em si bastante tenso, mas agravado pelo extravio dos originais, de
mensagens que se perdem, de cobranças às vezes não muito polidas por parte dos editores, em
função de atrasos. Em carta a Ernesto Chardron (Angers, 7/02/1880), pode-se perceber o afli-
tivo estado de espírito em que se encontra o escritor: “Essa história das provas é atroz; atroz e
inexplicável; que se tivesse perdido um maço compreendo, mas todos os maços corresponden-
tes a seis folhas de impressão é extraordinário!! para mim é uma maçada; quando eu julgava
que o livro estaria já impresso ter ainda de rever provas!!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 849).
Em carta enviada a Ramalho Ortigão poucos dias após esse acontecimento, Eça pede
ao amigo que vá ao Diário de Portugal, para exigir explicações aos dirigentes do jornal sobre
o paradeiro de três capítulos de Os Maias enviados e dos quais, apesar de insistentes pedidos,
não tivera notícias. Para completar a tragédia, informa o escritor ao amigo que não fizera para
si cópia dos capítulos e completa: “Pode Você imaginar, o espanto e a melancolia, em que es-
tou – vendo que o ter sacrificado a Capital, os interesses que me fazia o Chardron e quase um
ano de trabalho, incessante – recebo em paga, desconsideração, desprezo e destruição de mui-
tas esperanças. É duro.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 140).
Infindáveis angústias têm como causa também, para Eça de Queirós, o fato de lançar-
se a escrever diversos trabalhos ao mesmo tempo, talvez levado por motivos financeiros, tal-
vez impelido pela própria feição de seu espírito inquieto. Além do mais, parece esforçar-se
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para cumprir zelosamente as obrigações familiares, manter contatos com os amigos e honrar
as funções como cônsul de Portugal, ainda que esse acúmulo de responsabilidades pareça pre-
judicar sua saúde, já bastante frágil.
Mesmo durante as viagens, Eça de Queirós não consegue gozar de tempo livre. Assim,
em carta à esposa, durante visita a Portugal (Porto, 16/04/1890), dá-lhe conta do pouco tempo
que tem tido para escrever os inúmeros textos a que se dedica simultaneamente: “Esses traba-
lhos são deixar, agora, quase todas as Minas traduzidas, muito Fradique, muitas notas de mês
e artigos com pseudônimos! Além disso, arranjar, emendar, polir os artigos alheios!” (Quei-
rós, 2000, v. IV, p. 548). Mesmo quando vive o que ele chama de vida de petit bourgeois reti-
, continua com seus múltiplos afazeres, como se queixa na carta ao historiador Oliveira
Martins (Paris, 26/04/1894): “Faço também literatura, uma literatura complicada, porque, com
o vício de misturar trabalhos, acho-me envolvido na composição, revisão e acepilhação geral
de cinco livros!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 285).
Ainda em carta ao brasileiro Eduardo Prado (Paris, 15/08/1898) justifica-se pela recu-
sa em acompanhá-lo numa viagem, pela quantidade de tarefas a que tem de se dedicar: “ (...) o
negócio do Ramires, que os meus editores, muito prejudicados com as pavorosas demoras da
Cidade e as Serras e Fradique, me suplicam de findar, e rever, e ter preparado para livro, an-
tes de ele passar todo na Revista. Se estes dois negócios, além dos outros vinte, ...” (Queirós,
2000, v. IV, p. 436).
Essel acúmulo de tarefas não significa, porém, no caso do autor de Os Maias, que ele
deixe de devotar-se com zelo e carinho a reescrever, melhorar e polir os seus textos. Desde o
seu primeiro livro, O crime do padre Amaro, pode-se perceber esse seu cuidado em rever os
escritos, pois são três edições diferentes, até chegar àquela que será a definitiva. Tal esforço
leva o autor a desabafar em carta ao editor Chardron (Newcastle, 12/10/1878): “A revisão do
Pe. Amaro dá-me o trabalho de escrever um livro novo!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 836).
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Tal cuidado do autor com os seus escritos não se limita apenas aos romances, porém.
Mesmo um conto é para ele motivo de trabalhosa reescrita, como confessa na carta a Luiz de
Magalhães (Paris, 21/10/1891): “Através de tudo tenho estado a rever o Conto – operação que
é sempre para mim longa e laboriosa. É quase uma recomposição.” (Queirós, 2000, v. IV, p.
219) É também para o diretor da Revista de Portugal que ele escreve a respeito de um artigo
(Paris, 03/01/1895), motivo de cuidadosa revisão:
O que mando é o primeiro e informe jato, quase apenas um montão de notas e tra-
ços, para compor o artigo. Isso que vai não o reli sequer. Deve haver muito a cortar,
alterar, transpor, polir. Procurarei em todo o caso por amor da rapidez, e conclusão
da obra, emendar o menos que for possível. (Queirós, 2000, v. IV, p. 228)
É porém na carta ao Conde de Arnoso (Paris, 21/07/1897) que Eça a mais perfeita
explicação para esse incessante trabalho a que tem de se sujeitar: “O meu mal é o amor da
perfeição - este absurdo afã de querer fazer as coisas mais corriqueiras, sempre de modo mais
completo e brilhante.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 321).
Talvez seja esse empenho, que sempre o faz esforçar-se para cumprir bem tudo aquilo
a que se propõe realizar, que leve Eça de Queirós a sentir-se injustiçado, às vezes, no trata-
mento que recebe dos seus editores. Assim, em carta-resposta a Ernesto Chardron (Angers,
20/10/1879), que lhe cobrara com rispidez o envio da versão revisada d'O crime do padre
Amaro e os capítulos restantes do romance A capital, o escritor inicia lamentando que o editor
não use, para com ele, de um tratamento mais cortês: “E como me paga V. Exa.? Tratando-me
como se eu fosse um escrevinhador assalariado que deve produzir tantas páginas por dia, sob
pena de ser repreendido!” (Queirós, 2000, v. IV, p. 845).
Também em relação à crítica, o autor Eça sente-se, às vezes,tima de injustiça, como
quando reclama em carta a Ramalho Ortigão (Newcastle, 17/05/1875) pelo silêncio em rela-
ção ao Padre Amaro. Com extrema elegância, responde através de carta (Newcastle,
29/06/1878), à crítica de Machado de Assis ao seu romance O primo Basílio: Apesar de me
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ser em geral adverso, quase severo, e de ser inspirado por uma hostilidade quase partidária à
Escola Realistaesse artigo todavia pela sua elevação e pelo talento com que está feito honra
o meu livro, quase lhe aumenta a autoridade.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 923).
De modo geral, Eça de Queirós sente-se inclinado a aceitar as críticas, parece refletir
sobre elas e até mesmo levá-las em conta quando reescreve os romances (como se pode perce-
ber no caso das reedições do padre Amaro, em que parece ter dado ouvido às observações de
Machado). Em carta a Teófilo Braga (Newcastle, 12/03/1878), que lhe escrevera fazendo co-
mentários favoráveis sobre O primo Basílio, o próprio autor aproveita a ocasião para fazer
uma interessante análise do romance e de seus personagens. Lembra também a contribuição
que as opiniões alheias podem trazer ao escritor, embora se queixe da atitude de críticos por-
tugueses em relação aos seus romances:
Alegra-me que Você queira escrever alguma coisa sobre o Basílio: a sua opinião, pu-
blicada, daria ao meu pobre romance uma autoridade imprevista. Dar-lhe-ia um di-
reito de existência: e de todos os defeitos, faltas ou erros que Você notar tomarei
cautelosamente nota. Eu tenho a paixão de ser leccionado: e basta darem-me a en-
tender o bom caminho para eu me atirar para ele. Mas a crítica, ou o que em Portu-
gal se chama a crítica, conserva sobre mim um silêncio desdenhoso. (Queirós, 2000,
v. IV, p. 919)
Algumas vezes, porém, o espírito do escritor de As farpas leva-o a responder com iro-
nia às críticas recebidas, como quando refuta, por exemplo, no jornal O tempo (08/02/1889),
as acusações de Bulhão Pato, que se queixa de ter sido caricaturado no personagem Alencar
de Os Maias; ou quando comenta, na carta a Mariano Pina (Londres, 27/07/1888), a condena-
ção que lhe faz o contista Fialho de Almeida, pelo mesmo livro, que considera desrespeitoso
para com Portugal:
E condenar um escritor, como caluniador e maldizente, porque ele revela os ridícu-
los do seu país - é declarar maldizente toda a literatura de todos os tempos, que toda
ela tem tido por fim fazer a crítica dos costumes, pelo drama, a poesia, o romance e
até o sermão! Aliquando dormitat bonus Fialhus. (Queirós, 2000, v. IV, p. 187)
Outra polêmica envolvendo o escritor e as opiniões de outros intelectuais sobre seus li-
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vros refere-se ao episódio do concurso literário instituído pela Academia de Lisboa em 1887.
Eça inscreve A relíquia para concorrer como candidato ao prêmio, mas não obtém sucesso.
Em longa carta a Mariano Pina, publicada na primeira página do jornal O Repórter
(27/04/1888), concorda com a opinião de que o romance é “um livro malfeito”, mas discorda
com veemência do parecer vago de Pinheiro Chagas: “O fato é, caro Pina, que Pinheiro Cha-
gas no seu relatório não dá, com indizível assombro meu, as razões honrosas e altas. Antes
pelo contrário! Apresenta, para repelir a Relíquia, razões estranhamente comezinhas e miudi-
nhas, rasteiras e grosseiras...” (Queirós, 1000, v. III, p. 1702).
Desse modo, a visão que às vezes temos de que a vida do escritor poderia ser mais se-
rena nos tempos antigos, não pode ser comprovada, pelo menos no que se refere a Eça de
Queirós. E talvez seja por isso que ele, com a sua conhecida ironia, em meio às atribulações
que sofre com a Revista Moderna, desabafe em carta ao amigo Conde de Arnoso
(21/07/1897), sobre a escolha de sua carreira de escritor:
Enfim, meu filho, a luta pela vida! Luta bem vã, quando se empreende com uma
pena na mão, em língua portuguesa. Todo o meu erro foi, quando era moço e forte,
não estabelecer uma mercearia, para o que aliás tenho jeito e gosto. Estava agora
gordo e sossegado como o toicinho que cobriria o meu balcão (...) Mas enfim, agora
é tarde para chorarmos sobre carreiras erradas... (Queirós, 2000, v. IV, p. 322)
o escritor José Saramago, no seu depoimento a Carlos Reis, mostra-se muito claro
ao definir o momento em que encontra seu caminho como escritor, dono de um tipo de texto
muito peculiar e nem sempre bem recebido: “Eu acho que me encontrei num certo momento
da vida e provavelmente encontrei-me no Levantado do chão, que é um livro que foi escrito
daquela maneira pelo facto de eu ter estado no Alentejo e ter ouvido contar histórias.” (Sara-
mago, 1998, p. 42). Deve-se destacar, além disso, que essa espécie de “revelação” acontece
no momento de sua vida em que ele decide afastar-se da carreira jornalística, para tentar dedi-
car-se somente a escrever romances.
Saramago revela, também, que apesar de ter escrito romances, poemas, contos e
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crônicas, tivera apenas “momentos” de escritor, pois não se vira ainda como escritor, o que
vai ocorrer quando percebe a presença de alguém que responde à sua escrita:
Encontro-me escritor quando, de repente, a partir do Levantado do Chão, mas sobre-
tudo a partir do Memorial do Convento, descubro que tenho leitores. E foi a existên-
cia dos leitores (de muitos leitores) e de certo modo também uma pressão não quan-
tificável, mas que eu poderia imaginar que resultava do interesse desses leitores, que
me levou a continuar a escrever. (Saramago, 1998, p. 44)
Talvez seja por esse motivo que, nos Cadernos e Diálogos, podemos encontrar o auitor
sempre atento ao que pensam os seus leitores, um escritor que abre mesmo um espaço para a
opinião deles, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis aos seus textos. Assim, ao fazer algu-
mas reflexões e antes de transcrever a carta de uma leitora, (02/01/1997), Saramago afirma
que “(..) o autor mais afortunado será aquele que, graças a uns quantos leitores atentos que lhe
vão comunicando as suas impressões de leitura, está continuamente em processo de aprendi-
zagem sobre a sua própria obra.” (Saramago, 1999, p. 277).
Para construir sua obra, no entanto, o autor parece necessitar, além dos leitores, de um
espaço que lhe proporcione um certo recolhimento para o processo de escrita. No mundo de
hoje, isso se torna mais fácil porque, diferentemente da época em que viveu Eça de Queirós,
há mais respeito aos direitos autorais, há uma infra-estrutura de apoio eficiente aos que fazem
do ato de escrever sua profissão, há maior eficiência na divulgação dos livros, há um aumento
constante do número de leitores. Tudo isso proporciona as condições para que um autor possa
tornar-se um “escritor profissional”, como no caso do autor de Levantado do chão.
No entanto, na entrevista a Carlos Reis, José Saramago reconhece que, para que essa
condição de escritor profissional se consolide, é preciso que exista a ajuda de certos profissio-
nais. Assim, encara com naturalidade essa relação: “O editor é um industrial, exerce tanto po-
der sobre o autor como qualquer outro industrial, que tem os seus fornecedores, que trabalha
com uma determinada matéria-prima de que depende.” (Saramago, 1998, p. 58).
Também o agente literário, figura relativamente nova dentro do mercado editorial, é
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visto por Saramago como uma “comodidade” dos tempos modernos, pois libera o autor de en-
viar cartas, fazer contatos, deixando-lhe tempo livre para se dedicar à escrita. Além disso, tem
a função de promover o escritor para além das fronteiras de seu país, detalhe importante para
um autor que tem livros publicados no mundo todo.
Esse mundo moderno, porém, é um universo voltado para os meios de comunicação e,
portanto, vive da presença e da imagem. Assim, todo escritor que queira promover os seus li-
vros, especialmente em países estrangeiros, tem de se expor constantemente e não pode se
furtar a realizar cansativas viagens e conceder intermináveis entrevistas, debates, conferências
e noites de autógrafos. Isso pode ser comprovado, nos Cadernos, através dos inúmeros regis-
tros de jornadas feitas a várias partes do mundo, o que leva também esse viajante de Azinhaga
a se indagar, às vezes, como durante uma visita a Paris (03/02/1997):
As entrevistas de sempre, e também, uma vez mais, o incómodo pensamento de que
nada disto deveria ser necessário, de que seria melhor para toda gente ter o autor fi-
cado em casa a pensar noutro livro ou simplesmente a olhar para as nuvens ou a re-
gar as hortaliças, deixar o livro entregue ao seu destino, considerando que o feito fei-
to está e já não tem remédio nem melhora, aceitar o silêncio ou o aplauso do público
ou da crítica com igual serenidade. (Saramago, 1999, p. 299-300)
Deixar o livro entregue ao seu destino, entretanto, não parece ser tão fácil para al-
guém que faz questão de lembrar sempre a presença do autor no texto, de deixar nele suas
marcas, de falar diretamente ao leitor sem jamais tentar se esconder por detrás das palavras.
Isso pode ser percebido na afirmação a Carlos Reis, nos Diálogos: “O que eu quero é que se
note nos meus livros que passou por esse mundo (valha isso o que valer, atenção!) um homem
que se chamou José Saramago.” (1998, p. 98).
Outra posição às vezes causadora de polêmica, segundo o escritor, ou de “benévola
condescendência”, por parte de professores de Teoria da Literatura, é anotada no Cadernos I
(07/02/1995), em que é descrita como a “(...) ousada afirmação de que a figura do Narrador
não existe, e de que o Autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que
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ela seja: romance, conto, ou teatro.” ( Saramago, 1998, p. 476). O autor de Ensaio sobre a Lu-
cidez também relata sua fala em conferência na Universidade Complutense, em El Escorial,
anotada no Cadernos II (09/08/1996), em que discorre contra a figura do “Narrador” proposta,
segundo ele, pelo “mundo das teorias literárias”. Assim explica sua posição:
Muito pelo contrário: o que digo é que o Autor está no livro todo, que o Autor é todo
o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Verdadeiramente, não
creio que tenha sido para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert de-
clarou que Madame Bovary era ele próprio.(...) Porque a imagem e o espírito, e o
sangue e a carne de tudo isso tiveram de passar inteiros, por uma só entidade: Gusta-
ve Flaubert, isto é, o homem, a pessoa, o Autor. (Saramago, 1998, p. 194-195)
A questão da crítica literária é também discutida nos Diálogos. José Saramago vê posi-
tivamente o crítico, um leitor privilegiado que pode escrever para ser lido por aqueles que
querem se informar sobre determinado livro e, também, pelo próprio autor, que assim tem a
oportunidade dereler” o seu texto através de um olhar mais exigente. Embora afirme querer
“crítica e mais crítica”, Saramago alerta, porém, para o aspecto problemático que essa mesma
crítica encarna, como representação de um espaço de poder:
Evidentemente que é um poder. Desde que exprima uma opinião de autoridade
que às vezes se transforme em opinião autoritária -, desde que pode conseguir des-
truir ou desvanecer uma obra, ou, pelo contrário, pô-la nos píncaros, quer o mereça
quer não, evidentemente que é um poder. (Saramago, 1998, p. 62)
Embora afirme, ainda na mesma entrevista, diferentemente do que ocorre com Eça de
Querós, que “(...) nenhuma crítica, elogiosa ou não, me fez mudar um milímetro que fosse a
direcção ou o caminho que levo” (Saramago, 1998, p. 63), o autor não deixa de estar sempre
atento ao que os críticos dizem a respeito de seus livros, especialmente na época do lançamen-
to. No Cadernos de Lanzarote I, isso pode ser percebido na evidente satisfação causada pela
leitura de um comentário sobre seu mais novo romance de então, Ensaio sobre a cegueira:
tenho a opinião da Maria Alzira Seixo acerca do Ensaio. Gostou, disse-mo pelo
telefone, da sua praia de Oldeceixe onde estava a passar um reanimador mês de
Agosto, e agora presenteia-me com seis páginas de uma lúcida e sensível análise,
destinadas ao Jornal de Letras. (Saramago, p. 591)
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Esse orgulho do escritor, quando percebe que seu trabalho é apreciado e reconhecido,
é afinal compreensível. Na verdade, trata-se da valorização de um trabalho que é fruto de uma
luta árdua e incessante. Não com a intensidade própria de Eça de Queirós, ainda assim José
Saramago confessa ter esse sentimento de sempre estar recomeçando, em anotação do Cader-
nos de Lanzarote (13/08/1993): “Como aconteceu em todos os meus romances anteriores, de
cada vez que pego neste, tenho de voltar à primeira linha, releio e emendo, emendo e releio,
com uma exigência intratável que se modera na continuação.” (Saramago, 1994, p. 101).
Após confessar que não é capaz de avançar na escrita de um livro enquanto as primei-
ras páginas não o satisfazem inteiramente, o autor de Todos os Nomes termina seus registros
desse dia com uma queixa:
Ah, se as pessoas soubessem o trabalho que me deu a página de abertura do Ricardo
Reis, o primeiro parágrafo do Memorial, quando eu tive de penar por causa do que
veio a tornar-se em segundo capítulo da História do Cerco, antes de perceber que te-
ria de principiar com um diálogo entre o Raimundo Silva e o historiador... (Sarama-
go, 1998, p. 101)
Mas não é apenas a reescrita que aflige o autor. Mesmo para quem pode se dar ao luxo
de dedicar-se apenas à escrita literária (situação diferente daquela que vive Eça de Queirós),
acabam ainda por sobrar trabalhos paralelos. José Saramago, mesmo tendo como uma “lei sa-
crossanta” não iniciar outro livro antes de chegar ao fim do primeiro, às vezes descobre-se
também envolvido nessa situação: “Ora, eis que, de um momento para outro (...) passo com
toda facilidade destes Cadernos, também destinados a serem lidos, ao Ensaio sobre a Ceguei-
ra, e deste ao Livro das Tentações...” (Saramago, 1998, p. 104) Embora essa anotação seja
bastante antiga, percebe-se que, talvez pelo acúmulo de atividades, esse Livro das Tentações,
embora muito anunciado, ainda não veio ainda à luz e oxalá não tenha o mesmo destino de A
capital, de Eça de Queirós, que nunca foi terminado...
Apesar de todas as lutas e percalços, porém, o autor de O ano da morte de Ricardo
Reis é capaz, às vezes, de chegar a uma conclusão favorável sobre a sua experiência de escri-
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tor e sobre o acerto da escolha de seu caminho, como no breve mas expressivo apontamento
feito no Cadernos II ( 09/09/1996):
Evidentemente ainda é cedo para saber se terei dado à literatura algo que valha a
pena (diz-se que para aclarar a terrível dúvida são precisos, pelo menos, uns cem
anos), mas o que ela já me deu a mim, isso eu sei: deu-me estas pessoas desconheci-
das que me param nas ruas de Lisboa para me cumprimentarem, para me desejarem
saúde, para me dizerem que esperam outros livros, e que continue a trabalhar ainda
por muito tempo....(Saramago, 1999, p. 216)
Assim, o autor português pode sentir que suas palavras são capazes de criar um uni-
verso que tem um significado importante para muitos leitores e pode ver o texto literário
como um espaço de diálogo e trocas, que permanece sempre à espera de que alguém venha a
reconhecer-se nele, descobri-lo e acrescentar ali outras significações.
UM LEGADO DE PALAVRAS
Imerso no mundo da Literatura, o escritor não pode deixar de refletir às vezes sobre
esse universo e Eça de Queirós faz isso em variados textos, em diversos tons. Em interessante
carta, escrita em tom de galhofa, para ser publicada no dia primeiro de abril na Gazeta de
Notícias (Rio de Janeiro, 1883), com o título de “Testamento de Mecenas”, o escritor de
Póvoa de Varzim faz reflexões sobre a atitude de indiferença mostrada, de modo geral, pelos
leitores de língua portuguesa e desabafa: “Os únicos escritores portugueses que receberam
anonimamente alguma coisa, por meio do correio, fomos nós, Ramalho Ortigão e eu, quando
redigíamos ambos As Farpas; recebemos então regularmente do Brasil promessas de
bordoada.” (Queirós, 2000, v. III, p. 2104).
Observa, porém, que essa atitude tem mudado, pois vinte anos, dizer-se que uma
pessoa era um literato trazia toda uma carga negativa; e na Lisboa mais moderna do fim de sé-
culo, “já civilizada, mas encostada ainda às esquinas”, pode-se ver com simpatia essa pessoa,
já agora vista como dotada de “muito talento”. Mudando para um tom mais sério, Eça lembra,
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entretanto:
Enfim, Lisboa ainda não se elevou decerto à compreensão de que uma literatura é a
melhor justificação duma nacionalidade – e muitos anos passarão antes que ela acre-
dite que são os homens de letras que dão, a um país, a sua posição e o seu valor na
civilização; que um soneto pode salvar uma nação do esquecimento; e que, se ainda
hoje se fala tanto de Roma, é isso devido às odes de um sujeito que no seu tempo
não foi nem senador, nem banqueiro, nem um simples bon-vivant, e que se chamava
Horácio. (Queirós, 2000, v. III, p. 2105)
Também na carta-prefácio para os Azulejos (Bristol, 12/06/1886), Eça de Queirós volta
a falar de escrita, leitores, defende o Naturalismo e exalta a Arte, especialmente a Literatura,
como forma de perpetuação da vida e dos valores humanos: “A Arte é tudo - tudo o resto é
nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leônidas ou Péricles não bastari-
am para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos. Foi-lhe preciso
ter Aristófanes e Ésquilo.” (Queirós, 2000, v. III, p. 1801).
Para fazer ressaltar a diferença entre as fugazes glórias do mundo e a importância da
Literatura, Eça indaga ao amigo: “Podes-me tu dizer quem foram, no tempo de Shakespeare,
os grandes banqueiros e as formosas mulheres?” (Queirós, 2000, v. III, p. 1802). Por ter a es-
perança de que, um dia, as palavras de “simples fazedores de livros como ele e o Conde de
Arnoso chegarão até os olhos de futuros leitores, alegra-se:(...) e por elas o teu ser, disperso
na substância, estará um instante misturado a um ser vivo, e palpitando na sua vida toda... E
quem ousará dizer que isso não é uma ressurreição?” (Queirós, 2000, v. III, p. 1803).
No entanto, em relação ao seu trabalho presente de escritor, Eça de Queirós, às vezes,
não se mostra tão otimista. Em carta a Oliveira Martins (Paris, 14/09/1892), lamenta a fragili-
dade da posição do romancista e a efemeridade das obras literárias, se comparadas à solidez e
à credibilidade que cercam um autor que escreve sobre a História: “Nós outros os romancistas
é que edificamos sobre a areia ou sobre a moda que é a mais movediça das areias. Pensar que
a Princesse de Clèves foi no seu tempo uma obra sublime – e que já há quem chegue aos vinte
e cinco anos sem ler Balzac! Cést à dégouter du métier.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 281).
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Outro pensamento que Eça carrega desde o início de sua carreira é o de que uma
missão social que o escritor deve cumprir e, especialmente no seu caso, como revela em carta
a Teófilo Braga (Newcastle, 12/03/1878), sente que “É necessário acutilar o mundo oficial, o
mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo
o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas
realizações que lhes dá uma sociedade podre.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 918).
Muitos anos depois, em carta a Oliveira Martins, Eça mostra mais uma vez que acredi-
ta no papel do intelectual como aquele que usa seus textos para levar a mudanças na socieda-
de, através da conscientização do povo. Assim, solicita ao amigo, por ocasião do Ultimatum
da Inglaterra a Portugal, que faça ouvir sua voz firme através de uma série de artigos que se-
rão publicados na Revista, argumentando que: “O País parece-me agora neste instante, um es-
pírito que acorda estremunhado e que olha em redor, procurando um caminho: é esse caminho
que alguém lhe deve indicar.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 263).
José Saramago, embora sempre tenha se caracterizado por uma postura engajada em
relação aos problemas de seu tempo, não acredita, diferentemente do que pensava seu compa-
triota Eça de Queirós, que a literatura tenha o poder de transformar o mundo. No Cadernos de
Lanzarote II (29/03), ele afirma:
(...) e reconheçamos, por muito que tal verificação possa castigar a nossa confiança,
que as obras dos grandes criadores do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a
Shakespeare, de Camões a Dostoievski, apesar da excelência do pensamento e fortu-
na de beleza que diversamente nos propuseram, não parecem ter originado, em senti-
do pleno, nenhuma efectiva transformação social, mesmo quando tiveram uma forte
e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e de geração. (Sara-
mago, 1999, p. 113)
Depois de dizer ainda que a literatura é “irresponsável” no sentido de não lhe poderem
ser imputados nem o bem nem o mal da humanidade, acrescenta ainda que “(...) teremos de
reconhecer que a literatura não transformou nem transforma socialmente o mundo e que o
mundo é que transformou e vai transformando a literatura.” (Saramago, 1999, p. 116).
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Nos Diálogos, o romancista esclarece ao professor Carlos Reis que essa literatura que
não é capaz de transformar o mundo deve, no entanto, estar preocupada com o que acontece à
sua volta, pois “Não se pode imaginar que a literatura, como a expressão de um pensamento e
de uma sensibilidade, vivesse num meio de tal forma asséptico que pareceria que se bastaria a
si própria ...” (Saramago, 1998, p. 74). Mas o entrevistado esclarece também que refuta uma
“literatura de partido”, embora quem o leia possa perceber, pelos textos que produz, qual é a
sua maneira de pensar sobre o mundo e os homens.
Esse posicionamento de um compromisso com a sua realidade deve acontecer porque,
segundo José Saramago no Cadernos II, aquele que se senta à mesa para escrever é um “tra-
balhador” e, como tal, deve ter consciência de suas responsabilidades como cidadão. Mesmo a
crença, partilhada por muitos escritores, de estar trabalhando para o futuro, não deve impedir
que o autor se posicione como cidadão do presente, porque “Depois de deixar este mundo, o
escritor será julgado segundo aquilo que fez. Enquanto ele estiver vivo, reclamemos o direito
a julgá-lo também por aquilo que é.” (Saramago, 1999, p. 118).
Dessa maneira, o autor revela não fugir a esse posicionamento diante do mundo, em-
bora, ao escrever, procure separar o homem de partido do romancista que está a produzir um
texto: Na anotação no Cadernos II (07/10/1966), transcreve uma entrevista à publicação Tier-
ra Canaria, em que responde sobre o comprometimento do artista:
No meu ofício de escritor, penso não me ter afastado nunca da minha consciência de
cidadão. Defendo que aonde vai um, deve ir o outro. Não recordo ter escrito uma
palavra que estivesse em contradição com as minhas convicções políticas, mas isso
não significa que alguma vez tenha posto a literatura ao serviço da minha ideologia.
O que significa, isso sim, é que no momento em que escrevo estou expressando a to-
talidade da pessoa que sou. (Saramago, 1999, p. 233)
Essa postura saramaguiana bastante clara e um tanto radical não significa, entretanto,
uma atitude de isolamento ou mesmo hostilidade para com outros escritores, ainda que pos-
sam revelar idéias ou posições divergentes. Isso se pode perceber, por exemplo, na sempre de-
71
clarada admiração do autor (ainda que de forma crítica) para com os poemas de Ricardo Reis.
Assim, Saramago escolhe como epígrafe de seu romance O ano da morte de Ricardo Reis um
verso do heterônimo pessoano,Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”, em-
bora todo o texto do romance, sem cessar, coloque em questão essa pretensa máxima.
Além disso, José Saramago tem consciência da cadeia intertextual que percorre os tex-
tos literários, quando afirma, nos Diálogos: “Qualquer arte, qualquer expressão artística (e
também a expressão literária) tem um passado e não podemos separar-nos dele, de maneira
nenhuma.” (Saramago, 1998, p. 159). O escritor os homens como seres feitos de palavras,
herdeiros de palavras e que deixam atrás de si um legado feito de palavras.
Por isso, embora creia, diferentemente do que pensava Eça de Queirós, que um dia
tudo passará e que as grandes obras de arte serão esquecidas, ele é capaz de sentir que tem um
papel nessa cadeia literária humana e mesmo escrever, como no seu Cadernos I: “Agora só te-
nho a esperar que a memória de alguém, sucessivamente esquecendo e recordando, por sua
vez acrescente ao que eu acrescentei a palavra que ainda falta. O testamento das palavras é in-
finito.” (Saramago, 1999, p. 236).
Um livro seria, assim, (e tal pensamento poderia, certamente, ser aplicado aos dois
escritores aqui estudados), um testamento de palavras que cada autor lega aos seus semelhan-
tes. Esse autor que, de muitas formas e através de muitas marcas, pode ser buscado pelos lei-
tores nas páginas de seus romances e que ali acaba por deixar, revelado de modo claro ou
mesmo veladamente, suas concepções sobre o mundo, o homem e a escrita.
72
III - HISTÓRIA, CORAÇÃO, ESCRITA
9
O país parece-me agora neste instante, um espírito que acorda estremunhado e que olha em redor,
procurando um caminho: é esse caminho que alguém lhe deve indicar.
(Eça de Queirós em carta a Oliveira Martins, Correspondência, p. 263)
Toda literatura é engajada.
(José Saramago, em Entrevista no Boletim da UFMG )
Quando se trata de estudar autores como Eça de Queirós e José Saramago, não se con-
segue fugir a discussões ligadas ao ao papel do intelectual, ao engajamento literário, ao valor
estético de um texto portador de uma marca política bem definida. A partir de quando, no en-
tanto, essas questões começaram a ter importância? Segundo o pesquisador francês Benoît
Denis, no livro Literatura e engajamento (2002, p. 25), pensar autores de épocas passadas
como “engajados”, hoje, é lançar sobre eles um olhar “enviesado”. Assim, mesmo que se con-
sidere a existência de uma postura de combate de alguns escritores a partir de 1850, isso signi-
fica julgá-los a partir de uma certa experiência de literatura e de uma visão de história que eles
não possuíam na época em que viveram.
Após essa advertência, Denis completa seu pensamento: (...) é preciso ficar atento
para o fato de que a sua representação da literatura não era a nossa e que ela era atravessada
por tensões muito diferentes daquelas que nós conhecemos.” (Denis, 2002, p. 27). No entanto,
o historiador lembra que, não importa o nome que se lhes possa atribuir, a própria postura de
escritores como Pascal, Voltaire e Victor Hugo os torna figuras de destaque no contexto so-
cial e político de sua época. E afirma também que, embora o engajamento literário, num senti-
do estrito, seja considerado como um fenômeno próprio do século XX, é preciso voltar um
pouco no tempo para se acompanhar o seu desenvolvimento, que se processa em três fases:
A primeira ocorre no final do século XIX, ligada ao fato que se tornou conhecido em
todo o mundo como o Caso Dreyfus” e faz surgir um novo papel social: o do Intelectual. A
9 O título remete ao poema “História, coração, linguagem', em que Carlos Drummond de Andrade presta uma
homenagem a Luís de Camões.
73
história política dos intelectuais franceses inaugura-se quando o famoso artigo de Émile Zola,
“J'accuse”, é publicado no jornal L'Aurore (13-01-1898). Nesse artigo, é feita a denúncia da
injustiça cometida pelas forças armadas francesas contra o capitão Alfred Dreyfus, de origem
judaica. A partir de então, reunidos em grupos de artistas, professores, escritores e figuras de
renome nos meios ligados à cultura, esses pensadores passam a participar do debate público,
defendendo valores políticos e morais. É a entrada em cena dos intelectuais modernos.
Tal fato confere realce, então, a uma literatura “de compromisso”, a partir da figura de
Zola e daqueles que apóiam sua posição. Entre as questões que se colocam a partir de então,
está a do que distinguiria o intelectual do escritor “engajado”. Benoît Denis assim responde:
No plano dos fatos, a linha de separação entre o intelectual e o escritor engajado não
é nunca claramente discernível e não existe solução de continuidade clara entre esses
dois papéis: o escritor que faz obra de intelectual permanece um escritor é mesmo
como tal que ele toma posição - e a sua intervenção passa o mais freqüentemente
pelo escrito, o que contribui para confundir as fronteiras entre os papéis do escritor e
do intelectual. (Denis, 2002, p. 215)
Os debates sobre as questões relativas à definição de noções de literatura engajada, dos
papéis do intelectual e do escritor engajado continuam pontuando toda essa primeira fase, que
no século XX se estende até o período de entre-guerras.
Numa segunda fase, que se estabelece a partir do fim da Segunda Guerra, pontua a fi-
gura do intelectual e escritor Jean Paul Sartre, que escreve o clássico O que é a Literatura?
(1948). Principalmente a partir desse texto, são estabelecidos os dogmas da literatura engajada
e, segundo as propostas do livro, os seguidores de Sartre passam a dar relevância ao aspecto
político na escrita do texto. Segundo ainda Denis, a preocupação sartriana é, mais do que esta-
belecer um “discurso sobre a literatura”, firmar uma “estética literária”. Assim, Jean Paul Sar-
tre cria uma nova maneira de “ver” a literatura, e não uma nova maneira de “escrever”.
Na terceira fase, que se inicia na metade dos anos 50, assiste-se ao que representa o
“refluxo” da tendência engajada, com a volta da atenção dos autores para o próprio texto e
74
para as questões que envolvem a escrita. Essa fase tem como figura de realce Roland Barthes
e então, segundo Denis,
a concepção sartriana de engajamento se verá contestada em proveito de uma outra
definição da relação entre o literário e o social. Poder-se-ia acrescentar que, com o
fim da utopia revolucionária, é hoje a questão mesma do engajamento na literatura
que parece ter perdido a pertinência. (Denis, 2002, p. 26)
Entretanto, mesmo enfraquecida, a discussão em torno do engajamento literário não
deixa de existir, pois está ligada diretamente à questão do papel social do autor e do processo
de criação do mundo ficcional. No capítulo intitulado “As contradições do engajamento” (p.
67-78), Benoît Denis afirma que a noção de literatura engajada, hoje, revela em si mesma uma
dimensão dúplice e ambígua, pela razão de pretender conciliar dois tipos de valores que a mo-
dernidade considera como inconciliáveis: aqueles ligados apenas à escrita literária e os valo-
res que enfatizam a dimensão política do texto. Uma questão pertinente pode ser colocada, en-
tão: é possível ao escritor escrever um texto que se posicione politicamente, sem que isso re-
presente a perda dos valores estéticos?
Para Jean Paul Sartre, a linguagem é utilitária, transitiva, pois o autor engajado escreve
“para” atingir um fim. Desse ponto de vista, segundo Denis, “A verdade da literatura não se
encontra mais nela mesma, na sua própria assunção como um fim em si, mas antes no modo,
sempre localizado e temporário, que ela tem de renunciar a ela mesma para agir no mundo.”
(Denis, 2002, p. 74). Para o teórico Roland Barthes, no entanto, o escritor pratica uma ativida-
de intransitiva, trabalhando uma escrita que tem em si mesma sua finalidade, com o uso de
uma palavra ambígua, que interroga continuamente o mundo.
No entanto, Denis lembra que, nas discussões sobre o autor e o texto literário, a ques-
tão com que se defronta a literatura de nosso tempo, engajada ou não, reside “(...) na interro-
gação sobre a significação do ato da escritura: O que é escrever? Em que e como a literatura,
que procede necessariamente de uma visada estética, pode revelar-se força atuante, exercer
75
uma ação sobre o mundo, talvez mesmo contribuir para mudá-lo?” (Denis, 2002, p. 69).
Essas questões revelam-se importantes quando se trata de analisar a obra de a de
Queirós e José Saramago, dois autores emblemáticos quando se pensa a relação do escritor
com o espaço e a época em que vivem. Tanto Eça quanto Saramago experimentam, em deter-
minados momentos de sua vida, as dúvidas de se posicionar em relação à escrita e ao mundo,
são refutados em suas atitudes, têm sua obras consideradas como tendenciosas e radicais, re-
cebem críticas quanto ao valor estético de seus textos. Levados pelo seu fervor, teriam eles
praticado essa literatura “de circunstância”, de valor literário às vezes discutível, que se costu-
ma atribuir à denominada literatura engajada? Na época da elaboração dos romances A ilustre
casa de Ramires e História do cerco de Lisboa, como se colocam, no mundo e em relação à
escrita, os escritores Eça de Queirós e José Saramago?
“EM PERIGOS E GUERRAS ESFORÇADOS...”
10
Eça de Queirós é nomeado embaixador de Portugal em Paris em 1888, ano da publica-
ção do romance Os Maias, e ali permanece até a morte, em 1900, vivendo então a fase de sua
vida que Carlos Reis denomina “Eterno retorno” (Reis, 2000, p. 239). Quais são as tensões
políticas e sociais com que tem de se defrontar o autor, nessa época de sua vida na capital pa-
risiense? Como Eça se coloca em relação a essa realidade nos textos escritos na época?
Segundo Benoît Denis (2002, p. 203), a França havia sido abalada em 1871 pelos
acontecimentos da “Comuna de Paris”, em que o então chamado proletariado se insurge con-
tra as estruturas sociais vigentes e tenta criar um governo popular, chegando a tomar a capital
francesa. O governo, entretanto, apoiado pela burguesia, retoma o poder após a chamada “Se-
mana sangrenta” e, depois dessa derrota dos ideais populares, o socialismo revolucionário
será então erradicado da França por longos anos.
10 O título é citação do quinto verso, Canto I, de Os Lusíadas, de Luís de Camões.
76
Esse fato marcante da História francesa já está presente nas páginas finais d'O crime
do padre Amaro (1875) e é referido também em crônicas, como a que aparece na Gazeta de
Notícias (24-07-1880), em que Eça comenta o aniversário da Comuna e lembra que as lutas
populares não foram de todo sepultadas pela repressão: “Os anos passaram e os vencidos de
então são hoje cidadãos formidáveis, armados não da espingarda revolucionária, mas de um
legal bulletin de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socia-
listas nas eleições.” (Queirós, 2000, v. III, p. 1064).
Após o fim da insurreição, a maioria dos escritores franceses, talvez desencantados
com o desfecho do movimento, faz a retirada da cena política, marcando com essa posição
uma nova fase da relação escritor/sociedade. Para o historiador Denis, “A figura que melhor
encarna essa evolução é sem dúvida a de Mallarmé, cuja poesia é o emblema desse retiro: tor-
na-se ela mesma o seu próprio objeto, a literatura apaga quase por completo as marcas de sua
relação com o mundo.” (Denis, 2002, p. 204). Deve-se lembrar que o retorno dos escritores e
intelectuais à cena política só se dá em 1898, com a publicação do “J'accuse”, de Zola. É, por-
tanto, tendo como cenário essa França, em que uma ordem antiga e os novos tempos parecem
se confrontar continuamente, em que o escritor ora se retrai e parece dedicar-se somente à es-
crita, ora se coloca como porta-voz ostensivo dos anseios populares, que Eça de Queirós vai
escrever as suas últimas páginas.
Tal França é presença constante nos textos literários e jornalísticos do autor e sua pre-
sença revela também atitudes conflitantes de sua escrita. Assim, Eça mais de uma vez critica a
influência da cultura do país de Zola no espírito dos portugueses, como no artigo “O france-
sismo” (1887?): “(...) nos tínhamos tornado fatalmente franceses, no meio de uma sociedade
que se afrancesava ...” (Queirós, 2000, v. III, p. 2113). O próprio escritor, porém, não conse-
gue fugir a essa influência avassaladora da cultura e dos autores franceses, como acentua Bea-
triz Berrini no texto “Eça de Queiroz: uma vida, uma obra”. Ao comentar o aspecto intertextu-
77
al na obra do escritor, a pesquisadora exemplos de diálogos com a obra de vários autores,
com a predominância de franceses, como Chateaubriand, Zola, Flaubert, Balzac, Gérard de
Nerval. Observa, porém, que “(...) a maior presença literária francesa, pelo menos em termos
de devoção, de admiração filial é a de Victor Hugo.” (Berrini, 2000, p. 51).
Essa devoção, entretanto, não se explicaria somente pela afinidade literária, mas tam-
bém por toda a simbologia que cerca a figura do famoso escritor. Tal atitude de reverência
pode ser melhor atestada pela leitura de textos como a crônica publicada na Gazeta de Notíci-
as (28/11/1892), com o título de “Os grandes homens de França”. Nessa crônica, Eça afirma
que, levando-se em conta a voz do povo, o único grande homem que a França teve no século
XIX é Victor Hugo, embora admita que, talvez, a multidão nunca haja lido seus poemas. Mas
a admiração popular, segundoa, é justificada principalmente pelos traços combativos e hu-
manitários da personalidade do escritor francês: “ (...) os seus combates de Hércules contra to-
das as tiranias; o enternecimento dos seus apelos sublimes à bondade e à clemência; a sua lar-
ga fraternidade; a sua piedade infinita pelos simples e pelos fracos; a sua volta do desterro
num incomparável triunfo...” (Queirós, 2000, v. III, p. 1212).
Desse modo, Eça mostra-se sensível a um autor que, segundo Benoît Denis (2002, p.
171), representa a relação singular que o período romântico estabeleceu em relação à escrita
literária, permitindo a presença forte do escritor no cenário político, sem que isso obrigasse,
no entanto, à abdicação de seus ideais estéticos. Nessa perspectiva que Hugo simboliza à per-
feição, o privilégio conferido à arte não é de forma alguma percebido como antagônico à mis-
são social que se atribui o escritor. De acordo com esse ponto de vista do autor romântico, é
possível à literatura fazer discurso político, sem que isso signifique renunciar às reflexões pró-
prias do fazer literário.
Outro destacado escritor francês que Eça de Queirós chega a conhecer, até pessoal-
mente (em 1885), é o mestre da escola naturalista Émile Zola. Ligado aos embates políticos e
78
sociais, o autor de Le Roman expérimental (1880), teve influência nas idéias pregadas por Eça
na conferência do Casino Lisbonense (1871) e na escrita dos seus primeiros romances, em que
pretende colocar em prática o espírito científico e experimental preconizados pelo Naturalis-
mo. Com o passar do tempo, entretanto, o autor português afasta-se desse movimento, embora
continue afirmando, como na carta-prefácio dos Azulejos (1886), que o Assommoir e Nana, de
Zola, sejam “vivas, rijas, fecundas, resplandecentes criações” (Queirós, 2000, v. III, p. 1796).
No entanto, mesmo com esse afastamento da estética naturalista, Eça não deixa de per-
filhar com o escritor francês, quando se trata de ideais políticos relativos a questões da sua
época. Assim, em carta ao brasileiro Domício da Gama (Paris, 26/09/1899), manifesta-se de-
cepcionado com a atitude do povo francês, em relação ao episódio tornadolebre pelo texto
de Émile Zola: “Também eu senti grande tristeza com a indecente recondenação do Dreyfus.
Sobretudo, talvez, porque com ela morreram os últimos restos, ainda teimosos, do meu velho
amor latino pela França.” (Queirós, 2000, V. IV, p. 423).
Essa perda da admiração pela cultura francesa teria sido paulatina, à medida que o es-
critor tem a oportunidade de conhecer com mais segurança a sociedade que Zola pretende re-
tratar em seus romances. No ensaio “Das crônicas ao universo do romance: algumas perspec-
tivas da criação e da ideologia queirozianas”, Daniel-Henri Pageaux ressalta a importância, na
escrita de Eça de Queirós, de ser “testemunha da vida parisiense durante longos anos”. Lem-
bra, porém, que o autor se apresenta como uma espécie de testemunha irônica”, e isso se
pode perceber nas crônicas e cartas que escreve durante o período de sua vida em Paris. As-
sim, em relação à França, o que se percebe é que vai substituindo o deslumbramento juvenil,
de um certo modo até semelhante à atitude sonhadora de sua personagem Luísa, por uma vi-
são mais crítica em relação ao país. Também relativamente à Inglaterra e à Alemanha, centros
culturais considerados então como os pilares da civilização, sua visão torna-se progressiva-
mente mais crítica.
79
Daniel-Henri Pageaux lembra ainda que, nas reflexões feitas nas crônicas, percebe-se
especialmente a paixão de Eça pela política. Ao analisar as diferenças entre as maduramente
reflexivas crônicas de Paris e aquelas inflamadas de sua juventude (fato que o próprio Eça iro-
niza, como no artigo O francesismo”), Pageaux observa a gradual substituição de uma Paris
“revolucionária” por uma Paris “que pensa”. Isso não significa, entretanto, a renegação dos
ideais juvenis queirosianos, em que o sonho de uma mudança nas estruturas da sociedade
de seu tempo, especialmente nas terras portuguesas. Deve-se, porém, atentar para as caracte-
rísticas dessas aspirações:
Por conseqüência, notar-se-á que, desde o início, a revolução à qual Eça aspira é
muito mais intelectual, moral, espiritual, se assim se pode dizer, que social e econô-
mica, aquela não excluindo esta. Nestas condições, pode-se afirmar que na altura
do comprometimento ideológico da sua juventude, Eça defende um ideal revolucio-
nário: o do intelectual, não o de um militante operário ou de um político republica-
no. (Pageaux, 2000, p. 1478)
Pode-se afirmar que nos textos em que Eça fala sobre Portugal, terra da qual se man-
tém distante apenas no espaço físico, essa revolução é sempre desejada. Além disso, durante o
tempo em que mora na França, o escritor não deixa de fazer visitas à sua terra e se mantém li-
gado a ela através da correspondência com familiares, amigos e pessoas ligadas ao meio edi-
torial. Como seria, nesse tempo, o Portugal que Eça observa atentamente, à distância, e que
pretende retratar n'A ilustre casa de Ramires?
Por essa época, segundo o professor da Universidade de Lisboa A. H. de Oliveira Mar-
ques, no artigoDa Monarquia para a República”, (Marques, 2000, p. 286), os ideais republi-
canos surgem como doutrina expressa e adquirem repercussão entre o povo português. Em
1891, o crítico e historiador Teófilo Braga redige o Manifesto e Programa, em que se fundem
os princípios das gerações de 48, 65-70 e 90 e cujo ideário vai persistir até a proclamação de
República. Esse Manifesto, segundo Marques,
Descrevia os acontecimentos do ano decorrido desde o Ultimatum (1890), sinteti-
80
zando nele a falência do regime monárquico-constitucional da Carta, a a exautoração
dos partidos rotativos e a crise, “na expectativa de uma tremenda catástrofe nacio-
nal”, e a que um e os outros haviam arrastado a Nação. Separava, consequentemen-
te, esta da Monarquia, que se mantinha “apenas pela indiferença geral”. (Marques,
2000, p. 286)
Mais de uma vez, em seus textos, Eça critica essa indiferença da sociedade portuguesa
pelo seu próprio destino. Curiosamente, em Portugal de Eça de Queiroz (1982, p. 357), Bea-
triz Berrini lembra que, em Portugal, o próprio escritor é também várias vezes criticado por
não haver assumido, em relação à pátria, uma postura revolucionária. Essas críticas acentuam-
se pela suposição de que, após o casamento e pelas amizades no círculo da aristocracia portu-
guesa, os ideais juvenis de Eça hajam arrefecido. Como exemplo dessa atitude hostil à postura
queirosiana, é citado o historiador e crítico Joel Serrão, para quem o autor “(...) circulou, mais
como espectador do que agente, na sociedade dos seu tempo, pressentindo-lhe, por um lado,
as contradições, mas, por outro, esquivando-se-lhes pela ironia.” (Apud Berrini, 1982, p. 357).
A pesquisadora, no entanto, defende o escritor, lembrando que se pode comprovar, pe-
los seus textos, que mesmo um fato traumatizante no imaginário luso, como o Ultimatum in-
glês, só serviu para intensificar nele o amor pela terra, como se pode perceber no artigo publi-
cado na Revista de Portugal (02/1890), com o pseudônimo de João Gomes, em que sugere
que a energia despertada pelo acontecimento sirva para o país “reconstruir a pátria” e “criar ri-
quezas”, a partir de melhorias na agricultura e criação de indústrias.
Também em textos escritos no final da vida e por alguns considerados como des-
tituídos de qualquer crítica social, como as Lendas dos Santos, a contestação do autor aos ma-
les da sociedade não deixa de se fazer notar. Por exemplo, em São Cristóvão, segundo Berrini,
páginas revolucionárias, que criticam a opressão dos poderosos contra os despojados da
sorte. E acrescenta ainda: “Pode-se perfeitamente supor que as Lendas foram contemporâneas
de textos como a ilustre casa de Ramires e A cidade e as Serras, senão de outros romances es-
tes que, como assinalei, conservam a sua fundamental visão crítica da sociedade portuguesa.”
81
( Berrini, 1982, p. 358).
Uma posição do escritor que também provoca inúmeros comentários é a sua adesão a
grupos intelectuais em Portugal. Na juventude, faz parte daquele grupo formado por nomes
expressivos como Antero de Quental, Teófilo Braga e Oliveira Martins, que se torna conheci-
do como a “Geração de 70” e passa a destacar-se a partir das “Conferências do Casino Lisbo-
nense” (05/1871). Ali haveria como proposta a discussão de temas polêmicos como a causa
da decadência dos povos peninsulares, a educação em Portugal, o Realismo na literatura, com
a proposta de mudanças capazes de transformar a pátria de Camões. As conferências, entre-
tanto, causam tamanho escândalo que chamam a atenção do governo e são encerradas prema-
turamente, através de uma proibição.
É importante notar que, desde o início, embora o grupo seja sempre referido como
“Geração de 70”, não se poderia ver seus membros como homogêneos em termos de idéias.
Assim, com o passar do tempo, esses intelectuais tomam caminhos diversos em questões polí-
ticas, literárias e existenciais. Entre 1887 e 1893, uma parte desse grupo, ao qual Eça se junta
quando está em Portugal, reúne-se para conversar e jantar em restaurantes ou mesmo residên-
cias de Lisboa, passando a ser conhecido então como os “Vencidos da Vida”.
De acordo com o Dicionário de Eça de Queiroz (1988, p. 918), esse grupo atrai críti-
cas, suspeitas, ironias e vontade dos intelectuais que não são convidados para integrá-lo.
Tal animosidade provoca o aparecimento de artigos irônicos em várias publicações e até mes-
mo a encenação de uma comédia, escrita por Abel Botelho, para ridicularizá-lo. Para Isabel
Pires de Lima, entretanto, o problema em relação aos “Vencidos” estaria talvez na própria in-
definição de sua identidade, pois
O vencidismo jogou na ambigüidade e neste aspecto ele é bem fruto de homens da
Geração de 70. Ambigüidade na hibridez de sua constituição; ambigüidade na pró-
pria designação que gerou o equívoco já referido dos vencidos/vencedores de que fa-
lava Pinheiro Chagas ou dos vencedores/vencidos que Eça preferia; ambigüidade
fruto de uma auto-ironia tão subtilmente queirosiana que a designação de “vencidis-
mo irónico que não se decide ao cepticismo”, utilizada por Mário Sacramento, a pro-
82
pósito de Eça, pode ser generalizada em referência à atitude do grupo. (Lima, 1987,
p. 335)
No artigo “Sobre o último Eça ou o Realismo como problema”, Carlos Reis aponta
outra questão que tem marcantes reflexos na criação literária do autor: a tensão vivida por sua
geração, à época de final do século, entre a estética romântica (recusada nos anos setenta) e a
“utilização realista, crítica e socialmente interventiva da literatura”, praticada pelo autor em
alguns de seus romances. (Reis, 1999, p. 160).
Reis lembra ainda que o afastamento do Realismo-Naturalismo se dera no texto do
romance Os Maias (1888), através das falas das personagens Craft, Alencar e Carlos Eduardo
e também em textos doutrinários, como nas cartas-prefácio d'O Mandarim (1880) e dos Azu-
lejos (1886). Deve-se lembrar também que, no romance A Relíquia (1887), tem-se como
subtítulo a afirmação sugestiva, mas conciliadora: “Sobre a nudez forte da verdade - o manto
diáfano da fantasia.”
Finalmente, no texto “Positivismo e Idealismo” (1893), o cronista Eça constata que se
assiste, na época, ao descrédito do Naturalismo nos meios artísticos e literários. Segundo ele,
isso fora provocado pelo modo brutal com que o Positivismo científico tratara a imaginação, a
“deliciosa e ardente companheira” dos homens, agora reconquistada. O cronista termina essa
crônica com um desabafo: “E isto é para nós, fazedores de prosa ou de verso, um positivo lu-
cro e um grande alívio.” (Queirós, 2000, v. III, p. 1257).
