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ALAN NARDI DE SOUZA
CRIME E CASTIGO: A CRIMINALIDADE EM MARIANA NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XIX
Juiz de Fora
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CRIME E CASTIGO: A CRIMINALIDADE EM MARIANA NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XIX
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História como
requisito parcial à obtenção do título
de mestre em História por ALAN
NARDI DE SOUZA
Orientador: Prof. Dr. Angelo Alves
Carrara
Juiz de Fora
2007
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Dissertação defendida e aprovada, em ____ /____ /______ , pela banca constituída por:
__________________________________________
Presidente: Profª. Dra. Andréa Lisly Gonçalves
__________________________________________
Titular: Prof. Dr. Marco Antonio Cabral dos Santos
__________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Angelo Alves Carrara
Para Keli, Maria Eliza, Nair e Ana Cláudia,
as pessoas mais importantes da minha vida.
E à memória de meu pai João Batista.
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho não seria possível sem a ajuda daqueles que me acompanharam e
me deram força nos momentos mais difíceis passados durante o mestrado. Agradeço
primeiramente a minha mãe pelo apoio e incentivo dados nas horas de incerteza e às tantas
vezes que me ajudou na quantificação das fontes primárias. À minha querida avó Nair e a
minha irmã Ana Cláudia obrigado pelo carinho. Agradeço ao meu sogro Arnaldo e minha
sogra Rosi pela amizade. Agradeço do fundo do coração a todos os amigos que torceram por
mim ao longo desta caminhada. Às amigas Sônia e Karine meu agradecimento pela ajuda com
o abstract. A minha professora e amiga Edna minha eterna gratidão. Aos professores membros
da banca examinadora Andréa Lisly e Marco Cabral meu obrigado pelas críticas e sugestões.
Ao meu orientador Angelo Alves Carrara agradeço o apoio, a amizade e a confiança.
Agradeço também aos funcionários do Arquivo da Câmara Municipal de Mariana e da Casa
Setecentista de Mariana. À Capes agradeço a bolsa que me foi concedida. Por último e longe
de ser menos importante agradeço à minha amada esposa Keli pelo amor e companheirismo
demonstrados em todos os momentos.
Uma rua muito mal calçada nos levou ao Largo da
Cadeia, em cujo centro ainda se ergue o pelourinho dos
tempos coloniais, o primeiro que vi no Brasil. Mostra os
buracos, pelos quais os criminosos eram amarrados, e tem
no alto o globo e a coroa, a espada e a balança, assim
como os ganchos de ferro em que eram suspensos os
membros dos condenados. A cadeia, que é também a sede
do governo municipal, é um prédio esquisito, atarracado,
velho, com uma entrada complicada, curiosamente
pintada, e alguns soldados pretos estavam de guarda.
Richard Francis Burton
ABSTRACT
The present paper shows off the dynamics of criminality in Minas Gerais in the first half of
19th century. What is the number of registered prisoners by jail administration in that period?
How many of them were men? How many women? How many slaves? What were the
principal crimes committed? Where the crime prevailed, at the city or at the district? All
questions are presented along the research. The view of Historiography about the violence and
the social control, the actions of House of Chamber and Public Chain of city of Mariana, a
wide qauntification of information about jail population of referred Institution, the peculiarity
that composed the team of mineira society in its regards to Justice and the judicial structure of
period are approached questions. For that contract job was utilized the term of prison, the
warrants of loose, the term of prison habit and tonsure, the crime-process, and reports of
president and vice-president of province. From these data begotten was possible the
approximation with the environment lively in the period by transgressors of law and by
responsible in doing to fulfill it.
RESUMO
O presente trabalho destaca a dinâmica da criminalidade em Minas Gerais na primeira metade
do século XIX. Qual o número de presos registrados pela administração carcerária no
período? Quantos destes eram homens? Quantas eram as mulheres? Quantos eram escravos?
Quais eram os principais crimes cometidos? Onde o crime prevalecia, na sede ou nos
distritos? Todas são questões apresentadas ao longo da pesquisa. A visão da historiografia
sobre a violência e o controle social, as ações da Casa de Câmara e Cadeia blica da cidade
de Mariana, uma ampla quantificação das informações sobre a população carcerária da
referida instituição, as especificidades que compunham o quadro da sociedade mineira em sua
relação com a Justiça e a estrutura judiciária do período são questões abordadas. Para tal
empreitada foram utilizados os assentos de prisão, os alvarás de soltura, os autos de prisão
hábito e tonsura, os processos-crimes e os relatórios de presidente e vice-presidente de
província. A partir dos dados gerados foi possível a aproximação com o ambiente vivido no
período pelos infratores da lei e pelos responsáveis em fazer cumpri-la.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1 FRONTARIA DA CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 34
2 PLANTA DA CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 35
3 A INCIDÊNCIA DE CRIMES NO TERMO DE MARIANA 51
4 OS CRIMES MAIS COMETIDOS AO LONGO DOS ANOS 58
5 A PRISÃO POR DÍVIDAS AO LONGO DOS ANOS 61
6 OS CRIMES COMETIDOS NA CIDADE E NOS DISTRITOS 64
7 HOMENS E MULHERES PRESOS NA CADEIA PÚBLICA 68
8 A CONDIÇÃO DOS PRESOS DA CADEIA PÚBLICA 72
9 OS CRIMES COMETIDOS PELOS ESCRAVOS 75
10 A COR DA PELE DOS PRESOS DA CADEIA PÚBLICA 78
11 TEMPO EM QUE OS PRESOS PASSAVAM ENCARCERADOS 83
LISTA DE TABELAS
1 OS CRIMES COMETIDOS NO TERMO DE MARIANA 37
2 O NÚMERO DE CRIMES COMETIDOS AO LONGO DOS ANOS 86
3 A APLICAÇÃO DOS AUTOS DE PRISÃO HÁBITO E TONSURA 120
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01
1 CRIMINALIDADE E HISTORIOGRAFIA 04
2 A CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA 28
2.1 Um breve histórico 28
2.2 Os crimes e os presos: uma análise quantitativa das fontes 36
2.2.1 As estatísticas criminais 37
3 RELATOS 87
4 NAS MALHAS DA JUSTIÇA 104
4.1 As Ordenações Filipinas e a juridicização da consciência 104
4.2 A estrutura judiciária 110
CONCLUSÃO 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 125
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS 131
12
INTRODUÇÃO
A possibilidade de entender uma determinada coletividade a partir de seus crimes
nos permite um olhar mais atento sobre sua dinâmica e complexidade, além de nos possibilitar
o contato com pessoas que até pouco tempo eram deixadas de lado pela historiografia. Nosso
objetivo não é trabalhar com os excluídos, se é que esta categoria tem validade teórica;
pessoas são excluídas de diversas maneiras, de determinadas relações sociais, mas o que está
em questão aqui é o termo excluído, pois acreditamos em uma variação considerável na
condição social dos indivíduos presos entre os anos de 1800-1830 na Cadeia Pública de
Mariana. Buscou-se então a partir da documentação referente à Cadeia verificar quem eram
realmente as pessoas que infringiam a lei e, quando possível, acabavam sendo presas.
Com a nova maneira de se pensar a História, praticada pelos Annales, os campos de
trabalho e os objetos de estudo para o historiador se multiplicaram. A partir de 1960
especialmente, a história social se dedicou mais intensamente a pensar os grupos sociais e os
processos determinantes na história, relacionando-os com o estudo dos comportamentos e da
dinâmica social. Os estudos sobre os loucos, os pobres e os criminosos, por exemplo,
surgiram como a possibilidade de conhecer a fundo uma parcela da sociedade marginalizada
nos trabalhos historiográficos. A exclusão social no século XIV, os levantes religiosos na
França do século XVI, os motins de fome na Inglaterra do século XVIII, além da
criminalidade cotidiana, fizeram parte destes novos estudos. Compreender um pouco mais
esta parcela esquecida é buscar compreender a sociedade como um todo.
As fontes utilizadas nesta pesquisa foram basicamente a documentação da Cadeia
Pública de Mariana entre os anos de 1800-1830. A base dos dados foi composta pelos
assentos de prisão presentes no códice 167 do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Mariana (AHCMM). Os assentos de prisão ou termos de prisão eram documentos que traziam
informações referentes à prisão de um determinado indivíduo. Além do nome do preso eram
informações constantes a data da prisão, o sexo, a cor da pele, a localidade de origem do preso
e o crime cometido. Os autos de prisão hábito e tonsura, também presentes no códice 167 do
AHCMM, foram utilizados para complementar essa base de dados. Os autos de prisão hábito
e tonsura apresentavam as características físicas do preso e suas vestimentas no momento da
13
prisão. Os alvarás de soltura presentes nos códices 355 e 584 do AHCMM também compõem
a base de dados, na medida em que trazem além de algumas informações sobre o preso, a data
em que este foi solto. Os relatórios de Presidente e Vice-Presidente de Província foram
importantes fontes para verificarmos de que maneira a administração local via o dia a dia da
sociedade do século XIX. É válido lembrar que os relatórios abordam um período posterior ao
proposto neste estudo, se iniciando no ano de 1837, mas o diálogo com esta fonte se torna
muito interessante. Os processos-crime também foram utilizados para verificarmos as
especificidades de alguns casos. As referências documentais se encontram pormenorizadas no
final deste trabalho.
Primeiramente foi montado um banco de dados a partir das informações contidas nos
assentos de prisão do códice 167 do AHCMM. Esse banco de dados inicial era composto de
425 assentos entre os anos de 1800 e 1830. A quantidade de assentos não era a mesma da de
presos porque alguns destes presos apareciam mais de uma vez na contabilização, sendo por
falha da administração da Cadeia ou por reincidência criminal. Este banco de dados continha
o nome do preso, a localidade de origem do mesmo, o sexo, a cor da pele, o crime cometido e
a data da prisão.
Posteriormente, cruzamos estas informações com os alvarás de soltura dos códices
355 e 584 do AHCMM chegando, portanto, a data da soltura de muitos desses presos.
Infelizmente, não foi possível encontrar os alvarás de todas as pessoas liberadas da Cadeia.
De posse das datas das solturas foram acrescentadas outras duas informações naquele banco
de dados inicial: a data da soltura e o tempo em que este preso passou encarcerado.
Agregamos a este banco de dados mais uma fonte, o auto de prisão hábito e tonsura.
Apenas 45 desses assentos foram encontrados no códice 167 do AHCMM, mas enriqueceram
imensamente a base de dados na medida em que traziam informações completas sobre a
característica física dos presos e as vestimentas que estes usavam quando foram detidos.
Foram utilizados também como fonte para essa pesquisa os processos-crime
presentes no Arquivo Histórico da Casa Setecentista. Apenas dez foram descritos. Talvez, este
número reduzido parece irrelevante, mas, quando as informações destes processos-crime são
cruzadas com o restante do banco de dados diversos apontamentos de ordem qualitativa
podem ser feitos.
A obten
ção de informações oficiais e de autoridades sobre a condição das Cadeias de
Minas no século XIX foi obtida graças aos relatórios de presidente e vice-presidente de
província. Foram observadas nos relatórios quaisquer informações que se referissem às
Cadeias. A partir destas informações o banco de dados pode ser interpretado.
14
Esta pesquisa buscou utilizar o aparato da história serial relacionando os dados
obtidos a informações qualitativas. As estatísticas nos ajudam exatamente a pensar no
contexto histórico da região estudada, sem deixar os aspectos qualitativos de lado. A
particularidade das ocorrências criminais foi pensada e analisada para que a pesquisa se
tornasse enriquecedora. De acordo com Carlo Ginzburg, em uma análise serial corre-se o
risco de perder a complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade
determinada. É este risco a que se referiu Ginzburg que buscamos o correr na pesquisa.
Uma análise serial atenta permitiu muitas possibilidades. Os estudos de história da família,
com ligação estreita à demografia histórica, procuram mesclar a utilização de fontes
quantitativas e qualitativas, desde que estas últimas sejam circunscritas em um contexto
específico tornando-se representativas. O nome dos presos nos permitirá a análise das
particularidades das ocorrências. Uma metodologia de pesquisa que se baseia na história
serial, mas que está atenta ao individual é a proposta do trabalho que se segue.
No primeiro capítulo deste trabalho buscou-se apresentar a visão da historiografia a
respeito da criminalidade, da violência e do controle social no Brasil e em outros países. No
segundo capítulo foi traçado um breve panorama das ações da Casa de Câmara e Cadeia
Pública da cidade de Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX, além de uma ampla
quantificação das informações sobre a população carcerária da referida instituição. No
terceiro capítulo, intitulado Relatos, buscou-se verificar, a partir dos processos-crime, as
especificidades que compunham o quadro da sociedade mineira do século XIX em sua relação
com a Justiça. Por fim, no quarto e último capítulo é apresentada a estrutura judiciária do
período e a maneira que essa Justiça aplicava-se ao cotidiano dos mineiros.
15
CAPÍTULO 1: CRIMINALIDADE E HISTORIOGRAFIA
O estudo da criminalidade e da violência tem ganhado a cada dia maior destaque
entre os historiadores que buscam entender a dinâmica do controle social em diversos países.
Entender de que maneira o controle social ocorreu ao longo dos anos nos permite visualizar a
história do sistema prisional e a metodologia empregada no tratamento dos encarcerados. O
estudo do controle social ganha força, inicialmente, com os sociólogos. Apesar da visão e das
intenções distintas, os trabalhos realizados inicial e incisivamente na Sociologia são
necessários ao historiador que procura se aventurar nesse campo de pesquisa.
Na Sociologia, a expressão controle social parece ser definida como o conjunto dos
recursos materiais e simbólicos de que uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade
do comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e
sancionados.
1
Segundo Marcos César Alvarez, tal definição sintética, pouco contribui no
desenvolvimento das diversas questões que estariam envolvidas nessa discussão, inclusive
porque a noção parece sobrepor-se a outras, como as de poder ou de autoridade.
Émile Durkheim, pensando na imposição do poder e da autoridade, apresenta
formulações clássicas acerca do problema da ordem e da integração social. O autor se detém
igualmente em fenômenos como o crime e a pena, que dizem respeito aos mecanismos
empregados pela sociedade no momento em que alguém desobedece a normas sociais pré-
estabelecidas e ameaça a ordem social.
O crime, conforme mostramos alhures, consiste num ato que ofende certos
sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para
que, numa sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser
cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em
todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário
para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que essa condição pudesse
efetivamente ser realizada, nem por isso o crime desapareceria, ele simplesmente
mudaria de forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da
criminalidade abriria imediatamente novas. (DURKHEIM, 1999. p. 68)
2
1
ALVAREZ, Marcos César. Controle Social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo em
Perspectiva, 18 (1): 168-176, 2004. p. 169.
2
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos)
16
É necessário atentar que as reflexões de Durkheim inscreviam-se no contexto
histórico da construção da Terceira República, que buscava justamente rearticular um
consenso na sociedade francesa num período social e politicamente conturbado. Por isso, para
Durkheim, se o crime ofendia certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma
clareza particulares, a pena nada mais seria que a reação coletiva que, embora aparentemente
voltada para o criminoso, visa na realidade reforçar a solidariedade social entre os demais
membros da sociedade e, consequentemente, garantir a integração social.
3
A expressão controle social foi posteriormente desenvolvida pela Sociologia norte-
americana, sobretudo no século XX. Em autores como George Herbert Mead e Edward
Alsworth Ross, o termo passa a ser utilizado para apreender sobretudo os mecanismos de
cooperação e de coesão voluntária da sociedade norte-americana. Ao invés de pensar a ordem
social como regulada pelo Estado, os autores estavam mais interessados em encontrar na
própria sociedade as raízes da coesão social.
4
Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, a expressão controle social começa a
apontar para uma direção oposta, voltando-se para o âmbito da história, passando a ser vista
como o resultado de práticas de dominação organizadas pelo Estado ou pelas classes
dominantes. Nos anos 60, ainda seguindo a perspectiva da história, começam a surgir
pesquisas empíricas sobre prisões, asilos, hospitais, etc. Autores como Thompson e Foucault,
por exemplo, surgem, com uma perspectiva mais crítica acerca dos mecanismos de controle
social.
5
Ao longo das discussões em torno da noção de controle social desde o final do século
XIX até o final do século XX, a teoria social parece ter se limitado a reproduzir o diagnóstico
de Max Weber acerca do processo de racionalização da modernidade como desenvolvimento
incontornável da instituição prisional. No final do século XX essa noção encontrou amplo
descrédito, pois os estudos a respeito do controle social privilegiavam o papel do Estado e das
práticas formalizadas de controle social em detrimento das práticas informais, mais próximas
de grupos sociais específicos.
6
Michel Foucault foi um dos autores que mais influenciou os debates recentes em
torno da temática do controle social. Ele acreditava que as práticas de poder funcionam como
produtoras de comportamentos, de forma de saber e de formas de subjetividade. O autor
perseguia aspectos da vida social que o processo de racionalização da modernidade excluía ou
3
ALVAREZ, op. cit., p. 169.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Ibid.
17
tomava como desvios a serem normalizados. Na obra Vigiar e Punir, a analise de Foucault irá
desconstruir tanto a concepção liberal, que no nascimento da prisão moderna um avanço
em termos de humanização das práticas penais em relação às formas brutais de punição da era
pré-moderna, quanto à concepção marxista, que as transformações nas penalidades apenas
como um mero epifenômeno do modo de produção. Foucault abre espaço para interpretações
multidimensionais, ao articular as práticas de punição como tecnologias de poder complexas
às demais práticas sociais.
Segundo Foucault, as práticas disciplinares da prisão espalham-se por toda a
sociedade, desde as fábricas, até as escolas e hospitais. O suplício passa a ser entendido como
um procedimento técnico e ritual. O poder disciplinar visava o adestramento dos indivíduos,
se utilizando de um olhar hierárquico e de uma sanção normalizadora. A prisão passava a ser
então, a pena por excelência. A principal função da mesma era gerir as ilegalidades das
classes dominadas, criando um meio delinqüente fechado, separado e útil em termos políticos.
O historiador que busca discutir a questão do controle social pode e deve observar os
estudos realizados pela Sociologia, verificando seus méritos e falhas e atentando para as
lacunas deixadas por tais estudos. As novas pesquisas nessa área tendem a destacar a
multidimensionalidade que o tema exige, tornando mais abrangente o campo de análise.
Assim como estudo do controle social, o interesse contemporâneo pelo fenômeno da
violência coletiva nas sociedades pré-industriais não apenas consolidou um rico campo de
análise histórica, como acabou por notabilizar autores e trabalhos que o tomaram como seu
objeto. Ao analisarmos a produção historiográfica sobre violência e criminalidade no Brasil,
encontramos uma gama enorme de trabalhos referentes ao final do século XIX e início do
século XX, portanto, em um contexto de pós-escravidão e de modernização. O período
colonial também desperta a atenção dos pesquisadores, principalmente quando a discussão
atinge a região das Minas, no auge da mineração. Pesquisas privilegiarão a ação coletiva da
multidão nas sedições, revoltas e motins durante os séculos XVII e XVIII, sendo que outros
estudos darão conta da criminalidade interpessoal no século XVIII. Quando o recorte espaço
temporal passa a ser a Minas Gerais da primeira metade do século XIX, poucos são os
trabalhos desenvolvidos que discutem especificamente o controle social, a criminalidade e a
violência dos povos.
Pensando o s
éculo XVIII, Carla Maria Junho Anastasia acredita que uma visão
particular dos processos globais de acumulação primitiva de capital, além de levar à
superestimação do papel do comércio colonial para as economias metropolitanas, acarretando
privilégio quase que exclusivo do viés circulacionista nos estudos sobre as colônias,
18
menospreza a lógica peculiar da sociedade colonial que, muitas vezes não foi exclusivamente
determinada pela política colonizadora metropolitana.
7
Superar a prevalescência da lógica
externa, calcada na hegemonia do viés circulacionista, buscando um equilíbrio entre as
decisões da metrópole e as respostas da colônia, é condição decisiva para se estudar a
imprevisibilidade da ordem social mineira no século XVIII. (ANASTASIA, 1998. p. 11)
8
De acordo com Anastasia, apesar das reiteradas medidas para controlar os moradores
das Minas, foi impossível para a Coroa Portuguesa, nas primeiras décadas de vida da
Capitania, tornar a ordem social previsível, em razão da imprevista capacidade dos homens
poderosos da região de concentrar recursos de poder. Segundo documento utilizado por ela,
de finais do século XVII, início do XVIII, parecia ser impossível controlar a população das
Minas. Por ele, comunicava-se ao Rei que não havia meios de impedir a desobediência dos
vassalos na Capitania, em razão da dificuldade de se encontrar instrumentos eficazes para
submeter a população: Com preceitos? Não obedecem. Com força? A maior não basta. Com
indústrias? Não se descobrem eficazes, porque a qualquer supera a sua malícia.
9
Para a autora, nas áreas excluídas do circuito direto do capital mercantil e naquelas
que, embora dedicadas à extração do ouro, se caracterizavam como de fronteira, ou tiveram
um povoamento muito peculiar, ficando à margem do controle do poder público, o grau de
violência foi extremamente alto. Nelas, foi facultado aos proprietários o exercício pleno da
dominação ao nível interno, ao que se somou a ausência de mecanismos eficazes de
subordinação externa. Esta situação engendrou a consolidação de pólos de poder privado que
passaram a colocar em xeque as regras do jogo determinadas para arbitrar as relações entre
colônia e metrópole em momentos de colapso de formas acomodativas. Nas áreas
mineradoras, nas quais o controle político-administrativo se cumpriu de forma mais efetiva, o
rompimento da acomodação foi, em geral, resultado do constrangimento pela Coroa de
interesses dos poderosos e/ou dos conflitos intra-autoridades.
10
Anastasia concorda que a viabilidade da manutenção das formas acomodativas entre
os atores coloniais e os metropolitanos dependeu, entre outras coisas, da existência de um
consenso dos magistrados em torno das políticas determinadas pela Coroa para a Capitania. O
colapso destas formas acomodativas em razão de conflitos intra-autoridades gerou
movimentos nos quais se explicitava o desrespeito às regras estabelecidas para arbitrar as
7
ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do
século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998.
8
Ibid. p. 11.
9
Ibid. p. 13.
10
Ibid. p. 14.
19
relações entre Colônia e Metrópole. De acordo com Anastasia, no mundo violento das
Minas, a viabilidade da manutenção das formas acomodativas entre os atores políticos
coloniais e os metropolitanos dependeu: da preservação dos acordos firmados entre a
população e as autoridades, relativos aos limites da cobrança de impostos, à distribuição de
terras, à garantia de abastecimento dos núcleos urbanos, enfim, da preservação dos acordos
que estipulavam tanto procedimentos justos por parte da Coroa quanto obediência dos colonos
a Portugal, uma vez mantidas as regras do jogo nas áreas onde o controle metropolitano era
eficaz; da capacidade da Metrópole de resguardar a autonomia de certos setores da população
da Capitania, inseridos em áreas de povoamento peculiar ou de fronteira; e do respeito das
autoridades portuguesas pelos interesses dos poderosos e do consenso dos magistrados em
torno das políticas apresentadas pela Coroa para a Capitania.
11
O colapso da acomodação derivado do aumento de impostos, estabelecimento de
contratos de gêneros de primeira necessidade, abuso de poder pelas autoridades etc, tomou a
forma de motins reativos, marcados pela tradição, dentro das regras do jogo colonial. Segundo
Anastasia o rompimento de acordos relativos à economia moral dos habitantes da Capitania
gerou revoltas inscritas dentro das regras do jogo colonial, movimentos reativos que
buscavam retornar às formas acomodativas anteriormente estabelecidas. Estes conflitos têm
sido tradicionalmente denominados movimentos de contestação e sua ocorrência foi
delimitada temporalmente na primeira metade do século XVIII. Nestas revoltas, a consciência
do viver em colônias estaria ausente. Neste mesmo registro, os movimentos de oposição,
por sua vez, refletiriam a consciência adquirida pelos colonos em virtude, principalmente, das
influências iluministas que teriam permitido o desvelamento das estruturas metropolitanas de
dominação, baseadas nos ditames do pacto colonial. A característica mais fundamental destes
movimentos teria sido a tentativa de romper com as disposições do monopólio comercial e,
por conseqüência, com a dominação portuguesa.
12
De acordo com João Pinto Furtado, a aplicação do conceito de economia moral para
uma sociedade escravista parece questionável, visto ser esta uma realidade diversa da Europa
no Antigo Regime à qual o conceito parece se ajustar. Segundo o autor, parece existir uma
diferença sensível nas administrações governamentais das Minas no século XVIII. Em
11
Ibid. p. 23.
12
Ibid. p. 139.
20
diferentes momentos o tratamento para com os habitantes desta região conflitava, sendo, os
povos, ora tratados com respeito ora com desdém.
13
Legalidade, legitimidade e protesto popular; tributo justo, injusto ou aviltante;
métodos conflitantes de administração e cobrança de direitos da Coroa; o próprio
status da colonização no limiar do século XVIII; todos são temas que emergem a
partir das instruções de 1788. Incipientemente, elas expressam e traduzem, mais do
que uma simples iniciativa do governo, um conflito visceral que contrapôs, no
interior da Monarquia portuguesa, grupos políticos, projetos diferenciados e
personagens ávidos por conquistar algumas relevantes posições de poder. A
Monarquia portuguesa esteve, por todo o século XVIII, às voltas com a
necessidade de redefinição do formato de seu sistema colonial. (FURTADO, 2005.
p. 405)
14
Para Furtado, duas concepções básicas pareciam se rivalizar no que tange à definição
das linhas gerais da administração colonial, sempre resguardados os interesses da Coroa. Uma
delas era representada por gestores como D. Luís da Cunha, o conselheiro Antonio Rodrigues
da Costa, o duque Silva-Tarouca, o próprio Marquês de Pombal e, mais tarde, D. Rodrigo de
Souza Coutinho. Fundamentalmente, não obstante reafirmassem incontestavelmente a
autoridade da Coroa sobre seus domínios, esses gestores pareciam mais sensíveis à percepção
da relativa complementaridade de interesses entre metrópole e colônia que, em certas
relações, marcham unidas. Estes governadores acreditavam mais na contigüidade que na
ruptura, reconhecendo assim alguns direitos dos colonos, e aplicando a astúcia com a
autoridade para manter a obediência dos povos ao rei.
15
Bastante diversa é a outra linha de intervenção nos assuntos administrativos
coloniais, da qual o conde de Assumar, nas primeiras décadas do século, e Martinho de Melo
e Castro, nas últimas, seriam os maiores expoentes. Ao olhar desses administradores, os
colonos são tidos como insubmissos desleais e perigosos. O uso de todo o peso da autoridade
metropolitana, e da força, nesse contexto, é tido como recurso político desejável, uma vez que
só por meio da autoridade se anulam e minimizam possíveis conflitos de interesses.
16
De acordo com Furtado, a região das Minas tornou-se, ao longo de todo o século
XVIII um grande foco de agitação social e política. Nesse contexto, disseminavam-se idéias
que iam desde as iniciais demandas mais localizadas quanto ao afrouxamento da presença
metropolitana até a propaganda de inspiração anticolonial. Tais idéias fermentavam em meio
13
FURTADO, João Pinto. Viva o rei, viva o povo, e morra o governador: tensão política e práticas de
governo nas Minas do Setecentos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de
Governar: idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
14
Ibid. p. 405.
15
Ibid.
16
Ibid. p. 407.
21
a uma massa populacional heterogênea e atingiam em boa medida algumas parcelas dos
setores menos favorecidos, encontrando apoio também das classes mais favorecidas, mesmo
que por interesses diversos.
17
Maria Verônica Campos, ao estudar a região de Goiás no século XVIII afirma que a
ação eficiente da administração Real na nova região mineradora foi impedida devido a dois
fatores primordiais: primeiramente, o tempo despendido pela Coroa para se impor em cada
novo pólo minerador dependeu do poder do descobridor da lavra, da sua maior ou menor
força para reunir agregados, escravos e aliados, assim como da existência ou não da
concorrência entre o descobridor e outros homens poderosos; em segundo lugar, outro fator
que interferiu na ação régia foi a disputa de jurisdição sobre o novo descobrimento
patrocinada pelos governadores de capitanias limítrofes aos novos pólos de mineração.
18
Segundo a autora, os motins ocorridos na região não fugiam ao padrão das disputas
entre poderosos, inclusive o conflito em torno da memória do pioneiro no descobrimento, a
eleição de autoridades, a redação de termos de reivindicações e a assinatura de termo de
conduta. Distúrbios ainda maiores vieram com a mudança na política de tributação do ouro.
As revoltas ocorreram principalmente pelo aumento das taxas relativas à extração do ouro e à
administração, irregular para os colonos, de alguns funcionários da Coroa. Esta se valia de ter
aplicado a cobrança do quinto na região das Minas, a mais rica e populosa de todas as regiões
mineradoras, para que servisse de exemplo aos demais distritos auríferos.
Os conflitos descritos poderiam ser classificados como típicos de um contexto de
expansão de fronteira, em que potentados pioneiros na abertura de uma nova frente
de colonização, líderes de correntes povoadoras diversas, autoridades nomeadas
pela Coroa instaladas em jurisdições limítrofes, comerciantes ligados a praças
comerciais divergentes, religiosos e seculares defensores de suas províncias e
bispados entravam em disputa aberta pelo poder, pela partilha de lavras, pelas rotas
comerciais, pela arrecadação de rendas e tributos, criando grande instabilidade.
(CAMPOS, 2005. p. 354)
19
Para Campos, nas regiões de fronteira, era utilizada a dupla jurisdição, pois a
presença de autoridades régias era pequena e instável. Um motim podia representar uma
vitória temporária, mas depois, a Coroa retornava sua posição de centralização administrativa.
Todas as áreas rebeladas acabavam acatando as ordens vindas de Lisboa. Os colonos se
17
Ibid. p. 409.
18
CAMPOS, Maria Verônica. Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: idéias e práticas políticas
no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
19
Ibid. p. 354.
22
aproveitam de suas mercês, mais nunca na proporção desejada, visto que a Coroa soube dosar
muito bem suas concessões de acordo com seus interesses fiscais e administrativos, o
potencial de revolta dos governados, a importância econômica da região e os serviços
prestados pela coletividade ao rei.
A análise de Maria Verônica Campos torna-se ainda mais interessante quando ela
pensa a trajetória dos motins ocorridos em Goiás destacando a falsidade ideológica e os
papéis forjados como forma de ascensão social ou de escapar das malhas da justiça. Outro
aspecto evidente nos motins é a importância da história de famílias para a compreensão da
política no Império Português. A família era o centro da produção, do consumo e de relações
políticas, como agregadora de aliados e dependentes mais ou menos favorecidos
economicamente. Uma família numerosa antiga e rica cujos membros ocupavam posição
proeminente era essencial para uma boa colocação, fosse na corte fosse nas colônias.
20
E. P. Thompson, na obra Costumes em comum, aborda o papel da tradição nas ações
do povo frente às medidas políticas e administrativas por parte de uma liderança
governamental ou local que rompessem com a tradição popular. Segundo Thompson é
possível detectar em quase toda ação popular do culo XVIII uma noção legitimadora. Por
noção de legitimação, Thompson entende que os homens e as mulheres da multidão estavam
imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que,
em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando, esse
consenso popular era endossado por alguma autorização concedida pelas autoridades e o mais
comum era o consenso ser tão forte a ponto de passar por cima das causas do medo ou da
deferência.
21
Em A economia moral da multidão inglesa no século XVIII Thompson destaca a
reação da população frente às mudanças na venda dos grãos, mudanças que iam contra a
tradição popular. O motim da fome na Inglaterra do século XVIII era uma forma altamente
complexa de ação popular direta, disciplinada e com objetivos claros. É certamente verdade
que os motins eram provocados pelo aumento dos preços, por maus procedimentos dos
comerciantes ou pela fome, mas essas queixas operavam dentro de um consenso popular a
respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas na atividade do mercado, dos moleiros,
dos que faziam o pão etc. Isso, por sua vez, tinha como fundamento uma visão consistente
tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários
20
Ibid. p. 356.
21
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. p. 152.
23
grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, constituem a economia moral dos
pobres. O desrespeito a estes pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo
habitual para a ação direta.
22
O notável sobre essas insurreições é, primeiro, a sua disciplina,
e, segundo, o fato de mostrarem um padrão de comportamento cuja origem devemos buscar
centenas de anos antes; um padrão que se torna, e o menos, sofisticado no século XVIII;
que se repete aparentemente de forma espontânea, em diferentes partes do país e depois da
passagem de muitos anos tranqüilos. (THOMPSON, 1998. p. 176)
23
Seguindo a lógica dos motins e das manifestações populares, Luciano Raposo de
Almeida Figueiredo discute a relação dos governadores com os colonos quando o governo
tenta implementar uma maior centralização do poder. Para o autor, os colonos responderam
aos prejuízos que a centralização representava para sua autonomia através da deposição e
expulsão dos governadores e vice-reis.
24
No longo percurso das alterações de vassalos no Império, a continuidade e o
enrijecimento da política colonizadora no século XVIII, combinados com as
experiências políticas de resistência que vinham se concentrando no eixo Atlântico,
tornavam Minas Gerais uma ameaça, sobretudo diante da emergência do
imaginário político nativista. Foi nas Minas que mais se avizinhou a terceira
espécie de perigo a que estavam sujeitos todos os Estados, quando as ameaças das
invasões inimigas se juntavam às insatisfações internas, através da vontade, e da
força interna dos mesmos vassalos e naturais. (FIGUEIREDO, 2001. p. 241)
25
De acordo com Figueiredo, os vassalos do Rei assistiam diariamente a seus direitos
naturais serem desrespeitados. Tais circunstâncias produzem uma polêmica vigorosa, que
cruza os mares e os séculos, em torno da qualidade das relações que uniam soberanos e
vassalos. Ela será delimitada por discursos de toda a sorte regidos pela cultura letrada e suas
estratégias persuasórias, em que súditos na América Portuguesa afetam padecimentos aos mil:
comedimento da liberdade régia em relação ao desprendimento da conquista, despotismo dos
governos locais, dificuldade de acesso aos cargos da república, desordens na administração do
patrimônio régio, violação do bem comum e outros. Essa produção discursiva, contudo
22
Ibid. p. 152.
23
Ibid. p. 176.
24
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO,
Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império
Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. (197-254)
25
Ibid. p. 241.
24
conhecerá uma metamorfose significativa quando os apelos foram seguidos pela sublevação
dos povos, em rebeliões que explodiram com incomoda freqüência na América.
26
A ação violenta da população não se limitava a questões tributárias e administrativas.
Natalie Zemon Davis, por exemplo, discute a ação violenta da população nos levantes
religiosos do século XVI. Segundo a autora, os que participam de levantes religiosos tem seu
zelo suscitado pelo estado das relações dos homens com o sagrado. Na França, em meados do
século XVI, todas essas fontes de violência produziam muito, e às vezes é difícil distinguir
um oficial da milícia de um assassino e um soldado de um destruidor de imagens, mas não
obstante, há ocasiões em que é possível destacar para a observação uma multidão violenta
constituída com finalidades religiosas.
27
As multidões podiam defender a verdade e a purificação, mas havia um terceiro
aspecto dos levantes religiosos o político. E. P. Thompson mostrou como, no
levante contra o preço da comida no século XVIII, o comportamento das multidões
era legitimado por uma crença amplamente compartilhada de que assim agiam em
nome do governo. Se a justiça dos tempos de paz fracassava em seu dever legal de
garantir o suprimento alimentar, a multidão se encarregaria de implementar as
decisões [...]. (DAVIS, 1990. p. 136)
28
Davis comenta ainda alguns levantes referentes ao aumento dos preços dos cereais
em Lyon, citando autores que consideram os participantes dos levantes como a escória do
populacho, sem ordem, sem freio, sem líder... uma besta de muitas cabeças... uma ralé
insana, e das massas de Paris como uma multidão ignorante, recolhida de todos os países...
governada pelos apetites dos que a incitam a extremos de raiva, à espera da oportunidade de
cometer qualquer tipo de crueldade.
29
De acordo com Davis, essa visão é equivocada, e é possível ver essas multidões
sendo inspiradas por tradições políticas e morais que legitimam e até prescrevem sua
violência. Podem-se ver os integrantes de levantes urbanos não como uma massa miserável,
instável e sem raízes, mas como homens e mulheres que frequentemente têm certa posição em
sua comunidade, que podem ser artesãos ou algo melhor e que, mesmo quando pobres e não
qualificados, podem parecer respeitáveis para seus vizinhos de todos os dias. Por último, é
possível ver sua violência, o importa o quão cruel ela seja, não como casual e sem limites,
26
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Narrativas das rebeliões: linguagem política e idéias radicais na
América Portuguesa moderna. In: Revista USP, São Paulo, n° 57, março-maio de 2003. (6-27) p. 07.