É portanto, nessa França e nesse Portugal conturbados pelas contradições do final do
século que vive Eça de Queirós, ao escrever A ilustre casa de Ramires, de cuja elaboração
ocupa-se durante sete anos. Além da escrita do romance, o então renomado autor dedica-se
a inúmeros outros textos. Em 1890, ano inicial da obra, revê e publica (depois de muitas hesi-
tações) as suas colaborações para As farpas, com o novo nome de Uma campanha alegre, e
termina, na Revista de Portugal, a publicação da Correspondência de Fradique Mendes. Nos
anos que se seguem até a finalização do livro, publica textos e contos em jornais e revistas,
83
além de planejar a criação da revista Serão, que, entretanto, nunca irá ser editada. Prepara ain-
da o Almanach Enciclopédico (1896) e colabora, a partir de 1897, com a Revista Moderna, em
que serão publicados os capítulos d'A ilustre casa de Ramires (1897-1899).
Uma carta, enviada de Paris a Luiz de Magalhães (23/01/1891), pode dar uma idéia do
que pensa o então “Vencido da Vida” Eça de Queirós, nesse período em que inicia (ainda
como conto) a escrita do romance que narra a história de Gonçalo Mendes Ramires. Ali ofe-
rece ao amigo as páginas da Revista de Portugal, como tribuna para expor e discutir suas idéi-
as políticas. Para convencer Magalhães a aceitar essa participação, Eça usa de uma argumen-
tação capaz de mostrar que, para além do pessimismo disseminado nesse final do século, ain-
da está presente nele uma centelha de entusiasmo da juventude:
O momento histórico, além disso, é do mais alto interesse. Os bons espíritos não po-
dem ficar calados no meio de toda essa crise. E creio que V. Mesmo, por todos os
motivos lhe conviria ter o seu canto, ou antes o seu estrado, decente e bem mobilia-
do, onde V. se pudesse afirmar com persistência e autoridade. Reflita nisto. Creio
que não pode hesitar. (Queirós, 2000, v. IV, p. 212)
Assim, talvez de modo quase inconsciente e mesmo que isso às vezes pareça entrar em
conflito com facetas do seu próprio modo de viver, a parece adotar (só que de uma forma
mais amadurecida e reflexiva), a postura de uma personagem que então emerge na sociedade,
o “intelectual” moderno. Um século depois, esse espaço vai ser plenamente assumido por ou-
tro escritor português, José Saramago.
“NUMA MÃO SEMPRE A ESPADA E NOUTRA A PENA...”
11
José Saramago reside ainda em Portugal quando escreve História do cerco de Lisboa
(1989), que tem como cenário de sua narrativa a capital portuguesa, vista através de uma mis-
tura de épocas e espaços, num entrelaçar entre os mundos moderno e medieval lusitano. O que
se passa na segunda metade do século XX, na ocasião da escrita do romance, nesse Portugal
11 O título é citação do verso 79, Canto VII, de Os Lusíadas, de Luís de Camões.
84
em que José Saramago vive a atua e que, de modo supostamente real ou alegórico, vai estar
presente nas páginas do seu texto? O que então poderia levar esse escritor, fortemente ligado
aos acontecimentos de seu tempo, a se debruçar sobre um acontecimento da História portu-
guesa situado num passado tão remoto?
Deve-se lembrar, de início, que entre o século XII, quando o Estado português foi fun-
dado, e o século XV, Portugal foi um país essencialmente europeu. Porém, a partir do século
XV, passa a ser uma nação totalmente voltada para o oceano: para a África, para o Índico e o
Extremo-Oriente, para a América. Tal período de além-fronteiras vai terminar com a inde-
pendência das colônias, em 1975. Finalmente, com a entrada de Portugal na União Européia,
em 01/01/1986, acontece uma virada radical na História do país, que pode ser considerada
como uma espécie de volta da presença política de Portugal na Europa, depois desse longo pe-
ríodo de isolamento.
Para Eduardo Lourenço, em Mitologia da Saudade (1999), além dessa idéia de “não-
pertencimento” ao continente de que faz parte, Portugal é um país que se até a chegada da
modernidade como possuidor de um destino místico, portador de uma missão,
o que pode ser atestado em vários textos, como por exemplo, já nos escritos do Padre Antônio
Vieira. Lourenço chega a firmar mesmo que “Pela sua pública fidelidade crística, Portugal
profetiza.” (Lourenço, 1999, p. 99). O pensador português afirma, ainda, que durante séculos
Portugal foi “uma nação cruzada” e somente essa cultura mística poderia justificar uma espera
messiânica, como a que é encarnada pela figura do rei D. Sebastião.
Assim, essa religiosidade portuguesa e esse misticismo que atravessa os séculos não
poderiam deixar de marcar presença nos romances de José Saramago, que neles o escritor
busca retratar a sociedade de seu país, e esse aspecto de seus romances tem sido motivo de
inúmeros questionamentos. Nos Diálogos com Carlos Reis, o escritor esclarece sobre a sua
posição relativa à religião e afirma que o verdadeiro ateu, no seu entender, seria aquele que vi-
85
vesse numa sociedade onde essa palavra nem mesmo existisse. O autor esclarece ainda: “(...)
quando digo que sou ateu, é com esta ressalva e dizendo sempre que tenho, evidentemente,
uma mentalidade cristã, não posso ter outra mentalidade senão essa...” (Saramago, 1998, p.
142).
A mentalidade cristã, porém, é retratada com olhar distanciado e crítico, e é mesmo
mostrada como um dos fatores que ajudaram a sustentar a tirania contra o povo português,
causaram sua alienação e colaboraram para o atraso do país. Esse viés contundente se faz pre-
sente de modo marcante na forma como fatos e personagens são apresentados em Memori-
al do Convento (1982), permanece nas páginas da História do cerco de Lisboa (1989) e irá ter
seu ápice n'O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991).
É interessante lembrar também que, no final do século XIX, o grupo de intelectuais
conhecido como “Geração de 70”, ao qual pertence o escritor Eça de Queirós, já aponta como
causas desse atraso de Portugal o seu estar mergulhado numa religiosidade retrógrada e o
alheamento das idéias e culturas dos países mais desenvolvidos da Europa. A partir das “Con-
ferências do Casino”, os intelectuais do grupo tentam despertar as consciências pensantes lusi-
tanas para uma maior abertura e participação na caminhada em direção à modernidade, o que
só seria possível, segundo eles, com uma “europeização” de Portugal.
No século XX, o isolamento português permanece e se acentua em função do período
conhecido como “Salazarismo” (1932-1968), uma longa ditadura que vai marcar o país de
forma radical. Durante esse regime, o funcionamento dos partidos políticos não é autorizado.
Então, para “teoricamente” permitir o exercício cívico, cria-se a União Nacional, que de iní-
cio desperta adesões, mas depois, em vista da imobilidade política, acaba por ter atuação apa-
gada. Com o clima repressivo, a oposição refugia-se na clandestinidade, a censura prévia à
imprensa é institucionalizada, o diálogo político é suprimido. Segundo o Professor José Her-
mano Saraiva, na História Concisa de Portugal, (...) a maioria dos intelectuais permaneceu
86
assim à margem do regime, parte em oposição complacente, parte em contestação aberta, que
se tornou especialmente intensa depois da segunda guerra mundial.” (Saraiva, 1997, p. 352)
Mesmo com a ausência de liberdade, no campo literário, no final da década de 30, sur-
ge o “Neo-Realismo”, um movimento cujos seguidores combatem o fascismo e a literatura
(segundo eles) “descompromissada”, do grupo ligado à revista Presença e lançam uma pro-
posta literária voltada para o social, o documental, o combate e a reforma das idéias e do país.
Essa corrente literária deseja ainda afirmar sua diferença de outras tendências da época. Na
História da Literatura Portuguesa, pode-se perceber essa tentativa do movimento de repre-
sentar-se como algo novo:
O neo-realismo apresenta como característica básica (e explícita no seu próprio
nome, que se generaliza desde 1938) uma nova focagem da realidade portuguesa, de
certo modo análoga à da Geração de 70, mas que, como Miguéis apontara em
1930, critica o elitismo pedagógico proudhoniano-anteriano e dos democratas da Se-
ara Nova dos anos 20, pois tem em vista a conscientificação e dinamização de clas-
ses sociais mais amplas. (Saraiva e Lopes, 2001, p. 1032)
Entretanto, segundo Miguel Real, no ensaio “Romance: balanço de um século”, as di-
vergências entre os grupos seriam apenas de ordem ideológica, pois tanto no Neo-Realismo
como no Presencismo “ (...) o texto reflecte a realidade e a estrutura do texto (unidade de tem-
po, espaço, personagens acção, movimento), reflecte a estrutura da realidade e ambas assen-
tam a narração num Eu substancial fixo e permanente.” (Real, 2001, p. 7).
Com o passar do tempo, a primeira fase de um Neo-Realismo voltado para o social
lugar a romances não tão ortodoxos, com narrativas mais elaboradas, em que a palavra políti-
ca começa a dar lugar à palavra poética. A principal atenção se desloca gradualmente para
uma teorização estética de certo fôlego e para o ensaio histórico. A partir daí, uma intera-
ção com as tendências surrealistas e existencialistas. Um afastamento da temática nitidamente
social e política se reforça por volta dos anos 60, quando a prosa portuguesa sofre a influên-
cia, ainda que não demasiadamente marcante, do nouveau roman francês.
87
A tendência neo-realista tem papel importante, mesmo de resistência, no momento his-
tórico em que pontifica na sociedade portuguesa e, mesmo quando essa tendência declina, dei-
xa traços na escrita de muitos autores. José Saramago, por exemplo, escreve seu primeiro ro-
mance, Terra do pecado (1947), na época em que ainda estava em voga o movimento neo-rea-
lista, embora não se possa dizer que o livro se alinhe a esse movimento. Entretanto, em A voz
itinerante (1993), Álvaro Cardoso Gomes lembra que, no romance Levantado do chão (1980),
aparece a tradição neo-realista de revelar a exploração dos oprimidos. Na entrevista que Car-
doso Gomes faz com o autor, Saramago assim responde à pergunta: “Em que essa obra seria
diferente do neo-realismo tradicional?”:
Por aquilo a que eu chamaria libertação dos preceitos de escola. Não heróis
exemplares, a expressão realista admite e incorpora a expressão mágica ou fantásti-
ca. Seja como for, penso que Levantado do chão pode ser entendido como um
prolongamento lógico do neo-realismo: é possível que, a este livro, o leiam, no futu-
ro, como o último romance ainda neo-realista. (Saramago, 1993, p. 127)
É importante lembrar que o movimento neo-realista faz parte de uma tendência que se
espalha pelo mundo, influenciada pelo regime socialista, privilegiando o social, trazendo para
a cena literária temas e personagens até então poucas vezes presentes nas páginas dos roman-
ces, estimulando a militância política através do texto literário. Curiosamente, essa tendência
surge num momento em que o mundo ascenderem ao poder governos que vão cercear a li-
berdade: o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália, o franquismo na Espanha, o salazaris-
mo em Portugal. As influências externas, entretanto, não se fazem notar na terra lusitana de
forma acentuada fora dos meios literários e intelectuais, porque especialmente durante o pe-
ríodo da ditadura salazarista, Portugal se percebe quase como uma ilha separada do resto do
mundo.
Essa atitude de alheamento é incentivada pelo regime, que se empenha em criar, como
se pode perceber então nas próprias palavras de Salazar, o pensamento de que a Europa e o
mundo estavam em crise moral, com “idéias falsas e palavras vãs”, das quais o povo portu-
88
guês deveria ser salvo pelas suas lideranças. De acordo com o professor Luís Reis Torgal, no
artigo “O Estado Novo, Fascismo, Salazarismo e Europa”
Salazar foi, assim, criando a idéia de que Portugal possuía o seus próprio “espírito”,
o que explica, à distância, a sua famosa expressão “orgulhosamente sós”, de grande
impacto nos anos 60, quando a política mundial se voltou praticamente toda contra
as posições assumidas pelo nosso país. O primeiro passo nesse sentido é dado no
tempo da Guerra, quando Salazar afirma a neutralidade portuguesa. (Torgal, 2000, p.
321)
Essa idéia de nação “diferente” é reforçada nos pronunciamentos do ditador feitos em
público, os quais sempre ressaltam o regime brando, modesto, que faz com que o país viva,
segundo ele, sem agitações, sem ódios ou divisões de classe, irmanado na busca do engrande-
cimento nacional. Assim, de acordo com o professor da Universidade de Coimbra, Salazar es-
força-se por perpetuar na mente do povo uma imagem paradisíaca de Portugal. Em 1951, fa-
lando nas subversões catastróficas” do Mundo, o dirigente refere-se à situação privilegiada
do país e prega a luta contra as posições anticolonialistas, que no entanto crescem no contexto
internacional. (Torgal, 2000, p. 324)
Como resultado das novas maneiras de pensar, a questão ultramarina agrava-se após a
guerra, com a inclusão, na carta das Nações Unidas, da declaração do direito de todos os po-
vos à autodeterminação. O governo de Portugal, entretanto, afirma que os territórios sob seu
domínio situados fora da Europa não constituem verdadeiras colônias, mas parcelas integran-
tes do território português, tese que não encontra aprovação na opinião internacional.
A partir de 1961, eclodem nas colônias da África movimentos de guerrilha, o que obri-
ga o governo de Portugal a manter enormes contingentes militares, provocando reflexos nega-
tivos na economia do país e levando à oposição interna em relação ao regime, especialmente
nas camadas jovens, universitárias e intelectuais. Para Eduardo Lourenço, entretanto, a histó-
ria dessa mobilização de treze anos em torno das colônias (...) à parte sua versão em meia
dúzia de romances que mais tarde a irão ficcionar - não está escrita.” (Lourenço, 2000, p.
89
140).
Não é de se admirar, pois, que em 25 de abril de 1974, um movimento das forças ar-
madas derrube o regime e, um ano depois, as colônias de além-mar se libertem. Ocorre então
um fato curioso no campo da literatura, pois, com o advento da liberdade nas terras portugue-
sas, dá-se uma redução no número de romances escritos. Indagado sobre o motivo de tal fato,
o escritor José Saramago, na entrevista a Álvaro Cardoso Gomes, responde:
Seria mais exato dizer que houve um decréscimo da produção literária em geral.
Compreender-se-á que assim tenha sido, se pensarmos no que representou para to-
dos nós a possibilidade de exercer uma ação política às claras, uma aprendizagem de
vida coletiva em moldes totalmente diferentes. Não sobrou então tempo para escre-
ver. (Saramago, 1993, p. 125)
Finalmente, alcançada a liberdade e destituído da sua condição de senhorio colonial,
Portugal tem de se apressar para ir em busca da nova Europa que se gesta e, em 1986, passa a
integrar a União Européia. Entretanto, em meio à euforia provocada pela celebrada inserção
portuguesa nessa comunidade, mais uma vez a voz de José Saramago convida à reflexão com
o romance A jangada de pedra (1986). Nessa narrativa, uma falha nos Pireneus separa fisica-
mente a península ibérica do resto da Europa e os povos ibéricos, por esse motivo, são leva-
dos a repensar suas identidades. Sobre os motivos que o levam a escrever o romance, Sarama-
go revela a Cardoso Gomes: “No meu entender, Portugal e Espanha suicidam-se, se não refor-
çarem suas raízes latino-americanas. A cedência às tentações europeístas custar-nos-á parte da
nossa alma que é talvez o essencial.” (Saramago, 1993, p. 129).
Saramago coloca-se, assim, em desacordo com a opinião da maioria dos portugueses,
que, além de apoiarem a adesão do país, segundo Eduardo Lourenço comportam-se com o
alheamento costumeiro: “Por fim entramos na Europa como se nunca de tivéssemos saído,
ao mesmo tempo em que esquecíamos - pragmaticamente - um Império de quinhentos anos
como se nunca tivéssemos estado. (Lourenço, 2000, p. 132-133). No entanto, essa crítica
de um olhar que se desvia num momento importante da História do país, nem sempre pode ser
90
estendida a todos os escritores e intelectuais portugueses. A Geração de 70, de que faz parte
Eça de Queirós ou escritores como José Saramago são exemplo de que vários escritores e in-
telectuais têm sempre tomado posição nesses momentos.
Embora tenha usado o conhecido verso de Fernando Pessoa, “Sábio é quem se conten-
ta com o espetáculo do mundo” (ainda que com intenção irônica) como epígrafe de seu ro-
mance O ano da morte de Ricardo Reis (1984), certamente Saramago não segue na sua vida
ou na sua escrita a filosofia do poeta. Mesmo nesse romance, os poetas autores d'Os Lusíadas
e de Mensagem não são reverenciados como figuras literárias intocáveis, mas são questiona-
dos sobre o Portugal cantado nos seus textos.
A inesperada preferência pela reinvenção de um heterônimo notadamente alheio ao
mundo à sua volta, num escritor conhecido pela sua combatividade, seja no texto literário,
seja em atitudes políticas até radicais, pode soar estranha àqueles não sejam familiares à obra
de José Saramago, um criador capaz de às vezes revelar facetas inesperadas. O próprio autor,
porém, tem uma explicação para sua escolha do personagem:
O meu primeiro Pessoa foi Reis, eram de Reis os primeiros poemas que li de Pessoa,
e a impressão que eles me causaram, fortíssima, perdurou por muitos anos. Mas a in-
diferença de Reis em relação aos fatos sociais e políticos, em relação à sociedade
dos homens, sempre me irritou, digamos que tentei resolver este conflito no Ano da
Morte. (Saramago, 1998, p. 128)
No entanto, quando cinco anos depois decide criar uma História do cerco de Lisboa
(1989), seguramente José Saramago não deseja repetir a trajetória do seu poeta preferido da
juventude. Assim, não se contentando em apenas contemplar o espetáculo do mundo, decide
participar dele através da escrita de um texto que revisita, com olhar crítico, um episódio mar-
cante do passado português e cria uma personagem que ousa colocar um “não” à versão da
História oficial
91
“OH PORTUGAL, HOJE ÉS NEVOEIRO...”
12
Nos textos de autores portugueses, História e Literatura estiveram muitas vezes lado a
lado, tiveram seus caminhos entrecruzados. Na História da Literatura Portuguesa (Saraiva e
Lopes, 2001), tal relacionamento pode ser percebido no capítulo III (Segunda Época), de-
nominada “De Fernão Lopes a Gil Vicente”. Apontado pelos autores comoa maior persona-
lidade da literatura medieval portuguesa”, esse escritor do século XV é nomeado por D. Duar-
te para ser cronista do Reino e no desempenho dessa função escreve as famosas Crónica de
El-Rei D. Pedro, Crónica de El-Rei D. Fernando e Crónica de El-Rei D. João .
Pela leitura dessas crônicas, pode-se perceber que Fernão Lopes compila escritos de
seus antecessores, uma prática bastante usual na época em que vive. Entretanto, diferentemen-
te dos cronistas medievais, que se limitavam a reproduzir como meras cópias os textos de ou-
tros cronistas, tem o cuidado de fazer sobre os acontecimentos relatados pesquisas com teste-
munhas e estudo dos documentos nos arquivos do Estado, o que lhe permite completar e cor-
rigir as crônicas anteriores. Por esse modo de proceder,O primeiro cronista português pode,
assim, ser chamado também com justiça o primeiro, em data, dos historiadores portugueses.”
(Saraiva e Lopes, 2001, p. 124).
Outro fato marcante na historiografia praticada por Fernão Lopes é que seus textos
mostram-se capazes de revelar uma sociedade multifacetada, em que até os “anônimos”, os
denominados “arraia miúda” m um papel a cumprir, enquanto outros cronistas ligam-se ge-
ralmente a uma corte, a uma ordem religiosa, a um grupo da aristocracia ou do governo e, as-
sim, limitam-se a relatar fatos ligados a esses extratos sociais. Desse modo, “(...) Fernão Lo-
pes dá-nos da sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV um amplo panorama em que en-
tram múltiplas e contraditórias forças, e em que, combinada com as acções individuais, de-
sempenha um papel dinâmico a movimentação de grandes forças coletivas e anônimas.” (Sa-
12 O título é citação de verso do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa.
92
raiva e Lopes, 2001, p. 125).
Tais características da obra de Fernão Lopes revelam, assim, uma cuidadosa busca de
tentar ser o mais possível fiel à verdade, apesar da notória preferência ou desfavor que se pode
perceber, quase sempre, em relação a algumas das figuras destacadas em suas crônicas. Essa
atitude parece não ser usual em cronistas da época e tal fato parece ser comprovado quando o
próprio autor sente-se levado a falar da seriedade do seu trabalho e a esclarecer essa postura
para o leitor, como se pode perceber no famoso trecho:
Nós, deixados os compostos e afeitados razoamentos, que muito deleitam aqueles
que ouvem, antepomos a simples verdade à aformoseada falsidade. Nem entendais
que certificamos coisa que não seja de muitos aprovada e por escrituras vestidas de
fé. Doutra guisa, antes nos calaríamos que escrever coisas falsas. (Lopes, 1971, p.
34)
As qualidades dos textos de Fernão Lopes não se resumem, porém, à busca de uma
postura ética na seleção e relato dos fatos; a par disso, neles se encontram traços significativos
em relação à escrita literária, como lembra Manuel Gama, na apresentação dos Textos Esco-
lhidos, ao afirmar que o cronista é “(...) um narrador que conhece tudo o que caracteriza um
grande jornalista contemporâneo: o sentido da escolha da acção realmente significativa, da pa-
lavra efectivamente alertante, do gesto ou da intenção verdadeiramente dignos de serem regis-
tados ou recordados.” (Gama, 1971, p. 7).
Também Beatriz Berrini, no artigo intitulado “A viagem no tempo”, chama a atenção
para esse aspecto estilístico que enriquece o texto de Fernão Lopes, que o torna capaz de até
hoje ser lido como exemplo de uma visão histórica que não se deixa levar por uma perspecti-
va simplista: “Embora se preocupe acima de tudo com a História, a sua escrita utiliza recursos
peculiares à Ficção. Não é um mero compilador de acontecimentos. no início do século
XV, criava uma historiografia que, em certos momentos, se aproxima bastante da chamada
Nova História.” (Berrini, 1998, p. 17).
Os reis das Crónicas de Fernão Lopes estão presentes também entre aqueles “barões
93
assinalados”, nos excertos históricos da obra que é marco referencial da literatura portuguesa,
Os Lusíadas. Nesse poema épico, o relato da viagem de Vasco da Gama motivo a que se
evoque a História do país e se exaltem personagens das camadas aristocráticas mas, segundo a
História da Literatura Portuguesa, “(...) não resta lugar para a ação anónima doutras camadas
nacionais. Nada mais frisante a este respeito do que a narrativa dos acontecimentos de
1383-1385, sobretudo se a confrontarmos com a sua fonte, Fernão Lopes.” (Saraiva e Lopes,
2001, p. 334).
Pode-se dizer que, por muito tempo, as referências históricas d'Os Lusíadas constituí-
ram-se em informação essencial sobre a História de Portugal à disposição dos portugueses e,
apesar de não celebrar o povo como protagonista dos fatos históricos que apresenta, o narra-
dor proposto por Luís de Camões crítica a cobiça dos navegadores na fala do Velho de Reste-
lo. Também no Canto VII, ao anunciar que Vasco da Gama irá contar ao rei a história do povo
português, apresenta uma espécie de crítica social e mostras de simpatia pelos desfavorecidos
quando o eu-lírico se recusa a cantar: Quem, com hábito honesto e grave, veio,/ Por conten-
tar o rei no ofício novo/ A despir e roubar o pobre povo.” (Camões, 2002, p. 222).
Muito tempo depois, com o advento da tendência romântica, os autores voltam os
olhos com interesse para o passado, em busca das raízes nacionais. Por isso, não é de se admi-
rar que escritores como Almeida Garrett e Alexandre Herculano se tenham valido das crôni-
cas de Fernão Lopes quando recriam, em seus contos e romances, o mundo medieval portu-
guês. No capítulo III da História da Literatura Portuguesa, que é dedicado ao Romantismo,
destaca-se a figura de Alexandre Herculano, que publica O bobo (1843) e assim introduz em
Portugal o romance consagrado por Walter Scott como “romance histórico”.
A esse primeiro romance histórico seguem-se Eurico, o presbítero (1844) e O Monge
de Cister (1848) e, para escrevê-los, Herculano vai buscar nos antigos cronistas as informa-
ções que lhe permitem recriar com colorido e exatidão de detalhes o mundo dos seus antepas-
94
sados. Também Almeida Garrett busca inspiração num relato de Fernão Lopes para escrever
O arco de Sant'Ana (1845), romance cuja trama narra uma revolta popular contra o senhorio
do bispo, na época feudal. Esse tipo de romance, que é então um gênero de limites indefini-
dos, com uma mescla de prosa poética, descrição pitoresca, comentários de cunho filosófico,
social e político, adquire grande prestígio popular. À sua escrita, então, vão-se dedicar autores
variados em fama e qualidade literária, como Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Alber-
to Pimentel, Pinheiro Chagas, Pereira Lobato.
No caso especial de Alexandre Herculano, a Idade Média portuguesa, considerada
como época de origem e fundamento da identidade nacional, é primorosamente retratada nos
romances históricos e neles uma reconstituição detalhada de espaços, trajes e costumes,
além de uma valorização de personagens e atitudes de caráter nobre, o que pode soar estranho
num homem que se declarava “essencialmente burguês”. Para escrever esses romances, Her-
culano vale-se de documentos históricos e das crônicas de Fernão Lopes, especialmente quan-
do escreve sobre as épocas dos reinados de D. Fernando e D. João I.
No entanto, Herculano não se contenta em escrever a História somente como criação
literária, e após laboriosa pesquisa científica, publica a História de Portugal (em quatro volu-
mes, de 1846 a 1853). Nessa obra, então precursora, apóia-se na investigação documental e
afasta-se da concepção da História feita por reis e heróis. Assim, busca confirmar sua idéia de
que são as gerações, e não um grupo seleto, que fazem as transformações na sociedade. Her-
culano revela também sentido crítico na análise dos fatos e mantém polêmicas com religiosos
e conservadores, por contestar versões arraigadas no imaginário português, como a do milagre
da batalha de Ourique ou os míticos relatos das Cortes de Lamego.
O projeto dessa ambiciosa obra já havia sido anunciado nas Cartas sobre a História de
Portugal (1842), em que Herculano critica a antiga historiografia e apresenta sua concepção,
baseada em rigorosa pesquisa documental: “A História pode comparar-se a uma coluna polí-
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gona de mármore. Quem quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas
as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é olhar para um dos la-
dos...” (apud Saraiva e Lopes, 2001, p. 715). Ainda nas Cartas, Herculano refuta a idéia de
que a História é feita somente pelos grandes homens, apresentando-a como o resultado da luta
e do trabalho de gerações e idéias que nascem e se disseminam, levando às transformações da
sociedade.
O autor romântico recolhe ainda material para a Portugaliae Monumenta Historica
(1856-1873), ambiciosa obra que constitui uma coleção de crônicas, memórias, anais, rela-
ções, nobiliários, leis e outros documentos jurídicos do período entre os séculos VII a XV, pu-
blicada pela Academia de Ciências entre 1856-1873. Essa obra, embora tenha ficado incom-
pleta, revela-se de suma importância por ter permitido o acesso dos pesquisadores a uma do-
cumentação até então inacessível. Herculano escreve ainda outros textos, até que suas ativida-
des públicas (como deputado, como pensador politicamente atuante, como colaborador na re-
dação do Código Civil Português) e as inúmeras polêmicas que trava com outros intelectuais
acabam por afastá-lo, definitivamente, da função de historiador.
Ainda na História da Literatura Portuguesa (Saraiva e Lopes, 2001), o capitulo IX da
época romântica é dedicado a Oliveira Martins, escritor que faz parte, assim como Eça de
Queirós e Antero de Quental, da “Geração de 70”. Embora seja conhecido principalmente
como historiador, Martins escreve a partir de 1869 uma obra vasta e multifacetada, que abran-
ge os campos da literatura, economia, antropologia e crítica social, destacando-se, no que se
refere ao conteúdo de seus textos, como um homem empenhado em cumprir um papel político
na sociedade portuguesa. Sua obra, embora desperte opiniões contraditórias e provoque infla-
madas polêmicas, torna-se capaz de influenciar historiadores, críticos e literatos, continuando
a ser lembrada até hoje.
Em 1872, Joaquim Pedro de Oliveira Martins publica Os Lusíadas - Ensaio sobre Ca-
96
mões e sua obra..., estudo em que vai buscar a inspiração para escrever, mais tarde, a história
dos reis que compõem a primeira parte da História de Portugal (1879). Nesse mesmo ano
havia publicado a História da Civilização ibérica, em que apresenta a idéia, para muitos pro-
vocadora, de que Portugal e Espanha constituem uma “unidade cultural”. Dirige, com Antero
de Quental e Batalha Reis, a Revista Ocidental (1875). Sob a influência de Proudhon, empre-
ende o ambicioso projeto da Biblioteca de Ciências Sociais, que deveria mostrar o conjunto da
história social humana, desde a sua forma primitiva até o Estado moderno. Em 1881 aparece
outro livro capaz de suscitar inúmeras polêmicas, Portugal Contemporâneo, um estudo sobre
o século XIX em que o autor tenta elaborar, em forma de relatos históricos, uma crítica do li-
beralismo português.
Perseguindo os ideais da juventude, Oliveira Martins adere ao partido Progressista,
numa tentativa prática de colaborar na mudança das estruturas da sociedade portuguesa. Ele-
ge-se deputado em 1885 e funda nesse mesmo ano um jornal no Porto, A Província (1885),
em que prega idéias de moralização da vida política e de fomento da indústria e agricultura
nacionais. Transfere-se então para Lisboa e funda outro jornal, O Repórter (1888), em cujas
páginas aparecem artigos dos melhores escritores da época. Ele próprio torna-se colaborador
da Revista de Portugal, de Eça de Queirós (1889-1892), que publica seus artigos e capítulos
de seus livros.
Em 1892, o autor da História da Civilização Ibérica exerce por quatro meses o cargo
de Ministro da Fazenda, mas é obrigado a demitir-se por manobra de seus adversários. Depois
disso, dedica-se à escrita e, após encerrar em 1885 a Biblioteca de Ciências Sociais, dedica-se
a recriar a vida de figuras históricas marcantes como Os filhos de D. João I (1891), A vida de
Nun'Álvares (1893) e prepara uma série que deveria ser concluída com a vida de D. Sebastião,
O Príncipe Perfeito, que entretanto fica inacabada por motivo de sua morte prematura.
Pode-se afirmar, considerando-se o conjunto da produção de Oliveira Martins, que
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duas obras causam impacto desde o seu lançamento e exercem maior influência no ambiente
cultural de sua terra: a História de Portugal e Portugal Contemporâneo. Na primeira, segundo
Saraiva e Lopes, o escritor “(...) quis fazer a História de Portugal por dentro, como se a alma
da nação fosse a sua própria” e que, por isso, tornou-se “(...) a mais original (e discutível) his-
tória cultural do país” (2001, p. 848).
Talvez a polêmica em torno da História advenha do tom empregado pelo autor, extre-
mamente pessimista, ao considerar que, com a morte de D. Sebastião, (1580) extingue-se o
símbolo da nacionalidade portuguesa e o Sebastianismo, que a ele sobrevive, seria apenas a
“prova póstuma” dessa nacionalidade extinta. Também a respeito desse livro, famoso e con-
trovertido, o escritor Helder Macedo afirma que(...) com o nome de História, Oliveira Mar-
tins talvez tenha escrito o 'romance místico' que melhor representa a crise da identidade portu-
guesa no século XI.” (Macedo, 1999, p. 41).
As opiniões e preferências a respeito das obras históricas de Martins variam, no entan-
to. Assim, em relação ao segundo livro, Eça de Queirós declara, em carta ao amigo
(23-07-1891): “O meu amor fica fiel ao Portugal Contemporâneo”. Essa admiração parece
não provir de um julgamento benevolente trazido pelos laços de amizade, mas pode ser expli-
cada seguramente pelas próprias qualidades estéticas do texto, pois, segundo Saraiva e Lopes:
Se a História de Portugal é a mais transfigurativa composição de Oliveira Martins, o
Portugal Contemporâneo é a que oferece quadros mais palpitantes e de maior relevo
plástico. O autor conhecera pessoalmente ou por via de contemporâneos muitas das
personagens que retrata com vivacidade inesquecível, e os acontecimentos capitais
que refere estavam ainda muito frescos na memória colectiva. Daqui resulta um em-
penho pessoal na narrativa e apreciação dos acontecimentos que nenhuma das outras
obras tem. O Portugal Contemporâneo pode, por isso, considerar-se, com todos os
seus grandes defeitos, a obra capital de Oliveira Martins e também uma das obras
mais influentes do nosso século XIX. (Saraiva e Lopes, p. 849-850)
Assim, tem-se como inquestionável a importância das obras históricas de Oliveira
Martins na cultura e na literatura de Portugal. No Dicionário de Eça de Queiroz, por exemplo,
lê-se que: “Ler o capítulo final d'O crime do Padre Amaro ou o d'Os Maias é respirar plena-
98
mente a tónica essencial de interpretação martiniana da história pátria, cuja evolução, no sen-
tido da exaltação dos heróis do passado, se reflectirá também n'A Ilustre Casa de Ramires
(Matos, 1988, p. 685). Traços dessa visão martiniana pessimista da História portuguesa apare-
cem também na poesia decadentista do final do século XIX, nos autores saudosistas e em José
Régio. Segundo António José Saraiva, o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, “(..) é a con-
densação em mitos da narrativa de Oliveira Martins, principalmente.” (Saraiva, 1996, p. 103).
O final do século XIX traz, desse modo, para os que formaram a “Geração de 70”,
uma espécie de desencanto que se concretiza no grupo denominado “Vencidos da Vida”, do
qual também faz parte o autor da História de Portugal. Não é de se admirar, pois, que o ami-
go Eça de Queirós lhe escreva (14/09/1892), expressando a sua desolação com o estado atual
de sua pátria: “Evidentemente, não hoje para um português senão uma solução - que é,
como tu, viver na História, e esquecer o que é, na convivência do que foi. (Queirós, 2000, v.
IV, p. 281). Deve-se lembrar que é nesse estado de espírito, melancólico e saudosista, que Eça
escrevera, um ano antes, o conto que vai ser o embrião do romance A ilustre casa de Ramires.
NAS TRAMAS DA “PENÉLOPE SOMBRIA”
13
O escritor Eça de Queirós nasce num país cuja História tem uma tradição de séculos;
entretanto, no início de sua vida literária, tocado pelos ideais do Realismo-Naturalismo, dirige
a pena para os acontecimentos à sua volta, para a crônica dos homens e mulheres de seu tem-
po. Na cena final da versão definitiva de O Crime do padre Amaro já se pode notar, porém,
quando as três personagens de um Portugal decadente dialogam sob o olhar da estátua de Ca-
mões, um esboço de reflexão a respeito dos rumos históricos de sua pátria.
O autor parece render-se ao fascínio da “Penélope sombria” da Ode de Antero quando,
já se afastando da corrente realista, decide escrever A Relíquia (1887). Entretanto, nas páginas
13 O título remete a verso do poema “História”, de Antero de Quental.
99
desse livro uma volta à Palestina da época de Jesus Cristo e não um retorno ao passado
português. O que poderia explicar essa atitude distanciada do autor, num século em que o de-
nominado romance histórico atinge uma fase de grande popularidade em Portugal ? Em carta
enviada ao conde de Ficalho (Londres, 15/06/1885), o escritor dá-lhe ciência de que se encon-
tra envolvido em pesquisas históricas para escrever um romance:
(...) respondo de Londres onde vim indagar sobre pedras, nomes de ruas, mobílias e
toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha e não de Jesus como pedia a devoção,
ou de Tibério como pedia a História – porque ela realmente me pertence, sendo, ape-
sar de todos os estudos, obra de minha imaginação. (Queirós, 2000, v. IV, p. 349)
Afirma Eça ao amigo, porém, que todo esse esforço em pesquisar o passado não passa
de ilusão, pois (...) a História será sempre uma grande Fantasia.” (Queirós, 2000, v. IV,
p.349). Como escritor, portanto, Eça tem a convicção de que a reconstrução de uma época que
já se foi significa sempre um trabalho de invenção. Confessa também que essa busca de inspi-
ração em antigos manuscritos, esse esforço de dedicar-se às vigílias da erudição” revelam
que acaba por render-se ao que ele denomina o “culpado apetite do romance histórico.”
O autor de O mandarim parece, apesar desse confessado fascínio, não ter uma opinião
muito favorável a respeito desse tipo de texto literário, e a outro amigo, o Visconde de Sabu-
gosa (Paris, 21/07/1889), mesmo parabenizando pelo artigo “Touradas em Portugal”, que de-
seja publicar na Revista Moderna, não deixa de acrescentar a afirmação:
A novela histórica é um gênero abominável: mas a monografia histórica tratada
como a sua Touradas de Xabregas - avivada aqui e além por um trecho de diálogo,
um traço de paisagem, um detalhe de trajes de velhos costumes no feitio de roman-
ce, é um gênero encantador. (...) A história íntima do passado, sobretudo de Corte,
ganha muito em ser contada por uma plumme de gentilhomme. (Queirós, 2000,v. IV,
p. 374)
Talvez essa opinião de Eça de Queirós se deva à banalização a que, de certa forma,
chega o romance histórico em Portugal depois de Herculano, já que o sucesso entre os leitores
(como se disse anteriormente) faz com que haja um aumento do número de romances e ro-
100
mancistas dedicados ao gênero, embora esse aumento nem sempre se faça acompanhar da cor-
respondente qualidade. De qualquer forma, é interessante pensar que, dois anos depois de re-
digir essa opinião em carta, o autor escreva o conto que se transformará, depois n'A ilustre
casa de Ramires.
No entanto, é na longa carta ao historiador Oliveira Martins (Paris, 26/04/1894), na
qual faz comentários sobre o “Condestável”, que Eça o seu mais precioso depoimento so-
bre a reescrita da História. Confessa o seu encantamento inicial com a leitura, que lhe propor-
ciona a sensação de estar na Lisboa do século XV, vagando pelas ruelas e misturado ao povo.
Esse prazer do leitor é atribuído, por Eça, ao requinte com que o escritor trabalha o texto: “A
sua beleza está em não ser quase um 'livro', uma coisa impressa, mas uma grande realidade
viva, em que nada é de papel e tudo de substância viva. É mesmo mais que uma dessas ressur-
reições históricas...” (Queirós, 2000, v. IV, p. 285).
Eça não deixa, porém, de fazer censuras ao texto de Oliveira Martins. De início, faz
reparos à tendência do amigo em fazer analogias, às vezes gratuitas, entre vultos do presente e
do passado, transportando para ironias e desdéns que cultiva na vida pública. Também cha-
ma a atenção paracertas minudências do detalhe plástico” que podem ter o efeito de quebrar
a verossimilhança que um relato histórico sempre deve pretender e adverte-o: “Que documen-
tos tens para dizer que a Rainha num certo momento cobriu de beijos o Andeiro, ou que o
Mestre passou pensativamente a mão pela face? ... Estavas lá? Viste?” (Queirós, 2000, v. IV,
p. 286).
Eça lembra ainda ao amigo que talvez na alma do Condestável apareçam muitas idéi-
as que fazem parte apenas das mentalidades do século XIX e que, assim, não poderiam habitar
os pensamentos de um homem da época medieval. Apesar dessas observações, Eça revela que
a leitura do livro teve o dom de torná-lo patriota e incentiva Martins a continuar seu trabalho
de historiador, dizendo: “No teu trato, tu reconstróis a Pátria. E não é pequeno feito reportu-
101
guesar Portugal.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 287).
Segundo o queirosiano Carlos Reis (1999, p. 108), a indecisão do autor em relação aos
textos históricos pode ser vista também porque, ao mesmo tempo em que publica contos com
histórias passadas na época medieval, como O tesouro (1894), Frei Genebro (1894) e O de-
funto (1895), escreve uma carta, ao discípulo Alberto de Oliveira, em que o alerta contra os
adeptos do neomedievalismo e do neotrovadorismo, com a frase: “Não, caro amigo, não se
curam misérias ressuscitando tradições.”
Assim, dividido entre a sedução de buscar em episódios do passado português um
tema para os seus romances e o receio de talvez produzir um texto de duvidosa qualidade
(como tantos que vê, à época, sendo publicados), Eça de Queirós finalmente decide escrever
A ilustre casa de Ramires. Entretanto, esse temor parece ter sido infundado, pois algo curioso
ocorre com esse livro, segundo T. F. Earle, no Dicionário de Eça de Queiroz:
Por uma ironia da história literária, o romance histórico português mais bem conhe-
cido hoje é, provavelmente, a narrativa acerca das façanhas do clã dos Ramires in-
cluída por Eça n'A Ilustre Casa de Ramires, cuja acção decorre no Portugal dos fins
do culo XIX.(...) supostamente escrita por Gonçalo Mendes Ramires, acerca dos
seus avós remotíssimos e bárbaros de nomes sonoros... (Earle, 1988, p. 515)
Como se mencionou, esse romance é publicado em livro em 1900, o ano da morte
do escritor (1900), mas havia sido anunciado como conto dez anos antes, na Revista de Portu-
gal. Em 29/07/1893, o escritor escreve a seu editor Jules Genelioux queLa Casa de Ramires
est presque finie” (Queirós, 2000, v. IV, p. 884). Mas somente em carta a outro editor, José
Lello (23/11/1898), Eça afirma ter recebido as primeiras provas do Ramires, livro que vai ser
publicado somente após a sua morte e terá parte de sua revisão feita por Júlio Brandão.
Na “Nota final” da edição do romance organizada por Helena Cidade Moura, apon-
tam-se alguns fatores que talvez expliquem por que há tal demora na escrita e conclusão desse
romance, além das conhecidas atribulações familiares e de saúde sofridas pelo autor d'O pri-
mo Basílio no final da vida:
102
Esta história da Casa de Ramires que levou sete anos a transformar-se no livro A
Ilustre Casa de Ramires, teve uma longa gestação, de que ficaram marcas entre os
papéis do escritor: longas listas de vocabulário medieval relativo ao vestuário, a
utensílios, pormenores de castelos medievais, e uma carta ao conde de Arnoso em
que pede o envio para Paris, do Portugaliae Monumenta Historica para fundamentar
as suas antiqualhas ramíricas... Enfim, uma longa elaboração, uma longa documen-
tação, que atestam a preocupação de verdade, de perfeição, da parte do escritor.
(apud Matos, 1988, p. 508)
Tudo leva a crer, portanto, que após decidir-se pela escrita de um romance com uma
temática histórica, Eça de Queirós empenha-se a fundo na sua elaboração; entretanto, tenta
construir uma narrativa que seja diferente, tanto no conteúdo quanto no aspecto formal, de
inúmeras outras que haviam sido escritas sobre o passado português.
Essa necessidade de cuidadosa pesquisa de documentos e leitura de livros especializa-
dos, que é uma exigência da escrita de um bom romance histórico, mostra-se de modo concre-
to na primeira página do livro: seu protagonista, o fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, surge
na biblioteca a trabalhar na sua novela histórica, A Torre de D. Ramires, junto a uma mesa:
“(...) atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da História genealógica, todo o Vocabulário
de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao conto, em pilha, as obras de Walter Scott...(Quei-
rós, 2000, v. II, p. 223)
14
Assim, Gonçalo Ramires também escreve uma novela histórica” e
deve-se lembrar que esse gênero literário fora classificado como “abominável” pelo escri-
tor.
Sabe-se, por palavras do próprio autor, que o título de um livro lhe parece- ter muita
importância, pois além de revelar um pouco do que trará a narrativa, deve ter ainda o dom de
atrair os futuros leitores. Assim o título A ilustre casa de Ramires certamente revela-se atrati-
vo para o leitor de romances históricos, mas também pode representar uma espécie de armadi-
lha. Se Eça parece ampliar, com a palavra “casa”, o significado para toda uma classe de an-
tigas estirpes, ao antepor-lhe o ajetivo “ilustre”, introduz um toque de ambigüidade, pois o
adjetivo tanto pode ter um sentido de marca positiva, quanto indicar uma ironia quanto ao ver-
14 Daqui em diante, as citações referem-se a: QUEIRÓS, Eça de. A Ilustre Casa de Ramires. IN: Obra Comple-
ta, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997 e indicarão somente o número da página.
103
dadeiro valor de várias gerações, nem “tão” ilustres, que marcam presença nas páginas do li-
vro.
Essas primeiras páginas de A ilustre casa de Ramires são capazes de nos mostrar,
portanto, que um olhar irônico irá percorrer o antigo Portugal que é dado a ver no romance.
Além disso, pode-se perceber também que, através da trajetória que a personagem Gonçalo
Mendes Ramires inicia, serão problematizadas as dúvidas, escolhas, angústias e o próprio
amadurecimento de um leitor-autor de sua época.
UM TECEDOR DA HISTÓRIA
“Como aluno, a História, a nossa, nesses tempos, nunca foi para mim mais do que uma
sucessão de dados e batalhas e reis e pessoas e episódios, essas coisas todas que a gente tinha
de aprender.” Dessa maneira o escritor José Saramago revela a Carlos Reis, seu entrevistador
(2000, p. 37), a forma superficial e destituída de senso crítico em que transcorriam as aulas da
História, no seu tempo de escola. No entanto, essa aproximação inicial distante e burocrática
(ou talvez mesmo por esse motivo) não impede que o antigo estudante se torne um autor que,
mais tarde, por muitas vezes se dedica, nos romances, a fazer releituras de fatos históricos.
O autor de Memorial do Convento dá sempre mostras, em entrevistas ou em textos que
escreve e não apenas nas páginas de romances, de que a a relação entre a História e Literatura,
História e escrita, História e mundo são sempre objetos de reflexão de sua parte. Assim é que,
no Cadernos de Lanzarote (28/10/1995), faz o relato de uma conferência pronunciada na Fei-
ra do Livro, em Oslo, e por nove páginas (619-627), discorre sobre as “ambíguas relações”
entre História e Ficção.
Na primeira parte, Saramago apresenta reflexões sobre o que considera a tarefa do his-
toriador: selecionar fatos e organizá-los de modo coerente, trabalho em que, de modo geral,
obedece a “consensos ideológicos e culturais concretos”, o que o leva não apenas a escrever
104
História, mas a fazer História. Torna-se assim detentor de um poder significativo, pois “Nesse
outro acto de Criação, o historiador decidiu o que do Passado era importante e o que do Passa-
do não merecia atenção.” (Saramago, 1998, p. 620), fato que faz lançar dúvidas sobre a pró-
pria “objetividade” do historiador.
O autor português lembra que escreveu um livro, Viagem a Portugal, que embora te-
nha esse nome, não é um roteiro comum para viajantes, mas um livro de impressões e experi-
ências, como o faziam os escritores do século XVII e XVIII. Para Saramago, a História,
como a “faz” o historiador, pode ser comparada a esse primeiro relato de seu livro. Mas lem-
bra que ainda restam, nesse país relatado pelo viajante, zonas obscuras” e é nelas que o ro-
mancista poderá trabalhar. O autor confessa então que, como esse passado não pode ser re-
constituído plenamente, pode-se ter a tentação de “corrigi-lo”, mas esclarece:
Quando digo corrigir o Passado não é no sentido de emendar os factos da História
(não poderia ser essa a tarefa de um romancista), mas sim, se me permite a expres-
são, introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até parecera in-
discutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. (Sara-
mago, 1998, p. 623)
Nessa tarefa de escrever o que “poderia ter sido”, o romancista busca escolher fatos
que possam representar uma forma de olhar a História pelo “avesso”. Saramago declara que o
seu interesse recai sobre o que considera o tempo enigmático a que chama “perdido”, sobre as
pequenas histórias pessoais, que estão por detrás dessa História de formato grande, geralmen-
te conhecida de todos. Também refuta a hipótese de que a escolha de voltar ao passado seja
uma espécie de fuga da realidade presente, dizendo: “Pelo contrário, é precisamente uma
consciência intensíssima quase dolorosa, do Presente, que leva o romancista a olhar na direc-
ção do Passado, não como um inalcançável refúgio, mas para conhecer mais e sobretudo para
conhecer melhor.” (Saramago, 1998, p. 626).
Diz ainda o autor português que, assim, o romance histórico transforma-se numa in-
terrogação dos tempos passados em nome das inquietações e angústias do presente,
105
(...) capaz de produzir algo como uma oscilação contínua em que o leitor directa-
mente participa, graças a uma contínua provocação que consiste em negar-lhe, por
processos que são sempre de raiz irónica, o que primeiro lhe havia sido dito, criando
no seu espírito uma impressão de dispersão da matéria histórica na matéria ficciona-
da...(Saramago, 1998, p. 625)
Por essas reflexões de José Saramago, percebe-se que ele, ao contrário do que ocorre
com Eça de Queirós, valoriza o romance histórico, pois tem consciência de que esse tipo de
texto representa um importante espaço de diálogo e reflexão entre o escritor e seu leitor. Um
fator que deve ter contribuído para essa visão saramaguiana pode ser buscado na leitura de al-
guns dos teóricos da corrente denominada “Nova História”, como se pode comprovar na nota
escrita no Cadernos II (03/12/1996), por ocasião da morte de um de seus expoentes:
Morreu Georges Duby. Ficaram de luto os historiadores de todo o mundo, mas sem
dúvida também alguns romancistas. Este português, por exemplo. Posso mesmo di-
zer que sem Duby e a “Nouvelle Histoire” talvez o Memorial do Convento e a His-
tória do Cerco de Lisboa não existissem. (Saramago, 1999, p. 262)
O que se poderia dizer, entretanto, sobre esse tipo de romance escrito por José Sarama-
go? Segundo Leyla Perrone-Moisés, no artigo “Formas e usos da negação na ficção histórica
de José Saramago” (1999, p. 101), não se pode classificá-lo simplesmente como “romancista
histórico”, se temos como modelo o tipo de ficção praticada por autores do século XIX. Isso
porque o autor de Memorial do Convento não tenta transportar-se ou levar o leitor a mundos
do passado, através de reconstituição realista ou pitoresca, mas prima por desconstruir “(...)
todo realismo, pelos voluntários anacronismos, pelas bruscas mudanças de enunciador e de
tom, pela mistura de registros altos e baixos, pela introdução de eventos fantásticos na trama
oficial ou cotidiana, pela ironia e humor de seus autocomentários.” (Moisés, 1999, p. 101).
Também a professora Maria Alzira Seixo, no artigo “Alteridade e auto-referencialida-
de no romance português de hoje”, lembra que os romances de Saramago revelam uma abor-
dagem mais complexa do que o simples rótulo de “romance histórico” poderia sugerir:
(...) daí que os seus livros tenham sido lidos, em muitos casos, como romances histó-
106
ricos – o que, obviamente, e de uma perspectiva rigorosa de teoria literária, não são.
O que acontece é que José Saramago convoca o passado, aliás fielmente reconstituí-
do (mas com intromissões de tipo fantástico que o alterem, note-se), para o filtrar de
modo consciente por uma óptica do presente o que é inteiramente diverso do que
acontece com o romance histórico, onde o presente se abandona como tal para mer-
gulhar completamente no passado e nele se integra... (Seixo, 1986, p. 23)
Talvez a própria trajetória literária do autor possa explicar, no caso de José Saramago,
como a abordagem do fato histórico vai-se tornando mais complexa e sofisticada . Na verda-
de, a partir do Manual de pintura e caligrafia (1977), em que retoma a escrita de romances
após uma pausa de trinta anos, significativos acontecimentos históricos se fazem presentes.
Assim, nessa narrativa, que acompanha o nascimento de um processo de escrita, as reflexões
sobre a arte e a vida têm, como pano de fundo, a época final da ditadura salazarista.
No romance seguinte, Levantado do chão (1980), em que é narrada a saga de uma fa-
mília de camponeses do Alentejo durante três gerações, o caminho da escrita saramaguiana
parece ser definitivamente encontrado. Nesse livro o autor revisita críticamente marcos de um
passado histórico ainda recente, como a instauração da República, as Grandes Guerras, A
Guerra Civil Espanhola, até a liberdade vinda com a Revolução dos Cravos.
É com Memorial do Convento (1982), porém, que Saramago mergulha de vez na His-
tória de Portugal, ao contar, como se fosse pelo avesso, o fato real da construção do Convento
de Mafra por D. João V, no século XVIII, enredado no fantástico relato de uma passarola que
levanta vôo, impulsionada pelas vontades humanas. No estudo intitulado A invenção do ro-
mance”, a professora Maria Alzira Seixo aponta a originalidade da maneira como a ficção de
José Saramago trabalha o elemento histórico, traço que no Memorial se pode ver à perfeição:
Criados os enquadramentos verídicos e os pontos nodais chamados “históricos” da
acção do romance, ei-lo que efabula a mais impossível das histórias, fazendo distin-
guir o sobrenatural e o fantástico sobre o histórico de modo a quase o submergir
completamente, e, por isso mesmo fazendo avultar, sob a cobertura, a essencial dinâ-
mica de um real multifronte, inapreensível...(Seixo, 1999, p. 39)
Em entrevista concedida aos professoreslia Parreira Duarte, Letícia Malard e Wan-
der Melo Miranda, por ocasião do I Encontro Nacional de Culturas de Países de Língua Portu-
107
guesa, em Belo Horizonte, o autor português fala do “sentimento de responsabilidade” que a a
nova situação política trouxe a Portugal e se reflete na sua releitura da História: “É uma espé-
cie de necessidade de corrigir a própria História, quer dizer, usar a ficção como corretor da
História e o Memorial do Convento é exemplar nisso. A passarola nunca voou e, contudo, no
Memorial, ela voa .” (Saramago, 1988, p. 95).