27
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo: Sociedade e Cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990. (Coleção Oficinas da História).
28
Ibid. p. 136.
29
Ibid. p. 131.
25
mas dirigida a alvos definidos e escolhidos dentre um repertório de punições e formas de
destruição tradicionais.
30
Davis destaca os massacres religiosos, como o de são Bartolomeu em 1572, por
exemplo. Mas, mesmo no caso extremo da violência religiosa, as multidões não agem de
maneira impensada. Elas possuem, em certa medida, uma percepção de que o que estão
fazendo é legítimo, as ocasiões estão de algum modo relacionadas à defesa de sua causa e seu
comportamento violento possui certa estrutura. Mas os ritos de violência não são, em nenhum
sentido absoluto, um direito à violência. Segundo a autora eles apenas nos relembram que, se
tentarmos ampliar a segurança e a confiança no interior de uma comunidade, se tentarmos
garantir que a violência ali gerada tomará formas menos destrutivas e cruéis, então devemos
pensar menos a respeito de como pacificar os desviantes e mais em como mudar os valores
centrais.
31
A obra de George Rudé parece ser referência para todos os pesquisadores que
discutem os motins, as revoltas e as manifestações da multidão. Sua obra clássica A Multidão
na História
32
foi publicada pela primeira vez no ano de 1964 e ainda hoje permeia os
trabalhos que discutem a ação coletiva.
O marco temporal de Rudé, nesta obra, são os anos de 1730-1848. Segundo ele, neste
período já é possível sentir os efeitos das revoluções política e industrial na transformação das
velhas instituições, cortando as raízes da velha sociedade, modificando velhos hábitos e
modos de pensar, além da imposição de novas técnicas. Rudé menciona algumas inovações,
como as fábricas urbanas, as ferrovias, os sindicatos estáveis, um movimento trabalhista, as
idéias socialistas, a nova Lei dos Pobres e uma força policial na Inglaterra, que eram indícios
de que uma nova era havia surgido.
33
Rudé, ao discutir a composição da multidão nos motins e revoltas, se opõe a opinião
de alguns autores que acreditam que a multidão reduz seus elementos sadios e racionais a um
nível comum de animalidade e que ela tende a atrair tipos criminosos, degenerados, e pessoas
de instintos destrutivos. Segundo ele dificilmente se poderia negar que as condições de
comoção social nas quais os motins ocorreram proporcionaram oportunidades admiráveis para
os ladrões e os saqueadores se juntarem à agitação e, sob o disfarce do motim ou revolução,
fazer uma boa colheita. Mas na França, por exemplo, os que participaram dos motins e
30
Ibid.
31
Ibid. p. 156.
32
RUDÉ, George F.E. A Multidão na História: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra 1730-
1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
33
Ibid. p. 03.
26
distúrbios pré-industriais foram, nas cidades, predominantemente os mestres de pequenas
oficinas, os lojistas, aprendizes, artesãos independentes, jornaleiros, trabalhadores, os pobres
da cidade; e, no campo, os vinicultores, pequenos camponeses proprietários, trabalhadores
sem terras e artesãos rurais.
34
A ação coletiva da multidão, como vimos foi amplamente discutida por diversos
autores em diversas localidades do mundo. Rudé, Thompson e Davis são alguns dos grandes
nomes que têm como objeto de estudo a ação popular coletiva. Estes autores, por sua vez,
despertaram nos pesquisadores brasileiros o interesse em discutir o tema para o Brasil. No
caso específico de Minas Gerais, Carla Anastasia se dedica ao estudo dos motins ocorridos ao
longo do século XVIII. Entender de que maneira estas manifestações se desenvolveram é
deveras importante para conhecermos a história de Minas Gerais. Sabemos ainda, que muito
diferente desta violência, a dos motins, outra violência é fonte de pesquisa para os
pesquisadores, a violência manifestada na criminalidade interpessoal cotidiana, representada
pelos homicídios, furtos e agressões sicas. Mas a criminalidade se manifesta ainda, mesmo
que de maneira não violenta, nos arrombamentos, na falsificação de moeda, nas dívidas, se
tornado assim, um campo rico de estudo para os historiadores.
Segundo Caio Prado Júnior era possível perceber um vácuo imenso entre os
extremos da escala social na Colônia: os senhores e os escravos. Para ele os primeiros eram os
dirigentes da colonização nos seus vários setores e os outros a massa trabalhadora. Entre estas
duas categorias, nitidamente definidas para Caio Prado, os senhores e os escravos, comprimia-
se e aumentava com o tempo o número dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados,
indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma.
35
Finalmente a última parte, a mais degradada, incômoda e nociva é a dos
desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que,
apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime. É a casta numerosa
dos vadios que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma caracterizada
por sua ociosidade e turbulência, que se torna uma das preocupações constantes das
autoridades e o leitmotiv de seus relatórios; [...]. (PRADO JR, 1983. p. 283)
36
De acordo com Caio Prado, então, esta camada intermediária, composta por
desclassificados, inúteis e inadaptados enveredariam pelo mundo do crime como meio de
sobrevivência. Mas onde se encaixam nesta análise, por exemplo, os pequenos produtores
34
Ibid. p. 221.
35
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
(Intérpretes do Brasil)
36
Ibid. p. 283.
27
rurais? Parece-nos assim, que o crime está relacionado à pobreza e que esta é seu principal
motivador. Hoje esta discussão parece estar esgotada e com certeza sabemos que crimes são
cometidos tanto por pobres quanto por pessoas mais abastadas, mas em que proporção?
Parece ser senso comum na historiografia relacionar o crime à pobreza, mas cabe aqui a
pergunta: o que é considerado crime neste período? O que levaria, por exemplo, um juiz a ir
preso?
Laura de Mello e Souza, assim como Caio Prado, acredita que a extrema pobreza foi
uma das principais marcas da camada existente entre os senhores e os escravos, a qual, em
1799, o Bispo de Mariana se referia da seguinte forma: famílias pobres impossibilitados (sic)
de homens pardos, pretos libertos, nascidos na miséria; criados na indigência, e sem a menor
subsistência [...].
37
De acordo com Souza, a violência latente no seio da camada se desdobrou numa
variedade enorme de infrações, das mais insignificantes às mais graves. Segundo a autora,
eram à noite que as infrações aconteciam e procurando evitá-las os vereadores e as
autoridades judiciárias mandaram fazer um sino e o colocaram na casa de Câmara, devendo
este tocar das oito para as nove horas da noite, para depois de tocado saírem rondas pelas
ruas da vila a prender a todas as pessoas que cometeram semelhantes insultos e delitos, e a
perturbarem a paz e sossego público, que se castigarão pelas justiças de El-Rei Nosso
Senhor....
38
Brigas, ferimentos, querelas, conflitos familiares, ocultação de bens, vadiagem,
incêndios, arrombamentos, deserção, concubinato, prostituição, feitiçaria, roubos, furtos,
mortes e o extravio eram os crimes mais presentes em Minas Gerais durante o século XVIII,
segundo a autora.
Outro senso comum na historiografia parece ser o alto grau de violência presente
no cotidiano da Minas. Mas qual é a proporção dos crimes cometidos em relação ao número
total da população? Talvez seja impossível contabilizar o número de delitos, visto que a
administração colonial não alcançava o território como um todo, e a maioria dos crimes eram
ocultados. Como determinar se uma sociedade é violenta ou pacífica onde problemas como a
falta de oficiais e a extensão do território eram obstáculos?
Em texto intitulado Tens
ões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII,
Laura de Mello e Souza aborda a questão dos vadios. Segundo a autora, os vadios eram um
37
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1986. p. 144.
38
Ibid. p. 162.
28
grupo infrator caracterizado, antes de tudo, por sua forma de vida. Era o fato de não fazerem
nada, ou de nada fazerem de forma sistemática, que os tornava suspeitos ante a parte bem
organizada da sociedade. Por não terem família, domicílio certo nem vínculo empregatício
constituíam um grupo fluido e indistinto, difícil de controlar e até mesmo de enquadrar.
De acordo com uma instrução
devem os comandantes fazer que de noite não andem vadios fazendo distúrbios
pelos arraiais dos seus distritos, porém não devem impedir que andem de noite
aquelas pessoas que vão a negócios precisos, nem os criados ou escravos, que vão a
alguma parte, por ordem de seus amos e senhores, nem aquelas pessoas que andam
viajando, por que da prisão ou retenção destas se pode seguir gravíssimo prejuízo
na demora das contas, e da entrega, e encomendas, que levarem ou recados que
forem mandados. (SOUZA, 1999. p. 100)
39
Segundo Souza, tais cautelas sugerem que muitas vezes era difícil, numa sociedade
de sedimentação recente e de alto grau de mestiçagem, separar o infrator do bom súdito.
Como diferenciar os criados e escravos dos bandidos e facinorosos? Sugere ainda que, à noite,
tudo podia acontecer sendo este o momento propício ao crime, na forma real ou imaginária.
Quem andava de noite, portanto, era suspeito em potencial, e podia ser confundido com os
vadios e facinorosos.
40
Walter Fraga Filho, pensando a Bahia do século XIX, acredita que o vadio podia ser
o desempregado ou o aquele que mantinha vínculo inconstante com o mercado de trabalho,
podia ser o agregado da grande propriedade rural expulso da terra ou o citadino que se
disfarçava de mendigo para pedir esmola, sobrevivendo assim, de trabalhos esporádicos, da
mendicância, do roubo e, no caso das mulheres, da prostituição.
41
A vadiagem recobria, portanto, a itinerância e a ociosidade, comportamentos
considerados ameaçadores à estabilidade social. Mesmo assim a percepção do que
era vadio ou ocioso era muito fluida. A palavra vadiagem algumas vezes podia
recortar categorias muito restritas de ociosos, o submundo de delinqüentes que
viviam à margem do trabalho honesto, recorrendo a meios ilícitos de
sobrevivência, tais como jogo e roubo. Podia remeter também à conduta
transgressiva do jornaleiro que interrompia seus afazeres em proveito das
vadiações e divertimentos de rua. Na sua acepção mais ampla, o termo vadio
remetia às camadas livres pobres tradicionalmente vistas como inclinadas para
ociosidade e vadiagem. (FRAGA FILHO, 1996, p. 76)
42
39
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999. p. 100.
40
Ibid.
41
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador:
EDUFBA, 1996.
42
Ibid. p. 76.
29
Como se dava no início do século XIX a relação da vadiagem com a prática de
crimes? Quem eram verdadeiramente as pessoas que cometiam crimes e qual era sua condição
econômica? Quem era mandado para a Cadeia? Qual era a cor da pele destes criminosos?
Será que a vadiagem foi um problema para a cidade de Mariana no século XIX, sendo estes
vadios os grandes responsáveis pela prática de crimes?
Marco Antonio Silveira, seguindo a linha de pensamento proposta por Caio Prado
Júnior e Laura de Mello e Souza, nos informa que a vida cotidiana nas Minas esteve longe de
se caracterizar por um clima de humanidade e confiança, pois os inúmeros conflitos diários
multiplicavam-se em agressões e assassinatos; casas eram com freqüência violadas;
armavam-se tocaias por vingança; mulheres sofriam constantes surras de seus parceiros;
soldados abusavam livremente de sua autoridade. Segundo o autor, o conjunto destes crimes,
em sua maioria cometidos nas perigosíssimas noites do mundo mineiro, desvendava uma
realidade em que a violência tornava-se uma linguagem fundamental. Um certo ar de
impunidade parecia vigorar, dada a facilidade com que alguns crimes eram cometidos.
43
Para Silveira está claro que tal contexto de insegurança associava-se à pobreza e a
uma estrutura econômica de desigualdades. Como não podia deixar de ser em uma sociedade
em que a riqueza se concentrava e a dívida era generalizada, os embates entre devedores e
credores alimentavam boa parte das transgressões. Silveira destaca ainda outro problema da
violência mineira, que foi o abuso dos homens de patente, talvez por um possível reflexo da
crescente militarização da capitania, a despeito dos baixos soldos e descuido das tropas.
44
Segundo o autor, o contexto do aluvionismo social originava demandas
intermináveis que desgastavam fortunas e canalizavam cabedais para as mãos de
burocratas, gerava ainda um movimento de marginalização de grande parte dos habitantes que
também buscavam a criminalidade como meio de sobrevivência. Devemos considerar ainda,
segundo Silveira, que por detrás dos inúmeros conflitos e mortes cotidianas, assentava-se um
forte desejo de vingança. A violência no Brasil desempenhava, sem dúvida, importante papel
disciplinador e purificador da população escrava, todavia, em um enfoque mais amplo, ela se
proliferava, notadamente no universo urbano em incontáveis confrontos vicinais ancorados
no movimento dinâmico de ruptura e preservação da honra.
45
Qual o número de crimes cometidos em Mariana no início do século XIX? Voltemos
à questão dos números. O que podemos considerar um alto índice de violência para a região
43
SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-
1808). São Paulo: Hucitec, 1997. p. 143.
44
Ibid. p. 145.
45
Ibid. p. 148.
30
das Minas? É possível dizer com certeza que a região era muito violenta e que a sociedade
convivia diariamente com ela? Afinal, o sistema escravista era violento por si só. O que
podemos considerar como inúmeros delitos? Os homens de patente abusam da violência, mas
qual a origem social destes oficiais?
Kalina Vanderlei Silva afirma, sobre a Capitania de Pernambuco, que a tropa de
linha do exército regular é o retrato do que de pior poderia haver entre os homens livres na
Colônia. Isso quanto aos soldados, pois os postos de oficiais eram revestidos de muito
prestígio, e disputados pelos fidalgos.
46
De acordo com a autora, apesar de a Coroa Portuguesa utilizar tropas pagas desde
seu início enquanto reino independente relutava em adotar a disciplina dos corpos e vontades
como ferramentas de controle sobre seus soldados e sua sociedade. Optava por uma política
de concessão de tarefas militares a particulares, na forma da constituição de tropas auxiliares,
gratuitas, que sustentavam os sistemas defensivos metropolitanos e imperiais melhor do que
as tropas burocráticas. É nesse contexto que se insere o organismo militar montado na zona
açucareira da América portuguesa, baseado principalmente nas Milícias e Ordenanças,
instituições que enquadram toda a população livre urbana na estrutura militar oficializada pela
Coroa. Oficializada, ainda que não sustentada.
Segundo a autora, a tropa burocrática, que surge como um instrumento de
centralização de poder régio na zona de açúcar assolada pelos poderes particulares dos
senhores de engenho, é uma tropa mal gerenciada e desestruturada e que assume um caráter
de ferramenta de controle social sobre os centros urbanos, na medida em que assimila os
párias e marginais dessas povoações açucareiras, controlando assim os danos que esses
poderiam causar à sociedade, ao mesmo tempo em que os aproveita como peças do sistema de
defesa do Estado. O controle que a Coroa portuguesa exerce sobre essas tropas burocráticas e
marginais passa não tanto pela disciplinarização dos corpos como pela subordinação dos
espíritos. Uma subordinação que a fome, a miséria e certa equiparação social aos escravos se
encarregam de garantir, segundo Kalina.
A política de manutenção das tropas tem como conseqüência social mais explícita a
miséria em que deixa esses homens. Miséria percebida pelos contemporâneos,
como Tollenare: os militares são infelizes; o soldo é diminuto e quase todos são
casados; o preconceito não permite que procurem manter a sua existência por meio
de quaisquer trabalhos estranhos à sua profissão. E Koster: os quartéis são muito
46
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: histórias de
homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 1999.
31
negligenciados. A tropa regular consiste em dois regimentos de infantaria, que
formarão juntos uns 2500 homens, mas seu efetivo raramente chega a 600, apenas
suficiente para fazer o serviço obrigatório em Recife, Olinda e fortalezas. Paga é
menor de 2 ¾ d por dia, uma porção de farinha de mandioca, semanalmente.
(SILVA, 1999, p.183)
47
Na região das Minas a situação não era muito diferente e podemos entender o abuso
por parte destes homens, que em nome da lei abusavam de um pequeno poder. A origem
destes oficiais, a ineficiência no treinamento destes soldados e a falta de pagamento dos
soldos, talvez despertasse nestes homens o abuso de poder.
Carla Maria Junho Anastasia, em A Geografia do Crime, trata das áreas da Capitania
de Minas Gerais onde a violência, segundo a autora, se fazia mais freqüente, ou seja, de
lugares onde se generalizaram os atos violentos previsíveis de negros, forros e mulatos e
aqueles imprevistos perpetrados por respeitados vassalos e autoridades régias. De acordo com
a autora, esses atos violentos combinaram previsibilidade e imprevisibilidade, tornando mais
difícil a normatização dessas áreas. Anastasia parte do pressuposto de que nessas áreas onde a
violência predominou foi possível a constituição de territórios de mando, onde se disseminou
o mandonismo bandoleiro, lugares nos quais a tirania era exercida fundamentalmente pela
violência armada e pela intimidação física. A autonomização da burocracia que se expressou,
fundamentalmente, nos conflitos de jurisdição entre as autoridades, na iniqüidade e/ou
omissão da ação pública alimentava, nessas áreas, a noção da legitimidade da violência.
48
Segundo Anastasia, em geral, numa capitania razoavelmente urbanizada, como foi a
de Minas Gerais, foram os sertões, as matas gerais, as serras, as zonas proibidas, os lugares
onde a autonomização da burocracia gerou um grau mais baixo de institucionalização política.
Salteadores, quilombolas, vadios, contrabandistas e monstros das mais variadas estirpes
povoavam essas áreas. As autoridades responsáveis pela previsibilidade da ordem nas áreas
mineradoras acreditavam que tumultos, desordens, motins, descaminhos, contrabando,
assassinatos e roubos eram resultados da qualidade dos povos que haviam se dirigido
para as Minas.
49
Norbert Elias discute a ação violenta de determinada população quando esta se
encontra distante de um centro regulador de poder e o respeito às normas pré-estabelecidas
quando este centro está próximo. Para o autor, a moderação das emoções espontâneas, o
controle dos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento presente, levando
47
Ibid. p. 183.
48
ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Geografia do Crime: violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005. p. 22.
49
Ibid. p. 22.
32
em conta o passado e o futuro e o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito são
todos distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que necessariamente ocorre
com a monopolização da violência física e a extensão das cadeias da ação e interdependência
social. Ocorre segundo Elias, uma mudança civilizadora do comportamento.
50
As sociedades sem um monopólio estável da força são sempre aquelas em que a
divisão de funções é relativamente pequena, e relativamente curtas as cadeias de
ações que ligam os indivíduos entre si. Reciprocamente, as sociedades com
monopólios mais estáveis da força, que sempre começam encarnadas numa grande
corte de príncipes ou reis, são aquelas em que a divisão de funções está mais ou
menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os indivíduos são mais
longas e maior a dependência funcional entre as pessoas. Nelas o individuo é
protegido principalmente contra ataques súbitos, contra irrupção da violência física
em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer
impulso emocional para atacar fisicamente outra pessoa. (ELIAS, 1993, p. 198)
51
Graças à formação de monopólios de força, a ameaça que um homem representa para
outro fica sujeita a controle mais rigoroso e tornou-se, numa sociedade dita civilizada, mais
calculável. A vida diária torna-se mais livre de reviravoltas súbitas da sorte e a violência física
é confinada aos quartéis, de onde irrompe apenas em casos extremos, em tempos de guerra ou
sublevação, penetrando na vida do indivíduo. Como monopólio de certos grupos de
especialistas, ela é habitualmente excluída da vida dos demais.
52
Seguindo o raciocínio de Elias podemos deduzir que regiões, onde o processo
civilizador era menor, estavam mais sujeitas a atos intempestivos de violência. A falta de
fiscalização possibilitava às pessoas uma maior liberdade, liberdade que poderia incluir a
prática da criminalidade, por exemplo. Anastasia discute esta questão para o território mineiro
e entende que a falta de fiscalização efetiva por parte da administração colonial permitia a
constituição de territórios de mando, a presença de um mandonismo bandoleiro, além da
autonomização da burocracia. Regiões afastadas do centro administrativo estariam sujeitas
ainda, segundo a autora, a explosões constantes de violência.
Questões importantes surgem desta análise. Pensar, por exemplo, o abuso de poder
por parte de proprietários rurais e a autonomização da burocracia para os sertões mineiros
nos faz refletir sobre a situação descrita para regiões centrais como a cidade de Mariana. É
difícil quantificar o crime e devemos entender que em regiões mais distantes esta tarefa se
tornava mais difícil ainda, senão impossível. Mas nas regiões centrais esta quantificação era
50
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador volume 2: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1993.
51
Ibid. p. 198.
52
Ibid. p. 200.
33
possível? Fala-se muito em uma sociedade mineira violenta, mas com base em quais dados
podemos fazer esta afirmação? Minas era tão violenta assim?
Ivan de Andrade Vellasco, ao fazer um balanço da produção historiográfica brasileira
acerca do tema da criminalidade, ressalta que as questões suscitadas por tais estudos prendem-
se, com certa insistência, à função repressiva dos aparelhos coativos, notadamente o aparelho
policial, e a caracterização da criminalidade como resistência às formas de repressão e
dominação. O controle da violência privada, segundo Vellasco, é exclusivamente enfocado
enquanto função do domínio da população e suas atividades, e a criminalidade mantém uma
relação metonímica com a resistência aos poderes do Estado. Estabelece-se assim, para o
autor, uma lógica cuja soma é sempre zero, tornando-se extremamente difícil pensar a
contenção da criminalidade, senão na sua negatividade.
53
Silvia Hunold Lara nos lembra ainda que a defesa militar e a dominação política
eram os dois mecanismos que asseguravam a exclusividade portuguesa sobre a Colônia,
estando estas, voltadas para a submissão dos colonos. Visando a manutenção da ordem e a
preservação da dominação política a Coroa intensificava o controle sobre a população. Para
controlar os moradores, na segunda metade do século XVIII aumentaram as disposições legais
contra vadios, ciganos e pessoas que escondiam o rosto, aumentaram também os instrumentos
de controle das populações, as correições dos ouvidores, as devassas janeirinhas e o
policiamento nas zonas urbanas.
54
Segundo a autora, existia uma preocupação constante da
Metrópole na manutenção da ordem, sendo responsabilidade desta o controle social e do
senhor de escravos o controle de seu plantel. Os escravos deviam ser preservados de qualquer
contestação e o castigo teria papel fundamental neste sentido.
55
Cabia, portanto à Metrópole a manutenção do controle social, mas o medo de uma
revolta escrava preocupava, e muito. Apesar do controle do plantel ser de responsabilidade do
senhor de escravos a administração colonial colaborava sobremaneira com estes senhores no
que se refere ao controle dos escravos. A Prisão, no século XVIII, tinha fundamental
importância no controle destes escravos, pois acolhia-os quando seus senhores se
53
VELLASCO, Ivan de Andrade. As Seduções da Ordem: violência, criminalidade e administração da justiça:
Minas Gerais século 19. São Paulo: EDUSC, 2004. p. 30.
54
O quadrilheiro era responsável pela chefia de um conjunto de vizinhos. Cabia a ele controlar uma área da
cidade com o fim de evitar delitos como alcouces (prostituição), tabulagem (casas de jogo ou jogos com
prêmios), furtos, barreguices (concubinatos), alcoviteiros (que têm casa de alcouce) e feiticeiros, além de
acalmar desordens e insultos, e auxiliar na prisão e castigos dos culpados. As devassas janeirinhas eram
devassas anuais, feitas no mês de janeiro, que inquiriam os membros das Câmaras sobre o funcionamento da
administração e da Justiça.
55
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores da capitania do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
34
ausentavam e prendia, quando possível, os fugidos.
56
Entrando na questão do cárcere
propriamente dito pensamos quem eram as pessoas presas na Colônia. Quem ficava
encarcerado no século XIX?
Como afirma João Pinto Furtado, os governantes das Minas adotavam medidas
distintas em relação aos colonos. Enquanto alguns governantes, como D. Luís da Cunha,
Antonio Rodrigues da Costa, Silva-Tarouca, o Marquês de Pombal e D. Rodrigo de Souza
Coutinho, pareciam complacentes com os colonos, entendendo a necessidade de um bom
relacionamento com os mesmos, outros, como o Conde de Assumar e Martinho de Melo e
Castro, acreditavam que a manutenção da ordem só se faria com o uso da força, pois o povo
que habitava a região das Minas era indolente. As medidas administrativas, e incluem-se aqui,
as questões relativas ao cárcere, tomadas pelos primeiros governantes citados se aproximam
das proposições de Antonio Manuel Hespanha para os séculos XVI e XVII português,
enquanto a adoção de medidas mais rígidas por parte dos governadores tende a se aproximar
da caracterização proposta por Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro para fins
do século XVII e todo o XVIII. No século XIX a preocupação com as prisões e com o
controle social aumenta e discussões dos governantes sobre o assunto passam a ser constantes.
Antonio Manuel Hespanha afirma, pensando o século XVI português, afirma que no
plano político, o poder real se confronta com uma pluralidade de poderes periféricos, frente
aos quais se assume, sobretudo, como árbitro, em nome de uma hegemonia apenas simbólica.
Também no domínio da punição, a estratégia da coroa o está voltada para uma intervenção
punitiva cotidiana e efetiva. Em termos de normação e punição efetiva, o direito penal da
Coroa se caracteriza por uma ausência e os dispositivos de efetivação da ordem penal, tal
como vinha na lei, careciam de eficiência.
57
O autor nos mostra que essa ineficiência se dava devido a uma rie de fatores, entre
eles, uma multiplicidade de jurisdições e problemas de ordem processual, como livramentos e
condicionalismos. As únicas penas facilmente executáveis eram as de aplicação momentânea,
como os açoites, a amputação de membro ou a morte natural. Mas, mesmo estas parecem ter
sido, por razões diferentes, raramente aplicadas e a pena de morte natural era, em termos
56
As particularidades da sociedade de Minas Gerais, nesse período, ofereciam à Cadeia os substratos necessários
para a sua sustentação. Em troca, a mesma Cadeia contribuía para a manutenção da ordem escravocrata e da
ordem social como um todo. Vejamos o que diz um alvará de soltura do ano de 1732: [...] Mando ao
Carcereiro da cadea desta villa ou quem suas vezes fizer que visto este alvará hindo por mim aignado em seu
comprimento solte da prizão Paulo angolla escravo de Manuel Pereira por ser apanhado de noite fora de
hora nal estando por al prezo nem embargado cumpram no al fasão dado e pasado nesta dita villa aos sinco
dias de Outubro de mil sete centos e trinta e dous annos [...].
57
HESPANHA, António Manuel. A Punição e a Graça. In: MATTOSO, José. História de Portugal vol. 4 (O
Antigo Regime 1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1992. p. 239.
35
estatísticos, muito pouco aplicada durante o Antigo Regime. Ocorre, segundo Hespanha, uma
não correspondência entre o que estava estabelecido na lei e os estilos dos tribunais.
58
Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação casuística das penas, o
rigor das leis fora sendo temperado com estilos de punir cada vez mais brandos. Hespanha nos
informa ainda, que mais frequentemente do que punir devia o rei ignorar e perdoar. Quanto ao
perdão se observa alguns requisitos importantes, como o caráter de regalia, uma justa causa
para a concessão e a precedência de perdão.
59
Se referindo aos encarcerados, Hespanha destaca que do rol de réus presos à ordem
da Casa de Suplicação de Lisboa, quase metade daqueles de que se sabe o destino saem
soltos, por perdão, fiança ou eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos outros,
corria livramento por meios ordinários. Se ao ameaçar punir o rei se afirmava como
justiceiro, ao perdoar ele se caracterizava como pastor e como pai. Por essa dialética do
terror e da clemência, o rei constituía-se, ao mesmo tempo, em senhor da Justiça e mediador
da Graça. Tal como Deus, ele desdobrava-se na figura do Pai justiceiro e do Filho doce e
amável. (HESPANHA, 1992. p. 248)
60
Há ainda, de acordo com o autor, a criação de um habitus de obediência. Antes e
depois da prática do crime, nunca se quebram os com o Poder. Em comunidades em que os
meios duros de exercício do Poder eram escassos, modelos que garantissem ao máximo as
condições de um exercício consentido do poder eram fortemente funcionais. O resultado era
de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a aplicação de castigos, sendo a
prisão raramente utilizada como pena, dada às dificuldades logísticas que envolvia (cárceres,
transporte e alimentação dos presos).
61
Para Hespanha, tal como o Supremo Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios naturais da
sociedade o encargo de instauração da ordem social. Hespanha menciona a consciência da
multidimensionalidade das tecnologias do poder. Este aproveitamento sábio das formas doces
de condicionamento, como substitutos do uso de formas violentas de disciplina. No fundo,
isto não era senão o sintoma, no plano político, das intenções do poder da coroa em relação
aos equilíbrios sociais estabelecidos. Longe de querer alterar, a coroa queria arbitrá-los,
assumindo-se não como centro único do Poder, mas como pólo coordenador de uma
sociedade politicamente policentrada.
62
58
Ibid.
59
Ibid. p. 247.
60
Ibid. p. 248.
61
Ibid. p. 249.
62
Ibid. p. 250.
36
A centralização do poder dos déspotas iluministas trouxe conseqüências diretas na
política penal, visto que o conceito de punição muda, tendo agora o objetivo de controlar
comportamentos, dirigir, instituir uma ordem social e castigar as violações a esta ordem. O
crime passa a ser nitidamente distinguido do pecado ou do vício. Do ponto de vista da
implantação efetiva da ordem penal real, esta restrição do seu campo de intervenção evitava a
dispersão de esforços dos aparelhos de justiça na punição de fatos que, para além de
dificilmente averiguáveis, eram irrelevantes na perspectiva da ordem social.
63
Hespanha ainda menciona que a disciplina pode também ser conseguida por outros
meios, como a propaganda, a educação e a ridicularização, e o só através da punição. Uma
das formas mais gritantes da desproporção entre delito e a pena era a das penas
excessivamente rigorosas e, sobretudo, das penas cruéis, portanto proscritas, pois, para além
de inúteis, corroíam a legitimidade da punição e do Poder. A estratégia de vigilância
sistemática da sociedade e de exercício de uma disciplina contínua, embora em doses leves e
discretas, veio substituir a estratégia de punição rara, mas espetacular. Surgem também novos
problemas, como os da política penal e a nova delinqüência dos crimes de polícia.
64
Segundo Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, a Coroa, no culo
XVIII adotou medidas mais rígidas que visavam a melhor fiscalização do território
ultramarino. Dentro de uma Monarquia pluricontinental caracterizada pela comunicação
permanente e pela negociação com as elites da periferia imperial, a tendência foi no sentido
de uma crescente diferenciação das diversas esferas institucionais e não na direção da sua
tendenciosa confusão. Para os autores, a Coroa utilizava-se das diferentes instituições para
obter o máximo de informação sobre a periferia. As novas unidades políticas integraram
anteriores administrações autônomas e reduziram um pouco a pulverização política que
caracterizava até então os territórios ultramarinos.
65
A relevância da cultura de remuneração dos serviços como dispositivo central da
monarquia para a captação e a garantia de continuidade da produção de serviços e, em
particular dos serviços militares dos seus súditos, era considerável. A Coroa se utilizava
destes dispositivos para exercer seus interesses no vasto território que possuía. A nomeação
de governadores, por exemplo, funcionava como uma remuneração de servos. No entanto, a
crescente integração política dos impérios hispânicos e a progressiva uniformização
63
Ibid. p. 253.
64
Ibid. p. 254.
65
MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. e CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e Capitães-Mores do Império
Atlântico Português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CARDIM, Pedro e
CUNHA, Mafalda Soares da. Optima Pars: elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais, 2005. (191-250).
37
legislativa relativa ao conjunto dos territórios têm relação com a importância econômica do
território. Logo, era mais fácil ser governador do Brasil do que conseguir uma promoção no
Reino.
Com o crescimento da produção aurífera, o interesse no Brasil, e na região das
Minas, por conseguinte, aumentou. De acordo com Cunha e Monteiro, após 1643, a escolha
dos governadores e capitães-mores se dava por meio de concurso e posterior consulta do
Conselho Ultramarino, tornando ainda mais elitista e rígida a escolha dos governantes. Os
governadores quase sempre tinham carreira militar, denotando assim, a dimensão imperialista
do império português. Além disso, no século XVIII, preocupada com a manutenção da ordem,
a Coroa diminui, no quadro administrativo, o número de governantes nascidos no Brasil.
66
Os autores que discutem a violência coletiva m um enfoque distinto de nossa
proposta de pesquisa, no entanto, pudemos perceber que seus trabalhos são importantíssimos
para conhecermos os vários mecanismos que engendram a sociedade mineira no século
XVIII. Quando a discussão refere-se à criminalidade interpessoal em Minas Gerais, as
pesquisas, na sua maioria, utilizam a pobreza como cenário para os atos violentos e
criminosos.
Acreditamos que uma análise, em primeira instância, que pense a pobreza como
causa da criminalidade, oculta do processo histórico, outros grupos sociais que tem
participação fundamental na organização social.
Por outro lado, voltando-se à análise de crimes característicos de grupos sociais
bem determinados social e historicamente, a abordagem proposta tem se recusado,
ao menos em primeira instância, a atrelar os comportamentos criminosos a
processos amplos, tais como urbanização, industrialização e pobreza, enquanto
caminho interpretativo. A extensão desses eventos, atingindo a sociedade como um
todo, pode ocultar realidades históricas multifacetadas, uma vez que tais processos
não abrangem ao mesmo tempo, nem da mesma maneira, todos os grupos sociais.
(MACHADO, 1987. p.25)
67
Outro senso comum entre os pesquisadores parece ser o caráter violento das Minas.
A historiografia afirma que a região das Minas, no culo XVIII, era muito violenta e que a
violência fazia parte do cotidiano da população. Mas o que significa afirmar que uma
determinada sociedade é violenta? O início do XIX parece ser bastante diverso dos culos
XVIII e XVII. De que maneira isto afeta a administração carcerária no período? Qual é a
66
Ibid.
67
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistências nas lavouras
paulistas (1830-1889). São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 25.
38
relação entre crime e população para o século XIX? Quais as características do sistema
prisional para o século XIX?
Os primeiros trinta anos do século XIX no Brasil são marcados por diversos
acontecimentos que, direta ou indiretamente, ocasionaram mudanças na estrutura e na ação
judiciária no fim do período colonial e no início do Império. A vinda da Corte Portuguesa
para o Brasil, a criação do Conselho Supremo Militar e de Justiça, a elevação do Tribunal da
Relação à categoria de Casa de Suplicação do Brasil e a criação da Intendência Geral da
Polícia da Corte e do Estado do Brasil, no ano de 1808; a elevação do Brasil a Reino Unido a
Portugal e Algarves, no ano de 1815; a declaração de Independência do Brasil, em 1822; a
aprovação da primeira Constituição brasileira, em 1824; a Lei de 15 de outubro de 1827, que
definiu os crimes e regulou os processos de responsabilidade dos ministros e conselheiros de
Estado; a Lei de 18 de setembro de 1828, criando o Supremo Tribunal de Justiça e dispondo
sobre suas atribuições e a lei de 16 de dezembro de 1830 que instituía o Código Criminal o
alguns destes acontecimentos.
Quais as características da prisão nas primeiras décadas do XIX? De que maneira a
Justiça pensava o crime no período? Quais eram os delitos mais praticados? No decorrer dos
capítulos seguintes discutiremos a ão da Justiça no início do século XIX, as prisões e os
crimes cometidos em Mariana no referido período, tentando assim, responder a estas
perguntas.
39
CAPÍTULO 2: A CASA DE CÂMARA E CADEIA DE MARIANA
2.1 UM BREVE HISTÓRICO
O principal órgão executor das disposições contidas nas Ordenações Filipinas, era
nas colônias, a Câmara Municipal. Esta reunia o poder político-administrativo e judicial na
sua expressão mais elaborada. Ao mesmo tempo em que possuía grande autonomia na
condução dos assuntos locais, era também por meio das Câmaras que a metrópole fazia
chegar suas determinações de âmbito geral. As Câmaras Municipais eram compostas por um
conjunto de oficiais, com atribuições estipuladas pelo Livro I do código filipino: um juiz
ordinário, três vereadores, um procurador, um ou dois almotacés e um escrivão. Em muitos
casos, a complexidade e importância das municipalidades proporcionavam o provimento de
outros cargos como o de meirinho, carcereiro, juiz de fora, tesoureiro e outros. O juiz
ordinário, os vereadores, o procurador, o escrivão e o tesoureiro, quando havia, eram
escolhidos por meio de eleição indireta, dentre os homens bons da localidade. As funções
deliberativas cabiam exclusivamente aos vereadores sob a presidência do juiz. De acordo com
Renato Pinto Venâncio, a Câmara Municipal de Mariana entre 1746-1808 apresentava uma
intensa distribuição de funções, o que fazia com que a mesma se dividisse em cargos de
natureza econômica, judiciária, política, fiscal-administrativa, assistencial e territorial.