Em O ano da morte de Ricardo Reis (1984), misturam-se mais uma vez História, fic-
ção e um vertiginoso diálogo intertextual. O personagem-título do romance diz a Fernando
Pessoa, em determinado momento do insólito diálogo entre um morto e um heterônimo revifi-
cado: “Talvez que eu tenha voltado a Portugal para saber quem sou.” (2000, p. 119). Essa fra-
se talvez se possa aplicar também ao romancista, que mais uma vez retorna ao passado, a uma
Lisboa banhada por uma chuva contínua do ano de 1936, numa Europa abalada por convul-
sões políticas e sociais.
A original visão saramaguiana da História se faz presente de novo n'A jangada de pe-
dra (1986), que é uma volta aos tempos atuais, porém com um toque de fantástico, enquanto o
mundo medieval é revisitado na História do cerco de Lisboa (1989). O título desse romance, à
primeira vista de um sentido unívoco e direto, a impressão de indicar um livro que, como
tantos outros, foi escrito a respeito de um episódio bastante conhecido dos portugueses.
Mas devemos nos lembrar que Saramago diz, na entrevista dos Diálogos, a Carlos Reis: “(...)
a História não é parcial como é parcelar. Noutros termos: por que é que a literatura não há-
de ter também a sua própria versão da História?” (Saramago, 1998, p. 87).
Quando concede a citada entrevista em Belo Horizonte (1987), o autor português
encontra-se no processo de escrita da História do cerco de Lisboa e faz alguns esclarecimen-
tos a respeito do relacionamento entre História e ficção, especialmente nesse romance:
Não é reconstituição histórica, peço que não acreditem nisso, não é um livro de ar-
queologia em que eu ia pôr os guerreiros vestidos de ferro, os castelhanos ou mouros
a dar espadeiradas nos adversários, talvez tenha alguma coisa disso ou terá, mas no
fundo, não é isso. É, sobretudo e resumindo, o ficcionista como colaborador do his-
108
toriador. A minha atitude em relação à História, o que a gente aprende nos livros, é
uma atitude fundamentalmente cética. Aquilo é um discurso sobre a História, ou me-
lhor, sobre o passado, e chamamos de História. Mas, paralelamente a esse discurso
pode traçar-se um discurso que nesse caso também é um percurso, podem entrelaçar-
se centenas ou milhares de outros discursos... (1988, p. 95)
A epígrafe do romance, retirada de um hipotético Livro dos Conselhos, discorre sobre
a busca da verdade. Diferentemente de Fernão Lopes, que afirmava com certeza buscar a
“simprez” e “nua” verdade, Saramago acentua a frustrante tarefa que é buscá-la e corrigi-la. A
advertência que faz, ao final, pode resumir sua atitude (e por que não também a do persona-
gem Raimundo Silva?) perante a vida e o mundo: “Entretanto, não te resignes”.
Raimundo Silva aparece no primeiro capítulo apresentado apenas como “o revisor”, e,
de modo curioso e até irônico, se levarmos em conta o que será a sua ação fundamental no ro-
mance, a primeira palavra por ele pronunciada é “sim”. No entanto, em sua pretensa humilda-
de, se pode perceber um traço de espírito crítico, seja nas observações pertinentes que faz
no diálogo, seja nas provocações que sutilmente faz ao escritor de História, como na afirma-
ção que deixa inconclusa: “Considere, senhor doutor, a vida quotidiana dos revisores, pense
na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três, ou quatro, ou cinco vezes, livros que, Prova-
velmente, nem uma vez o mereceriam, Fique registado que não fui eu quem proferiu tão
gravosas palavras...”
15
(Saramago, 2000, p. 14).
Não é gratuita também a menção, nessa conversa inicial, aos autores Balzac e Eça de
Queirós, conhecidos pela sua preocupação quase obsessiva de burilar o texto. O próprio Sara-
mago, em apontamento no Cadernos I (13/08/1993), a respeito das dificuldades no início do
Ensaio sobre a cegueira, revela que escrever o primeiro capítulo de um livro, por causa das
múltiplas indecisões e correções, é a tarefa que lhe exige mais tempo. Confessa que gostaria
que os leitores soubessem “(...) quanto eu tive que penar por causa do que veio a tornar-se em
segundo capítulo da História do cerco, antes de perceber que teria de principiar com um diá-
15 Daqui em diante, as citações referem-se a: SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000 e indicam somente o número da página.
109
logo entre o Raimundo Silva e o historiador...” (Saramago, 1998, p. 101).
Esse diálogo inicial do romance, portanto, leva o leitor a um caminhar por vários te-
mas relativos à leitura e à escrita de textos, aos diálogos entre os incontáveis textos de inúme-
ras épocas que o espírito humano empreende. Esse tema percorrera as páginas do Manual
de pintura e caligrafia e José Saramago nunca deixa de lembrá-lo em seus romances; no en-
tanto, aqui as reflexões não são feitas por um autor literário, mas irônica e curiosamente, por
um “revisor” e um “historiador”.
Assim, a partir desse diálogo inicial, em que questões sobre os próprios conceitos de
literatura e História passam a ser discutidos, percebe-se que a História do cerco de Lisboa
principia a ser, também, uma história de reflexões sobre a leitura e a escrita.
110
IV - DESTE MUNDO E DE OUTROS
16
Ora esguardae, como se fosses presentes, ua tal cidade...
(Fernão Lopes em Quadros da Crônica de D. João I, p. 73))
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados...
(Cesário Verde em O livro de Cesário Verde, p. 100)
OLHAR, VER, APONTAR...
Para o livro intitulado O olhar (1997), Marilena Chauí escreve o artigoJanela da
alma, espelho do mundo” e como epígrafe para o seu texto, vale-se das conhecidas palavras
de Leonardo da Vinci: “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do
corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do cor-
po que, sem esse poder, seria um tormento...” (apud Chauí, 1997, p. 31).
Tendo como ponto de partida essa citação, Marilena Chauí reflete sobre as incontáveis
palavras e expressões, ligadas ao sentido da visão humana, que fazem parte do nosso vocabu-
lário de todo dia, sem que mesmo tenhamos consciência disso. Por exemplo, usamos “visões
de mundo” quando queremos explicar diferenças de opinião entre as pessoas, “rever concei-
tos” para indicar uma mudança de idéias, “abrir os olhos” para mostrar que descobrimos o
significado real de uma situação e até precisamos “ver para crer” que algo é verdadeiro. Mari-
lena Chauí explica: “Assim falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cre-
mos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os ve-
mos porque existem. Somos, pois, espontaneamente realistas.” (Chauí, 1997, p. 32).
Chauí lembra, porém, que esse olhar que nos revela o mundo e tem a pretensão de nos
aproximar da realidade, parecendo mesmo ser uma garantia de que algo seja tomado como
16 O título remete ao livro Deste mundo e do outro, de José Saramago.
111
verdadeiro, pode também representar um perigo. Assim é que, desde os relatos mais antigos
conhecidos pelo homem, vemos que o mero gesto de voltar os olhos para algo é capaz de, às
vezes, trazer terríveis conseqüências: no relato bíblico, a mulher e a filha de transformam-
se em estátuas de sal e na lenda mitológica Orfeu perde Eurídice, pela desobediência à ordem
de não olhar para trás. O belo Narciso apaixona-se e perde-se pela própria imagem vista nas
águas e a apaixonada Psique é abandonada pelo esposo, por não resistir à proibição de tentar
ver o seu rosto. (Chauí, 1997, p. 33)
Ao analisar as idéias de homens de ciência e pensadores que, desde a antiguidade, vêm
discorrendo sobre a complexidade do ato de “olhar”, Marilena Chauí aponta outra característi-
ca, também perigosa, ligada à visão, lembra as observações de Galileu Galilei e sua argumen-
tação com debatedores, para mostrar que os olhos nos iludem, mentindo-nos sempre. Tal en-
gano poderia ser corrigido, mas para isso teríamos de nos socorrer com o auxílio da ciência,
valendo-nos do uso de lentes mecânicas. Para o físico, não nos basta o dom da visão, pois
(...) a imagem visual será objetivamente verdadeira quando e somente quando o te-
lescópio corrigir a imagem subjetiva ilusória, isto é, aquilo que nossos olhos não
equipados vêem. O essencial no telescópio não é que aproxime ou aumente objetos,
mas que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar do ato de conhecer, de-
positado no instrumento. (Chauí, 1997, p. 55)
Continuando em sua análise, que vai desde Aristóteles e Platão, passando por Descar-
tes e chega até a modernidade com Merleau-Ponty, Chauí mostra que a discussão em torno do
“olhar” e do seu significado percorre os debates entre pensadores de todos os tempos.
Para que o homem se expresse através das várias formas de arte, o papel da visão é
fundamental: na escultura, na pintura, no teatro, na dança, na fotografia, no cinema... Entre
tais artes ligadas à visão, a pintura sempre teve lugar de destaque e, segundo Chauí, “eleva à
última potência o delírio da visão” (1997, p. 60) enquanto, para Ponty, a pintura representa a
“ruminação do olhar” (apud Chauí, 1997, p. 60). Mesmo naquelas artes que, pelo menos apa-
112
rentemente, não teriam tanto a ver com a visão, como música e literatura, aquele que compõe
e o que escreve sempre pretendem traduzir, com as notas e com as palavras, o mundo que têm
diante dos olhos.
“Pintar é dar a ver”, afirma José Saramago em seu diário. Substituindo-se apenas o pri-
meiro verbo nessa frase, não se aplicaria ele a todas as artes? Não seria então o artista aquele
que oferece ao espectador/ouvinte/leitor uma visão do espetáculo do mundo? Com maior ou
menor intensidade, tentando ser mais ou menos fiel ao que o circunda (de acordo com as ten-
dências de cada época), o olhar do artista vagueia pelos espaços, buscando no real a matéria
de sua criação. No caso dos escritores Eça de Queirós e José Saramago, de que maneira o ato
de escrever o mundo se aproximaria de uma pintura dele? Qual o papel da época em que vi-
vem para criar um texto em que o “ver” e o “mostrar” parecem tão marcantes? Qual a impor-
tância do ato de “olhar” para esses autores?
OS CENÁRIOS DA MODERNIDADE
Na “Paris do Segundo Império”, focalizada por Walter Benjamin no terceiro volume
das Obras Escolhidas, os apelos à visão representados pelos Panoramas, os espaços circu-
lares em que os transeuntes podem apreciar magníficos espetáculos imagéticos e pelas Gale-
rias, cobertas de vidro e revestidas de mármore, que exibem elegantes estabelecimentos co-
merciais. Benjamin lembra que o literato desse tempo vai à feira e olha à sua volta como em
um panorama e todos lêem as fisiologias, populares descrições das realidades citadinas, um
tipo de texto destinado a se vender nas ruas. (Benjamin, 2000, p. 33-35)
Walter Benjamin cita Georg Simmel para mostrar que as mudanças nas grandes cida-
des transformam mesmo o comportamento e as relações entre as pessoas, que (...) se distin-
guem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva” (apud Benjamin,
2000, p. 36), citando como exemplo disso o fato de que, depois do advento dos transportes co-
113
letivos do século XIX, as pessoas, mesmo sem se conhecerem, passam a viver a experiência
da troca de olhares, seja por minutos, ou mesmo por horas a fio.
Falando ainda do século XIX, Benjamin ressalta no estudo sobre Baudelaire a figura
do “flâneur”, o transeunte que passeia o olhar distraído pelas ruas e galerias da cidade grande
e que “(...) na atitude de quem sente prazer assim, deixava que o espetáculo da multidão agis-
se sobre ele” (Benjamin, 2000, p. 55). Segundo o estudioso de História da Arte Donald Rey-
nolds, é nessa Paris efervescente, em que o caminhar e o ver representam atividades primordi-
ais, que
Em meados do século XIX, surgiu na pintura francesa um novo realismo, que teve
efeito profundo sobre a arte do período, tanto a oficial quanto a de vanguarda. Foi,
em parte, uma reação contra o “estilo correto” que dominava os Salons (a uniformi-
dade polida dos que seguiam as técnicas dos velhos mestres) e, em parte, uma reação
contra as visões subjetivas da natureza e os extremos da fantasia da visão romântica
da paisagem. (Reynolds, 1990, p. 69)
O movimento, pejorativamente nomeado na época de Impressionismo, tem inicialmen-
te em Gustave Coubert e Édouard Manet seus nomes mais destacados. Esses pintores contri-
buem para a libertação da pintura de restrições impostas na época, mas para isso têm de desa-
fiar a Academia e expor seus trabalhos em exposições independentes.
Segundo Reynolds, a palavra “impressão” é usada na época para “referir o impacto vi-
sual inicial que um artista recebia quando observava um tema para pintá-lo” (1990, p. 86).
Essa primeira impressão seria, portanto, apenas um esboço, um passo em direção à pintura
acabada e, assim, a Academia considera de modo desfavorável os pintores impressionistas,
que privilegiariam, na sua concepção, esse momento inicial do processo de pintar. Tal opinião
é bem representada pelo crítico Louis Leroy, que classifica a atitude dos pintores impressio-
nistas, na exposição de 1874, como “antiacadêmica, desafiadora e hostil”.
Uma importante observação feita por Reynolds é que a pintura impressionista, embora
seja uma decorrência da obra dos pintores realistas, revela-se entretanto diferente dela, pelo
114
objetivo que se propõe: “Os impressionistas estavam fundamentalmente interessados em re-
tratar fielmente suas percepções do mundo natural, tal como o viam, sem veicular qualquer
mensagem social ou moral.” (Reynolds, 1990, p. 87)
Outro acontecimento importante e que marca também o século XIX como profunda-
mente ligado ao visual é a invenção da fotografia (1839), de início vista com desconfiança por
alguns artistas, como revela Walter Benjamin no artigo “Pequena história da fotografia”. Bau-
delaire, por exemplo, anuncia aos leitores no “Salão de 1859” o perigo que a nova descoberta
representa: Se for permitido à fotografia substituir a arte em algumas de suas funções, em
breve ela a suplantará e corromperá completamente. ...” (apud Benjamin, 1994, p. 107).
No entanto, Baudelaire também faz uma sugestão para o futuro da invenção que aca-
bará, felizmente, por se concretizar: “É preciso, pois, que ela cumpra o seu verdadeiro dever,
que é o de servir as ciências e as artes” (apud Benjamin, 1994, p. 107). Assim, para Reynolds
A maioria dos artistas de vanguarda foi afetada de um modo ou outro pela fotogra-
fia. Coubert usou fotografias de modelos nus para suas pinturas de banhistas. Alguns
escritores viram a influência do pano de fundo usado no século XIX pelos estúdios
fotográficos em alguns fundos de telas de Manet. (...) Certas propriedades formais
de enquadramento, espaço, linha e variações tonais atraíram os artistas da vanguarda
em geral, e Degas, em particular. (Reynolds, 1990, p. 91)
Vivendo nessa Paris “panorâmica”descrita e analisada por Benjamin, um espaço em
que todos os apelos realçam a extrema visualidade do mundo, Eça de Queirós escreve as pági-
nas da derradeira fase de sua obra, entre elas n'A ilustre casa de Ramires. Até que ponto a es-
crita do autor e o Portugal que seus textos recriam teriam sido afetados por todo esse desafia-
dor contexto do final do século XIX, em que tem extrema importância o ato de olhar?
O MUNDO COMO UM QUADRO
Ver e retratar o mundo com as palavras é também uma pretensão da literatura e assim
os autores, como não podia deixar de ser, são afetados pelas tendências que assinalam cada
115
época. Naquela em que vive Eça de Queirós, a tendência realista-naturalista entrelaça-se a to-
das as formas de arte. Isso faz com que o artista busque ter o seu olhar tocado pela realidade à
sua volta e possa traduzi-la de modo fiel, o que vai marcar então uma forma específica de es-
crever o mundo.
Assim, é compreensível que Eça seja um autor que se destaque por revelar, especial-
mente naqueles textos da primeira fase de sua vida literária, uma preocupação de olhar, ver e
apontar. As farpas (1871-1872), um dos seus mais conhecidos trabalhos de imprensa, tem
como ilustração a imagem de um diabo tendo nas mãos uma luneta, com que parece se diver-
tir na ação de esquadrinhar o mundo com olhos penetrantes. Na própria crônica que início
aos textos, antes de analisar aspectos marcantes da decadência da sociedade de sua terra, Eça
faz ao leitor um apelo, para que exercite um olhar crítico e observador sobre a realidade de
Portugal: “Aproxima-te um pouco de nós, e vê.” (Queirós, v. I, p 663).
Provavelmente, também não se trate apenas de coincidência o fato de nos defrontar-
mos, inúmeras vezes, com a imagem que mostra o próprio autor que, talvez para ser capaz de
observar o mundo com mais nitidez, vale-se do auxílio de um monóculo. Toda essa curiosida-
de pelo que pode revelar a visão, todo esse desejo para esquadrinhar tudo que o mundo coloca
à frente dos olhos, talvez possam explicar uma inclinação para as artes plásticas, além de um
especial interesse pela pintura.
Segundo António Garcês da Silva, no Dicionário de Eça de Queiroz (1988), tal incli-
nação pode ser comprovada, desde que analisemos “(...) os juízos sobre as correntes estéticas,
as citações pertinentes, até à criação de imagens e às comparações, inspiradas na pintura, sem
esquecer a natureza essencialmente pictórica do seu estilo literário, de nítidas implicações im-
pressionistas e simbolistas” (Garcês, 1988, p. 720). Assim, em variados artigos que o autor es-
creve para jornais e revistas, bem como nos detalhes de cenários dos romances, encontramos
exemplos de referências à forma de olhar o mundo e de buscar representá-lo como se fosse
116
em quadros.
Em textos da fase inicial, como “Da pintura em Portugal” (Revista de Portugal,
10/11/1867), Eça faz um estudo panorâmico das artes e louva as manifestações da Alemanha,
da França, da Itália e da Espanha. A ausência de criação artística dos portugueses, em épocas
passadas, é justificada pelo permanente estado de lutas e conquistas em que sempre estiveram
empenhados. Assim, diz: “As suas epopéias eram os diários de bordo: a sua escultura, era a
armação dos galeões. Como pintavam eles? Com sangue, nas muralhas” (Queirós, 2000, v. III,
p. 93). Todavia, faz em seguida uma crítica demolidora da arte em seu país na época contem-
porânea, afirmando que os supostos artistas não se mostram capazes de fazer, ao menos, cópi-
as “estéreis” de pessoas ou paisagens.
Em outra ocasião, na apresentação feita nas Conferências do Casino (1871), Eça des-
creve um quadro do pintor Jacques Louis David, para dar um exemplo da falsidade artística.
Descreve em seguida três pinturas de Gustave Coubert, capazes de representar de fato, segun-
do o escritor, a superioridade dos preceitos da arte realista. Segundo Carlos Reis, ao descrever
os quadros, o conferencista “Com eles documentou a verdadeira arte, afirmando serem telas
imortais, todas inspiradas pela ideia-mãe da arte nova: a justiça.” (Reis, 1990, p. 142).
em 1879, no artigo escrito para a segunda edição d'O crime do padre Amaro, com o
título de “Idealismo e Realismo”, Eça de Queirós expõe também suas idéias sobre o Realis-
mo. Para melhor explicá-las ao leitor, emprega mais uma vez um exemplo ligado à representa-
ção visual, a pintura de um retrato de Napoleão Bonaparte, feita por artistas das duas tendên-
cias mais representativas da época, a idealista e a realista. O escritor analisa os processos em-
pregados pelo pintor de cada tendência: um, que se lança à pesquisa e à observação direta para
efetuar uma pintura exata do real e o outro, que se inspirou na fantasia e na emoção. Eça inda-
ga então ao leitor qual das versões prefere, aquela que mostra uma história idealizada ou a que
tenta mostrar a realidade, porém adverte: “Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo
117
está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.” (Queirós, p. 915).
Entretanto, depois de alguns anos decorridos, no artigo “Positivismo e Idealismo”
(Gazeta de Notícias, 27/28-07, 1893), o autor comenta as mudanças na expressão artística e
parece aceitar a nova forma idealista de “ver” o mundo que se segue à tendência realista: “Nas
artes plásticas, a reação contra o naturalismo e o pleno-ar é decisiva. Sobre a exata, luminosa,
sã e suculenta escola francesa vai se espalhando, cada vez mais densa, uma névoa de misticis-
mo” (Queirós, 2000, v. III, p. 1252). Eça mostra ainda ter conhecimento e sensibilidade para
ser capaz de definir, de forma poética e com precisão, as características que são marcas da arte
impressionista:
muito raramente se pinta a paisagem tal como a viram os sinceros e claros olhos
de Daubign, dos Th. Rousseau; e a ambição é fixar por meio de manchas, de lampe-
jos, de fundos de sombras, de abstrações, a emoção risonha ou dolente que a paisa-
gem à alma. Os próprios retratos nos parecem esfumados, envoltos numa cinza
esparsa do crepúsculo, como para desprender tanto quanto possível o homem de sua
carnalidade, e não lhe perpetuar mais que a semelhança do espírito... (Queirós, v. III,
2000, p. 1252)
Outro fato importante ligado ao “olhar”, na obra queirosiana, é que também se pode
encontrar em seus textos, inúmeras vezes, o uso metafórico de termos como desenhar, pintar,
fotografar em lugar da palavra descrever. Quando escreve a Teófilo Braga (Newcastle,
12/03/1878) para agradecer a leitura d'O crime do padre Amaro e discorrer sobre o romance,
Eça de Queirós afirma: “A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal qual a fez o
Constitucionalismo desde 1830 e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam
– eles e elas. É o meu fim nas Cenas da vida Portuguesa.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 918).
Essas Cenas, de que várias vezes Eça fala em sua correspondência, representam um
ambicioso projeto de, à maneira de Balzac com a sua Comédia Humana, escrever um conjun-
to de novelas (ou romances, ou contos como alternadamente o autor as explica) que, conforme
escreve ao editor Ernesto Chardron (Newcastle, 5/10/1877):
118
É uma coleção de pequenos romances, não excedendo a 180, 200 páginas, que fosse
a pintura da vida contemporânea em Portugal: Lisboa, Porto, as províncias, políti-
cos, negociantes, fidalgos, jogadores, advogados, médicos, todas as classes e todos
os costumes, entrariam nesta galeria. A coisa poderia chamar-se Cenas da vida real.
( Queirós, 2000, v. IV, p. 824)
Mesmo não tendo conseguido realizar o seu intento de escrever esse conjunto, o escri-
tor conservou a palavra Cenas (que remete tanto à visualidade do teatro, quanto à pintura ou
fotografia) para melhor definir o conteúdo, junto ao nome de importantes romances: assim, O
crime do padre Amaro tem como subtítulo “Cenas da vida devota” e Os Maias é qualificado
como “Cenas da vida romântica”.
Outro exemplo do uso de termos ligados às artes visuais está na carta escrita ao crítico
Rodrigues de Freitas (Newcastle, 30/03/1878) a respeito de artigo sobre O primo Basílio, em
que Eça de Queirós agradece-lhe a análise do romance e fala do Realismo (que ele considera,
então, “a grande revolução literária do século”) esclarecendo seus propósitos de autor ligado
ao movimento: “O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno,
nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a
fotografia, ia quase dizer a caricatura do velho mundo...” (Queirós, 2000, v. IV, p. 921).
Eça de Queirós mostra ainda ter consciência do caráter visual e da expressiva plastici-
dade da sua escrita quando escreve ao artista Manuel de Macedo (Newcastle, 02/05/1878)
para solicitar-lhe que ilustre uma edição de seu primeiro romance publicado e, para convencê-
lo da tarefa, diz:
Escuso de te dizer, grande artista, o orgulho que teria em que comentasses com o teu
lápis – a minha pena. Não sei se leste o Crime do padre Amaro: não é um bom livro,
certamente - mas oferece pitoresco bastante para uma série de desenhos: é um ro-
mance ilustrável: a vida da pequena vila devota, o grupo de beatos da casa da S. Joa-
neira, o mundo grotesco e baroque que se agita em torno da velha sé, etc. - são am-
pla matéria desenhável. (...) Eu vou aumentar, reformar, concentrar mais o livro: mas
tal como está, é bastante para te oferecer quadros.” (Queirós, 2000, v. IV, p. 922)
A respeito do expressivo caráter visual da escrita queirosiana, o crítico Antonio Candi-
do, no artigo “Eça entre o campo e a cidade”, quando se refere às qualidades que fazem d' O
119
crime do padre Amaro um “excelente livro”, vale-se de uma comparação com as obras do fa-
moso pintor da corte espanhola, quando diz que o romance
Lembra certos quadros de Goya, feitos de preto, cinza, amarelo e escarlate; quadros
secos, diretos, gritantes, violentos. O negro das sotainas eclesiásticas, as mantilhas
negras das beatas, as sobrecasacas pretas dos burgueses se movem lentamente sobre
as paredes cinzentas da Catedral, confundindo-se com elas. Em cima deles, bate o
sol da província, cru, dourado, devassando sombras e enlourando as messes;as mes-
ses, estas cercam a cidade, enchem as quintas dos morgados e dos abades, pintalga-
das de papoulas rubras, fincadas no amarelo-ocre das terras ressequidas, onde se em-
bebe o sangue de Amélia. (Candido, 2002, p. 34)
Cenas, quadros, galerias, panorama, pinturas, cores, movimento. Podendo ser assim
percebida, a escrita queirosiana do mundo, marcadamente pictórica, segue uma trajetória que
não permanece uniforme, varia de acordo com o tempo que passa ou com as tendências literá-
rias que se transformam e se deslocam. Dessa forma, vai apresentando nuances e detalhes que
se acentuam ou se desvanecem, embora a tentativa de retratar a realidade seja um intento sem-
pre perseguido.
UM CERTO REALISMO
Manuel Campos Lima, no livro Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, ao fazer
uma análise em que faz distinção entre Realismo e Naturalismo, afirma que a arte naturalista
(também chamada fotográfica) buscaria
(...) dar o conteúdo da vida tal qual é, transplantar sem alteração para a tela da arte a
pura imagem da vida que se colhe num momento, sem mudança de um pormenor, de
tal sorte que a forma desejada desta arte é já a própria forma preexistente na vida e o
valor de um artista (do ponto de vista do naturalismo) afere-se pela sua capacidade
de saber copiar. (Lima, 1981, p. 76)
No caso de Eça de Queirós, apesar da admiração confessa por figuras marcantes dessa
tendência, vemos que na prática da sua escrita essa posição não se configura de modo efetivo,
pois desde o início, pode-se perceber que o autor não apenas deseja “pintar” uma fotografia
120
exata de Portugal, mas também apontar aos seus leitores os males de uma sociedade que ne-
cessita de mudanças. Tal posição, de uma arte que aponta caminhos, pode ser observada na
prática quando nos defrontamos com as crônicas e com os romances da primeira fase de sua
obra, em que encontramos até, como n'O crime do padre Amaro, uma personagem que apre-
senta e comenta as idéias do escritor: o doutor Gouveia.
Também em relação aos teóricos do realismo/naturalismo, o escritor adota apenas as
idéias com as quais se identifica, praticando assim o que João Gaspar Simões denomina “o
seu realismo sui generis”. (Simões, 1973, p. 300). Além disso, segundo Álvaro Lins, na Histó-
ria literária de Eça de Queiroz”, ao fazer uso dessa visão, o escritor pratica um realismo “à
sua maneira”, pois: “O realismo era sobretudo, no seu caso, uma nova maneira de sentir e in-
terpretar a vida.” (Lins, 1959, p. 56). Por exemplo, na criação das personagens leva em
conta, das chamadas leis do naturalismo, a lei da influência do meio sobre o comportamento
humano, ignorando as demais que parecem não interessá-lo.
Daí a importância do espaço físico criado por Eça no comportamento das personagens
e no desenrolar da trama narrativa, como o clima erótico que envolve Amaro e Amélia na casa
da São-Joaneira, Luísa e Basílio no verão quente e langoroso de Lisboa e, mesmo na fase
final de sua obra, o ambiente cheio de apelos do passado que assombra Gonçalo Ramires. No
livro Imagens do Portugal queirosiano (1987), Alfredo de Campos Matos lembra que, nos ro-
mances de Eça de Queirós, o cenário não tem apenas a função de criar a ilusão do real, mas,
além disso, “(...) motiva o diálogo, compartimenta a acção, liga-se à vida das personagens, es-
tabelecendo uma correlação íntima com a sua movimentação, projectando-se, muitas vezes,
no seu estado de espírito e no seu comportamento.” (Matos, 1987, p. 16).
A própria vida faz com que Eça de Queirós tenha de se afastar (com uma angústia que
revela nas cartas aos amigos) de um importante postulado do realismo, que é a observação di-
reta daquilo que a escrita vai retratar. Mas não seria apenas a distância de Portugal o ponto
121
problemático para a criação queirosiana, segundo António José Saraiva, em As idéias de Eça
de Queiroz (1982); o crítico chama a atenção para o fato de que a limitação do campo de ex-
periência e observação do escritor tornam a sua visão muito restrita. Para Saraiva, além da
distância física “(...) Eça está ainda fechado no seu mundo social. Ele só conhece certos mei-
os. O resto são conjecturas” (1982, p. 92). António Saraiva chama ainda atenção para outro
ponto: “Há, sobretudo, uma classe que Eça ignora em absoluto: é o que ele chama 'povo'. Este
'povo', esse mistério que sabia existir para da cortina que lhe limitava a visão, fantasia-o
como algo de lendário, ou como uma força cósmica dormitando ...” (1982, p. 92).
Para António Saraiva, essa limitação do campo de observação do escritor pode ser
atribuída à sua educação coimbrã e ao meio de literatos, artistas e pensadores que ele freqüen-
ta. Saraiva observa ainda que o correr do tempo não é capaz de suprir essa lacuna da formação
de Eça; pelo contrário, o passar do tempo e as circunstâncias da vida irão afastá-lo do co-
nhecimento da verdadeira face da sociedade de sua terra, pois:
(...) na época em que escreve As Farpas, o Padre Amaro , o Primo Basílio, A Capi-
tal conserva-se à porta, ainda ligado à pequena burguesia, sentindo os problemas do
pequeno funcionário público, do médico em começo de carreira, do jornalista em
busca de leitores e de assuntos, do estudante sem emprego. Todavia o seu mundo,
aquele para o qual é atraído como a pedra para o centro da terra pelo seu tempera-
mento de artista e pela sua educação coimbrã, é o que descreve nos Maias e em tor-
no do qual, a partir desta obra, gravitam todos os seus personagens. (Saraiva, 1982.,
p. 93-94)
Seriam essas afirmativas totalmente verdadeiras? N'A ilustre Casa de Ramires, por e-
xemplo, percebe-se que o fidalgo procura interagir com personagens de todos os estratos soci-
ais da província, embora da parte dos mais humildes receba geralmente um tratamento da
mais completa devoção. Parece dedicar sincera estima aos criados Rosa e Bento, de quem não
se separa nem mesmo na viagem à África e sempre trata com amizade o compositor do Fado
dos Ramires, Videirinha. Empresta seu cavalo para o camponês machucado, provocando o es-
panto de todos e, nas suas andanças, dá atenção a qualquer pessoa com quem se encontre.
Apesar disso, o fidalgo lamenta não viver na época em que ninguém ousava desafiar
122
um Ramires e usa de poderes que seriam resquícios dos velhos tempos para castigar o Casco,
além de tratar com crueldade o valentão de Nacejas. Mostra-se arrependido, porém, e procura
reparar os excessos cometidos, não se valendo dos rigores da lei que ainda seria a seu favor. O
resultado da eleição favorável a Gonçalo representaria, desse modo, uma espécie de reconhe-
cimento a um comportamento do fidalgo que representaria uma nova maneira de viver a fidal-
guia no final do século, mesmo que suas atitudes revelem muitas ambigüidades.
Assim, enquanto haveria para alguns, na sua obra, elementos para acusá-lo de pintar
apenas “uma parte do mundo”, na opinião de outros críticos e leitores, a pintura feita por Eça
de Queirós da sociedade do seu tempo é considerada marcante e vários “quadros” que seus
textos descrevem nunca deixam de ser evocados. Além disso, o fato de freqüentar as altas ca-
madas da sociedade portuguesa, longe de preservá-las de críticas em seus textos, faz com que
o autor tenha condição de mostrá-las de maneira especialmente desfavorável, justamente por
ter melhor conhecimento de seus defeitos e fraquezas.
Para comprová-lo, basta lembrar o retrato mordaz da sociedade portuguesa do século
XIX que aparece no texto final do romance O crime do padre Amaro (terceira versão, 1880),
na irônica cena em que as três personagens, representantes do clero e da nobreza, sob o olhar
impassível da estátua de Camões, deleitam-se com a cena vista pelo conde como um exemplo
de “paz, tranqüilidade, contentamento”, enquanto na verdade o leitor tem diante dos olhos o
quadro de uma sociedade tomada pela inércia e pela decadência.
Também nos romances Os Maias e A capital são traçados impiedosos panoramas da
elite social, política e intelectual de Lisboa. Mesmo na visão mais amena d'A ilustre casa de
Ramires, os fidalgos da Idade Média aparecem como cruéis e os nobres dos tempos modernos
parecem conformar-se à mediocridade, enquanto os políticos também não são poupados, sem-
pre mostrados às voltas com recursos pouco éticos, em suas manobras para se conservar no
poder. Desse modo, o que se poderia dizer da pintura que Eça de Queirós faz da sociedade
123
portuguesa , seria que ela apresenta uma visão um tanto tendenciosa em relação às classes do-
minantes.
De qualquer forma, mostrando a sociedade portuguesa em parte ou por inteiro, perce-
be-se que uma evolução na forma de expressar o realismo na obra do autor, apontada por
Maria de Lourdes Ferraz, no artigo “Visibilidade e arte em Eça de Queiroz” (2001), em que a
autora lembra que, à medida em que agrega experiências de vida e amadurece como escritor,
Eça passa a trilhar um caminho próprio. Mas nota que uma certa forma de Realismo continua
presente na sua escrita, pois marcaria uma maneira própria de “ver” o mundo:
Por outras palavras, Eça nunca deixa de praticar a arte do realismo como intensifica-
ção de um ver; pelo contrário, à medida que mais e mais exercita os seus vários pro-
cessos dessa arte da visibilidade mais nos obriga a ver, não ou principalmente
esse mundo que nos pinta ou modela, mas faz-nos sentir o que vemos, mesmo que
não o tenhamos conhecido. Quantos estrangeiros conheceram Portugal, os portugue-
ses, conhecendo Eça? Quantos querem conhecer em Lisboa os lugares que na sua
obra pintam não propriamente uma cidade, mas deixam ver os sentimentos que orga-
nizam uma cultura? (Ferraz, 2001, p. 122)
Tal desejo dos leitores (ainda que ilusório) de buscar no mundo real os lugares percor-
ridos pela ficção do autor, talvez explique o aparecimento de livros como Imagens do Portu-
gal queirosiano (1976) e Roteiro de viagem no Portugal de Eça de Queirós (2000), de Alfre-
do de Campos Matos. Na apresentação das Imagens, além de realçar a importância dos “espa-
ços” na obra do autor português, Campos Matos justifica o livro como uma oportunidade para
que os leitores possam visitar, guiados pelas palavras do próprio Eça, lugares descritos em
suas narrativas e percorrer, assim, uma espécie de roteiro da geografia queirosiana.
Na “Nota Preambular”, Alfredo de Campos Matos ressalta, como um dos traços carac-
terísticos e dignos de admiração na obra queirosiana, a precisão com que são descritos e assi-
nalados os ambientes em que as personagens transitam, mas que constituem também, em sua
opinião, um “atributo do realismo da época”. Assim:
A individualização dos cenários exteriores, quer pela indicação toponímica de uma
artéria, quer pelo rigor da numeração de um edifício ou de um andar, quer, ainda,
124
pela descrição breve mas incisiva de um pormenor decorativo ou paisagístico, serve-
lhe admiravelmente o processo estilístico, concorrendo, de modo relevante, para a
consumação desse quase toque mágico com que nos transmite a ilusão da realidade.
(Matos, 1987, p. 13-14)
No entanto, Campos Matos parece não se contentar apenas com essa ilusão de realida-
de e faz um minucioso inventário dos lugares “reais” percorridos pela ficção queirosiana, la-
mentando mesmo que vários deles já tenham deixado de existir ou estejam transfigurados pela
passagem do tempo. Não se esquece de observar, porém, que o romancista, ao escrevê-los, faz
uma recriação desses espaços, neles introduzindo uma carga simbólica que lhes um novo
sentido. Lembra também que nem todos os cenários que o leitor encontra nos textos literários
têm localização exata ou tratam de espaços pretensamente reais.
Segundo Matos, nesse caso estaria, precisamente, o ambiente d'A ilustre casa de Ra-
mires, pois, no romance “(...) as localidades mencionadas são da imaginação do seu autor, ain-
da que, por vezes, os topónimos ocultem uma raiz plausivelmente reconhecível...” (Matos,
1987, p. 20). Como já se mencionou, o livro foi gestado durante longos anos e foi minuciosa-
mente elaborado, tal fato não deixa de ser significativo e poderia indicar, talvez, que o escri-
tor, já distanciado nessa época da fase realista, ou mesmo usando a sua forma peculiar de rea-
lismo, não se preocupasse mais tanto em registrar minuciosamente o real, mas apenas buscas-
se valer-se dele, como motivo de inspiração, quando criasse seus mundos imaginários.
OUTRA VISÃO DA MEIA-IDADE PORTUGUESA
Autor e espaço muitas vezes andam entrelaçados, marcam-se e identificam-se nas pá-
ginas literárias. Alguns desses lugares marcantes seriam notadamente imaginários, como o
“País das Maravilhas”, de Lewis Carrol, a Liliput” de Jonathan Swift, o sertão” de Guima-
rães Rosa. Outros autores estariam ligados sempre a lugares supostamente reais, como o Rio
de Janeiro de Machado de Assis, a Londres de Charles Dickens, a colônia africana de Antonio
125
Lobo Antunes... Lugares reais ou imaginários, quem seria capaz de se referir a Jorge Luís
Borges sem a lembrança de Buenos Aires, a Graciliano Ramos sem que viesse à mente a pai-
sagem seca do Nordeste, a Victor Hugo sem se mencionar as ruas de Paris?
Apenas essas referências, entre infinitas outras que poderiam ser lembradas, mostram
a importância da escolha de um lugar (e um tempo que a ele sempre está associado) como ce-
nário de uma narrativa. Essa escolha certamente não acontece ao acaso, pois resultaria da pró-
pria maneira como o autor se coloca, em relação ao seu espaço e aos acontecimentos da época
em que vive, da maneira como olha e interpreta o mundo.
Em relação a essa escolha, algumas questões terminam por se colocar, então, quando
se analisa um texto literário: O que, no momento da escrita, levaria um autor a preferir um es-
paço geográfico a outro, quando infinitas possibilidades se colocam à sua frente? Como se da-
ria esse deslocamento, nas páginas literárias, do mundo da realidade para aquele criado pelo
autor? Que carga simbólica a escolha de um espaço poderia trazer a uma narrativa? De que
forma a escrita de um lugar, distante do olhar contemporâneo, poderia dar margem a uma re-
flexão sobre o próprio momento em que vive o autor? Seria ele capaz de deixar ao leitor pos-
sibilidades de conduzir seu próprio olhar sobre a época retratada no romance?
Quando se trata da época em que vive Eça de Queirós, vemos que o Historicismo, uma
das coordenadas do movimento romântico europeu, tem um papel muito expressivo. A volta
ao passado é uma das marcas desse movimento e, segundo Fernando Correia da Silva, na In-
trodução aos Contos de Alexandre Herculano, escritores ingleses e alemães (...) procuraram
na Idade Média a época áurea da consciência intrinsecamente nacional, como reação contra o
expansionismo francês” (Silva, 1993, p. 11) e os franceses, por sua vez, naquela época remo-
ta, foram capazes de descobrir a origem das liberdades burguesas. Assim, nessa volta à Idade
Média, os escritores historicistas buscam resgatar e reafirmar aqueles valores e tradições que
julgam um tanto esquecidos, relegados mesmo à indiferença pelo século XIX.
126
Também Herculano, como se disse, iniciador e mais famoso dos romancistas histó-
ricos em Portugal, escreve romances que abarcam todo o conjunto da Idade Média e focali-
zam acontecimentos tão diversos como as lutas contra o domínio árabe, a formação da nacio-
nalidade, a época da reconquista. Tudo isso com um propósito determinado, pois segundo a
História da Literatura Portuguesa, “A evocação medieval dos romances de Herculano, como
dos de Garrett, insere-se na campanha literária romântica do regresso às 'raízes nacionais'...”
(Saraiva e Lopes, 2001, p. 712).
Essa busca às raízes não é apenas sentimental, entretanto, como pode nos mostrar uma
passagem do romance O Bobo (1843), iniciador do gênero histórico em Portugal, em que Ale-
xandre Herculano apresenta aos leitores o contexto da época em que se vai desenrolar a narra-
tiva. Pode-se ver, nesse trecho, que o escritor tenta conquistar a adesão desses leitores para
uma tomada de posição, quando interrompe a narração dos fatos para conclamar:
Pobre, fracos, humilhados, depois de tão formosos dias de poderio e de renome, que
nos resta senão o passado? Lá temos os tesouros dos nossos afetos e contentamentos.
Sejam as memórias da pátria, que tivemos, o anjo de Deus que nos revoque à energia
social e aos santos afetos da nacionalidade. Que todos aqueles a quem o engenho e o
estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da história se dediquem a ela.
No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o pas-
sado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio. Exercitem-
no os que podem e sabem; porque não o fazer é um crime. (Herculano, 1959, p. 10)
Meio século passado, tais palavras parecem não mais soar com tanto vigor e o próprio
romance histórico já entrara em decadência. É então que, depois de anos de indecisões e tenta-
tivas como a escrita de contos passados na época medieval, Eça de Queirós decide finalmente
produzir o seu tão adiado “romance histórico”, A ilustre casa de Ramires.
Segundo T. F. Earle, no Dicionário de Eça de Queiroz, na novela escrita por Gonçalo
podem-se notar referências a várias obras históricos. No entanto, muitas coincidências, como
nomes de personagens (Tructesindo), detalhes descritivos e narrativos (a presença de uma ve-
lha torre, amores contrariados, vingança), semelhanças na estrutura e até a mesma época (rei-
nado de D. Afonso II), ligam-no, principalmente, ao romance Ódio Velho não Cansa (1848),
127
de Luís Augusto Rebelo da Silva. (Earle, 1998, p. 516)
Rebelo dedica esse romance a Herculano (de quem, na Introdução, revela-se discípulo
fiel) e tenta nele realizar a pretensão de “interpretar pela arte” um dos capítulos da História de
Portugal, para trazer às novas gerações o relato de uma época “heróica” do país. Tamanho em-
penho na escrita não impede, entretanto, que Castelo Branco Chaves afirme: “As tentativas de
romance histórico de Rebelo da Silva na primeira fase de sua produção pecam por falta de
qualidade e caráter próprio. A influência da obra ficcionista de Herculano é por demais evi-
dente e até, por vezes, excessivamente acentuada.” (Chaves, 1990, p. 38). Lê-se, também so-
bre Rebelo da Silva, na História da Literatura Portuguesa: “O seu estilo, como as suas perso-
nagem, produtos de série e sem personalidade...” (Saraiva e Lopes, 2001, p. 740).
Observa-se, pois, que ao escolher um romance como fonte de inspiração, Eça de Quei-
rós não procura espelhar-se no exemplo do mais ilustre escritor histórico de Portugal, Alexan-
dre Herculano. Pelo contrário, baseia-se no texto de um escritor que, além de não ser tido em
alta conta pelos críticos, escrevera a narrativa que lhe serve de modelo na fase que é conside-
rada a menos inspirada de sua carreira. Tal escolha não seria, assim, o indício de uma visão
irônica (em relação ao patriotismo exagerado de que padeceria o romance histórico
português), que o autor vai revelar n' A ilustre Casa de Ramires?
Outro ponto importante, que faz diferir o romance de Eça de Queirós de outras narrati-
vas históricas é que o escritor não faz essa volta ao passado da forma tradicional, pois coloca
o personagem Gonçalo como um autor que relata, na sua novela, as bravuras dos Ramires do
século XII, enquanto no presente, de forma paralela, vai praticando ações levianas e desonro-
sas. Com essa estratégia narrativa original e engenhosa, Eça não mergulha simplesmente no
passado, para nele buscar um exemplo e resgatar valores. Faz com que os espaços e as épocas
se interpenetrem mas, ao mesmo tempo, permite que haja também uma interpelação crítica do
presente, provocada por essa releitura dos fatos do passado.
128
Nas páginas d'A ilustre casa de Ramires, a personagem Gonçalo vive no século deze-
nove, época que, de forma trágica para Portugal, tem o final marcado pelo Ultimatum dos in-
gleses. A respeito do florescimento das idéias de amor à pátria provocadas pelo episódio, es-
creve Eça ao amigo Oliveira Martins (Paris, 28/01/1890), revelando um certo espanto diante
dessas reações: “Mal estou certo acerca do que deva pensar a respeito desse renascimento do
patriotismo, esses gritos, esses crepes sobre a face de Camões, esses apelos às Academias do
mundo ...” (Queirós,2000, v. IV, p. 262).
No romance, essas idéias são representadas, de modo até caricatural, pelas ações e pela
fala hiperbólica da personagem Castanheiro. Ele vê em Gonçalo um predestinado a resgatar as
tradições de Portugal e, pela reação eufórica como editor e primeiro leitor da novela do fidal-
go, revela que esse tipo de texto ainda tem apreciadores em Portugal: “Lá encontrei também o
Castanheiro... Entusiasmado com o teu Romance. Parece que nem no Herculano, nem no Re-
belo existe nada tão forte, como reconstrução histórica. O Castanheiro prefere mesmo o teu
realismo épico ao do Flaubert, na Salammbô.” (p. 452).
No entanto, o próprio Gonçalo vive a angústia de perceber que a reescrita de uma épo-
ca histórica não passa de apenas mais uma versão que aquele tempo pode propiciar, deixando
sempre a possibilidade de novas leituras. Por ser capaz de voltar os olhos para o passado sem
afastá-los do presente, a personagem parece ter uma visão mais crítica da época, dos homens e
dos costumes que sua narrativa revive. Ao terminar a novela, sente que ameia-idade” desve-
lada nas suas páginas não corresponde, assim, exatamente aos mitos que o Castanheiro e seus
seguidores desejariam revividos:
Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento es-
perado. Até esse suplício do bastardo lhe deixara uma aversão por aquele remoto
mundo Afonsino, tão bestial e tão desumano!... Se ao menos o consolasse a certeza
de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós bravios...Mas
quê! bem receava que sob desconcertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológi-
ca, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica!... (p. 445)
129
Tal visão, porém, só vem a Gonçalo Ramires depois de uma longa trajetória que se ini-
cia nas primeiras páginas do romance, que mostram um tempo em que ele simplesmente pe-
rambula pela província sozinho ou com os amigos, com os olhos distraidamente postos no
mundo, sem saber exatamente o que é, o que deseja e o que seria capaz de fazer.
A TORRE DOS FIDALGOS
“O fidalgo da torre trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada
ao primeiro número dos Anais de Literatura e de História...” (p. 223) Assim, desde o primeiro
parágrafo do livro, a personagem aparece no ofício de escritor. Em seguida, o leitor pode
contemplar a “livraria”, descrita com detalhes que remetem à cor, como “clara e larga”, “es-
caiolada de azul”, em contraste com os grossos fólios que “repousavam” nas “pesadas estan-
tes de pau-preto” (como numa pintura em que o claro-escuro se destaca). O esforço de Gonça-
lo, empenhado numa séria pesquisa sobre o passado português, revela-se pela presença dos
volumes da História genealógica, do Vocabulário de Bluteau, dos tomos do Panorama.
No início da narrativa, entretanto, esse espaço impregnado de História e da memória
dos antepassados não causa impressão no espírito do fidalgo, que parece lançar sobre tudo
aquilo apenas um olhar distraído. Dessa atitude displicente o leitor pode perceber alguns indí-
cios, como o de saber que, na mesa em que Gonçalo trabalha, as obras do famoso escritor de
romances históricos Walter Scott estão prosaicamente “sustentando um copo cheio de cravos
amarelos.” (p.223) .
Também um pouco à frente na narrativa, o fidalgo pede ao criado Bento que procure
um frasco de digestivo que ele enrolara num antigo pergaminho, que classifica como “per-
feitamente inútil”. Quando pede ao criado que lhe traga a medicação, Gonçalo preocupa-se
apenas com o conteúdo que vai aliviar seus padecimentos, não se esquecendo de recomendar
a Bento: “(...) Vai buscar o rolo... Mas tem cuidado com o frasco!” (p. 240)
130
Em outra passagem, Gonçalo Ramires atira “sem piedade” um dos romances de Walter
Scott em um gato que está prestes a assaltar um ninho de melros (p. 266). A displicência do fi-
dalgo em relação ao histórico pode ser vista também no encontro com o deputado Sanches
Lucena, sempre tão cioso do respeito aos cargos e posição social: quando Gonçalo se refere
aos feitos da família cantados por Videirinha, no Fado dos Ramires, como lendas,
patranhas.” (p. 274). Ao ser cumprimentado por Lucena por conservar a luz acesa no túmulo
dos antepassados, “Gonçalo engrolou um murmúrio risonho porque não se recordava da es-
pada, nunca recomendara a lâmpada.” (p. 275).
Assim, tendo sempre vivido rodeado de lugares e objetos antiqüíssimos, ou talvez
mesmo porque tudo isso lhe seja muito familiar, Gonçalo Ramires (que, na visão patriótica de
Castanheiro, teria como missão resgatar os valores históricos) parece não dar importância a
antigüidades, livros famosos e bens culturais.
No espaço habitado pelo fidalgo, porém, resta uma presença que ele não perde de vis-
ta, o ponto de referência ao qual ele retorna, em momentos difíceis ou gloriosos. Quando tra-
balha na livraria, o fidalgo tem diante dos olhos uma janela de varanda, através da qual a
paisagem, mas principalmente pode mirar a construção que lhe traz a lembrança das glórias
passadas de sua família: “(...) a Torre, a antiqüíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoei-
ros do pomar que em redor crescera, com uma pouca de hera no cunhal rachado, as fundas
frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no azul de junho...” ( p. 223).
Em homenagem a tal construção simbólica, Gonçalo Ramires escolhe o nome de A
Torre de D. Ramires para sua novela, título que o criador de revistas históricas José Casta-
nheiro classifica como “sublime”, pois se “Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e se-
tecentos anos depois, na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito!” (p. 233), essa seria,
certamente, a melhor maneira de “reatar a tradição”. O próprio fidalgo refere-se à escrita de
sua obra usando, muitas vezes, a imagem desse espaço para qualificar as árduas etapas do pro-
131
cesso: no início, na época em que era custoso iniciar o texto, ela é a “dificílima Torre” e, ao
terminar exclama: “Enfim! Deus louvado! Eis finda essa eterna Torre de Ramires!” (p. 445).
A Torre, entretanto, bem como o restante da propriedade de Gonçalo, apresenta sinais
visíveis de decadência e abandono, embora as ruínas sempre façam lembrar as antigas épocas
de esplendor, ligadas à realeza de Portugal. Mas ainda permanecem lá, (...) no pesado silên-
cio em que jaziam, como abandonados, esses sombrios fundos de grande laje e de grande abó-
boda que restavam do antigo Palácio, restaurado por Vicente Ramires depois de sua campanha
em Castela, incendiado no tempo de El-Rei D. José” (p. 237).
Assim, quando Gonçalo inicia a escrita da novela, a Torre aparece como símbolo de
decadência, apesar de conservar ainda alguns vestígios de sua antiga importância. Pequenos
detalhes da narrativa bastam para mostrar o ponto de penúria a que chegara a situação do fi-
dalgo e a falta de recursos em que ele vive: “Gonçalo desceu dois degraus da gasta escadaria
de pedra e atirou outro dos longos brados com que atroava a Torre – desde que as campainhas
andavam desmanchadas.” (p. 237) .
O fidalgo, proprietário que não se dispõe a cultivar as terras, mas simplesmente arren-
dá-las, volta às vezes ao passado e então a lembrança da figura de Tructesindo na Torre reme-
te à época feudal, em que o senhor era a autoridade incontestável. A força daqueles tempos
ainda permanece e resiste em detalhes da velha construção, mas um pesaroso Gonçalo perce-
be que os costumes sofreram uma grande mudança:
(...) considerou um momento a Torre, as poeirentas frestas engradadas de ferro, as
resistentes ameias, ainda inteiras, onde agora adejava um bando de pombas... Quan-
tas manhãs, às frescas horas da alva, o velho Tructesindo se encostara àquelas amei-
as, então novas e brancas! Toda a terra em redor, semeada ou bravia, decerto perten-
cia ao poderoso Rico-homem. E o Pereira, nesse tempo colono ou servo, aborda-
va o seu Senhor de joelhos ou tremendo! (p. 266)
Nem todos os espaços da velha propriedade conservam, como a Torre, a sua dignidade
e altivez. Restam, porém, algumas marcas da antiga opulência, como se pode ver na descrição
132
da sala de jantar, que tem objetos zelosamente conservados, não pelo interesse do fidalgo, mas
pelo cuidado carinhoso do velho criado:
A sala de jantar da Torre, que abria por três portas envidraçadas, para uma funda va-
randa alpendrada, conservava, do tempo do avô Damião, (o tradutor de Valerius
Flaccus) dois formosos panos de Arras representando a Expedição dos Argonautas.
Louças da Índia e do Japão, desirmanadas e preciosas, recheavam um imenso armá-
rio de mogno. E sobre o mármore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos,
das pratas famosas dos Ramires, que o Bento constantemente areava e polia com
amor (p. p. 261)
Um dos símbolos do espirito aguerrido dos antepassados de Gonçalo Ramires sobrevi-
ve ainda na Torre: é a “Sala de armas”, descrita como um “cacifro tenebroso, junto ao Arqui-
vo, onde se amontoavam peças aboladas de armaduras, um lorigão de malha, um broquel
mourisco, alabardas, espadões, polvarinhos, bacamartes de 1820....” (p.312). É significativo
que esse espaço seja escolhido por Gonçalo semelhança do que ocorre no romance de Re-
belo da Silva) para dar impacto à cena inicial de sua novela.
Outro espaço em que vamos encontrar, ainda preservados, alguns traços do antigo pri-
mor com que eram mobiliados os aposentos da casa e até, num bordado recente, o brasão da
família, é o antigo quarto de solteira da irmã de Gonçalo, (...) onde ainda se conservava o
seu leito de linda madeira, embutida, um toucador ilustre que pertencera à Rainha D. Maria
Francisca de Sabóia, e o sofá, as cadeiras de casimira clara em que Gracinha bordara, num ar-
rastado labor de anos, o Açor negro dos Ramires.” (p. 425).
Também permanece o toque da tradição no quarto do fidalgo, como a velha cama em
que ele nascera. No início do romance, entretanto, ele não parece preocupado com as tradi-
ções da família e para vai apenas quando quer escapar dos tormentos dotrabalho” que lhe
a escrita da novela, refazer-se das noitadas com os amigos, ou simplesmente passar o dia
na ociosidade:
Bocejando, apertando os cordões das largas pantalonas de seda que lhe escorrega-
vam da cinta, Gonçalo, que durante todo o dia preguiçara, estirado no divan de da-
masco azul, com uma vaga dor nos rins, atravessou languidamente o quarto para es-
133
preitar, no corredor, o antigo relógio de charão. Cinco horas e meia!.... Para desanu-
viar, pensou numa caminhada pela fresca estrada dos Bravais. (p. 235)
É nesse quarto, porém, que Gonçalo passa uma noite de agonia, depois da revelação
do caso amoroso entre D. Ana Lucena e Titó (fato que representa o fim dos planos do fidalgo
de uma vida de rico proprietário) e remói todas as humilhações que sofrera na vida. Mas é
também que, depois dessa morte simbólica, recebe a visita dos antepassados e sente que, ape-
sar da sua fraqueza, “(...) a sua Ascendência toda o amava – e da escuridão das tumbas disper-
sas acudira para o valer e socorrer na sua fraqueza.” (p. 412).
É para o velho quarto que o fidalgo retorna ainda, na manhã após castigar os valentões
de Nacejas e ali se reconhece como um homem diferente, ainda que rodeado pelos mesmos
antigos objetos : (...) entre as doces coisas costumadas, pisando o seu velho tapete azul, ro-
çando o leito de pau-preto em que nascera (...) Com que gosto se acercou do espelho de colu-
nas douradas e se mirou e remirou como a um Gonçalo novo e tão melhorado....” (p. 422).
Todas essas lembranças do antigo poder não deixariam de provocar fascínio pela ima-
gem da Torre, também, nos habitantes das redondezas. Tal sentimento está presente na passa-
gem em que o Visconde de Rio Manso, conhecido como “ferrenho Regenerador”, mas movi-
do pela gratidão, vai visitar o agora “Histórico” Gonçalo e oferecer um inesperado apoio à sua
candidatura como deputado. O velho senhor manifesta o desejo de mirar a Torre, famosa e
mais velha que Portugal e “(...) pasmou em silêncio para a torre; reconheceu (apesar de libe-
ral) o prestígio que resulta duma tão alta linhagem como a dos Ramires.” (p. 390).
A Torre é também reverenciada como símbolo das origens nobres de Gonçalo depois
das vitórias sobre o valentão e o sucesso nas urnas. Transformado aos olhos do povo em uma
espécie de audaz cavaleiro à moda medieval, o fidalgo recebe homenagens de toda a região,
que também reverencia a Torre como símbolo de sua nobreza. Assim, ao saírem, os cavaleiros
“(...) sorriam para a velha Torre, escura e rígida, na doce claridade da tarde de setembro, como
saudando depois do herói, o secular fundamento do seu heroísmo.” (p. 433).
134
Aparentemente imutável no peso de seu passado e tradição, a Torre revela-se, todavia,
diferente a cada acontecimento e aparece mesmo como um espaço em que se projetam, no de-
correr da narrativa, os sentimentos que os fatos provocam em Gonçalo, como se também ela
fosse tendo sua história reescrita e aumentada, à medida em que o fidalgo vai compondo sua
novela. Assim, de início a construção está plantada com firmeza, como que à espera, diante da
janela da livraria, (...) a antiqüíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar
(...) robusta sobrevivência do paço acastelado, da falada Honra de Santa Irinéia, solar dos
Mendes Ramires desde os meados do século X.” (p. 223).
Emblema e tradição, porém, não são capazes de fazer com que o fidalgo da Torre hon-
re a palavra dada, ao contrário do que faziam seus antepassados. Por esse deslize, uma perso-
nagem simples como o Casco sente-se capaz de enfrentar e até ameaçar Gonçalo Ramires que,
perseguido pelo colono, foge covardemente. À sombra da velha Torre Gonçalo busca refúgio
e tem, então, a impressão de que esta parece sombria e exausta: E respirou enfim, no agasa-
lho do pomar murado, diante das varandas da casa abertas à frescura da tarde, junto da Torre,
da sua Torre, negra e de mil anos, mais negra e como mais carregada de anos contra a macia
claridade da lua nova que subia.” (p. 309).
Outro episódio ligado à honra dos Ramires ocorre quando Gonçalo descobre o roman-
ce entre Gracinha e o Cavaleiro. O mais grave é que ele, que supostamente deveria (como
seus antepassados) defendê-la do perigo de amores indesejáveis, fora o incentivador do adul-
tério. Assim, a alta linhagem da família tem sua fragilidade duplamente revelada e, na visão
da Torre, o fidalgo pressente que todo o passado de nobreza dos Ramires está a desmoronar:
No relógio da Piedade sete horas batiam - quando ele se atirou para a caleche, e fe-
chou os stores perros, e se enterrou no fundo bem sumido, esmagado, com a sensa-
ção que o Mundo tremera, e as mais fortes almas se abatiam, e a sua Torre, velha
como o Reino, rachava, mostrando dentro um montão ignorado de lixo e de saias su-
jas. (p. 393)
Noutra passagem, quando derrota os rapazes que antes o haviam humilhado (sem que
135
ele fosse capaz então de esboçar qualquer reação) com o chicote herdado de seus antepassa-
dos, é na imagem da Torre que o fidalgo sente que também ele, agora, torna-se realmente dig-
no de tomar posse do espaço-símbolo de sua família.
E galopava, galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como para investi-
das mais belas. Para além dos Bravais, mais galopou ao avistar a Torre. E singular-
mente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre, agora mais sua, e que uma afinidade
nova fundada em glória e força, o tornava mais senhor da sua Torre! (p.420)
Quando é aclamado como vencedor nas eleições, Gonçalo Ramires deslumbra-se com
a imagem da Torre iluminada, com um clarão que transborda pelas suas frestas. O fidalgo tem
então o desejo de subir à Torre, penetrar no espaço que antes lhe desagradava por sua nudez,
silêncio e frialdade de jazigo. Nesse momento, sente-se mesmo capaz de olhar com reverência
tudo que ela simboliza, percebendo finalmente que
(...) ela agora ligava as idades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a uni-
dade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamava vagamente a 'Torre de D. Ra-
mires'. E Gonçalo, ainda sob a impressão dos avós e dos tempos que ressuscitara na
sua Novela, admirou com um respeito novo a sua vastidão, a sua força, os seus em-
pinados escalões, os seus muros tão espessos, que as frestas esguias na espessura se
alongavam como corredores, escassamente alumiadas pelas tigelinhas de azeite, com
que o Bento as despertara. ( p. 456)
Todas as glórias e o cargo em Lisboa não são capazes, entretanto, de reter Gonçalo Ra-
mires em Portugal. A Torre parece perceber que os tempos de conflitos terminaram e recolhe-
se à espera de sua volta. Na tarde em que os amigos conversam sobre o retorno do fidalgo, a
Torre “(...) mais velha que a vila e que as ruínas do Mosteiro, e que todos os casais espalha-
dos, erguia o seu esguio miradoiro, envolto no vôo escuro dos morcegos, espreitando silencio-
samente a planície e o sol sobre o mar, como em cada tarde desses mil anos, desde o conde
Ordonho Mendes.” (p. 468). Finalmente, é na Torre que se vai “recolher” o padre Soeiro, no
derradeiro parágrafo do romance, pedindo paz e bênçãos para Portugal.
136
OS LUGARES DA HONRA E DO PODER
Mesmo na província em que vive Gonçalo Ramires, percebe-se que em Portugal hou-
ve mudanças na estrutura econômica e social, com a transferência dos espaços de poder e ri-
queza. O espaço político está dominado por figuras como André Cavaleiro, de famílias de tra-
dição já mais recente, personagem que se vale do pragmatismo e de idéias pouco escrupulosas
para atingir os seus objetivos. Muitos fidalgos de antigas linhagens, como Gonçalo, habitam
solares já em decadência, têm seus poderes reduzidos à posse de algumas terras que arrendam
a colonos agora altivos e têm como herança apenas um nome tradicional, que pouco represen-
ta em termos práticos, embora lembre as glórias de um passado distante.
Um desses prósperos proprietários com quem Gonçalo convive é o marido da irmã
Gracinha, que vive num abastado solar, em contraste com a decadente morada do cunhado:
“O Palacete dos Barrolo em Oliveira (conhecido desde o começo do século pela Casa dos Cu-
nhais) erguia a sua fidalga fachada de doze varandas no largo de El Rei...” ( p. 277). Ali Gon-
çalo sente-se acolhido, pois tem um quarto sempre preparado à espera, com uma mesa de tra-
balho que a irmã enfeita de flores, além do detalhe de um antigo e (...) monumental tinteiro
de prata que pertencera ao tio Melchior.” (p. 297).
No Solar dos Barrolo, Gonçalo encontra-se com amigos da cidade e lá também vale-se
dos encantos da irmã para seduzir André Cavaleiro. No Mirante, construção cor-de-rosa que
simula um Templozinho grego”, com um gordo Cupido sobre a cúpula, destaca-se um divã
que parece estimular a idéia de amores irreverentes:Era enorme, de mogno, todo coberto de
riscadinho, com molas lassas que rangiam.” (p. 393). Ao surpreender Gracinha em idílio com
o aliado político, Gonçalo foge dos Cunhais e, enciumado e desgostoso, refugia-se na Torre.
Assim, por algum tempo até que se reconcilie com ela, o fidalgo fica privado do prazer de um
ambiente que, fora dos domínios da Torre, sempre lhe fora acolhedor.
Quando sai dos espaços protetores da Torre ou do solar habitado pela irmã, Gonçalo
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tem de enfrentar alguns perigos que outros espaços representam. Um desses lugares é a casa
do Cavaleiro, que se destaca, nas palavras do narrador, pela “sólida desgraciosidade (...) sem
elegância e sem arte, pintada de amarelo lisa e vasta...” (p. 340), mas que exibe a riqueza nas
“quatorze janelas de frente”. Em contraste com a antigüidade nobre da Torre, a mansão que o
cavaleiro habita remete a lembranças relativamente recentes: sua construção é dos fins do sé-
culo XVIII e fora visitada apenas pela presença nobre da “Sra. D. Maria II”.
O interior da casa do Cavaleiro, com ar de conforto e prosperidade, é zelosamente cui-
dado pela eficiência prática de uma prima pobre. A vista exibida do terraço faz Gonçalo excla-
mar, com simplicidade: “(...) que escândalo, todo esse asseio! Mas para um pecador como eu,
que delícia!... O jardim da Torre anda um chavascal” (p. 342). Desse modo, tudo ali (brilho
das pratas, rosa numa floreira de Saxe) parece se opor à pobreza decadente da torre e isso pa-
rece ser habilmente usado pelo Governador para impressionar Gonçalo, assim como para
também mantê-lo receptivo às suas manobras.
A Casa do Governo Civil, em Oliveira, é outro espaço de poder de que André Cavalei-
ro se vale para exercer a sedução sobre Gonçalo Ramires. As janelas dão para uma praça, em
que se juntam os desocupados da cidade depois do meio dia. Os dois supostos amigos encon-
tram-se na Casa, para firmar um acordo político que representa uma derrota moral para o fi-
dalgo. O Governador prepara nessa Casa uma cena constrangedora para Gonçalo e usa as ja-
nelas para exibir a rendição do fidalgo:
E subitamente um silêncio esmagou a Arcada, trespassada de emoção. Na varanda,
entre as vidraças abertas vagarosamente, aparecera o Cavaleiro com o Fidalgo da
Torre, conversando, risonhos, os charutos acesos. Os largos olhos do Cavaleiro pou-
saram logo, com malícia, sobre os rapazes” apinhados em pasmo à borda dos Ar-
cos. Mas foi um lampejar de visão. S. Exa. remergulhara no gabinete o Fidalgo
também, depois de de debruçar na varanda, espreitar a caleche da Torre. (p. 323)
Há, entretanto, lugares que parecem seguros para que Gonçalo vagueie solitário, como
os arredores da Torre, espaços em que, supostamente, ocorreram os fatos da história contada
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na novela, onde ele talvez procure encontrar vestígios da época e dos personagens que dela
fizeram parte. Como nos tempos passados, porém, mesmo esses lugares podem ser também
pontos de encontro com o perigo. Agora, os camponeses não mais se curvam servilmente à
passagem do fidalgo, antes são capazes de desafiá-lo e persegui-lo em fuga desonrosa.
Mas esses lugares podem ser também pontos de encontros amorosos, como acontece
na ocasião do passeio às ruínas de Craquede, arranjado pela prima Maria com a promissora
viúva D. Ana de Lucena, quando as damas e o primo Ramires passeiam pelos arredores dos
abandonado túmulo dos antepassados. Entretanto, é somente quando o fidalgo visita as ruínas
que não pode deixar de sentir-se tocado pela solenidade daquele ambiente despojado e severo,
impregnado de religiosidade e do peso da tradição:
E pela brecha dum muro a que ainda se amparava um pedaço de altar penetrou na
silenciosa crasta alfonsina. dela restam duas arcadas em ângulo, atarracadas so-
bre rudes pilares, lajeadas de poderosas lajes puídas que nessa manhã o sacristão
cuidadosamente varrera. E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros ar-
cos, avultam os sete imensos túmulos dos antiqüíssimos Ramires, denegridos, lisos,
sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente encravados no laje-
do, outros pousando sobre bolas que os séculos lascaram. ( p. 379)
O encontro simbólico com o passado de sua família, no entanto, acontece na manhã
em que Gonçalo anda, e sem destino, pela estrada dos Bravais, trazendo pela primeira vez
consigo o chicote encontrado pelo Bento. Gonçalo depara-se, naquele lugar, com o seu Brasão
de Armas no cunhal de uma ponte: “(...) um Açor enorme, que alargava as garras ferozes...”
(p. 415). Esse brasão traz à lembrança de Gonçalo Ramires a figura do avô Tructesindo, que
talvez houvesse construído a ponte em “memória piedosa” do filho Lourenço Ramires”. Ago-
ra, muitos séculos depois, após a passagem nessa ponte, um seu descendente se depara com
uma situação em que a honra de sua família é posta novamente em jogo.
ainda um espaço no romance que é referido nas conversas entre as personagens,
mas depois relegado somente a vagas informações, quando Gonçalo abandona o cargo políti-
co e deixa Portugal: a África. Na verdade, a menção às colônias africanas não representa uma
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novidade nos textos de Eça de Queirós, tanto literários quanto de jornalismo, ou até mesmo na
correspondência com os amigos. referências a essas colônias desde a época de As farpas
(07/1871), quando o cronista sugere a sua venda por razões práticas, empregando para con-
vencer o leitor uma ilustração comparativa: “E que se diria dum fidalgo (quando os havia) que
deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundíciepara não vender as salvas de pra-
ta que foram de seus avós?” (Queirós, 2000, v. III, p. 726).
Por ocasião do Ultimatum, Eça escreve artigo na Revista de Portugal (02/1890) em
que, sob o pseudônimo de João Gomes, analisa as atitudes emocionais assumidas na época pe-
los portugueses e lembra, a propósito da perda de algumas colônias africanas:
É com efeito mais importante para Portugal possuir vida, calor, energia, uma idéia,
um propósito do que possuir a terra de Mashona: mesmo porque, sem as qualida-
des próprias de dominar, de nada serve ter domínios. Se, como nação, estamos fin-
dos, sem força, sem alma, sem vontade, os Macololos, o Mashona, o Niassa, os la-
gos e toda a África serão pra nós tão inúteis como inúteis eram ao pobre rei Sena-
querib, que tinha cento e dez anos e tremia de frio sob o sol da Assíria as virgens
esplêndidas... (Queirós, 2000, v. III, p. 1504)
Nos textos literários, desde o conto “Singularidades de uma rapariga loura” (1874), a
África aparece como o lugar em que o personagem Macário adquire fortuna. Para lembrar
ainda os romances, n'O primo Basílio Juliana é ameaçada de ser enviada às colônias pelo seu
crime de chantagem com as cartas amorosas e n'Os Maias Carlos sonha com uma “cubata” na
África, longe das futilidades de Lisboa, enquanto o Conde de Gouvarinho pensa na construção
de um teatro em Luanda. a curiosidade pelo diferente leva o cosmopolita Fradique Mendes
a fazer viagens pelo continente africano, de onde recolhe pitorescas impressões.
É n'A ilustre casa de Ramires, entretanto, que o tema da África se faz presente de for-
ma mais direta, talvez por se ter tornado também um assunto importante para os portugueses,
após a humilhante devolução das terras à Inglaterra. no capítulo II, após uma ceia, a pro-
posta da venda de Lourenço Marques aos ingleses, preparada pelo Governo, é discutida e
mostra a divergência de opiniões entre os portugueses. Para Gonçalo Ramires, o pecado seria
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vender essas terras justamente aos Ingleses, mas aceita que houvesse negociações com povos
“ latinos, raças fraternas” e que o dinheiro obtido fosse aplicado no desenvolvimento do país.
Já para António Vilalobos, o Titó, essa conversa de vender Portugal até devia ser proi-
bida. O Administrador do Conselho Gouveia, entretanto, “(...) venderia Lourenço Marques, e
Moçambique e toda a Costa Oriental! E às talhadas!” (p. 243), para que o dinheiro da venda
(como havia também sugerido Gonçalo) fosse usado em benefício de regiões portuguesas
pouco valorizadas até então, como o Alentejo.
Outra referência acontece também no final do capítulo II, depois de uma ceia e tocado
talvez pelas discussões sobre as colônias, Gonçalo sofre um pesadelo em que se misturam
imagens dos antepassados, do rei D. Afonso, dos amigos e de tainhas assadas. Depois de uma
dose de sal de frutas, o fidalgo readormece aliviado e tem um sonho beatífico em que se
“(...) muito longe, sobre as relvas profundas dum prado da África, debaixo de coqueiros sus-
surrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam através de pedregulhos
de ouro.” (p. 254).
Talvez esse sonho agradável, aliado ao efeito da leitura de um livro que mostra a Áfri-
ca como um lugar de tesouros à espera de aventureiros, seja a causa da confidência que Gon-
çalo faz a Gracinha, durante visita em Oliveira e que se concretiza no final da narrativa: “-
Com efeito ando com uma idéia, dias... Talvez me viesse dum romance inglês, muito inte-
ressante, e que te recomendo, sobre as antigas Minas de Ofir, King Solomon's Mines... Ando
com idéias de ir para a África.” (p. 281).
Quando se delineia a possibilidade da eleição para deputado, Gonçalo volta a fazer
planos para o futuro e a idéia da África volta a seduzi-lo, mas agora esse continente inspira-
lhe o pensamento de ações que lá poderia realizar como político vitorioso:
Porque as idéias o invadiam, viçosas e férteis. Na Vendinha, enquanto esperava
que lhe frigissem um chouriço com ovos e duas postas de sável, meditou, para a
Resposta ao Discurso da Coroa, um esboço sombrio e áspero da nossa Administra-
ção na África. E lançaria então um brado à Nação, que a despertasse, lhe arrancasse
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as energias para essa África portentosa, onde cumpria, como glória suprema e supre-
ma riqueza, edificar de costa a costa um Portugal maior!...(p. 326)
Assim, não parece que se deva considerar realmente uma atitude inexplicável (como
alguns pretendem), que depois de meses tendo sua intensa vida mundana e elegância registra-
das nas páginas do jornal lisboeta Diário Ilustrado, surja a notícia de que Gonçalo Mendes
Ramires, silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara a concessão dum vasto prazo de
Macheque, na Zambézia, hipotecara a sua quinta histórica de Treixedo, e embarcava em co-
meços de junho no paquete Portugal, com o Bento, para a África.” (p. 459).
Também se pode perceber, assim, a coerência das idéias apresentadas no decorrer da
narrativa com o destino dado por Gonçalo Ramires ao capital obtido no exílio: “Mobílias,
obras, égua, inglesa” (p. 467). O fidalgo, no retorno ao seu país, e à sua velha torre, ocupa
agora um novo espaço de poder, mas tal lugar foi conquistado através de uma decisão tomada
longe do conselho da família e dos amigos. Nesse Gonçalo do momento final da narrativa,
pode-se ter uma perspectiva de Portugal em três dimensões temporais: o passado das glórias e
da tradição, relido porém com criticidade pela escrita da novela, o presente da posse e retoma-
da da terra pelos portugueses e a perspectiva de um futuro de possibilidades.
A respeito dessa parte do romance, Cecília Almeida Salles, no artigo “Faço muito Ra-
mires”, em que analisa a gênese do romance queirosiano, faz uma observação interessante: a
de que Eça de Queirós opera significativas mudanças na passagem do texto d'A ilustre casa,
da Revista Moderna para a versão em livro, entre elas o acréscimo da viagem de Gonçalo para
a África e o final que conhecemos. Cecília Salles revela ainda que o escritor se preocupa em
preparar o leitor para essa “futura aventura” do personagem, quando inclui o sonho no capítu-
lo II e a discussão entre os amigos, no capítulo IV, trechos que não aparecem na versão publi-
cada em folhetim. (Salles, 2000, p. 77)
Outro espaço de poder (em que são feitos arranjos políticos e acontecem eventos cul-
turais), citado algumas vezes, mas que permanece distante da narrativa principal é a cidade de
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Lisboa, cenário expressivo de outros romances anteriores de Eça, como O primo Basílio, Os
Maias e A capital!. Lisboa é apresentada, nos textos queirosianos, como uma cidade ao mes-
mo tempo provinciana mas desejosa de assemelhar-se às grandes capitais européias, como Pa-
ris e Londres. Para Gonçalo, inicialmente a cidade é um espaço sedutor, mas quase inatingível
pela falta de recursos financeiros, como se pode perceber no trecho:
Mas vida elegante em Lisboa, entre a parentela histórica, como a aguentaria com o
conto e oitocentos mil réis de renda que lhe restava, pagas as dívidas do papá? E de-
pois realmente vida em Lisboa, só a desejava com uma posição política - cadeira em
S. Bento, influência intelectual no seu partido, sentas e seguras avançadas para o
Poder. (p.238)
Muitos são os estudos a respeito da ambientação dos romances queirosiano. Num dos
mais conhecidos, “Entre campo e cidade”, o crítico Antonio Candido ressalta que a obra do
autor português pode ser vista como um diálogo entre esses dois espaços, ora com o predomí-
nio de um, ora do outro. Assim, explica a decisão do romancista pela escolha do campo nos
romances da fase final de sua obra como uma contingência de seu país e das contradições da
época: “(...) a ambígua civilização portuguesa, incapaz de libertar-se do peso do passado e for-
jar com estilos tradicionais uma síntese moderna da vida, criou para Eça de Queirós um im-
passe literário que ele resolveu pelo abandono da linha urbana.” (Candido, 2002, p. 51).
Candido mostra também como a escolha do espaço dos romances tem importância
fundamental para o texto que o escritor produz, quando lembra que Eça de Queirós, somente
ao se voltar para o campo e a tradição de seu país, é capaz de criar uma personagemdramá-
tica e realmente complexa”, que é Gonçalo Mendes Ramires, conseguindo libertar-se da sim-
plificação das figuras de outros romances. Candido lembra também que, “N'A Ilustre Casa
Eça mostra uma compreensão maior dos defeitos e das virtudes de sua terra, o que significa
uma mudança de enfoque do narrador e, assim, A cidade de Oliveira é vista do ângulo da
Torre e não, como a Leiria do Padre Amaro, do ângulo de Lisboa.” (Candido, 2002, p. 45).
Essa diferente maneira de olhar o mundo, do Eça de Queirós da juventude e o daquele
143
da maturidade, além de um amadurecimento proporcionado pelo passar do tempo, poderia ser
vista como resultado também dos ares da modernidade que varrem a Europa, e especialmente
Paris, onde mora o escritor. Nessa modernidade que atravessa o século e continua sofrendo e
proporcionando mudanças, outro escritor português, José Saramago, que também transita nos
seus romances pelo Portugal urbano e rural com olhar questionador, escolhe a capital de sua
terra como espaço de um romance . Ali o revisor Raimundo Silva volta também o olhar para a
Idade Média, para ler e emendar o relato oficial na História do cerco de Lisboa.
144
V - SINGULARIDADES DOS CERCOS DE LISBOA
A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur,
sem o saber, persegue essa realidade.
(Walter Benjamin em Obras escolhidas v. III, p. 203)
Tropeçando em palavras como nas calçadas...
Charles Baudelaire em As flores do mal, p. 319)
AS MÚLTIPLAS MODERNIDADES
Na Introdução do livro Tudo que é sólido desmancha no ar (1982), Marshall Berman
faz considerações sobre a Modernidade, que, segundo ele, se gestou durante um longo tempo
e inicia-se com uma primeira etapa, que vai do início do século XVI até o fim do século XVII,
tempo em que as pessoas apenas começavam a experimentar a vida moderna, sem que tives-
sem mesmo consciência das mudanças que estão a ocorrer em suas vidas. Para Berman, a
voz arquetípica dessa ainda embrionária Modernidade é a de Jean-Jacques Rousseau.
Na segunda fase apontada por Berman, ocorre a Revolução Francesa no século XVIII,
quando as pessoas passam a ter consciência de que vivem numa era revolucionária, com mu-
danças marcantes na vida pessoal, social e política. Há então uma mudança da paisagem, com
o crescimento das cidades, a chegada das máquinas e da industrialização, além dos novos
meios de comunicação. Ao mesmo tempo, as pessoas vivem num mundo ainda ligado a anti-
gas tradições, que assim não é ainda moderno por inteiro. Segundo Marshall Berman, “É des-
sa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emer-
ge e se desdobra a idéia de modernismo e modernização.” (Berman, 2001, p. 16). Como vozes
simbólicas dessa época, o teórico aponta Nietzsche e Marx, de cujo texto retira a sentença
que título ao livro: “Tudo que é sólido desmancha no ar”, símbolo do pensamento intelec-
tual da época, que questiona e nega tudo o que havia sido dito anteriormente.
Já em relação ao século XX, Berman observa que se trata de uma época em que o des-
145
dobramento desse processo de mudanças faz com que a modernização se espalhe pelo mundo
todo, numa disseminação que vai provocar uma fragmentação de caminhos. Então, a idéia de
modernidade “(...) perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e perde muito de
sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.”, tendo como resultado disso a
perda das raízes da própria modernidade.” (Berman, 2001, p. 21).
No modernismo do século XX, entre as correntes díspares dos anos sessenta, Marshall
Berman destaca uma tendência afirmativa, o modernismo “pop” que se auto-intitula “pós-
modernismo” e procura eliminar fronteiras entre a arte e outras atividades humanas, tentando
reunir trabalhos de artistas de diferentes áreas e cujos representantes são figuras como Susan
Sontag, John Cage e Marshall McLuhan.
Esse mundo da chamada “pós-modernidade” tem sido motivo de reflexão para muitos
estudiosos, entre eles o teórico dos estudos culturais Stuart Hall. No livro A identidade cultu-
ral na pós-modernidade (1992), Hall afirma que, com o deslocamento das estruturas que sus-
tentam o ser humano e como resultado das mudanças que se processam, surge uma crise da
identidade.
No capítulo intitulado Nascimento e morte do sujeito moderno”, Stuart Hall explica
que, depois da industrialização e à medida em que as sociedades se tornam mais complexas,
com a influência das teorias de Darwin (que ressaltam o lado biológico do homem) e das no-
vas ciências sociais (que localizam a pessoa em processos de grupo e nas normas coletivas)
surge uma concepção mais “social” do sujeito. No entanto, aquele que não se integra a algum
grupo é afastado da sociedade e então aparece
a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo
da multidão ou da metrópole anônima e impessoal. Exemplos disso incluem a famo-
sa descrição do poeta Baudelaire em “Pintor da vida moderna”, que ergue sua casa
no “coração único da multidão, em meio ao ir e vir dos movimentos, em meio ao fu-
gidio e ao infinito” entra na multidão “como se fosse um imenso reservatório de
energia elétrica”; o flaneur (ou o vagabundo), que vagueia entre as novas arcadas
das lojas, observando o espetáculo das metrópoles... (Hall, 2005, p. 33)
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Com o desenrolar da modernidade, a identidade do sujeito sofre cada vez mais um
processo de fragmentação (para uns) ou deslocamento (para outros). Segundo Hall, pensado-
res de campos tão diversos como Karl Marx, Sigmund Freud, Ferdinand de Saussure, Michel
Foucault e novos enfoques como a proposta das idéias feministas causam, com suas idéias e
teorias, um impacto e, assim, o que restava do “(...) sujeito do Iluminismo, visto como tendo
uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditó-
rias, inacabadas, fragmentadas do sujeito pós-moderno.” (Hall, 2005, p. 46).
Para agravamento desse problema, o homem moderno perde também suas referências
espaciais. No livro Todas as cidades, a cidade (1999), Renato Cordeiro Gomes vê nas grandes
metrópoles modernas o lugar em que a fragmentação do ser humano se agrava, no choque das
vivências propiciadas pelas transformações trazidas pelo progresso. Então o homem“(...) per-
de sua identidade, não é mais um sujeito pleno. A metrópole não é mais um espelho que pode-
ria confirmar a identidade de corpo inteiro. A pólis perversa gerada pela modernidade associa-
se à fragmentação e à ruína da sociabilidade.” (Gomes, 1999, p. 68). Nesse contexto, os heróis
passam a ser os “inadaptados, os marginais, os rejeitados ...” (Gomes, 1999, p. 69).
Se o mundo dos homens é sacudido dessa maneira pelos abalos e deslocamentos trazi-
dos pela modernidade, o texto do autor desse tempo não poderia deixar de registrar essas mu-
danças. No estudo intitulado “Assim é se lhe parece: um estudo da História do cerco de Lis-
boa”, Márcia Valéria Zamboni Gobbi, lembrando Adorno, afirma que “(...) a ficção da moder-
nidade tende a assumir cada vez mais a subjetividade como forma de minar o mandamento
épico da objetividade.” (Gobbi, 1999, p. 151).
À questão que se coloca então, sobre qual seria o papel desempenhado pelo narrador
no texto contemporâneo, Márcia Gobbi diz que, no caso especial de Saramago, o narrador é
uma figura onipotente que representa uma subjetividade, que não se quer apagada no texto e
Isto nos parece mostrar-se muito “pós moderno”, à medida que, de um lado, mani-
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festa a negação de uma obra de arte autônoma e a afirmação de uma obra de arte di-
alógica, que se faz aos olhos do leitor, incorporando, inclusive, as aporias de seu
tempo, e, de outro lado, à medida que manifesta o estatuto irônico da criação literá-
ria, entendido como a expressão de um sujeito, da sua liberdade e do seu poder de
criar e também de romper a ilusão estética. (Gobbi, 1999, p. 150)
O próprio autor José Saramago, numa conferência feita em Oslo (28/10/1995) e trans-
crita nos Cadernos de Lanzarote, aponta os tipos de narrador conhecidos: aquele imparcial,
que conserva sua subjetividade fora dos fatos que relata como espectador e o outro, que se vai
revelando ao longo da narrativa (às vezes sendo, mesmo não explicitamente, a voz do autor),
que provoca o leitor e busca uma identificação com ele.
Desse segundo tipo parece ser o narrador (claramente definido, participante, aliciador)
escolhido por José Saramago para conduzir os seus romances. Trata-se, assim, de um autor
que, nesse mundo de impactos e mudanças constantes, de exposição e visibilidade, de espaços
descaracterizados e homens descentrados, lança seu olhar atento e questionador para a realida-
de do seu tempo e o revela aos leitores, convidando-os a fazerem também uma “leitura”que
pode ser sugerida, de modo como que didático, por romances que levam notulo as palavras
“manual”, “memorial”, “história”ou “ensaio” sobre essa realidade.
MANUAIS DE OLHARES E ESCRITAS
Pretensamente retirada de um hipotético Livro dos Conselhos, a epígrafe do romance
Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago (1995), sugere ao leitor: “Se podes olhar, vê. Se
podes ver, repara.” Quando se faz uma análise da obra do escritor, pode-se dizer que ele pró-
prio tem a pretensão de ser um fiel seguidor dessa sugestão, pois olhar, ver, reparar são atos
que, nos seus romances, o narrador realiza a todo momento, nunca deixando de motivar o lei-
tor a praticar essas mesmas ações.
Nesse romance denominado Ensaio, somos levados a seguir a trajetória de persona-
gens que perdem subitamente a visão e mergulham num mundo desesperadamente branco. As
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personagens, que nãom seus nomes citados, são identificadas por epítetos ligados aos olhos
e assim temos “a rapariga dos óculos escuros”, “o homem da venda preta”, “o rapazinho estrá-
bico”. As exceções a essas identificações seriam o médico (que é, entretanto, oftalmologista) e
sua mulher, que é a única pessoa a permanecer com os olhos perfeitos. Através dos olhos dela
é que podemos ver o horror de um mundo que não aprendeu a enxergar o outro e descobrimos
que a cegueira física, talvez, não seja a mais mutiladora para o homem.
Segundo Teresa Cristina Cerdeira da Silva, no artigo “De cegos e visionários: uma ale-
goria finissecular na obra de José Saramago”, por uma espécie de deslocamento irônico do
que o título inicialmente parece propor, o romance coloca-se para o leitor como “(...) um en-
saio sobre a cegueira, entendendo-se aqui ensaio como uma espécie de manual de como ver.
É, pois, um texto que ensina a ver, logo a não ser cego.” (Silva, 1993, p. 293).
Entre as inúmeras passagens significativas no romance, em relação ao olhar do ser hu-
mano sobre o mundo, destaca-se a passagem em que o homem da venda preta chega à cama-
rata e propõe que, numa espécie de jogo, cada um relate o que estava a ver no momento em
que cegou”. Após relatos de ações corriqueiras do dia-a-dia, a voz de alguém conta que tinha
ido ao museu e que sua última visão era um quadro, passando a apontar detalhes marcantes de
obras famosas da pintura universal:
...era uma seara com corvos e ciprestes e um sol que dava a idéia de ter sido feito
com bocados doutros sóis, Isto tem todo o aspecto de ser de um holandês, Creio que
sim, mas havia também um cão a afundar-se, estava meio enterrado, o infeliz,
Quanto a esse, pode ser de um espanhol, antes dele ninguém tinha pintado assim
um cão, depois dele ninguém mais se atreveu, Provavelmente, e havia uma carroça
carregada de feno, puxada por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa à
esquerda, Sim, Então é de inglês... (Saramago, 2000, p. 130)
O momento da perda da visão é marcado, assim, pelo quadro que essa pessoa tem di-
ante dos olhos. Outros exemplos concretos desse realce do “olhar” estão presentes, com maior
ou menor destaque, em toda a obra saramaguiana. Para citar apenas alguns deles, em Levanta-
do do chão (1980), já o início da narrativa apresenta-se como uma espécie de “quadro”, com o
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destaque de “elementos da paisagem”. Nesse belo cenário esconde se, no entanto, uma histó-
ria de opressão, de que um sutil toque de vermelho já é um indício:
O que mais na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem
sempre sobrou, abundância que por milagre infatigável se explica, porquanto a
paisagem é sem dúvida anterior ao homem e, apesar disso, de tanto existir, não se
acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão
é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em luga-
res, que é cor de barro ou sangue sangrado. (Saramago, 1999, p. 11)
No relato que vem a seguir, a saga da família Mau-Tempo representa como que um re-
trato de todos os camponeses que por ali passaram. Um deles é João Mau-Tempo, que “(...) é
um homem pequeno e seco, tem uns olhos azuis luminosos e antigos...” (Saramago, 1999, p.
265). Esses olhos de uma cor diferentem um papel marcante no romance e sua origem vem
de quase quinhentos anos atrás, quando um estrangeiro de pele branca e olhos azuis toma uma
rapariga à força. Ela tem um filho dele e “Assim, durante quatro séculos estes olhos azuis vin-
dos da Germânia apareceram e desapareceram tal como os cometas que se perdem no cami-
nho e regressam quando com eles já não se conta...” (Saramago, 1999, p. 24).
Outros olhos “azuis, intensos e brilhantes” como os do avô são novamente vistos
quando uma menina nasce na família: “(...) e Faustina Mau-Tempo tão surda que não ouve
chorar a neta, é a primeira que lhe os olhos, e são azuis, azuis como os de João Mau-Tem-
po, duas gotas de água banhadas de sol...” (Saramago, 1999, p. 295). Assim, quando João
Mau-Tempo morre, deixa como herança moral à família o espírito de determinação e de cora-
gem, mas também transmite à neta Maria Adelaide essa marca física e visível dos olhos azuis.
Na última página do livro, assim como no início, a voz narrativa propõe ao leitor um
olhar panorâmico que contempla, agora, não apenas a terra, mas os homens que povoaram
esse chão e o relato. Para tornar esse derradeiro olhar mais expressivo, o autor vale-se então
da imagem dos olhos agudos de um milhafre, que parece alcançar todas as gerações de opri-
midos : “E olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver (...)
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Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai
o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.” (Saramago, 1999, p. 365).
Já no Memorial do Convento (1982), uma Blimunda de olhos “excessivos” revela: “Eu
posso olhar por dentro das pessoas”. Filha de uma mulher que consegue “ver” o futuro e fazer
previsões e que, por esse motivo, é deportada para a África, com o seu dom Blimunda conse-
gue recolher as vontades humanas para tornar real o sonho de fazer voar a passarola do padre
Gusmão. Num diálogo com o companheiro, Baltazar, esclarece o alcance e os caprichos dessa
estranha virtude de seus olhos:
Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no in-
terior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das
roupas, mas vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da
lua, mas volta logo a seguir, Quem me dera que o não tivesse, Por quê, Porque o que
a pele esconde nunca é bom de ver-se... (Saramago, 1987, p. 69)
Essa Blimunda de intrigantes poderes não teme ser castigada pela Inquisição, como
sua mãe, pois para ver não usa nada além dos olhos prodigiosos e, assim, tem o seu dom como
um atributo natural: “Não é a mesma coisa, eu vejo o que está no mundo, não vejo o que é
de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, vejo...” (Saramago,
1987, p. 69). A Baltazar faz a promessa de nunca usar os olhos para “ver” o que está por den-
tro dele, mas no final, quando avista o companheiro supliciado na fogueira, usa de seu dom
para recolher a vontade que se desprende de seu corpo moribundo.
Outras referências também significativas, em relação ao olhar, ainda poderiam ser fei-
tas com a lembrança de outros romances: em A Jangada de pedra (1986), os prodigiosos si-
nais que aparecem à vista dos personagens e a assombrosa visão de uma Península Ibérica que
se separa de um continente. N'O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), a própria perífrase es-
colhida, um verso de Ricardo Reis, sugere a sabedoria do homem quando se coloca apenas
como apreciador do “espetáculo do mundo”. N'A caverna (2000), a citação que precede a nar-
rativa, tirada de República, de Platão e fala de uma estranha “cena” descrita, assim como tam-
151
bém a última frase do romance menciona um cartaz que anuncia ao público um espetáculo: a
visão da Caverna, de Platão.
Há, entretanto, um texto em que o escritor português coloca claramente, lado a lado, as
reflexões sobre duas formas de arte que têm no olhar seu ponto de partida e cria uma persona-
gem que usa as mãos para empunhar ora uma pena, ora um pincel, e desenhando letras ou tra-
ços, vai buscar na imagem pictórica ou na palavra escrita uma forma de descobrir-se e revelar
o mundo: o Manual de pintura e caligrafia.
PINTAR E ESCREVER O MUNDO
Entre as manifestações artísticas que parecem exercer fascínio sobre José Saramago, a
pintura parece ter um papel especial, o que pode ser comprovado pela leitura de seus textos,
tanto para a imprensa, como memorialísticos ou de ficção. Assim, na anotação do Cadernos
de Lanzarote do dia 19/01/1994, o escritor fala a respeito de uma conferência que vai realizar
em Segóvia, com o título de Leituras e Realidades, (sejam elas da Arte, da Literatura ou da
História) e revela como mostrará essa relação entre as artes, especialmente a pintura e a arte
da palavra escrita, quando diz:
Levarei para mostrar uma aguarela de Dürer, lerei a crónica que sobre ela escrevi em
tempos, e direi em conclusão: “A aguarela de Dürer tenta responder à pergunta que a
realidade lhe fez: 'Que sou eu?' O texto tenta responder à pergunta da aguarela: 'Que
sou eu?', e, por sua vez, interroga-se a si próprio: 'Que sou eu?' E tudo, como os rios
vão ao mar, vai ter à pergunta do homem, a mesma de sempre: 'Eu, que sou?'” (Sara-
mago, 1998, p. 196)
Pode-se perceber também essa relação entre as artes e a criação do quadro (ou do tex-
to) em outra crônica escrita um ano depois (19/03/1995), quando Saramago relembra o texto
escrito para o catálogo da exposição do pintor João Hogan, doze anos atrás. Nessa apresenta-
ção do artista, afirma que a pintura não está no espelho da tela, nem mesmo no mundo, como
todos supõem, mas inteira na cabeça do pintor que, no momento em que pinta, não o mun-
152
do mas “(...) a representação dele na memória que dele tem.” (Saramago, 1998, p. 508).
Para o autor português, quando se essa memória reelaborada que o quadro apresen-
ta, não se deve esquecer que diante daquela paisagem esteve o homem que a criou e “Foi dele
o primeiro olhar. Cabe-nos a nós olhar agora, para podermos ver o que ele viu já...” (Sarama-
go, 1998, p. 510). Percebe-se que tal reflexão, especialmente quando feita por José Saramago,
pode ser aplicada também à escrita literária.
No dia 19/08 do mesmo ano, o escritor transcreve no diário outro texto de apresenta-
ção, dessa vez para o catálogo da exposição de retratos da pintora Sofia Gandarias, intitulado
“O rosto e o Espelho ou a Pintura como Memória”. Nesse texto, ressalta que o trabalho da ar-
tista revela uma memória cultural rica, pouco comum num tempo como o nosso, de olhares
distraídos e superficiais, quer os do cotidiano, quer os do campo da arte. Lembra que Sofia
Gandarias, ao acrescentar aos quadros detalhes que remetem à vida dos retratados, parece
querer contar uma história e, assim, sua pintura (...) poderia ser entendida como um exercí-
cio literário para iniciados capazes de organizar os símbolos mostrados, e, portanto completar,
em nível próprio, a enigmática proposta do quadro.” (Saramago, 1998, p. 582).
Numa visita a Oslo, no mesmo ano (28/10), Saramago visita o museu de Edvard Mun-
ch e seu olhar de atento leitor de telas percebe um universo povoado de “seres melancólicos e
sofredores”, o que o leva a concluir que Munch é um Cézanne mais triste, um Van Gogh
mais trágico, um Gauguin sem ilusões de paraíso” (Saramago, 1998, p. 628). E para uma ex-
posição em benefício de obras sociais em Lanzarote (10/12), escreve a sentença: “Pintar é dar
a ver” (Saramago, 1998, p. 654). Na concepção saramaguiana, também o escritor não “daria a
ver” um mundo a seu leitor?
Como se pode perceber, José Saramago sempre faz uma leitura atenta das imagens re-
veladas nas pinturas e não se contenta em admirá-las superficialmente, mas vai à procura de
um significado que as telas guardam. Busca, dessa forma, interpretá-las como um texto que,
153
segundo ele mesmo diz, representa uma doação do pintor ao seu público, numa forma de par-
tilhar o mundo que ele traz dentro de si. Assim, pintor e escritor assemelham-se como criado-
res de mundos de ficção.
Essa ligação entre pintura e escrita fica evidente nas páginas do Manual de Pintura e
Caligrafia (1977), em que somos levados a ver um artista dividido entre o pincel e a pena,
numa busca que inclui momentos de hesitação, angústia e descoberta. No Prefácio que acom-
panha a segunda edição portuguesa, Luís de Souza Rebelo chama a atenção para o fato de
que, na sua estréia (em que leva o subtítulo de “ensaio de romance”) o livro tenha passado
quase despercebido pela crítica, sendo lentamente descoberto pelo público. Luís Rebelo lem-
bra ainda que tal recepção inicial pouco calorosa talvez possa ser explicada pelo título enga-
noso à primeira vista, e pela novidade do tema. (Rebelo, 1983, p. 24)
Outro fator do estranhamento inicial em relação ao romance, segundo ainda o ensaísta,
é a prática quase inexistente, na literatura portuguesa, do “romance de idéias”, em que o nar-
rador se volte para questões ligadas à criação estética e coloque no papel suas reflexões. A im-
portância desse romance na obra saramaguiana, no entanto, tem sido reconsiderada. No artigo
“O essencial sobre José Saramago”, Maria Alzira Seixo aponta mesmo esse texto como o “ca-
dinho de elaboração de todas as tendências pré-ficcionais” do autor.” (Seixo, 1999, p. 28-29).
No Manual, desde o momento inicial da narrativa, o personagem H., que pinta retratos
e escreve textos variados (diário, autobiografia, narrativa de viagem), revela sua hesitação en-
tre uma forma de arte e outra, as idas e vindas entre “a tela branca” e “a folha branca”, entre a
pena e o pincel, entre a pintura feita por encomenda e aquela que o desejo de criar o compele
a fazer. Esse narrador inquieto, porém, sabe que sua busca acabará por levá-lo sempre a um
lugar em que uma folha de papel estará à sua espera:
E tal como já disse logo na primeira página, andarei de sala em sala, de cavalete em
cavalete, mas sempre virei dar a esta pequena mesa, a esta luz, a esta caligrafia, a
este fio que constantemente se parte e ato debaixo da caneta e que, não obstante, é a
minha única possibilidade de salvação e de conhecimento. (Saramago, 2001, p. 12)
154
Refletindo sobre pinturas de Van Gogh e Rembrandt, H. consegue perceber que as te-
las guardam, mesmo nos retratos alheio, os rastros dos autores e constata: “Quem retrata a si
mesmo se retrata. Por isso, o importante não é o modelo, mas o pintor, e o retrato vale o
que o pintor valer...” (Saramago, 2001, p. 79). Essas reflexões inevitavelmente encaminham-
se para a escrita, quando então H. se pergunta: “Mas, quem escreve? Também a si se escreve-
rá?” (Saramago, 2001, p. 80).
A princípio, percebe-se que essa personagem vive como um pintor que retrata mecani-
camente as pessoas e contenta-se apenas em observar o espetáculo do mundo. À medida em
que se escreve, porém, H. torna-se capaz de abrir os olhos para a vida. Significativamente, o
romance termina com a Revolução dos Cravos, um novo tempo para Portugal e também para
H., que consegue completar a escrita do seu texto. Justificam-se assim, também, o título e o
subtítulo do livro, como relato de uma aprendizagem. H. aprende que escrever e pintar são
atos que exigem escolhas e, finalmente, percebe-se capaz de olhar para si e para o outro e não
apenas caminhar distraído pelo mundo, como fazia antes. Por isso toma uma decisão:
É tempo de colocar numa tela este rosto inteiro, de olhos e do que vêem em seu re-
dor os olhos no espelho, todas estas linhas e planos que de uma maneira ou de outra
sempre convergem para os pontos de fuga que são as pupilas. Tanto mais que há ou-
tra razão. Esta escrita vai terminar. Durou o tempo que era necessário para se acabar
um homem e começar outro. (Saramago, 2001, p. 274)
Nos Diálogos, o próprio José Saramago oferece a Carlos Reis uma teoria interessante
para a escrita do Manual, que também mostra a importância do processo de reflexão que ele
contém para a sua obra posterior. Conta que esteve no Alentejo em 1976 e saiu de com um
livro sobre os camponeses da região “todo arrumado na cabeça”, porém confessa: “O livro foi
escrito três anos depois, sendo certo que escrevi o Manual de Pintura e Caligrafia e Objecto
Quase provavelmente (há algum exagero nisto, mas apetece-me dizê-lo) porque não sabia
como escrever o Levantado do chão.” (Saramago, 1998, p. 42).
Também na História do cerco de Lisboa, como não poderia deixar de ocorrer, as ques-
155
tões da escrita, da pintura, da História, da verdade que mesmo o autor de ficção deveria buscar
são retomadas como motivo de reflexão. Assim, no diálogo inicial, o revisor e o historiador
discorrem sobre o tema da imprecisão das fronteiras entre as obras com que o homem fala de
si e do mundo, que desde sempre esteve presente na obra de José Saramago:
(...) tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo,
sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nas-
ceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regres-
sa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita
com pincéis... (p. 15)
Tal afirmação, por exemplo, não poderia ter sido dita mesmo pelo personagem H., no
final do Manual de pintura e caligrafia?
VIAGENS, PERCURSOS, DEFINIÇÕES DE ITINERÁRIOS
Na conferência intitulada Contar a vida de todos e de cada um”, registrada nos Ca-
dernos de Lanzarote (28/10/1985), José Saramago revela seu interesse pelo passado:
A História, e também a Ficção que busca na História o seu objecto, são, de alguma
maneira, viagens através do tempo, percursos, definições de itinerários. Apesar de
tanta História escrita, apesar de tanta ficção sobre casos e pessoas do Passado, é esse
tempo enigmático, a que chamei perdido, que continua a fascinar-me. (Saramago,
1998, p. 626)
Na mesma conferência, o autor de Memorial do convento justifica esse direito do es-
critor de também poder oferecer a sua versão do fato histórico, porque a própria “História ofi-
cial” pode ser vista também como uma versão. Assim, o escritor afirma a Carlos Reis nos
Diálogos: “Evidentemente que aquilo que nos chega não são verdades absolutas, são versões
de acontecimentos, mais ou menos autoritárias, mais ou menos respaldadas pelo consenso so-
cial ou pelo consenso ideológico...” (Saramago, 1998, p. 86).
Todas essas reflexões podem ser vistas como uma comprovação de que o tema da ver-
dade histórica realmente atrai o escritor José Saramago. em romances anteriores, tal fasci-
156
nação fizera-o voltar-se para o passado mais recente de Portugal, na saga dos camponeses do
Alentejo em Levantado do chão (1980), ou dedicar-se a uma releitura, no Memorial do Con-
vento (1982), da construção do convento de Mafra no reinado de D. João V, no século XVIII.
Assim, pode-se dizer que mais uma vez, em 1989, José Saramago volta seus olhos
para o passado, agora para a longínqua Idade Média, para de trazer o dramático episódio
conhecido como “Cerco de Lisboa”, que marca a retomada do território português aos mou-
ros. Qual seria a visão desse episódio apresentada nos compêndios históricos oficiais? A His-
tória Concisa de Portugal, por exemplo, refere-se ao fato e às circunstâncias que cercam a to-
mada da cidade dessa maneira:
Apesar das divisões e da fraqueza interna dos pequenos principados islâmicos que
confrontavam com a fronteira cristã (reinos taifas), as forças militares portuguesas
eram tão poucas que, para as expedições organizadas contra eles, foi várias vezes ne-
cessário recorrer à ajuda das tropas que, vindas do Norte da Europa a caminho da
Palestina, faziam escala nos nossos portos. O rei mandava-lhes propor a colaboração
em empresas guerreiras contra as cidades de que se queria apoderar; os diplomatas
encarregados dessas missões eram os bispos, que deviam convencer os chefes das
cruzadas que tão santa era a guerra contra os infiéis de Espanha como a Cruzada
para libertar o Santo Sepulcro e ao mesmo tempo ofereciam, como pagamento pela
intervenção, o saque das cidades se elas caíssem no seu poder. Foi desse modo que
D. Afonso Henriques conquistou Lisboa, em 1147... ( Saraiva, 1979, p. 52)
De fato, sobre o episódio histórico escolhido por José Saramago como base para o seu
romance, há, verdadeiramente, várias fontes para pesquisa. Na Introdução ao texto denomina-
do Relato de um Cruzado A conquista de Lisboa aos Mouros (2001), Maria João V. Branco
(p. 10-11) afirma que, ao contrário de outros episódios do reinado de D. Afonso Henriques,
que só tardiamente figuram nas crônicas do reino, o episódio da tomada de Lisboa aos mouros
tem o seu relato escrito desde o primeiro momento. Dessas narrativas, duas cartas de cruzados
são da própria época e outros relatos datam provavelmente da década de oitenta do mesmo -
culo, além do fato aparecerem várias crônicas e anais dos séculos XIII e XIV.
A pesquisadora esclarece também que, na Península Ibérica da época do relato de um
cruzado normando, a guerra contra os mouros faz parte da realidade quotidiana e, assim, não
157
há necessidade da ida dos ibéricos a Jerusalém para combater os infiéis, pois já o fazem conti-
nuamente, em seu próprio território. Além disso, a proximidade com Roma é providencial,
pois favorece os arranjos com a Igreja (p. 15). Por essas razões, os acontecimentos ocorridos
entre 1128 a 1147 “(...) devem ter sido decisivos na definição de políticas e estratégias e na
afirmação de Afonso Henriques como rei de Portugal.” (p. 22).