68
A Cadeia Pública era parte constitutiva do poder municipal. Era a ela que recorria a
Câmara, com seus oficiais, para apreender criminosos e todo tipo de transgressores. Instalada
em um cômodo qualquer, numa casa alugada ou numa dependência ao lado da Câmara, nunca
apresentava condições adequadas de segurança, iluminação e higiene. Nas vilas e cidades
melhor providas de recursos, construía-se a Casa de Câmara e Cadeia, um prédio de dois
pavimentos no qual a parte de baixo era ocupada por enxovias
69
e o andar superior pela
Câmara.
68
VENÂNCIO, Renato Pinto. Estrutura do Senado da Câmara. In: Termo de Mariana: história e documentação.
Ouro Preto: Editora da UFOP, 1998. p. 140.
69
Enxovias eram cárceres térreos ou subterrâneos, escuros, úmidos e sujos. Em Bluteau encontramos ainda, para
caracterizar as enxovias, os adjetivos baixa, escura, asquerosa e imunda.
40
A prisão deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento
físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral,
suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que
implicam sempre numa certa especialização, é onidisciplinar. Além disso, a
prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada
totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina
incessante. (FOUCAULT, 1987, p. 198)
70
A distância entre a prisão idealizada e retratada por Michel Foucault e a realidade
encontrada nas Minas do século XIX é gritante, não somente pela diferença estrutural, mas
pela função delegada a cada uma. A prisão colonial não visava à recuperação do delinqüente,
não tinha o intuito de prepará-lo para o retorno à sociedade, mas prestava-se realmente ao
armazenamento dos infratores. As Ordenações Filipinas não estipulavam para nenhum crime
ou circunstância a pena de prisão isoladamente, sendo o encarceramento freqüentemente
utilizado como um recurso coercitivo.
Em 1824 foi instituída a primeira Constituição do Brasil. De acordo com o artigo 21
as cadeias deveriam ser seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para
separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes. no ano de
1830, o Código Criminal traduzia no seu artigo 48, que as prisões públicas tinham que
oferecer comodidade e segurança para os detentos. O Código Criminal visava o
remanejamento das estruturas de poder. A partir de 1828, os presidentes de províncias do
Brasil Império eram responsáveis pelas fiscalizações de suas respectivas prisões. A Lei de
de outubro de 1828 determinava que se nomeasse uma comissão de cidadãos respeitados que
visitariam as prisões civis, militares e eclesiásticas para informarem do seu estado e dos
melhoramentos necessários. Esta comissão deveria enviar o relatório sobre as condições
encontradas para os presidentes e vereadores das Câmaras Municipais.
71
Elizabeth Rouwe destaca dois pareceres referentes à Cadeia Pública de Mariana, um
do ano de 1834 e um de 1855, totalmente distintos. Enquanto o primeiro verificou ótimas
condições para a prisão, o segundo condenou não somente sua estrutura física, como também
o tratamento que os presos recebiam. Essa segunda comissão afirmou que a casa de reclusão
se assemelhava aos antigos calabouços da inquisição. Além disso, as paredes das celas, por
serem de adobe
72
, necessitavam com urgência serem forradas com espessas tábuas. Também
as grades, o assoalho e o lajeamento interno precisavam de reparos. O inspetor chamou a
70
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 198.
71
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe. A administração carcerária de Mariana no século XIX. Monografia de
Bacharelado. Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal
de Ouro Preto. Mariana, 2003.
72
Espécie de ladrilho grosso, não cozido ao fogo, mas seco ao sol.
41
atenção ainda, para as águas das chuvas, que constantemente infiltravam-se nas paredes das
celas.
73
A cadeia de São João del-Rei também se encontrava num estado deplorável. Na
década de 1830, os inspetores, ao vistoriarem essa instituição, disseram que a mesma parecia
mais um caverna, e que a qualquer instante desmoronaria, pelo estado de ruína em que se
encontrava. No ano de 1828, as autoridades administrativas de São João del-Rei enviaram um
relatório à Assembléia Legislativa pedindo a liberação dos recursos para continuar as obras do
novo prédio que abrigaria a cadeia da vila. Segundo Maria Tereza Cardoso, a cadeia de
Lavras, a exemplo, da de São João del-Rei, não oferecia comodidade e segurança, podendo
esta ser facilmente arrombada.
74
Em meados da década de 1850, os relatórios apresentados pelos fiscais sobre as
condições de várias cadeias da província de Minas Gerais demonstraram que as mesmas
necessitavam urgentemente de reformas, como era o caso de Ouro Preto, Patrocínio e São
Romão.
75
Outros locais como Baependi, Pouso Alegre, Diamantina, Pitangui, Paracatu e
Sabará precisavam reconstruir as suas prisões devido ao estado precário em que elas se
encontravam. Na vila do Rio Pardo
76
a situação também não era cômoda, uma vez que não
havia presídio na mesma. Diversas reformas foram feitas ao longo do século XIX, e mesmo
com essas, a cadeia de Mariana não oferecia à sociedade e aos detentos a segurança
necessária. Em 1855 os funcionários afirmavam que a cadeia de Mariana não reeducava os
presos devido às condições precárias da mesma, devendo ser enviados para a Cadeia de Ouro
Preto, os detentos mais perigosos.
77
Várias casas de reclusões da província mineira no século XIX estavam em condições
críticas. Infelizmente as pequenas reformas feitas nessas instituições não resolveram os
problemas, uma vez que as mesmas necessitavam de mudanças drásticas. O sistema carcerário
de Mariana no século XIX, segundo Rouwe, além de não promover reformas estruturais
73
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.
74
Ibid.
75
João Manuel Pohl, cujo livro Viagem no Interior do Brasil foi editado em 1837, viu o arraial de Nossa
Senhora do Patrocínio como um lugar pobre, com uma Igreja de madeira e barro, que recebe luz pelas
portas, e umas trinta casas, cuja construção denuncia claramente a penúria de seus donos. Patrocínio teve as
regalias de paróquia, com o título de Nossa Senhora do Patrocínio, com a lei114, de 09 de março de 1839.
A lei n° 171, de 23 de março de 1840, criou a vila, que foi instalada em 1842.o Romão é um município do
Alto Médio São Francisco criado pela lei 843, de 07 de setembro de 1923. O arraial primitivo denominado
Manga ou Santo Antônio do Manga surgiu nos primórdios do século XVIII. Foi elevado à categoria de vila no
dia 13 de outubro de 1831, com o nome de Vila Risonha de São Romão.
76
Freguesia criada em 1740, subordinada ao bispado da Bahia, é das antigas paróquias de Minas. Em 1831, era
dos mais importantes arraiais da região; e o decreto da Regência de 13 de outubro de 1831 criou a vila, com o
nome de Rio Pardo. Foi solenemente instalado o novo município a 24 de agosto de 1833.
77
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.
42
efetivas, colaborava para garantir a reincidência. A comissão encarregada de inspecionar as
repartições públicas decretou em 1855 que a grande máxima evangélica a respeito do homem
é corrigir, e não destruir. Partindo desses princípios, os fiscais afirmavam que a prisão não
dispunha de uma política de reeducação dos prisioneiros e seu sistema colaborava para a
permanência desses homens na criminalidade.
Numa época em que inexistiam meios mais sofisticados, burocratizados de fazer
cumprir o pagamento de uma multa, por exemplo, a detenção do indivíduo se
tornava a garantia física, corporal, de que ele saldaria o pagamento imposto. Assim,
é comum encontrarmos no Livro V das Ordenações a rmula sejam presos e da
cadeia paguem [...] cruzados. Com relação às outras penas morte, açoite,
degredo, etc , até que fossem atribuídas ou executadas, contava-se com a prisão
como meio para garantir a contenção do acusado ou criminoso. (SALLA, 1999, p.
34)
78
A primeira Câmara, da ainda Vila de Nossa Senhora do Carmo
79
, situava-se, no ano
de 1711, na Rua Direita do Rosário, local em que se iniciou o povoado e que abrigava as
pessoas mais ilustres. Já em 1722 a Câmara se instalou em uma casa assobradada na ladeira
do São Gonçalo. A falta de uma sede própria para a instalação da Casa de mara e Cadeia e
as necessárias mudanças preocupava as autoridades locais. Em várias ocasiões os oficiais da
Câmara queixaram-se à Coroa da precariedade de suas instalações. As enchentes do Ribeirão
do Carmo, principalmente as que ocorreram em 1737 e 1743 destruíram boa parte da vila e
acentuaram sua carência de casas que poderiam servir às funções públicas. Frente ao
problema, no ano de 1744, a Coroa restituiu à Câmara um edifício situado na atual Rua
Direita da cidade, próximo à Catedral da Sé.
80
Após o reconhecimento da vila como cidade de Mariana, em 1745, os oficiais da
Câmara expuseram novamente à Coroa a necessidade de se construir uma sede própria para a
Casa de Câmara e Cadeia. A Coroa, ciente dos problemas ocorridos, recomendou, no ano de
1746, a reconstrução da cidade em uma área elevada, a salvo das enchentes, demarcando-se
uma praça espaçosa e ruas direitas onde seriam erguidos seus edifícios públicos. Em 1748 o
governador Gomes Freire, juntamente com o Ouvidor Geral e os oficiais da Câmara, decidiu
que o terreno mais adequado para a construção da tão sonhada Câmara, em função de suas
78
SALLA, Fernando. As Prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. p. 34.
79
Em 1698, João Lopes de Lima, morador em Atibaia, levando consigo o Padre Manuel Lopes e seu irmão
descobriu e ocupou o ribeirão que denominou de Nossa Senhora do Carmo. Em 1711 o arraial passou a
condição de vila até tornar-se cidade de Mariana no ano de 1745.
80
FONSECA, Cláudia Damasceno. A casa de Câmara e Cadeia de Mariana: algumas considerações. In: Termo
de Mariana: história e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998. p. 181.
43
dimensões e da segurança que oferecia, seria aquele ocupado pelos antigos quartéis dos
Dragões, que seriam demolidos.
81
A construção do edifício que abrigaria a Casa de Câmara e Cadeia de Mariana foi
arrematada, no ano de 1782, pelo alferes José Pereira Arouca, por trinta e sete mil cruzados.
Embora tivesse o ofício de pedreiro e carpinteiro, Arouca foi um dos melhores e mais
poderosos empreiteiros do setecentos nas principais vilas do ouro. Em Mariana administrou e
executou outras diversas obras, como igrejas, pontes, chafarizes, paredões, estradas e
calçadas. A construção da Casa de Câmara e Cadeia foi iniciada dentro do prazo estipulado, e
prosseguiu pelo menos até junho de 1782, data em que Arouca requereu ao Senado da Câmara
o pagamento já vencido, no valor de cinco mil cruzados. Não se sabe exatamente aquando
Arouca dirigiu a construção, já que morreu em 1795 e ainda em 1802 a construção não estava
totalmente concluída. Possivelmente, restavam pouquíssimos detalhes, já que em 1798 a
Câmara já havia se instalado no edifício.
82
Um mesmo edifício público seria sede do poder político e jurídico. Tal disposição
tinha suas origens em Portugal, o Domus Municipalis, sede judicial e administrativa
municipal. O Domus Municipalis sempre era colocado em lugar de honra da cidade, como
uma praça central ou a de um mercado. Em Mariana, esse lugar de honra seria o Largo do São
Francisco. Entre as igrejas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo se
encontraria a partir de agora a Casa de Câmara e Cadeia da cidade de Mariana. Mais que um
belo cenário arquitetônico, o Largo do São Francisco abrigaria além das construções, o
controle político, administrativo, judicial e espiritual da população marianense.
83
A Cadeia de Mariana possuía doze palmos de profundidade nos alicerces das paredes
externas. Os alicerces foram feitos de pedra grande e bem maciçada a cal, os pisos foram
lajeados na frente das chaminés e das comuas em todo o comprimento e as janelas bem
reforçadas com quatro dedos de grossura. As enxovias se localizavam abaixo das celas e o
acesso a elas se dava por meio de alçapões. Em cada enxovia existia ainda um fogão do qual o
preso se utilizava. O abastecimento de água, tanto da mara quanto da Cadeia, se dava pela
canalização de uma fonte.
84
A renda da Cadeia provinha de sua arrematação em leilões públicos, nos quais uma
dada pessoa se dispunha a tal negócio durante certo período que correspondia geralmente
um ano. O pagamento desta arrematação pertencia a Câmara, enquanto que o arrematante
81
Ibid. 182.
82
Ibid. p. 183.
83
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.
84
BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmara e Cadeia. In: Arquitetura Oficial I, 1978.
44
responsabilizava-se pelo aluguel das carceragens, pelas custas da prisão, pelas boas condições
das carceragens e de fazer, igualmente, boas às condições de permanência dos brancos e
escravos presos. Estes últimos, por serem peças valiosas para os seus senhores.
Segundo Elizabeth Rouwe é interessante observar que num mesmo prédio público
funcionassem dois universos bastante distintos, um marcado pela delicadeza interna dos
ornamentos e móveis luxuosos, e outro caracterizado pela rigidez de sua edificação sem
qualquer decoração ou mobília à espera daqueles que cometeram algum delito. Em sua
concepção, a disposição do edifício que tinha a Câmara na parte de cima e a Cadeia na de
baixo, simbolizava a mão da justiça sobre o crime.
85
Para a Administração do Reino, a Cadeia constituía um lugar seguro, onde se
aprisionariam ladrões, assassinos e criminosos da mais variada espécie. A função principal da
execução da Justiça, na Colônia e no início do Império, era o combate ao desrespeito às leis
Reais, e o papel da Cadeia neste intuito era fundamental. Não importavam as más condições
de higiene do local, e talvez fosse até este o verdadeiro intuito da Administração Real, um
ambiente extremamente insalubre que serviria de depósito para os que se atrevessem a
desobedecer à lei. Com certeza ninguém gostaria de ficar recluso, muito menos num lugar
como este. Mas era este ambiente, essa região mais sombria do aparelho de justiça, que
aguardava aqueles que ousassem cometer os crimes.
É importante demarcar aqui a maneira como as autoridades pensavam a estrutura
carcerária do inicio do século XIX. Parecia existir uma grande preocupação com este
ambiente, mesmo que esta não resultasse em soluções eficazes para o problema. Entre os anos
de 1800 a 1830 a administração carcerária contabilizou 445 delitos no território que
compunha o Termo de Mariana. A documentação referente à Cadeia Pública nos mostra uma
variação social muito grande da população carcerária, na medida em que encontramos ali
detidos, homens e mulheres, escravos e livres, brancos e mestiços. Os capítulos que se
seguem têm por objetivo identificar o perfil da população carcerária da Cadeia Pública de
Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX e sua relação com o crime.
85
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.
45
Fonte: Desenho da frontaria da Casa de Câmara e Cadeia de Mariana. Coleção Felix Pacheco. Biblioteca
Municipal de São Paulo. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Viana. Dicionário Histórico das Minas
Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 59.
46
Fonte: Planta da Casa de Câmara e Cadeia de Mariana. Coleção Felix Pacheco. Biblioteca Municipal de São
Paulo. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Viana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. p. 59.
47
2.2 OS CRIMES E OS PRESOS: UMA ANÁLISE QUANTITATIVA DAS FONTES
O Termo da cidade de Mariana é limitado ao norte pelo das vilas de Sabará, Vila
Nova da Rainha e vila do Príncipe. Ao sul, pela cidade de Ouro Preto e vila de Barbacena. A
leste pela Província do Espírito Santo, e ao oeste, pelo da vila de Queluz. A sua superfície está
calculada em 1.086 léguas quadradas, e cada uma das quais compreende 51 almas.
86
A cidade
de Mariana acha-se situada em terreno quase plano e desagradável, na margem direita do
Ribeirão do Carmo que se perde no Rio Doce, e a duas léguas de caminho distante da cidade
de Ouro Preto. É pequena, tem duas praças, várias ruas bem calçadas, sete chafarizes, a Igreja
Catedral do Bispado, o Palácio e o Seminário Episcopal, vários templos, 515 fogos, Casa da
Câmara, Cadeia, e outros edifícios notáveis. Mariana tem uma única paróquia e não decaiu
muito da sua antiga grandeza por servir de residência ao bispo, e a muitos ministros
eclesiásticos e seculares. Está bordada de muitas casas, atravessa dois arraiais, tem três pontes
de pedra, e é calçada em alguns lugares. Respiram-se aqui ares saudáveis. Do distrito desta
paróquia dependem os pequenos lugares ou distritos que se seguem: Monsus, Morro de Santo
Antônio, Passagem, Morro de Santa Ana e rzea.
87
O Termo, além de Mariana, acolhe
outros 13 distritos, que por sua vez são responsáveis por 40 arraiais. No total, segundo dados
de Raimundo José da Cunha Matos para o ano de 1821, o Termo possuía 8.090 fogos que
abrigavam 50.191 almas. Logo, a Administração era responsável por todo este território e
consequentemente pela prisão de todas as pessoas que cometiam crimes.
O sistema carcerário de Mariana funcionava conforme as determinações da Câmara
Municipal, sendo regido pelas Ordenações Filipinas. A partir de 1824, as Câmaras Municipais
perderiam os seus poderes para as Assembléias Provinciais, que se tornariam as responsáveis
pelos assuntos policiais e econômicos dos municípios. As autoridades responsáveis pela
Cadeia Pública de Mariana eram o alcaide-pequeno, o meirinho das execuções, o carcereiro e
o porteiro do juízo. O oficial de Justiça encarregado de defender a autoridade judicial local era
o alcaide-pequeno. Este era escolhido pela Câmara de uma lista tríplice apresentada pelo
alcaide-mor. Acompanhado de um tabelião nomeado pelo conselho da Câmara, tinha a
obrigação de policiar dia e noite as cidades e vilas que lhe coubesse vigiar, prender os
transgressores da lei em flagrante ou por ordem dos juízes, trazerem os presos às audiências
86
A légua é uma antiga unidade brasileira de medida itinerária, equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600
metros. Portanto, a superfície do Termo de Mariana estaria calculada em aproximadamente 7168 Km².
87
MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Minas Gerais, vol. 1. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981. p. 101.
48
públicas e fiscalizar a atuação dos almotacés com relação a carnes e pescado.
88
Auxiliar do
ouvidor ou juiz ordinário, o meirinho das execuções era nomeado pelo capitão-mor. Era ele
que realizava os mandados judiciais.
89
A responsabilidade da cadeia estava nas mãos do
carcereiro. Ele evitava que os presos fossem soltos sem um mandado de justiça, conduzia-os
às audiências, registrava a entrada e a saída dos prisioneiros e levava alimentos aos detentos
pobres.
90
Já o porteiro do juízo apreendia os bens e os leiloava de acordo com as
determinações da Câmara.
91
Os cargos de delegado e subdelegado surgiram somente no ano
de 1841 para assumir as funções que eram de responsabilidade do juiz de paz.
2.2.1 As estatísticas criminais
Tabela 1 - Os crimes cometidos no Termo de Mariana (1800-1830)
Crimes Número Porcentagem
Desordem 02 0,40%
Crimes
Infração de posturas 12 2,70%
Contra a
Resistência à autoridade 03 0,70%
Ordem
Agressão de autoridades 05 1,10%
Pública
Vadiagem 01 0,20%
Porte de armas proibidas 03 0,70%
Homicídio 48 10,80%
Crimes
Tentativa de homicídio 12 2,70%
Contra a
Crime sexual 02 0,40%
Pessoa
Injúrias 01 0,20%
Agressões físicas 88 19,80%
Mancebia 02 0,40%
Atravessamento 01 0,20%
Danos à propriedade 14 3,10%
Crimes
Dívida e penhora 79 17,80%
Contra a
Furto 37 8,30%
Propriedade
Fabricação de moeda falsa 03 0,70%
Porte de ouro falso 02 0,40%
Pagamento com ouro falso 01 0,20%
Outros
Querela 28 6%
Não menciona 101 23%
Total 445 100%
Fonte: AHCMM
88
SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985. p. 138.
89
Ibid. p. 129.
90
Ibid. p. 140.
91
Ibid. p. 139.
49
Podemos perceber, de acordo com a tabela 1, que durante os primeiros trinta anos do
século XIX ocorreram 445 crimes no Termo de Mariana, evidentemente crimes em que foi
possível a identificação dos réus resultando na prisão dos mesmos. O número total de crimes
não corresponde ao número exato de presos, na medida em que alguns destes cometeram mais
de um delito. É possível identificar três categorias definidas por nós para a melhor
classificação dos crimes: contra a ordem pública, contra a pessoa e contra a propriedade.
92
Enquadrados nestas três categorias dispõem-se os tipos de crime, o número de ocorrências
destes crimes e a percentagem de cada um em relação ao número total de delitos.
Entre os crimes contra a ordem pública pudemos observar casos de desordem,
infração de posturas, resistência à autoridade, agressão de autoridades, vadiagem e porte de
armas proibidas.
A desordem representou apenas 0,4% do número total de crimes, com apenas duas
ocorrências, mas estas preocupavam a Administração da Coroa no século XIX, já que quando
praticadas em grupo poderiam se transformar em um motim. A prática de assuada,
caracterizada como desordem foi causa da prisão de José Manuel. José, homem pardo, de 30
anos de idade, que exercia a profissão de sapateiro, foi preso no distrito de Sumidouro, no dia
06 de março de 1804 por uma assuada que com outros praticou no Rosário de Mariana.
93
A
assuada é uma reunião de pessoas, armadas ou não, que tem como intuito fazer mal ou causar
danos a alguém. Ainda é definida nas Ordenações Filipinas como tumulto ou um motim com
grande alarido. Qualquer pessoa que com ajuntamento de gente, além dos que em sua casa
tiver, entrar em casa de alguém para lhe fazer mal e o ferir a ele ou a outrem que na dita casa
estiver, morra morte natural.
94
Parece clara a preocupação da Administração com este tipo
de delito, haja vista sua punição. Logicamente, dependendo da qualidade do réu, esta pena
seria amenizada, se transformando em degredo, por exemplo.
As infrações de posturas representaram 2,7% do total de crimes, com doze
ocorrências. Manuel da Fonseca Ribeiro foi preso dia 08 de agosto de 1804 por não ter feito
exame de corpo delito a respeito de uns ferimentos e tiros ocorridos no distrito de São
92
O código responsável pelo direito penal no Reino de Portugal desde o início do século XVII até meados do
século XIX era o Livro V das Ordenações Filipinas. Este livro não apresenta divisões claramente definidas
quanto à qualidade dos delitos. Estas divisões só surgiriam com a criação do Código Criminal do Império em
1830. Optamos então, por classificar os crimes nestas três categorias para proporcionar à pesquisa uma visão
mais clara da diversidade de crimes cometidos no Termo de Mariana.
93
AHCMM. Códice 167, folha 120. Ao longo deste capítulo utilizaremos intensamente as Ordenações Filipinas
para demonstrar as punições previstas para todos os delitos cometidos no Termo de Mariana. Procuramos
transpor o texto das ordenações com a maior fidelidade possível ao original, o que justifica os termos hoje
desconhecidos e as inversões das frases. As possíveis dúvidas quanto ao significado de palavras e termos
seguem explicadas, sempre que possível, nas notas de rodapé.
94
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 162.
50
Caetano.
95
Ao que tudo indica o Sr. Manuel era o juiz responsável por esta função em seu
distrito, e não a realizando infringiu uma postura e acabou sendo preso. Outro caso
classificado por nós como infração de posturas deveu-se a prisão de Antônio Batista. Antônio
foi preso no distrito de Infincionado no dia 09 de setembro de 1816 por soltar da prisão um
crioulo forro de nome João Ribeiro.
96
Este delito também era punido com morte natural se
o preso já estivesse em poder do carcereiro e debaixo de sua guarda, se as portas ou ferrolhos
da prisão fossem quebrados, se as paredes ou telhados fossem furados e se as chaves do
carcereiro fossem tiradas com força e entregues ao preso. Se o preso libertado já fosse
condenado em juízo e tivesse confessado o malefício pelo qual foi preso, aquele que o soltou,
além de morrer, deveria perder seus bens, se não possuísse descendentes ou ascendentes
legítimos.
97
Os dois casos citados mostram a preocupação da Administração com a
obediência e disciplina de seus funcionários e o perfeito funcionamento da ordem e da lei,
visto que, o não cumprimento da função pré-determinada de um cargo administrativo e a
soltura de um preso sem ordem da Justiça é, além de uma infração de posturas, um
desrespeito à lei, uma desobediência à palavra Real.
Os oficiais responsáveis em conduzir os réus aa Cadeia Pública sofriam na pele a
ira dos futuros presos, visto que nem todos aceitavam a idéia de ir para a cadeia
tranquilamente, resistindo assim à prisão e agredindo estas autoridades. Estes dois delitos
representam juntos 1,8% do total de crimes cometidos, com oito ocorrências. A resistência à
autoridade ou à prisão, na maioria dos casos vinha acompanhada de uma agressão física
qualquer. Luísa Antônia Pinheiro, mulher parda forra, de 40 anos de idade, que exercia o
ofício de fiandeira foi presa no dia 21 de junho de 1804 no distrito de Barra Longa por resistir
à prisão e ferir o Capitão Maximiano Gomes.
98
Tomé Teixeira, homem identificado como
pardo ou caboclo, foi preso no dia 10 de julho de 1818 na cidade de Mariana pelo crime de
agressão de autoridades devido a umas pancadas dadas em alguns Oficiais de Justiça.
99
Quem
resistisse com agressividade a algum dos juízes ordinários, vereadores, almotacés, alcaides
das vilas e conselhos dos reinos e senhorios, porteiros, jurados, vinteneiros
100
deles e homens
dos meirinhos da Corte e comarcas e ilhas, e aos homens dos alcaides, assim da cidade de
Lisboa como das outras cidades, vilas e conselhos, e na resistência ferisse cada um deles, teria
95
AHCMM. Códice 167, folha 125 v.
96
AHCMM. Códice 167.
97
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 167.
98
AHCMM. Códice 167, folha 124 v.
99
AHCMM. Códice 167.
100
De acordo com Bluteau, vinteneiros eram homens que assistiam em lugares pequenos e tinham seu distrito
separado, onde serviam para fazer as diligências ordenadas pelo Juiz e pelos Oficiais da Câmara.
51
decepada uma mão e seria degredado para a África por dez anos.
101
Com certeza este era um
delito gravíssimo, haja vista a enorme lista de variações de pena contida nas Ordenações
Filipinas, que variavam de acordo com a gravidade dos ferimentos, com a ocorrência de morte
etc.
O porte de armas proibidas também era uma preocupação para os administradores da
região das Minas. No Termo de Mariana ocorreram apenas três casos, 0,7% do total, que
resultaram na prisão dos réus. Martinho Correia da Silva, homem pardo, foi preso no distrito
de Catas Altas no dia 06 de junho de 1815, pois se encontrava culpado na Devassa Janeirinha
102
por fazer uso de armas proibidas.
103
Segundo as Ordenações Filipinas era proibido a
qualquer pessoa, em qualquer parte do Reino, portar péla de chumbo nem de ferro,
104
nem de
pedra feitiça,
105
e sendo achado com ela, seria preso e ficaria na cadeia por um mês, pagando
quatro mil réis e sendo açoitado publicamente com baraço
106
e pregão, pela cidade, vila ou
lugar onde fosse achado. Especificava-se ainda a proibição ao porte de armas ofensivas e
defensivas, tanto de dia quanto de noite, salvo se fosse espada, punhal ou adaga, sob pena de
perder as ditas armas e pagar duzentos réis de pena da cadeia, se for peão, porque sendo
escudeiro e daí pra cima, ou mestre de nau ou de semelhante ou maior condição, a arma seria
apreendida e este pagaria a pena sem a necessidade de ficar preso.
107
Apenas um caso, definido por nós como vadiagem, ocorreu no Termo de Mariana,
representando apenas 0,2% do total de crimes. José Pereira da Silva, homem pardo, foi preso
no dia 19 de fevereiro de 1801 por querer ir à Vila Rica mesmo estando enfermo da perna e
sem conseguir andar.
108
A vadiagem, no século XVIII e XIX está ligada principalmente a
itinerância e a ociosidade, comportamentos considerados ameaçadores à estabilidade social.
Infelizmente não sabemos por que o senhor José Pereira queria ir à Vila Rica, mas o que torna
o caso interessante é a sua prisão. O quê, para os oficiais da Câmara, um homem pardo, com a
perna machucada e sem conseguir andar ia fazer em Vila Rica? Este era um caso de
vadiagem? As Ordenações Filipinas mandavam prender e açoitar qualquer homem que o
vivesse com senhor ou com amo, que não tivesse ofício nem outra profissão em que
trabalhasse ou ganhasse sua vida, que não andasse negociando alguma mercadoria sua ou
101
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 169.
102
As Devassas Janeirinhas eram feitas anualmente, todo o mês de janeiro, e tinham como principal função
inquirir os membros das Câmaras sobre o funcionamento da administração e da Justiça.
103
AHCMM. Códice 167.
104
Bala de chumbo ou ferro presa a uma corda ou corrente, para ser recolhida de volta depois de atirada.
105
Pedra preparada para servir como arma ofensiva.
106
Em Bluteau, baraço é a corda usada nos enforcamentos.
107
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 246.
108
AHCMM. Códice 167, folha 101.
52
alheia, e que, passados vinte dias do dia que tivesse chegado a qualquer cidade, vila ou lugar,
não tomasse dentro nos ditos vinte dias amo ou senhor com quem vivesse, ou ofício em que
trabalhasse e ganhasse sua vida, ou se o tomasse e depois o deixasse e não continuasse. [...]
E achando que as há (pessoas vadias), as mandarão prender e cada um deles procederá
sumariamente, sem mais ordem nem figura de Juízo que a que for necessária para se saber a
verdade.
109
Este trecho das Ordenações Filipinas deixa clara a preocupação do Reino com os
vadios, visto que estava autorizada perante a lei a prisão de qualquer pessoa, sem ordem
especial da Justiça, que fosse suspeita de vadiagem. Devemos ressaltar que os assentos de
prisão não identificaram o crime cometido em 23% dos casos. Estas prisões poderiam se
referir às ocorrências de vadiagem, já que a apreensão de pessoas, nestes casos, o exigia
uma formalidade maior por parte da Justiça. Logicamente isto se torna mera suposição na
medida em que nos faltam documentos que comprovem esta prática.
No que se refere aos crimes contra a pessoa pudemos observar casos de homicídio,
tentativa de homicídio, crime sexual, injúrias, mancebia e agressões físicas.
Os denominados crimes sexuais e os casos de mancebia totalizam juntos, quatro
ocorrências, portanto 0,8% do total de crimes cometidos. A prisão de Bernardo José Vilela,
acusado de crime sexual, é no mínimo estranha. Bernardo era um homem branco de 72 anos
de idade natural do Arcebispado de Braga e negociador de tecidos vindos de Portugal, e foi
preso no dia 24 de janeiro de 1804 por ter tirado a honra e a virgindade de Maria Pacheca, sua
mulher.
110
A característica de punir o crime e o pecado estava presente nas Ordenações
Filipinas, o que tornava, às vezes, a prisão um pouco ridícula. Imaginemos os oficiais
tomando o depoimento do casal sobre a perda da virgindade da senhora Maria Pacheca. De
acordo com o código filipino, todo homem, de qualquer estado e condição que seja que
forçosamente dormisse com qualquer mulher, posto que ganhasse dinheiro ou o por seu
corpo, deveria morrer por isso. E posto que o forçador depois do malefício feito casasse com a
mulher forçada e ainda que o casamento fosse feito por vontade dela, não seria revelado da
dita pena, mas morreria, assim como com ela não tivesse se casado.
111
O crime e o pecado
também justificaram a prisão de Francisco de Paula e Sousa. Francisco, homem branco de 38
anos, alfaiate, foi preso no distrito de Barra Longa no dia 27 de abril de 1805 por furtos e por
mancebia.
112
De acordo com o Código Filipino qualquer pessoa, de qualquer condição que
seja que costumasse andar na Corte, não deveria trazer nela manceba nem a ter nela teúda. E
109
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 216.
110
AHCMM. Códice 167, folha 118 v.
111
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 103.
112
AHCMM. Códice 167, folha 135.
53
que o contrário fizer na Corte e a dita manceba tiver teúda em sua pousada ou fora dela, posto
que ele e ela fossem solteiros, se fosse cavaleiro ou daí pra cima, deveria pagar vinte
cruzados, se fosse escudeiro, pagaria dez cruzados e se fosse homem de menos qualidade
pagaria cinco cruzados e seria degredado cada um deles, um ano fora da Corte.
113
O caso de injúria ocorreu apenas uma vez, portanto apenas 0,2% do total de crimes
cometidos. Mas este caso se torna muito curioso, pois envolveu uma autoridade da Câmara
Municipal. O meirinho das execuções Antônio João Ramos foi preso em Mariana no dia 02 de
outubro de 1804 por insultar e se desentender com palavras certas mulheres da cidade, por
conta de uma cobrança.
114
Segundo as Ordenações Filipinas, toda a pessoa que ferisse,
dissesse ou fizesse qualquer injúria a outra que com ela tivesse qualquer demanda ou o
mandasse fazer deveria cumprir a pena crime e cível em dobro do que se com ela não
trouxesse demanda. E se a pena for tal que se não pudesse dobrar, ficaria em arbítrio do
julgador, dar-lhe mais outra, segundo o caso merecer.
115
As agressões físicas resultaram em 88 prisões, logo, 19,8% do total de delitos
cometidos. Ciúme, preservação da honra, demonstração de poder, vingança ou simples
banalidade eram motivos para que as brigas acontecessem. Jacinto de Souza Novaes, homem
branco de 42 anos de idade, negociador de gado, foi preso em Mariana no dia 14 de janeiro de
1804 por ferir uma mulher parda chamada Suzana Ferreira.
116
Maria Martins, mulher crioula
forra, de 26 anos de idade, foi presa em Mariana no dia 19 de maio de 1804 pelos ferimentos
causados no rosto de Violante Maria dos Santos.
117
Manuel de Santa Rita, homem pardo, foi
preso em Mariana no dia 25 de abril de 1808 pelos ferimentos causados em Vicente, um
escravo crioulo de propriedade do Reverendo Cônego Joaquim Thomas.
118
João, escravo de
Nação Angola, pertencente a José de Souza foi preso em Mariana no dia 06 de maio de 1814
pelos ferimentos causados em José da Cunha de Macedo.
119
Justino, escravo cabra, foi preso
em Mariana no dia 07 de outubro de 1823 pelos ferimentos causados em Manuel, escravo de
Nação Angola, pertencente ao Capitão Francisco Machado da Luz.
120
Gregório, escravo
crioulo do Capitão Francisco Machado foi preso em Mariana no dia 21 de setembro de 1829
pelos ferimentos causados e açoites aplicados em uma crioula chamada Maria.
121
Como já
113
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 125.
114
AHCMM. Códice 167, folha 127.
115
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 159.
116
AHCMM. Códice 167, folha 117 v.
117
Ibid. folha 123.
118
Ibid. folha 152 v.
119
AHCMM. Códice 167.
120
Ibid.
121
AHCMM. Códice 167.
54
mencionamos as brigas que originavam as agressões físicas começavam por variados motivos
e consequentemente eram causadas por uma gama variada de pessoas, sejam estes homens,
mulheres, livres, escravos, forros etc. As penas para este delito eram variadas e eram
aplicadas de acordo com a situação. Segundo as Ordenações Filipinas, e semelhantemente ao
caso de injúria, toda pessoa que ferisse outra que com ela tivesse demanda ou o mandasse
fazer pagaria a pena crime e cível em dobro do que se com ela não trouxesse demanda
alguma. As Ordenações ainda previam que todo aquele que matasse ou ferisse qualquer
pessoa na Corte, sem premeditação, deveria como pena, pagar cinco mil e quatrocentos réis, e
se fosse propositalmente, deveria pagar o dobro. E se de propósito tirar arma ou ferir ou
aleijar, pague o dobro do que pagaria sendo em rixa; e isto além das penas pecuniárias
conteúdas nos forais dos lugares onde forem feitos os ditos malefícios.
122
Um agravante nos
casos de agressão física era a aleivosia. Aleivosia é uma maldade cometida traiçoeiramente,
sob mostra de amizade, e comete-se quando alguma pessoa mata ou fere, ou faz alguma
ofensa ao seu amigo sem com ele ter rixa nem contenda, como se lhe dormisse com a mulher,
filha ou irmã, ou lhe fizesse roubo ou força. E nestes casos, em que se cometiam esta
maldade atraiçoada e aleivosamente, a pena corporal seria muito mais grave e maior do que se
daria em outro semelhante malefício em que tal qualidade de aleivosia não houvesse.