Segundo ainda Maria João Branco (p. 25), no contexto da época, a tomada de Lisboa ,
é vital para os propósitos do rei, pois daria acesso estratégico a Santarém. A ajuda dos cruza-
dos a partir de 1147 seria uma vantajosa solução, por servir a uma finalidade dupla: “(...) for-
necia os contingentes de homens necessários e aproximava ainda mais a guerra de reconquista
à guerra santa de Cruzada, acrescentando, com isso, mais algumas tonalidades favorecedoras
`a imagem do rei português que ia sendo veiculada para Roma...” (Branco, 2001, p. 26).
Outra observação importante feita nessa Introdução é que a imagem do rei aparece no
relato como “(...) sempre uma figura de moderação e complacência, de justiça e empenho na
reconquista, apenas irado quando assiste às dissenções entre os cristãos.” (Branco, 2001, p.
28). Tais relatos mostram o soberano apoiando-se na Igreja Católica, representada pelos cône-
gos regrantes e cistercienses, como no episódio do Cerco, em que o pedido de ajuda aos cru-
zados é feito pelo Abade de Claraval. Os guerreiros portugueses, por seu lado, não são apre-
sentados de modo favorável, embora isso não afete a imagem do seu rei. (Branco, 2001, p. 35)
O relato do cruzado R. representa, assim, um exemplo da visão oficial sobre o século
XII na Península Ibérica, quando a formação do reino de Portugal está em processo. Por sua
vez, como seria o olhar do escritor de hoje para uma época tão distante e complexa? José Sa-
ramago revela que, na relação que estabelece entre tempo, História e passado, o tempo não
com as divisões estabelecidas pelos historiadores, mas como uma espécie de contínuo. Assim,
afirma a Carlos Reis nos Diálogos:
(...) entendo o tempo como uma grande tela, uma tela imensa, onde os acontecimen-
158
tos se projectam todos, desde os primeiros até os de agora mesmo. Nessa tela, tudo
está ao lado de tudo, numa espécie de caos, como se o tempo fosse comprimido e
além de comprimido espalmado, sobre essa superfície; e como se os acontecimentos,
os factos, as pessoas, tudo isso aparecesse ali não diacronicamente arrumado, mas
numa outra “arrumação caótica”, na qual seria preciso depois encontrar um sentido.
(Saramago, 1998, p. 80)
Como se poderá ver depois, tal noção de tempo contínuo es presente nas páginas do
romance e é uma experiência vivida intensamente pela personagem Raimundo Silva.
Diz Saramago, ainda nessa entrevista (p. 86-87), que temos de nos lembrar de que re-
cebemos versões dos acontecimentos mais ou menos autoritárias e que, assim, não poderiam
ser vistas como verdades absolutas, como se pretendia no passado. O autor questiona ainda
por que a literatura não poderia construir a sua própria versão da História, mesmo baseada em
versões opostas e até mesmo contraditórias.
Devemos lembrar-nos, também, de que na própria epígrafe do romance História do
cerco de Lisboa o escritor provoca o leitor para que procure alcançar a verdade, para corrigi-la
e não se resignar com o fato de não encontrá-la, assim como faz o próprio Raimundo Silva,
que escreve um “não” no texto oficial e, além disso, tenta mostrar o que seria a história escre-
vendo o seu avesso...
UMA LISBOA DE PALAVRAS
No artigo “Ficções de Lisboa”, ao falar a respeito da cidade que, por inúmeras vezes,
tem sido escolhida para cenário dos textos de autores portugueses de diferentes épocas, Teresa
Cristina Cerdeira da Silva afirma:
Lisboa, através dos tempos, foi atravessada por muitas falas. Podemos mesmo dizer
que tantas Lisboas quanto as falas que dela se fizeram. Uma Lisboa de Fernão
Lopes, a do Cerco, talvez, que pôs no trono o mestre de Avis; uma Lisboa camonia-
na cais de partida para as grandes navegações com uma certa praia do Restelo
em que ecoava a voz que começaria a comprometer a inteireza do projeto expansio-
nista; ou ainda uma Lisboa inquisitorial, iluminada pelo fogo dos autos-de-fé, Lis-
boa de Antônio José da Silva admiravelmente redesenhada no século XX por Ber-
nardo Santareno e José Saramago n'O Judeu e no Memorial do Convento. (Silva,
2000)
159
Teresa Cerdeira da Silva mostra, com a nomeação desses textos e autores, que uma ci-
dade de Lisboa pode ser recuperada na ficção, mas lembra que “(...) a cidade histórica, a cida-
de literal, a cidade referencial, essa muda, insere novas paisagens e apaga os vestígios do pas-
sado que só continuam a existir na memória que os reconstrói, ou na narrativa que os reinven-
ta.” (Silva, 2000). Daí, a importância dessa preservação que a escrita ficcional sempre é capaz
de proporcionar.
O escritor José Saramago pode ser, assim, considerado como um desses reinventores
da cidade de Lisboa. Em sua obra como romancista, entretanto, essa aproximação da cidade
não se faz de imediato, mas pouco a pouco, como numa espécie de conquista ou descoberta.
Assim, no Manual de pintura e caligrafia (1977), sente-se que Lisboa está lá, mas permanece
como que distante para os olhos do pintor, que só no final da narrativa passa a perceber na ci-
dade os sinais das ações contra a ditadura e a chegada da liberdade. Em Levantado do chão
(1980), a capital é apenas referida como um lugar distante, para onde uma pessoa às vezes é
levada para uma prisão e “(...) sabe-se lá quando volta, se voltar” (Saramago, 1999, p.270).
Em 1981, o autor faz e registra a sua Viagem a Portugal, original livro em que, sempre
referindo a si próprio em terceira pessoa, revela impressões sobre os lugares que percorre. Na
Apresentação, mostra a importância dessa revisitação de sua terra:
O viajante viajou no seu país. Isso significa que viajou por dentro de si mesmo, pela
cultura que o formou e está formando, significa que foi, durante muitas semanas, um
espelho reflector das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e som-
bras atravessaram, uma placa sensível que registrou, em trânsito e processo, as im-
pressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo. (Saramago, 1998, p. 14)
Ao encerrar o livro, o “viajante” lembra a condição do homem de estar perpetuamente
a viajar e descobrir o que o mundo coloca diante dos olhos, quando lembra que “O fim de
uma viagem é apenas o começo da outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez que
se viu, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite.” (Sarama-
go, 1998, p. 387).
160
Dessa visão renovada de Portugal e, conseqüentemente, de Lisboa, certamente falam
os romances que depois dessa viagem são escritos e, dessa forma a capital portuguesa vai
crescer de importância na obra do autor. Além disso, segundo Horácio Costa, no artigo
“Apontamentos sobre a cidade saramaguiana”, para a escrita das narrativas de cunho histórico
o autor busca também nos cronistas e documentos de antigamente uma ampliação do seu co-
nhecimento sobre a cidade, num cuidadoso trabalho de arqueologia do passado. Para o crítico,
dessa forma
Saramago caminha por e para Lisboa, no duplo sentido do “para”: em direção e
como se num ritual de acasalamento, mostrando as suas plumas, os seus rituais en-
cantatórios. Baltasar e Blimunda, Mogueime e Ouroana, o sr. Raimundo Benvindo
da Silva e Maria Sara isto, sem falar no “par original” dos amores saramaguianos,
as personagens H. e M. do Manual de pintura e caligrafia, todos têm em comum a
personagem Lisboa, em diferentes estágios de seu desenvolvimento histórico e ima-
ginário, não apenas como a confidente de fundo, como testemunha de eleição de
seus respectivos impulsos amorosos, mas também como a receptora imóvel e, ainda
assim, se pode dizer, não passiva deles. (Costa, 2002, p. 162)
Esse percurso dos personagens de José Saramago pelas ruas de Lisboa pode ser acom-
panhado. no Memorial do Convento (1982), para os olhos curiosos do personagem Balta-
sar, que volta de uma guerra, a cidade do século XVIII, então governada por D. João Vl, apre-
senta-se de início sedutora e enigmática: “Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora
alta de muros e de casas.” (Saramago, 1991, p. 36).
A cidade vive na época sob o regime da Inquisição e assim transforma-se no espaço
sombrio, palco de cenas de intolerância religiosa, como aquela presenciada pelo casal no iní-
cio da narrativa, durante os espetáculos em que a mãe de Blimunda é deportada. Quando Bal-
tasar desaparece com a passarola, sua mulher torna-se uma andarilha que percorre Portugal
por nove anos, e dela se diz que “(...) seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima.”, uma
Lisboa desoladora e brutal que vai se tornar, então, o ponto final da busca e do encontro:
Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na Igreja de Nossa Senhora
da Oliveira, em direção ao Rossio, repetia um itinerário de vinte e oito anos. Ca-
minhava no meio de fantasmas, de neblinas que eram gente e no final do livro, e de
161
um “Auto de Fé” em que Baltazar é queimado na fogueira. Entre os mil cheiros féti-
dos da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da carne queimada. Havia multidão em
São domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas
da frente. (Saramago, 1991, p. 310)
Depois dessa visão trágica de Lisboa, o espaço dado à capital portuguesa no romance
saramaguiano tem destaque ainda maior n'O ano da morte de Ricardo Reis (1984), em que
um retorno ao ano de 1936, quando regimes de direita ganham espaço numa Europa con-
vulsionada da época pré-guerra mundial. Assim, essa Lisboa banhada por uma chuva melan-
cólica, cenário para o encontro e as perambulações do heterônimo Ricardo Reis e do seu cria-
dor Fernando Pessoa é uma cidade tensa, tomada pelos presságios que anunciam a aproxima-
ção de tempos ásperos.
Ricardo Reis percorre com um olhar às vezes alheado, às vezes quase curioso essa Lis-
boa (também nomeada pelo narrador Lisbon, Lisbonne, Lissabon), a cada momento deparan-
do-se com as marcas literárias e históricas que a cidade contém:Seguiu o caminho das está-
tuas. Eça de Queirós, o Chiado, D'Artagnan, o pobre Adamastor visto de costas, fingiu que ad-
mirava aqueles monumentos ...” (Saramago, 2000, p. 409). É como se Reis fosse reescreven-
do nas suas andanças sem sentido pelas ruas um outro poema, um novo e menos amargo “Lis-
bon revisited”.
Mas é no romance que conta a História do cerco de Lisboa (1989) que outro solitário
caminhante pelas ruas, Raimundo Silva, transita entre o passado e o presente da cidade num
romance que traz destacado, no título, o seu nome. No segundo capítulo, somos levados a
penetrar nos seus muros e o primeiro olhar do narrador é para o universo da antiga Lisboa me-
dieval, então dominada pelos mouros. A figura destacada então é a de um muezim cego, que
mesmo sem a visão trazida pelos olhos, é capaz de pressentir e anunciar o amanhecer: “Quan-
do só uma visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de distinguir
no oriente do céu a diferença inicial que separa a noite da madrugada, o almuadem acordou.
(p. 17).
162
O almuadem sobe então ao minarete para chamar os fiéis à primeira oração do dia e,
para se orientar, “(...) correu a mão, lentamente, ao longo do parapeito circular até encontrar,
insculpida na pedra, a marca que apontava a direcção de Meca, cidade santa.” (p. 18). O ambi-
ente de devoção religiosa de que está impregnada a Lisboa moura aparece, assim, marcado
por esse gesto que, mesmo continuamente repetido, nunca deixa de ter um significado profun-
damente simbólico para os muçulmanos.
No entanto, na derradeira página do romance, a voz do almuadem, chamando para a
prece da noite que se avizinha, é silenciada pelo golpe de um soldado cristão (quando se fi-
zera o acordo de paz). Assim, Raimundo Silva escreve sua última cena e, com esse gesto bru-
tal encerra a sua narrativa:
Lisboa estava ganha, perdera-se Lisboa. Após a rendição do castelo, estancou-se a
sangueira. Porém, quando o sol, descendo para o mar, tocou o nítido horizonte, ou-
viu-se a voz do almuadem da mesquita maior clamando pela última vez do alto,
onde se refugiara, Allahu akbar. Arrepiaram-se as carnes dos mouros à chamada de
Alá, mas o apelo não chegou ao fim porque um soldado cristão, de mais zelosa fé,
ou achando que ainda lhe faltava um morto para dar a guerra por terminada, subiu
correndo à almádena e de um golpe de espada degolou o velho, em cujos olhos
cegos uma luz relampejou no momento de apagar-se-lhe a vida. (p. 348)
Desse modo, através dos olhos da personagem Raimundo Silva e do narrador, podere-
mos ter a visão dessa Lisboa em que se digladiam mouros e cruzados, em que se misturam
passado e presente.
No capítulo III, o narrador apresenta Raimundo Silva. A vista da cidade de Lisboa que
ele tem diante dos olhos, nessa manhã de janeiro, em tudo assemelha-se a um quadro impres-
sionista, com uma paisagem que não se mostra inteiramente e cujos contornos aparecem en-
voltos pelo nevoeiro. A personagem passara a noite a revisar a História do cerco de Lisboa e
assim, o cansaço provocado por esse trabalho justifica essa visão difusa do revisor, que parece
se contrapor, no entanto, à clara percepção da manhã que o almuadem, embora cego, não dei-
xara de sentir na longínqua manhã do verão, na cidade sitiada:
163
Então as torres da não eram mais do que um borrão apagado, de Lisboa pouco
mais havia que um rumor de vozes e de sons indefinidos, a moldura da janela, o pri-
meiro telhado, um automóvel ao comprido da rua. O almuadem, cego, tinha gritado
para o espaço duma manhã luminosa, rubra, e logo azul, a cor do ar entre a terra que
aqui está e o céu que nos cobre, se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com
que viemos ao mundo, mas o revisor, que hoje quase tão cego se como ele, ape-
nas resmungou... (p. 33)
No início do romance vivendo numa casa solitária, com a companhia de livros históri-
cos em que a poeira se acumula, tendo numa mulher “de fora” que faz a arrumação, Raimun-
do vê-se à frente de apenas “mais um dia”. Nessa manhã, no entanto, mesmo depois de nova-
mente adormecer, o tempo e o espaço do passado não cessam de vir até ele, numa espécie de
contínua interpelação: “Arrumou o livro, abriu a janela e foi então que o nevoeiro lhe deu na
cara, denso, cerradíssimo, se no lugar das torres da Sé ainda estivesse o almuadem da mesqui-
ta maior, decerto não a poderia ver, por tão delgada que era, imponderável quase...” (p. 36).
No entanto, essa visão de uma Lisboa difusa, envolta pela névoa, vai ter uma mudança
no momento em que Raimundo Silva acrescenta ao relato do historiador o não” que irá mu-
dar também a sua vida. Depois da surpreendente ação de rebeldia, o revisor chega à janela e,
mesmo sendo noite, percebe que “(...) o nevoeiro desaparecera, não se acredita que tantas
cintilações tivessem estado ocultas nele, as luzes pelas encostas abaixo, as outras do outro
lado, amarelas e brancas, projectadas sobre a água como trémulos lumes...” (p. 52).
No dia seguinte ao “não”, o revisor, já confiante mas ainda um pouco receoso a respei-
to das conseqüências do ato praticado, vai à janela para ver como está o tempo, antes de sair
de casa. Nessa manhã, a cidade que se deixa ver do alto parece à sua espera como se o cha-
masse e ele decide, então, partir em busca das paisagens e caminhos que tem criado em sua
imaginação, da sua Lisboa reinventada:
Na outra margem, as altas chaminés lançam para o ar rolos de fumo que primeiro so-
bem verticalmente, até que o vento lhes quebra o impulso e os abate numa lenta nu-
vem que vai para o sul. Raimundo Silva baixa os olhos para os telhados que cobrem
o antigo chão de Lisboa. Tem as mãos apoiadas no parapeito da varanda, sente o fer-
ro frio e rugoso, agora está calmo, apenas olha, não pensa, e é neste instante que ao
seu espírito vazio lhe acode uma ideia para ocupar o seu dia livre, algo que afinal
nunca fizera na vida... (p. 58)
164
Assim, munido das folhas descritivas que destaca do livro do historiador, o revisor de-
cide caminhar pelas ruas de Lisboa e acompanhar o antigo traçado da cerca moura, contido na
cópia que guardara. ´Desde o início do percurso, sente a sensação curiosa de perceber-se dife-
rente , embora esteja andando agora pelos mesmos e conhecidos lugares,: “Raimundo Silva
respira fundo, olha as duas filas de prédios à esquerda e à direita, com um sentimento estranho
de posse que abrange o próprio chão que pisa...” (p. 60).
Nessa cidade que começa a ver com renovados olhos, o revisor vai à procura das mar-
cas do passado, como se perseguisse uma espécie de mapa imaginário que o levasse aos luga-
res da História que revisou e até àqueles que, paralelamente, começara a criar em sua imagi-
nação. Já no lugar que supõe ter sido o lado de fora da cidade sitiada, Raimundo Silva é capaz
de “ver” claramente a cena que um soldado português poderia, supostamente, ter diante dos
olhos na época do cerco:
(...) não faltaria mais que abrir-se agora um daqueles janelões e aparecer uma rapari-
ga moura a cantar, Esta é a Lisboa prezada, Resguardada, Aqui terá perdição, O cris-
tão, e tendo cantado bateu com a janela em sinal de desprezo, mas se os olhos do re-
visor o não enganam, a cortina de cassa foi afastada subtilmente, e este gesto sim-
ples bastou para quebrar-se a ameaça que estava nas palavras, nas condições de as
tomarmos nós à letra, porque bem poderia ser que Lisboa, ao contrário do que pare-
cia, não fosse cidade mas mulher e a perdição somente amorosa, se o restritivo ad-
vérbio aqui tem cabimento, se não é essa a única e feliz perdição. (p. 69)
Preso dessa maneira à cidade sedutora e a seu passado que deseja decifrar, vai o revi-
sor embrenhar-se nas suas ruas, tentando encontrar os sinais de uma Lisboa apenas pressenti-
da, mas que certamente permanece à espera de quem a queira conhecer. A visão de Raimundo,
entretanto, não se faz apenas nas andanças pela cidade, que ele tem também um privilegia-
do posto de observação: a janela que se abre para a rua e traz para o presente e para dentro de
sua vida a paisagem do passado.
165
DAS RUAS E JANELAS DE LISBOA
No artigo “De rua e de janela”, Renato Cordeiro Gomes cita o professor da Universi-
dade de Genebra Jean Starobinski para destacar essa relação, muitas vezes esquecida, do ho-
mem moderno com a paisagem, que se torna possível de ser realizada quando o mundo pode
ser contemplado como uma cena que se desenrola frente aos olhos, colocada à vista de quem
se disponha a contemplá-la mesmo sem sair de casa:
Ao prestar-se uma atenção privilegiada à flânerie, esquece-se que o passeio solitário
através das ruas e dos bairros não é senão um dos aspectos da relação do indivíduo
moderno com a cidade. A flânerie ganha toda sua importância se se observa que ela
entra em relação contrastante com uma outra atitude, não menos reveladora, não me-
nos rica de significação: a imobilidade contemplativa, a cidade olhada apaixonada-
mente por um recurso voluntário, do alto de uma janela. Trata-se de dois pontos de
vista sobre a cidade, um movente, levado pelo fluxo da rua, o outro fixo, desdobran-
do o olhar sobre os diversos acidentes da paisagem urbana. (Starobinski, apud Go-
mes, 2003, p. 5)
Por isso, é significativo que logo depois das referências iniciais a Raimundo Silva e à
sua vida, tenha-se a informação de que na manhã de janeiro, “Da varanda, breve sacada antiga
sob um alpendre de madeira ainda com forro de caixotões, vê-se o rio, e é um imenso mar o
que os olhos alcançam entre raio e raio...” (p. 32). À noite, depois de acrescentar o não” à
narrativa do historiador, um insone Raimundo Silva vai até a janela para ver o céu e consegue
agora enxergar as estrelas, mas sente frio e percebe, nesse momento, a solidão dentro da casa:
“O revisor demora-se à janela, ninguém o chamará, vem para dentro, olha que te constipas, e
ele tenta imaginar que o chamam docemente, mas fica ainda um minuto a pensar...” (p. 52).
É ainda para a janela que o revisor se dirige, hesitante, quando recebe de Maria Sara
um exemplar da História do cerco de Lisboa, o único sem a errata sobre a palavra não”
acrescentada à narrativa. Depois fustigado e lavado” por uma impiedosa chuva, ao chegar à
casa percebe que agora o lugar lhe parece estranho, os móveis parecem diferentes, até o cheiro
é outro, como se tudo pertencesse a outra pessoa. Ao olhar para fora, com o livro nas mãos, o
166
revisor tem o gesto súbito de abrir a janela, sentindo que a cidade antiga vem ao seu encontro:
Raimundo Silva abriu de par em par a janela, alguns borrifos salpicaram-lhe a cara,
o livro não, porque o protegera, e a mesma impressão de força plena e desbordante
lhe tomou o espírito e o corpo, esta é a cidade que foi cercada, as muralhas descem
por ali até ao mar, que sendo tão largo o rio bem lhe merece o nome, e depois so-
bem, empinadas, onde não alcançamos a ver, esta é a moura Lisboa.... (p. 116)
Essa janela, que abertura para o espaço exterior e para o mundo, pode representar
também um refúgio, lugar privilegiado em que se pode olhar sem ser percebido. Tal proteção
parece ser buscada por Raimundo Silva, “(...) pois este, tímido por natureza ou feitio, infenso
a multidões, deixou-se ficar na sua janela da Rua do Milagre de Santo António, sem ousar
descer à rua...” (p. 184). A entrada de Maria Sara na vida do revisor, no entanto,faz com que
ele seja capaz de buscar mudanças no seu comportamento, enfrentar o frio que vem de fora
pela janela aberta e transformar o toque da natureza em uma sensação de afago:
(...) de certo modo Raimundo Silva anda a viver em dois tempos e em duas estações,
o julho ardentíssimo que refulge e inflama as armas que cercam Lisboa, este abril
húmido, gris, com um sol às vezes dardejante que torna a luz dura, como um dia-
mante liso e fechado. Abriu a janela, apoiou os cotovelos no parapeito da varanda,
sentia-se bem apesar do agreste, felizmente a casa vira as costas ao Bóreas, que é
quem neste momento está soprando, em súbitas e pequenas rajadas que contornam o
cunhal e vão perpassar-lhe na cara como uma carícia fria. (p. 242)
Também no tempo em que se no limiar de uma história de amor, quando não sabe
ainda se fará o movimento que o aproxima da mulher desejada, Raimundo Silva percebe a ja-
nela como um espaço de fronteira entre o mundo acanhado que habitava até então e uma aber-
tura para novas experiências de vida: “(...) e você, Maria Sara, por seu lado, não sabe que duas
rosas iguais estão aqui, num solitário, sobre uma mesa onde umas folhas escritas com a
história de um cerco que nunca aconteceu, ao lado duma janela que para uma cidade que
não existe tal qual a vejo...” (p. 245).
Quando, enfim, o revisor decide enfrentar o cerco decisivo de sua vida, é na janela (já
agora sem precisar esconder-se dos outros ) que espera ansioso pela chegada de Maria Sara.
167
De fica a observar até que ela se aproxime e ele vai então abrir -lhe a porta, conduzindo-a
para dentro do seu mundo:
A última meia hora passou-a quase toda na varanda, uma ou outra vez mostrando-se
sem disfarce, como quem, estando à espera,não se importa que se saiba e murmure,
mas quase sempre encostado à moldura interior da janela, com meio corpo escondi-
do, e espreitando à socapa para o Largo dos Lóios, onde Maria Sara deixará o car-
ro. Viu-a aparecer na esquina do prédio dos painéis de Santo António, num passo
tranquilo, nem depressa, nem devagar, vestia o casaco que já lhe conhecia, ao ombro
o saco, os cabelos soltos dançando, e o desejo deu-lhe um súbito nó na boca do estô-
mago.... (p. 291)
Com essa chegada de Maria Sara à casa de Raimundo, uma outra Lisboa feminina,
com sombras e claridades, ao mesmo tempo antiga e nova, marcada no presente pelo passa-
do, capaz de inspirar momentos de leituras e escritas entra também em sua vida.
A CIDADE COMO UM PALIMPSESTO
Em Todas as cidades, a cidade (1994), Renato Cordeiro Gomes descreve dessa manei-
ra o quadro Uma folha de registro das cidades, do pintor Paul Klee (1928), que ilustra a capa
do livro:
O quadro lembra uma escrita cuneiforme sobre pergaminho; sugere o primitivismo
de um documento manuscrito. Seria como um palimpsesto de que se apagassem os
registros de outras cidades que, por superposições sucessivas, embaralham os senti-
dos, dificultando a decifração de sua escrita. É preciso raspar essas camadas super-
postas, a começar pelo desenho da cidade moderna da desorientação do sentido, para
que, num trabalho arqueológico, se possa recuperar a inscrição de outra cidade mais
antiga. (Gomes, 1994, p. 36) para
Lembra ainda Cordeiro Gomes que pode ser pressentida, sob a cidade moderna que a
ela se sobrepõe, uma outra cidade, o que poderia assim ser visto como a metáfora de um texto,
que também teria por trás de si todos os outros textos que o precederam. Diz mais que pode-se
ler “(...) a cidade como um composto de camadas sucessivas de construções e “escritas”, onde
estratos prévios de codificação cultural se acham 'escondidos' na superfície, e cada um espera
ser 'descoberto e lido.'” (Gomes, 1994, p. 78).
168
Esse resgate do antigo espaço, que se encontra sobreposto pela cidade moderna e labi-
ríntica, poderia ser feito como uma descoberta da pintura primitiva que se esconde debaixo de
uma tela reaproveitada, ou tal como no texto o scriptor escreve sobre o pergaminho já rasura-
do (Gomes, 1994, p. 37). Tais metáforas visuais, que ganham força e significado na moderni-
dade, poderiam ser vistas como formas de recuperação da memória.
Um semelhante gesto de recuperação da memória da cidade e dos vestígios do passado
é feito no romance de Saramago pelo revisor, justificado pelas leituras e, principalmente pelo
ato de acrescentar o “não” à versão do passado escrita pelo historiador. Porém ele vai em bus-
ca, não da parte que se pode encontrar na versão oficial dos livros de História, mas daquela
quase desconhecida, o lado mouro da cidade, que resiste ao exército de D. Afonso. O revisor é
capaz, assim, de buscar os lugares que guardam as marcas abafadas pelos vencedores do Cer-
co e então, “(...) para Raimundo Silva, e até nova ordem ou até que Deus Nosso Senhor doutra
maneira o disponha, Lisboa continua a ser de mouros ...” ( p. 61).
Movido por esse sentimento, Raimundo Silva vai então dedicar-se ao resgate de figu-
ras e espaços ignorados e, ao penetrar nos lugares que supostamente corresponderiam àqueles
de outrora, sente como se as barreiras espácio-temporais se houvessem rompido para dar lugar
a um tempo de visões vertiginosas, em que os espaços, as cenas e as personagens de antiga-
mente e de hoje parecem embaralhar-se:
Evidentemente a Leitaria A Graciosa, onde o revisor agora vai entrando, não se en-
contrava aqui no ano de mil cento e quarenta e sete em que estamos, sob este céu de
junho, magnífico e cálido apesar da brisa fresca que vem do lado do mar, pela boca
da barra. (...) A cidade está que é um coro de lamentações, com toda essa gente que
vem entrando fugida, enxotada pelas tropas de Ibn Arrinque, o Galego, que Alá o
fulmine e condene ao inferno profundo, e vêm em lastimoso estado os infelizes, es-
correndo sangue de feridas, chorando e gritando, trazendo cotos em lugar de mãos,
ou cruelmente desorelhados, ou sem nariz, é o aviso que manda o rei português ...
(p. 61)
Pode-se perceber que, assim como acrescenta o “não” que contradiz a história oficial,
coloca-se Raimundo Silva do lado oposto à posição assumida pelos portugueses de antiga-
169
mente, preferindo ouvir as vozes e os clamores dos sitiados mouros. De volta à leitaria e ao
presente, o revisor, que na cena do passado sentira a fome e o desalento dos mouros, é tocado
pelo contraste que representam as “seduções da doçaria habitual” e pela voracidade da mulher
gorda, que apanha com os dedos molhados até os farelos de um bolo de mil-folhas.
Guiado sempre pelo roteiro do historiador, Raimundo Silva continua a andar pelas
ruas, buscando as marcas que o passado pudesse ter deixado, censurando-se por seu antigo
olhar de caminhante distraído. Perdido nos pensamentos que o levam sempre em direção à
Lisboa de outrora, pára para almoçar num restaurante e, ao sair, depara-se na porta com uma
menina cigana de olhos implorantes que lhe estende a mão, mas julga ter diante de si uma cri-
ança moura faminta.
Por sugestão de Maria Sara, Raimundo tenta escrever a sua própria História do cerco,
cada vez mais mergulhado no universo medieval dos mouros, guerreiros e cruzados. Seus
olhos, agora dotados de uma percepção mais aguda para captar vestígios do passado, são
capazes de fazer aquele trabalho dos estudiosos para encontrar o que se esconde por trás dos
velhos pergaminhos e o revisor consegue reviver, na paisagem da cidade moderna, aqueles es-
paços antes ocupados pelos personagens do mundo medieval: Raimundo Silva levanta-se e
abre a janela. Daqui, se as informações da História do Cerco de Lisboa de que foi revisor não
enganam, pode ver o local onde acamparam os ingleses, os aquitanos e os bretões ...” (p. 183).
Curiosamente, esse perambular por diferentes espaços e temporalidades não chega a
perturbar o revisor, que parece transitar com naturalidade entre mundos e tempos tão diferen-
tes, como se estivesse apenas a abrir e fechar uma vidraça ou as virar as páginas de um livro:
Pela janela do quarto viam-se passar nuvens, devagar, pardas e pesadas, no céu vio-
leta do entardecer. Apesar de adiantada, a primavera ainda não se resolvera a abrir as
portas ao calor, ao Austro morno que leva a desafogar os colos e subir as mangas, de
certo modo Raimundo Silva anda a viver em dois tempos e em duas estações, o ju-
lho ardentíssimo que fulge e inflama as armas que cercam Lisboa, este abril húmido,
gris, com um sol às vezes dardejante que torna a luz dura, como um diamante liso e
fechado. Abriu a janela... (p. 242)
170
Para esse mundo luminoso e quente da antiga Lisboa em que se acha mergulhado é
que Raimundo Silva procura atrair Maria Sara. Quando a recebe em casa, revela-lhe a desco-
berta que fizera a respeito da localização da sua casa na antiga cidade, numa atitude que pare-
ce ser uma forma de deixá-la partilhar do seu mundo:
E a outra torre, onde era, devia haver duas, Aqui mesmo onde estamos, Tem certeza,
Certeza absoluta não, mas tudo indica que sim, considerando o que se sabe sobre o
traçado do que seria esta parte da muralha, Então, aqui na torre, que somos nós,
mouros ou cristãos, Por enquanto mouros, estamos justamente para impedir que
os cristãos entrem... (p. 266-27)
À medida que Raimundo Silva e Maria Sara se aproximam, Lisboa antiga e moderna
cada vez mais se interpenetram e se misturam: (...) se algo nesta mulher que para Mo-
gueime não tenha segredos, é o seu nome, tantas são as vezes que ele o tem dito, os dias não
se repetem, como se parecem, Como te chamas, perguntou Raimundo Silva a Ouroana, e
ela respondeu, Maria Sara.” (p. 290). Assim, nomes e lugares, imagens e vozes do presente e
do passado se confundem nessa pintura do mundo que o romance oferece ao leitor, nesse cer-
co de palavras de que é feito o texto.
171
VI - OS RISCOS, OS PONTOS, AS TRAMAS DO TEXTO
E sem mais preâmbulo, amigo leitor, entremos no âmago da história,
que agora vou te contar muito direitinha e enfiada desde o princípio do capítulo seguinte,
para o qual te peço que voltes a folha.
(Almeida Garrett em O arco de Sant'Ana, p. 267)
O OLHAR DO ESPELHO
No livro Metafiction (1984), Patrícia Waugh chama de metaficção o texto literário que
chama atenção, de forma auto-consciente e sistemática, para a sua condição de artefato. Esse
desvendar do processo de elaboração, numa narrativa literária, tem a finalidade de levantar
questões sobre a relação entre ficção e realidade. O termo metaficção teve origem num ensaio
do crítico e romancista William Gass, em 1970 e tal forma de narrativa pode ser vista como
conseqüência de uma tendência de auto-consciência social e cultural que se acentua desde os
anos sessenta, com questionamentos sobre a maneira como o ser humano “reflete, constrói e
faz a mediação de sua experiência com o mundo.” (Waugh, 1984, p. 2). Assim, essa forma de
fazer ficcional converte-se na representação emblemática de um momento histórico pleno de
incertezas, inseguranças, auto-questionamento e manifestações de multiculturalismo.
Segundo ainda Patrícia Waugh, o fato de se criar uma ficção e ao mesmo tempo refletir
sobre o processo criativo provoca uma tensão, que dilui a diferença entre “criação” e “crítica”.
Essa tensão se faz presente, de certa maneira, em toda produção ficcional, mas apresenta-se de
modo expressivo e claro no romance contemporâneo. Outro ponto marcante da escrita meta-
ficcional é que ela desconstrói certezas e verdades do texto, que assim se revela como resulta-
do de uma série de construções, artifícios e estruturas instáveis. (Waugh, 1984, p. 6-7)
No “Prefácio” de Narcissistic Narrative (1980), outro livro também dedicado ao estu-
do da escrita metaficcional, Linda Hutcheon lembra que a poética do Romantismo concentra o
seu foco no autor e sua biografia, enquanto no Realismo um destaque para as referências
172
históricas e sociais. A a partir do Modernismo, porém, as atenções voltam-se para o texto e
seus problemas; assim, o leitor contemporâneo é instado a participar de discussões que antes
envolviam apenas o autor e os críticos literários. (Hutcheon, 1980, XIII)
Dessa maneira, a leitura, antes sugerida pelas tradições clássicas como uma experiên-
cia agradável e harmoniosa, transforma-se num processo desafiante, ou até mesmo ameaça-
dor. Diante de um texto metaficcional, o leitor é então levado “(...) a aceitar a responsabilida-
de pela ação de decodificar, pelo ato de ler. É também desafiado, perturbado, forçado a sair de
sua acomodação e deve auto-conscientemente estabelecer novos códigos para interagir com o
fenômeno literário.” (Hutcheon, 1980, p. 39).
Como recompensa, no entanto, esse leitor tem o seu grau de participação aumentado e
pode acompanhar passo a passo o processo de criação dos universos ficcionais. Outro aspecto
importante da metaficção, também ressaltado pela autora, é que as fronteiras entre um texto
de crítica e uma criação artística se diluem e, assim, temas que antes interessavam somente à
crítica são colocados dentro do texto literário e não mais fora dele, como anteriormente.
Lembra ainda Linda Hutcheon que, diferentemente do que muitos pensam, “Qualquer
que seja o motivo, o romance desde o início sempre alimentou um amor-próprio, uma tendên-
cia para a auto-obsessão” (1980, p. 10). Por essa razão, embora a escrita metaficcional seja
sempre associada à ficção pós-moderna, antigos textos como Canterbury Tales, de Geoffrey
Chaucer (século XIV), D. Quixote, de Cervantes (século XVII), Tristram Shandy, de Lawren-
ce Sterne (século XIX), Viagens na minha terra, de Almeida Garrett (século XIX) e entre nós
os romances de Machado de Assis (entre outros), já apresentam traços desse tipo de ficção.
O que difere, portanto, entre esses textos antigos e os escritos atualmente é a intensifi-
cação, na contemporaneidade, do grau de internalização da auto-consciência nas narrativas ro-
manescas. Dessa maneira, parece também possível ler o romance de Eça de Queirós, A ilustre
casa de Ramires, como um texto de caráter metaficcional, mesmo tendo sido escrito antes que
173
tal termo fosse introduzido nos estudos da literatura.
Nesse romance escrito na maturidade, Eça de Queirós cria um narrador que incita o
leitor atento à reflexão, ao contrapor o Portugal finissecular em que vive Gonçalo Ramires à
época retratada na novela que ele escreve (reinado de D. Afonso II, 1185-1223). O fidalgo su-
postamente limita-se a colocar no seu relato personagens reais: os Ramires, o bastardo Lopo
de Baião, o rei e as irmãs, D. Teresa e D. Sancha, citados no poema do tio Duarte, nas pesqui-
sas de livros históricos e do padre Soeiro. Tructesindo Ramires (antigo colaço do rei) jurara,
no leito de morte de D. Sancho, defender as infantas, a quem o pai legara títulos e terras.
Embora tratando-se de fatos ligados a fidalgos e à casa real, na novelas não se revelam
nobres as disputas por terras e títulos, pano de fundo para uma intriga de amor e vingança. Os
portugueses estão divididos, alguns colocando-se ao lado das infantas, como Tructesindo e a
maior parte de sua família enquanto outros aliam-se ao rei, como Lopo de Baião, a quem ele
jura vingança pela morte do filho. Assim, não parece inocente o olhar de Gonçalo Ramires,
que se serve de fatos e pessoas do mundo real, usa o tom grandiloqüente da narrativa e mostra
atitudes extremadas das personagens (à moda dos relatos históricos românticos), porém revela
os exageros e até mesmo a selvageria desse mundo medieval.
no plano do fim de século em que vive o fidalgo, colocam-se nas conversas ques-
tões pertinentes à época, como a do destino das colônias na África que divide os portugueses.
São colocados também aspectos não muito positivos como as manobras dos políticos para
manter o controle da situação, assim como o preconceito e as intrigas das pessoas na provín-
cia. Completando esse tom de questionamento próprio do romance de feição metaficcional, a
narrativa do presente é seguida e contestada todo o tempo pela novela que Gonçalo Ramires
escreve e pelas reflexões sobre o próprio processo de escrita.
Com o advento do Modernismo, arrefece a atração pelos temas históricos na literatura,
mas a chegada da época pós-moderna faz com que os olhos se voltem novamente para o pas-
174
sado e há um desejo de revisitar a História. Segundo Linda Hutcheon, em Poética do Pós-Mo-
dernismo, entretanto, “(...) hoje pensar historicamente é pensar crítica e contextualmente”.
(1991, p. 121). Há, assim, uma revalorização do conhecimento histórico e os fatos do passado
tornam-se presentes nos textos literários, mas ao mesmo tempo ocorre uma problematização
desse conhecimento. Assim, tanto na ficção quanto na própria historiografia, são postos em
contestação os pressupostos das afirmações históricas: objetividade, neutralidade, impessoali-
dade e transparência da representação.
Ao tipo de narrativa literária que reconhece a existência do passado histórico, mas faz
uma reinterpretação dos fatos e confronta os relatos oficiais, abrindo novas possibilidades de
leitura, ao mesmo tempo em que reflete sobre a escrita, Linda Hutcheon denomina metafic-
ção historiográfica (1991, p. 126). De acordo com essa perspectiva, Eça de Queirós, no ro-
mance A ilustre casa de Ramires, aproxima-se desse tipo de ficção, ao fazer sua releitura da
época medieval e, além disso, ao refletir com Gonçalo Ramires sobre a escrita literária, embo-
ra não o faça de forma tão consciente como acontece aos escritores de hoje.
Também entre os escritores que se valem da metaficção historiográfica como uma for-
ma que propicia espaços de reflexão sobre a História e a literatura, pode-se citar José Sarama-
go (embora haja algumas discordâncias quanto ao uso dessa classificação ao romance sarama-
guiano). Para Teresa Cristina Cerdeira da Silva, na Introdução do livro José Saramago - Entre
a história e a ficção: uma saga de portugueses, o que seria novo no olhar do escritor e que re-
presentaria fator de distinção de seus romances é que neles
prevaleceria o projecto de fazer história, numa espécie de pressentimento e um lon-
go vazio que um discurso histórico falido foi incapaz de suprir. O texto de Saramago
apontaria então para uma nova história de portugueses (e não mais de Portugal)
apresentada, agora, com roupagem literária pela óptica desse poeta/historiador que
enriquece o dito com a especificidade própria da literatura. (Silva, 1989, p. 28)
Na História do cerco de Lisboa, o fato da retomada da cidade serve de motivo para
que se coloquem questões sobre temas tão diversos como a História, a literatura, a ficção, a
175
verdade e a própria condição humana. Para que tal se concretize plenamente, a atenção do lei-
tor é solicitada a todo momento e ele se sente transportado, tanto ao espaço dos mouros sitia-
dos e dos lusos que reclamam a posse da Lisboa medieval, quanto à cidade do presente, que
teima ainda em manter as marcas do passado.
Assim como ocorre no romance de Eça de Queirós, convivem no texto de Saramago
personagens que tiveram existência real, como D. Afonso Henriques, religiosos e cruzados
(no entanto ficcionalizados) e, tanto no presente como no passado, “seres de papel” tão con-
vincentes como Raimundo Silva e Maria Sara, Mogueime e Ouroana. Em pleno desenrolar da
narrativa, a versão oficial da História é vigorosamente contestada quando o revisor coloca o
“não” no livro que corrige e as reflexões sobre a escrita ganham relevo quando ele inicia o
processo de reescritura da história do cerco de Lisboa.
A releitura do episódio do Cerco, que permeia todo o romance, longe de representar a
limitação dos questionamentos a um tema, faz com que haja a abertura para uma reflexão
contínua, capaz de abarcar também as dúvidas sobre a existência humana e o trabalho da es-
crita. Assim Rita Maria de Abreu Maia, na dissertação intitulada A ficção é o fim do cerco,
afirma sobre o livro e seu processo narrativo:
Seu texto é literatura e é teoria. Seu narrador é produtor, “escrevente textual”, ou in-
térprete do discurso que elabora. Melhor dizendo, como é próprio dos discursos pós-
modernos que recusam a alternância do ou, seu narrador é produtor e intérprete. É
criador de uma ficção. E, ao mesmo tempo, é quem desnuda sua atividade ficcional.
Tais atitudes engendram a especificidade deste romance como metaficção historio-
gráfica, “texto narrativo que tem a coragem de contar a sua própria história.” (Maia,
1994, p. 88)
No entanto, para que os propósitos da narrativa metaficional se cumpram em um ro-
mance, é preciso que o autor lance mão de recursos narrativos e de artifícios de sedução que
permitam ao leitor partilhar também de uma reflexão sobre o fazer literário e os sentidos da
escrita. Essas estratégias tanto podem se mostrar abertamente, quanto aparecer de modo mais
sutil nas suas páginas. Como tais processos se revelariam nos romances A ilustre casa de Ra-
176
mires e História do cerco de Lisboa?
SOBRE ESCOLHAS E MÁSCARAS
No artigo “Como escrevo”, o romancista e crítico Umberto Eco afirma que, ao
criar uma narrativa, o autor elege um mundo em que essa narrativa irá se desenrolar e tal
mundo eleito é que irá imporo ritmo, o estilo e as próprias escolhas lexicais” (Eco, 2003, p.
287). Nessa fase da construção de um mundo ficcional, que Eco denomina cosmogônica”,
faz-se também a opção pela estrutura do romance que está sendo construído e o autor terá, en-
tão, de delimitar certos pontos e efetuar algumas escolhas, pois
As restrições são fundamentais para toda operação artística. Escolhe uma restrição o
pintor que decide usar o óleo e não a têmpera, a tela e não a parede; o musicista que
opta por uma tonalidade de partida (depois de modular, mas é sempre àquela que
deverá retornar); o poeta que se constrói a gaiola da rima encadeada ou do hendecas-
sílabo. E não creio que pintor, musicista ou poeta de vanguarda - que parecem evitar
essas restrições – não se constroem outras. Eles o fazem, só não é dito que vocês de-
vem percebê-lo. (Eco, 2003, p. 294-295)
Entre as mais importantes escolhas que faz o romancista está a do narrador, aquela en-
tidade textual que terá nas mãos o fio da narrativa e o destino das personagens. Ao discorrer
sobre tal instância, no Dicionário de Narratologia, Carlos Reis lembra que, ao analisar um
texto, não se deve deixar de levar em conta que o narrador é uma invenção do autor, que as-
sim tem a oportunidade de “(...) projectar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, cultu-
rais, etc., que perfilha, o que não quer dizer que o faça de forma direta e linear, mas eventual-
mente cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia, aproxi-
mação social...” (Reis, 1998, p. 258).
Entretanto, ainda segundo Reis, (1998, p. 258), enquanto “(...) o autor empírico será ir-
remediavelmente uma entidade transitória e histórica, capaz até de se distanciar ideológica e
esteticamente do texto que escreveu”, o narrador, essa entidade de existência textual, oferece
177
ao leitor de modo claro ou velado os sinais de sua presença, de modo esporádico ou contínuo.
Dessa maneira, mesmo naqueles textos em que supostamente se buscaria manter a mais com-
pleta neutralidade (como os de tendência realista), ainda assim, no nível do enunciado, alguns
sinais hão de denunciar a presença do narrador, que não se ausenta inteiramente do texto.
No estudo Pós-escrito a O nome da Rosa, em que faz uma análise das origens e da cri-
ação do seu conhecido livro, Umberto Eco, ao se referir à sua escolha de um narrador-perso-
nagem da época medieval, revela que todo autor faz essa escolha de uma voz narrativa porque
precisa de “uma máscara” e explica: “Comecei a ler ou reler os cronistas medievais, para ad-
quirir seu ritmo e sua candura. Eles falariam por mim e eu ficava livre de suspeitas.” (Eco,
1985, p. 20). Desse modo, o narrador que o autor constrói é detentor de uma voz que presumi-
velmente pode ser observada no nível do enunciado e se efetua em uma série de situações e
estratégias narrativas, que são manipuladas pelo romancista.
No caso dos dois livros estudados, A ilustre casa de Ramires e História do cerco de
Lisboa, a opção escolhida pelos autores foi a do narrador heterodiegético, denominação insti-
tuída no domínio da narratologia por Gérard Genette e que Carlos Reis afirma se concretizar
quando “(...) o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem in-
tegrou, como personagem, o universo diegético em questão.” (Reis, 1998, p. 263). Embora a
escolha de tal tipo de narrador, aliada ao tema do romance histórico, pudesse trazer a idéia de
que estaríamos diante de narrativas tradicionais, nesse caso ocorre exatamente o contrário,
pois Eça de Queirós e José Saramago são capazes de construir narrativas que fogem aos mo-
delos conhecidos e, de forma renovada e original, apresentam tal perspectiva.
AS MARCAS DE UMA VOZ NARRATIVA
Quando se faz uma análise da obra de Eça de Queirós, a figura do narrador aparece re-
presentada de múltiplas formas. Carlos Reis, na tese Estatuto e perspectivas do narrador na
178
ficção de Eça de Queirós lembra que, nos romances da fase inicial de sua obra, como O crime
do padre Amaro (1876) e O primo Basílio (1878), predomina o tipo onisciente, que se com-
porta (...) como entidade demiúrgica, controlando e manipulando soberanamente os eventos
relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em que
se situam, etc.” (Reis, 1975, p. 174).
Teoricamente, tal narrador buscaria colocar-se na narrativa com uma completa objeti-
vidade, como postulam os pensadores da época, dominada pela tendência realista-naturalista.
No entanto, tal objetividade de Eça de Queirós poderia ser facilmente questionada e, para citar
apenas dois exemplos conhecidos, basta que se lembre a cena final d'O crime do padre Ama-
ro, quando as palavras do narrador desmentem (por uma espécie de oposição irônica) a falsa
realidade apontada no diálogo dos representantes do poder, pela descrição feita, logo depois,
da cena de uma sociedade decadente; ou n'O primo Basílio, quando se pode perceber, na to-
cante descrição dos momentos finais de Luísa, a compaixão revelada pela voz narrativa.
Segundo ainda Carlos Reis, diferentemente do que fizera nesses primeiros romances,
em que coloca as personagens na dependência do meio que as dirige, de forma por vezes até
excessiva, quando escreve Os Maias (1888) Eça de Queirós cria um narrador que busca vê-las
num prisma mais individualizado. Nesse romance, tal narrador vale-se de uma focalização in-
terna das personagens, de modo especial em relação a Carlos da Maia, quando então abdica de
sua onisciência, pois a subjetividade do personagem passa a dominar (...) de maneira quase
avassaladora, grande número dos segmentos narrativos que compõem Os Maias. (Reis,
1975, p. 178). Desse modo, é principalmente através da perspectiva de Carlos Eduardo que o
leitor vai deduzir a subjetividade do narrador em relação ao cenário da sociedade portuguesa,
assim como perceber a denúncia dos aspectos negativos de uma Lisboa finissecular.
para contar a história de Jacinto em A cidade e as serras (1901), assim como a de
Fradique em A Correspondência de Fradique Mendes (1900), Eça vale-se de um narrador au-
179
todiegético. O autor já se valera do emprego de narrador em primeira pessoa em outros textos,
como O Mandarim (1880) e A relíquia (1887) e neles o sujeito da enunciação faz relatos sobre
um universo diegético de que ele próprio faz parte, na condição de personagem principal.
Como se pode perceber, portanto, Eça de Queirós havia passado pela experiência da esco-
lha de variados tipos de narradores, o que lhe segurança para construir uma narrativa mais
complexa, em A ilustre casa de Ramires.
Em sua tese citada sobre o narrador queirosiano, Carlos Reis observa que também
nesse romance, a exemplo do que já ocorrera em Os Maias, o narrador cede a sua onisciência
em grande parte a uma personagem. No caso de A ilustre casa, é através do olhar de Gonçalo
Mendes Ramires que são percebidas as outras figuras que compõem o universo do romance.
Assim,
Tal como Carlos da Maia e em certos aspectos de modo ainda mais pronunciado,
também Gonçalo se definirá sobretudo pelo seu comportamento perante o universo
diegético, manifestando uma inegável autonomia relativamente às possibilidades de
controle de que disfrute o narrador, autonomia essa que, como veremos, encontra a
mais autêntica expressão na riqueza da sua vida interior. (Reis, 1975, p. 358)
Diante de tal peculiaridade, pode-se tentar compreender, então, de que modo é tecida a
narrativa e elaborada, no romance A ilustre casa de Ramires, a construção das personagens.
De início, Gonçalo Ramires é apresentado pelo narrador onisciente como “(...) certamente o
mais genuíno e antigo Fidalgo de Portugal” (p. 223), pertencente à família dos Ramires e her-
deiro de ilustre casa (mais antiga na Espanha que o Condado Portucalense), cuja linhagem
descende do Rei de Leão e remonta ao ano de 967.
Em relação à construção das personagens, nos livros da primeira fase da escrita quei-
rosiana (talvez para satisfazer ao detalhismo próprio da ficção realista), mesmo figuras secun-
dárias m suas características físicas cuidadosamente elaboradas. Tal não acontece nesse ro-
mance, em que se tem a impressão de que o narrador parece não dar tanta atenção a esse as-
pecto descritivo, mesmo em relação à personagem principal. Assim, o narrador dá apenas uma
180
sumária descrição da aparência física do fidalgo, mesmo assim misturada ao relato dos encon-
tros com Castanheiro e do início da sua atividade como escritor:
E foi então que Gonçalo Mendes Ramires, moço muito amável, esbelto e louro,
duma brancura de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos – apresen-
tou ao Castanheiro, num domingo depois do almoço, onze tiras de papel intituladas
D. Guiomar. (p. 226)
Castanheiro tenta convencer Gonçalo, com apelos patrióticos, a escrever um romance
histórico, mas o fidalgo só se propõe a cumprir a sugestão do Patriota quando percebe que
“Tudo nela o seduzia e lhe convinha...” (p. 231). A partir desse momento, é através da foca-
lização interna da personagem que o narrador mostra o mundo da província, as pessoas que
nele vivem, as intrigas que em volta delas se entrelaçam e o processo da escrita da novela.
Tal mudança de focalização torna-se importante porque, segundo Carlos Reis, pelo
destaque no plano da narrativa, Gonçalo Ramires adquire no romance “(...) perante um uni-
verso diegético quase inteiramente dependente de sua perspectiva, uma importância que trans-
cende largamente a do narrador, reduzido quase unicamente à missão de enunciador do dis-
curso narrativo.” (Reis, 1975, p. 379).
Dessa maneira, nos episódios que se sucedem, as ações das personagens e seus senti-
mentos quase sempre têm sua interpretação feita através da perspectiva de Gonçalo. Quando o
fidalgo relata ao cunhado uma intriga amorosa do Cavaleiro, por exemplo, o narrador sugere
a perturbação de Gracinha pela sua emocionada execução ao piano, mas é a focalização de
Gonçalo que traduz os sentimentos que agitam a irmã:
O Barrolo, impressionado, beliscava a pele do pescoço. O piano emudecera: mas
Gracinha não se movia do mocho, com os dedos entorpecidos nas teclas, como es-
quecida diante da larga folha onde se enfileiravam, na letra apurada do Videirinha,
as quadras triunfais dos Ramires. E subitamente Gonçalo sentiu naquela imobilidade
sufocada o despeito que a trespassava. Sensibilizado, para a libertar, lhe poupar al-
gum soluço escapando irresistivelmente, correu ao piano, bateu com carinho nos po-
bres ombros vergados que estremeceram... (p. 299)
181
Também nas partes em que a novela histórica se faz presente no romance, o narrador
supostamente cede a função da escrita a Gonçalo, que passa também, dessa forma, a exercer a
função de segundo narrador no romance, configurando-se então o esmerado trabalho de cons-
trução narrativa realizado pelo autor e que Lélia Parreira Duarte, no artigo “A refinada ironia
de Eça em A ilustre casa de Ramires”, assim explica:
É interessante observar os vários níveis de narração existentes no romance: num de-
les estaria o narrador primeiro do romance, bem próximo de Gonçalo e do ambiente
em que a personagem se movimenta, constantemente atento às suas ações, reações,
contradições e muitas vezes servindo de seu porta-voz. No segundo nível estaria o
narrador-personagem Gonçalo Mendes Ramires, fraco e sem prestígio, interessado
em recuperar a história de seus antepassados a fim de afirmar-se diante de seus con-
temporâneos. Num terceiro e último nível estaria o autor implícito do romance, ob-
servador atento e divertido das lutas pelo poder no interior da narrativa, este sim um
escritor na acepção de Barthes (em que o escritor se contrapõe ao escrevente). (Du-
arte, 1997, p. 296)
Do ponto de vista formal, o momento da transição do texto principal para a novela his-
tórica é conduzido pelo narrador de forma muito sutil, às vezes sem que haja mesmo quebra
na estrutura da frase: “E desanuviado, sentindo as Imagens e os Dizeres surgirem como bolhas
duma água represa que rebenta, atacou esse lance do Capítulo I em que o velho Tructesindo
Ramires, na sala de armas de Santa Irinéia, conversava com seu filho Lourenço ...” (p. 255).
Mesmo quando o narrador introduz o texto da novela usando marcas de pontuação
como vírgula, ponto, travessão e dois pontos, isso se faz de tal forma que esse texto parece li-
gar-se naturalmente à narrativa principal, como ocorre na página 257: “E o fidalgo da Torre,
que decidira arriscar o beijo folgazão, retomou a pena, arredondou o seu final com elegante
harmonia: 'A moça, furiosa, gritou: Fu! Fu! Vilão! E o beguino, assobiando...”.
O narrador revela também habilidade ao manipular diferentes registros e tipos de lin-
guagem, o que proporciona agilidade e leveza à narrativa, como na seqüência que dá início ao
capítulo III, em que se abre espaço no relato (com a focalização interna da personagem) para
falas de nível coloquial:
182
Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou com afer-
ro e proveito. E nessa manhã, depois de repicar a sineta no corredor, duas vezes o
Bento empurrara a porta da livraria, avisando o Sr. Doutor “que o almocinho, assim
à espera, certamente se estragava.” Mas de sobre a tira de almaço Gonçalo rosnava
“já vou” - sem despegar a pena, que corria como quilha leve em água mansa, na
pressa amorosa de terminar, antes do almoço, o seu Capítulo I. (p. 257)
A estratégia do narrador, de abrir mão de sua onisciência e ceder lugar à focalização
interna da personagem, proporciona também algumas das passagens mais interessantes do ro-
mance, pela ambigüidade que introduz na narrativa. Assim, o episódio do Mirante não deixa
ao leitor a possibilidade de realmente saber o que se passa entre Gracinha e o Cavaleiro, por
ser relatado da perspectiva de Gonçalo, que foge envergonhado e confuso ao ouvir os sussur-
ros amorosos do casal, fazendo com que uma dúvida permaneça no ar.
ainda outros episódios em que o leitor tem de se contentar com insinuações e pos-
sibilidades, como na ocasião em que o fidalgo desiste dos planos de um vantajoso casamento,
mas se exime de buscar a resposta do que realmente acontecera entre D. Ana Lucena e Titó.
ainda, na visita ao túmulo dos antepassados, a menção a uma lâmpada sempre acesa, mis-
tério que nem mesmo Gonçalo parece (ou deseja) decifrar.
Essas passagens, que deixam de lado a busca detalhada de clareza e objetividade da
narração de cunho realista-naturalista, dão ao romance o toque de ambigüidade e sutileza que
as obras da primeira fase do escritor não possuíam, evidenciando, assim, uma evolução na arte
de narrar de Eça de Queirós, que pode mesmo refletir a atenção dada às opiniões de críticos
como Machado de Assis. Além disso, essas “omissões” dão ao texto um toque irônico, como
lembra Antonio Candido, no artigo “Ironia e Latência”:
Pode-se, portanto, dizer que n'A ilustre Casa um importante segmento do enredo
que é latente e produz efeitos sem aparecer na superfície do relato. Por isso, o pesa-
do elemento dramático não aflora, a tragédia é recalcada e pode ser mantida a leveza
da narrativa, leveza que reflui sobre o protagonista e amaina a duvidosa qualidade
moral de tantos de seus atos. (Candido, 2000, p. 23)
Uma amostra do caráter ambíguo de Gonçalo é revelada pelo narrador também de for-
ma indireta, pela trajetória amorosa de Gracinha. Ele próprio não vive no livro uma história de
183
amor, mas tem papel importante no idílio da irmã. Já no segundo capítulo, a profunda aversão
do fidalgo por André Cavaleiro justifica-se pela lembrança do “fundo agravo” que o então
amigo de juventude causara a Gracinha, no passado. Com apenas dezesseis anos e chamada “a
flor da torre”, a jovem “Psique cheia de graça” apaixonara-se perdidamente pelo “Marte cheio
de força” de bigodes reluzentes, que a abandonara sem explicações, depois da formatura.
Ao perceber o assédio de André Cavaleiro à antiga namorada, Gonçalo encoleriza-se,
mas o narrador mostra que no pensamento dele a ambição política abafa os receios sobre a
fragilidade da irmã:(...) Gracinha permaneceria tão inacessível e sólida na sua virtude como
se fosse insexual e de mármore. Oh, realmente por Gracinha, ele abriria ao Cavaleiro todas as
portas dos Cunhais – mesmo a porta do quarto dela, e bem larga...” (p. 319). No jantar que ce-
lebra o acordo político, o fidalgo chega ao ponto de recomendar à irmã que se decote e ponha
o seu colar de brilhantes, para exibir ao Governador “a derradeira jóia histórica dos Ramires”
(atributo que certamente também pode ser aplicado a Gracinha).
Quando uma carta assinada por um coração chamejante chega, insinuando uma rela-
ção amorosa entre Gracinha e o Cavaleiro, a focalização interna mostra um Gonçalo imobili-
zado, dividido entre o amor pela irmã e a ambição do poder. Mas a vitória nas eleições e o
castigo aos rapazes de Nacejas fazem-no refletir e tentar reverter o mal causado à irmã, acon-
selhando-a com carinho a afastar-se do sedutor, em nome da honra do nome Ramires.
No final do capítulo XI, o narrador distancia-se do fidalgo, deixando de privilegiar a
sua perspectiva dos fatos e das pessoas da província, depois que Gonçalo Ramires diz ao cria-
do: “A festa acabou, Bento” (p. 458), frase com que também parece despedir-se do leitor, Da-
qui por diante, o Gonçalo sempre atuante e presente em todos os acontecimentos do texto pas-
sa a fazer parte do lado vago e nebuloso do romance, vivendo da maneira com que o narrador
refere-se à ida dele para a África: “silenciosamente, quase misteriosamente”.
Com o final da escrita da novela e a partida de Gonçalo para a África, a movimentação
184
nervosa que até então impregna a narrativa desses meses termina, dando lugar a um relato em
que o tempo parece perder o sentido, fato demonstrado com perfeição pela primeira frase do
capítulo XII: “Quatro anos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como vôos de ave.”
(p. 459). Na verdade, a partir desse momento o narrador onisciente retoma a história, aproxi-
ma-se das outras personagens e o próprio Gonçalo passa a ser “relatado” pelas palavras de ou-
tros.
no final do romance, tem-se a focalização de Gracinha, que tem então revelada a
sua dor e a apatia pela desilusão amorosa: “A sucessão das coisas rolara, como o vento às lu-
fadas num campo, e ela rolara, levada com a inércia duma folha seca.” (p. 460). O narrador
revela que, durante um ano, Gracinha passeia seu desalento em caminhadas solitárias, sentin-
do no coração o frio e a melancolia de um dia chuvoso, e quando Barrolo decide reformar o
palacete, derrubar o mirante e queimar o divan, é destruído o último vestígio físico da paixão:
“O estofo puído flamejou, depois o mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, até
que uma brasa ficou latejando, e a brasa escureceu em cinza.” (p. 462).
A voz narrativa conta que, enquanto isso, a vida na província retoma sua rotina, os jor-
nais falam da intensa vida mundana de Gonçalo em Lisboa e de sua viagem para a África. Até
que, numa tarde na Torre que se alvoroça para receber seu dono de volta da África, Gouveia lê
em voz alta uma carta da prima Maria Mendonça a Gracinha, relatando a chegada festiva de
Gonçalo à capital, acompanhado de um elegante Bento vestido à moda inglesa.
O fidalgo torna-se então presente de forma indireta, com os comentários da carta. São
os amigos que falam das aventuras de Gonçalo e do seu retorno, da novela histórica, de suas
qualidades e defeitos, numa espécie de análise coletiva, terminando por compará-lo a “Portu-
gal”, segundo as palavras de João Gouveia. O dia e o romance terminam quando eles se des-
pedem e o narrador deixa então que “o bom” padre Soeiro encerre a narrativa, pedindo a paz
de Deus para Gonçalo e para Portugal“(...) que sempre bendita fosse entre as terras.” (p. 470) .
185
Haveria um toque de ironia nesse final, aclamado por uns como um retorno de Eça às
raízes, contestado por outros como um abandono do autor às suas idéias críticas e combativas
da juventude? Deve-se lembrar que o escritor não chegou a fazer a revisão de todo o romance
e, pelo que se conhece de seu processo de escrita, certamente haveria ainda mudanças no tex-
to. Outro ponto para reflexão é que Gonçalo Ramires não tem mais a palavra na parte final do
livro e o narrador não esclarece o que se passa durante os anos na África. Sabe-se, pela carta
da prima e pelos comentários, que ele fez fortuna (tem coqueiros, cacau, borracha, galinhas
aos milhares, uma grande casa com vinte janelas). Esse aburguesamento” do fidalgo, sem
que ele “nem de leve” tostasse a pele, não é acompanhado de nenhuma explicação.
Assim, o que se pode dizer com certeza desse Gonçalo, que o narrador afasta dos
olhos do leitor no final do romance, é que ele abandona um projeto pelo menos presumida-
mente de cunho social, em benefício de um projeto somente seu, pois enquanto está em Lis-
boa como deputado, parece ter-se esquecido de trabalhar em benefício dos eleitores para dedi-
car-se à vida mundana, assim como também parte para a África sem prestar-lhes contas do
abandono do cargo, para o qual fora eleito com expressivo apoio.
Quanto à comparação de Gonçalo Ramires com Portugal, deve-se notar que tal seme-
lhança é verbalizada no final do romance, mas já está presente desde o parágrafo inicial, como
se apontou, quando ele é apresentado como o fidalgo da Torre, e sua trajetória está sempre
ligada a essa construção simbólica, abrigo dos Ramires desde “os meados do século X”, por-
tanto testemunha do nascimento da nação portuguesa. Enquanto a torre, porém, se mantém
impassível e altaneira, apesar dos estragos do tempo e da mudança dos costumes, Gonçalo pa-
rece disposto a jogar por terra todos os valores que ela representa: honra, lealdade, coragem,
determinação.
Deve-se notar também que a comparação de Gonçalo com Portugal é feita, na derra-
deira conversa do romance, por João Gouveia (ligado à classe política, portanto, na perspecti-
186
va queirosiana detentor de pouca credibilidade). Mas talvez por isso mesmo ele seja capaz de
lançar um olhar benevolente, tanto para as qualidades como para os defeitos do fidalgo, assim
como também faz o Padre Soeiro.
No artigo “Sobre o último Eça ou o o realismo como problema”, Carlos Reis destaca o
significado do final do romance, que transcende as certezas do realismo crítico e mostra um
narrador que “abdicou do direito de concluir”. A volta de Gonçalo não mostraria superação da
decadência, antes revelaria uma ambigüidade ressaltada pela ausência do fidalgo. Além disso,
“(...) diferentemente do que acontecia nos romances realistas em que uma voz narrativa om-
nisciente fixava sentidos ideológicos estáveis (como pode ler-se ainda n'O crime do padre
Amaro), A Ilustre Casa de Ramires termina num registo plurivocal.” (Reis, 1999, p. 162)
Outro ponto interessante é que, no começo do romance, ao sentir a indecisão do fidal-
go em iniciar a escrita da novela, o patriótico Castanheiro justifica a atitude do amigo com o
dito Procastinare lusitanum est. Com o desenrolar dos acontecimentos, porém, esse indeciso
Gonçalo (que é mostrado como símbolo de Portugal) mostra-se capaz de espantar a todos com
decisões súbitas e aparentemente inexplicáveis: reata a amizade com o Governador a quem
parece detestar, recusa o título de Marquês de Treixedo que lhe é oferecido em nome do rei,
açoita com violência os rapazes de Nacejas, vai para a África depois de eleito deputado.
No final do romance, a própria descrição que Gouveia faz do caráter de Gonçalo dá re-
alce a essa mistura de contrastes, como também alude, de certa forma, ao mito sebastianista
de esperar uma solução, que o retorno do fidalgo, de certa forma, parece cumprir. Assim, o
narrador deixa para o leitor, aqui e ali, alguns pontos “soltos” e algumas lacunas que levam a
pensar. Pode-se ver também aqui, desse modo, outro exemplo do “Eça na ambigüidade”, de
que fala Maria Lúcia Lepecki, em relação ao romance A cidade e as serras . (Lepecki, 1974)
Quase um século depois, no livro Deste mundo e do outro (1985), o escritor José Sara-
mago apresenta, na crônica “Nós, portugueses”, uma visão mais direta do que a visão queiro-
187
siana a respeito de sua terra. Ali, o cronista também fala da tendência lusa de tudo delegar,
aguardando a ajuda de Deus, a volta de D. Sebastião ou a sorte grande na loteria, afirmando:
“Temos a vocação da boa vida, de uma regalada vida que com pouco se contenta. Somos bons
e confiantes. Que Deus nos abençoe, que de nós não virá mal ao mundo nem bem.” Conclui
ainda com uma constatação conformista, porém não muito lisonjeira: Nós, portugueses, so-
mos assim. E eu, que português sou, não sei se devo rir, se chorar.” (Saramago, 1985, p. 161).
Talvez numa forma de contestar a tendência para a acomodação que atribui aos portu-
gueses, o escritor sempre se posiciona com firmeza nos textos que escreve. Também talvez
por essa razão procure construir personagens de caráter firme e determinado, como o Raimun-
do Silva que, na História do cerco de Lisboa, contesta os relatos históricos ao colocar um
“não” no livro que revisa e também mostra, no texto que escreve, os interesses por trás da pro-
posta aos cruzados e da recusa deles em ajudar os lusos. Sua versão é contestadora, ainda, por
deixar a decisão da reconquista como mérito dos próprios habitantes da península ibérica e
não nas mãos dos estrangeiros,
Como já foi dito, o narrador saramaguiano também não deixa de colocar-se claramen-
te no texto e essa posição definida constitui-se numa marca de sua escrita. Márcia Zamboni
Gobbi, no estudo “Assim é se lhe parece”, sobre a História do cerco de Lisboa, afirma que o
narrador dos romance de José Saramago, “(...) ao contrário de manifestar qualquer tentativa
de 'apagamento', ele quer é mostrar-se, mostrar que a história contada não se faz 'por si mes-
ma', mas é fruto de uma subjetividade, de uma voz que 'tem dono.'” (Gobbi, 1999, p. 150).
Já Beatriz Berrini, no artigo “O contador de histórias”, lembra que a atuação do narra-
dor, nos romances de José Saramago, faz com que seja lembrado o tradicional contador de
histórias (como o próprio autor se denominou, aliás, diversas vezes), pela forma com que
ele constantemente dirige-se ao leitor e pelos artifícios com que procura seduzi-lo, lembrando
também que, nos seus textos, o narrador faz sempre notar sua presença e
188
Tal não acontece somente por causa do emprego da primeira pessoa, nas freqüentís-
simas intervenções no presente da escrita. Em cada um dos romances, na verdade,
tem o narrador o estatuto de um deus criador e senhor do mundo. Um demiurgo,
dono absoluto da narrativa. Faz-se entretanto guia benevolente e amigo a conduzir o
leitor pelas veredas da História e das histórias, remotas e recentes. (Berrini, 1998, p.
57)
Também ao narrador de Saramago certamente se poderia aplicar a designação usada
por Maria de Lourdes Ferraz, no estudo que faz sobre A ironia romântica (1987), para referir-
se àquele tipo de condutor da narrativa criado por autores como Stern, Garrett e Camilo, por
ela denominado “narrador dramático” e que pode ser encontrado mesmo em textos que não
sejam da época romântica. Tal narrador seria como um autor de peças que vigiasse a cena em
que o drama é representado atento a todos os detalhes, orientando o seu desenrolar, apontando
pormenores, lembrando pontos que não devem ser esquecidos. (Ferraz, 1987, p. 73)
Esse narrador parece, assim, ajustar-se perfeitamente a uma figura ficcional de forte
cunho personalista, que faz com que o leitor apreenda a história através da sua perspectiva,
que não só lhe é contada, masmostrada”; seu texto revela ainda a marca de tal tipo de narra-
dor, a de ser “irônico por excelência.” (Ferraz, 1987, p. 72). Além disso,
O que precisamente caracteriza este narrador dramático como um narrador altamente
pessoalizado é a preocupação, de que mostras, de que o leitor não ignore a sua
personalidade de contador, personalidade patente no modo como sumaria os aconte-
cimentos, como os interrompe, como os retoma para neles insistir... (Ferraz, 1987, p.
74)
Sobre a escolha do tipo de narrador, percebe-se a preferência de José Saramago pela
narração em terceira pessoa, com exceção do Manual de pintura e caligrafia, em que o relato
é feito pela personagem principal. Nesse romance, a certo momento do relato, a própria perso-
nagem faz uma reflexão sobre as limitações impostas pelo narrador em primeira pessoa:
Escrever na primeira pessoa é uma facilidade, mas é também uma amputação. Diz-
se o que está acontecendo na presença do narrador, diz-se o que ele pensa (se ele o
quiser confessar) e o que diz e o que faz, e o que dizem e fazem os que com ele es-
tão, porém não o que esses pensam, salvo quando o dito coincida com o pensado, e
sobre isso ninguém pode ter a certeza. (Saramago, 2001, p. 113)
189
Uma maior liberdade de movimentos dentro da narrativa justificaria, desse modo, na
História do cerco de Lisboa, a escolha do narrador onisciente, que tem a difícil tarefa de con-
duzir um relato em que vozes e discursos vários se entrelaçam, ora contestando-se, ora colo-
cando-se lado a lado, numa forma de complexa integração polifônica. Assim, como a mostrar
que detém o domínio da trama, a voz do narrador inicia o primeiro capítulo do romance com
as palavras “Disse o revisor” (p. 11) e também finaliza o relato, com uma última e enigmática
informação: “Sob o alpendre da varanda respirava uma sombra.” (p. 348).
A esse discurso principal virão se juntar ainda, no desenrolar do romance, narrativas
históricas (às vezes literalmente transcritas, outras parafraseadas ou mesmo parodiadas) de
cronistas de épocas remotas, outras de caráter religioso e popular, como a dos milagres de
Santo Antônio que Maria Sara lê. também o texto que Raimundo supostamente imagina,
outro que escreve sobre o antigo cerco de Lisboa e nele ouve-se o relato da personagem Mo-
gueime sobre a tomada de Santarém. Ao lado e permeando todos esses relatos e textos, sem-
pre se faz ouvir a voz do narrador, que atento a tudo comenta, contesta e, de certa maneira,
consegue fazer com que todas essas escritas entrem em diálogo e se enriqueçam mutuamente.
Assim, depois que inicia o romance e como uma espécie de preâmbulo à história, o
narrador como que assiste, durante todo o primeiro capítulo, a um inusitado diálogo entre um
revisor e um historiador. Situados no presente, inicialmente eles falam sobre um antigo e apa-
rentemente inofensivo sinal, o deleatur, que segundo o revisor tem o poder de suprimir e apa-
gar, mas para o historiador lembra uma cobra prestes a atacar. Pode-se perceber, desde já, uma
tensão, que a dúbia frase do revisor ao final: “Que seria de nós se não existisse o deleatur...”
(p. 16), ainda acentua.
Essa conversa, a princípio aparentemente sem muito sentido, torna-se importante à
medida em que se avança na leitura, pois vai-se percebendo que ela de fato constitui-se como
uma espécie de armadilha inicial, pois tudo que ali é dito adquire sentido depois, no desenro-
190
lar da narrativa: aparece um revisor, aparentemente submisso às imposições do autor, mas
que possui idéias próprias, são problematizados temas como a relação entre História e lite-
ratura, presente e passado, verdade e mentira, ficção e realidade, leitura e escrita de um texto.
No segundo capítulo, entretanto, essas personagens do presente são afastadas tempora-
riamente, para que o leitor seja transportado até um amanhecer na Lisboa do século XII, no
momento em que um almuaden desperta. A partir daí, o narrador assume o papel de organiza-
dor do universo diegético, manipulando os jogos entre os diversos tempos e espaços, acompa-
nhando as personagens, revelando pensamentos, lançando um olhar irônico sobre as versões
da História oficial, marcando a sua presença na narrativa com observações e comentários.
Esse segundo capítulo, como foi mencionado, inicia-se com a descrição detalhada
do amanhecer na cidade, despertada com o apelo do almuadem à oração; pode-se sentir tam-
bém aí a presença do narrador, com a atitude de parcialidade que ele não se preocupa em ocul-
tar, revelada por um peculiar estilo de contar, sempre mostrando o lado esquecido e original
de fatos, lugares e pessoas. Assim, desdobra-se em comentários sobre assuntos tão diversos
como apontar nos cegos a capacidade de “ver”, comentar com malícia a virgindade sempre re-
feita das huris no paraíso, mostrar simpatia ao relatar o sonho dos cães.
O narrador emprega comumente a pessoa “nós” (o chamado plural de modéstia) para
se expressar, talvez como uma forma natural de se colocar no relato sem usar a muito marcan-
te primeira pessoa do singular. Outras vezes, esse emprego parece indicar que aquilo que é
dito se refere à generalidade dos homens: (...) do hábito de julgarmos tudo segundo idéias
adquiridas, da nossa insaciável curiosidade...” (p. 28). Também esse uso parece indicar às ve-
zes uma espécie de convite ao leitor, para que se inclua ou se junte a ele na observação do seu
universo ficcional.
Pela perspectiva da personagem Raimundo Silva, (a cujas observações, por vezes,
ainda acrescenta as suas), o narrador mostra,mundos do presente e do passado, personagens
191
de hoje e de outrora. Sabe-se, pela observação do revisor quando conhece Maria Sara, que ela
traz uma expressão divertida no rosto, em contraste com a seriedade dos diretores, “(...) uma
mulher ainda nova, menos de quarenta anos, percebe-se que é alta, tem a pele mate, os cabe-
los castanhos.”(p. 87). Além disso, o narrador completa essa primeira impressão da persona-
gem, dizendo:
(...) se o revisor estivesse mais perto perto poderia ver uns fios brancos, e a boca é
cheia, carnuda, mas os lábios não são grossos, estranho caso, um sinal de inquieta-
ção toca algures o corpo de Raimundo Silva, perturbação seria a palavra justa, agora
deveríamos escolher o adjectivo adequado para acompanhá-la, por exemplo, sexual,
porém não o faremos... (p. 89)
Desse modo, é pela focalização de Raimundo Silva e comentários do narrador que se
pode visualizar a figura feminina, assim como conhecer as emoções provocadas por ela e até
mesmo detalhes, como o fato de que Maria Sara não tinge o cabelo, que ela não tem outra
pessoa em sua vida, por não usar anel ou aliança nos dedos, que se veste de maneira casual-
mente sensual, com uma blusa de seda que parece induzir ao toque.
À medida que se estabelece o clima de tensão amorosa, o narrador transita entre as
duas personagens e passa a focalizar também os pensamentos de Maria Sara: “Compreende
que Raimundo Silva não falará, e ela quereria e ao mesmo tempo não quer que ele fale, que
nada venha interromper este silêncio irreal...” (p. 263). Mostra, às vezes de outro ângulo, os
movimentos de avanço e recuo, a luta interna do revisor: “Maria Sara sentiu que todo ele re-
cuava, como um caracol que se recolhe à proteção da concha, mais e mais fundo...” (p. 265).
Quando ela parte, porém e Raimundo Silva volta à sua solidão, o narrador retorna também
para junto do revisor, para revelar que a cama não é desfeita e ele passa a noite num sofá.
De volta à Lisboa do cerco, por uma página e meia o narrador reflete sobre o compor-
tamento dos condenados à morte, num procedimento que ele próprio analisa depois: “Tão lar-
go rodeio da matéria não teve outra justificação que mostrar como, por inocência, pode acon-
tecer que alguém venha a dar voz à sua própria morte...” (p. 278). Após essa justificativa, re-
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toma o fio da narrativa, num procedimento que por diversas vezes é repetido.
É também pelas manobras do narrador que, pela mistura ou confronto de ações, vê-se
que no romance irrompem vários e simultâneos cercos: o dos portugueses aos mouros de Lis-
boa no livro do historiador, o amoroso em que Raimundo Silva e Maria Sara estão envolvidos,
o que ele faz às palavras quando escreve o livro, no qual ainda reinventa o cerco da cidade e
cria outro cerco, amoroso, desta vez entre Mogueime e Ouroana. Assim, tornam-se ambíguas
e plenas de significados muitas passagens (pois podem referir-se a todos e a qualquer um dos
cercos), como a que mostra Raimundo à espera de Maria Sara:
(...) o cesto de papéis que fora buscar no escritório estava cheio de folhas
rasgadas,um destroço, se todos os dias, a partir de agora, forem como este, há grande
perigo de que a sua história não acabe, ficando os portugueses, até ao fim dos tem-
pos, diante de Lisboa, invicta, sem ânimo para a conquistar e sem forças para renun-
ciar a ela. Durante o dia tivera de resistir mil vezes à tentação de telefonar... (p. 291)
Dessa forma, também o momento do encontro amoroso de Raimundo e Maria Sara
aparece entremeado de referências aos acontecimentos que ocorrem na cidade: “(...) agora
sim, o muro invisível desmoronava-se, para além deles ficava a cidade do corpo, ruas e pra-
ças, sombras, claridades, um cantar que vem não se sabe donde, as infinitas janelas, a peregri-
nação interminável.” (p. 294).
Em relação às personagens, por vezes o narrador comenta sua maneira de agir no de-
senrolar da trama e ora delas se afasta, ora se aproxima, discorrendo sobre os poderes e as li-
mitações com que precisa lidar todo o tempo. Assim, depois de mostrar um telefonema em
que Maria Sara e Raimundo revelam detalhes de sua vida e dissipam dúvidas e temores que os
perturbam, o narrador interrompe o relato para comentar:
Estão felizes, ambos, e a um ponto tal que será grande injustiça separar-nos de um
para ficar a falar do outro, como mais ou menos seremos obrigados a fazer, porquan-
to, conforme ficou demonstrado num outro mais fantasiosos relato, é física e mental-
mente impossível descrever os actos simultâneos de duas personagens, mormente se
elas estão longe uma da outra, ao sabor dos caprichos e preferências de um narrador
sempre mais preocupado com o que julga serem os interesses objectivos de sua nar-
rativa do que com as esperanças em absoluto legítimas desta ou daquela persona-
193
gem... (p. 239-240)
O narrador comporta-se, também, de modo freqüente e de variadas formas naquelas
passagens em que relata a história do cerco, como se fosse uma espécie de comentador e atua-
lizador do texto escrito (ou corrigido, ou imaginado) por Raimundo Silva. Desse modo, sente-
se à vontade para se locomover no tempo e no espaço, indo das lutas do século XII à segunda
guerra mundial, para destacar as (nem sempre lembradas, como sempre gosta de ressaltar)-
timas dos interesses que motivam os conflitos:
Sem tira-te nem guarda-te, à falsa fé, atacaram os aviões japoneses a esquadra norte-
americana que estava demolhando as obras vivas em Pearl Harbour, e foi ali o des-
troço que se sabe, regular quanto a perdas de gente, se compararmos com Hiroxima
e Nagasáqui, mas de conseqüências catastróficas no que toca aos bens materiais,
couraçados, porta-aviões....(p. 195)
Tal é a interferência desse narrador principal que, ao ver a indecisão de Raimundo Sil-
va, não escolhe como também batiza a personagem do seu livro, supostamente para deixá-
lo livre para se dedicar a seu complicado cerco amoroso. Assim, depois de apontar-lhe um jo-
vem soldado, sugere: “A este homem haverá que reconhecer-lhe um nome, ele o tem, sem -
vida, como qualquer de nós, mas o problema está em que teremos de escolher entre o que ele
supõe ser seu, Mogueime, e o outro que lhe darão mais tarde, Moigema será....” (p. 186). O
narrador faz um convite para que se ouça então a fala de Mogueime aos companheiros e,
depois, informa que Raimundo Silva aceita-o como sua personagem., convencido pelo brilho
de sua história.
Outra das artimanhas do narrador é a de transitar pelos planos temporais à vontade, re-
velando como se darão acontecimentos futuros ou voltando a acontecimentos passados, para
melhor esclarecê-los. No entanto, apesar dessa clarividência ou talvez para envolver o leitor
com um mistério, o narrador não revela o autor das mortes dos homens que importunam Ou-
roana e mostra que nem as personagens parecem saber quem foi: “Um dia, quando tiverem
chegado à fala e outras mais intimidades, Ouroana perguntrá a Mogueime se tinha sido ele
194
quem matara os soldados prevaricadores, Que não, respondeu, e ficou a pensar... ” (p. 326).
De tempo preciso e delimitado também fala o narrador quando inicia o último capítu-
lo, para informar que se passaram dois meses desde o início do cerco, três meses do pagamen-
to do último soldo e, situando-se a partir dessas marcas, inicia o relato de acontecimentos que
marcam essa fase derradeira e dramática do relato, como a rebelião dos soldados, a fome dos
mouros, a intensificação do ataque e a rendição de Lisboa, até o momento em que a voz do al-
muaden é calada, na hora da prece, pela espada de um soldado cristão.
Na última página, o narrador informa que são três horas da madrugada, volta ao pre-
sente em que Raimundo Silva termina de escrever a sua história do cerco e discute com Maria
Sara o destino final de Mogueime e Ouroana, finalmente livres. Ao deitar-se ao lado de Maria
Sara, o agora escritor não se conta de que “Sob o alpendre da varanda respirava uma som-
bra” (p. 348), mas o leitor certamente ficará a pensar nessa misteriosa informação, a derradei-
ra provocação que permanece ainda como um enigma, depois que os relatos dos cercos de
Lisboa chegam ao fim. Outras manobras astuciosas, entretanto, teria usado o narrador para
manter o leitor atento e enredado, até a última linha do romance.
UMA ESCRITA EM ABISMO
Entre os artifícios de que se vale o escritor de um texto metaficcional figuram a estra-
tégia de uma narrativa que se encaixa dentro de outra, denominada mise-en-abîme e apresen-
tada por Carlos Reis, no Dicionário de Narratologia, como um procedimento narrativo que se
realiza quando se percebe numa obra literária “(...) como se no discurso se projectasse 'em
profundidade' uma representação reduzida, ligeiramente alterada ou figurada da história em
curso ou do seu desfecho”. (Reis, 1988, p. 233).
Tanto no romance A ilustre casa de Ramires quanto na História do cerco de Lisboa en-
contramos narrativas que se encaixam na narrativa principal, alternando-se com ela e consti-
195
tuindo-se no que Lucien Dällenbach, no artigo “Intertexto e autotexto”, classifica como a
mise-en-abîme generalizante, aquela que produz no contexto uma expansão semântica de que
a narrativa por si não seria capaz. (1979, p. 58). Para Dällenbach, essas narrativas, “Com-
pensando a sua inferioridade em tamanho pelo poder de investir sentidos, (...) colocam-nos de
facto perante este paradoxo: ao macro-cosmo que as contém, ultrapassam-no e, duma certa
maneira, acabam por englobá-lo.” (p. 58).
Essa estratégia aparece nos livros de a de Queirós e José Saramago, pois neles as
narrativas em abismo não se apresentam em um único bloco, (como às vezes também aconte-
ce), mas distribuem-se por todo o romance e acompanham o enredo, compondo também uma
história completa, que termina de forma quase paralela ao relato principal, especialmente na
História do cerco de Lisboa. Assim, acabam por imprimir ao texto um caráter metadiegético e
reflexivo e proporcionam pluralizações de sentidos que acompanham todo o romance, numa
espécie de desdobramento contínuo, pelo fato de se ligarem entre si e especialmente ao relato
principal, opondo situações e personagens, referindo-se e articulando-se todo o tempo.
No romance A ilustre casa de Ramires, no primeiro parágrafo do livro, quando se
que o Fidalgo da Torre está a trabalhar na sua escrita, o narrador refere-se à novela histórica
que a partir de então estará presente em toda a narrativa. Nessa parte inicial, pode-se acompa-
nhar a gênese da novela e as primeiras escolhas do autor, momento que se interrompe quando
o caseiro Manuel Relho, bêbado, vem perturbar Gonçalo com gritos, ameaças, pedras jogadas
na janela e agressão à cozinheira Rosa, fazendo com que ele se tranque à chave no quarto, in-
terrompendo o trabalho que iniciara com tanto empenho.
Tamanho susto acaba por roubar a inspiração ao escritor, que só depois de muito esfor-
ço consegue escrever a primeira parte da novela, em que seu avô Tructesindo prefere ficar de
mal “com o Reino e com o Rei”, mas de bem com a honra. Mal encerra sua escrita, Gonçalo
recebe a visita do Pereira, que lhe faz a proposta de arrendar a Torre e o fidalgo, embora ti-
196
vesse dado sua palavra a outro agricultor, José Casco, volta atrás por não resistir a uma oferta
mais vantajosa. A partir daí, a novela escrita pelo fidalgo vai contrapor-se à narrativa principal
pela sua trama e pelo comportamento das personagens. Dessa forma, o narrador irá mostrar
Gonçalo Ramires a construir uma ficção com personagens que praticam atos de bravura e alti-
vez, enquanto na sua vida da província pratica ações que contrariam os nobres feitos dos seus
antepassados.
Percebe-se que os fatos da novela antecedem e, de certo modo, prefiguram ações na
vida de Gonçalo, que de início parece mesmo não se dar conta (ou mesmo não se importar)
com a diferença de atitudes e dos atos praticados por ele e por seus antigos avós. A situação
parece atingir um impasse para o narrador-personagem no momento em que precisa relatar
que Tructesindo enfrenta, junto de seus aliados e parentes, a dor da morte do filho e começa a
preparar a vingança contra o Bastardo. A narrativa desse fato ocorre ao mesmo tempo em que
Gonçalo surpreende a irmã em encontro amoroso com o Cavaleiro. Sua atitude, porém, é de
fugir para a Torre e entregar-se a sentimentos de desânimo e pessimismo.
A partir do sonho em que se sente acolhido pelos antepassados e da posse do chicote
que pertencera à família, entretanto, uma espécie de mudança nessa perspectiva, pois en-
quanto os antigos Ramires ainda se preparam com meticulosa frieza para cumprir a vingança
“vagarosa e bem gozada”, Gonçalo Ramires enfrenta e vence os valentões de Nacejas. de-
pois que a fama de seu feito é celebrada até em jornais do Porto e de Lisboa, ele volta ao rela-
to e então, de um só fôlego, escreve em dez páginas o capítulo final de sua novela.
Essa forma de entrelaçamento das narrativas faz com que elas se oponham, mas ao
mesmo tempo entrem em diálogo e se influenciem, numa espécie de jogo de espelhos que re-
vela novos ângulos a cada olhar. Tal harmonia é habilmente construída pela maneira com que
o narrador consegue opor, sem que se anulem, estruturas heterogêneas que, ao se interpenetra-
rem, provocam uma reduplicação de sentidos. Ao ser relido e confrontado com o olhar mais
197
crítico do presente, o passado mostra sua face bárbara e sombria para além dos valores da
honra e de justiça; por outro lado, o decadente espaço do presente é atingido pelos ecos do
passado, que fazem reviver as marcas de uma nobreza quase esquecida.
Na história principal do romance, vê-se um Portugal que luta para acompanhar os pas-
sos da modernidade que já se faz presente em outros países europeus, mas ainda carrega o
peso de uma estrutura social que se modifica muito lentamente. Assim, casas “ilustres” e antes
detentoras de poder como a de Ramires perdem espaço para outras famílias que ganham des-
taque, não pelo nome tradicional, mas pelo sucesso obtido nos negócios e na política, nem
sempre através de meios lícitos. Tal cenário contrasta com o mundo medieval que a novela
apresenta, em que a lei que se cumpre baseia-se na honra e na palavra dada, com os espaços
na sociedade sendo demarcados por uma ordem inflexível, como se pode ver na recusa, por
parte da família Ramires, da mão da jovem Violante ao bastardo Lopo de Baião.
Em relação às personagens, também o Gonçalo leviano e indolente, amante de noita-
das e boas refeições regadas a vinho e rodeado de alegres amigos, contrasta com as sombrias
personagens da novela medieval, desde o início às voltas com disputas familiares e terríveis
vinganças. A vida de mulheres como Gracinha, por mais melancólica e sem horizontes que
possa parecer, revela-se no entanto muitas vezes superior à da donzela Violante (de quem nem
ao menos ouvimos a voz), que tem seu destino decidido pelos varões da família.
Algumas imagens simbólicas fazem-se presentes nas duas narrativas e entre elas pode-
se destacar mais uma vez a torre, que além de “ligar as idades”, assiste tanto aos acontecimen-
tos da época medieval quanto aos do presente, acompanhando o desenrolar da trama desde a
primeira à última página do romance, sempre “contemplando” o último representante dos Ra-
mires ou sendo “contemplada” por ele. Outra imagem forte é a do brasão da família, o “açor
negro em campo escarlate”, que se eleva sobranceiro em todas as passagens da novela medie-
val, fazendo-se ainda presente ao olhar de Gonçalo na capa do livro do tio Duarte e até na al-
198
mofada que Gracinha borda para ornamentar o quarto.
Na passagem que antecede sua mudança, quando caminha pelos sítios históricos, Gon-
çalo depara-se com esse brasão de armas entalhado no cunhal de uma ponte e, logo depois
dessa visão, aplica uma surra aos rapazes de Nacejas com seu chicote de cavalo-marinho.
Também essa antiga arma de algum antepassado que o fidalgo recupera torna-se marca de sua
bravura, mas de certo modo se opõe à espada que Tructesindo empunha, pois enquanto no
caso do avô a espada parece representar nobreza e tradição (note-se que o bastardo não parece
digno de ser morto por ela), o chicote uma impressão de covarde tirania, pois é usado de
forma violenta e cruel, embora seja para revidar uma ofensa.
Também o ritmo com que as histórias se desenrolam nas duas partes do romance ofe-
rece contraste: assim, na história principal a voz narrativa alonga-se em várias passagens,
quando a ver o que vai fora e dentro das personagens (especialmente em relação a Gonça-
lo), dando espaço tanto à narração detalhada, quanto aos diálogos e às descrições. O narrador,
dessa forma, demora-se em algumas passagens, como se pode ver naquela em que o fidalgo
contempla pensativo a Torre, após sua vitória eleitoral:
(...) ela ligava as idades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a unidade da
longa linhagem. Por isso o povo lhe chamara vagamente a “Torre de D. Ramires”. E
Gonçalo, ainda sob a impressão dos avós e dos tempos que ressuscitara na sua No-
vela, admirou com um respeito novo a sua vastidão, a sua força, os seus empinados
escalões, os seus muros tão espessos que as frestas esguias na espessura se alonga-
vam como corredores, escassamente alumiadas pelas tigelinhas de azeite, com que
Bento as despertara. Em cada um dos três obrados parou, penetrando curiosamente,
quase com uma intimidade, nas salas nuas e sonoras, de vasto lajedo, de tenebrosa
abóbada, com os assentos de pedra...(p. 455-456)
na novela que Gonçalo Ramires escreve o ritmo é ágil, nervoso, com narrações bre-
ves e ações em progressão às vezes acentuadamente veloz, diálogos ásperos e pouco espaço
para uma visão interna das personagens, como se houvesse pressa em dar logo fim ao terrível
castigo, à missão que elas têm a cumprir. Essas características da novela podem ser percebidas
especialmente nas partes do início e meio da narrativa, como se no momento em que um
199
mensageiro de Lopo Baião chega com uma mensagem para Tructesindo Ramires:
(... ) quando o Vilico, o velho Ordonho, reconhecia o pendão do Bastardo surgindo à
borda da ribeira do Coice entre o coriscar de lanças empinadas, passando a antiga
ponte de madeira, e, um momento sumido na verdura dos álamos, de novo avançan-
do, alto e tendido, até o rude Cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires o Cortador... O
gordo Ordonho então, atirando o brado de -”Prestes, prestes! Que é gente de Baião!”
- descambava pelo escadão da muralha como um fardo que rola. (p. 381)
No entanto, à medida em que o relato caminha para o final, como que para ressaltar os
requintes de selvageria nos tempos medievais, o narrador alonga-se nas descrições dos prepa-
rativos da vingança e demora-se especialmente nos detalhes de sua execução, ocupando-se
disso nas dez últimas páginas da narração, iniciada em ritmo mais lento: Era enfim a ma-
drugada vingadora em que os Cavaleiros de Santa Irinéia, reforçados pelas mais nobres lanças
da mesnada dos Castros, surpreendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o
Sabedor, o bando de Baião, na sua açodada corrida sobre Coimbra...” (p. 435).
Na narrativa principal, por outro lado, ocorre o contrário. Enquanto os quatro meses da
escrita da novela se estenderam com idas e vindas por mais de duzentas páginas, as ações a
partir do momento em que o fidalgo coloca o ponto final agora se precipitam, com a vitória
nas eleições, a partida para Lisboa e para a África, a passagem dos quatro anos e a volta ocu-
pando pouco mais de vinte. As explicações, que antes se faziam minuciosas, dão lugar aos es-
paços vazios, à insinuação de fatos, à conversa num fim de tarde e à interrogação que a pro-
messa de um novo dia representa.
Também difere o estilo empregado para construir, através da linguagem, o mundo de
Gonçalo Ramires, em que os perigos estão representados por acontecimentos como as intrigas
políticas, as cartas de cobrança, as atitudes desafiadoras dos outrora submissos camponeses e
as maledicências de pessoas como as irmãs Lousadas e suas cartas anônimas. O narrador vale-
se então de uma linguagem ágil e colorida, capaz de produzir sentidos irônicos com um toque
de leveza mesmo nos momentos dramáticos, como na descrição das temíveis irmãs:
200
As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos
anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras
de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade
não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela en-
treaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu esteado na missa, bolo en-
comendado nas Matildes, que seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não
descortinassem e que sua solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com
malícia estridente. (p. 292)
Essa leveza contrasta com o mundo pesado e sombrio dos antigos Ramires que o fidal-
go reinventa na sua novela. Para tal, vale-se de uma linguagem em que palavras arcaicas e
uma dose excessiva de dramaticidade dão ao texto um tom de certo artificialismo (assim res-
saltado com sutileza pelo narrador), o que fica bem claro na cena em que Lourenço Ramires é
capturado por Lopo de Baião:
No ardor desesperado de romper a viva cerca Lourenço gastava as forças, berrando
roucamente pelo Bastardo com os duros ultrajes de churdo! E marrano! dentre a
trama falseada do camalho lhe borbulhavam do ombro, pela loriga, fios lentos de
sangue. Um lanço de virotão, que lhe partira as charneiras da greva esquerda, fende-
ra a perna donde mais sangue brotava, ensopando o forro de estopa. Depois, varado
por uma frecha na anaca, o seu grande ginete abateu, rolou, estalando no escoucear
as cilhas pregueadas. E,desembrulhado dos loros com um salto, Lourenço Ramires
encontrou em roda uma sebe eriçada de espadas e chuços, que o cerravam... .(p.
305)
O desfecho que Gonçalo imprime à sua novela é uma longa e detalhada descrição da
captura, tortura e morte do “claro sol”, presenciada com deleite por Tructesindo Ramires, seus
familiares e comandados, assim louvada pelo Sabedor: “Morte é esta para se contar em livros!
E não tereis este inverno serão à lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que não
volte a história deste Pego, e deste feito! (p.441). Na cena final, o último olhar do narrador
parece voltar-se com piedade para a vítima da vingança dos “avós bravios” de Gonçalo, além
de criar-se um contraste entre a selvageria dos vingadores e os traços nobres do “claro sol”:
“(...) e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou na face do Bastardo
sobre as finas barbas de ouro” (p. 445).
Logo depois que coloca na novela o Finis e encerra a escrita, o fidalgo da Torre sai
para espairecer e parece distanciar-se dos antepassados ao perdoar o valentão de Nacejas e pe-
201
dir pela sua liberdade, explicando assim a sua atitude ao funcionário da Administração Godi-
nho: “Detesto vinganças. Não estão nos meus hábitos nem nos hábitos da minha família. Nun-
ca houve um Ramires que se vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas...” (p. 446). Na fala re-
ticente de Gonçalo, pode-se ver então que mesmo o final da novela não o liberta do passado
ramírico e ainda nele um pouco da sombra dos fidalgos que habitavam a antiga torre. As-
sim, a fenda que a escrita em abismo mantinha aberta parece não se ter fechado ainda.
Na História do cerco de Lisboa, os diversos cercos (que aparecem desde o título) e
textos entrecruzam-se numa engenhosa trama que vai sendo tecida pelo narrador principal.
Assim, depois do diálogo inicial, no segundo capítulo o relato de um amanhecer na Lisboa
do século XII e o leitor tem a impressão de ter diante dos olhos uma nova narrativa, paralela
ao texto principal. No entanto, vem a saber depois que se trata da representação de uma idéia
formada na mente do revisor, no momento em que executa o seu trabalho de leitura e correção
do livro histórico. Em todo o romance, essa mistura de textos, vozes e discursos é conduzida
pela voz e pelas intervenções do narrador principal e continua e se amplia até o final do livro.
Pode-se perceber, assim, desde o início, as diferenças na maneira com Eça de Queirós
e José Saramago introduzem no texto principal as narrativas que falam do passado. No roman-
ce de Eça, o leitor acompanha a construção da novela passo a passo, e a partir do primeiro ca-
pítulo o fidalgo aparece a “trabalhar” sua novela, que o narrador a ler à medida em que
vai sendo escrita. Sabe-se então que, desde a infância, o fidalgo convive com os feitos de seus
antepassados, nos versos do tio que a mãe o ensina a recitar. Talvez por isso lhe venha o senti-
mento que entrava o início da escrita e provoca nele (...) um tédio imenso da sua obra, da-
queles confusos e enredados Paços de Santa Irinéia, e de seus avós, enormes, ressoantes, cha-
peados de ferro e mais vagos que fumo...” (p. 235). Gonçalo vê, assim, o passado como algo
distante e destituído de sentido, com figuras que nada parecem dizer ao seu presente.
no livro de Saramago, antes mesmo que lhe seja sugerida por Maria Sara a idéia de
202
colocar no papel a sua história do cerco, Raimundo Silva sente-se transportado para a Lisboa
do passado, desde o segundo capítulo, quando imagina a cena do amanhecer da cidade e tam-
bém no terceiro, em que é apresentado como revisor e leitor de textos históricos e discorda
das versões tradicionais, criando na imaginação uma espécie de texto paralelo.
No quarto capítulo, encontra-se tão envolvido com os acontecimentos do século XII
que parece estar presente ao que nessa época acontece, como no instante da entrada na Leita-
ria: “A cidade está que é um coro de lamentações, com toda essa gente que vem entrando fu-
gida, enxotada pelas tropas de Ibn Arrinque, o Galego, que Alá o fulmine e condene ao infer-
no profundo, e vêm em lastimoso estado os infelizes, escorrendo sangue de feridas...” (p. 61).
Desse momento em diante, o tempo e o espaço da Idade Média passam a integrar defi-
nitivamente a história do romance, num entremear-se à narrativa principal que acompanha e
amplia a significação dos acontecimentos na vida de Raimundo Silva, mergulhado nessa épo-
ca do passado. Mesmo na sua relação amorosa com Maria Sara, os espaços e figuras de anti-
gamente estão presentes desde o início, pois é numa reunião provocada pelo “não” colocado
no texto do historiador que eles se conhecem e vem dela a sugestão para que o revisor escreva
outra História do cerco de Lisboa, com a sua própria versão dos acontecimentos.
Para que se transporte à história do século XII, Raimundo tem a ajuda de alguns indí-
cios e sinais sutilmente colocados no texto. De início, a imagem do deleatur desafia-o, por
lembrar que as palavras podem ser apagadas e substituídas, tornando possível, assim, acres-
centar novos significados; isso permite a releitura do fatos históricos, não para negá-los, mas
para permitir que haja outras interpretações. Fica também como um objeto simbólico o único
exemplar do romance com o “não”, dado a Raimundo por Maria Sara. ainda a janela, que
faz com que a fronteira entre o mundo do presente e do passado possa ser transposta e se pos-
sa percorrer a cidade que, como um palimpsesto, traz em si as marcas da história.
Tal é a importância dessas marcas para a decifração do passado que, guiado pelos indí-
203
cios, Raimundo Silva inicia uma perambulação para fazer sua leitura dos antigos espaços de
Lisboa. quando sobe ao antigo castelo e os lugares onde outrora ocorreram os fatos,
consegue descobrir um motivo para a recusa dos cruzados ao pedido de ajuda de D. Afonso
Henriques. De volta à leitura do episódio no relato do historiador, o revisor decide como será
a escrita do livro e somente então sente-se pronto para iniciar a sua tarefa.
Como se pode perceber, antes que o próprio relato do revisor apareça no romance, ou-
tros textos pontuam a narrativa. Assim, no capítulo VIII, quando Raimundo Silva vai para
casa reler o episódio da fala de D. Afonso aos cruzados, o narrador passa a acompanhar a lei-
tura e faz do texto uma paráfrase, intercalando o relato com alguns comentários daquilo que
estaria sendo lido: “Diz a História do Cerco de Lisboa, a outra, que foi o alvoroço extremo en-
tre os cruzados quando houve notícia de que vinha o rei de Portugal para dar a conhecer as
propostas com que pretenda atrair à empresa os esforçados combatentes ...” (p. 137).
então, mais de cem páginas após o princípio do romance, depois do longo cerco de
textos que se cruzam, teria início a escrita do livro de Raimundo Silva. Como todos os indíci-
os fariam supor, esse livro não se assemelha aos habituais relatos históricos sobre o cerco de
Lisboa e distingue-se por olhar com simpatia para os muçulmanos sitiados, sempre vistos nas
versões oficiais como bárbaros inimigos: (...) por trás delas pressentia-se a inquietação da
gente moura murmurando, por ora ainda em segurança, sobre o que tudo aquilo iria dar (...) o
almuadem ouve as explicações que lhe está dando um sobrinho e põe-se a temer o pior...” (p.
139). Não haveria aqui um ponto de semelhança, também, com a simpatia que Gonçalo de-
monstra pelo Bastardo, na novela histórica d'A ilustre casa de Ramires?
Ao iniciar seu relato do cerco pelo episódio em que acontece essa fala do rei, percebe-
se a preocupação de Raimundo Silva em se distanciar, no conteúdo e também no estilo do dis-
curso que escreve, dos textos estereotipados que lhe servem de consulta. Também parece bus-
car uma aproximação com a realidade dos costumes e valores da época que busca retratar e
204
assim, nessa fala do soberano que supostamente reproduz, percebe-se, desde o início, um tom
menos rebuscado e mais pragmático: “Nós cá, embora vivamos neste cu do mundo, temos ou-
vido grandes louvores a vosso respeito, que sois homens de muita força e destros nas armas o
mais que se pode ser, e não duvidamos...” (p. 139).
Parece também haver um questionamento, no texto de Raimundo Silva, da conhecida
imagem dos cruzados nos escritos mais antigos, tendendo sempre para a heroicização. Na ver-
são do revisor eles se mostram, não como figuras empenhadas na nobre missão de resgatar a
Terra Santa para os cristãos, mas como interessados principalmente nas recompensas que lhes
traria a tomada de Jerusalém aos mouros. Também os representantes da igreja, mostrados pelo
revisor, parecem mais preocupados com os jogos políticos e a manutenção dos poderes do que
com a salvação das almas, como bem revelam suas ações (sempre ligadas a intrigas e concha-
vos) e a presença constante, junto ao rei, do bispo do Porto e do arcebispo de Braga.
No texto de José Raimundo, cabe aos representantes da igreja, além desse papel de
mediadores entre os poderosos e de um equivocado desempenho do que seria a real missão de
religiosos cristãos, a desabonadora tarefa de tentar impor somente a sua versão dos fatos,
opondo-se assim à difusão da verdade. Tal atitude pode ser vista na passagem em que o religi-
oso nega-se a registrar a resposta altiva do governador dos mouros:
No silêncio ouviu-se a voz do arcebispo de Braga, uma ordem dada ao escrivão frei
Rogeiro, não fareis constância do que disse esse mouro, foram palavras lançadas ao
vento e nós não estávamos aqui, íamos descendo a encosta de Santo André, a ca-
minho do real onde el-rei nos espera, ele verá, sacando nós as espadas e fazendo-as
brilhar ao sol, que é começada a batalha, isto sim, podeis escrever. (p. 207)
A própria negativa dos cruzados ao rei mostra um pouco dessa ausência de verdadeiras
virtudes cristãs, como D. Afonso Henriques deixa transparecer na sua fala, depois que ouve a
resposta do cruzado Guilherme Vitulo: “É essa a decisão dos cruzados, Esta é, respondeu o
outro, Então, ide, e que Deus vos acompanhe até a Terra Santa, onde não podereis invocar
nenhum pretexto para fugirdes à batalha como estais fugindo a esta, se não me engano....” (p.
205
156). Opõe-se, dessa maneira, o mundo medieval que o revisor tenta representar em seu livro,
em que os santos e os heróis estão ausentes, àquela época mostrada sempre pelos livros histó-
ricos tradicionais.