123
Ainda, de acordo com o código filipino, não deveriam ser punidos aqueles que usassem armas
ou ferissem outros em defesa própria, aqueles que se utilizassem de pau e pedra para ferir os
escravos, aqueles que fossem menor de quinze anos de idade e matassem ou ferissem, fossem
cativos ou forros, aqueles que com pau ou pedra ferissem as mulheres, aqueles que usassem
armas ou ferissem acidentalmente alguma pessoa tentando apartar uma briga, aqueles que
ferissem seu criado ou discípulo com intuito de castigá-lo, aqueles que ferissem sua mulher ou
seu filho ou seu escravo e aqueles, que sendo mestre ou piloto de navio, ferissem alguém que
estivesse sob seu comando.
124
Os casos de homicídio e tentativa de homicídio totalizaram juntos, 60 ocorrências,
portanto 13,5% do total de crimes cometidos. Encontramos uma séria dificuldade na
classificação de alguns delitos, mas nada comparado às tentativas de homicídio. É complicado
afirmar qual ação tinha a intenção de matar, visto que os assentos de prisão não trazem esta
afirmação. Optamos por definir como tal, as ações cometidas com o auxílio de armas que
causaram ferimentos nas vítimas. Acreditamos que uma pessoa que atira com uma arma de
122
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 149.
123
Ibid. p. 150.
124
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 149.
55
pólvora numa outra ou até mesmo desfere uma facada em alguém, tem a intenção de matar,
ou no mínimo, sabe que os ferimentos causados por estas armas podem ser fatais. A
motivação para a prática destes delitos, assim como para as agressões, variava muito. Ciúme,
preservação da honra, rixas, interesses, vingança e até mesmo o o pagamento de dívidas
poderiam ser a causa desta violência extremada. Bento Rodrigues, homem pardo forro, foi
preso no distrito de São Sebastião no dia 07 de janeiro de 1800 por matar um escravo negro.
125
Francisco Pires, homem branco de 73 anos de idade, Capitão que vivia de roça, foi preso
no distrito de Rio Pomba no dia 05 de abril de 1804 pela acusação de ter matado um tal João,
filho de Joana Maria de Lima.
126
Ana, mulher parda forra, foi presa em Mariana no dia 29 de
outubro de 1811 por ter matado João Nunes.
127
Tomás, escravo crioulo do Ajudante João
Gonçalves, foi preso em Mariana no dia 05 de agosto de 1823 por matar José Caetano,
escravo de Nação Angola, que pertencia a um Capitão da cidade.
128
Domingos foi preso no
distrito de Camargos no dia 30 de maio de 1802 por matar com uma faca João de Souza e ferir
com a mesma José Rodrigues Silva.
129
Antônio Eusébio, homem crioulo foi preso em
Mariana no dia 28 de setembro de 1809 por ter dado um tiro em Antonio Jorge Machado.
130
Antonio, escravo de Joaquim José de Santa Anna foi preso em Mariana no dia 31 de julho de
1824 por ter dado um tiro em um Coronel.
131
De acordo com as Ordenações Filipinas
qualquer pessoa que matasse ou mandasse matar uma outra, deveria morrer por isso morte
natural. Porém, se a morte ocorresse em defesa própria não haveria pena alguma, salvo se nela
acontecesse excesso, porque então seria punido segundo a qualidade do mesmo. E se a morte
fosse causada sem malícia ou vontade de matar, seria punido ou revelado segundo sua culpa
ou inocência que no caso tivesse. Porém, se algum fidalgo de grande solar matasse alguém,
não seria julgado à morte sem que se averiguasse o estado, linhagem e condição da pessoa,
assim do matador como do morto, além de qualidade e circunstâncias da morte. O código
filipino ainda traz algumas especificações para cada tipo de homicídio. Se uma pessoa desse a
outra peçonha para matá-la ou lha mandasse dar, posto que de tomar a peçonha se não siga a
morte, morra morte natural. E qualquer pessoa que matasse outra por dinheiro, ser-lhe-iam
ambas as mãos decepadas e morreria por isso morte natural, além de perder sua fazenda para a
Coroa do Reino, se não tivesse descendentes legítimos. E se ferisse alguma pessoa por
125
AHCMM. Códice 167, folha 95 v.
126
Ibid. folha 121.
127
AHCMM. Códice 167.
128
AHCMM. Códice 167.
129
Ibid. folha 105 v.
130
Ibid. folha 158 v.
131
AHCMM. Códice 167.
56
dinheiro, morreria por isso morte natural. E estas mesmas penas ocorreriam aqueles que
mandassem matar ou ferir alguém por dinheiro, seguindo-se a morte ou ferimento. E se
alguma pessoa, de qualquer condição que fosse, matasse outra com besta ou espingarda, além
de por isso morrer morte natural, lhe seriam decepadas as mãos ao pé do pelourinho. E se com
a dita espingarda ou besta ferisse de propósito com farpão
132
, palheta
133
, seta, ou virote
ferrado
134
, posto que não matasse, morreria por isso morte natural.
135
A terceira categoria demonstrada na tabela 1 se refere aos crimes contra a
propriedade. Nesta categoria encontramos os delitos contra a propriedade privada e contra a
propriedade do Reino. No primeiro grupo encontramos os furtos, os danos à propriedade em
geral, como os arrombamentos de residências, por exemplo, e as prisões por dívidas. No
segundo, observamos a fabricação de moeda falsa e o atravessamento de mantimentos.
Os furtos resultaram na prisão de 37 pessoas, 8,3% do total de crimes cometidos.
Existia uma preocupação muito grande por parte da Administração da Coroa em relação a este
delito. Esta preocupação podia ser demonstrada com o toque de recolher, aplicado pelas
autoridades locais. De acordo com as Ordenações Filipinas as pessoas que fossem encontradas
nas ruas após o toque de recolher, com algum material que pudesse ser utilizado para abrir ou
quebrar portas deveria ser degredado para o Brasil.
136
Infelizmente, o código filipino não
informa qual seria a punição para os habitantes das terras brasileiras, mas esta postura deixa
clara a atitude das autoridades em relação a este delito. Quase tudo que valesse algum
dinheiro era possível ser furtado. Moeda, jóias, papéis, escravos, gado, alimento e a as
igrejas eram alvos da ação dos ladrões. Vicente Barbosa, filho de Josefa Barbosa, foi preso
em Mariana no dia 08 de novembro de 1803 por ter furtado dez selos de 640 réis cada um,
pertencentes a João de Oliveira Souza.
137
De acordo com as Ordenações Filipinas qualquer
pessoa que furtasse um marco de prata ou outra coisa alheia que valesse tanto como o dito
marco, estimada em sua verdadeira valia que a dita prata valesse ao tempo do furto, morreria
por isso. E qualquer pessoa que furtasse valia de quatrocentos réis e daí para cima, não sendo
132
Farpão era uma antiga arma de guerra, espécie de dardo ou seta grande que se disparava com besta.
133
Palheta era uma lâmina de prata tirada à fieira.
134
Virote era uma seta curta e empenada que poderia ser usada para arremesso.
135
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 143.
136
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 198. O toque de recolher era executado através do toque de um sino.
Segundo o título 45 do livro I das Ordenações Filipinas, nos lugares onde era costume tanger o sino, os juízes
ordinários deviam mandar os alcaides das cidades e vilas principais tocarem o sino de recolher durante uma
hora inteira, entre as oito e nove horas da noite do princípio de outubro até o final de março (no inverno) e
das nove às dez horas entre o princípio de abril e o final de setembro (no verão). Nas outras vilas e lugares
bastava tocar o sino por apenas meia hora, desde que se terminasse às nove horas no inverno e as dez no
verão.
137
AHCMM. Códice 167, folha 114.
57
o furto de qualidade por que deveria morrer, seria publicamente açoitado com baraço e
pregão, e se o que foi furtado fosse de valia de quatrocentos réis para baixo, seria oitado
publicamente com baraço e pregão ou lhe seria dada outra menor pena corporal que os
julgadores decidirem, havendo respeito à quantidade e qualidade do furto e do ladrão.
138
Félix da Silva Pontes, homem pardo forro, de 50 anos de idade, que vivia de roça, foi preso no
distrito de Barra Longa no dia 14 de maio de 1804 por furtar várias cabeças de gado.
139
Se
alguma pessoa tirasse gado sem licença do rendeiro ou jurado, ou do oficial de justiça que
para isso tivesse poder, ou se não pusesse penhor bastante na mão do curraleiro, ou da
vizinhança quando não houvesse curraleiro ou se não pudesse achar, pagaria dois mil is
para o conselho e seria degredado um ano para fora da vila e termo.
140
Os furtos cometidos
nas estradas também ocorriam, a talvez até mais intensamente, na medida em que os crimes
cometidos nas áreas mais desertas dificultavam a ação das autoridades. Bento da Silva
Borges, homem crioulo e forro, foi preso em Mariana no dia 29 de janeiro de 1806, por furtos
feitos na estrada de Catas Altas a um preto de nome Paulo, além de ferimentos causados no
mesmo.
141
De acordo com o código filipino a pessoa a que for provado que em caminho ou
no campo, ou em qualquer lugar fora de povoação, tomou por força ou contra vontade a outra
pessoa coisa que valha mais de cem réis, morreria morte natural. E se fosse de valia de cem
réis para baixo, seria açoitado e degredado para sempre para o Brasil.
142
Perguntamos-nos
novamente qual seria a punição aplicada a este delito se o mesmo fosse praticado nas terras
brasileiras. Já Germano de Souza foi preso em Mariana no dia 05 de outubro de 1809 por
furtos feitos na Catedral da Sé.
143
Segundo o código filipino qualquer pessoa que furtasse
alguma prata ou ouro, vestimentas, vestidos dos santos, ornamentos dos altares e outros da
igreja ou mosteiro, ou de alguma casa que dentro da igreja ou mosteiro estiver ou furtasse
alguma escritura de algum cartório de igreja ou mosteiro, morreria por isso morte natural,
posto que a quantia chegasse à valia de marco de prata. E se a quantia furtada das igrejas não
equivalesse a um marco de prata, os ladrões deveriam ser publicamente açoitados e
degredados por quatro anos para galés. E se qualquer pessoa fosse tomada cortando ou
desatando bolsa ou metendo a mão em alguma algibeira, nelas achando dinheiro ou não, se
fosse peão, seria açoitado e, se o delito fosse cometido dentro de uma igreja deveria ser além
138
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 193 e 194.
139
AHCMM. Códice 167, folha 122 v.
140
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 275.
141
AHCMM. Códice 167, folha 141 v.
142
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 199.
143
AHCMM. Códice 167, folha 158 v.
58
de açoitado, degredado dois anos para as galés.
144
Ainda era possível encontrar o furto de
escravos. Serafim Gomes da Silva foi preso em Mariana no dia 19 de outubro de 1813 por
furtar uma escrava de propriedade de Dona Maria Martins no distrito de Guarapiranga.
145
A
posse de escravos alheios poderia ser punida como furto, com pena equivalente, dependendo
do valor do escravo, salvo se o dito escravo fosse encontrado à solta e o mesmo fosse
devolvido ao seu dono ou ao juiz da cabeça do almoxarifado da comarca em que for achado.
146
As punições para o crime de furto traziam ainda mais variações. De acordo com as
Ordenações, se alguma pessoa cometesse três furtos por diversos tempos, e se cada um dos
furtos valesse um cruzado ao menos, morreria por isso, posto que já pelo primeiro, segundo
ou por ambos já deveria ter sido punido.
147
O atravessamento ocorria quando alguma pessoa comprava pão, vinho ou azeite para
revender, sem autorização damara. Apenas um caso de atravessamento foi identificado em
Mariana no período estudado. O Capitão Manuel Ribeiro de Souza foi preso em Mariana no
dia 19 de julho de 1800 por atravessar mantimentos.
148
As Ordenações defendiam que pessoa
alguma não pudesse comprar vinho, nem azeite para tornar a vender no lugar onde o comprou,
e se isto ocorresse, seria preso e perderia a valia do vinho ou azeite em dobro, a metade para
quem o acusasse e a outra metade para a Câmara. Contudo, poderiam comprar vinho e azeite
para revender no mesmo lugar as pessoas a quem a Câmara desse licença para o venderem por
medidas miúdas de canada
149
e daí para baixo. E pela mesma maneira poderiam comprar
vinho os estalajadeiros para vender pelo miúdo, quando a Câmara desse para isso licença.
150
Os arrombamentos de casas e o incêndio criminoso de residências se enquadram nos
danos à propriedade. No Termo de Mariana foram 14 ocorrências desta natureza, portanto,
3,1% do total de delitos cometidos. Francisco Gonçalves de Moraes, homem pardo forro, de
38 anos de idade, que se ocupava de mineração foi preso no distrito de Furquim no dia 08 de
janeiro de 1805 por ter queimado a casa de Teodora Teixeira.
151
Miguel de Araújo, homem
crioulo, foi preso em Mariana no dia 03 de agosto de 1814 pelo arrombamento da casa de
André Monteiro e por ferimentos feitos neste.
152
Miguel Jorge Machado, homem branco, foi
144
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 195.
145
AHCMM. Códice 167.
146
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 200.
147
Ibid. p. 194.
148
AHCMM. Códice 167, folha 98 v.
149
Medida de líquidos, que variava de 1,4 litros (canada de Lisboa) a 2,6 litros (canada do Rio de Janeiro),
enquanto a canada velha chegava a valer 6,890 litros em alguns lugares.
150
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 240.
151
AHCMM. Códice 167, folha 129 v.
152
AHCMM. Códice 167.
59
preso em Mariana no dia 25 de agosto de 1818 por ter arrombado uma casa.
153
Martinho,
escravo crioulo do Alferes Manuel Vaz de Lima, foi preso em Mariana no dia 27 de janeiro de
1819, pelo arrombamento da casa do Capitão Manuel Ribeiro.
154
Os arrombamentos de casas
geralmente vinham acompanhados de furto ou agressão física, e as Ordenações Filipinas
previam estas variações. Segundo o código, qualquer pessoa que por força entrasse em
alguma casa quebrando as portas ou lançando-as fora do couce
155
, ora consigo levasse gente
de assuada, ora não, e fosse para ferir, matar, roubar, forçar ou tomar mulher, ou injuriar
alguma pessoa que dentro da casa estivesse, posto que nenhuma das sobreditas coisas fizesse,
seria degredado para sempre para o Brasil e mais pagaria a injúria à parte pela força que lhe
assim fez, havendo respeito pela qualidade das pessoas. E, além disso, seria punido, segundo
o dano ou ofensa que fizesse.
156
Quanto aos incendiários, era proibido a qualquer pessoa, de
qualquer qualidade e condição que fosse, pusesse fogo em parte alguma. E se o culpado pelo
incêndio fosse achado, sendo este peão, seria preso e da cadeia pagaria o dano, além de ser
conduzido e degredado com baraço e pregão pela vila por dois anos para a África. E sendo
escudeiro, seria degredado por dois anos para a África com pregão na audiência e pagaria o
dano ao dono da propriedade. E se fosse cavaleiro ou fidalgo, por seus bens fariam as Justiças
pagar o dano às partes e mais no-lo fariam saber para a Justiça lhe dar o castigo que melhor
lhe parecesse, segundo o dano causado.
157
Os crimes que se referem à fabricação e ao porte de moeda falsa, e ao pagamento de
dívidas com ouro falso, representam juntos, 1,3% do total de crimes cometidos, com seis
ocorrências. Thomé Pereira da Silva, homem branco de 24 anos, caldeireiro, foi preso em
Mariana no dia 24 de novembro de 1803 por fabricar moeda falsa.
158
Martinho José da Silva,
homem pardo forro de 22 anos de idade, foi preso em Mariana no dia 07 de maio de 1804 por
também fabricar moeda falsa.
159
Moeda falsa era toda aquela que não era feita por mandado
do rei, em qualquer maneira que se faça, mesmo que fosse feita da mesma matéria e forma de
que se faz a verdadeira, porque conforme o direito ao rei somente pertence fazê-la, e a outro
algum não, de qualquer dignidade que seja.
160
Para o Reino, fabricar moeda falsa era coisa
muito prejudicial e todos que fossem culpados deste crime mereceriam ser gravemente
castigados. As Ordenações Filipinas mandavam que todo aquele que fabricasse moeda falsa
153
Ibid.
154
Ibid.
155
Couce é a peça de madeira sobre a qual a porta gira em suas dobradiças.
156
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 164.
157
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 270.
158
AHCMM. Códice 167, folha 114 v.
159
Ibid. folha 122.
160
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 86.
60
ou ajudasse a fazê-la deveria por isso, morrer morte natural de fogo e ter todos os seus bens
sejam confiscados para a Coroa do Reino. E neste crime de moeda falsa ninguém gozaria de
privilégio pessoal que tenha, de fidalgo, cavaleiro, cidadão ou qualquer semelhante, porque
sem embargo dele seria atormentado e punido, como cada um do povo que privilegiado não
fosse. Já Francisco Alves da Costa, homem branco de 30 anos de idade foi preso em Vila Rica
no dia 22 de outubro de 1805 por portar ouro falso. Francisco ainda foi preso portando uma
faca e uma pistola.
161
João Alves Pereira, homem pardo, foi preso em Mariana no dia 10 de
fevereiro de 1808 por pagar uma conta com ouro falso misturado ao ouro verdadeiro a
Vicente Pereira Alves.
162
Se alguma pessoa comprasse, vendesse ou pagasse com moeda
falsa alguma dívida a que fosse obrigado, ou a usasse de qualquer outra maneira, sabendo que
era falsa, se na moeda que assim juntamente e por uma vez comprasse ou despendesse, ou o
que com ela comprasse ou despendesse por duas vezes, montasse mil réis, morreria por isso e
perderia todos os seus bens, a metade para quem o acusasse e a outra metade para a Coroa do
Reino.
163
A lei ainda recomendava à Justiça, que quando alguma autoridade descobrisse cada
uma das ditas coisas, esta por sua vez, deveria manter segredo, e querendo a isto provar,
deveria ser breve e tirar inquirição do caso, fazendo todas as diligências para se achar a dita
moeda, se descobrir os culpados e os prender, e logo, escrever e seqüestrar suas fazendas,
procedendo contra eles como for justiça.
164
Podemos perceber, que entre os crimes cometidos
no Termo de Mariana no início do século XIX, a fabricação de moeda falsa era a que
acarretava a punição mais pesada. A morte na fogueira e a perda de todos os bens, sem
distinção de privilégio a qualquer pessoa que fosse, tinham com certeza, a intenção de dar o
exemplo, de mostrar àquele que se atrevesse a cometer tal delito qual seria o seu destino. Não
discutiremos aqui o problema enfrentado pela Coroa com o contrabando de ouro nas Minas
Gerais, principalmente no período áureo da mineração, mas já podemos perceber, através da
punição prevista em lei a este crime, o quanto esta ofensa aos cofres reais era detestável.
As dívidas e penhoras motivaram setenta e nove prisões no Termo de Mariana,
portanto, 17,8% do total de delitos cometidos. As dívidas faziam parte do cotidiano das Minas
e a penhora representava uma solução para o pagamento das mesmas. Segundo Bluteau,
penhora é a ação de penhorar os bens que bastam para a condenação, ou satisfação da dívida,
por que se faz a penhora.
165
A penhora era prática comum na realização das compras a prazo
161
AHCMM. Códice 167, folha 140.
162
AHCMM. Códice 167, folha 151 v.
163
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 88.
164
Ibid. p. 90.
165
BLUTEAU, op. cit. p. 394.
61
e no pagamento das dívidas. Mais vale penhor na arca, que fiador na praça, diz o adágio
português.
166
Ainda segundo Bluteau, penhorar significa embargar o uso dos bens de alguém
e entregá-los à justiça para segurar o que basta para pagar ao credor.
167
Aqueles que não
traziam seus bens, já penhorados, à Praça Pública no tempo determinado acabavam sendo
detidos. Vicente, homem crioulo, foi preso em Mariana no dia 07 de março de 1803 por o
pagar uma precatória no tempo devido.
168
Joaquim Rodrigues Lima foi preso no distrito de
Infincionado no dia 17 de janeiro de 1804 por não pagar uma vida a João Fernandes no
tempo devido.
169
Antônio José de Oliveira foi preso no distrito de Antônio Pereira no dia 02
de dezembro de 1812 por ser depositário de bens penhorados.
170
José da Costa Bernardes foi
preso no distrito de São Sebastião no dia 08 de maio de 1817 por ser depositário de bens
penhorados.
171
Assim como estas, várias outras prisões ocorreram no Termo de Mariana por
causa de dívidas. De acordo com as Ordenações Filipinas os presos que estivessem nas
prisões por dívidas, que dependessem dos feitos crimes e custas das partes dos mesmos feitos,
se fossem degredados para a África por alguns anos, além das condenações do dinheiro por
que eram embargados, estando um ano na prisão depois de serem julgados e o satisfazendo
as partes o dinheiro das condenações, deveriam ser levados presos ao Brasil, contando-lhes
um ano no Brasil para dois de África.
172
O que torna a análise mais curiosa é a lei de 20 de
junho de 1774, que na verdade, deveria abolir as prisões causadas pelo o pagamento de
dívidas. Vimos que no início do século XIX estas prisões ainda ocorriam, o que nos faz
pensar sobre a diferença da lei escrita e sua execução na prática, especialmente nos territórios
pertencentes à Coroa no ultramar.
Destacamos ainda na tabela 1 as prisões por querelas. As querelas se encontram em
separado, pois na verdade podem pertencer a todas as categorias, já que se referem aos mais
variados delitos. A querela também era uma forma de exteriorização de conflitos. Podia-se
querelar sobre tudo, furto, agressão, homicídio, e qualquer outro crime cometido. A querela
na verdade, era a queixa de um crime perante o juiz, que devia ser assinada pela parte que a
desse e pelo julgador. Era responsabilidade deste último, conhecer a pessoa que estava se
queixando ou as testemunhas que presenciaram o crime. Segundo as Ordenações Filipinas, se
alguém querelasse de outro, e o réu acusado fosse livre por sentença do malefício e querela,
166
Ibid. 393.
167
Ibid. 394.
168
AHCMM. Códice 167, folha 110 v.
169
Ibid. folha 118.
170
AHCMM. Códice 167.
171
Ibid.
172
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491.
62
por se não provar o contido nela, o tal quereloso seria nessa mesma sentença condenado nas
custas, e em todo o dano e perda que o réu por razão dessa querela e acusação recebesse, na
cadeia. E se o quereloso fosse achado em malícia, seria condenado nas custas em dobro, ou
em tresdobro, segundo a malícia em que fosse achado.
173
Além disso, o juiz se devia receber
qualquer querela que tivesse ocorrido há mais de um ano, nem casos que já houvessem sido
julgados. Com certeza, muitas querelas se originavam de rixas antigas e brigas entre vizinhos.
Era a oportunidade de se vingar e ver, sendo punido pela a Justiça, uma pessoa que você o
gostasse e que alguma vez tivesse lhe prejudicado. As querelas ofereciam esta oportunidade
às pessoas, mas estas deveriam estar cientes de que uma denúncia sem provas e sem
testemunhas poderia fazer com que ela acabasse sendo detida, ao invés de seu inimigo.
Discutimos até aqui, os crimes cometidos no Termo de Mariana no início do século
XIX e as respectivas punições previstas na lei para cada um destes delitos. Atentamos ainda
para a classificação destes delitos em crimes contra a ordem pública, contra a pessoa e contra
a propriedade, mas afinal qual destas três categorias prevaleceu ao longo destes trinta anos?
Observemos o gráfico abaixo.
21
153
142
28
0
20
40
60
80
100
120
140
160
Gráfico 1 - A incincia de crimes no Termo de Mariana
(1800-1830)
Crimes contra a ordem pública Crimes contra a pessoa
Crimes contra a propriedade Outros
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
173
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 397.
63
O gráfico nos mostra mais claramente o que a tabela 1 evidenciava: um número
maior de crimes contra a pessoa, seguidos dos crimes contra a propriedade, e uma menor
incidência de crimes contra a ordem pública. Foram realizadas no Termo de Mariana, ao
longo dos primeiros trinta anos do século XIX, 425 prisões, que totalizaram 445 delitos, dos
quais pudemos identificar 344. Os crimes contra a ordem pública totalizam 21 ocorrências, os
crimes contra a propriedade somaram 142, enquanto que os crimes contra a pessoa
predominaram com 153 casos. Entre os 28 delitos enquadrados na categoria outros se
encontram as querelas.
O povo mineiro é quase em geral honrado, honesto, pacífico, trabalhador, generoso,
hospitaleiro, inclinado às ciências e artes liberais, e acima de tudo patriota.
174
Desta
maneira, Cunha Matos caracteriza os habitantes das Minas no início dos oitocentos. Seria esta
a realidade encontrada nas Minas no século XIX, ou esta afirmação é uma pura exaltação ao
povo mineiro? Cunha Matos, no entanto, faz uma ressalva quanto à qualidade da população,
afirmando que assim como em todos os países do universo, em Minas, também se
encontravam pessoas de qualidades absolutamente opostas às precedentes, sendo ferozes,
vingativas, bandoleiras e inimigas do trabalho. A classe inferior da sociedade, e muito
principalmente os libertos e os habitantes dos lugares menos povoados, mais remotos das
grandes povoações e nos limites da província, seriam para ele a parcela da população contra
quem havia motivos de queixa mais repetidos e justificados.
Seriam então os libertos os principais responsáveis pela prática do crime nas Minas
do século XIX? Discutiremos este ponto mais a frente, contudo, já devemos mencionar que as
prisões realizadas não apontam esta perspectiva, sendo a camada livre da população a
principal responsável pelos delitos cometidos e não os alforriados. Os habitantes de lugares
menos povoados seriam então os responsáveis pela maior parte dos delitos? Os lugares mais
remotos das grandes povoações e os limites da província seriam as regiões onde o crime
prevalecia? Acreditamos ser possível a hipótese proposta por Cunha Matos, na medida em
que delitos cometidos em regiões mais distantes de um centro regulador são mais difíceis de
serem averiguados e punidos. Entraremos mais a fundo nesta questão ao longo deste capítulo,
quando poderemos identificar os crimes contabilizados pela administração carcerária do
Termo de Mariana na cidade e nos distritos.
É interessante observar, num primeiro momento, que Cunha Matos elogia o povo
mineiro enaltecendo suas virtudes e qualidades frente a outros países. Em seguida o autor tece
174
MATOS, op. cit.
64
ressalvas afirmando que uma camada originada da escravidão, portanto para ele, inferiorizada
em todos os sentidos, é a principal responsável pelos crimes e violência praticados no
território mineiro. Posteriormente ele viria a afirmar que a classe distinta da população em
nada tinha que invejar aos mais polidos do Brasil, pois todos os habitantes de Minas, quer
ricos quer pobres, tanto os rústicos como os mais polidos, exercitavam em grau heróico a
virtude da hospitalidade, portanto eram excelentes pessoas. Afinal, os mineiros no início do
século XIX apresentavam mais qualidades ou defeitos? Eram os mineiros bons ou ruins?
Pela afirmação de Cunha Matos, nos parece, que se não fosse pela presença dos libertos e
logicamente dos escravos, o índice de crimes seria infinitamente menor. Mas como explicar
então um maior índice de crimes cometidos por livres? E pior, como explicar que estes livres
eram responsáveis por um número maior de crimes cometidos contra a pessoa?
Dos 344 crimes identificados, 153 correspondem aos crimes contra pessoa, portanto,
aproximadamente 44,5% do total de delitos cometidos. Homicídios e agressões físicas
contribuíram com grande parcela para esta predominância de crimes contra a pessoa. Buscar
explicações para estes delitos é deveras complicado, na medida em que os motivos eram
variados. No entanto, devemos considerar que muitos conflitos eram resolvidos com o uso da
violência. Já comentamos o quanto era complicado para a Justiça administrar e controlar todas
as ocorrências no vasto território do Termo de Mariana. Em um território em que se tornava
difícil a aplicação da lei e da justiça de maneira eficaz, o uso da violência era uma alternativa.
Brigas corriqueiras de vizinhos, discussões banais e ofensas morais sempre foram
motivadores para as agressões físicas e homicídios e o seria diferente na Minas Gerais
Colonial. As agressões e homicídios eram um meio simples de se resolver estas contendas.
Francisco Pires foi preso no ano de 1804 por ter matado o filho de Joana Maria de Lima. Que
intenções tinha Francisco ao matar o filho da dita Joana? Qual o motivo para o homicídio? O
processo crime do caso deve apresentar os motivos, que poderiam ser muitos: vingança,
preservação da honra, crueldade etc. Mas o que se torna interessante é o fato de Francisco, o
assassino, ser um homem branco, Capitão e roceiro, portanto distante do estereótipo proposto
por Cunha Matos para um possível arruaceiro. Longe de ser liberto, Francisco era branco,
longe de ser vadio, era Capitão e roceiro. Provavelmente este crime foi mais um atrito entre as
partes que resultou na morte do filho de Joana. Falando desta maneira pode parecer que
estamos banalizando o crime, mas precisamos entender que esta era uma maneira de resolver
os conflitos diários. A sociedade mineira na primeira metade do século XIX estava inserida
num sistema escravista de produção, um sistema violento por si só. Não podemos dizer com
isso que a sociedade mineira era violenta, pois esta era uma realidade vivida pela população.
65
Como podemos afirmar que uma determinada sociedade é violenta baseada em relatos e casos
que estão muito distantes do nosso tempo? Propusemos como possível motivo para a
predominância de crimes contra a pessoa a ineficiência da Justiça, mas isto pode parecer um
paradoxo na medida em que a maioria das prisões realizadas tem como causa este tipo de
delito. No entanto, de acordo com nosso argumento, se a maioria das prisões eram motivadas
por crimes contra a pessoa podemos concluir que estes delitos eram os mais praticados e com
certeza muitos destes, fugiam do olhar da Justiça. Outra possibilidade seria a de que a Justiça
determinava a pena de prisão para os delitos cometidos contra a pessoa e para outras
categorias, os crimes contra a propriedade e contra a ordem pública, esta punição não seria tão
utilizada. Esta segunda possibilidade parece improvável, pois as Ordenações Filipinas não
utilizavam a prisão como pena isolada para nenhum crime, devido aos gastos com a
manutenção das cadeias. Além disso, seria mais preocupante para a administração carcerária
punir os crimes que afetassem diretamente o poder exercido pela Coroa.
Os crimes contra a propriedade, seja esta pública ou privada, totalizaram 142
ocorrências, portanto aproximadamente 41,3% do total de crimes cometidos. Esta categoria
parecia dispensar atenção especial da Justiça, pois afetava de maneira mais evidente os
interesses da administração colonial. Fabricação e porte de moeda falsa, por exemplo,
afetavam de maneira incisiva um dos grandes interesses do reino português, o ouro da região
das Minas. No auge minerador o contrabando foi um dos grandes problemas enfrentados pela
administração colonial. Podemos considerar que a utilização de ouro para a fabricação de
moeda falsa ou ilegal é contrabando, e este no século XIX, também esteve presente e foi
punido com pena de prisão. A preocupação da administração colonial com os crimes contra a
propriedade se torna ainda mais clara quando as prisões têm como causa o não pagamento das
dívidas, delito responsável pelo inchaço desta categoria. Foram realizadas no total, 79
prisões por não pagamento de dívidas, nos primeiros trinta anos do século XIX, mas as
Ordenações Filipinas nos informam que a pena de prisão por dívida estava abolida desde o dia
20 de junho de 1774.
175
E no Termo de Mariana esta lei chegou com atraso de pelo menos
cinqüenta anos, na medida em que encontramos prisões por vidas aproximadamente ao
ano de 1825. Com este exemplo podemos perceber a preocupação da Coroa com assuntos
referentes à circulação de capital, seja o da Coroa ou dos colonos, pois na verdade, a falta de
pagamento das dívidas gerava um problema de interesse geral. As compras a prazo eram
comuns, e veremos isto mais detalhadamente a frente, mas de imediato é necessário ressaltar
175
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491.
66
que quando um comerciante não recebia uma dívida feita por seus fregueses ele não
conseguia pagar os produtos adquiridos para sua venda nem adquirir outros, por exemplo.
Quando uma dívida não era paga todos os setores acabavam sendo afetados, uns mais
intensamente outros menos. Talvez daí a repreensão com a pena de prisão ser aplicada, pois se
tornava uma garantia de ressarcimento aos credores.
O furto, assim como a prisão por dívidas, contribuiu para este considerável índice de
crimes contra a propriedade. Talvez, este delito, possa ser relacionado à pobreza da
população, isso, se entendermos que os furtos são motivados pela falta de condições
financeiras necessárias à sobrevivência. Furtava-se de tudo: ouro, jóias, selos, papéis,
escravos, e nem mesmo o interior das igrejas escapava à ação dos ladrões. Consideramos
ladrão simplesmente aquele que furta ou rouba independentemente de motivação ou
necessidade. Entendemos que a pobreza era uma das causas para a prática de pequenos furtos,
mas a generalização do tema se torna um problema. Assim como pequenos furtos eram
cometidos, de mantimentos ou até mesmo baixas quantias de ouro, por exemplo, grandes
furtos também eram realizados. Furtar um escravo é sinal de pobreza? Furtar cabeças de gado
e agregá-las à sua propriedade é sinal de miséria? É importante diferenciar estas variações e
não generalizar suas motivações, pois o quadro da sociedade mineira no início do século XIX
era complexo. Alguns furtos ocorriam devido à miséria enfrentada por parte da população,
outros se deviam à ganância de pessoas que estavam longe de serem caracterizadas como
pobres e outros eram cometidos pela facilidade de se formar bandos e quadrilhas nos vastos
territórios mineiros.
Os crimes contra a ordem pública resultaram em 21 prisões, o que representa
aproximadamente 6,1% do total de crimes praticados. As prisões por crimes contra a ordem
pública resultaram principalmente das arruaças, das resistências e agressões à autoridade, do
porte de armas proibidas e das infrações de posturas. Nesta categoria se encontra a maior
variação no que respeita a ocupação de cada um destes presos, além de ser a categoria que
permite à Justiça identificar o criminoso e aplicar a respectiva punição com mais eficiência.
As ocorrências envolvendo autoridades podem ser facilmente identificadas na medida em que
são estas autoridades as responsáveis pelas prisões. As infrações de posturas, neste caso, se
referem ao não cumprimento ou ao cumprimento indevido de funções desenvolvidas por
autoridades locais, um juiz ou outro oficial qualquer que não tenha desempenhado seu ofício
de forma correta, por exemplo. A providência correta e necessária para tal infração pode
demorar e até mesmo nunca acontecer, mas as irregularidades chegam ao conhecimento da
Câmara Municipal e cabe a ela a decisão a ser tomada. Já arruaças e o porte de armas
67
proibidas, especialmente este último, se tornam mais complicadas para a administração
carcerária. O território é muito grande e o número de oficiais é reduzido e fica difícil controlar
todos os conflitos ocorridos. Os casos de arruaças, por exemplo, na documentação pesquisada,
se limitam a apenas dois casos, definidos por nós como desordem. Para as autoridades
responsáveis talvez seja fácil tomar conhecimento dos delitos, mas ao mesmo tempo se torna
complicado prender os culpados, principalmente se estas manifestações ocorressem à noite.
o porte de armas proibidas somente seria descoberto se o oficial responsável pela prisão visse
a pessoa armada ou recebesse denúncia de que alguém estava portando alguma arma e
imediatamente se dirigisse ao local.
De acordo com Cunha Matos os costumes do povo sofreram alterações à medida que
a população crescia. Para ele, os antigos mineiros, nos seus arraiais fortificados de paliçadas
bem semelhantes aos senhores feudais da Europa, pouco respeitavam as leis e as autoridades
constituídas, quando uma e outras não favoreciam os seus caprichos ou as suas justas
pretensões. Por muitas vezes famílias poderosas, ajuntando uma grande clientela, zombavam
das leis e desafiavam as autoridades do país. Neste caso, os seus ressentimentos eram
acompanhados de terríveis hostilidades e as contendas de família terminavam nos
sanguinolentos campos de batalha.
176
Cunha Matos toca agora numa questão interessante, o desrespeito à lei e às
autoridades pelas famílias mais importantes das antigas localidades. Norbert Elias afirma que
quanto mais complexas são as redes de relações de uma determinada sociedade mais os
homens tendem a controlar seus impulsos. Cunha Matos simplesmente constata esta
afirmação já no início do culo XIX, quando afirma que as famílias importantes agiam de
acordo com seus interesses desrespeitando as leis e as autoridades. Isto ocorria,
primeiramente, pela importância que estes colonos detinham na localidade, e posteriormente
pela ineficiência do sistema punitivo. Além disso, as redes de ligações não pareciam ser tão
fortes assim e estas famílias, detentoras de poder, conseguiriam tudo o que desejassem.