Além disso, diferentemente do que ocorre nos textos oficiais, em que são lembrados os
superiores e nobres, na história contada por Raimundo Silva, além da presença da realeza, do
alto clero e dos cruzados, lugar para o avesso” desses relatos, sendo possível presenciar
também a dor e a aflição dos mouros. O almuadem, presente no texto desde o segundo capítu-
lo, reaparece na décima parte do romance, podendo ser visto como símbolo de um povo que
defende, com bravura, os seus domínios e a sua fé:
Em estes últimos dias, tivesse o almuadem o sono pesado, sem dúvida haveria de
despertá-lo, se de todo o não impedira de adormecer, o rumor de uma cidade inteira
vivendo em estado de alerta, com gente armada subida às torres e adarves, enquanto
o miúdo povo não se cala, em ajuntamentos nas ruas e mercados, perguntando se
vêm os francos e os galegos. Temem por suas vidas e haveres... (p. 175)
O texto de Raimundo Silva abre espaço ainda para o governador dos mouros, que nas
conversações com os portugueses recusa a proposta de rendição, por não se fiar na palavra
que tão pouco vale”, além de denunciar as atrocidades cometidas na retomada da cidade de
Santarém, lembrando aos inimigos que “(...) por morte atrocíssima até aos velhos roubastes a
pouca vida que lhes restava, e às indefesas mulheres degolastes como a cordeiros inocentes e
aos meninos esquartejastes sem que se vos derretesse o coração o débil clamor...” (p. 204).
Na Lisboa do século XII recriada pelo revisor, em que as incertezas do presente e do
futuro parecem marcar a rotina dos homens, espaço ainda assim para o encontro do solda-
do Mogueime e da jovem Ouroana, que vivem uma história de amor em meio às tréguas e
preparativos das batalhas, cercados por ameaças e mortes, num universo em que a vida parece
pouco valer. Por outro lado, de forma quase paralela, mas com temores e ameaças de outra
sorte, Raimundo Silva e Maria Sara participam também de uma espécie de cerco amoroso, cu-
jas barreiras parecem situar-se mais dentro deles do que nas hostilidades do mundo.
206
Dessa maneira nasce, simultaneamente ao início do romance das personagens do pas-
sado, um relacionamento amoroso entre o casal do enredo principal. Nas observações que faz
a respeito desses cercos, o narrador mostra o curioso paralelo entre as atitudes corajosas das
mulheres das duas épocas diferentes, enquanto os homens se deixam levar por sentimentos da
indecisão e uma certa timidez, como acontece no momento em que Raimundo Silva tenta fa-
zer uma ligação para Maria Sara:
O papel com o número do telefone continua ali, sobre a secretária, nada mais fácil,
marcar seis algarismos, e do outro lado, a quilómetros de distância, ouvir-se uma
voz, tão simples, não nos importa agora se de Maria Sara se do marido, devemos é
reparar nas diferenças entre aquele tempo e este tempo, para falar, como para matar,
é preciso chegar perto, assim fizeram Mogueime e Ouroana... (p. 228)
Pode-se ver esse entrecruzamento das narrativas, também, quando Maria Sara um
fragmento do livro que está sendo escrito. À primeira pergunta dela, “quem seriam Ouroana e
Mogueime”, ele responde (e essa incerteza também se poderia aplicar ao relacionamento deles
no presente): “Ainda não sei”. Quando Maria Sara vai embora, no entanto, Raimundo con-
segue definir os papéis de cada um: “Mogueime, vejo-o lá em baixo, diante da porta de Ferro,
à espera da ordem de atacar, Ouroana, sendo noite, será chamada à tenda do cavaleiro Henri-
que para que se goze ele dela, quanto a nós, somos os mouros, que julgam poder vigiar do alto
duma torre o avanço do destino.” (p. 274).
Como já se comentou sobre o narrador, os fatos do passado, bem como os do presente,
não deixam de provocar seus comentários e ele transita assim, com naturalidade, entre o texto
da narrativa principal (supostamente seu espaço de domínio) e aquele relato que estaria sendo
escrito pelo revisor. Os comentários falam tanto de personagens como de acontecimentos,
acompanham tanto o processo da escrita do livro de Raimundo Silva como o próprio conteúdo
do relato produzido. Dessa forma são feitas observações até sobre os hábitos grosseiros e a
ausência de requinte nos encontros amorosos, próprios da época retratada:
207
Claro que os portugueses não são de todo brutos na matéria, afinal as possibilidades
dependem de meios mais ou menos comuns a toda gente, mas falta-lhes evidente-
mente requinte e imaginação, talento para o movimento subtil, jeito para a suspensão
sábia, enfim civilização e cultura. Por ser herói desta história, não se cuide que Mo-
gueime é mais competente e artista que qualquer dos companheiros. (...) Enquanto
não vier o poeta D. Dinis a ser rei, contentemo-nos com o que há. (p. 287-288)
Mesmo a personagem do presente Maria Sara não deixa de interferir na história do
cerco que está sendo escrita e assim, talvez levada pelo desejo de uma definição do seu pró-
prio relacionamento, pede a Raimundo Silva que resolva a vida amorosa do casal de outrora.
Raimundo Silva faz então com que Mogueime convide Ouroana para viverem juntos,
numa forma mais direta de relacionamento que se contrapõe às dúvidas e questionamentos em
que se debate o civilizado casal do presente, que também vive uma espécie de luta: Parece
que estamos em guerra, Claro que estamos em, guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cer-
ca o outro e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os
nossos, o amor será não haver mais barreiras, o amor é o fim do cerco. “ (p. 330) .
Desse modo, transitando pelos vários textos, apontando neles dúvidas e incoerências,
buscando a todo momento motivo para reflexões, sem nunca deixar de se manter todo o tem-
po atento e crítico às manobras do revisor-autor, o narrador em certo momento chega a com-
pará-lo a um jogador de xadrez, que embora sabendo de antemão o resultado do jogo, procura
ser imparcial e dar espaço, em sua narrativa, tanto aos portugueses quanto aos mouros.
Não deixa de reconhecer, no entanto, que ainda assim no relato uma certa simpatia
pelos mouros, um especial apreço para com o almuadem e até mesmo respeito pelo porta-voz
da cidade que fala em nome deles. Diz também o narrador que tal esforço de Raimundo Silva,
que tenta fazer valer os seus pontos de vista e manter nas mãos a condução da história, termi-
na por se revelar inútil: por uma espécie de ironia que persegue os que escrevem, toda narra-
tiva acaba, no final, por se render à sua própria fatalidade.
208
UM CERTO TOQUE DE IRONIA
Em textos que se pretenderia ler como exemplos de metaficção, não se poderia deixar
de apontar o toque da ironia. Mas essa espécie de jogo astucioso, que busca sempre a coopera-
ção do leitor para se concretizar, oferece desafios e muitos perigos. No texto “Artes & manhas
da ironia e do humor”, Lélia Parreira Duarte afirma que o conceito de ironia geralmente é
apresentado
(...) como a figura de retórica em que se diz o contrário do que se diz, o que implica
o reconhecimento da potencialidade de mentira implícita na linguagem. Por isso a
ironia pode ter formas e funções extremamente diversificadas, em que pelo me-
nos dois graus de evidência: um primeiro, em que o dito irônico quer ser percebido
como tal, e um segundo – caso da ironia humoresque -, em que o objetivo é manter a
ambigüidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro
e definitivo. (Duarte, 2006, p. 18)
Ressalta ainda Lélia Duarte, reportando-se a Muecke (1978), a dificuldade de concei-
tuar devidamente a ironia, entre outras causas por ela proporcionar possibilidades de ser anali-
sada sob diferentes ângulos, podendo ser vista como trágica, cômica, verbal, retórica, român-
tica, além de várias outras denominações, conforme se considerem seus objetivos e atribui-
ções. Para tornar a questão ainda mais complexa, deve-se levar em conta, também, que cada
autor pode fazer uso de uma forma própria de ironia. (Duarte, 2006, p. 18)
Outro ponto que deve ser lembrado para a concretização da ironia na obra literária é o
seu caráter de ato comunicativo, o que faz com que seja necessária a presença de um leitor,
ativo e participante, capaz de perceber o caráter fluido e enganoso da linguagem, as duplas
possibilidades de sentido e que também esteja pronto a descobrir os sinais, estabelecer as liga-
ções e decifrar as armadilhas com que se depara na leitura do texto. (Duarte, 2006, p. 19)
Na literatura portuguesa, entre os autores cuja obra sempre se liga ao uso da ironia,
aparecem os nomes de Eça de Queirós e José Saramago. Em relação ao autor d'A ilustre casa
de Ramires, sabe-se que a forma com que a ironia se apresenta na sua obra sofre modificações
209
com o decorrer do tempo, variando de uma ironia mais direta e contundente nos escritos da ju-
ventude, até se tornar mais leve e sofisticada nos últimos textos, como é o caso desse roman-
ce. José Saramago, por sua vez, sempre usa uma forma de ironia que parece destinada a inqui-
etar o leitor, não deixando que ele permaneça acomodado em suas certezas, mas que antes
seja levado a questionar e refletir, a partir do universo de ficção que percorre na leitura.
Para que se perceba como a ironia pode se fazer presente na obra dos dois autores por-
tugueses, é preciso que se volte o olhar para o próprio processo de elaboração da narrativa de
cada um deles e então, certamente, será possível perceber a importância do papel do narrador
nessa construção dos efeitos irônicos do texto. Assim, no romance de Eça de Queirós, desde o
início cabe à voz narrativa aquele toque irônico que, mesmo nos momentos supostamente
mais solenes do relato (como aquele em que se apresenta a famosa genealogia dos Ramires), a
faz interpor-se de modo sutil (com palavras, detalhes, pequenas alusões) para quebrar a gravi-
dade dos feitos dos ilustres antepassados de Gonçalo.
Certamente, numa narrativa de tradição histórica ou religiosa, a apresentação da gene-
alogia é um dos pontos altos, por revelar a origem das qualidades morais das personagens fo-
calizadas. No entanto, as intervenções do narrador queirosiano desconstroem tal modelo. Isso
pode ser percebido no trecho que se segue, relatando as ações da ilustre família, em que a ati-
tude desleixada do fidalgo Ramires contrasta com a gravidade do momento vivido:
Reaparecendo com os Braganças, um Ramires, Vicente, governador das Armas de
Entre-Douro e Minho por D. João IV, mete a Castela, destroça os Espanhóis do Con-
de de Venavente, e toma Fuente Guiñal, a cujo furioso saque preside da varanda de
um convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de me-
lancia. Já porém, como a nação, degenera a nobre raça...” (p. 225 – grifo acrescenta-
do)
Desse momento em diante, o que ainda resta de solene na enumeração dos antepassa-
dos dá lugar a uma relação de atos “ramíricos” que nada têm de valorosos, revelando envolvi-
mento com arruaças, mulheres, piratara, ruína financeira, glutoneria, tráfico de escravos, a
210
que se revela que o pai de Gonçalo (para ser afastado da concubina de um ministro e não por
merecimento) é nomeado Governador Civil de Oliveira. A partir daí, chega-se ao descendente
Gonçalo, mas em relação a ele uma indagação sempre se faz presente: a que tronco da família
pertenceria o fidalgo, ao dos Ramires ilustres” pelos atos valorosos ou ao dos que se torna-
ram famosos por se ligarem a escândalos?
A estrutura do romance acentua também a ironia ao confrontar, durante toda a narrati-
va, as glórias e a suposta nobreza do passado ramírico (reveladas na novela que Gonçalo es-
creve, mas antes já celebradas no poema do tio Duarte e cantadas no fado do Videirinha), com
o presente sem brilho vivido pelo descendente da “ilustre” família. A própria lógica e objetivi-
dade da narrativa realista vê-se ironicamante contestada quando o narrador introduz, no texto
principal do romance, a novela supostamente escrita por Gonçalo. Nesse texto, o exagero do
comportamento das personagens e o estilo grandiloqüente à Rebelo da Silva também com-
põem uma espécie de crítica.
Ao mostrar a ambigüidade do comportamento de Gonçalo Ramires, o narrador coloca
os fatos de tal maneira que a comparação com outras situações anteriores vividas pela perso-
nagem estabelece um contraste irônico, além de criar um distanciamento em relação às ima-
gens de heróis convencionais, que agem sempre de maneira uniforme. Em vários trechos do
romance, mostra-se essa ambigüidade: numa delas, após quebrar a palavra dada a José Casco
e fazer com que este para a prisão por ameaçá-lo, o fidalgo mostra-se extremamente con-
doído com a mulher que o procura numa noite chuvosa, para pedir perdão pelo o marido.
Tocado pelo remorso, Gonçalo chega ao extremo de ir pessoalmente aconchegar aos
lençóis o filho do arrendatário (que fizera questão de abrigar na Torre) e, em outra passagem,
empresta a sua montaria a um humilde camponês com a perna machucada. Protege ainda a fa-
mília da Críspola, chegando a abrigar seus filhos depois que ela morre, mas também castiga
os rapazes de Nacejas, com extrema crueldade, embora depois tente reverter, em parte, o efei-
211
to das punições, pedindo às autoridades que libertem os acusados de atacá-lo.
No plano pessoal e familiar, parece amar extremosamente a irmã e não hesita, ainda
assim, em usá-la para obter os favores de André Cavaleiro nos jogos políticos. Parece divertir-
se às custas da ingenuidade do cunhado Barrolo e até aproveitar-se disso, embora pareça tam-
bém estimá-lo. Ofende o leal Bento num momento de impaciência, mas em seguida enche-o
de atenções para reparar a mágoa que provoca no criado. Em relação a D. Ana Lucena, deba-
te-se entre um sentimento de admiração pela sua beleza e a repulsa que lhe causam as manei-
ras afetadas, a voz e a origem pouco nobre da senhora da Feitosa.
Noutras ocasiões, o narrador mostra situações que representam em si mesmas uma es-
pécie de amarga ironia: no momento em que Gonçalo se diverte com a possibilidade de sur-
preender um encontro amoroso entre criados, no Mirante na casa da irmã, descobre que é a
própria Gracinha que ali se encontra aos suspiros com o Cavaleiro; também percebe com sur-
presa, após a eleição, que não havia necessidade de ter cometido tantos atos pouco decorosos,
pois é estimado pelas pessoas da sua província.
Assim, Gonçalo pode ser visto também como exemplo de um mau leitor da realidade,
do tipo que Lélia Parreira Duarte, no artigo A lúdica complexidade de A ilustre casa de Ra-
mires”, define como aquelas personagens que “(...) caem nas armadilhas irônicas que se lhes
apresentam porque são ingênuas ou despreparadas, sem clareza suficiente para fazer uma lei-
tura serena das mensagens que lhe são dirigidas”. (Duarte, 2006, p. 169).
A própria figura do autor e o ato da escrita literária sofrem uma espécie de dessacrali-
zação, pois o narrador mostra que Gonçalo principia a escrever sua novela levado não pela
inspiração ou por um ideal literário, mas impulsionado simplesmente por objetivos de ordem
prática. Apesar de ter-se iniciado na literatura por sugestão do Castanheiro, ele não se deixa
tocar por suas idéias patrióticas, julgando-se ainda no direito de se apropriar sem a menor ce-
rimônia de textos alheios.
212
Outra ironia que a leitura da novela histórica permite fazer é a de que como que uma
inversão de papéis: o bastardo, que supostamente seria a figura negativa da novela, é sempre
lembrado como “o claro sol” e brilha como vítima do rancor preconceituoso dos Ramires. Por
outro lado, a figura de Tructesindo, que deveria representar o glorioso herói da narrativa, pare-
ce sombria e vingativa. No final do romance, também se percebe a ironia do narrador que
deixa o final em aberto, desprezando as soluções estereotipadas de cunho romântico ou realis-
ta, não punindo aqueles que infringiram alguma norma (como o próprio Gonçalo) ou cele-
brando, no desfecho, a união de casais apaixonados.
É ainda através da habilidade no uso da linguagem que se constroem marcas de ironia
no texto. A personagem Castanheiro, por exemplo, tem sua caracterização construída e refor-
çada pela linguagem hiperbólica com que sempre se expressa nos diálogos; mesmo no Post
Scriptum da carta que escreve a Gonçalo, sobre a novela da Torre, pode-se perceber o estilo
exaltado e hiperbólico que o distingue:
“Planeio imensos cartazes, pregados a cada esquina de cada cidade de Portugal,
anunciando em letras de côvado a aparição salvadora dos Anais! E, como tenciono
prometer neles aos povos a sua preciosa Novelazinha, desejo que o amigo Gonçalo
me informe se ela tem, à moda de 1830, um saboroso subtítulo, como Episódios do
século XII, ou Crônica do reinado de Afonso II, ou Cenas da Meia-Idade Portugue-
sa... Eu voto pelo subtítulo. Como o subsolo num edifício, o subtítulo num livro al-
teia e dá solidez. À obra, pois, meu Ramires, com essa sua imaginação
feracíssima!...” (p. 301}
Note-se que, com essa referência jocosa à escrita do século XIX e à moda dos subtítu-
los, o próprio Eça de Queirós deixa-se atingir pela ironia, pois ele mesmo empregara subtítu-
los descritivos em várias de suas obras. Na personagem Castanheiro são ironizadas, também,
as atitudes extremamente patrióticas dos assim denominados neogarrettistas”, de cuja dis-
cordância podemos encontrar exemplo nas cartas escritas pelo autor. Também a romântica in-
genuidade dos versos no fado de Videirinha e o exaltado estilo do poema do tio Duarte pare-
cem ser vistos com um olhar irônico. Como se percebe, todas as formas de expressão literária
do seu século não escapam à ironia de Eça de Queirós.
213
Apesar de tudo, pode-se perceber que, nesse romance de sua fase de maturidade, dife-
rentemente do que ocorrera em obras anteriores, o escritor português faz uso de uma ironia
“mais sutil e complexa” e a personagem Gonçalo Ramires parece ser trabalhada com a ironia
humoresque, de que fala Lélia Duarte. Dessa forma, no romance A ilustre casa de Ramires
Eça “(...) começa a brincar realmente com os sentidos e a considerar a verdade e os significa-
dos como relativos. Deixando de lado as lições e abandonando o pragmatismo, sai da posição
de sábio e de mestre e, valorizando a ambigüidade, acentua o aspecto lúdico de sua
literatura...” (Duarte, 2006, p. 169).
A ironia que se encontra nos romances José Saramago teria algo desse aspecto lúdico?
Embora a ironia seja também uma marca da sua escrita, pode-se dizer que ela se apresenta de
maneira diferente daquela encontrada nos romances de Eça de Queirós. No caso dos dois au-
tores, talvez a aproximação pudesse ser buscada entre a ironia saramaguiana (contundente e
por vezes até mordaz) e aquela que se encontra, na obra do criador de Gonçalo Ramires, na-
queles textos escritos na época da juventude.
Umberto Eco, no Pós-escrito a O nome da Rosa, afirma que o mundo pós-moderno re-
conhece “(...) que o passado, que não pode ser destruído, porque sua destruição leva ao si-
lêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente”. (Eco, 1985, p. 57). É o que
parece pretender desde o início o narrador, no romance História do cerco de Lisboa, em que
se pode perceber uma construção que a todo momento exibe traços de ironia.
Esse olhar irônico tem predileção por se voltar para o tema dos costumes e crenças re-
ligiosas, talvez por sua presença marcante na sociedade portuguesa. Assim, no segundo ca-
pítulo, o narrador refere-se ao que intitula o “celebérrimo” milagre de Ourique, para lamentar
o fato de que “Cristo não quis aparecer aos mouros, e foi pena, que em vez da crudelíssima
batalha poderíamos, hoje, registar nestes anais a conversão maravilhosa dos cento e cinquenta
mil bárbaros que afinal ali perderam a vida, um desperdício de bradar aos céus.” (p. 20).
214
Nesse capítulo, ao relatar o milagre que cura as pernas atrofiadas de D. Afonso, o Pri-
meiro (que segundo a tradição popular teria sido anunciado em sonho a D. Egas Moniz pela
própria Virgem Maria!), o narrador não deixa de observar que, mesmo em assunto de ordem
espiritual, o aio do rei não perde ocasião de, ardilosamente, burlar as recomendações sobre os
procedimentos para obter o benefício, pois:
Verdade é que não cumpriu D. Egas precisamente os ditados da Virgem, que muito
explicado ficou ter-lhe ela mandado que cavasse, entendemos nós que por suas pró-
prias mãos, e vai ele, que fez, deu ordem que outros cavassem, os servos da gleba,
provavelmente, já naquela época havia destas desigualdades sociais. (p. 21)
Esse narrador saramagueano não fica contente em referir-se com espírito mordaz ape-
nas ao que se considera como lendas populares, mas questiona mesmo os próprios fatos histó-
ricos. Para tal, vai às fontes e interpreta-as criticamente, como na referência ao relato atribuí-
do ao cruzado Osberno. É reproduzido então o texto original, mas intercalado a comentários
que ressaltam, por exemplo, o tom preconceituoso com que os cristãos, na época, referiam-se
aos mouros: “(...) significando este latim, traduzido por cima do ombro de quem sabe, que no
Dia de Todos os Santos passou a corrupta mesquita a puríssima igreja católica...” (p. 40).
Outro episódio histórico mostrado com ironia é a chegada do rei D. Afonso Henriques
para o encontro com os cruzados: a própria figura do soberano torna-se alvo de um curioso re-
trato, em que se misturam as impressões cruas do narrador, em contraste com o suposto entu-
siasmo dos súditos: “Vamos ver o rei, vamos ver o rei, e o rei é este homem barbado, cheiran-
do a suor, de armas sujas, e os cavalos não passam de azêmolas peludas, sem raça, que à bata-
lha vão mais para morrer do que para volteios de alta escola...” (p. 138).
Também na paródia feita às palavras proferidas pelo rei Afonso aos cruzados, na tenta-
tiva de convencê-los a apoiar os lusos, pode-se perceber que o narrador, embora se mantendo
fiel ao espírito e às palavras do discurso que os livros históricos mostram, vale-se de ligeiros
acréscimos e modificações, para ressaltar aspectos não muito nobres das intenções reais:
215
Nós cá, apesar das dificuldades que tanto nos vêm do ingrato solo como das várias
imprevidências de que padece o espírito português em formação, vamos fazendo o
possível, nem sempre sardinha nem sempre galinha, ainda por cima tivemos a pouca
sorte de nos terem cabido estes mouros, gente de escassa riqueza, se vamos a com-
parar com Granada e Sevilha, por isso mais vale tirá-los daqui de uma vez para sem-
pre... (p. 139)
A própria explicação dada para a recusa dos estrangeiros em ajudar no cerco de Lisboa
reveste-se de um tom de ironia, pois se baseia na atitude e nas palavras do rei, que apregoa
seu orgulho de ser beneficiário da proteção divina. Assim, para os cruzados, o fato de Portugal
gozar de “tão eficazes e fáceis ajudas de Nosso Senhor Jesus Cristo” serve como justificativa
para negar o auxílio, pois eles não se prestariam à audácia de substituir a ajuda divina. Portan-
to, que “(...) fossem os portugueses sozinhos ao combate, pois já tinham segura a vitória e
Deus lhes agradeceria a oportunidade de provar o seu poder, esta e tantas vezes quantas para
isso vier a ser solicitado.” (p. 155).
Não o passado, porém, é alvo de ironia no texto saramaguiano; o narrador lança so-
bre o presente seu olhar crítico e, para tal, curiosamente reporta-se à tradição cristã através da
conhecida passagem bíblica em que Jesus salva a mulher pecadora do apedrejamento, lem-
brando aos seus algozes que só poderia atirar a pedra quem não tivesse pecados. O narrador,
então, questiona se a vinda de um redentor para a humanidade, naquela época distante, teria
sido oportuna, quando se considera que:
Ora, uma gente que foi capaz de reconhecer-se culpada publicamente, ainda que de
modo implícito, não estaria de todo perdida, conservava intacto em si um princípio
de bondade, autorizando-nos portanto a concluir, com mínimo risco de erro, que terá
havido alguma precipitação na vinda do Salvador. Hoje, sim, que teria valido a pena,
pois não os corruptos perseveram no caminho da sua corrupção, como se vai tor-
nando cada dia mais difícil encontrar razões para interromper um apedrejamento co-
meçado. (p. 193)
Ainda assim, o narrador não se contenta em ironizar o presente e o passado, mas vai
além, buscando material para suas observações até mesmo numa suposição do futuro de sua
terra. Desse modo, quando antevê as comemorações do próximo centenário da tomada de Lis-
boa aos mouros, prediz numa linguagem que faz lembrar os textos patrióticos: “(...) se Lisboa
216
houver ainda e portugueses nela, não faltará um presidente para evocar aquela suprema hora
em que as quinas, ovantes no orgulho da vitória, tomaram o lugar do ímpio crescente no céu
azul da nossa formosa cidade.” (p. 43).
Também se percebe que textos antigos são revitalizados e tornam-se capazes de produ-
zir efeitos novos e expressivos quando o narrador os coloca em contestação. Para que se con-
siga tal efeito irônico, são postos lado a lado o texto que Raimundo Silva escreve, sobre os
milagres supostamente ocorridos pela intercessão do cavaleiro Henrique após a sua morte, ao
mesmo tempo em que Maria Sara o relato dos milagres de Santo Antônio e esse confronto
faz com que ambas as narrativas se apresentem como igualmente ingênuas e absurdas:
Diz aqui que em Arimino, sendo apedrejado pelos herejes, passou Santo António às
praias do mar e convocando os peixes, lhes fez um admirável sermão. Principiaram
de vir os enfermos e tomavam folhas daquela palma, e pondo-as no colo logo eram
curados nessa hora de qualquer enfermidade que cada um houvesse. Diz aqui que,
passando de Arimino a Pádua, converteu Santo António a vinte e sete ladrões em um
sermão. Que prodígio, que formoso milagre. Diz aqui que, tendo Santo António
repreendido asperamente a um moço que dera um pontapé em sua própria mãe, ficou
o agressor tão compungido e repeso do mal que fizera, que foi dali por um cutelo e
sem mais advertência cortou o malicioso pé. Outros enfermos houve que colhiam as
palmas e as torravam e pisavam, e misturando o pó com água ou vinho o bebiam, fi-
cando logo salvos de qualquer dor que no corpo tivessem. (p. 334)
Em relação à sua terra, mesmo o nome de Lusitânia e a provável descendência de Viri-
ato, sempre motivos do orgulho pátrio, tornam-se motivo de irônica reflexão. O narrador su-
gere a possibilidade de encontrar, na pretensa resposta do governador mouro ao arcebispo, um
questionamento do direito ao uso do nome luso, o que forçosamente poderia mudar até o títu-
lo da epopéia Os Lusíadas:
E é mesmo provável que, tendo-se concluído que de Lusitânia teremos ainda menos
do que isso, e portanto menos propenso devendo achar-se André de Resende a ex-
trair de Luso lusíada, é quase certo, diremos, que Camões não encontrasse melhor
solução que chamar ao seu livro, banalmente, Os Portugueses. Que somos nós, pelo
pouco que nos aproveita. (p. 203)
Essa ironia em relação aos portugueses, entretanto, não pode ser vista como sinônimo
de descaso para com as tradições de sua terra, pois nos textos de seus romances o autor da
217
História do cerco de Lisboa consegue promover o que Luís de Souza Rebelo, no seu estudo
“Os rumos da ficção de José Saramago”, aponta como o(...) encontro de duas culturas, a de
expressão oral e a literária....”, conseguindo fazer com que convivam em sintonia
harmoniosa” (Rebelo, 1983, p. 13).
Assim, fórmulas tão gastas como os ditados, provérbios, frases feitas, lugares co-
muns, ao serem usados em confronto com situações que diferem do uso habitual, perdem o
tom sentencioso e moralista que o uso continuado certamente já lhes tirou, ganham vida e atu-
alidade e adquirem um sabor de ironia. O próprio revisor, já no diálogo inicial, lembra ao his-
toriador que, no uso da linguagem, “(...) os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os na-
rizes-de-cera, as sentenças de almanaque, tudo pode aparecer como novidade, a questão está
em saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois...” (p. 13) e a todo o
tempo o texto do romance nos dá exemplo disso.
Algumas vezes, o narrador não se contenta em usar apenas um desses ditos e, a um
provérbio segue-se outro, que reforça e amplia a idéia sugerida pelo primeiro. Assim é feito
na passagem em que é relatada a ordem de D. Afonso, de não entregar ao povo as provisões
abandonadas pelos mouros no momento da retirada. O narrador usa os provérbios para, indire-
tamente, fazer uma crítica da atitude do soberano (e assim também de todos os poderosos) em
relação ao povo, atribuindo ao rei a autoria da “(...) célebre sentença que logo entrou no cir-
cuito das idéias portuguesas, Guardado está o bocado para quem o de comer, e prudente-
mente mandou recolher os alimentos para que não se tivesse de inventar tão cedo outro dita-
do, Barriga de pobre, antes rebentar que sobre...” (p. 249).
Em outra passagem, depois de muito trabalho e controvérsias ao se concluírem as tor-
res com que serão atacadas as muralhas de Lisboa, D. Afonso Henriques prova (segundo o
narrador), que merece ser rei dos portugueses, quando faz um engenhoso discurso em que
consegue realizar o difícil feito de agradar a todos, pois felicita inicialmente os partidários do
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ataque imediato (pela ousadia), em seguida os engenheiros das torres (pela criatividade) e, por
fim, os demais (pela prudência). Depois dessa estratégica saudação, obtém uma resposta cor-
respondente em forma de ditados:
Os aplausos foram unânimes, ou porque falando o rei assim deve ser, ou porque to-
dos ali encontravam satisfação bastante na decisão tomada, o que veio a exprimir-se
por três diferentes ditados, ou divisas, cada qual para sua facção, diziam os primei-
ros, Candeia que vai adiante alumia duas vezes, contrariavam os segundos, O pri-
meiro milho é dos pardais, rematavam irónicos os terceiros, O último a rir é aquele
que rirá melhor. (p. 253)
Há também um toque de ironia romântica quando o narrador, sempre atento e minucio-
so, mostra sua preocupação com o texto e o desenrolar da trama. Por vezes, intercala o relato
com comentários sobre a própria narrativa, como acontece na página 22. Assim, depois do de-
talhado relato de um milagre, inicia um parágrafo afirmando: “De história sacra, por agora, te-
mos que nos chegue.” Também revela preocupação com a autoria de um escrito, quando diz:
“Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato daquele formoso acordar de almuaden
na madrugada de Lisboa, com tal abundância de pormenores realistas que chega a parecer
obra de testemunha aqui presente....” .
A exemplo do que acontece no romance de Eça de Queirós, nem a si próprio deixa o
narrador de lançar a sua farpa irônica, quando faz observações até mesmo a respeito de sua
maneira de conduzir a narrativa. Dessa maneira, na passagem em que fala sobre as anotações
do discurso de D. João Peculiar feitas pelo copista frei Rogeiro, alonga-se em comentários so-
bre a técnica e a linguagem que seriam usadas pelo religioso, mas não deixa de advertir que
“(...) tudo isto, já se sabe, são suposições de um narrador preocupado com a verossimilhança,
mais do que com a verdade, que tem por inalcançável.” (p. 198).
Ambigüidade, sutileza, mundos que se contestam mas se entrelaçam, um olhar irônico
para o presente e o passado, um texto que apela para a participação do leitor, uma escrita que
se debruça sobre si mesma. Pelo que se observa até agora, por detrás dos efeitos que a leitura
219
revela, arquitetando com o narrador os jogos que se constroem no romance, tecendo as tramas
e unindo os pontos da narrativa, está todo um trabalho de construção que pode ser percebido
quando se tem diante dos olhos a folha de papel, as palavras, o texto. De que maneira dois au-
tores que refletem continuamente sobre seu processo de criação, como Eça de Queirós e José
Saramago, revelam esse trabalho de bastidores e representam aquela figura que Antoine Com-
pagnon considera como “o ponto mais controvertido dos estudos literários”, o autor?
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VII - O CERCO DO AUTOR E DA ESCRITA
Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar histórias. Contamos histórias os romancistas,
contamos histórias os dramaturgos, contamos também histórias os poetas...
(José Saramago em Cadernos de Lanzarote II, p. 192)
Ficarás para sempre vivo, por te misturares perpetuamente à vida dos outros.
(Eça de Queirós, no Prefácio aos Azulejos, 2000, v. III, p. 1801)
COMO UMA SUBIDA ARQUEJANTE
Ainda na sexta página do romance A jangada de pedra (1980), o narrador criado por
José Saramago interrompe a narrativa dos eventos extraordinários que acontecem na região
ibérica para refletir sobre as barreiras com que se depara o escritor, na tarefa de criar outros
mundos. Queixando-se da limitação imposta pelas palavras, quando se tem a pretensão de
transpor para as páginas do livro relações complexas como as de tempo e espaço, afirma:
Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores, basta pensar no exte-
nuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro
este, depois aquele, ou, se tal mais convêm às necessidades do efeito, o sucesso de
hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias, o
passado como se tivesse sido agora, o presente como um contínuo sem princípio
nem fim... (Saramago, 1980, p. 12)
Esse é apenas um exemplo de certa postura muito comum na criação saramaguiana: o
refletir sobre o processo da escrita e o papel do autor. Na verdade, desde que retoma sua car-
reira de romancista no livro Manual de pintura e caligrafia (1977), em que a personagem H.
transita entre a pintura de retratos e a escrita de um diário, num processo que o próprio escri-
tor chama de “mútua iniciação” (pois ele próprio estaria incluído nessa aprendizagem), tal
questionamento se mostra como uma espécie de fio condutor de sua obra. Pode-se mesmo
afirmar que não haveria um texto do autor em que essa preocupação não estivesse, de modo
mais velado ou de forma clara, sempre presente.
Assim, tais questões aparecem sempre em destaque nos ensaios de crítica literária, nos
221
poemas e crônicas, nos textos de ficção, nas inúmeras entrevistas que o autor concede, nas
anotações diárias dos Cadernos de Lanzarote e até mesmo numa peça teatral. Desse modo,
pode-se ver como lógico (e quase como o cumprir de uma rota traçada) o ato de criar um
romance como História do cerco de Lisboa (1998), em que a personagem principal se encon-
tra envolvida com os dilemas que envolvem a escrita de um livro.
Também Eça de Queirós sempre se dispôs a refletir sobre questões ligadas à autoria e à
escrita, mesmo em textos jornalísticos ou nas cartas que escreve a amigos e editores. Numa
delas (15/06/1887), comenta os versos de Joaquim de Araújo e faz sua queixa sobre o traba-
lhoso ofício: “Infelizmente para mim o trabalho não é um doce deslizar pela corrente serena
do ideal – mas uma subida arquejante por uma dura montanha acima.” (2000, v. III, p.1810).
Nos romances, embora viva numa época em que o autor, em busca da impessoalidade
narrativa, cultive a pretensão de fazer com que sua presença no texto seja quase apagada, o es-
critor compensa tal ausência com a criação de personagens ligados às letras, como o autor de
peças teatrais Ernestinho Ledesma, em O primo Basílio (1878), o poeta romântico Alencar,
em Os Maias (1888) e o jovem aspirante a autor Artur Corvelo, em A capital (1925).
Além disso, talvez mesmo para compensar esse suposto distanciamento buscado pelo
escritor na narrativa realista, Eça escreve Prefácios que se tornam famosos. Alguns para livros
de sua autoria, como o da segunda edição d'O crime do padre Amaro (1880), em que se defen-
de das acusações de plágio e classifica o romance como “uma intriga de clérigos e de beatas”;
ou aquele escrito para a edição francesa de O mandarim (1884), que revela um afastamento
da tendência naturalista, ao defender o uso da imaginação na literatura. Também produz textos
para livros de amigos, como o dos Azulejos do conde de Arnoso (1886), em que reflete sobre
os movimentos literários, a figura do leitor e o valor da arte, afirmando: “Só um livro é capaz
de fazer a eternidade de um povo.” (Queirós, 2000, v. III, p. 1801).
Por tudo isso, quando o autor anuncia na Revista de Portugal, em 1890, um conto que
222
narra a história da tradicional família Ramires (e que só seria publicada como livro em 1900),
nada mais previsível e natural que ocupasse agora o primeiro plano, nessa narrativa, uma per-
sonagem que escrevesse uma novela e para a qual se voltassem todos os olhares no romance.
SOBRE MESTRES E APRENDIZES
Escrever romances em que a personagem é um autor e, mais do que isso, vive o pro-
cesso da escrita de um livro (no caso dos romances estudados, na verdade, experimenta a ex-
periência de tornar-se autor), revela-se como um dos artifícios de que se valem os escritores
de textos metaficcionais e tal escolha faz com que, nesses textos, o questionamento sobre as
questões ligadas ao fazer literário pontue de modo incessante a narrativa.
Dea de Queirós pode-se apresentar uma extensa galeria de figuras marcantes na li-
teratura portuguesa. No início de sua carreira literária, o autor cria personagens-tipo à feição
realista-naturalista, como o Amaro e o grupo de cínicos padres a quem ele vai cada vez mais
se assemelhando, a Amélia rodeada de beatas confinadas a um mundo de crendices e precon-
ceitos, a Luísa sonhadora, embotada por leituras românticas, vivendo entediada ao lado de um
Jorge honesto e limitado, seduzida por um Basílio leviano e inescrupuloso. Depois, no estilo
picaresco de Teodorico Raposo pode-se perceber uma mistura de sagacidade um tanto ingênua
e com Artur Corvelo, Eça pretenderia revelar um pouco das lutas dos que aspiram à carreira
de escritor.
numa fase diferente de escrita, surgem nas páginas de Os Maias as já mais comple-
xas e dramáticas figuras (com nuances, ao mesmo tempo, de claridade e sombras) de uma fa-
mília perseguida por um destino trágico. O elegante e cosmopolita Fradique Mendes expõe
em cartas suas idéias originais e modernas e, no final da vida do escritor, disputam sua aten-
ção o civilizado Jacinto e o longamente anunciado Gonçalo Mendes Ramires, o fidalgo da
Torre, de quem por volta de 1899 Eça dirá, para justificar a Ramalho Ortigão a sua vida de re-
223
cluso: “O meu amigo Ramires é causa destes hábitos que são maus.” (p. 171).
Sabe-se, pelas próprias palavras do escritor (e mais ainda pelas exigências realistas da
época), da sua luta frustrante para tentar criar, nas páginas dos livros, figuras que fossem
como que pessoas do mundo real. Assim, em outra carta também ao amigo Ramalho, em
1877, Eça angustia-se pelo que considera tentativas inúteis de criar personagens convincentes
e exercer um domínio sobre elas, pois: “(...) não têm a vida que nós temos: não são inteira-
mente des images découpées mas têm uma musculatura gelatinosa. Oscilam, fazem beiços
como os queijos da serra, espapam, derretem. (...) Faço mundos de cartão... não sei fazer car-
ne nem alma. Como é? Como será?” (p. 117).
Desse tipo de angústia não parece sofrer José Saramago, talvez porque a modernidade
tenha trazido aos que escrevem hoje uma maior liberdade de criação, embora outros diferentes
tipos de desafios inquietem os autores contemporâneos. Quando recebe o prêmio Nobel, o pri-
meiro autor de língua portuguesa agraciado com essa distinção pronuncia o discurso oficial .
Nele homenageia as figuras a que vida nos romances e, como é de seu feitio, no título
subverte uma idéia comum em relação ao processo de escrita, pois sua fala denomina-se “De
como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz”.
Nesse discurso, discorre sobre personagens que o marcaram, a começar pelas figuras
reais de seus avós e seus pais, a quem sente, entretanto, haver transformado em personagens
literárias quando os coloca nas páginas de um texto, “(...) desenhando e tornando a desenhar
os seus rostos, com o lápis sempre cambiante da recordação...” (Saramago, 1998, p. 3). Só en-
tão inicia a apresentação das figuras de homens e mulheres que povoam os mundos de sua fic-
ção, até chegar àquele livro cujo título encerrava (na época), de modo significativo, a trajetó-
ria de sua carreira: Todos os nomes. A respeito do papel de suas personagens, diz:
Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que
mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de persona-
gens de romance e de teatro que vejo desfilar diante de meus olhos, esses homens e
essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de
224
acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de
autor....(Saramago, 1998, p. 4)
O escritor fala então, seguindo a ordem cronológica da escrita dos romances, um pou-
co sobre cada personagem da sua ficção. Em certo momento revela que, em tempos passados,
havia feito algumas revisões de provas de livros e, como na Jangada de pedra tinha “revisado
o futuro”, resolve escrever um livro que fizesse a “revisão do passado”. Para empreender tal
tarefa cria Raimundo Silva, (...) um homem simples, vulgar, que se distingue da maioria
por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não sabere-
mos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa.” (Saramago, 1998, p. 7).
CRUZANDO AS FRONTEIRAS
Na frase inicial do romance A ilustre casa de Ramires, como foi mencionado, o fi-
dalgo da Torre é visto a “trabalhar” na escrita de sua novela histórica, num ambiente em que
todos os detalhes parecem ligados às sensações e à vitalidade: a livraria é clara e larga, “respi-
ra” para o pomar por duas janelas, uma perfumada pela madressilva, outra que coloca diante
dos olhos de Gonçalo Ramires a vista da antiga torre, que serve de inspiração e lembra os an-
tepassados.
A própria época do ano em que se inicia a história, no “calor e silêncio do domingo de
junho” revela-se significativa, pois José Castanheiro, na tentativa de entusiasmar Gonçalo
para escrever o livro, lembra-lhe que, em Portugal, o verão é “o tempo das belas fortunas e
dos rijos feitos” (p. 229). Mas ao mesmo tempo, essa época e os apelos do mundo fora fa-
zem com que o fidalgo não se disponha à reflexão e ao recolhimento que a reescrita da histó-
ria dos Ramires, com o seu mundo fechado e sombrio, parecia pedir.
Nesse momento inicial de sua escrita, Gonçalo Ramires, depois de aborrecer-se com
demoradas brigas e negociações com o caseiro e o novo arrendatário de sua propriedade, labu-
225
ta, “empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso”, sentindo-se travado e estéril,
mesmo quando volta os olhos para a a “dificílima” torre, em busca de inspiração. Decide en-
tão parar o trabalho e, como sempre fará ao terminar cada parte, torna-se o primeiro leitor e
crítico de seu texto, que também desde nos é dado a ler: “Na sala altaneira e larga, onde os
largos e pálidos raios da lua...” Larga, largos! ... E os pálidos raios, os eternos pálidos raios!...
Também este maldito castelo, tão complicado!...E este Tructesindo, que eu não apanho, tão
antigo!...Enfim, um horror!” (p. 235).
Tal sofrimento na busca da palavra exata não parece resultar, entretanto, de inexperiên-
cia no campo literário, pois esse não é o seu primeiro trabalho de Gonçalo Ramires. Antes, ele
já produzira em onze tiras de papel a história dos trágicos amores de uma castelã, D. Guiomar,
publicada na Pátria pelo Castanheiro, tendo sido por isso aclamado pelos amigos como um
“novo Walter Scott”. O sucesso leva-o a anunciar um romance, em dois volumes, sobre seu
avô Tructesindo, mas só consegue escrever e publicar, na Gazeta do Povo, dois rancorosos ar-
tigos atacando o governador de Oliveira, André Cavaleiro, assinados apenas com o nome de
Juvenal.
Para agravar a situação de estar sempre às voltas com as agruras de um orçamento li-
mitado, o futuro não parece oferecer a Gonçalo outras perspectivas promissoras além da car-
reira política ou o casamento com uma mulher de fortuna. Assim, quando reencontra o Casta-
nheiro algum tempo depois, levado pela vaidade de ter seu nome impresso e pela divulgação
que isso lhe poderá trazer (com os evidente ganhos políticos), decide-se finalmente a escrever
A torre de D. Ramires. Pode-se ver, dessa maneira, que .a ligação do fidalgo com as letras não
se faz por vocação, mas principalmente por uma questão de oportunismo.
Bem diferente é a trajetória da personagem de José Saramago, que no livro executa a
função de revisor e aparece inicialmente empenhado na tarefa de corrigir as provas de um li-
vro de História. Raimundo Benvindo, de origem popular como o próprio narrador faz questão
226
de dizer quando comenta a banalidade do sobrenome Silva, é apresentado somente no terceiro
capítulo. Ele aparece a contemplar, da varanda de sua modesta casa, a cidade de Lisboa
(tem, portanto, à sua disposição um horizonte visual muito mais amplo que o de Gonçalo),
nessa manhã envolta por um nevoeiro que a torna indistinta e misteriosa, com sons, vozes e
rumores indefinidos.
Esse ambiente difuso talvez seja responsável pelo vislumbre que o revisor tem, subita-
mente, de uma manhã de verão no século doze (fato que se vai repetir depois, inúmeras vezes,
no decorrer da narrativa), cheia de luzes e vida, com a cidade despertada pela voz de um al-
muadem. Desde o início, portanto, como que uma atração profunda de Raimundo pelo
mundo medieval, que ele já encontrara ao revisar as páginas do livro de história, e uma identi-
ficação com os mouros sitiados.
Desde o primeiro capítulo, o diálogo com o historiador já mostra um revisor dotado de
uma personalidade curiosa e questionadora, embora esse traço de seu caráter ainda não tenha
tido, na vida metódica que ele leva, uma oportunidade de se manifestar. No terceiro capítulo,
Raimundo Silva é comparado a um falcão, pela sua “agudíssima tarefa de muito observar”.
Sabe-se também, pelo narrador, que esse homem de atentíssima leitura e hábitos pro-
saicos vive sozinho e se vê intimado pela editora a corrigir, até o dia seguinte, as mais de cem
páginas que ainda lhe faltam para revisar. Mesmo nesse livro que como trabalho, o olhar
atento de Raimundo Silva não deixa de constatar a ausência de “(...) um facto novo, uma in-
terpretação polémica, um documento inédito, sequer uma releitura. Apenas uma repetição das
mil vezes contadas e exaustas histórias do cerco...” (p. 39).
Diferentemente do ambiente solar e pleno de vida que rodeia o fidalgo de Eça de
Queirós, pode-se ver Raimundo Silva a trabalhar fechado num escritório, com uma manta nos
joelhos para se defender do frio, num anoitecer que o mês de janeiro faz chegar mais cedo.
Lendo por obrigação, mas mesmo assim de modo crítico e não se atendo apenas à forma, ele
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não consegue aceitar o que tem diante dos olhos, pois percebe os inúmeros equívocos, as “ab-
surdidades”, os erros que o texto contém. Tal aborrecimento leva-o a não fazer a costumeira
revisão final de todo o livro, mas somente voltar à parte do discurso de D. Afonso aos cruza-
dos.
Essas páginas desafiam Raimundo, que e relê fascinado a passagem que diz que os
cruzados ajudaram na retomada de Lisboa. Uma luta acontece dentro dele, até que se decide a
cometer a transgressão que naquela conversa inicial se prenunciava e que, desse momento
em diante, mudará o curso da narrativa e acabará por levá-lo também a uma mudança de vida:
(...) com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma
palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não pode-
ria ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cru-
zados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e por-
tanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu
sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a
história nova, e como. (p. 50)
Dessa forma, aquela reação que se prenuncia no diálogo inicial, aquela espécie de
protesto que o texto imaginário parece representar, aquela opinião a respeito das supostas ver-
dades a todo momento impostas nas páginas de livros, tudo isso está contido naquela palavra
que ali é colocada. Com o “não”, Raimundo Silva começa a marcar sua presença no mundo.
O NÃO, O SIM, O TALVEZ....
Para explicar a sua experiência de “escrever a leitura”, como faz no livro S/Z, Roland
Barthes produz um artigo que se inicia com as indagações: Nunca lhe aconteceu, ao ler um
livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas ao contrário, por afluxo
de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabe-
ça?” (Barthes, 2004, p. 26). Também Raimundo Silva, pelo que se pode perceber, muitas ve-
zes interrompe sua leitura para discordar do texto do historiador e chega até a protestar, dizen-
228
do uma “má palavra” contra aquilo que tem diante dos olhos.
Como se fosse criando um texto paralelo, o revisor mostra-nos que um livro não teria
o seu nascimento apenas no instante em que o escritor se senta para escrever a primeira pala-
vra, mas seria formada através de um processo de muitas leituras, dos incontáveis textos que
o mundo oferece sem cessar aos nossos olhos. Tal processo pode ser acompanhado pela traje-
tória de Raimundo Silva, um homem que tem o curioso dom de elaborar textos no pensamen-
to, como aquele que nos é dado a ler no segundo capítulo do romance. Assim, ao ler, o revisor
“levanta a cabeça” e vai completando lacunas, colorindo detalhes, apresentando uma visão di-
ferente daquela que o livro do historiador (como também a maioria dos livros similares) ofe-
rece. Esse relato, que inicia o segundo capítulo, poderia ser como uma espécie de ensaio,
um esboço do livro que no futuro irá escrever.
O revisor vive modestamente; no entanto, seja movido pelas necessidades da profis-
são, seja pela singularidade de uma mente curiosa, parece ter nos numerosos livros que possui
(cuja relação feita pelo narrador ocupa quase uma página) um dos poucos luxos a que se
direito. Os volumes listados abrangem campos variados do conhecimento: Dicionários e Gra-
máticas, Atlas, Histórias de Arte, Ciências, Filosofia, Religião, Enciclopédias, Biografias e até
um Dicionário de Raridades, Inverosimilhanças e Curiosidade. Sobre toda essa “sabedoria”
acumulada, entretanto, paira a constatação de que “(...) estes livros que não fizeram mais do
que repetir, sem contra prova, obras mais antigas...” (p. 28).
Por discordar dos relatos oficiais sobre o cerco de Lisboa, Raimundo Silva deseja bus-
car a sua própria versão do acontecimento. Para isso, sai à procura de novas leituras e então a
vista da janela (sempre buscada) sugere-lhe a cidade, que está à sua espera como um texto a
ser decifrado. Constrói, então, a partir de algumas páginas do livro do historiador, uma espé-
cie de roteiro e vai com ele nas mãos buscar os vestígios da antiga cidade, as marcas da pre-
sença moura. Depois de percorrer os lugares citados e neles visualizar fragmentos daquilo que
229
se passara no século XII, retorna à sua casa e então
(...) apercebe-se, pela primeira vez com evidência luminosa, de que mora no preciso
lugar onde antigamente se abria a Porta de Alfofa, se da parte de dentro ou da parte
de fora eis o que hoje não se pode averiguar e impede que saibamos, desde já, se
Raimundo Silva é um sitiado ou sitiante, vencedor futuro ou perdedor sem remédio.
(p. 75)
Depois do “não” e das andanças pelas ruas, Raimundo Silva sente-se “mais cercado do
que Lisboa esteve alguma vez” e permanece à espera das conseqüências que certamente virão,
enquanto lê e relê a cidade do presente e do passado.
Gonçalo Ramires, de início, parece não dar à leitura muita importância; mesmo as-
sim aparece rodeado de textos clássicos, “grossos fólios de convento e de foro” nas estantes
de madeira maciça, além dos volumes que enchem a mesa de pés torneados: História Genea-
lógica, todo o Vocabulário de Bluteau, exemplares do Panorama, as obras de Walter Scott. In-
forma o narrador ainda que, ao decidir escrever a novela, o sempre exuberante fidalgo manda
uma carroça para buscar os livros herdados pelo cunhado e também retira das prateleiras a
História de Herculano, além dos romances O Bobo e O Monge de Cister. No entanto, detalhes
como os livros de Scott sustentando um copo de flores e até mesmo as empoeiradas pratelei-
ras revelam na verdade, de maneira indireta e jocosa, o seu pouco interesse pela leitura dos
clássicos históricos.
Além disso, ele decidiu que sua principal fonte de consulta vai ser o Poemeto do tio
Duarte, que conta em versos uma história sempre repetida na família, o episódio da vingança
de Tructesindo Ramires. Sabe também que pode contar ainda com as preciosas informações
do estudioso das tradições que é o padre Soeiro, além de ter no amigo e compositor de fados
Videirinha um atualizador constante dos gloriosos feitos de sua família. Como se vê, ao con-
trário do que acontece com Raimundo Silva na História do Cerco, um leitor crítico e atento de
textos eruditos e históricos, empenhado em descobrir a sua verdade sobre os acontecimentos
do passado, a personagem de a de Queirós mostra-se de início um enfastiado e frívolo lei-
230
tor, que se contenta em ler a História através dos olhos alheios e, ardilosamente, tem a inten-
ção de apenas verter, para sua prosa “tersa e máscula”, os versos românticos do tio poeta.
Dessa maneira, enquanto Raimundo Silva vive um lento processo de amadurecimento
e preparação até que esteja pronto para escrever, Gonçalo lança-se de modo afoito à escrita,
depois de anunciar o seu romance (em dois tomos!) ao Castanheiro. Na janela de um hotel
em Lisboa, com uma atitude displicente e na suposição de que teria uma tarefa fácil pela fren-
te, “Não hesitou mais, seduzido. E enquanto se despia, depois de beber aos goles um copo d'á-
gua com bicarbonato de soda, martelava a primeira linha do conto, à maneira lapidária da
Salammbô - 'Era nos Paços de santa Irinéia, por uma noite de inverno, na sala alta da Alcáço-
va...'” (p. 232).
A partir desse momento, porém, Gonçalo tem a revelação de que cada linha requer
uma lenta e às vezes penosa elaboração. Por isso, não consegue prosseguir na escrita, mesmo
depois de cumprir o ritual de se isolar na livraria e dos chás preparados pelo Bento. Assim, en-
quanto Videirinha segue compondo novos e entusiásticos versos em louvor da Torre, sua no-
vela histórica permanece abandonada.
DE OUTRAS VOZES E OUTROS TEXTOS
No artigo “A morte do autor” (2004, p. 62), Roland Barthes refuta a idéia do autor
como uma espécie de criador onipotente, lembrando que nenhum texto é original, mas se
compõe de escrituras variadas, que se colocam em diálogo ou em contestação. Assim, o que
resta ao escritor é a oportunidade de imitar um gesto já antes praticado e de fazer uso da liber-
dade de mesclar as escrituras à sua disposição.
No artigo “A estratégia da forma”, a afirmação de Laurent Jenny, de que “Face aos
modelos arquétipos, a obra literária entra sempre numa relação de realização, de transforma-
ção ou de transgressão” (1979, p. 5) realça a idéia de que o olhar intertextual se define por ser
231
um olhar crítico, lúdico e transformador. Além disso, segundo Jenny, o modo com que se
essa relação entre os textos pode tomar formas variadas de realização, tão diferentes como a
reminiscência, a imitação, a paráfrase, a citação, a montagem, a paródia, o plágio.