Quando estas redes se tornam mais complexas e a administração colonial parece bem
constituída, estas famílias necessitam repensar suas atitudes, pois teoricamente estariam mais
vigiadas e dependeriam de uma boa relação com as autoridades.
Cunha Matos aponta dois lados na questão do passar dos anos e na mudança nos
hábitos dos mineiros. Segundo ele tudo mudou com os progressos da civilização, mas
infelizmente, por volta dos anos trinta dos oitocentos os ranchos eram atacados e os
176
MATOS, op. cit.
68
viandantes eram assaltados nas estradas, fazendo com que se tornasse uma rigorosa
necessidade os homens caminharem armados. Para Matos até o ano de 1820 existia uma
maior segurança nas estradas, podendo as cargas dos tropeiros e as bagagens dos viandantes
ficarem nos ranchos ou no meio dos campos sem correrem risco de serem roubadas.
177
Afinal de contas, o passar dos anos fez aumentar ou diminuir a criminalidade? Para
Matos a civilização fez com que as pessoas reconhecessem as leis, mas encontrassem
também meios para infringi-las. Seria tão simples assim? A civilização mencionada por
Matos não deveria além de tornar a lei uma realidade, fazer com que as pessoas às
respeitassem?
Segue Cunha Matos afirmando que com a civilização a moralidade da classe
inferior do povo diminuiu. Para ele isto se deve a quatro motivos. Primeiramente aos
recrutamentos, pois um grande número de homens, para não entrarem no serviço militar,
abandonaram suas famílias e habitações, acostumando-se a vida errante e a sustentar-se a
custa alheia, por todos os meios possíveis. Em segundo lugar, a presença de vadios e
estrangeiros. Em terceiro, ao luxo que vinha sendo introduzido na então Província de Minas
Gerais. E por último, o aumento progressivo dos jogos de azar como o motivo principal da
imoralidade das classes inferiores dos habitantes de Minas.
178
O recrutamento forçado para o serviço militar era realmente um grande problema
enfrentado pelas autoridades e pela população. Outras regiões do país também enfrentavam
esta situação. A falta de pagamento, a alimentação, e os riscos a serem enfrentados nas
matas e sertões mineiros não encorajavam os homens a ocuparem as tropas. Mas daí afirmar
que a fuga dos homens frente ao recrutamento fazia com que eles usassem de meios ilícitos
para sobreviver é uma longa distância. A presença de vadios e estrangeiros também
preocupava. A vadiagem teria aumentado ao longo dos anos? A atenção da Coroa para a
questão dos vadios se tornava realmente intensa na medida em que estes eram acusados de
viver no ócio e de perambular pelas noites cometendo delitos. E os estrangeiros nisso tudo,
longe de suas terras e família aproveitariam para viver uma outra vida aqui nas Minas. Os
estrangeiros interferiram então na moralidade dos mineiros? E a vinda de produtos luxuosos
para as Minas gerava uma revolta na camada economicamente mais inferiorizada da
sociedade? E o aumento no número de jogos de azar, foi o grande responsável pela
imoralidade da população? Vejamos que Cunha Matos enumera fatores variados em todos os
sentidos, e poderia enumerar vários outros. É realmente possível identificar motivos para a
177
Ibid.
178
Ibid.
69
proposição de Cunha Matos? Como se deu a incidência de crimes ao longo dos anos?
Observemos o gráfico abaixo que mostra os crimes mais cometidos ao longo dos primeiros
trinta anos do século XIX no Termo de Mariana.
Gráfico 2 - Os crimes mais cometidos no Termo de
Mariana ao longo dos anos (1800-1830)
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
1805 1810 1815 1820 1825 1830
Agressão física Furto Homicídio Penhora
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Os crimes com maior número de ocorrências que resultaram na prisão foram: as
agressões físicas, os homicídios, os furtos e o não pagamento de dívidas. De maneira geral o
gráfico nos mostra que o número de crimes que resultaram na prisão diminuíram ao longo dos
primeiros trinta anos do século XIX, e apesar de algumas oscilações, o número de delitos
cometidos apresentava uma tendência de queda.
As agressões físicas, nos cinco primeiros anos dos oitocentos somam 12 ocorrências.
Este número sobe ao longo dos anos, sendo que puderam ser contabilizadas 19 agressões entre
os anos de 1805 e 1810, e 23 entre 1810 e 1815. Nos quinze anos seguintes o número de
ocorrências cai, sendo 16 casos entre 1815 e 1820, 11 entre 1820 e 1825 e apenas 7 entre
1825 e 1830. O número de homicídios oscila ao longo dos anos, mas também apresenta
70
tendência de queda. Entre 1800 e 1805 ocorreram 12 mortes e nos cinco anos seguintes 13.
No período entre 1810 e 1815 foram somente 5 ocorrências, seguidos de 3 casos nos
próximos cinco anos. Após esta queda, sobem para 10 o número de homicídios entre 1820 e
1825, voltando a cair, agora para 5, entre os anos de 1825 e 1830. Os furtos também
diminuem ao longo dos anos sendo 22 casos nos dez primeiros anos e 15 nos próximos vinte.
As prisões pelo não pagamento de dívidas apresentam uma diminuição mais acentuada ao
longo dos trinta anos estudados. Só nos cinco primeiros anos são contabilizados 41 delitos
desta natureza, caindo para 19 entre 1805 e 1810 e para 16 entre 1810 e 1815. Nos próximos
cinco anos são realizadas somente 3 prisões e os outros dez anos este delito não aparece mais
entre a documentação carcerária.
Para Cunha Matos até o ano de 1820 existia uma maior segurança nas estradas,
podendo as cargas dos tropeiros e as bagagens dos viandantes ficarem nos ranchos ou no meio
dos campos sem correrem risco de serem roubadas. A partir deste período, segundo ele, a
violência aumenta consideravelmente, tendo os mineiros de se preocupar a toda hora com o
acometimento de um possível delito. Podemos notar no gráfico acima que todos os delitos
apresentam uma queda em relação aos primeiros anos dos oitocentos. Mas o que representaria
esta queda? Uma real diminuição na prática de crimes ao longo dos anos ou uma redução nas
prisões devido a alguns problemas de ordem administrativa?
A prisão, no século XVIII funcionava como um armazém, principalmente para
guardar escravos fugidos e aqueles deixados por seus donos quando estes saíam de viagem.
No século XIX passamos a encontrar na prisão uma vasta gama de pessoas, encarceradas ali
pela prática dos mais variados delitos, que nem sempre deveriam ser punidos com este tipo de
pena.
As reformas no campo jurídico foram necessárias, sendo a Constituição de 1824 e o
Código Criminal do Império, de 1830, as principais. A Constituição de 1824 apresentava uma
significativa transformação jurídica. O seu Artigo 21º dizia que "as cadeias serão seguras,
limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para a separação dos réus, conforme suas
circunstâncias e natureza de seus crimes". Em 1830, foi criado o primeiro Código Criminal
brasileiro que "assentou a precedência da conduta criminosa; a irretroatividade; a referência
legal da pena perante a lei; a abolição dos açoites para pessoas livres; torturas; marcas de ferro
quente; das penas de confisco e de infâmia; a inviolabilidade do domicílio; a garantia do
direito de propriedade; o princípio do habeas corpus etc".
179
179
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe, op. cit.
71
Criado em 1827, o cargo de Juiz de Paz representou, após a instituição do Código
Criminal em 1830 significativas mudanças. Ele expedia ordem de prisão, julgava o processo
crime, elaborava culpa, além de encarcerar e condenar o indivíduo que cometeu pequena falta.
Segundo Elizabeth Rouwe, todas essas atribuições concedidas ao juiz de paz o tornaram
ineficiente e arbitrário, pois sua atuação nos processos crimes resultava em dúvidas e até na
impunidade do réu.
180
O gráfico 2 nos mostra que o número de prisões diminuíram com o passar dos anos,
principalmente a partir de 1815. Mas afinal, é possível apresentar motivos para esta queda?
Acreditamos que o índice de crimes não diminuiu e sim o número de prisões. Sabemos
também que a prisão não deveria ser aplicada isoladamente e que existia uma intenção
diferente entre a prisão do século XVIII e a do XIX. Observamos ainda que o início do século
XIX foi um período de mudanças consideráveis no âmbito da Justiça e que a Constituição de
1824 previa mudanças quanto à disposição das cadeias. Estas mudanças em andamento,
mesmo que não modificassem de maneira efetiva a administração carcerária, guardando ainda
resquícios do Antigo Regime, podem juntas ter afetado a aplicação da Justiça principalmente
a partir de 1815. Vejamos as prisões pelo não pagamento devidas que diminuíram ao longo
dos anos até não serem mais encontradas por volta de 1815, pensando o período estudado que
vai de 1800 a 1830.
180
Ibid.
72
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
A prisão pelo não pagamento de dívidas parecia comum no Termo de Mariana no
início do século XIX, haja vista que depois das agressões físicas, foi o delito que mais
apareceu na documentação pesquisada. Mais interessante ainda é o fato de que a prisão por
dívidas estava abolida desde o dia 20 de junho de 1774.
181
Contudo as prisões continuam
ocorrendo até pelo menos o ano de 1817. Entre os anos de 1800 e 1805 foi possível verificar
41 prisões, cuja causa foi o o pagamento de dívidas. Nos cinco anos seguintes este número
cai para 19, chegando a 16 entre 1810 e 1815. Entre 1815 e 1820 foram registradas apenas 3
ocorrências e nos anos seguintes nenhuma. A grande maioria dessas prisões deveu-se a
penhora de bens, que se origina das dívidas e aparece como possível garantia de pagamento.
A venda a prazo parecia ser comum e a penhora de bens tornava-se garantia de quitação da
dívida, o que por muitas vezes acabava não acontecendo. Quando os bens penhorados o
eram entregues ao credor no tempo determinado a prisão do depositário ocorria na tentativa
de fazer com que o bem fosse repassado ao credor, ou a dívida fosse quitada.
José Caetano foi preso em Mariana no dia 05 de julho de 1802 por não trazer à praça
seus bens penhorados.
182
O Alferes José Joaquim de Vasconcelos foi preso em Mariana no
181
Ordenações Filipinas. Livro V, p. 491.
182
AHCMM. Códice 167, folha 106.
Gráfico 3 -
A prisão por dívidas ao longo dos anos
(1800-
1830)
0
0
3
16
19
41
0
10
20
30
40
50
1805
1810
1815
1820
1825
1830
Dívida e penhora
73
dia 22 de março de 1803 pelo mesmo motivo.
183
Manuel Teixeira Sampaio foi preso em
Mariana no dia 01 de junho de 1807 por ser depositário de bens penhorados.
184
Maria
Severina foi presa em Mariana no dia 25 de agosto de 1808 por ser depositária de uma escrava
de nação Angola penhorada chamada Tereza.
185
O Alferes Antonio Pereira de Azevedo foi
preso em Mariana no dia 06 de novembro de 1810 por ser depositário de bens penhorados.
186
Todas as prisões citadas acima e tantas outras motivadas pelo não pagamento de dívidas
documentadas nos assentos de prisão da Cadeia Pública de Mariana demonstram a real
intenção da administração camarária referente a este delito. A prisão funcionava realmente
como meio de intimidação, fazendo com que o devedor quitasse sua dívida. Além disso, os
assentos de prisão correspondentes a este delito o trazem informações substanciais a
respeito do preso, informando somente o nome do indivíduo. A cor da pele, por exemplo,o
era informada. Já mencionamos que quando o devedor quitava a dívida ou entregava os bens
penhorados o mesmo era solto imediatamente, e que, além disso, o tempo máximo que uma
pessoa poderia ficar presa por este crime era de seis meses. Veremos a frente o tempo que os
indivíduos presos pelo não pagamento de dívidas passavam encarcerados na Cadeia Pública.
Mas por que tantas pessoas eram presas pela prática deste delito na Minas do século XIX?
A compra e venda de mercadorias era também um fenômeno distinto para diferentes
estratos sociais. Pensando o período colonial, a circulação mercantil nas Minas se deu, em
grande medida, por meio do pagamento a prazo, principalmente as grandes compras de
mercadorias. As compras miúdas eram feitas à vista.
Nas Minas essas práticas se propagaram juntamente com o comércio e se
intensificaram principalmente nas grandes vilas e arraiais. O crédito passava a ser a maneira
mais comum de se adquirir uma mercadoria ou adquirir um serviço. As compras a prazo eram
acertadas tanto de maneira escrita, onde as partes assinavam algum documento, ou só na
palavra mesmo. As compras a prazo, o fiado, o crédito, o empréstimo e a penhora faziam
parte do dia a dia do comércio. Esta última proporcionava uma garantia ao comerciante ou
prestador de serviço, na medida em que se a dívida não fosse quitada o mesmo ficaria com o
bem penhorado pelo devedor. Alguns comerciantes, por precaução, exigiam que seus
devedores escrevessem, ou pelo menos assinassem títulos de compra a fim de que, caso o
fossem cumpridos os contratos, eles não enfrentassem dificuldades em iniciar querela judicial.
É preciso acrescentar que as dívidas eram contraídas tanto por compradores quanto por
183
AHCMM. Códice 167, folha 111.
184
AHCMM. Códice 167, folha 149.
185
AHCMM. Códice 167, folha 154.
186
AHCMM. Códice 167, folha 160.
74
vendedores, criando assim, um verdadeiro circuito de crédito. O comércio dependia do crédito
para sua sobrevivência e parte da sociedade mineira funcionava ora como credora ora como
devedora, compensando assim, esta troca.
187
No entanto, no início do século XIX, esta troca entre devedores e credores pareceu
não acabar muito bem. A penhora tornava-se assim uma faca de dois gumes. Num primeiro
momento apresentava uma garantia em um possível negócio e num segundo momento poderia
levar o indivíduo à prisão. É preciso compreender que a prisão nestes casos reforçava a
garantia do credor, pois assim que a dívida fosse quitada o até então devedor sairia em
liberdade. A penhora, no momento do negócio, se tornava interessante para os dois lados.
Uma pessoa que está sem condições, por exemplo, de comprar bens de consumo numa venda
usa a penhora como uma garantia para a realização da compra. O comerciante por sua vez
a oportunidade de não sair perdendo, já que possui um bem como garantia. Quando o devedor
não consegue quitar sua dívida tem de entregar o bem penhorado num tempo determinado
pela Justiça. No entanto a pessoa acreditava que isso não seria necessário, pois conseguiria o
dinheiro necessário para o pagamento. O bem penhorado nestes casos com certeza era um
bem importante que a pessoa não poderia se desfazer e se vê obrigada a fazê-lo. Quando não o
faz o resultado é a prisão.
Outro aspecto a ser analisado referente às prisões é o local onde os crimes são
cometidos, afinal é mais fácil para a administração carcerária tomar conhecimento e fazer
punir os delitos cometidos nas regiões mais próximas de sua sede, no caso a Casa de Câmara
e Cadeia de Mariana. Observemos o que nos mostra a documentação pesquisada. A maioria
dos crimes é cometida em Mariana ou em seus distritos? Ou melhor, a atuação da Justiça se
faz mais eficaz em Mariana ou nos distritos? Vejamos o gráfico abaixo.
187
ROMEIRO, Adriana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. gs. 113,
114 e 115.
75
288
136
0
50
100
150
200
250
300
Gráfico 4 - A incincia de crimes cometidos na cidade
e nos distritos (1800-1830)
Mariana Distritos
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Como mencionado, o Termo de Mariana, além da sede, acolhia outros 13 distritos,
que por sua vez eram responsáveis por 40 arraiais. Uma população estimada no ano de 1821
por Cunha Matos
188
, em torno de 50.191 almas habitando 8.090 fogos. Portanto, a
Administração Carcerária era responsável por qualquer crime ocorrido neste território e
consequentemente pela prisão de todos os infratores.
A sede, Mariana, possuía 336 fogos e 2.040 almas. Somados aos 613 fogos e as
2.917 almas correspondentes aos pequenos lugares de Passagem de Mariana, Morro de
Santa Ana, Várzea, Morro de Santo Antônio e Monsus, Mariana teria no total 949 fogos
abrigando 4.957 almas. Logo, os distritos de Antônio Pereira, Sumidouro, São Caetano, São
Sebastião, Furquim, Camargos, Barra Longa, Guarapiranga, Cuieté, Infincionado, Catas Altas
do Mato Dentro, São João Batista do Presídio e São Manuel dos Índios da Pomba totalizavam
juntos 7.141 fogos e 45.234 almas.
188
MATOS, op. cit.
76
Podemos visualizar no gráfico 4 que o número de crimes cometidos pelos habitantes
de Mariana é consideravelmente maior que os cometidos pelos habitantes dos distritos. No
total, 288 crimes foram cometidos pelos moradores de Mariana, portanto, aproximadamente
68% do total, enquanto que nos distritos, foram 136 crimes, logo 32% do total de ocorrências.
Uma chave para explicação destes dados pode ser a ineficiência da fiscalização e aplicação da
Justiça nos distritos.
O território a ser vigiado pela administração carcerária era extenso, o que tornava
complicada a ação dos oficiais responsáveis pelas prisões. Como todo o corpo de oficiais da
Câmara e Cadeia se localizava em Mariana a efetiva repreensão dos delitos cometidos nos
distritos e arraiais do Termo ficava prejudicada. Certamente a administração da Câmara
contava com auxílio de pessoas que delatavam seus vizinhos e conhecidos nestas regiões.
mencionamos a questão das querelas, e talvez estas fossem o meio mais fácil de identificar e
prender os infratores.
Silvia Hunold Lara destaca, para o Rio de Janeiro do século XVIII, a ação dos
quadrilheiros. Estes quadrilheiros chefiavam um conjunto de vinte vizinhos e deviam
controlar uma área da cidade com o fim de evitar delitos como alcouces (prostituição),
tabulagem (casas de jogos), furtos, barreguices (concubinatos), alcoviteiros e feiticeiros, além
de acalmar desordens e insultos, e auxiliar na prisão e castigos dos culpados. Notemos que os
quadrilheiros vigiavam algumas áreas das cidades e eram responsáveis até mesmo pelo
auxílio nas prisões dos indivíduos. Não temos notícia de tal prática em Minas para o século
XIX, mas esta alternativa, nos distritos a arraiais se tornava possível, na medida em que o
número de oficiais da Cadeia era reduzido e o auxílio da população se fazia essencial.
189
Antônio Pereira, Sumidouro, Barra Longa, Guarapiranga, Infincionado, Catas Altas
do Mato Dentro e São Manuel dos Índios da Pomba foram os distritos com maior número de
delitos contabilizados pela administração carcerária do Termo de Mariana entre 1800 e 1830.
Os dados apresentados no gráfico 4 nos apontam que a maioria dos crimes eram cometidos
por moradores de Mariana e não dos distritos. No entanto, devemos ressaltar que a estatística
se refere não ao total de crimes ocorridos e sim ao total de prisões. O número de delitos
cometidos pelos moradores dos distritos possivelmente era muito maior, o que a estatística
não mostra. Vejamos então como é complicada a afirmação de que Minas era uma região
violenta. As fontes oficiais referentes aos crimes não nos permite comprovar o alto índice de
violência atribuído à região das Minas. Quando buscamos comparar o número de crimes
189
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
77
contabilizados pela administração carcerária com o número de pessoas que habitavam a
região, isto se torna mais evidente. Talvez por isso, dados quantitativos não representem a
maneira mais clara de se estudar a prática do crime. Contudo, os dados quantitativos nos
apontam o total de pessoas que foram presas, e nosso estudo se remete a elas, uma parte da
população que a Justiça conseguiu repreender. Afirmar a violência de uma determinada
sociedade baseando-se em dados oficiais é complicado na medida em que a Justiça não
atingia a população como um todo. Contudo, afirmar a violência de uma determinada
sociedade somente com casos e relatos escolhidos de forma aleatória é mais complicado
ainda, pois não sabemos efetivamente se estes demonstram somente uma impressão quanto ao
povo mineiro ou uma realidade. O que é ser violento na Minas da primeira metade do século
XIX? A região da Minas era muito violenta? Depende de quem olha. Um estrangeiro que
chega a Minas no século XIX e depara-se com uma realidade diferente da sua pode afirmar
que esta sociedade é violenta, já o residente nesta, se adequava à situação.
190
Outro questionamento interessante é a dificuldade da Justiça em lidar com regiões
mais afastadas de seu pólo de poder e que ainda não possuíam uma rede de ligações
estreitadas. Acreditamos que os distritos do Termo de Mariana eram mais difíceis para a
Justiça observar atentamente. O número de oficiais parecia ser reduzido para a população total
do Termo e uma ação eficiente por parte dos mesmos tornava-se complicada.
[...] as sociedades com monopólios mais estáveis da força, que sempre começam
encarnadas numa grande corte de príncipes ou reis, são aquelas em que a divisão de
funções está mais ou menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os
indivíduos são mais longas e maior a dependência funcional entre as pessoas. Nelas
o indivíduo é protegido principalmente contra ataques súbitos, contra a irrupção de
violência física em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si
mesmo qualquer impulso emocional para atacar fisicamente outra pessoa. (ELIAS,
1993, p. 198)
191
De acordo com Carla Anastasia, numa capitania razoavelmente urbanizada, como foi
a de Minas Gerais, foram os sertões, as matas gerais, as serras, as zonas proibidas, os lugares
190
Podemos perceber um olhar de estranhamento e reprovação por parte dos viajantes quanto aos hábitos da
população colonial em geral, e não o crime e a violência eram alvos de seus relatos. A historiadora Sônia
Maria de Magalhães ao pesquisar o habitus alimentar dos mineiros afirma o seguinte: Naturalmente, são os
viajantes estrangeiros que nos fornecem os depoimentos mais interessantes acerca dos costumes, dos hábitos
e do comportamento à mesa do brasileiro. Eles interpretam o cotidiano do brasileiro considerando-o muitas
vezes insólito e exótico. Dessa forma, esses relatos devem ser analisados com cautela, pois os viandantes
interpretaram o Brasil baseando-se na realidade de seus próprios países: estava bem e era bom o que era
igual ou parecido, e o diferente, aquilo que identificava nossa cultura, era sempre depreciado. Logicamente
os relatos referentes à violência e ao crime excediam o aspecto do costume, mas toda a análise baseava-se
numa realidade diferente daquela vivida pelo viajante em seu país.
191
ELIAS, op. cit.
78
onde a autonomização da burocracia gerou um grau mais baixo de institucionalização política.
Isto facilitava segundo a autora a ação de salteadores, quilombolas, vadios e contrabandistas
nestas regiões. Anastasia parte do pressuposto de que nessas áreas onde a violência
predominou foi possível a constituição de territórios de mando, onde se disseminou o
mandonismo bandoleiro, lugares nos quais a tirania era exercida fundamentalmente pela
violência armada e pela intimidação física. A autonomização da burocracia que se expressou,
fundamentalmente, nos conflitos de jurisdição entre as autoridades, na iniqüidade e/ou
omissão da ação pública alimentava, nessas áreas, a noção da legitimidade da violência.
192
Logicamente as áreas as quais Anastasia se refere são regiões mais distantes do
centro minerador. Os distritos do Termo de Mariana não chegam a tanto, mas se entendermos
que o distanciamento de uma região em relação a seu centro regulador permite que
determinada população seja menos observada, podemos reconhecer então, que os distritos de
Mariana, principalmente os mais distantes, eram menos atingidos pelas ações da Justiça.
Mencionamos até aqui informações referentes à qualidade dos delitos, mostrando
quais eram os mais praticados na região, qual a punição para tais infrações, qual a incidência
de crimes ao longo do período estudado e se estes crimes prevaleciam em Mariana ou nos
distritos. Agora buscaremos analisar o perfil dos presos, começando pelo número de homens e
mulheres dentre os encarcerados na Cadeia Pública de Mariana.
192
ANASTASIA, op. cit.
79
404
20
0
100
200
300
400
500
Gráfico 5 - Homens e mulheres presos na Cadeia
Pública (1800-1830)
Homens Mulheres
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Encarcerados na Cadeia Pública de Mariana pudemos encontrar 424 pessoas, sendo
404 homens e apenas 20 mulheres. Logo, 95% dos presos eram homens e 5% eram mulheres.
Esta imensa diferença encontra explicação em uma realidade importante: o papel a ser
desempenhado pela mulher na sociedade dos oitocentos. Apesar de sabermos que na camada
mais pobre da população a mulher exercia um papel fundamental no auxílio financeiro ao lar,
a responsabilidade pelos problemas da família, quando esta estava constituída, era atribuída
ao homem. Um problema financeiro a ser solucionado ou uma questão de honra da família
devia ser resolvido pelo homem, que muitas vezes acabava sendo preso.
Entre as 20 mulheres presas conseguimos identificar os delitos que levaram dezesseis
destas a prisão. Foram quatro homicídios, quatro agressões físicas, três querelas, três prisões
por dívidas, um furto e uma resistência à autoridade. Maria Martins, crioula forra, casada, de
26 anos de idade, foi presa em Mariana no dia 19 de maio de 1804 por ferir o rosto de
Violante Maria dos Santos.
193
Luísa Antônia Pinheiro, parda forra de 40 anos de idade,
fiandeira, foi presa na Barra Longa no dia 21 de junho de 1804 por ferir o Capitão Maximiano
Gomes e por resistir à prisão.
194
Thereza, preta escrava, foi presa em Mariana no dia 12 de
janeiro de 1808 por ter matado um tal Simão, escravo de propriedade de seu senhor Antônio
193
AHCMM. Códice 167, folha 123.
194
AHCMM. Códice 167, folha 124 v.
80
José da Cunha.
195
Justina, mulher cabra foi presa em Mariana no dia 20 de fevereiro de 1809,
juntamente com o crioulo Manuel Brandão, por ter furtado gado do Capitão Boa Ventura
Fernandes de Oliveira.
196
Dentre os casos relacionados podemos observar uma briga entre
mulheres, uma resistência à prisão, a morte de um escravo e um furto com o auxílio de um
homem. Estes delitos representam uma tendência entre as mulheres presas. O que motivaria
uma briga entre mulheres? O que levaria uma escrava a matar outro cativo? Por que a ajuda
de um homem no furto?
As respostas podem ser muitas, mas algumas parecem se aproximar mais da
realidade da mulher neste período. As brigas entre mulheres, por exemplo, faziam parte do
cotidiano, principalmente se estas fossem mestiças e libertas. Isto se deve não a uma questão
racial, mas sim ao papel atribuído ao liberto nesta sociedade ainda escravista. E o papel deste
liberto estava na maioria das vezes ligado a pobreza, a uma situação de penúria. Maria
Martins, por exemplo, parecia ser uma mulher pobre, haja vista as roupas que usava no
momento de sua prisão: uma saia de pano grosso e chinelas de couro velhas.
197
Os locais freqüentados por estas mulheres e a posição destas na sociedade colonial
devem ser considerados. Os conflitos surgiam no ambiente freqüentado pelas mulheres. Os
rios nos quais as mulheres lavavam as roupas de sua família, por exemplo, eram ambientes
freqüentados por muita gente e os conflitos poderiam surgir a partir de qualquer discussão
sem muita expressão.
A questão dos crimes cometidos por mulheres escravas é outra questão complicada e
mais a frente discutiremos esta questão, pensando como a Justiça lidava com a situação. No
caso citado acima, em que Thereza foi presa por matar Simão, devemos ter em mente que o
sistema escravista é violento por si só, e talvez fosse mais fácil para Thereza acabar com
alguma desavença desta maneira. Esta é uma realidade. O que motivou a ação da escrava
infelizmente não se sabe, mas este não é ponto mais importante. Mais do que desvendar os
motivos do crime, que por sinal, poderiam ser muitos, torna-se interessante verificar a ação da
Justiça nestes casos, vistos que o controle e o castigo a ser ministrado aos escravos, cabiam a
seu senhor, ainda mais quando o criminoso e a vítima faziam parte de seu plantel.
Justina foi presa junto com Manuel por furtar gado. Ela contou com a ajuda de um
homem, mas não conseguimos identificar uma ligação próxima entre os dois, se eram
casados, amancebados, parentes ou só conhecidos. Casos como estes e os outros citados
195
AHCMM. Códice 167, folha 151 v.
196
AHCMM. Códice 167, folha 157 v.
197
AHCMM. Códice 167, folha 123.
81
envolvendo mulheres são pouquíssimos, como vimos, e entre as criminosas não sequer
uma mulher branca. Estes casos demonstram qual o lugar destas mulheres na sociedade. O
número de mulheres brancas era reduzido e muito inferior ao de mestiças, o que pode explicar
a questão. As mulheres brancas conseguiam os melhores casamentos e usufruíam de melhores
condições de vida, o que dificilmente acontecia com as mestiças. Muitas das vezes, a mulher
parda, cabra ou crioula ajudava na renda familiar com a execução de pequenos serviços, e
talvez Justina tivesse colaborando com Manuel.
O homem era o chefe da família, sendo o responsável pela solução de problemas,
sejam estes de ordem financeira ou moral. Nas Minas, as mulheres estiveram excluídas de
qualquer exercício de função política nas Câmaras Municipais e na administração eclesiástica,
sendo proibidas de ocupar cargos da administração colonial que lhes garantissem
reconhecimento social.
Entre os ofícios que se multiplicam pelas Gerais, por multidões de ferreiros,
latoeiros, sapateiros, pedreiros, carpinteiros, ourives, pouco se vislumbra da
presença feminina. Apareciam, sim, ocupadas na panificação, tecelagem e
alfaiataria, dividindo com os homens essas funções, cabendo-lhes alguma
exclusividade quando eram costureiras, doceiras, fiandeiras e rendeiras. Ainda
como cozinheiras, lavadeiras ou criadas reproduziam no Brasil os papéis que
tradicionalmente lhes eram reservados. (FIGUEIREDO, 2004, p. 142)
198
Além destes serviços, a presença feminina foi sempre destacada no exercício do
pequeno comércio. O comércio ambulante representava ocupação preponderantemente
feminina. De acordo com Luciano Figueiredo a atuação das mulheres no pequeno comércio
era fruto da convergência de duas referências culturais determinantes no Brasil. A primeira
delas está relacionada à influência africana, uma vez que nessas sociedades tradicionais as
mulheres desempenhavam tarefas de alimentação e distribuição de gêneros de primeira
necessidade. O segundo tipo de influência deriva da transposição para esta sociedade da
divisão de papéis sexuais vigentes em Portugal, onde a legislação amparava de maneira
incisiva a participação feminina.
199
A estabilidade nas uniões consensuais instituídas entre as
camadas populares possibilitou uma divisão de papéis no domicílio caracterizada por uma
maior atuação feminina do que a prevista no casamento cristão, afirma Figueiredo.
198
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary. História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Com texto, 2004. (141-188)
199
Ibid. 144.
82
O verdadeiro estímulo para a definição de papéis não foi o discurso teológico que
fixava a submissão feminina no casamento, mas as exigências de um cotidiano que
era vital a repartição de tarefas ou a transferência de papéis para a sobrevivência do
grupo doméstico. Mesmo com a presença do parceiro nestas uniões, à mulher
cabiam funções determinantes para sua manutenção: umas ocupadas no pequeno
comércio, outras na administração da casa e dos negócios do companheiro,
permanentemente ou em sua ausência. Se para a Igreja a atuação feminina em
determinadas funções domésticas parecia ultrapassar os limites desejáveis da moral
cristã, é necessário situar a importância da associação entre o trabalho feminino e a
economia doméstica. (FIGUEIREDO, 2004, p. 178)
200
Exatamente nesta divisão de papéis que entendemos a prática do crime pelas
mulheres. Ao que tudo indica, entre as camadas empobrecidas, a divisão dos papéis obedeceu
muito mais às necessidades econômicas que qualquer preconceito sexual na distribuição de
tarefas, e no caso do crime também. Talvez isto explique o motivo de não se encontrar sequer
uma mulher branca entre os encarcerados da Cadeia Pública, visto que estas conseguiam os
melhores casamentos, do ponto de vista financeiro, estando a ação da mulher nestes casos,
estreitamente ligada à ão do homem, de seu marido, do chefe do domicílio. Quando a
família necessitava de uma mobilização de todos residentes no domicílio para a manutenção
do mesmo, a mulher passava a exercer um pequeno ofício que lhe proporcionasse alguma
renda, mesmo que pequena. A transferência da chefia dos domicílios para a mulher nos
núcleos familiares simples tornou a atuação feminina tão mais importante quando mais íntima
era a associação entre vida doméstica e trabalho produtivo. No caso específico do crime,
existia também uma maior participação das mulheres pertencentes a uma camada
inferiorizada, uma camada que necessitava da participação conjunta da família nas atividades
financeiras, o que demonstra uma autonomia maior por parte destas mulheres na condução
dos assuntos cotidianos.
Quando buscamos fontes oficiais que apontem a criminalidade no Brasil do século
XIX é possível notar a preocupação da Justiça com a presença de escravos e libertos na
sociedade. Os viajantes europeus quando visitaram o Brasil no século XIX também
destacavam a grande presença de negros e libertos e os prejuízos causados por estes à boa
ordem de uma determinada localidade. Os libertos afligiam as autoridades, mas eram eles os
principais responsáveis pelos crimes cometidos? Vejamos.
200
Ibid. 178.
83
335
47
39
0 50 100 150 200 250 300 350
Gráfico 6 - A condição dos presos da Cadeia Pública (1800-
1830)
Livre Escravo Forro
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Podemos observar no gráfico 6 a condição dos presos da Cadeia Pública de Mariana
nos primeiros trinta anos do século XIX. No total foram 335 delitos praticados por livres, 47
por escravos e 39 por forros. Logo, aproximadamente 80% dos crimes eram praticados pelos
livres, 11% pelos escravos e 9% pelos forros. A preocupação da administração colonial com
os escravos e forros era intensa e tornava-se costumeiro encontrar reclamações das
autoridades que tinham como teor a qualidade dos povos. O gráfico nos mostra uma realidade
bem diferente, visto que 80% dos encarcerados da Cadeia Pública eram homens livres, o que é
natural, na medida em que a população livre prevalece.
Os dados apresentados por Raimundo José da Cunha Matos para o Termo de
Mariana no ano de 1821 apontam a composição da população na seguinte proporção: 30.924
livres, sendo 14.690 homens e 16.234 mulheres; e 20.751 escravos, sendo 13.346 homens e
7.405 mulheres. Portanto, 60% da população eram livres e 40% escravos. Os homens
representavam 60% da população e as mulheres 40%.
201
O índice de crimes cometidos pelos livres pode ser considerado alto se relacionarmos
o número de crimes com o total de população. No entanto, devemos fazer duas considerações:
a primeira, que o controle dos escravos cabia ao senhor, e a segunda que este índice se refere
201
MATOS, op. cit. p. 60.
84
aos crimes punidos pela Justiça. Muitos escravos, principalmente no século XVIII, ficavam
alojados na Cadeia Pública quando seus senhores viajavam. Os senhores pagavam as diárias
dos escravos na Cadeia e os cativos eram alimentados e principalmente, vigiados. Os fugidos
que conseguiam ser capturados também ficavam aprisionados na Cadeia até seus donos irem
buscá-los. A Justiça, muitas das vezes, não conseguia identificar os autores dos crimes e no
caso dos escravos, isto se complicava. O senhor não poderia perder a mão-de-obra e o
investimento feito na compra do cativo entregando-o ao cárcere. Por isso grande parte dos
delitos pode não ter sido registrada pela administração carcerária.
No caso específico das mulheres as taxas se modificam um pouco, sendo que 55%
dos crimes são cometidos por mulheres livres, 28% por forras e 17% por escravas. Como
comentamos ao longo deste capítulo, os crimes cometidos pelas mulheres têm estreita relação
com a posição que estas ocupam na sociedade, principalmente as mulheres negras e mestiças.
Os locais freqüentados pelas mulheres mestiças também influenciavam a prática dos
delitos. De acordo com Luciano Figueiredo as vendas eram quase sempre o lar de mulheres
forras ou escravas que nelas trabalhavam no trato com o público. O destaque da presença
feminina no comércio era ainda acentuado pelas mulheres chamadas de negras de tabuleiro.
Elas infernizaram autoridades coloniais e todos os rios de tinta despejados na legislação
persecutória e punitiva não foram capazes de diminuir seu ânimo em Minas e pelo Brasil
afora.
202
Logo as mulheres foram identificadas como um perigo na região de Minas. As
mulheres congregavam em torno de si segmentos variados da população pobre mineira,
muitas vezes prestando solidariedade a práticas de desvio de ouro, contrabando, prostituição e
articulação com os quilombos, o que motivou a criação de uma série de proibições tentando
impedir o funcionamento do comércio ambulante próximo às áreas de mineração.
203
A pobreza de muitas mulheres fazia a prostituição lhes servir de atividade
complementar e a região mineradora era um atrativo para elas. De acordo com Luciano
Figueiredo, foi necessário proibir que as mulheres saíssem dos limites das vilas e arraiais e, ao
mesmo tempo, adotar medidas fiscais para regular seu funcionamento. Para controlá-las,
estimulava-se a delação, prática comum da administração colonial quando reconhecia sua
incapacidade de reprimir transgressões. As punições que aguardavam as transgressoras eram
202
FIGUEIREDO, op. cit. 145.
203
Ibid. p. 146.
85
invariavelmente severas, quase sempre dirigidas às negras, mulatas ou carijós, fossem forras
ou escravas.
204
[...] momentos de violência ocorreram nestes ambientes freqüentados pelas
prostitutas e seus clientes, locais de brigas e mortes. Fregueses ciumentos,
inquietos, geravam as bulhas de que se tem notícia. Por tudo isso, nessas ocasiões
de encontros e trocas, conflitos e desavenças, bebidas e devaneios, o lazer e o ócio
dos grupos populares passavam a ser ingredientes perigosos em uma sociedade
escravista movida a trabalho. (FIGUEIREDO, 2004, p. 160)
Esta sociedade escravista apresentou no início do século XIX um índice de
criminalidade em que prevaleceu a atuação de homens livres, homens que representavam 60%
da população em meados dos anos vinte dos oitocentos. As mulheres negras e mestiças
aparecem entre os encarcerados da Cadeia Pública como as responsáveis pelos delitos, mas
longe de representarem uma preocupação para a administração carcerária, como as negras de
tabuleiro no auge da mineração. Afinal apenas 5% dos crimes foram cometidos por mulheres.
Já os escravos cometeram apenas 11% dos delitos. A administração colonial devia se
preocupar mais com os escravos ou com os homens livres? Logicamente, a preocupação com
os escravos aumentava devido ao medo de uma revolta que alterasse a ordem vigente e esse
medo intensificava-se quando os cativos estavam envolvidos em algum crime. A manutenção
do sistema de trabalho escravista era essencial para os interesses da Coroa e qualquer ação de
rebeldia ou infração da lei por parte dos escravos seria reprimida. Observemos então o gráfico
abaixo que aponta os crimes cometidos pelos escravos.
204
Ibid. p. 154.
86
Gráfico 7 - Os crimes cometidos pelos escravos (1800-1830)
35%
3%
44%
12%
6%
Homicídio Tentativa de homicídio Agressão física
Furto Danos à propriedade
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Como vimos na análise do gráfico anterior apenas 11% dos crimes eram cometidos
por escravos. Destes, 44% eram representados por agressões físicas, 35% por homicídios,
12% por furtos, 6% por danos à propriedade e apenas 3% por tentativas de homicídio.
Notamos que todos os delitos praticados pelos escravos eram violentos, considerando que no
momento do furto também poderia ocorrer o uso da violência.
O escravo Antônio crioulo foi preso no distrito de São Manuel dos Índios da Pomba
no dia 23 de dezembro de 1803 por ter matado seu senhor, José Joaquim Nunes.
205
Francisco,
escravo crioulo, foi preso em Sumidouro no dia 20 de agosto de 1804 também por ter matado
seu senhor, Eleutério Pereira.
206
Eduardo, escravo cabra do Capitão José Luiz França Lira, foi
preso em Mariana no dia 06 de fevereiro de 1805, por causa de alguns furtos feitos ao
Reverendo Cônego Francisco da Silva Campos.
207
Bento, escravo crioulo de Dona Antônia,
foi preso em Mariana no dia 24 de agosto de 1809 pelos ferimentos causados a Francisca
Dias.
208
O escravo Felipe, de Nação Mina, foi preso em Mariana no dia 29 de outubro de
1811 por ter matado João Nunes.
209
Antônio, escravo de Joaquim José de Santa Anna foi
preso em Mariana no dia 31 de julho de 1824 por ter dado um tiro em um determinado
205
AHCMM. Códice 167, folha 116.
206
AHCMM. Códice 167, folha 126.
207
AHCMM. Códice 167, folha 132.
208
AHCMM. Códice 167, folha 158 v.
209
AHCMM. Códice 167.
87
Coronel.
210
De maneira geral, todos estes casos denotam a prática de crimes violentos pelos
escravos. Os homicídios de dois senhores de escravos, os tiros dados no Coronel e os furtos
feitos ao Reverendo Cônego eram motivos de preocupação para a administração da Câmara,
tendo em vista que todos iam contra os interesseis da Coroa. E sobre estes delitos, a Justiça
era aplicada com uma maior força.
De acordo com Maria Cristina Cortez Wissenbach, em estudo realizado sobre a
criminalidade escrava em São Paulo durante a segunda metade do século XIX, aos escravos,
autorizavam-se trabalhos autônomos consentidos pelos senhores. Os cidadãos queixavam-
se das arruaças e aglomerações ruidosas provocadas por eles, descrevendo em alguns casos
momentos de rebeldia, que chegaram a ameaçar os proprietários da cidade. Identificados
como agentes de desordem social, sobre eles concentrava-se o olhar desconfiado e
preconceituoso da sociedade da época. Ligados a atividades econômicas de pequena monta,
no geral informais, tiveram-nas fiscalizadas e por vezes reprimidas. (WISSENBACH, 1998,
p. 34)
211
Segundo Wissenbach as direções tomadas pelos crimes cometidos pelos escravos não
surpreendem. A primazia dos delitos de sangue foi traço comum à criminalidade nas
sociedades pré-capitalistas e a criminalidade escrava não destoava da regra geral. Inicialmente
e pela própria condição dos réus, surgia forte a problemática do domínio escravista e sua
contrapartida, a resistência dos escravos ao domínio e por vezes à própria escravidão. Dessa
forma, os delitos praticados pelos cativos contra senhores e afins informam conteúdo
historicamente persistente dos crimes de escravos: em muitos sentidos, homicídios de
senhores e feitores ocorridos nos distritos rurais, nas cidades, na época colonial ou nos tempos
da desagregação do regime assemelham-se entre si, refletindo a contradição básica do
sistema.
212
Os primeiros trinta anos do XIX não destoavam desta realidade, pois a maioria dos
crimes era violenta, 82% no total se considerarmos homicídios, agressões físicas e tentativas
de homicídio. O medo de uma insurgência escrava contra as autoridades coloniais era
constante, e, devido a esta situação, os crimes cometidos pelos escravos que tivessem caráter
de rebelião contra o sistema escravista seriam punidos severamente.
213
210
AHCMM. Códice 167.
211
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. p. 34.
212
Ibid. p. 49.
213
Foram diversas as revoltas escravas que perpassaram todo o século XVIII. De acordo com Anastasia é
possível notar que a ameaça de uma generalizada revolta escrava perdurou por todo o período imperial, e
que o medo da haitinização do Brasil determinou a necessidade de um firme controle dos negros. Devido
88
[...] no início do povoamento das Minas, o Rei de Portugal escrevia ao Governador
Geral do Rio de Janeiro, comentando os roubos e malefícios cometidos nas
estradas pelos negros fugidos, os quais se reuniam nas serras e, durante a noite,
desciam aos caminhos, colocando em pânico os viajantes. O Rei recomendava ao
Governador ter cuidado no trato com os negros, insinuando a defesa de uma certa
acomodação entre os atores sociais das minas para que os escravos não viessem a
fazer nessa capitania o que fizeram nos Palmares de Pernambuco. (ANASTASIA,
1998, p. 126)
214
Os furtos cometidos pelos escravos representaram apenas 12% do total de delitos
praticados pelos escravos. Segundo Wissenbach, os furtos denotam existência de práticas
econômicas de caráter residual realizadas entre escravos e extensivas aos homens livres
pobres, instituindo, na maior parte das vezes, formas pelas quais proviam suas necessidades
básicas ou um pouco mais além do mero vestir e comer. Como maneira complementar de
sobrevivência, explica-se a apropriação de produtos de pequeno valor, mas que se revertiam
em suplementação monetária, importante num regime de trabalho e numa sociedade nos quais
ausentavam fontes regulares de suprimento de dinheiro, ao mesmo tempo em que exigiam dos
escravos a participação como pequenos consumidores.
215
Nesse sentido, furtos ou roubos pouco se distinguiam, em conteúdo, da venda de
capim, de água aos soldados, de tarefas esporádicas feitas nos intervalos do
trabalho. Além, disso, parte das apropriações teve sentido claramente simbólico: o
roubo de um par de botinas ou de um chapéu elegante de mulher que, no dia
seguinte, eram desfilados desajeitados, mas orgulhosamente pelos escravos nas
ruas da cidade. (WISSENBACH, 1998. p. 52)
216
A preocupação com a criminalidade escrava visava controlar a ação dos cativos,
impedindo que estes se rebelassem contra o sistema vigente. Se analisarmos os índices de
crimes cometidos pelos escravos, apenas 11% em relação ao total de crimes contabilizados
pela administração carcerária, estes não deveriam afligir as autoridades, pois 80% dos crimes
eram cometidos por livres. Pudemos observar ainda que a imensa maioria dos delitos
praticados pelos escravos era violenta, prevalecendo os homicídios, as agressões físicas e as
a crescente preocupação das autoridades com as ameaças provenientes da radicalização do comportamento
dos negros foram adotados como punição para qualquer sublevação o castigo exemplar e a extensa
legislação para controlá-los. O Haiti foi colonizado por franceses. Sua população era caracterizada pelas
diferenças entre uma aristocracia colonial de origem branca, riquíssima, e cerca de 500 mil escravos que
viviam em condições miseráveis, freqüentemente maltratados. Entre essas duas classes formou-se uma casta
de mulatos libertos. A Revolução Francesa inspirou e favoreceu as rebeliões escravas e a luta dos pequenos
brancos contra os mulatos. A Revolta do Haiti foi então, uma rebelião escrava que durou de 1784 a 1804,
expulsando os franceses e proclamando a sua independência.
214
ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do
século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998.
215
WISSENBACH, op. cit. 52.
216
Ibid.
89
tentativas de homicídio. O olhar atento das autoridades mirava não os escravos e os forros,
sendo também, alvo de discussão a cor da pele destas pessoas. Para as autoridades o grande
número de mestiços que compunham a população mineira eram os maiores responsáveis pelas
práticas ilícitas. Atentemo-nos ao gráfico abaixo.
7%
6%
14%
22%
2%
49%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
50%
Gráfico 8 - A cor da pele dos presos da Cadeia Pública
(1800-1830)
branco cabra crioulo pardo preto não consta
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Dentre os encarcerados da Cadeia Pública de Mariana pudemos notar, no que diz
respeito à cor da pele, que 22% destes eram pardos, 14% eram crioulos, 6% eram cabras, 2%
eram pretos e 7% eram brancos. Ainda de acordo com os assentos de prisão pudemos verificar
que esta informação não consta em quase metade das ocorrências. Se desconsiderássemos os
assentos em que a cor da pele não foi mencionada teríamos: 42% de presos pardos, 28% de
crioulos, 11% de cabras, 5% de pretos e 14% de brancos. Juntos, negros e mestiços
representariam 86% da população carcerária, enquanto os brancos apenas 14%. Esta
estatística poderia ser usada pela Câmara Municipal de Mariana como desculpa para afirmar o
caráter inferior dos negros e mestiços. Contudo, a análise estatística nestes moldes é
90
equivocada. O número de assentos em que o constava a informação referente à cor do
criminoso prejudica esta análise. No entanto, em todas as ocorrências registradas pela a
administração carcerária, a cor da pele dos presos era informada quando estes eram pardos,
crioulos, cabras ou pretos. Além disso, quando as prisões eram referentes a dívidas a cor da
pele do preso não era mencionada. A identificação da cor da pele dos presos quando estes
eram negros ou mestiços funcionava como uma marca, distinguindo-os assim dos brancos. Os
únicos assentos que mencionam a cor da pele de presos brancos são os assentos de prisão
hábito e tonsura
217
, porque a lei assim determina. A análise atenta das fontes nos faz crer que
os assentos que não trazem informação referente à cor dizem respeito a pessoas brancas ou
pessoas mestiças que ascenderam socialmente.
A preocupação da administração camarária com os escravos e forros se estendia aos
mestiços, sendo estes, alvo das queixas das autoridades locais. A discussão sobre a
composição racial de uma população é muito antiga e perpassa todos os períodos da história.
As Minas Gerais do início do século XIX não era diferente, sendo os mestiços considerados
inferiores aos brancos.
Os relatos dos viajantes que passaram pelo Brasil, inclusive pelas Minas Gerais,
revelam um racismo que não tinha origem no desconhecimento ou simples preconceito dos
viajantes, e sim constituía uma visão escravista de raízes profundas, reproduzidas e repassadas
através dos séculos. Durante todo o século XIX, a maioria dos viajantes que chegavam ao
Brasil se defrontava com o grande número de negros em relação ao de brancos, e apesar de
conhecerem algumas estimativas de população, fornecidas pelos primeiros viajantes ou por
informações divulgadas em seu país, recebiam um forte impacto provocado pela
preponderância de negros nas ruas, nas lojas, nas casas, em qualquer lugar aonde iam. De
acordo com Degler, no século XIX, o Brasil era conhecido como o país dos pretos e do
sangue mestiço, e para os estrangeiros que visitaram o Brasil neste período, as palavras, negro
e escravo eram quase sinônimos.
218
Em suas viagens, Saint-Hilaire deparou com negros em quase todos os lugares por
onde andou, procurando dialogar e conhecer suas vidas. Para ele, a predominância numérica
dos negros representava um perigo. Saint-Hilaire chegou a concluir que a população do sertão
era quase toda composta de homens de cor, e os considerou ociosos e indolentes. Ao passar
por Vila Rica, Saint-Hilaire qualificou como péssimas a aparência e maneiras dos
217
Auto de prisão hábito e tonsura é um auto que caracteriza fisicamente o preso no momento da prisão. No 4°
capítulo deste trabalho detalharemos e discutiremos a aplicação desses documentos.
218
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 1996. p. 106.
91
vilariquenhos, verificando também, que, a maior parte da população consistia de negros e
mulatos.
219
[...] raça de gente que demonstra possuir uma mistura de sangue de várias origens e
eu me sinto propenso a crer que toda e qualquer mistura resulta num aviltamento
do espírito humano, que por mais que a prole lucre da inteligência superior de um
dos pais, ela se perverte pelas qualidades más do outro. O vício jamais surge tão
disforme, nem produz tanto mal como quando unido à atividade mental. Conforme
sempre se dá em circunstâncias tais, o lugar está tão repleto de misérias quanto de
perversão. (LEITE, 1996, p. 116)
220
É em Raynal que se condensam e cristalizam todas essas linhas do pensamento
ilustrado sobre o sistema colonial. Ele se pergunta se a colonização é útil à natureza humana,
pondo-a assim, em julgamento. Segundo ele, a razão e a equidade são princípios dos quais
não devia ser permitido afastar-se na fundação das colônias. Se os exploradores exigem mais
que uma hospitalidade por parte das colônias, tornam-se ladrões e assassinos, afirma Raynal.
As palavras de Raynal tinham forte impacto político. Ele queria que todos acordassem para a
situação em que viviam os escravos.
221
Segundo Hebe Mattos, as sociedades do Antigo Regime naturalizavam como
construções divinas, as desigualdades sociais, e assim a montagem de sociedades escravistas
nas Américas não chegava a destoar desse quadro. Nesse contexto, apesar de as diferenças de
219
Ibid.
220
Ibid. p. 116.
221
Raynal condena a escravidão africana e o tráfico negreiro, refutando um a um os argumentos correntes para
justificar tal escravismo. A escravidão era fenômeno de todos os tempos e lugares? Para Raynal, se a
universalidade de uma prática provasse sua inocência, estaria acabada a apologia das usurpações, conquistas
e opressões de toda sorte. A escravidão moderna diferia da antiga? Raynal acreditava que a América estava
povoada por colonos atrozes que, usurpando insolentemente dos direitos soberanos, fazem expiar a ferro e
fogo as infortunadas vitimas de sua avareza. Os negros são homens nascidos para a escravidão, pois são
limitados, patifes e maus? Raynal afirma que os negros são limitados porque a escravidão destrói todas as
energias da alma. São malvados, mas o o bastante com os senhores. São velhacos, porque aos tiranos não
se devem a verdade. Eram os governos que vendiam os escravos? Raynal indaga porque o Estado tem esse
direito. Os próprios escravos se vendiam? Raynal afirma que o homem o tem o direito de se vender. Os
escravos tinham sido aprisionados em guerra? Raynal pergunta se sem os colonos haveria tais combates e se
as dissensões desses povos não são obras dos próprios colonizadores. Os negros escravizados eram
criminosos dignos de punição? Raynal discute a condição de carrasco exercida pelos colonizadores em
relação aos povos da África, afirmando que os menores não foram sequer julgados. Os negros eram mais
felizes na América que na África? Por que então esses escravos suspiram incessantemente pela sua pátria,
pergunta Raynal. Por que sempre que podem retomam sua liberdade? Por que preferem o deserto e o
convívio com os animais ferozes a um estado que vos parece tão doce? Por que suas mulheres provocam
tantas vezes o aborto, para que seus filhos não partilhem seu triste destino? A escravidão era o único meio de
cristianizar os africanos? Para Raynal, o que pensaria Jesus se este tivesse previsto que suas doces máximas
serviriam à justificação de tantos horrores. Se a religião cristã autorizasse assim a avareza dos impérios, era
preciso proscrever para sempre os dogmas sanguinários dela, afirma Raynal.
92
cor e características físicas reforçarem as marcas hierárquicas nas sociedades escravocratas,
elas não eram necessárias para justificar a escravidão.
222
O conceito de raça é uma construção do século XIX e também uma justificativa da
escravidão americana. Ela se tornou a contrapartida possível à generalização de
uma concepção universalizante de direitos do cidadão em sociedades que não
reuniam condições políticas efetivas para realizá-la permitindo, em diversos
contextos, o estabelecimento de restrições aos direitos civis de determinados
grupos considerados racialmente inferiores, bem como a legitimação da própria
manutenção da escravidão no sul dos Estados Unidos, associada a um progressivo
fechamento das possibilidades de alforria. A noção de raça está estreitamente
ligada às contradições entre os direitos civis e políticos inerentes à cidadania
estabelecida pelos novos estados liberais e o longo processo de abolição do
cativeiro. (MATTOS, 2000, p.11)
223
De acordo com dados apresentados por Hebe Mattos, no final do período colonial, o
Brasil contava com cerca de 3.500.000 habitantes, dos quais 40% eram escravos. Dos
restantes, 6% eram índios aldeados e os demais classificados metade como brancos, metade
como pardos. Já na década de 1780, os homens livres classificados como pardos eram
estimados em cerca de 1/3 da população, grande parte deles sendo possuidores de escravos. A
própria construção da categoria pardo é típica do final do período colonial e tem uma
significação muito mais abrangente do que a noção de mulato ou mestiço que muitas vezes
lhe é associada.
Na verdade, durante todo período colonial, e mesmo até bem avançado o século
XIX, os termos negro e preto foram usados exclusivamente para designar
escravos e forros. Em muitas áreas e períodos, preto foi sinônimo de africano, e
os índios escravizados eram chamados de negros da terra. Pardo foi
inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos,
especialmente sinalizando para a ascendência européia de alguns deles, mas
ampliou sua significação quando se teve que dar conta de uma população para a
qual não era cabível a classificação de preto ou de crioulo, na medida em que
estas tendiam a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo. A
emergência de uma população livre de ascendência africana não necessariamente
mestiça, mas necessariamente dissociada, por algumas gerações, da experiência
mais direta do cativeiro consolidou a categoria pardo livre como condição
lingüística necessária para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o
estigma da escravidão, mas também sem que se perdesse a memória dela e das
restrições civis que implicava. Ou seja, a expressão pardo livre sinalizará para a
ascendência escrava africana, assim como a designação cristão novo antes
sinalizara para a ascendência judaica. Era assim, condição de diferenciação em
relação à população escrava e liberta, e também de discriminação em relação à
222
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000. p. 11.
223
Ibid. p. 12.
93
população branca; era a própria expressão da mancha de sangue. (MATTOS, 2000,
p. 16)
224
As estatísticas criminais nos apontam um número maior de mestiços entre os
encarcerados da Cadeia Pública de Mariana nas três primeiras décadas dos oitocentos.
Infelizmente, metade dos assentos de prisão não menciona a cor da pele dos presos.
Acreditamos, contudo, que estes assentos se referem a pessoas brancas, ou mestiças que
ascenderam socialmente, visto que os registros das prisões por dívidas, por exemplo, o
mencionam a cor da pele do devedor. As autoridades coloniais realmente acreditavam na
inferioridade dos escravos, forros, negros e mestiços, e a estes dirigiam atenção especial
quanto o assunto era criminalidade. Alguns filósofos contribuíram sobremaneira para esta
visão, visão ratificada pelos viajantes que chegavam ao Brasil no século XIX e se deparavam
com uma realidade totalmente diferente da que estavam acostumados.
Visto que a administração camarária se atentava para os delitos cometidos por
negros, mestiços, escravos e forros resta saber de que a maneira a pena de prisão contribuía
para a execução da Justiça. Ao longo deste capítulo buscamos identificar algumas
características que compusessem a população carcerária da Cadeia Pública de Mariana.
Vejamos então a questão da Cadeia. Quanto tempo os presos passaram encarcerados? As
Ordenações Filipinas estipulavam as penas que deviam ser aplicadas em caso de infração da
lei e a pena de prisão esteve presente. Mas qual a relação entre a prática de delitos, a ação da
Justiça e a pena de Prisão? Observemos o gráfico abaixo.
224
Ibid. p. 16.
94
Gráfico 9 - Tempo em que os presos passavam encarcerados
na Cadeia blica (1800-1830)
26%
24%
25%
12%
13%
até 5 dias 5 dias a um mês um mês a 6 meses
6 meses a um ano mais de um ano
Fonte: Assentos de prisão. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana.
Verificando os alvarás de solturas da Cadeia blica de Mariana foi possível calcular
o tempo que as pessoas passavam encarceradas. Em média, 26% das pessoas ficavam presas
por até cinco dias, 24% de cinco dias a um mês, 25% de um mês a seis meses, 13% de seis
meses a um ano e só 12% ficavam encarcerados por mais de um ano. Logo, 75% das pessoas
presas ficavam no máximo seis meses encarceradas.
No rol de réus presos à ordem da Casa de Suplicação, quase metade daqueles de
que se sabe o destino saem soltos, por perdão, fiança ou eventualmente, por falta de
culpas; e, em relação a muitos outros, corria livramento por meios ordinários.
Sua Majestade manda advertir V. M., que as leis são feitas com muito vagar e
sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração; e que nos casos crimes
sempre ameaçam mais do que na realidade mandam [...] porque o legislador é mais
empenhado na conservação dos Vassalos do que no castigo da Justiça, e não quer
que os ministros procurem achar nas leis mais rigor que elas impõem.
(HESPANHA, 1992, p. 248)
225
A Cadeia era parte constitutiva do poder municipal. Era a ela que recorria a Câmara,
com seus oficiais, para recolher criminosos e todo tipo de transgressores escravos fugidos,
índios rebelados, indivíduos que se recusavam a servir como carcereiro da própria cadeia,
infratores de posturas municipais e tantos outros. Ora um cômodo aqui, ora uma casa alugada
225
Ibid. p. 248.
95
ali, ora uma dependência ao lado da Câmara, porém, sempre sem condições adequadas de
segurança, iluminação, higiene.
Numa época em que inexistiam meios mais sofisticados, burocratizados de fazer
cumprir o pagamento de uma multa, por exemplo, a detenção do indivíduo se
tornava a garantia física, corporal, de que ele saldaria o pagamento imposto. Assim,
é comum encontrarmos no Livro V das Ordenações a rmula sejam presos e da
cadeia paguem [...] cruzados. Com relação às outras penas morte, açoite,
degredo, etc , até que fossem atribuídas ou executadas, contava-se com a prisão
como meio para garantir a contenção do acusado ou criminoso. (SALLA, 1999, p.
34)
226
A prisão no período colonial e amesmo no início do período imperial não tinha
qualquer interesse na recuperação dos indivíduos, pelo menos de maneira efetiva. Ela
funcionava como um depósito temporário de criminosos. Além disso, a prisão não possuía
estrutura alguma, sendo praticamente impossível manter os criminosos encarcerados por
muito tempo. Para Foucault, a prisão:
Deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua
aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas
disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que
implicam sempre numa certa especialização, é onidisciplinar. Além disso, a
prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada
totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina
incessante. (FOUCAULT, 1987, p. 198)
227
Podemos perceber que diferentemente da prisão destacada por Foucault, no Brasil
dos séculos XVIII e XIX não existiu este tipo de prisão. Embora existissem variadas penas, as
Ordenações Filipinas não estipulavam para nenhum crime ou circunstância a pena de prisão
isoladamente. Freqüentemente utilizava-se a prisão como um recurso coercitivo para o
cumprimento de outras penas. As prisões pelo não pagamento de dívidas retrata bem o papel
da prisão. Foi possível encontrar na documentação carcerária da Cadeia Pública de Mariana
os alvarás de soltura de 38 pessoas presas pelo o pagamento de dívidas, sendo que 84%
destes ficaram detidos por no máximo um mês. Como afirma Hespanha, existia uma grande
diferença entre o que estava previsto na lei e o que era efetivamente aplicado. A variação
encontrada no tempo em que as pessoas ficavam presas é uma evidência disto, pois
homicidas, agressores e ladrões não cumpriam a pena estipulada nas Ordenações Filipinas.
226
SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999.
227
FOUCAULT, op. cit.
96
Observamos ao longo deste capítulo algumas características da população carcerária
da Cadeia Pública de Mariana nos primeiros trinta anos do século XIX, verificando os crimes
cometidos na cidade e nos distritos, o número de homens e mulheres que compunham este
quadro, se estes eram livres ou escravos, quais eram os crimes praticados pelos escravos, a cor
da pele dos presos e o tempo que estes passavam detidos na Cadeia.
A criminalidade e a violência são temas recorrentes na história mineira. Os motins
ocorridos em Minas ao longo do século XVIII, na maioria das vezes, representavam a
insatisfação dos mineiros com a administração da Coroa, e representavam a resistência contra
os desmandos estabelecidos pela Coroa. Estes motins, além de demonstrarem certa brecha na
soberania da Coroa, indicavam também que reunido, o povo, poderia causar preocupação e
temor aos governantes das Minas. Estes governantes por sua vez, já vinham para a região,
avisados do caráter insurrecional de Minas Gerais e de que deveriam tomar cuidado ao lidar
com os mineiros.
Minas Gerais apresentou ainda, no século XVIII, certo número de infrações que
preocupavam as autoridades coloniais. Homicídios, agressões e furtos, entre outros, estiveram
presentes no cotidiano da população. A participação de negros e mestiços nestes delitos,
cometidos nos caminhos mineiros, preocupavam e aterrorizavam as autoridades
principalmente quando os delitos insurgiam contra a ordem escravista. Observamos ainda que
a Coroa possuía meios próprios para conter ou diminuir a violência e a criminalidade em suas
colônias e que as Ordenações Filipinas previam punição rigorosa à diversidade de infrações
cometidas.
Ao longo dos séculos estes delitos se repetiam e os primeiros anos dos oitocentos não
se diferenciariam dos anos anteriores, vistos que os crimes continuavam a serem cometidos.
Todas as sociedades conviveram e ainda convivem com o problema da criminalidade. Este
problema com certeza existiu e os dados apresentados mostram isso. No entanto, é possível
afirmar que uma determinada sociedade é violenta com base nestes dados? É possível afirmar
ainda a violência de uma sociedade com base em relatos de autoridades e estrangeiros? Minas
Gerais no século XIX era violenta? Prestemos atenção a estes últimos dados.
97
Tabela 2 - O número de crimes cometidos ao longo dos anos no Termo de Mariana
1800
17
1808
21
1816
15
1824
08
1801
08
1809
17
1817
14
1825
12
1802
22
1810
07
1818
14
1826
03
1803
25
1811
14
1819
06
1827
04
1804
31
1812
26
1820
03
1828
07
1805
30
1813
19
1821
05
1829
09
1806
18
1814
21
1822
06
1830
02
1807
22
1815
09
1823
09
Fonte: AHCMM.
É extremamente complicado afirmar que uma determinada sociedade é violenta. A
partir de dados oficiais isto é impossível. A tabela acima mostra o número de ocorrências
registradas pela administração carcerária de Mariana e podemos notar que estes números, num
universo de aproximadamente 50.000 pessoas, não ratificam o caráter violento atribuído à
região das Minas. O ano de 1804 foi marcado pelo maior número de prisões realizadas no
Termo de Mariana, trinta e uma no total. Uma sociedade que registra trinta e uma ocorrências
ao longo de um ano inteiro pode ser considerada violenta? Acreditamos que não. Se
considerarmos todos os anos, a média é de 14 ocorrências por ano. Ainda mais baixa. Com
base nestes dados oficiais não poderíamos afirmar que a sociedade mineira no século XIX era
violenta. Aparecem então como fontes importantes para o estudo da criminalidade os relatos
dos viajantes e as queixas das autoridades. Se dados quantitativos não podem afirmar o grau
de violência de uma determinada sociedade estes relatos muito menos. Vejamos, no entanto, o
que nos mostram os processos crimes referentes à prática de delitos no território de Mariana
nos primeiros trinta anos do século XIX.
98
CAPÍTULO 3: RELATOS
Podemos vislumbrar a partir das análises dos gráficos apresentados no capítulo
anterior uma imagem da população carcerária de Mariana nos primeiros trinta anos do século
XIX. No entanto, esta análise quantitativa não nos permite dar conta das particularidades
encontradas em cada uma das prisões realizadas pelas autoridades ao longo do período. A
análise dos processos crimes torna-se essencial para a compreensão dos motivos que levaram
as pessoas a serem encarceradas. Optamos por apresentar então, algumas histórias obtidas
através da análise dos processos crimes, sem com isso querer traçar qualquer tipo de
paradigma quanto à prática criminal, e sim mostrar a imensa variedade de um caso para outro
e até mesmo as particularidades de cada uma das ocorrências.
Por volta das sete horas da noite do dia 13 de abril de 1809 dois homens adentraram
em uma casa localizada na Rua Direita da cidade de Mariana pertencente a uma crioula forra
de nome Jacinta Maria e lá a encontrando feriram-na com uma espada. Foram acusados e
denunciados pelo ocorrido o Oficial de Justiça Joaquim José Pinto e um crioulo cujo nome
não foi mencionado nos autos. A Justiça então, procede com os trâmites legais indiciando o
referido Oficial de Justiça pelo crime. É lavrado, portanto, um auto de devassa, citando ter
sido o réu Joaquim José Pinto juntamente com um crioulo os praticantes de tal delito, na
medida em que foram vistos por certo indivíduo saindo da casa da ofendida, o primeiro
trazendo uma espada na mão e o crioulo portando uma pistola. O réu ficou assim pronunciado
e teve que se livrar com carta de seguro, devido às penas civis e crimes, estabelecidas pela lei
do Reino, impostas a ele.
Seguiu-se após a pronúncia do réu o exame de corpo delito, realizado somente no
dia 12 de julho de 1809. Na casa do Dr. Antônio José Duarte Gondim, Cavaleiro da Ordem de
Cristo e Juiz de Fora da leal cidade de Mariana, estando presentes os cirurgiões do partido da
Câmara Caetano Coelho Martins e José Luís Brito, foi examinada a crioula Jacinta Maria.
Examinando-a puderam notar um ferimento em sua face. Tal ferimento estava localizado na
face do lado esquerdo sobre o músculo e tinha um dedo de diâmetro, resultando na mesma um
aleijão ou deformidade, no entanto, já se achava são e somente a cicatriz era visível, mas com
o tempo desapareceria.
99
O réu, Joaquim José Pinto, Oficial de Justiça em Mariana, alegou em sua defesa que
no dia 13 de abril de 1809, data do acontecido, estava ausente da cidade, relatando que no
referido dia, por volta das oito horas da manhã saiu juntamente com o Oficial de Justiça
Manuel da Cruz em direção a um lugar denominado Boa Vista
228
na Freguesia de São
Caetano, e que lá pernoitaram na estalagem de Helena de tal, uma mulher parda. Já no dia
seguinte foram fazer uma penhora a Dona Clara Maria da Trindade. Joaquim José Pinto
informa que a distância entre o lugar que se encontravam e a cidade de Mariana era de sete
léguas, portanto, era impossível, estando estes em Boa Vista, terem cometido um delito em
Mariana às sete horas da noite.
O processo agora, parece tomar uma direção diferente. O réu já havia declarado onde
e com quem estava na noite do dia 13 de abril de 1809 e surge um fato novo: Jacinta não o
acusa. Ela afirma não declarar parte do réu, e que antes lhe perdão pelo amor de Deus. Diz
Jacinta Maria, crioula forra, que na devassa que se procedeu ex-ofício pelos ferimentos feitos
nela feitos, e que ficou pronunciado Joaquim José Pinto, ao qual deu o perdão, não ter sido
o Oficial de Justiça que praticou o tal delito, e sim um preto que ela tinha visto. Após o relato
de Jacinta, todos se convencem de que foi um escravo preto o autor do crime.
No dia 22 de setembro de 1809, o Juiz manda aos escrivões do crime
229
do Auditório
da Câmara que lavrem um alvará com as culpas ou sem elas, que tiveram o réu seguro
Joaquim José Pinto, Meirinho neste Auditório, e na forma da lei, se cumpram. Fica declarado
então que Joaquim José Pinto que pelos ferimentos feitos em Jacinta crioula foi pronunciado,
e que tendo o mesmo de livrar-se com seguro, foi perdoado pela suplicante, na medida em que
esta não o reconheceu como autor do delito, se acha o dito Joaquim José Pinto nos termos de
ser absolvido e que os autos se façam conclusos.
230
O processo crime acima apresentado traz informações importantes a respeito da
prisão de Joaquim José Pinto. O primeiro ponto se refere ao horário do delito, sete horas da
noite. As autoridades afirmavam que a noite era o período preferido pelos criminosos, pois
estes, logicamente, seriam menos facilmente descobertos. No entanto, um dos réus acusados
pela prática de tal delito era um Oficial de Justiça, portanto uma autoridade. O outro
envolvido era um crioulo, que muito bem poderia ser seu escravo.
228
Povoado no distrito de Ouro Preto. Foi já sede de distrito, suprimido pela Lei nº 45, de 17 de março de 1836,
incorporado seu território ao de Ouro Preto.
229
Em Bluteau, escrivão é aquele que oferece atos públicos. Oficial de pena que ganha a vida com as pontas dos
dedos. Escrivão do crime, rerum capitalium scriba, é assim dos mais, segundo a diferença dos tribunais.
230
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 193, auto nº 4828.
100
O segundo ponto a ser destacado é quanto ao porte de armas. O Oficial de Justiça
estaria portando uma espada e o crioulo uma pistola. Vimos que nas Ordenações Filipinas
especificava-se a proibição ao porte de armas ofensivas e defensivas, tanto de dia quanto de
noite, salvo se fosse espada, punhal ou adaga. Neste caso, o referido crioulo estava agindo
contra a lei, na medida em que portava uma pistola.
Outra questão importante que surge no decorrer do processo é a carta de seguro que
os réus são obrigados a apresentar para se verem livres.
A carta de seguro foi um recurso previsto nas Ordenações Filipinas, Livro
Primeiro, título VII e foi regulamentada em lei de 19 de janeiro de 1692. Desde a
lei de 10 de janeiro de 1692 o rei tinha servido lançar o remédio das cartas de
seguro para melhorar as ações da justiça real com a intenção de atender as partes
que se queixavam, pois elas viam seus ofensores transitando livremente pelas
ruas. Contra isso sua alteza real prescreveu o remédio das cartas de seguro.
(CHAVES, 2006)
231
De acordo com Maria Lúcia Resende Chaves, a carta de seguro servia como
instrumento de promoção do equilíbrio no vasto império para se transformar num elemento
organizador das noções de justiça da Capitania das Minas, sobretudo no que tange aos pontos
fracos de justiça e no exercício de poder local. Nas Minas Gerais foram amplamente
requeridas. O indiciado, pronunciado em devassa ou libelo, na condição de réu não iria para a
prisão caso ele conseguisse a carta de seguro. Para isso o réu seguro apresentar-se-ia ao juiz
do crime para tratar de seu livramento em audiências, permanecendo assim nas redes do
poder.