Já Leyla Perrone-Moisés, no segundo capítulo de Texto, crítica, escritura, reflete sobre
dialogismo e intertextualidade, chamando a atenção para o fato de que
O inter-relacionamento de discursos de diferentes épocas ou de diferentes áreas lin-
guísticas não é novo, podemos dizer mesmo que ele caracteriza desde sempre a ati-
vidade poética. Em todos os tempos, o texto literário surgiu relacionado com outros
textos anteriores ou contemporâneos, a literatura sempre nasceu da e na literatura.
Basta lembrar as relações temáticas e formais de inúmeras grandes obras do passado
com A Bíblia, com os textos greco-latinos, com as obras literárias imediatamente an-
teriores, que lhe serviam de modelo estrutural e de fonte de 'citações', personagens e
situações... (1993, p. 59)
No entanto, embora a prática intertextual não seja nova, houve mudanças na atitude
dos escritores em relação a essas práticas a partir do século XIX, pois os autores, numa espé-
cie de apropriação livre, passam a assumi-las plenamente, sem maiores preocupações de res-
peito ou de distância em relação às obras antecessoras. Esse diálogo incessante e o próprio
trabalho de transformação que se realiza a partir desses textos faz com que as vozes antigas
passem a soar de forma diferente, nova, original. (Perrone-Moisés, 1993, p. 61-64)
Tudo isso é lembrado para falar da maneira como se comportam, nos romances estuda-
dos, as personagens-autores Gonçalo Ramires e Raimundo Silva, em relação às práticas inter-
textuais. Deve-se lembrar, porém, que os próprios autores Eça de Queirós e José Saramago já
costumavam, em seus escritos, estabelecer o diálogo com textos alheios, antes mesmo que
mostrem suas personagens no exercício dessas práticas, nas páginas dos romances A ilustre
casa de Ramires e História do cerco de Lisboa.
Em relação a Eça de Queirós, para lembrar apenas alguns casos mais polêmicos, ainda
no início de sua carreira literária o criador de Gonçalo Ramires é acusado mesmo de plagiar,
em O Crime do padre Amaro, um romance de Émile Zola, La faute de l'Abbé Mouret e tam-
bém parece dever ao Madame Bovary, de Gustave Flaubert, a criação da Luísa de O primo
232
Basílio. Dessa maneira, não surpreende que A ilustre casa de Ramires remeta, como se
mencionou, a um romance histórico de Rebelo da Silva.
Fazendo uma análise dessa questão problemática, no artigo Eça, autor de madame
Bovary”, Silviano Santiago chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que a crítica
de Machado de Assis, por exemplo, faria supor,
Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o interesse da litera-
tura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do arcabouço abstrato ou dra-
mático do romance ou do poema, mas da transgressão que se cria a partir de um
novo uso do modelo pedido de empréstimo à cultura dominante. (Santiago, 2000, p.
56)
A partir então dessa perspectiva, Silviano Santiago admite a semelhança entre o ro-
mance de Eça e o de Flaubert, mas lembra que diferenciais entre os dois romances, apon-
tando como um deles o uso da mise en-abîme em O primo Basílio, concretizada na peça
“Honra e paixão” que a personagem Ernestinho escreve e que acompanha paralelamente o en-
redo do romance. Dessa maneira, afirma que as obras de Eça e Flaubert “(...) encontram-se fi-
nalmente, enlaçam-se, complementam-se e organizam-se harmonicamente no espaço literário
europeu da metade do século XIX” (Santiago, 2000, p. 65).
Além dessa intertextualidade explícita, deve-se lembrar também, como afirma Roland
Barthes no “Suplemento ao Prazer do Texto”, que tal processo (...) não se reduz, evidente-
mente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas
anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, da-
das sem aspas.” (Barthes, 2004, p. 276). Como foi comentado, Eça de Queirós parece sem-
pre atento ao que ocorre à sua volta, às tendências e idéias que circulam no mundo do final do
século, tanto em Portugal (que acompanha mesmo de longe) quanto no resto da Europa (da
qual Paris é na época o centro cultural) e, desse modo, em seu texto estariam marcas de idéias
e movimentos de sua época. Eduardo Lourenço, no artigo “O tempo de Eça e Eça e o tempo”,
ressalta que:
233
Eça de Queirós foi, como talvez só Camões o tenha sido para o seu tempo, um gran-
de consumidor de alimentos terrestres, de fantasmas de imaginação alheia, de mitos
culturais, de ícones históricos, de legendas, de tudo que em qualquer ordem, a Bele-
za –desejo redimido pela forma – forneceu à sua fome de ficção e mitificação inatas.
Tudo lhe foi tema e motivo para glosa e re-criação. A literatura como imaginário
constituído foi, sem dúvida, e é assim para todos os escritores, a fonte das fontes.
(...) Mais livre e abundantemente se serviu do imaginário histórico, ou antes da His-
tória como imaginação....(Lourenço, 1997, p. 711)
Assim, não admira que o narrador de A ilustre casa apresente também Gonçalo Rami-
res rodeado de textos que representam tendências literárias significativas do século XIX,
como o toque romântico nos melancólicos versos decassílabos do poema do tio Duarte e nas
ingênuas redondilhas da canção composta pelo Videirinha. Também ao escrever sua novela, o
fidalgo tentaria imitar, tanto no conteúdo quanto na linguagem, o estilo do romance histórico à
feição de Walter Scott, Alexandre Herculano e Rebelo da Silva.
Por sua vez, José Saramago tem presente em todos os escritos as marcas de um diálo-
go intertextual, num processo em que os textos alheios adquirem novas significações. Para ci-
tar apenas um exemplo, o romance O ano da morte de Ricardo Reis, já no título remete à obra
poética de Fernando Pessoa e tem como figura principal o heterônimo pessoano a viver na
Lisboa de 1936, além de ironizar, na personagem Lídia, as musas dos poemas da antiguidade
clássica. Além disso, a narrativa é pontuada a todo o momento por trechos de poemas e refe-
rências de Pessoa e outros autores e a própria narrativa inicia-se e termina com versos reescri-
tos de Os Lusíadas.
No romance História do Cerco de Lisboa, faz-se menção, por diversas vezes, a textos
tradicionais: referências bíblicas, provérbios e a várias narrativas históricas famosas, como a
Crónica dos Cinco Reis de Portugal e a Crónica de d. Afonso Henriques de Frei António
Brandão. As narrativas populares estão representadas nas transcrições dos relatos dos Mila-
gres de Santo António e na reescrita, feita por Raimundo Silva, dos milagres do cavaleiro
Henrique. O nome da heroína da narrativa escrita por Raimundo Silva, Ouroana, também pa-
rece render homenagem à famosa Oriana, a sem par, do Amadis de Gaula.
234
Como acontece com freqüência nos textos saramagueanos, Camões se faz presente
com um verso de Os Lusíadas (Canto III, estrofe 45, versos 7-8 ). O narrador usa o apelo do
rei no “celebérrimo” episódio da batalha de Ourique (em que Cristo teria aparecido a Afonso
Henriques), não para enaltecer a do soberano, mas para lamentar a perda da oportunidade
de conversão dos muçulmanos, se a eles também tivesse sido dada a visão da divindade: “(...)
quando Cristo apareceu ao rei português, e este lhe gritou, enquanto o exército prostrado no
chão orava, Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis, mas Cristo
não quis aparecer aos mouros...” (p. 20).
também a referência à peça Frei Luís de Souza, de Garrett, que evoca uma época
significativa da história de Portugal, mas como se percebe, o uso dos textos alheios não ocorre
sem que se faça sempre um questionamento ou uma nova leitura, como: “(...) Imaginemos que
o Romeiro deixava sem resposta a curiosidade fatal do escudeiro Telmo...” (p. 86).
Leituras contemporâneas não são esquecidas e mais de uma vez menciona-se o roman-
ce O médico e o monstro, talvez pela analogia com as lutas internas em que se debate Rai-
mundo Silva: “As palavras que o Dr. Jekill acabou de dizer tentam opor-se a outras que não
chegamos a ouvir, essas disse-as Mr. Hyde...” (p. 49). Mesmo um romance juvenil marca sua
presença no texto, para lembrar como a imaginação dos autores é ilimitada: (...) ainda que
lhe parecia que era assim algo como Tarzan e o Império perdido, e onde havia uma cidade de
romanos antigos e de cristãos primeiros, tudo escondido numa selva de África...” (p. 79).
Curiosamente, no exército português, o destaque para personagens (mesmo que
mencionados nas crônicas) que parecem remeter, pela semelhança do nome, à ilustre casa do
fidalgo criado por Eça de Queirós: “(...) nem todos podem aguentar tanto como Gonçalo Men-
des da Maia, o Lidador, que, tendo agora setenta anos, parece estar na flor da idade...” (p.
185). Também no relato feito por Mogueime lê-se que “(...) e quando pareceu bem a Mem Ra-
mires, que era o que mandava nesses que estavam comigo...” (p. 186). Assim, os textos de Eça
235
e Saramago se encontrariam, ao marcar os nomes de “ilustres casas” portuguesas.
Além disso, o narrador refere-se também, ainda que de forma indireta, a textos do pró-
prio José Saramago, numa espécie de intratextualidade, como ao lembrar O ano da morte de
Ricardo Reis: “(...) introduzido aqui como um eco de outro, feito em diferente tempo e lugar e
que portanto não merece desenvolvimento, vide Retrato do poeta no Ano de sua Morte” (p.
107). É lembrada também a reflexão que aparece no início d'A jangada de pedra: (...) por-
quanto como ficou demonstrado num outro mais fantasioso relato, é física e mentalmente im-
possível descrever os actos simultâneos de duas personagens, mormente se elas estão longe
uma da outra...” (p. 239).
Também cruzamento de textos de diferentes estilos e origens n'A ilustre casa de
Ramires. Gonçalo, desde o momento em que decide escrever o livro sobre Tructesindo, sente-
se confiante por ter à disposição os versos do poema do tio Duarte e tem, inicialmente, a in-
tenção de apenas reescrevê-los em prosa. Desse modo, “(...) pensava regaladamente que nem
teria a canseira de esmiuçar as crônicas e os fólios maçudos... Com efeito! Toda a reconstru-
ção Histórica a realizara, e solidamente, com um saber destro, o tio Duarte. ” (p. 232).
A novela de Gonçalo parece nascer, assim, de uma apropriação consciente, embora o
fidalgo chegue a ter alguns escrúpulos quanto a essa atitude, que ele próprio logo se apressa
em desfazer. Usa, para se convencer da legitimidade de suas intenções (embora aqui também
prevaleça a ambigüidade de caráter da personagem), de uma argumentação que se mostraria
hoje bastante pertinente, a respeito das práticas intertextuais:
E era um plágio? Não! A quem, com mais seguro direito do que ele, Ramires, per-
tencia a memória dos Ramires históricos? A ressurreição do velho Portugal, tão bela
no Castelo de Santa Irenéia, não era obra individual do tio Duarte, - mas dos Hercu-
lanos, dos Rebelos, das Academias, da erudição esparsa. E de resto, quem conhecia
hoje esse poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanário, que perpassara, durante
cinco meses, há cinqüenta anos, numa vila de Província...? (p. 252)
Com a consciência assim apaziguada, o fidalgo decide então iniciar a sua novela e
236
mais uma vez, tenta valer-se da inspiração alheia, pois ao escrever a primeira linha, procura
imitar o estilo de Gustave Flaubert, na primeira frase do romance Salambô: “Era em Megara,
bairro de Cartago, nos jardins de Amílcar.” (Flaubert, 1969, p. 11).
Mais cheia de percalços é a trajetória de Raimundo Silva, que inicialmente parece pas-
sar por um processo de iniciação. Depois da advertência e do perdão na editora pelo “não” co-
locado no livro do historiador, conhece Maria Sara, que tal como uma Ariadne moderna lhe
indica o caminho, pois dela recebe a sugestão da escrita de uma versão nova da história do
Cerco de Lisboa e também o último exemplar que resta com a palavra “não”. Depois de intei-
ramente lavado por uma forte (e sugestiva) tempestade, mas com o livro-talis guardado e
protegido junto ao peito, chega em casa onde tudo lhe parece diferente, ele próprio parece
voltar de uma longa viagem. Ao segurar com força o livro, sente-se penetrado por uma sensa-
ção de força e plenitude.
Assim, ao contrário de Gonçalo, que levianamente começa a escrita da sua novela, um
como que renascido Raimundo Silva vive (como se participasse de um solene ritual), o mo-
mento em que pretende iniciar a escrita do seu livro, ainda no escritório em que habitualmente
realiza o trabalho de revisão. No entanto, toda essa preparação anterior não impede que ele
também falhe na sua primeira tentativa:
(...) o revisor ficou assim durante longos minutos, ouve-se o rumor vago da chuva lá
fora, nada mais, a cidade é como se não existisse. Então Raimundo Silva puxou uma
folha de papel em branco, também ela lisa, limpa, também ela uma tábua rasa, e, ao
alto, com a sua clara e cuidadosa caligrafia de revisor, escreveu História do cerco de
Lisboa. Sublinhou duas vezes, retocou uma e outra letra, e no instante seguinte a fo-
lha estava rasgada... (p. 122)
“Que vou eu escrever”, “Por onde devo começar”, pergunta-se então aflito o revisor,
para descobrir que ainda não sabe o principal: o motivo da recusa dos cruzados ao rei de Por-
tugal. Decide voltar às fontes para novas leituras que entretanto não o satisfazem, repassa pos-
sibilidades que se mostram pouco convincentes, até que finalmente percebe que a ele próprio
237
cabe a invenção de uma nova história. Como Gonçalo, também abandona a escrita e sai para a
rua, mas diferentemente do fidalgo, que vai ao encontro de amigos, parte em busca de respos-
tas, que vai descobrir no momento em que sobe ao castelo e pode contemplar Lisboa do
alto da torre.
Quando finalmente começa a escrever o livro, Raimundo Silva decide colocar uma pe-
quena mesa ao lado da janela, mas agora no quarto de dormir, de onde pode ver os telhados
das casas e o rio. Embora continue no escritório o trabalho de revisor, deseja fazer essa nova
escrita à claridade, deixando que a luz natural caia sobre suas mãos, as folhas de papel e as
palavras. Quando se entrega, assim, à escrita, faz-se lugar nele para que todos os textos que
haviam passado diante dos seus olhos se façam presentes, como traços e marcas redesenhados
de memória:
(...) a sua memória de revisor está cheia de versos e de prosas, são troços, fragmen-
tos, e também frases completas, com sentido, pairam na lembrança como células
quietas e resplandescentes vindas doutros mundos, a sensação é a de estar emerso no
cosmo, aprendendo o perfeito significado de tudo, sem mistério. (p. 182)
A partir de então, chega para ele aquele momento que Umberto Eco assim descreve:
“É o mundo construído que dirá como a história deve avançar depois.” (Eco, 1985, p. 26).
MUNDOS E SERES DE PAPEL
Sobre personagens criadas para seus romances, nota-se uma diferença entre os dois es-
critores portugueses: José Saramago parece não se inspirar diretamente em pessoas do mundo
real para criá-las, como afirma a Carlos Reis nos Diálogos: “Penso que as minhas persona-
gens saem todas da minha cabeça, neste sentido: não é que elas estivessem antes, mas,
no momento de escrever, as personagens de que eu necessito apresentam-se-me, sem que eu
tenha um caderninho de notas....” (Saramago, 1998, p. 131).
Já Eça de Queirós, em carta a Fialho de Almeida (08/08/1888), em resposta a artigo do
238
Repórter, queixa-se de que a monotonia de suas criações (uma das críticas feitas por Fialho ao
romance Os Maias), deve-se à linearidade das próprias figuras que povoam a sociedade de
Portugal. Para o escritor, que sempre teve a pretensão de retratar em sua obra as “cenas da
vida portuguesa”, o que lhe faltava seriam modelos reais que revelassem mais riqueza interior
e defende-se, dizendo:
Assim diz V. que os meus personagens são copiados uns dos outros. Meu querido
amigo, uma obra que pretende ser a reprodução duma sociedade uniforme, nivelada,
chata, sem relevo, e sem saliências (como a nossa incontestavelmente é) como que-
ria V., a menos que eu falseasse a pintura, que os meus tipos tivessem o destaque, a
dissemelhança, a forte e crespa individualidade, a possante e destacante pessoalida-
de, que podem ter, e têm, os tipos duma vigorosa civilização como a de Paris ou a de
Londres? (Queirós, v. III, p. 1696)
Pelo que se pode perceber, n'A ilustre casa Eça de Queirós não transmite à sua perso-
nagem Gonçalo, que faz a recriação do mundo medieval, tal preocupação de fidelidade às fon-
tes, pois o fidalgo sente-se à vontade para usar a imaginação e fazer as mudanças que parecem
necessárias aos seus propósitos. Desse modo, embora os versos do tio Duarte falem da palidez
da tarde de outono, ele prefere dar maior dramaticidade ao seu cenário, transportando o início
da história para uma noite de inverno, o que pode ser visto também como o sinal de uma cria-
tividade que começa a se manifestar em sua escrita.
Gonçalo também não precisa criar as personagens de sua novela, mas somente reescre-
vê-las, pois elas desfilam no poema do tio, com destaque para as figuras do fidalgo Tructe-
sindo Ramires e seu filho Lourenço, do primo D. Garcia Viegas, o Sabedor e do bastardo
Lopo de Baião, o Claro-Sol, que tem a pretensão de casar-se com Violante Ramires. Ao trans-
por para sua prosa tersa e máscula” os versos do poema, o fidalgo retira um pouco do tom
laudatório e emocionado dos textos do tio e do Videirinha e, embora transpareça no seu relato
uma visão mais crua e crítica do episódio relatado, ainda assim permanece na linguagem um
toque de grandiloqüente solenidade. Entretanto, ao lado do cantado heroísmo dos antigos Ra-
mires, podem-se ver destacados também os inflexíveis sentimentos de uma vingança impiedo-
239
sa .
Pode-se perceber essa ambigüidade no comportamento dos fidalgos, por exemplo, na
passagem da captura de Lopo de Baião, quando o aprisionam sem o respeito que seria devido
entre cavaleiros, antes humilhando-o ao despirem-no de suas vestes de guerra e ao amarrá-lo
com cordas a dois caixotes. Até os comandados dos Ramires parecem participar da selvageria,
o que se pode observar nas descrições das lutas com os defensores do Bastardo:
Os escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chuço para a boca duma barroca,
sem resgate ou mercê, como alcatéia imunda de roubadores de gado, acabaram, de-
cepados a macheta pelos barbudos estafeiros leoneses. Todo o vale cheirava a san-
gue como um pátio de magarefes. Para reconhecer os companheiros do Bastardo, um
turma de Cavaleiros desafivelava os gorjais, as viseiras, arrancando furtivamente as
medalhas de prata, os bentos, saquinhos de relíquias, que todos traziam bem-temen-
tes. (...) E afastados à entrada do vale, sob a ramagem dum velho azinheiro, Tructe-
sindo, D. Pedro de Castro, e Garcia Viegas, o Sabedor, decidiam que morte lenta, e
bem dorida e viltosa se daria ao Bastardo, vilão de tão negra vilta. (p. 436)
Na parte do fado que compõe para louvar o amigo (cujo conteúdo seria inspirado nas
pesquisas históricas do padre Soeiro), Videirinha coloca sua conclusão de que a força dos an-
tigos Ramires estava nas armas, enquanto Gonçalo trazia a sua no coração. Talvez por essa
exacerbada sensibilidade, o fidalgo tenha gastado toda uma semana de setembro, “com o ge-
mente esforço de quem empurra um arado por terra pedreira”, para conseguir narrar o trecho
da emboscada; precisa depois fazer uma pausa, até ser capaz de contar o final sombrio da vin-
gança, com o seu “sujo horror”. Ainda assim, à medida em que escreve o seu relato, Gonçalo
parece ser capaz de distanciar-se a ponto de ver o mundo de seus avós como realmente parecia
ser e não apenas como o mostram os textos idealizados em que se inspira.
O revisor de História do cerco de Lisboa também convive com personagens reais da
Idade Média, como D. Afonso Henriques, cujo discurso aos cruzados vai fasciná-lo desde
quando o livro para corrigi-lo, até que consegue descobrir nas palavras reais o motivo para
a recusa dos guerreiros de Cristo. A visão que Raimundo Silva mostra de D. Afonso difere
daquela dos relatos oficiais, por mostrar o soberano não como um destemido guerreiro, mas
240
como um negociador prático e sagaz, portador de uma linguagem direta e capaz de usar argu-
mentos que podem ser lidos como ironia à versão histórica oficial. Assim, quando se dirige
aos cruzados e tenta convencê-los, diz com crua objetividade:
A bem dizer, a nós o que convinha era uma ajuda assim para o gratuito, isto é, vocês
ficavam aqui um tempo a ajudar, quando isso acabasse contentavam-se com uma re-
muneração simbólica e seguiam para os Santos Lugares, que lá, sim seriam pagos e
repagos, tanto em bens materiais, posto que os turcos não se comparam em riqueza a
estes mouros, como em bens espirituais, que lá se derramam sobre o crente não mais
que pôr ele pé em terra... (p. 139)
No momento da batalha, ao exortar os soldados para que obtenham a vitória, fala-lhes
da terra natal e até de um hipotético futuro “glorioso”, argumento que parece funcionar: “Pen-
sai que se não vencermos esta guerra Portugal se acabará antes de ter começado, e assim não
poderão ser portugueses tantos reis que estão por vir, tantos presidentes, tantos militares, tan-
tos santos, e poetas, e ministros, e cavadores de enxada, e bispos, e navegantes...”(p. 235). O
rei ainda revela sagacidade (e talvez ausência de nobreza de caráter) ao lembrar também aos
chefes que farão o seu ataque ao meio-dia, hora da prece muçulmana, havendo, assim, maior
possibilidade de conseguir a vitória.
Também o cavaleiro Henrique, que passou à tradição como santo, no relato de Rai-
mundo Silva aparece apenas como um homem comum e sem nenhuma virtude especial, que
seduz à força uma jovem e não tem sequer uma morte heróica nas lutas do cerco. o almua-
dem, que parece ter sido apenas mencionado como muezim no relato do historiador, aparece
como figura de valor simbólico que pontua o texto e marca o fim e o início do novo relato do
cerco. Desse modo, em contraponto à versão oficial, o texto de Raimundo Silva parece ofere-
cer-se como uma outra perspectiva de leitura da História.
É interessante que, na sua primeira aparição, a personagem, Mogueime, “moço novo e
alto, barbado curto, de pelo negro” também esteja a contar uma história, a tomada de Santa-
rém pelos portugueses e não omite na sua fala os detalhes menos heróicos da conquista:
241
(...) e então entrou el-rei com os seus e, fincados os joelhos no chão, no meio da por-
ta, começou a dar graças a Deus, mas logo se levantou porque vinham os mouros
correndo a defender a entrada, porém lhes chegar a hora da morte, que os nossos
avançando de roldão os mataram, e com eles muitas mulheres e meninos, e grande
multidão de gados, e foi tanto sangue que corria pelas ruas como um rio, e por esta
guisa se ganhou Santarém... (p. 187)
Tal sinceridade do relato de Mogueime e também o fato de a apiedar-se das infelizes
mouras, violadas e mortas, aparece como justificativa para que o revisor o escolha para sua
personagem. Além disso, ainda a própria sedução que causa (assim como também parece
acontecer aos ouvintes da Idade Média) o brilho de sua narrativa.
Até que se decida a aceitar Mogueime como sua personagem, Raimundo Silva passa
por momentos de indecisão e dúvidas. No entanto, quando cria uma mulher, o revisor percebe
que a imagem dela parece apresentar-se espontaneamente na sua narrativa e isso acontece da
maneira exata como José Saramago já revelara ocorrer no processo de criação das suas própri-
as personagens, em entrevistas:
A imagem desapareceu rapidamente, outra veio, como diapositivos passando, era
mais uma vez o esteiro, mas agora havia uma mulher a lavar nele roupa, Raimundo
Silva e Mogueime sabiam quem era, tinham-lhes dito que er a manceba do tal cava-
leiro Henrique, alemão de Bona, apanhada na Galiza quando uns tantos cruzados
desembarcaram para fazer aguada, roubou-a um criado dele...(225)
Assim, é significativo que Raimundo Silva crie personagens cheios de vitalidade, ca-
pazes de enfrentar obstáculos com segurança, e cujo exemplo, talvez, seja motivo de inspira-
ção para que ele transforme sua própria realidade, embora a sua vida de início decorra no con-
formismo e na obscuridade e que o encontro amoroso e a descoberta de um caminho ve-
nham a acontecer depois do encontro com Maria Sara.
NA VERTIGEM DA ESCRITA
Se compararmos as trajetórias de escrita de Gonçalo e Raimundo Silva, veremos que
elas se fazem através de processos diferenciados, mas em alguns momentos guardam seme-
242
lhanças. De início, enquanto Gonçalo se atira à escrita sem muita reflexão e trabalha de ma-
neira intuitiva e desordenada, não deixando que a tarefa de elaborar a novela tenha influência
em sua vida, Raimundo Silva prepara-se com meticulosidade e, mesmo antes que coloque no
papel uma palavra, já reflete sobre os limites da verdade, da História e do ato de escrever.
Talvez na raiz desse comportamento estejam as origens tão diferenciadas que os auto-
res imprimem a essas personagens e não explicáveis apenas pela distância de um século. O fi-
dalgo vem de uma antiga linhagem portuguesa e seus antepassados sempre estiveram ligados
a fatos históricos, portanto Gonçalo tem consciência do seu lugar, mas parece de início relu-
tante em assumir seu papel. Raimundo Silva ocupa na sociedade de Lisboa um lugar pouco
representativo e sua própria casa é muitas vezes lembrada como um espaço de fronteira, na
antiga Lisboa de mouros e portugueses. Sua história familiar é limitada e também ele parece
de início indeciso e preso a uma rotina sem horizontes, embora por motivos diferentes dos de
Gonçalo. Por essas razões, como se dariam os cercos das suas escritas, aparentemente tão
afastadas uma da outra?
Gonçalo tem, de início, na movimentada vida junto dos amigos e nas disputas da pro-
víncia, os motivos para não se entregar totalmente à escrita, que ocupa na sua vida um lugar
secundário e o próprio mundo de seus antepassados Ramires parece-lhe distante e nebuloso.
Assim é que numa noite, depois de farta ceia e de um terrível pesadelo, inspirado entretanto
por um delicioso sonho com a África, Gonçalo volta para o trabalho de reviver o mundo dos
antigos Ramires, “(...) sentindo as Imagens e os Dizeres surgirem como bolhas duma água re-
presa que rebenta...” (p. 255). Animado, desse modo, pela pena que “desemperrara”, estabele-
ce o reinado de D. Afonso II como época da novela.
Desde o início da escrita, o comportamento do fidalgo opõe-se, na prática, às ações
dos antepassados; mas com a construção da narrativa, sem que ele mesmo se dê conta, o fidal-
go também começa a se desviar do texto que copia. Assim, depois de escrever a frase em que
243
o avô Tructesindo reitera a lealdade à palavra dada ao rei, Gonçalo percebe que tal sentença
veio de sua inspiração, pois não está no Poemeto, o que o faz exclamar com entusiasmo: “Ca-
ramba! Aqui talento!” (p. 260) Depois tranca chave) o volume do Bardo, sentindo levar
consigo toda a alma dos Ramires do século XII, “mais presos à sua palavra que um santo ao
seu voto”. Logo em seguida a esse momento de inspiração, no entanto, quebra a palavra dada
ao Casco.
A escrita da novela não é vista de modo muito sério, nem mesmo acontece de forma
contínua, pois é sempre interrompida pelos fatos corriqueiros da vida da província ou por en-
contros com amigos. Com o passar do tempo, é mesmo deixada de lado e Gonçalo Ramires
recomeça a escrever por influência de uma carta do Castanheiro, que revela esperteza ao pro-
meter espalhar cartazes por todo Portugal para anunciar, com letras coloridas, o título e o au-
tor da novela. Encorajado então por essa perspectiva de divulgação de seu nome, o fidalgo es-
creve o capítulo II, em que conta a história do amor contrariado de Violante Ramires e Lopo
de Baião e a prisão de Lourenço, filho de Tructesindo, pelo Claro-Sol.
Nos relatos que faz a seguir, Gonçalo busca ajuda nos textos de Walter Scott, do tio
Duarte e do Panorama, conseguindo trabalhar por três dias, dessa vez “(...) tão embrenhada-
mente que em torno o Mundo como que se calara e se fundira em penumbra.” (p. 305). De-
pois dessa façanha, julga-se no direito de solicitar ao Castanheiro que revele, pelos jornais
(que falavam sempre da decadência da fidalguia portuguesa), que ainda havia valorosos fidal-
gos, que, como ele, honravam a raça com façanhas intelectuais.
Mas o trabalho também serve, às vezes, como uma espécie de fuga da realidade. As-
sim, depois de praticar atos tão lamentáveis como fugir covardemente do Casco e render-se às
manobras políticas do Cavaleiro, deixando a ir à mercê dos encantos do sedutor, Gonçalo
tenta acalmar-se de tantas emoções, retomando a escrita da novela e tentando elaborar mais
cuidadosamente o texto. Não satisfeito com o início do segundo capítulo, que por ter-se inspi-
244
rado no relato do tio Duarte mostrava Tructesindo a chorar pelo filho morto, o fidalgo decide
mudar o seu relato, tirando-lhe a emoção dada pelo toque romântico de 1848 e acentuando a
dureza do caráter vingativo do pai. Mas nesse tempo decidira candidatar-se ao lugar de de-
putado e seu pensamento se volta, a todo momento, para Lisboa e um quarto do hotel Bragan-
ça, “com varanda sobre o Tejo.”
Envolvido com os amigos, com os acontecimentos políticos da província e com cartas
anônimas maldosas, Gonçalo abandona de novo sua novela, até que recebe nova carta de Cas-
tanheiro, com a ameaça de publicar outro drama em lugar d'A torre de D. Ramires, o que faz
com que ele volte ao trabalho, atando-se nele agora como um cativo ao remo”. Anima-se ao
sentir “(...) a veia borbulhando, contente em se soltar e correr. Depois da visita à crasta de
Craquede a sua imaginação concebia menos enevoadamente os seus avós Afonsinos:- e como
que os palpava enfim no seu viver e pensar.... (p. 381).
Revigorado por esse mergulho na Idade Média e no passado de sua família, Gonçalo
trabalha duro toda a semana e consegue terminar o capítulo III, em que o Bastardo mata Lou-
renço, selando com esse ato a sua sorte fatal. Orgulhoso com tal façanha e desejoso de ouvir
os elogios, o fidalgo vai a Oliveira, mas na cidade surpreende a irmã, no mirante, com o Cava-
leiro. Foge então para a torre e, para ocupar o tempo e fugir às más lembranças, retoma a es-
crita. Mas ao contar o início da vingança de Tructesindo, sente-se “mole e pagado” e a fuga de
suas idéias faz com que ele tenha de se valer, mais uma vez, do Poemeto do tio.
No entanto, fatos auspiciosos como a vitória sobre os rapazes de Nacejas, um telegra-
ma do Castanheiro, entusiasmado com a “verdadeira obra-prima” dos capítulos enviados e a
conversa com a irmã sobre o Cavaleiro animam Gonçalo a retomar o manuscrito. Nas mar-
gens da folha, faz anotações e, ao terminar o capítulo IV, escreve: “Dia cheio. Batalhei, traba-
lhei.-” (p. 431). Nos dias que se seguem, o fidalgo é louvado na província e tem sua façanha
comentada até em Lisboa. Nos fins de setembro, finalmente e de uma só vez, Gonçalo escreve
245
o capítulo final, que se inicia com a “madrugada vingadora”, narra a morte de Lopo de Baião
e pode-se testemunhar então o instante em que o autor finaliza o texto:
Quando Gonçalo, estafado e já todo o ardor bruxuleando, retocou este derradeiro tra-
ço de afronta a sineta no corredor repicava para o almoço. Enfim! Deus louvado!
Eis finda essa eterna Torre de Ramires! Quatro penosos meses de junho, trabalhara
na sombria ressurreição dos seus avós bárbaros. Com uma grossa e carregada letra,
traçou no fundo da tira Finis. E datou, com a hora que era do meio dia e quatorze
minutos. (p. 445)
Quando encerra a narrativa, entretanto, Gonçalo é assaltado pelas dúvidas sobre o que
está escrito, sobre a reconstituição que fizera, a pouca exatidão da realidade histórica, a fal-
ta de verossimilhança do episódio das sanguessugas. Volta o pensamento, então, para a opi-
nião dos leitores e sente-se confortado ao se lembrar de que o Castanheiro fizera elogios aos
primeiros capítulos e que leitores apreciam as violentas emoções, agora lhe restando espe-
rar que os Anais espalhassem, por todo Portugal, a fama de sua ilustre casa.
A opinião dos leitores aparece no final do romance, quatro anos depois, quando sua
novela é comentada pelos amigos. João Gouveia chega a citar uma passagem que fala da tar-
de, enquanto o Videirinha prefere lembrar a parte do juramento de vingança feito por Tructe-
sindo e padre Soeiro resume a opinião favorável de todos, dizendo: “Naquela Novela ima-
ginação rica, muito rica; e saber, verdade.” (p. 469). Fala-se também, casualmente, que
o fidalgo trouxera da África muitas anotações e com ajuda delas pretende escrever um novo
livro, o que sugere agora uma escrita mais pessoal; tratando-se de Gonçalo, entretanto, nunca
se pode ter a certeza do que virá.
Diferente é a trajetória de Raimundo Silva, que desde o inicio está imerso no mundo
dos livros, pelas muitas leituras que faz e pela sua própria profissão de revisor; o seu texto pa-
rece primeiro formar-se na sua imaginação, para depois escrevê-lo no papel. Outras vezes,
cenas e partes que lhe faltam parecem vir à tona de forma natural, como se estivessem ali à es-
pera de que a idéia amadurecesse: “No dia seguinte, Raimundo Silva acordou com ideias mui-
246
to claras, sobre como dispor finalmente as tropas no terreno para o assalto, incluindo certos
pormenores tácticos de sua própria lavra.” (p. 233).
Ao contrário do que ocorre com o fidalgo Gonçalo, já na leitura de textos que consulta
ou mesmo nos pensamentos que rumina, o revisor não recebe passivamente as informações,
mas sempre questiona e busca não apenas aquela versão que lhe é apresentada, mas também o
que poderia ter sido. Nisso tem o auxílio do narrador, que sempre acompanha e comenta as
ações e pensamentos da sua personagem, e até tenta justificar suas ações, como a notória sim-
patia pelos mouros, que para seu pesar haveriam de ser vencidos no final, além do fato de
condenar, no comportamento dos cristãos, a inveja e a hipocrisia.
Outra diferença entre os dois romances é a importância da figura feminina ao lado do
escritor, como presença e inspiração, praticamente inexistente n'A ilustre casa de Ramires e
especialmente marcada no romance de José Saramago. Assim Maria Sara sugere a Raimundo
Silva que escreva outra História do cerco, e parte também dela, de início, a cobrança a um
Raimundo ainda reticente, para que leve à frente o seu trabalho de criação do texto. Dessa
forma, mesmo no final de um longo telefonema romântico, quando se despedem com promes-
sa de futuros encontros e um beijo, ela diz; “Só uma pergunta mais, Diga, já começou a escre-
ver a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse
que não, adeus.” (p. 239).
Ao mesmo tempo em que o seu envolvimento com Maria Sara também tem avanços e
recuos como uma batalha, cada vez mais embrenha-se Raimundo no mundo do antigo cerco
da cidade de Lisboa. Assim, sente-se viver em dois tempos e duas estações, o julho do verão
daqueles meses trágicos e o abril acinzentado em que às vezes brilha um sol de luz endureci-
da. Por vezes, não sabe ao certo se a personagem está à espera de escutar o som de um telefo-
ne ou os ruídos das longínquas batalhas, que em certos momentos parecem confundir-se: “Pa-
rece que interferências na linha, O que se ouve são gritos dos mouros, ameaçando das
247
ameias, Tenha cuidado consigo, Não vim de tão longe para morrer diante dos muros de Lis-
boa.” (p. 246).
Quando Maria Sara vai conhecer o lugar em que vive Raimundo Silva, mostra desejo
de ver toda a casa e o espaço em que ele escreve a sua História do cerco. Nessa tarde de abril,
o quarto está na penumbra e as folhas estão numa pequena mesa com duas rosas num jarro, ao
lado da janela. Como na descrição de um quadro de pintura, pode-se ver que Maria Sara, en-
tão,
afasta um pouco a cadeira e senta-se, com a mão esquerda acende o candeeiro, a luz
cobre a mesa e espalha ao redor do quarto um halo como de um tenuíssimo e impal-
pável nevoeiro. Raimundo Silva não se mexeu, tenta analisar um difusa impressão
de que com aquele gesto Maria Sara acabou de tomar posse material de alguma coi-
sa já antes possuída pela consciência e logo pensa que por muitos anos que viva não
haverá nunca outro momento como este... (p. 263)
Maria Sara deseja ler todas as folhas, mas Raimundo pede-lhe que espere até o dia se-
guinte e depois lhe revela que se encontram no lugar onde outrora havia uma das portas que
defendiam a cidade. Mas eles estão também na rua dos Milagres de Santo Antônio e o revisor
para ela todo o antigo relato do milagre da mula, que eles entremeiam de comentários. De-
pois que ela se vai, Raimundo fica a escrever até tarde. É importante, assim, o papel de Maria
Sara na vida do revisor, tanto no plano amoroso quanto no literário, pois além de dar-lhe cora-
gem e inspiração, ela ainda se coloca como uma leitora interessada e participante de seu texto.
Não se faz porém a escrita de momentos de êxito e inspiração. Algumas vezes,
como no outro dia, Raimundo Silva escreve até o fim da tarde, mas a escrita quase não avança
e de todo o trabalho só se aproveita uma folha. Ele está temeroso pelas emoções que a novida-
de desse relacionamento traz à sua vida, pela confusão que se estabelece entre o cerco amoro-
so e o cerco da escrita e tem de se conter para resistir ao desejo de telefonar. Assim, percebe-
se que não consegue separar as inquietações da vida do texto que escreve:
(...) o cesto de papéis que fora buscar ao escritório estava cheio de folhas rasgadas,
248
um destroço, se todos os dias, a partir de agora, forem como este, grande perigo
de que a sua história não acabe, ficando os portugueses até ao fim dos tempos,diante
desta cidade de Lisboa, invicta, sem ânimo para a conquistar e sem forças para re-
nunciar a ela. (p. 291)
Vem também de Maria Sara a sugestão de que ele tente publicar o livro pela editora,
mas o revisor pensa que seu trabalho tem apenas umas poucas páginas e não vale a pena ten-
tar; finalmente convencido, impõe a condição de ser o revisor de sua própria obra, para evitar
que alguém lhe coloque um “sim” em lugar de um “não”.
“Vamos, escreve, avança, desenvolve, abrevia, comenta, remata” (p. 304). Com todas
essas palavras Raimundo Silva tenta animar-se a continuar o trabalho, agora interrompido
pela lembrança que uma noite feliz de amor com Maria Sara provoca. Falta-lhe ainda terminar
a história do cerco e decidir o destino de Ouroana e Mogueime, mas nessa tarefa o revisor tem
pela frente muita luta, pois lhe falta mostrar ainda a construção das torres que tentarão dar fim
à resistência moura e, para que termine essa parte, tem de lutar com ações e termos técnicos
de que não tem conhecimento. Trabalha horas seguidas , tão absorvido pelas palavras que se
esquece até de Maria Sara.
Depois que termina de escrever o êxito dos sitiados em repelir o ataque dos portugue-
ses aos muros de Lisboa, Raimundo olha pela janela e consegue ver a alegria dos mouros na
cena do passado, com o inesperado resultado do ataque, mas o que destruído é uma marca
simbólica do presente: Abriu a janela e olhou a cidade. Os mouros festejam a destruição da
torre. As Amoreiras, sorriu Raimundo Silva” (p. 319).
Curiosamente, ao se aproximar do final da narrativa, Raimundo Silva diz a Maria Sara
que vai abandonar a mesa do quarto (gesto simbólico que o teria ajudado a entrar no outro
tempo) e, talvez numa atitude que represente o seu regresso ao mundo do dia-a-dia, voltará ao
escritório e à cadeira de revisor. A última cena escrita é a da morte do almuadem (com a con-
seqüente ocupação moura de Lisboa) e o revisor, exausto, vai para o quarto revelar a Maria
Sara o destino de Ouroana e Mogueime, que se vão para a Galiza na companhia de um cão,
249
enquanto ficam eles e o novo livro da História do cerco de Lisboa, finalmente terminado.
“Dificílimo ato” para Saramago, “subida arquejante” para Eça de Queirós, a tarefa da
escrita. Entretanto, de uma maneira viva e extremamente significativa, seja na livraria de
Gonçalo Mendes Ramires ou no quarto de Raimundo Silva, concretiza-se simbolicamente
esse trabalho de criação de mundos e seres de papel. Por trás da mesa, diante de uma folha em
branco, a interrogar o mundo numa tentativa de sair vencedor dessa “luta mais vã” que é o
cerco às palavras, a trabalhar para tornar possível o encontro da leitura, está o autor.
250
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê me ajude a nascer.
(Clarice Lispector em Água viva, p. 43)
“SIMPLES FAZEDORES DE LIVROS?”
17
No princípio era o Autor. Onipotente, criador, proprietário, afastado, apagado, morto,
desaparecido, ignorado, ressuscitado, revivido, procurado, desejado, múltiplo, complexo... Em
variados momentos das discussões no campo da literatura, a figura do autor tem recebido to-
dos esses adjetivos e cada um deles parece sustentado por sólida argumentação. Por esse moti-
vo, quando Roland Barthes, em 1968, propõe a polêmica proposta da “morte do autor”, com
sua polêmica proposta consegue acirrar a discussão sobre a figura autoral.
Mas, afinal, “O que é um autor?” Embora no texto que tenta responder a essa questão,
Michel Foucault tenha previsto a possibilidade de existência de uma cultura onde nem mesmo
importaria saber “quem fala” (como na frase da peça de Beckett com que inicia e termina sua
análise), parece ainda distante o tempo em que a figura do autor poderia ser ignorada, portanto
é importante que se continue a estudá-lo e discuti-lo.
Na verdade, as reflexões sobre o autor nunca cessaram, apesar de sua morte anunciada.
Mais do que isso, os estudos de Barthes e Foucault tiveram o efeito paradoxal de colocar o au-
tor em evidência e provocaram mesmo o surgimento contínuo de trabalhos de releitura de
seus textos, como alguns aqui apresentados. Num desses trabalhos, L. Hix. chama a atenção
para o fato de que todos os estudos sobre o autor falham por não levarem em conta que ele
não é uma figura homogênea, mas engloba um conjunto de funções complexas. Tal afirmação
termina por realmente se comprovar em todo estudo que analise um texto literário, como se
17 A expressão, atribuída a Thomas Carlyle, é usada por Eça de Queirós no prefácio do livro Azulejo. (Queirós,
2000, v.III, p.1803.)
251
pode ver, inclusive, neste trabalho. Helena Carvalhão Buescu advoga a “recuperação' do
autor, como participante de um processo de comunicação que é a leitura e em que ele repre-
senta uma função e uma figuração. Para Helena Buescu, deve-se valorizar, nos estudos que se
fazem, o reconhecimento mútuo que autor e leitor fazem através do texto, fato que também se
comprova quando um trabalho de análise literária é realizado.
Além de discutir problemas relacionados aos estudos sobre o autor, Seán Burke aponta
as questões ligadas à intertextualidade, à influência e à interatividade do leitor como pontos de
discussão trazidos pelo avanço da tecnologia atual. Por fim, Manuel Gusmão faz uma propos-
ta de leitura que leve em conta, na criação literária, o processo de alterização que sofre o au-
tor. Gusmão destaca que o autor está antes, depois, fora e dentro do texto, mas não é o mesmo
em cada uma dessas dimensões; ausenta-se do texto de uma certa forma, mas “(...) sobra
como rastro e como resto figurais, de um trabalho, de uma passagem.” (Gusmão, 2000, p. 7).
É importante lembrar, assim, que os questionamentos de todos esses estudos teóricos
estão presentes nesta tese, que estuda dois importantes romances da Literatura Portuguesa e
tem como ponto de partida a sugestão de Manuel Gusmão, que recomenda que se busquem as
representações autorais em todas as dimensões do espaço literário. Quando se procura por
esse autor nos lugares reais ou nos mundos de papel, entretanto, o que se encontra? Se um de-
terminado tipo de autor está morto, como se poderia marcar sua presença nas páginas de um
romance?
Iniciando este trabalho pela busca da.figura do autor empírico, percebe-se que tanto
Eça de Queirós como José Saramago são exemplos de autores que participam nos meios inte-
lectuais de sua época e provocam, pelos seus posicionamentos, reações tanto de admiração
quanto de hostilidade. São escritores que se expõem e se colocam claramente, tanto em ques-
tões referentes aos problemas do mundo em que vivem, como naquelas questões que dão a ver
nos universos de sua ficção.
252
Ainda que separados pela distância de um século, tanto para Eça como para Saramago,
“criar um mundo” nunca deixa de também ser uma forma de “estar no mundoe nele marcar
sua presença. A ambos poderia ser aplicada, desse modo, a definição que Eduardo Prado Coe-
lho apresenta do papel do intelectual, no artigo “Novas configurações da função intelectual”:
Que define desde o princípio um intelectual? A coragem de dizer “não”. Isto é, tor-
nou-se uma marca do intelectual essa capacidade de negar o existente. Os intelectu-
ais que aceitam o existente tal como ele está podem, como é óbvio, colocar-se na ca-
tegoria de intelectuais. Mas a tradição precisamente aquilo que faz que os intelec-
tuais tradicionais sejam associados habitualmente à esquerda - é a de que um intelec-
tual se inscreve nesse processo da história que tem a ver com a capacidade de nega-
ção. (Coelho, 2004, p. 17)
Pelas posições independentes e originais que sempre assumem, quando escolhem re-
criar episódios da História medieval portuguesa, Eça e Saramago não se deixam levar pela-
cil solução de acompanhar apenas um caminho já antes percorrido por muitos, mas possuem a
coragem de palmilhar novas trilhas, contestar verdades estabelecidas, mostrar a História pelo
avesso (de modo mais acentuado em Saramago, o que se explicaria também pela época mais
aberta à diversidade de idéias), deixar espaços para que os leitores possam discordar de sua
interpretação e também desenvolver opiniões próprias (de modo mais acentuado em Eça, com
um narradormenos impositivo na fase final de sua obra). No caso de Eça de Queirós, espe-
cialmente, isso pode ser comprovado até mesmo pelas inúmeras e até conflitantes opiniões
que a leitura de seu romance tem provocado.
Com os narradores que criam, os dois autores deixam que as histórias sejam contadas
com um toque de ironia, que haja entrelaçamento e contestação de tramas e vozes, que os tex-
tos se criem a partir de palavras alheias,, que personagens pareçam se movimentar como se ti-
vessem vontade própria, que pistas e armadilhas pontuem o caminho do leitor. Curiosamente,
embora seu autor viva ainda no século XIX, o narrador de Eça de Queirós parece, em alguns
aspectos (como a configuração de seu relato como histórico e metaficcional), prefigurar a pré-
modernidade, enquanto o narrador de Saramago, que escreve seu romance no final do século
253
XX, lembra às vezes os contadores de histórias de antigamente.
Tais narradores levam à constatação de que nada nessas histórias é gratuito. Na análise
de A ilustre casa de Ramires e História do cerco de Lisboa, basta que se atente, por exemplo,
para o sobrenome das duas personagens, “Ramires” e “Silva”, para que se possa ver um im-
portante diferencial entre os dois autores: a personagem de Eça pertence a uma família ligada
às mais antigas tradições e à casa real portuguesa (o próprio Eça foi acusado de isolar-se junto
aos amigos aristocratas e desconhecer, mesmo em seus textos, a realidade do “povo” de sua
terra) e talvez mesmo por isso, tenha muitas hesitações ao procurar uma solução prática para
sua situação de fidalgo decadente, sem perspectivas para o futuro. O revisor de História do
cerco de Lisboa, por sua vez, representa aqueles anônimos que o romancista Saramago sem-
pre privilegia em suas narrativas (como os Mau-Tempo, Blimunda e Baltasar, Lídia, o Sr.
José, Cipriano Algor...), a quem restaria muito pouco a fazer, além da possibilidade de dizer
um “não” a um mundo que lhes nega quase tudo.
Mas pontos de aproximação entre as suas escritas, quando nas páginas dos dois ro-
mances, textos cruzam-se, opõem-se, contestam-se e o ato de escrever brota e se alimenta de
atos de leitura: na província da Torre ramírica, Videirinha escreve e canta os fados, o padre
Soeiro os documentos históricos, as irmãs Louzada escrevem mensagens anônimas, cartas
animam e encerram amores e amizades, Gonçalo lê antigos volumes e os versos do tio Duarte,
enquanto escreve a sua novela histórica. Por sua vez, na Lisboa das torres e dos telhados vis-
tos da janela, textos históricos e enciclopédicos, relatos populares e religiosos são lidos e co-
mentados, citam-se e modificam-se textos literários, Raimundo Silva acrescenta um “não” ao
livro que corrige, para depois colocar no papel o relato do cerco que a leitura o leva a compor
mentalmente.
Haveria uma vocação da escrita? Pelo que se nos dois romances, as personagens
tornam-se autores levadas por acontecimentos circunstanciais e a idéia de produzir um texto
254
parte de outras personagens: no caso de Gonçalo, um convite feito por um amigo (este, sim,
realmente convencido de sua missão de “reaportuguesar” Portugal) e pela conveniência desse
trabalho na realização de suas ambições políticas e vaidade pessoal; quanto a Raimundo Silva,
tudo teria origem num ato de transgressão e a idéia da escrita do livro parte de Maria Sara. O
que se mostra com clareza nos romances, certamente, é a escrita como um trabalho árduo, em
que muitas horas de recolhimento e esforço são contrabalançados com somente fugazes mo-
mentos de inspiração.
Depois de criar seus personagens-autores, Eça e Saramago deixam que eles percorram
uma trajetória de provas e amadurecimento, até que consigam completar seus relatos “históri-
cos” e, de certa forma, esse trabalho transforma suas vidas, com a escrita assim mostrada
como uma forma de “escrever-se”. Nesse sentido, os romances A ilustre casa de Ramires e
História do cerco de Lisboa poderiam ser vistos mesmo como romances “de formação”. Tam-
bém se poderia ligá-los à concretização da idéia de multiplicidade”, qualidade apontada
como desejável por Ítalo Calvino para os romances de nosso tempo, a qual estaria naqueles li-
vros que “(...) nascem da confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos in-
terpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão.” (Calvino, 1998, p. 131).
Numa tentativa de atar todos os pontos do trabalho, depois de passar por “seis teorias à
procura do autor” e de ler atentamente os romances em que têm vida os personagens-escrito-
res, procurando os rastros de passagem dessa famosa figura, é hora de voltar ao início e ler
Roland Barthes mais uma vez. Sabe-se que o teórico escreve, cinco anos depois de haver de-
clarado a morte do autor, outro estudo que se torna também famoso, “O prazer do
texto”(1973). Nele, Barthes reafirma o apagamento do autor como pessoa civil, biográfica,
mas mostra sua permanência como função textual, como objeto de desejo do leitor:
O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja. O texto me escolheu, através de
toda uma disposição de telas invisíveis, de chicanas seletivas: o vocabulário, as refe-
rências, a legibilidades, etc.; e, perdido no meio do texto (não atrás dele ao modo de
um deus de maquinaria) sempre o outro, o autor. Como instituição, o autor está
255
morto: sua pessoa civil, passional, biográfica, desapareceu: desapossada, não
exerce sobre sua obra a formidável paternidade que a história literária, o ensino, a
opinião tinham o encargo de estabelecer e de renovar a narrativa : mas no texto, de
uma certa maneira, eu desejo o autor: tenho necessidade de sua figura (que não é
nem sua representação nem sua projeção), tal como ele tem necessidade da minha...
(Barthes, 1996, p. 38)
O fato de reconhecer que o autor está presente no texto literário, no entanto, não dimi-
nui a complexidade de sua figura, embora aumente a importância e a problematização do ato
de leitura, por isso os inúmeros textos críticos e as acaloradas discussões que continuam a
acontecer envolvendo debates sobre a figura do autor, do leitor e da obra literária. Num desses
debates, as Conferências Tanner de Clare Hall, na Universidade de Cambridge (1990) tal
complexidade do texto e do autor literários pôde ser comprovada nas palavras do crítico e ro-
mancista Umberto Eco, que no capítulo final do livro Interpretação e Superinterpretação, ao
concluir sua réplica aos debatedores, declara:
Quando escrevo um texto teórico, procuro chegar, partindo de um amontoado desco-
nexo de experiências, a uma conclusão coerente, e proponho essa conclusão a meus
leitores. Se não concordam, reajo contestando a interpretação do leitor. Quando es-
crevo um romance, ao contrário, mesmo que parta (provavelmente) do mesmo
amontoado de experiências, percebo que não estou tentando impor uma conclusão:
represento um jogo de contradições. (...) Abstenho-me de impor uma escolha entre
elas não porque não queira escolher, mas por que a tarefa de um texto criativo é
mostrar a pluralidade contraditória de suas conclusões, deixando os leitores livres
para escolher – ou para decidir que não há escolha possível. (Eco, 2005, p. 165)
Assim, o fato de saber que no espaço do texto, antes, durante e depois, mas especial-
mente no instante da leitura, não como único dono do sentido, mas como aquele que a ver
outros mundos e sugere possibilidades de leitura, alterizado e complexo, mas concretizado
como marca e presença, está o “fazedor de livros”, o autor, não coloca um ponto final na dis-
cussão. Por essa complexidade que é a sua marca, sempre haverá perguntas sem resposta e,
certamente, sempre haverá questões e polêmicas em torno do autor. Felizmente para nós, os
seus leitores e aprendizes.
256
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