232
Segundo a autora, a última concessão de carta de seguro no território mineiro foi no
ano de 1832, na verdade até que o Código Criminal de 1831 entrasse em vigor. Entre os anos
de 1769 e 1831, o uso da carta de seguro revelou permanência no serviço de Sua Majestade
em aplicações da justiça na Comarca do Rio das Mortes. A carta era requerida em petição pela
parte e, em nome de sua majestade, o serviço era concedido em termos de graça régia.
Outro ponto importante desta prisão, e que parecia ser comum a todas as outras era o
exame de corpo e delito. Já no início do século XIX a Câmara de Mariana realizava tal exame
e verificava as condições físicas da vítima de uma agressão, por exemplo.
231
CHAVES, Maria Lúcia Resende. Punição e Graça: elementos da matriz doutrinária portuguesa no tratamento
da justiça em território de Minas (1769-1831). In: Anais eletrônicos do XV Encontro Regional de História
(2006, jul. 10-15: São João del-Rei, MG). São João del-Rei: ANPUH-MG, 2006.
232
Ibid.
101
Por fim, e o que torna esse processo tão interessante é o perdão dado pela vítima aos
acusados. Na última hora ela inocenta o Oficial de Justiça e acusa um escravo preto de ser o
autor da agressão. A culpa recaiu no final sobre um escravo preto, o qual a vítima não
conseguiu identificar. No entanto Jacinta, a vítima afirmou que o agressor era um escravo
negro. Seria este mais um indício para que as autoridades se preocupassem cada vez mais com
os escravos e com os negros? Ou era mais fácil incriminar um escravo negro sem
identificação do que um Oficial de Justiça?
No dia 04 de maio de 1819 na cidade de Mariana se achou em poder de um escravo
do Reverendo Cônego Joaquim Cardoso Camargo nove vinténs de peso de ouro falso.
Iniciou-se assim, a investigação do referido delito. Indagado pelos oficiais de Justiça sobre o
porte do falso ouro o dito escravo se queixou de que uma crioula forra de nome Maria
Tomásia moradora em Mariana que lhe havia dado aquele ouro em paga dos ovos que tinha
lhe vendido. Este por sua vez, foi até a casa de negócio de Bernardo José Vilela comprar um
pouco de sal e utilizou como pagamento o ouro que havia recebido com a venda dos ovos. Ao
receber a quantia paga pelo sal, o comerciante desconfiou da qualidade do ouro e chamou
alguns alferes para examinarem o ouro. Os alferes examinaram o tal ouro que por sinal
parecia verdadeiro e lançaram-lhe água forte. Instantaneamente o ouro começou a arder e
eles puderam verificar que se tratava de uma falsificação. O bestial escravo de propriedade
do Revendo Cônego Joaquim Cardoso Camargo e a crioula forra Maria Tomásia, disseram
não saber da falsidade do ouro e muito menos quem o tinha fabricado.
Juntamente com essa, outras ocorrências em que o uso de ouro e moeda falsa foi
empregado, vinham acontecendo na cidade, e as autoridades exigiam a identidade dos
fabricantes do tal ouro para que estes pudessem ser castigados na forma da lei. Foram presos,
alguns meses depois, como os responsáveis pelo crime de falsificação de moeda Caetano
Coelho Martins e seus escravos, estes apelidados escravos de prata e ouro.
Realizou-se então, o auto de prisão hábito e tonsura na pessoa do réu Caetano Coelho
Martins no dia 09 de setembro de 1819. Ele era um homem pardo, solteiro, natural da cidade
de Mariana, filho legítimo de Caetano Coelho Martins e de Maria Teresa Martins, se
empregava no ofício de latoeiro
233
e tinha de idade 36 para 37 anos. Não possuía sinal de
coroa na cabeça, era de estatura ordinária, barbado, tinha os cabelos da cabeça meio ruivos, os
dentes tortos, sobrancelhas fechadas, olhos pardos, nariz apontado, testa ordinária denotando
princípio de calvície, beiços pequenos e mãos e pés ordinários ao seu corpo. No momento da
233
Em Bluteau, oficial que faz caldeiras, candeeiros, bacias, tachos de latão ou cobre.
102
prisão se achava vestido com uma véstia
234
de pano azul e calças também do mesmo pano,
uma camisa de paninho
235
, calçava um chinelo de couro preto e usava um rosário de
Jerusalém no pescoço. Em seguida o réu foi entregue ao carcereiro Joaquim José Teixeira que
o guardou debaixo de chaves.
O dito Caetano, juntamente com seus escravos, ficou pronunciado na devassa tirada
ex-ofício pelo porte e pela fabricação de ouro falso. A situação do réu preso era muita
delicada na medida em que a fabricação de ouro falso era considerada uma agressão aos
direitos reais e consequentemente o caracterizava como réu de lesa majestade. Foi lavrado o
despacho de sua prisão e pronunciou-se agravação para o Tribunal da Suplicação do Rio de
Janeiro.
Na seqüência do processo-crime do réu Caetano Coelho Martins pode-se verificar
que não encontraram provas suficientes que o condenassem. O dito ouro falso não foi
encontrado em seu poder e sim na posse de seu escravo. Desta maneira, a Justiça se declara
incompetente para o caso, mandando assim, lavrar o alvará de soltura do u. A culpa que
tinha lhe resultado na devassa por fabricação de moeda falsa foi então retirada e o mesmo
pode ficar em liberdade.
236
Crime de lesa majestade, a fabricação de ouro falso era um grave problema com que
a Coroa tinha de lidar. O uso deste ouro no comércio parecia ser comum, na medida em que
os donos das vendas vinham sofrendo com este tipo de delito há algum tempo. As próprias
autoridades afirmavam que este crime vinha ocorrendo na cidade constantemente. A
importância dada ao problema pelas autoridades era clara, mas nem por isso, a Justiça estava
sendo feita a qualquer preço, como comprova o caso acima citado. A partir do momento em
que provas contundentes que incriminassem o réu Caetano Coelho Martins não foram
encontradas, o mesmo foi inocentado.
Às três horas da tarde, do dia 19 de setembro de 1806, foi chamado para acudir uma
briga ou discórdia, ainda sem maiores informações, o Capitão e Comandante do distrito de
Espera
237
Antônio Ferreira Coelho. Chegando ao local da briga o dito Capitão encontrou um
quadro lastimável. Ao que parecia, a referida briga tinha se dado entre o Alferes João José dos
Santos e um pardo forro chamado Antônio Pereira. O Alferes, juntamente com seu escravo
234
Em Bluteau, vestidura de homem com mangas que chega até os joelhos.
235
Em Bluteau, pano pequeno ou pano muito delgado de seda ou lã.
236
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 201, auto nº 5027.
237
Espera foi a denominação primitiva do lugar onde se ergueu a capela de Nossa Srª da Piedade da Espera,
demarcada a 20 de outubro de 1760, benta pelo vigário Taborda, a 4 de março de 1763. O curato de Espera
foi elevado a freguesia com o título de Nossa Srª da Piedade da Boa Esperança, pela lei 471, de de
junho de 1850, desmembrada da de São José do Xopotó, município de Piranga.
103
Vicente Rebolo, feriram o dito Antônio Pereira até que esse viesse a falecer. Utilizando-se de
sua espada o Alferes feriu a vítima enquanto o escravo Vicente, que usava um bastão, também
o atingiu. O próprio Capitão ao ver o corpo da vítima constatou que este não poderia mais
sobreviver devido a grande quantidade de sangue que lhe saía da boca em decorrência das
pancadas que recebera.
Assim que tomou conhecimento dos fatos ocorridos no tumultuoso caso o Capitão
Antônio Ferreira Coelho prendeu o agressor, Alferes João José dos Santos. O escravo, por sua
vez, resistiu intensamente à prisão e acabou sendo espancado pelo Capitão. No entanto, com a
aglomeração de pessoas ao redor da ocorrência e de um princípio de tumulto causado por essa
gente, o escravo espancado foi ajudado por dois homens, que o levantaram e o conduziram até
a casa do tronco
238
. Em questão de pouco tempo saíram da casa do tronco o escravo e os dois
homens que o haviam ajudado. O escravo vinha com um machado na mão e os outros dois
com armas de fogo em punho. O tumulto havia se generalizado. Os companheiros do dito
escravo meteram as armas no peito dos guardas daquela praça que haviam se aproximado,
enquanto o escravo, com o machado, cortou a corrente de ferro que prendia o Alferes
agressor.
Ao que tudo indica o tumulto se dissipou, os agressores fugiram e o Capitão foi
embora para sua residência. Mal sabia o Capitão, que o Alferes, agora solto, juntamente com
o escravo Vicente e os outros dois homens foram refazer-se de armas e unidos se
encaminhavam para a sua casa. Segundo relato do próprio Capitão, o Alferes e seus
comparsas tinham a intenção de matá-lo em desforra ao aprisionamento do Alferes durante a
confusão do ocorrido. Segue o Capitão dizendo, que ao chegarem a sua casa, o dito Alferes o
ultrajou com palavras, e que, mesmo este sendo Alferes, suas ações não deixavam de ser
criminosas. Afirma o Capitão que o tal Alferes é culpado de cometer este e outros delitos
naquele arraial e que é pública e notória sua péssima conduta.
O Capitão, com medo de morrer pelas mãos do tal Alferes e seus comparsas, teve
que vir acompanhado por quatro pedestres até Mariana, para que pudesse fazer a queixa do
acontecido. Além disso, ficou o Capitão jurado de morte pelo Alferes que prometeu matá-lo
juntamente com todos os outros que ajudaram a prendê-lo, procedimento segundo o próprio
Capitão o indecoroso pelas leis divinas e humanas. O Capitão recomenda ainda que não se
238
Em Bluteau, Tronco é nome de uma prisão ou cadeia por causas civis em Lisboa. Parece que nesse sentido se
poderá derivar Tronco de Truneus, que originariamente nas Igrejas do Norte é um cofre ou arca de madeira,
com uma abertura na parte superior, pela qual os fiéis deixam o dinheiro que querem dar de esmola para os
pobres da Freguesia, fábrica da Igreja ou outra caridade. No dito cofre fica o dinheiro debaixo de chave e
como encarcerado os presos no Tronco. Direito que em Lisboa se paga ao tronqueiro mor. Tronqueiro é um
guarda do Tronco ou prisão, uma espécie de carcereiro.
104
deixe sem castigo o referido insulto e aleivosia, pois, o povo do tal distrito ficará livre o
para assassiná-lo, mas matar também a quem quer que fosse obrigado a realizar sua obrigação
com a Justiça.
A prisão do u e de seus comparsas foi logo decretada por ordem do Exm° Sr.
Governador, devido não a todo o ocorrido, mas a um ferimento sofrido pelo Capitão
Antônio Ferreira Coelho cujo autor tinha sido o Alferes João José dos Santos. O Alferes foi
preso no mesmo dia, sendo lavrado o auto de prisão hábito e tonsura.
O Alferes João José dos Santos era um homem branco, casado com Dona Ana Maria
do Espírito Santo, filho legítimo de José de Oliveira Flores e de sua mulher Maria Quitéria
Ferreira. Nasceu e foi batizado no arraial de Piranga e era residente no arraial de Espera, no
termo de Mariana. Vivia do negócio de fazenda, tinha 30 anos de idade, não possuía sinal de
coroa na cabeça, era de estatura alta, tinha o corpo delgado, a cara comprida, a barba cheia,
cabeludo nos peitos e tinha uma grande cicatriz ao pé da sobrancelha do olho esquerdo que se
encaminhava até quase o meio da testa. Seus dentes eram alvos, sendo os da frente abertos,
seu cabelo era preto e crescido e se achava vestido unicamente com uma camisa de pano de
linho alvo com babados em volta de um [...] de baeta
239
com bandas de pelúcia, carregava um
rosário preto ao pescoço e estava com chinelos nos pés.
Para se ver livre, o Alferes João José dos Santos apresentou uma carta de seguro. No
entanto, e consta nos autos do processo, o efeito do seguro ficou frustrado, pois a prisão do
mesmo era lícita. Não consta no processo, maiores explicações sobre a negação do seguro,
mas é interessante apontar, que o réu apresentou uma segunda carta de seguro e que o mesmo
não estava preso em prisão pública e sim particular.
Em sua defesa, diz o Alferes João José dos Santos, morador do distrito de Espera do
termo de Mariana, que estava andando tranquilamente quando foi acometido por um mulato
pião, chamado Antônio Pereira, que lhe avançou com uma faca ferindo assim suas mãos. Para
reparar as facadas que tinha sofrido o Alferes valendo-se da própria espada que tirou da
cintura, atingiu o dito pião, mas acreditava não tê-lo ferido. Segundo o Alferes, neste tempo,
chegou ao lugar do conflito o Capitão Antônio Ferreira Coelho, Comandante do distrito, e
assim o fez prender. Agora vem o mais curioso do relato do Alferes. O Alferes informa nos
autos que o dito Capitão era seu cunhado e que por isso fugiu da prisão, achando que o
mesmo não prestaria queixa dele. Contudo, lhe chegou a notícia que o Capitão tinha dado
239
Em Bluteau, pano de lã a que com o uso ou com instrumentos se levanta o pelo. Há de muitas castas. Baeta, a
que chamam Castelete, que é de cinqüenta e quatro fios, baeta de Cofal, baeta de conta nova, baeta de Barca,
baeta Cacheira, baetinha de Bestable, baeta Imperial. Também das diferentes terras onde se fabrica toma
baeta o nome. Baeta da Inglaterra, de Holanda, de França, de Barcelona, da Moscóvia.
105
queixa não da sua fuga, mas também dos golpes que proferira em sua legítima defesa no
pião Antônio Pereira, das palavras injuriosas ditas ao Capitão e mais umas chicotadas que
havia dado em José de Matos com sua escrava. De acordo com o réu, ele não atingiu
ninguém, somente ralhou com os ora citados, porque o estavam insultando com o nome de
ladrão. Cego de paixão, segundo o próprio réu, o mesmo se precipitou contra o tal José Matos
e sua escrava e lhes fez algumas ameaças com o açoite que trazia nas mãos, em desforra a sua
honra e sem ânimo premeditado de ofender, tendo cometido o ato em justa defesa da vida e da
honra ultrajada e que seguro pretendia mostrar, alegando assim, sua defesa.
O processo segue e a ordem para que o Alferes fosse solto foi dada no dia 10 de
outubro de 1806. Em cumprimento do despacho mando que relaxado e solto os agravantes da
prisão siga o seu livramento seguro e não preso. Vários motivos resultaram na soltura do réu.
Primeiramente ele tinha em seu poder uma carta de seguro válida por um ano. Em segundo
lugar, comprovou-se ser falsa a queixa do Comandante do distrito de Espera Capitão Antônio
Ferreira Coelho em relação aos ferimentos do pião Antônio Pereira. Em terceiro lugar, a
Justiça alegou que o uso de espada não era proibido, sendo permitido nas Ordenações. Em
quarto lugar, indagaram o Capitão sobre um possível ferimento que este havia sofrido por
parte do réu e não encontraram nenhuma cicatriz ou marca no seu rosto. Por último, foi
alegado que o réu não foi capturado por ordem da Justiça e sim por mando do dito Capitão.
240
Este caso destaca-se pelo envolvimento de autoridades locais, o Capitão e
Comandante do distrito de Espera Antônio Ferreira Coelho e o Alferes João José dos Santos.
O dito Alferes envolveu-se numa contenda com um pardo forro chamado Antônio Pereira. A
averiguação do ocorrido pelo Capitão de Espera aumentou ainda mais o problema. O caso
mostra de que maneira exercia-se a autoridade dos oficiais em caso de conflitos. Um Alferes
fere um homem com uma espada ajudado por um escravo. Um Capitão chega ao local, prende
o Alferes e agride o escravo. Em seguida o mesmo Capitão é ameaçado de morte pelo escravo
espancado e seus comparsas. Qual era o respeito que as pessoas mantinham pelas
autoridades? Até que ponto a presença das autoridades intimidavam a população? E talvez o
mais importante, será que as autoridades agiam de acordo com a lei em todas as ocasiões,
fazendo com que a população os identificasse como agentes da lei?
Já se passava das nove horas da noite do dia 04 de novembro de 1806, quando na
cidade de Mariana, José Alves Quinta foi agredido fisicamente por dois homens. Foram
acusados da referida agressão Fernando José da Fonseca, homem branco e seu escravo
240
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 190, auto nº 4771.
106
Antônio cabra. Lavrou-se então auto de devassa, no qual os réus acima citados ficaram
pronunciados e obrigados a livrarem-se com carta de seguro.
Realizou-se posteriormente o exame de corpo delito no dito José Alves Quinta.
Verificou-se que seu braço esquerdo estava ferido desde o cotovelo até o punho e que o braço
direito trazia uma contusão menor com uma pequena ferida próxima ao punho. A análise dos
ferimentos possibilitou aos médicos afirmarem que as contusões foram causadas por um
chicote em xipa nova, e que o dito José não corria perigo de morrer vítima de tais
ferimentos.
Neste caso, não foi possível analisar a totalidade do processo, mas foi possível
identificar que a referida agressão ocorreu mais uma vez no decorrer da noite. A agressão
teria sido cometida por dois homens, um branco e um escravo. A presença de um escravo dá a
idéia de que o mesmo auxiliava seu senhor nesse tipo de ação. Um acerto de contas, uma
vingança, um aviso. estava o escravo acompanhando seu dono. O uso do chicote denota
também a alternativa para a proibição do uso de armas. Utilizado para punir seus escravos o
chicote aparecia aqui como peça fundamental no acerto de contas.
No dia 28 de setembro de 1809 chegou uma notícia às autoridades locais de que a
Igreja Catedral da cidade de Mariana havia sido saqueada. No local foi possível constatar
ausência de algumas peças: um castiçal de prata pequeno, uma cruz do [...] da Irmandade do
Santíssimo Sacramento, uma parte da Coroa de Nossa Senhora da Conceição também de
prata, além de outras peças da mesma Igreja. Inquirido sobre o roubo, o Sacristão Menor da
Igreja, Manuel Gonçalves de Souza, declarou que vinha dando falta das duas primeiras
peças desde o dia 30 de maio do referido ano e que reparou que as outras peças citadas
haviam desaparecido alguns meses depois.
Lavrou-se então, auto de devassa pelos furtos ocorridos na catedral, ficando
pronunciado como autor do delito o Capitão Manuel Ribeiro de Souza, morador em Mariana.
O mesmo conseguiu ver-se livre da prisão por meio de uma carta de seguro. No entanto, o
prazo desta carta estava vencendo e uma segunda carta deveria ser apresentada. Infelizmente
não pudemos descobrir se o Capitão apresentou esta segunda carta, mas foi possível verificar
sua justificativa para tal calúnia, de que ele era o ladrão das peças da Igreja.
Segundo o Capitão, lhe chegou a notícia de que algumas pessoas, suas inimigas, mas
desconhecidas para ele, o denunciaram perante as justiças criminosas da cidade de Mariana na
devassa que se procedeu pelos furtos de vários trastes de prata que dizem feitos na Catedral da
107
dita cidade, afirmando que o suplicante cometera o referido delito bem como outros mais
proibidos por direito comum das leis do reino.
241
Mais uma vez, o resultado final deste processo não foi possível saber. No entanto,
verificamos no decorrer das ações contidas nos autos, aspectos importantes da ação da Justiça.
Primeiramente, a averiguação do roubo na Igreja Catedral levou a acusação do Capitão
Manuel Ribeiro de Souza, autoridade local, portanto. O fato do mesmo ser Capitão não
impediu que fosse ordenada sua prisão mesmo sem provas contundentes, no caso as peças
roubadas. Isso denota a posição da Justiça frente à prática de delitos. Em segundo lugar,
podemos nos perguntar de que maneira a Justiça chegou ao nome do referido Capitão. O
próprio Capitão afirma que pessoas suas inimigas o incriminaram injustamente. Injustamente
ou não, sabemos que a Justiça chegou até o réu através da delação. A delação era comum no
período e a Justiça a utilizava para chegar a possíveis suspeitos. O delator por sua vez,
aproveitava para incriminar uma pessoa de quem não gostava, mesmo que essa não fosse
realmente culpada. Podemos pensar que por ser uma autoridade o Capitão tinha inimigos, e
estes poderiam se aproveitar para incriminá-lo perante a lei.
Caso curioso ocorreu também no ano de 1828
242
envolvendo Dona Maria Angélica,
moradora em Águas Claras, freguesia de São Caetano.
243
Dona Maria Angélica era viúva de
Manuel Fernandes e recentemente também havia perdido um tio seu, de nome José Dias, que
viera a falecer na cidade do Rio de Janeiro. Seu tio, no entanto, não a desamparou e lhe
deixou um legado de cem mil réis.
Para receber o dito legado, Dona Maria Angélica encarregou a cobrança a um tal
João Pinto Leão, dando-lhe toda a documentação necessária para o exercício da função. O
homem não cobrou o legado deixado à referida senhora, como se viu no direito de ficar
com uma comissão de 50%. Entregou apenas cinqüenta mil réis à Dona Maria Angélica e
tomou os outros cinqüenta mil réis para si. A dita senhora move ação de libelo
244
contra João
Pinto Leão, pois não acha justo o que foi feito com ela. Pretende com isso, reaver os ditos
cinqüenta mil réis que lhe é de direito.
245
241
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 221, auto nº 5502.
242
Não foi possível descobrir a data completa deste processo, por isso falta à informação do dia e do mês do
ocorrido.
243
Águas Claras é um povoado no município de o Pedro dos Ferros. Hoje, São Pedro dos Ferros é um
município da Zona da Mata, criado pelo decreto-lei n° 1058, de 31 de dezembro de 1943, desmembrado do
município de Rio Casca.
244
Em Bluteau, libelo é um papel ou breve escrito em que pessoa pede à outra, o que lhe deve em matéria civil
ou matéria crime, pondo em qualquer delas a sua razão e justiça por artigos e provas. Este que faz isto se
chama autor, e contra quem se chama réu. Vai vista do libelo ao réu para contrariar, e faz uma contrariedade
também por artigos e provas, mostrando que não deve, e no crime, que não tem culpa ou que não o fez.
245
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 214, auto nº 5349.
108
Nem só as agressões, os furtos e os homicídios caracterizavam o crime em Mariana
no início do século XIX. O caso acima citado denota claramente esta afirmação. Uma senhora
foi enganada por um malandro, que tomou 50% do legado deixado a ela por seu tio. Maiores
investigações devem ser feitas nesse sentido para verificar se tal ação era corriqueira no
território mineiro no século XIX. Contudo, a exposição do caso permite visualizarmos mais
uma ação criminosa presente no cotidiano da população marianense no século XIX.
Na noite do dia 27 de outubro de 1815 chega uma queixa às autoridades locais de
que Ana Gomes Ribeiro havia sido roubada por um crioulo chamado André. A mesma
afirmava que o tal crioulo era o autor do roubo, pois segundo ela, já o havia presenciado dar
tiros à noite e furtar gado de moradores próximos. Foi mandado para fazer as averiguações
necessárias o Comandante do Distrito de Infincionados.
Ana Gomes Ribeiro, moradora no Infincionados, estava entretida no exercício da
mineração em lugar distante mais de meia légua do arraial de Infincionados. Por isso, era
indispensável deixar sua casa pelo espaço de toda a semana, visto que não tinha outra pessoa
consigo mais que sua neta. Segundo Ana Maria Gomes, era do conhecimento de todos, que no
arraial existiam algumas pessoas libertinas, ociosas e de vida depravada que não se ocupavam
em laboratório algum e viviam de prejudicar a sociedade, matando gado alheio, roubando
hortas e vivendo na rua à noite fora de hora.
A suplicante continua seu relato, informando que têm ocorrido várias disputas entre
esses vadios
246
e os donos das testadas
247
locais, estes últimos, com medo de serem
roubados. Ainda por cima, nestas disputas, o crime cometido por tais vadios
248
tem ficado
impune. Por serem malévolos e extravagantes foram os ditos à casa da suplicante e roubaram
o que puderam. Tal roubo pode ser constatado quando a suplicante voltava do serviço e
adentrava na sua residência.
O rol das coisas roubadas
249
na casa de Ana Gomes Ribeiro foi apresentado junto
com a queixa para que se conhecesse sua pobreza e que fosse possível o resgate de alguma
parte do roubo. Segundo a suplicante, parte componente da presa usurpada se achava em
246
Grifo meu.
247
Segundo Bluteau, testada é o espaço de terra que entesta com a outra, ou seja, que fica de fronte a outra.
248
Grifo meu.
249
Lista dos trastes roubados: um balaio pequeno com três pares de brinco de ouro e um sem companheiro; uma
volta de contas de ouro com bordas de fio de ouro; um coração de ouro; uma figa de ouro; um casilho de
prata; um botão de prata de abotoar camisa; um espírito santo de prata; uma saia branca com bucal; um lenço
branco; três varas de renda fina; meia quantia de algodão; um ferro de engomar; três pratos finos; três pratos
de estanho sendo dois pequenos e um maior; um tacho de cobre; uns pares de colheres de latão; um funil e
uma lima de aço de limar.
109
algumas vendas do Arraial e a mesma tem pedido aos vendeiros que conservassem os tais
roubos para que quando os responsáveis pelo delito fossem presos fosse possível descobrir
quantos foram os participantes na presa e onde estava o restante dos bens roubados.
Verificando que tinha sido roubada a suplicante deu logo parte do acontecido ao Capitão
Comandante da freguesia, o qual mandou ordem ao seu Sargento para fazer esta diligência,
que este tinha sido rogado várias vezes pela suplicante e por outras pessoas do arraial para
cumprir com esta ordem.
Prosseguindo com a diligência, o Sargento chegou até uma determinada família, da
qual faz parte um crioulo chamado André. Esse crioulo, parecia não ter bons antecedentes,
visto que já tinha participado de algumas confusões no arraial. Tinha fama de valente pelas
muitas que tem feito, como ter desferido um golpe de navalha na cara de um crioulo chamado
Domingos Ribeiro, com pretensão de lhe separar a cabeça, tendo sido necessário fechar o
ferimento com oito pontos. Também havia dado um tiro à noite em homem chamado Luiz
Correa, o qual esteve à beira da morte.
250
André, juntamente com seus irmãos, no tempo do
ouro, antes de surgir a moeda, enganava os taverneiros com ouro falso. Além disso, várias
eram as queixas contra ele pelo roubo de gado e demais criações. Dando uma busca na casa
da Ana Araújo Barreiras, pessoa particular do dito crioulo, o Sargento junto com algumas
testemunhas, encontrou uma rês morta e já quase toda esbanjada, a qual verificou ser roubada
e abatida pelo crioulo André.
Ao que tudo indica, pelas informações contidas no processo, fazia aproximadamente
um ano que o Sargento rondava o distrito na diligência de averiguar os até então possíveis
delitos que o crioulo André era acusado. O acusado, agora possivelmente culpado, estava
pescando e ainda na beira do rio, soube que o Sargento estava a sua procura para prendê-lo.
André, após ficar sabendo da diligência em busca dele, teve o atrevimento de esperar o
Sargento em um lugar deserto, em posse de armas, para fazer uma tocaia. Encontrando o
Sargento, aproveitou que o mesmo estava só e desarmado para lhe dar um aviso. Disse ao
Sargento que já lhe tinha feito outras tocaias e que toda a sua felicidade foi não passar por
elas. Porém, continua André, que tivesse a certeza que se fosse com ronda até sua casa para
prendê-lo, ele havia de matar alguém, pois não se entregaria facilmente. O dito crioulo
acreditava que nunca seria preso, pois tudo que tem feito até hoje, ficou impune. O Sargento
afirmou em seu depoimento que nunca o prendeu, porque não poderia prender ninguém sem
250
André, juntamente com outros, varriam as portas das casas e vendas do Arraial e se aproveitavam quando o
proprietário estava ausente para adentrar na propriedade e realizar um roubo. O tal Luiz Correa, ferido por
André, se desentendeu com ele por não querer que a porta da sua casa fosse varrida em sua ausência, com
medo de ser roubado. Em meio ao desentendimento, acabou levando um tiro.
110
ordem da Justiça. Para que fosse feita a Justiça, o Sargento deu parte ao juiz de todos os
desacatos sofridos, antes que esse acabasse morto.
O juiz ordenou que todos os envolvidos no roubo fossem presos. Logo o Sargento
apresentou o respeitável despacho de Vossa Excelência, e notificou a todos os envolvidos que
entregassem os trastes roubados na casa da suplicante, o que não fizeram sem antes protestar.
Para encerrar o sargento declara sua obediência como súdito fiel a tudo o que por Vossa
Excelência for decretado.
251
Parece fazer parte do cotidiano das autoridades serem desrespeitadas e agredidas
quando tentam cumprir seu ofício no início do século XIX. No caso exposto acima, esse
desrespeito é flagrante, pois o réu ameaça a vida do oficial. Além disso, informa ao Sargento
que havia feito diversas tocaias para ele e que até agora a sorte do oficial o tinha impedido de
matá-lo. Mas quem era essa autoridade? Muitas vezes, as autoridades extrapolavam o limite
do conceito de Justiça, agindo conforme seus instintos.
Esse caso apresenta uma questão interessante quanto às autoridades locais. Por mais
que os oficiais se sentissem acima da lei, nesse caso, podemos perceber que a lei havia sido
cumprida corretamente. Segundo o Sargento, ele nunca tinha realizado a prisão do réu porque
não possuía ordem da justiça. Se isso era verdade, ou se ele apenas temia o réu, não podemos
descobrir, mas o certo, é que a lei foi cumprida.
Outro aspecto referente à Justiça que o caso nos permite discutir é a sua lentidão. Os
moradores do local, pelo que o processo crime nos informa, vinham sendo incomodados há
tempos pelos tais varredores e a Justiça não se pronunciava em relação a isso. Foi
necessário roubar a casa toda de Ana Gomes Ribeiro para o réu ser investigado. Contudo, não
sabemos se tal medida iria resolver o problema, visto que tais homens não tinham medo da
Justiça e descumpriam a lei em suas várias proposições.
A notícia chegara à cidade de Mariana que no dia 24 de março de 1804, indo o
Capitão Maximiano Gomes apreender a Felix da Silva Pontes por bem de uma ordem do
excelentíssimo General atual desta Capitania e a mandado deste juízo, se opusera a dita prisão
o mencionado Felix da Silva Pontes, e nesta ocasião, ficaram feridos o dito Felix da Silva
Pontes, o Capitão Maximiano Gomes e um seu escravo crioulo de nome Lourenço.
Foi por ordem da Justiça que o delinqüente fosse castigado na forma da lei. Lavrou-
se então, auto de devassa que ex-ofício da Justiça mandou fazer o Capitão Tomás Joaquim
Pedroso da Silveira vereador mais velho e Juiz pela ordenação desta cidade e seu termo, pela
251
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 215, auto nº 5375.
111
resistência e ferimentos constantes da declaração e corpo de delito do Capitão Maximiano
Gomes e outros.
Após a constatação do acontecido por parte da Justiça local corre então o processo
criminal. Vejamos então, na visão do Capitão, de que maneira, ele, seu escravo e o réu
ficaram feridos. Primeiramente segue o auto de declaração que fez o Capitão Maximiano
Gomes no dia 23 de março de 1804. O Capitão Maximiano Gomes, morador na freguesia do
Sumidouro deste termo, no dia de sábado, 24 de março de 1804, juntamente com um seu
escravo, vinha pela estrada que vai para Santa Ana do Deserto, no lugar chamado Gambá,
freguesia de São José da Barra Longa, junto ao sítio do de Felix da Silva Pontes, em sua
porteira, se encontrou com seis homens pardos, desconhecidos para ele. Tais homens o
embaraçaram dizendo-lhe que ali estavam para prender ao dito Felix da Silva Pontes por
virtude de um mandado assinado pelo Tenente Antonio Gonçalves da Mota, Juiz que foi pela
ordenação desta cidade e de um despacho do Ilustríssimo e Excelentíssimo General desta
Capitania, e que ele declarante devia ajudar na referida prisão. Para comprovar a autenticidade
de tal informação os seis homens apresentaram ao Capitão o mandado e despacho de Sua
Excelência. Sendo assim, se propôs a ajudar os seis homens em tal tarefa. Mal sabia o Capitão
em que enrascada estava se metendo.
Adentrou junto com os seis homens no sítio do tal Felix e de fato a prisão foi
realizada. No entanto, o dito Felix, ora preso, gritou para que sua mulher lhe trouxesse uma
zagaia.
252
Em instantes vem correndo sua mulher de zagaia na mão acompanhada de três cães
bravos. Com a zagaia ela fere o Capitão e o escravo Lourenço que segurava seu marido.
Quando avistaram a mulher de Felix com zagaia em punho e os três cães bravos, os seis
homens pardos, que seriam os responsáveis iniciais pela prisão, fugiram em disparada. O que
aconteceu foi que quase todos acabaram feridos, exceto a mulher do dito Felix. O Capitão e
seu escravo pelos golpes de zagaia e pelas mordidas dos cães; Felix da Silva Pontes pela luta
corporal para se soltar. No fim o Capitão e seu escravo, depois de muita luta, acabaram
prendendo Felix e sua valente mulher.
Realizada a prisão foi expandido mandado de prisão contra Felix da Silva Pontes
pelos ferimentos que fez na pessoa do Capitão Maximiano Gomes e pelos demais delitos
253
252
Em Bluteau, zagaia, ou melhor, azagaya, é uma lança pequena arrojadiça usada pelos mouros. Com suas
armas, que são dardos, e azagayas guarnecidas nos cabos de ossos e pontas de cornos de alimarias
(animais) com que ferem, como se fosse de verdadeiro aço.
253
Félix da Silva Pontes parecia ser um homem que não gostava muito de respeitar a lei. Ele havia sido
identificado em dois assentos de prisão para crimes diferentes, além de possuir quatro alvarás de soltura,
sendo três com a data de 13 de dezembro de 1806 e um outro com data de 02 de março de 1805.
112
que já havia praticado, na medida em que era temerário e desobediente às leis. Em anexo ao
processo, segue o mandado de prisão do réu.
Começava agora a etapa da realização dos exames de corpo e delito. Os exames
foram feitos no Capitão Maximiano Gomes, no seu escravo Lourenço e no réu Felix da Silva
Pontes. Examinando o corpo do Capitão foi possível encontrar quatro pequenas contusões
com escoriações da pele sobre os músculos intercostais e vértebras lombares, assim como
outra no olho esquerdo.
O escravo Lourenço estava bem mais machucado. Tinha duas feridas, uma no peito
esquerdo com três dedos de profundidade e dois dedos de largura, e que, segundo os médicos,
se ele não tivesse desviado do ferro certamente teria morrido. Outra ferida se encontrava no
meio da coxa esquerda e tinha quatro dedos de profundidade e três dedos de largura, ferida tal
que lhe impedia os movimentos de toda a perna. As feridas, segundo os médicos, denotavam
serem feitas com instrumento perfurante de zagaia e no presente não ameaçavam perigo à
vida do escravo.
É no exame de corpo e delito do réu Felix da Silva Pontes que podemos perceber que
o mesmo levou a pior nesta contenda. Ao que parece, durante o conflito, ele também acabou
ferido pela zagaia. Ele apresentava duas feridas nas costas da parte esquerda. Uma ao pé do
lombo três dedos de profundidade e dois dedos de largura, outra sobre o lombo, distantes uma
da outra meio palmo, com um dedo e meio de profundidade. Tais feridas denotavam ser feitas
com instrumento perfurante de zagaia e uma das duas feridas apresenta grande perigo à vida
de Felix.
254
O desrespeito às autoridades também está presente no caso acima. Contudo, o
interessante nesta prisão, é a presença dos seis pardos na porteira do sítio do réu. O Capitão
foi ajudar esses pardos na prisão do réu por ordem de um Tenente e de um General da
Capitania. Quem era responsável pelo despacho das ordens de prisão? Elas partiam de vários
pólos de poder? De que maneira as jurisdições eram respeitadas?
Por último, destacaremos um caso que é particular em todos os sentidos.
Primeiramente ele ocorreu no ano de 1794, logo, seis anos antes do período proposto para
estudo nesta pesquisa. Em segundo lugar, e daí a importância de tal relato, identificamos no
processo crime uma relação clara entre senhor e escravo, e suas conseqüências, quando esta
relação acaba em crime.
254
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 224, auto nº 5584.
113
No dia 23 de outubro de 1794, na Freguesia de Furquim, foi preso o Alferes
Francisco Gonçalves de Moraes, por culpa que lhe resultou da devassa que a ex-ofício da
Justiça se procedeu pela morte feita em um crioulinho seu escravo por nome de Felisberto o
qual consta do rol de culpados. Segundo informação dos autos, o Alferes Francisco Gonçalves
de Moraes mandou enterrar o corpo do referido escravo no ádrio da Capela de Santo Antônio
da Pinduca na Freguesia de Furquim.
Partindo destas informações iniciais a investigação prossegue. No momento da
prisão, lavra-se um auto de prisão hábito e tonsura na pessoa do réu Francisco Gonçalves de
Moraes. Este era um homem de estatura ordinária, rosto comprido e magro, olhos ordinários
pretos, cabelo todo branco, com falta de dentes na parte de cima e de baixo da boca, cor pálida
e uma verruga sobre a capela do olho direito, orelhas grandes, tinha na cabeça um barrete
255
branco de algodão e um rosário preto e grosso no pescoço, tinha vestido uma camisa de
algodão fino, um jaleco de pano azul ferrete
256
, calção do mesmo, umas ceroulas de algodão
fino, umas meias de algodão grosso arrolados nas pernas e nos pés, um chinelo de couro, tinha
vestido pelos braços um timão
257
de baeta azul de forro da mesma. Era natural da cidade do
Porto do Reino de Portugal, tinha de idade 80 e tantos anos e era solteiro. Tinha o privilégio
de ter servido no senado da Câmara desta cidade e que também tinha sido síndico da Terra
Santa e que não tinha ordens menores nem sacras por onde deixava de ser punido pelas
Justiças seculares de sua Majestade e abaixando o mesmo réu a cabeça examinei que não
tinha coroa alguma e menos sinal dela.
Segundo consta, o réu, com a maior desumanidade e com tanta crueldade mandou
açoitar um seu escravo por nome Felisberto que acabou morrendo por ocasião dos ditos
açoites. O tal crioulo Felisberto era de tenra idade, tendo apenas seis anos, como se prova sua
certidão de batismo de junho de 1788. Ao que tudo indica, era costume o escravo ser açoitado.
Quando o réu estava em casa e fosse preciso fazer algum pequeno castigo ao escravinho, o
mesmo era amarrado em uma escada com a cabeça para baixo e era açoitado com instrumento
de bacalhau.
Após a constatação da morte do escravo o Alferes, seu senhor, o enterrou no dia 02
de junho de 1794 na Capela de Santo Antônio da Pinduca. No entanto, o Alferes não contava
que a Justiça ordenasse que o corpo fosse desenterrado no dia seguinte para averiguações, já
255
Em Bluteau, barrete é um certo gênero de cobertura para a cabeça.
256
Em Bluteau, há três castas de azul: O celeste, o ferrete e o ultramarino. O ferrete é um azul mais escuro.
257
Em Bluteau, timão é o pau que unido ao arado, vai a pegar na canga, em que vão os bois presos.
114
que ninguém chegou a ver o corpo e examinado em que estado este se encontrava na hora da
morte.
Já o réu apresenta uma versão diferente para o ocorrido. Segundo ele, estava no seu
serviço de minerar quando foi chamado pelos pais e avós do crioulinho Felisberto, recebendo
destes a notícia que o menino tinha morrido. O Alferes afirma que o menino havia morrido
inchado por ter comido muita terra, vício antigo que possuía. Além disso, o réu afirma que o
menino já estava muito cansado em vista da doença e não tinha esperança de melhora. Sendo
assim, após a constatação da morte do escravinho, o réu mandou enterrar o corpo na Capela
de Santo Antônio da Pinduca. De acordo com o réu, não havia motivo para que ele matasse o
escravo, visto que o mesmo era filho natural de Ana crioula, sua escrava, e foi batizado por
ele. Além disso, segundo o réu, a criança era de casa, criada como um filho, com muito amor.
Carregou-o nos braços e deixava-o comer à mesa com ele.
Entre as testemunhas ouvidas no caso encontra-se Manuel José Martins. Manuel era
um homem branco, morador do Furquim, vivia de cobranças, tinha 21 anos de idade, e sabia
por ouvir dizer os vizinhos do réu, que este mandara açoitar o crioulo com a cabeça para
baixo, até que o matara em uma escada. Além disso, ouvira dizer, que um crioulo por nome
Manuel da Silva ou um irmão deste, sabia, também de ouvir dizer, os açoites foram dados
pelo Senhor, agora réu.
No entanto, apesar das evidências e dos depoimentos contra o réu, a absolvição do
mesmo foi recomendada. Para a Justiça, o réu vivia conforme as leis naturais, era temente a
Deus e tinha uma vida regular e compassiva. Somado a isso, não era certeza que o corpo
desenterrado que se examinou era do crioulo Felisberto, escravo do réu, por não poder estar
em estado de ser conhecido, estando corrupto e podre. Nos dias próximos ao enterro do
escravinho outros corpos tinham sido enterrados e os defuntos encontravam-se em estado de
putrefação. Por isso, não tinha a certeza se o corpo examinado era de Felisberto.
Fica declarada portanto a inocência do réu, por falta de provas que o incriminassem,
por sua idade avançada e porque, segundo o próprio réu, o mesmo possa inimigos que o
queriam incriminar.
258
Vimos nos casos citados acima, questões referentes à Justiça e a criminalidade. No
capítulo seguinte observaremos a teoria judicial no período e de que maneira a mesma
procurava agir.
258
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 211, auto nº 5261.
115
CAPÍTULO 4: NAS MALHAS DA JUSTIÇA
4.1 AS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A JURIDICIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
O poder nas sociedades de Antigo Regime está estreitamente ligado à figura do
monarca. Como grande soberano o rei constituía o centro único e indissolúvel do poder e da
ordenação social, concentrando todo o poder em suas mãos e tendo todo o controle sobre o
público e o privado. Para com ele nenhuma coisa mais pode, que sua própria vontade, e o
próprio juízo. (BLUTEAU, 1712, p. 563).
259
No que se refere à execução da justiça, também
se obedece à vontade do monarca. Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem
social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam
elementos inerentes ao poder real. Para ser eficaz, portanto, a punição devia ser afirmativa e
exemplar, como exercício de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorável e
suscitar temor. As punições no Antigo Regime tinham por objetivo não punir o corpo do
supliciado, mas também dar o exemplo, para os expectadores ao do cadafalso, de que a
infração da lei, como a desobediência ao próprio rei em pessoa, seria punida com vigor.
Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente
diante da porta principal da Igreja de Paris aonde devia ser levado e acompanhado
numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras;
em seguida, na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que será
erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão
direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de
enxofre, e às partes que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo
fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu
corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpos
consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.
(FOUCAULT, 1987, p. 09).
260
259
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus,
1712. p. 563.
260
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 09. Além de todo
esse sofrimento, o desmembramento do corpo do supliciado foi muito longo, porque os cavalos não estavam
afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi
necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas.
116
É comum que a sistematização e a codificação das leis visem a imposição de limites
ao poder monárquico. No entanto, a compilação das leis e das ordens emanadas dos
sucessivos monarcas e das cortes correspondeu a uma afirmação do poder real. No início da
época moderna, o aparecimento de códigos legislativos acompanhou a formação e o
fortalecimento das monarquias nacionais, destacando-se o pioneirismo português. Associadas
diretamente ao monarca que as promulgou, as chamadas Ordenações portuguesas constituíram
o corpo legal de referência para todo o Reino.
261
Em meados do século XV uma codificação de leis civis, fiscais, administrativas,
militares e penais, com a fixação de regras nas relações com a Igreja, foi concluída e
promulgada, sob o título de Ordenações do senhor D. Afonso V ou, simplesmente,
Ordenações Afonsinas.
262
Essa primeira codificação foi reformada durante o reinado de D.
Manuel e concluída em 1521 sob o título de Ordenações Manuelinas.
263
No início do reinado
de Filipe I, entre 1583 e 1585, os trabalhos preparatórios para uma outra sistematização
legislativa foram iniciados; contudo, por razões desconhecidas, as novas ordenações somente
entraram em vigor no início do reinado de Filipe II, quase uma década depois.
264
Publicada
com o pomposo título de Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado do
muito alto, católico e poderoso rei Dom Filipe, o primeiro, a compilação constituiu o mais
bem feito e duradouro código legal português.
265
261
LARA, Silvia Hunold. (org.) Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 29.
Compiladas e ordenadas, as diversas leis regulamentavam a estrutura hierárquica dos cargos públicos, as
relações com a Igreja, a vida comercial, civil e penal dos súditos e vassalos. Acima de tudo, porém, estava o
monarca; ou, como expressa uma passagem das Ordenações Filipinas: O rei é lei animada sobre a terra e
pode fazer lei e revogá-la quando vir que convém fazer assim.
262
Ibid. p. 30. As regulamentações existentes nas Ordenações Afonsinas foram reunidas e ordenadas em cinco
livros: o primeiro ocupou-se dos cargos da administração e da Justiça; o segundo trata das relações entre o
Estado e a Igreja e dos privilégios e direitos do clero e da nobreza; o terceiro cuida basicamente do processo
civil; o quarto estabelece as regras para contratos, testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento
de terras etc.; e o último estipula os crimes e suas respectivas penas. Essas Ordenações, entretanto, não
chegaram a ser impressas durante o tempo em que vigoravam, circulando sob a forma de cópias manuscritas
que demoravam a ser concluídas e traziam muitas vezes pequenas alterações.
263
Ibid. p. 31. As Ordenações Manuelinas seguem a mesma estrutura das Afonsinas, com algumas revisões e
atualizações. Entretanto, agora os textos aparecem escritos em nome do rei, como se dele sempre tivessem
emanado, diferentemente da anterior, que chegava a reproduzir textos publicados por outros monarcas.
Configura-se assim, sob o reinado de D. Manuel, a associação entre o monarca e sua lei, cujo poder se
expande à medida de suas próprias Conquistas: aqui, as penas de degredo incorporam Ceuta, São Tomé e
outras colônias da África.
264
Ibid. p. 33. No reinado de D. Sebastião, o jurisconsulto Duarte Nunes de Leão realizou uma compilação de
leis extravagantes e dos assentos da Casa de Suplicação, aprovada em 1569. Embora não houvesse intenção,
posteriormente essa obra ficou conhecida pelo nome de Código Sebastiânico.
265
Ibid. p. 34. Apesar de promulgado sob a égide do domínio de Castela, o texto das Ordenações Filipinas segue
a tradição legal portuguesa, tanto do ponto de vista formal como do normativo, com raras influências
castelhanas. Conserva, assim, a mesma divisão em cinco livros das Ordenações anteriores, igualmente
subdivididos em títulos e parágrafos. O livro I delineia as atribuições, direitos e deveres dos magistrados e
oficiais da Justiça, com exceção dos ligados ao desembargo do Paço, cujo regimento, embora datado de 27
de julho de 1582, não foi incorporado às Ordenações. No segundo livro estão definidas as relações entre o
117
Quando pensamos no estudo do crime no Brasil, até a década de 20 do século XIX,
devemos ter em mente que as disposições relativas aos crimes e às formas de punição, durante
quase todo o período colonial até a adoção da Constituição de 1824 e do Código Criminal do
Império de 1830, encontravam-se estabelecidas no Livro V, das Ordenações Filipinas.
Abrangia essa legislação questões as mais diversas possíveis, como blasfêmia, feitiçaria,
benzimento de animais, moeda falsa, sodomia, incesto, adultério, homicídio, injúria, furto,
falsificação de mercadorias, vadiagem, batuques, resgate de presos, porte de armas, jogos,
ocultamento de criminoso, incendiários, mexeriqueiros, caças e pescarias, judeus e mouros,
deserções, etc. Ali estava prevista a pena de morte, nas suas diversas concepções, segundo a
legislação portuguesa; previa a pena de degredo para galés e degredo para outros lugares;
estipulava também penas corporais como açoites, queimaduras com tenazes, a mutilação de
mãos, da língua, etc. O confisco de bens e as multas eram igualmente utilizados como pena. E
havia ainda um conjunto de penas que se destinava a expor ao ridículo ou à condenação
pública dos infratores.
É peculiar nas Ordenações Filipinas, que por tanto tempo nortearam as ações do
corpo político-administrativo colonial, a distribuição das penas segundo a condição social do
transgressor. O mesmo crime poderia ser punido, portanto, de formas distintas: se o indivíduo
era peão ou escravo poderia ser recolhido à prisão, pagar multa ou ainda ser açoitado ou
condenado à morte. Porém se fosse um indivíduo de maior condição, pagava apenas a multa
ou então era degredado para o Brasil ou África, recebendo sempre tratamento distinto.
266
A punição do pecado aparece constantemente nas Ordenações e não será muito
diferente nos séculos seguintes. Apesar da separação entre Igreja e Estado no que se refere às
punições, o Estado se utiliza da juridicização da consciência para o julgamento das pessoas. A
idéia é transformar todo o crime em pecado, e punir de acordo com a consciência. Qual a
diferença, portanto, de punir o pecado e punir a consciência?
De acordo com Paolo Prodi, o século XVII pode ser chamado de era da consciência.
Após a ruptura religiosa e o nascimento das igrejas territoriais, a questão do juramento de
fidelidade e da profissão de fé impõe-se como fundamental para a ordem política, e no dilema
entre a obediência às leis do Estado e a adesão ao próprio credo pessoal funda-se todo o
debate que anima as nações européias, seja qual for o país ou a profissão religiosa a que
Estado e a Igreja, os privilégios desta última e os da nobreza, bem como os direitos fiscais de ambas. O
terceiro trata das ações veis e criminais, isto é, do processo civil e do criminal, regulando o direito
subsidiário. O livro IV determina o direito das coisas e pessoas, estabelecendo as regras para contratos,
testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento de terras etc. O último é dedicado ao direito penal,
estipulando-se os crimes e suas respectivas penas.
266
SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999.
118
pertence.
267
A juridicização da consciência é, de fato, uma passagem chave, seja porque
representa a reação das igrejas e dos indivíduos diante da concentração do poder do Estado,
seja porque a própria evolução do direito positivo não pode ser compreendida se não
considerarmos a elaboração realizada pelos juristas da consciência do século XVII. (PRODI,
2005. p. 357)
268
Segundo Prodi, após a separação entre Igreja e Estado, no que se refere ao judiciário,
abre-se caminho para um novo tipo de dualismo, não mais entre diversos ordenamentos
jurídicos, mas entre a lei civil e a eclesiástica. A moral, da ação eclesiástica, passa a adotar
leis do direito, e o direito, se moraliza, colocando em movimento um processo de
criminalização do pecado, de um lado, e um processo de condenação moral do ilícito civil ou
penal, de outro. A justiça tem, portanto, duas faces distintas, aquela do juízo divino e aquela
humana, e com base nessa distinção são discutidos todos os problemas concretos, desde a
restituição do bem roubado até os vários delitos.
O mundo eclesiástico medieval agia com uma fusão compacta de direito, costume e
moral, que eram mantidos numa união inseparável em parte por poderes mundanos, em parte
por poderes espirituais. O Estado e o direito se libertam dessa fusão, e a moral, uma vez que
tivera de se desvincular da tradição e da autoridade, é obrigada a distinguir-se tanto do direito
quanto do costume, buscando uma nova fundação autônoma e iniciando um caminho em
direção aos valores internos.
269
A casuística luterana do século XVII exerce papel importante nesta separação entre
Igreja e Estado, afirmando que o cristão deve ser auxiliado pelos tratados de teologia prática a
encontrar um acordo ou uma consonância entre a justiça de Deus, contida na Escritura, e a
justiça dos homens, pois a experiência cotidiana da vida demonstra que ele deve ser amparado
nas suas decisões. Nessa concepção do direito natural ou lei de Deus, não há apenas o início
da laicização e da fundação de uma ética autônoma, mas também a consciência do fim do
direto natural como ordenamento: o juspositivismo será, em grande parte, o resultado desse
processo de relativização, permitindo assim, o nascimento do dualismo moderno entre
consciência e direito positivo ou a lei dos homens.
O jusnaturalismo pensa o direito de forma diferente, caracterizando-se por uma
crítica aos excessos do Antigo Regime, pela separação entre direito natural e positivo, por
267
PRODI, Paolo. Uma História da Justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e
direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 355.
268
Ibid. p. 357.
269
Ibid.
119
uma preocupação maior com os réus e pelo julgamento justo. Aqui, se enquadra o pensamento
de Cesare Beccaria, por exemplo.
Referente aos privilégios, presentes nas leis do Antigo Regime, Beccaria
acreditava na concessão, de maneira geral, aos magistrados incumbidos de fazer as leis, um
direito que contrariava o fim da sociedade, que é a segurança pessoal. De acordo com o autor,
isto se apresentava no direito de prender, de modo discriminatório, os cidadãos, de vedar a
liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos e, conseqüentemente, de deixar em liberdade os
protegidos do rei, apesar de todas as evidências do delito.
270
Segundo Beccaria, a prisão de um indivíduo só poderia ocorrer se fossem
apresentadas provas evidentes de que este cometeu um delito. À proporção que as penas
forem mais suaves, quando as prisões deixarem de ser a horrível mansão do desespero e da
fome, quando a piedade e a humanidade adentrarem as celas, quando, finalmente, os
executores implacáveis dos rigores da justiça abrirem o coração à compaixão, as leis
poderão satisfazer-se com provas mais fracas para pedir a prisão.
271
A idéia está em que o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos
espíritos a idéia de força e do poder, em vez da justiça; é que se atiram, na mesma
masmorra, sem distinção alguma, o inocente suspeito e o criminoso convicto; é que
a prisão, entre nós, é antes de tudo um suplício e não um meio de deter um
acusado; é que, enfim, as forças que estão externamente em defesa do trono e dos
direitos da nação estão separadas daquelas que mantêm as leis no interior, quando
deveriam estar intimamente ligadas. Nossos costumes e nossas leis retrógradas
estão muito distantes das luzes dos povos. Somos ainda dominados pelos
preconceitos bárbaros que recebemos como herança de nossos antepassados, os
bárbaros caçadores do Norte. (BECCARIA, 2003, p. 27).
272
Ainda, conforme o pensamento de Beccaria é preferível prevenir os delitos a ter de
puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma
boa legislação o é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-
estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo
dos bens e dos males desta existência.
273
No jusnaturalismo, o papel do juiz torna-se crucial, pois este agirá de acordo com as
leis e de maneira imparcial. Mesmo conhecendo uma verdade diferente dos fatos legalmente
surgidos e, às vezes, estando convencido de que a lei é injusta, o juiz deve aplicá-la com base
nos testemunhos contra as próprias convicções. Segundo Thomas Hobbes é perigoso dizer ao
270
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2003.
271
Ibid. p. 26.
272
Ibid. p. 27.
273
Ibid. p. 101.
120
povo que as leis não são justas, uma vez que ele só as obedece por considerá-las justas. E por
isso é necessário, ao mesmo tempo, dizer-lhes que precisam obedecer a elas porque são leis,
assim como é necessário obedecer aos superiores, não porque são justos, mas porque são
superiores. Desse modo, toda sedição pode ser prevenida caso se consiga fazer com que
compreendam tal fato e que esta é propriamente a definição da justiça.
274
A passagem do pluralismo dos ordenamentos jurídicos de herança medieval à
afirmação do moderno direito estatal, ocorre em um duplo movimento, segundo Prodi. De um
lado, tende-se a construir um novo direito da consciência, absorvendo nele o antigo direito
natural, e, de outro, tende-se a inserir no direito positivo os princípios que aentão haviam
sido considerados externos à norma positiva e que, naquele momento, passam a ser
englobados com um lento processo, que levará, com o percurso secular, ao nascimento do
sistema constitucional moderno, das constituições escritas e dos códigos.
275
Caberá a Cristiano Tomásio, nos primeiros anos do século XVIII, dar o último
passo, proclamando que, em sentido restrito e próprio, apenas à lei positiva diz
respeito a definição de lei enquanto ligada ao conceito de comando. ao
direito natural (que compreende toda a filosofia moral, ética e política) é confiado o
papel do conselho: com a conseqüência muito prática de subordinar não apenas
as Igrejas (colocando-se, assim, um final ao Estado confessional, surgido com a
Reforma), mas também a ciência do direito ao poder do príncipe. (PRODI, 2005, p.
448.)
276
O Estado, no entanto, se utiliza da definição de pecado para envolver toda a ação não
permitida. Um pecado não é apenas a transgressão de uma lei, mas também, qualquer
desprezo para com o legislador, pois tal desprezo é uma infração de todas as suas leis de uma
só vez.
277
Assim, todo o crime ou toda falta contra a sociedade e o Estado é caracterizado
como pecado, transformando em culpa moral toda e qualquer infração à lei positiva. A
laicização do conceito de crime também ocorre, na medida em que o crime é caracterizado
como uma infração, como uma simples violação da lei positiva, liberando-o, de certo modo,
do seu componente sagrado e preparando, assim, o desenvolvimento da secularização e
garantismo penal.
Segundo Prodi, as novas orientações levam a ressaltar o aspecto delituoso do pecado
como infração à ordem social e à ideologia burguesa dominante. Diferentemente da época
anterior, tende-se a considerar cada vício ou pecado como delito, seja nos catequismos que,
274
PRODI, op. cit.
275
Ibid.
276
Ibid. p. 448.
277
Ibid.
121
desde o final do século XVIII, se difundem juntamente com a escrita nas populações
subalternas, seja por parte da legislação. Para o autor, os códigos do século XIX tendem a
tutelar uma ordem social, que se amplia no direito de família, no controle da esfera sexual em
relação ao adultério, à situação dos filhos ilegítimos, à prostituição etc. Aprofunda-se ainda a
análise da ação considerada delituosa com a distinção entre delitos culposos e dolosos,
transpondo os ensinamentos dos juristas da idade moderna para o novo ordenamento dos
códigos. O esforço de distinguir o dolo da culpa e de dar a essa distinção um caráter científico
torna-se o furor da criminalística na tentativa de reduzir ao mínimo, se o de anular, a
dimensão subjetiva da infração e a arbitrariedade do juiz.
278
4.2 A ESTRUTURA JUDICIÁRIA
No ano 1640, foi criado por D.João IV, o Conselho Ultramarino, que tinha como
principal intuito resolver as questões jurídicas no ultramar. A criação do Órgão gerou um
pequeno conflito intra-autoridades, já que a instituição responsável pelas questões jurídicas
era o Desembargo do Paço.
279
O conflito foi suscitado por dúvidas acerca da competência dos conselhos
ultramarinos em matérias de justiça e surgiu na seqüência de uma série de tensões entre o
novo conselho palatino e os órgãos pré-existentes. Atingindo o seu ponto culminante em abril
de 1647, a querela tornou-se de tal forma grave que o próprio monarca teve de intervir,
mandando reunir uma junta especificamente vocacionada para acalmar a situação.
A sociedade era composta por um conglomerado de grupos de natureza corporativa,
e cada um deles poderia satisfazer suas necessidades da vida coletiva à margem do poder da
Coroa. A Coroa não era um sujeito unitário, mas sim um agregado de órgãos e de interesses
pouco articulados entre si, estando longe de atuar na sociedade de forma homogenia. Era
claramente perceptível a pluralidade administrativa da Coroa e a grande diversidade de
vínculos e obrigações que a mesma possuía.
280
278
Ibid.
279
CARDIM, Pedro. Administração e governo: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: idéias e práticas políticas
no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
280
Ibid.
122
Esta pluralidade parecia ser intencional, na medida em que os poderes ficavam
divididos entre várias pessoas, mas todas, obedientes ao Rei. Pedro Cardim assim define o
termo jurisdição: poder exercido no espaço público, exterior ao âmbito doméstico, pois dentro
da família o imperava a lógica jurisdicional. A jurisdição era um poder legítimo e, meio de
equilíbrio entre os pólos de poder.
No antigo regime, julgar, legislar e executar eram facetas de um mesmo poder
público, daí, as contendas envolvendo os tribunais. Neste regime, a Coroa acabava por exercer
a maior força, pois realizava o que era da sua vontade. Tanto a Coroa quanto a administração
dos órgãos públicos objetivavam fazer justiça, mantendo os equilíbrios sociais, sem
interferir nem mudar qualquer situação executivamente. A Coroa agia muito mais dentro da
jurisdição e em casos extremos, utilizava seu poder de império quando os súditos solicitavam.
Eis a origem da graça. Esta era, uma interferência na justiça por parte do príncipe, quando este
acreditava, que o juiz não tinha condição de julgar determinados casos.
Os órgãos eram criados com a função de auxiliar o monarca. Consequentemente
ocorreu um alargamento da atividade jurisdicional. A ação jurisdicional era uma intervenção
de último momento, dificultando, portanto, a prevenção dos delitos. Era possível perceber a
independência dos magistrados, fruto do respeito jurisdicional.
A Coroa criava novas instituições sem descrever corretamente a maneira que estas
lhe dariam com as instituições pré-existentes. Todavia, o mal-estar entre os órgãos públicos
decorria do caráter especialmente concentrado das funções atribuídas a estes novos braços da
Coroa. Esta atuação específica parecia polarizar num só órgão, uma prática universal e antiga
que, privilegiando os valores da ponderação e do equilíbrio, sustentava que os dispositivos
colegiais eram os mais adequados para o exercício de qualquer tarefa pública. A separação
entre a justiça e as finanças eram uma das regras mais enraizadas da concepção tradicional do
ofício. Assim, e salvo raras exceções, nenhum oficial podia administrar a Justiça e ter, em
simultâneo, responsabilidades financeiras.
281
Um dos aspectos mais sugestivos de todo este processo é o fato de ele se ter
desenrolado num quadro de forte continuidade e até de coexistência, lado a lado, entre
elementos novos e quadros tradicionais.
N
ão dúvida de que foi no próprio seio do mundo jurisdicional que acabaram por
ser dados os primeiros passos no sentido na libertação das estruturas tradicionais de
legitimação. Porém, trata-se de medidas que sempre enfermaram de limitações, desde logo
281
Ibid.
123
culturais, já que os juristas estavam como que prisioneiros das suas próprias categorias. o
devemos esquecer que a cultura política jurisdicionalista era mais do que um mero saber
técnico aprendido nos claustros das Faculdades de Direito. A cultura jurídica era todo um
sistema cultural, de origem ancestral e profundamente enraizada; era um modo de pensamento
e um modo de representar a realidade.
282
Devemos considerar ainda a dificuldade encontrada por parte da Administração
Colonial no que se refere à falta de prisões e oficiais responsáveis pela manutenção da ordem
nas cidades, vilas e distritos. Nos Relatórios Executivos Provinciais podemos encontrar
algumas queixas referentes a estes problemas
283
. Eis a queixa do relator sobre a falta de
cadeias na Província de Minas Gerais:
(...) Sendo já por vós bem conhecido que quase todos os Municípios da Província
carecem de Cadeias, e Casas de prisão com tais cômodos, e segurança, que
facilitem a exata observância das leis penais, só posso agora informar-vos, que a
desta Capital está quase concluída, e que as outras, que se acham em construção,
não tiveram adiantamento notável no decurso do ano. -se do Balanço da
Despesa provincial, que sendo a consignação para este objeto de 25:000 $ réis,
apenas se despenderam 2:429 $ 999 réis no ano [?] de1810 a 1841, não porque
devesse o Governo deixar por qualquer motivo de despender toda a consignação,
mas não por haver fundos para realizar os pagamentos pedidos, ou já prometidos às
Câmaras, que não têm cessado de instar por eles. É pois da primeira necessidade,
que igual consignação (visto que não pode ser maior) se inclua na Lei do
Orçamento, do ano futuro.
284
Após se queixar da insuficiência de cadeias e da falta de investimentos na construção
das mesmas, o relator direciona suas reclamações à Força Policial, ou a falta desta.
(...) Seria talvez suficiente o que acabo de referir [?] do emprego da Guarda
Nacional no serviço da guarnição para convencer-vos da insuficiência da Força
Policial [?] decretada para as diversas e numerosas diligências, que estão a seu
cargo: reconhecendo porém que é este um dos objetos, que exigem considerável
dispêndio da Fazenda Provincial, que não deve ser autorizado sem poderosas
razões, que o justifiquem; julgo necessário dar-vos a respeito mais minuciosas
informações (...).
285
282
Ibid.
283
Devemos ressaltar aqui que os Relatórios Executivos Provinciais começam a ser confeccionados no início da
década de 30 dos oitocentos, portanto um período posterior ao recorte temporal de nossa pesquisa. Contudo
os Relatórios se tornam uma fonte riquíssima para os pesquisadores que tem como espaço físico de seus
estudos as Minas Gerais. No caso específico desta pesquisa sua utilização se justifica pela caracterização,
por parte dos Presidentes e Vice-Presidentes de Província, da situação do sistema carcerário e do corpo de
oficiais responsáveis pelas prisões e pela Cadeia Pública de maneira geral.
284
Relatórios Executivos Provinciais. In: Subject Guide to Statistics in the presidential Reports of the Brazilian
Provinces, 1830-1889. Austin, Texas: Institute of Latin American Studies, University of Texas at Austin,
1977.
285
Ibid.
124
É necessário considerar, para o século XVIII, a vastidão do território e a dificuldade
que a Administração Colonial encontrava na manutenção da ordem, principalmente nos
chamados sertões mineiros, como bem nos lembra Carla Anastasia. Na primeira metade do
XIX, a nosso ver, parece que a dificuldade com a falta de oficiais responsáveis pela
manutenção da ordem continua, pois os Presidentes e Vice-Presidentes de Província
continuam se queixando. Vejamos as justificativas destes para o aumento da Força Policial na
província de Minas Gerais.
(...) No Relatório do ano passado fez-se ver que contendo então o Corpo Policial o
número efetivo de 400 Praças, não era possível conservar nas diversas Comarcas
Destacamentos, que auxiliassem as autoridades locais no cumprimento de seus
deveres. A Lei Provincial n° 218 de 13 de abril de 1841 reduziu a Força a 400
Praças, incluídas 40 de Cavalaria, e agora -se pelo mapa, que vos ofereço sob
[?] que o estado efetivo não excede a 373. Destas achavam-se destacadas até o dia
15 de abril último, 225, sendo 9 na Comarca do Rio das Velhas, 20 na do Rio das
Mortes, 20 na do Serro, 22 na do Parahybuna, 14 na do Jequitinhonha, 19 na de
Paracatu, 21 na do Rio Grande, 16 na do Sapucaí, 3 no Armazém da Pólvora, e 82
nas Recebedorias, e Barreiras, de sorte que além das empregadas em diligências, e
as doentes, não se acham prontas mais de 90, incluindo-se os músicos, e 17
diariamente ocupadas com a guarda dos condenados à galés que se empregaram
nas obras públicas sob a direção do Inspetor Geral das Estradas, e da Câmara
Municipal. Este estado de coisas não tem melhorado, nem é possível que melhore
sem providências legislativas, cuja execução exigira tempo e trabalho (...).
286
Não contente com o número efetivo das tropas o alvo das queixas é agora a
ineficiência para o desempenho de algumas atividades e a falta de disciplina apresentada na
realização de tarefas por parte destas Tropas, devido a constante ausência de seus
comandantes, que nem sempre podem estar próximos.
(...) Os Destacamentos de que tenho feito menção não correspondem de sorte
alguma às necessidades das Comarcas, onde existem, 3 delas não tem uma
Praça, e as reclamações das autoridades, que pedem auxilio de força não podem ser
mais repetidas nem mais urgentes. O mesmo sucede quanto às Recebedorias, onde
a falta de conveniente guarnição lugar ao extravio, e consequentemente a um
constante desfalque das rendas públicas. A experiência vai também mostrando que
o serviço destas Estações Fiscais nem sempre é bem desempenhado por Praças do
Corpo, por isso que achando-se por muito tempo fora das vistas de seus
comandantes, e tendo de lidar unicamente com os administradores, relaxa-se a
disciplina, e algumas delas cometem ora omissões ora excessos, que mal podem ser
punidos segundo o Regulamento, que manda formar os Conselhos na Capital da
Província, além de perder-se muito tempo, e despesas com as contínuas
substituições das que se destacam nos lugares mais remotos (...).
287
286
Ibid.
287
Ibid.
125
O relator sugere então a criação de um órgão que possibilitasse aos administradores o
poder de correção aos oficiais da Força Policial. Ainda agradece a criação de uma força de
Linha que se fazia necessária para um desempenho satisfatório de funções necessárias e
importantes para o bom desempenho da Administração Provincial.
(...) A organização de um Corpo de Guarda privativo das Recebedorias, e
Barreiras, com obrigações assim definidas em regulamento próprio, que conferisse
também aos Administradores, a necessária autoridade para corrigi-los, seria a meu
ver providência mui profícua. Conhecendo assim o Governo da Província que o
serviço público tem padecido por falta de Força, e considerando por outro lado que
o Cofre Provincial não se acha habilitado para fazer fase a maiores despesas,
solicitou-se do Governo de S. M. o Imperador em fevereiro deste ano o auxilio que
ele podia prestar a Província por meio da criação de alguma Força de 1ª Linha. Esta
representação foi prontamente atendida, determinando S. M. Imperial que aqui se
organizasse o 3° Esquadrão de Cavalaria, que deverá destinar-se particularmente ao
serviço da Província. Trata-se hoje dessa organização com esperança de completar-
se em breve tempo, e como as 150 Praças, de que deverá compor-se o esquadrão,
podem ser vantajosamente empregadas em destacamentos, condução de cabedais, e
outras diligências, que se acham a cargo do Corpo Policial, não insistirei em que a
força deste seja atualmente elevada (...).
288
Por fim outro problema passa a ser abordado: a falta de pagamento aos soldados. O
relator reconhece que é impossível manter a disciplina sem pagar os vencimentos às Tropas.
A falta de pagamento e as difíceis condições financeiras enfrentadas pelos soldados o são
problemas exclusivos das Minas Gerais, e nem do século XIX, pois outras regiões do país, em
outros momentos, se defrontaram com uma situação semelhante ou até mesmo pior.
289
(...) Parece-me também oportuna a ocasião para participar-vos que o Governo da
Província conhecendo que não é possível manter-se rigorosa disciplina, que
constitui o principal mérito da Força pública, sem que os soldados recebam
prontamente os seus vencimentos, tem aplicado a este objeto particular atenção, e
não obstante os embaraços provenientes da falta de dinheiro nos Cofres
Provinciais, já pode regular os pagamentos, de sorte que cessassem os principais
queixumes, que a demora deles excitara, além de fornecer ao Comandante do
288
Ibid.
289
Kalina Vanderlei Paiva da Silva em O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: história de
homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII busca
discutir a utilização de criminosos e marginais na formação do aparato militar da Capitania de Pernambuco e
as dificuldades enfrentadas pelos soldados que lutavam pela sobrevivência, devido à falta de pagamentos.
Segundo a autora, a tropa burocrática, que surge como um instrumento de centralização de poder régio na
zona de açúcar assolada pelos poderes particulares dos senhores de engenho, é uma tropa mal gerenciada e
desestruturada e que assume um caráter de ferramenta de controle social sobre os centros urbanos, na
medida em que assimila os párias e marginais dessas povoações açucareiras, controlando assim os danos que
esses poderiam causar à sociedade, ao mesmo tempo em que os aproveita como peças do sistema de defesa
do Estado. O controle que a Coroa portuguesa exerce sobre essas tropas burocráticas e marginais passa não
tanto pela disciplinarização dos corpos como pela subordinação dos espíritos. Uma subordinação que a
fome, a miséria e certa equiparação social aos escravos se encarregam de garantir.
126
Corpo os meios precisos para acudir à algumas necessidades mais urgentes das
Praças, isentando-as assim de recorrer a onerosos empréstimos particulares (...).
290
Devemos ter em mente que a administração colonial se preocupava bastante com o
controle social e a manutenção da ordem, visto que boas relações com os colonos dependiam
disso. Revoltas e levantes escravos, a grande extensão do território das Minas e falta de
oficiais nas regiões mais distantes dos centros administrativos eram alguns dos problemas que
atormentavam os administradores coloniais.
De acordo com Vellasco, com a chegada da Corte, tem início o processo, que mais
tarde se mostraria irreversível, de independentização e expansão do aparelho de administração
judiciária da Colônia, que irá preparar as bases do movimento de ruptura com Portugal e
construção de uma nova ordem institucional. De todas as medidas então tomadas, a mais
significativa é a transformação, pelo Alvará de 10 de maio de 1808, da Relação do Rio de
Janeiro em Casa da Suplicação do Brasil, o que tornava o Brasil independente de Portugal no
que diz respeito aos pleitos jurídicos que, a partir de então, passavam a ter como última
instância de apelação um tribunal no Rio de Janeiro, e não mais em Lisboa como até então.
Seguem-se a criação das Relações do Marano (1812) e Pernambuco (1821) e uma
significativa expansão do quadro judiciário com a criação de inúmeros postos e ofícios de
justiça em todo o território colonial, aí incluída a comarca do Rio das Mortes.
291
A criação da Casa da Suplicação do Brasil e os estabelecimentos das Relações
ampliavam e facilitavam os recursos às decisões tomadas em primeira instância. A expansão
dos cargos de ouvidor e juiz de fora representou uma intervenção direta na administração da
justiça nos níveis locais, antes exercida, sobretudo pelos juízes ordinários, eleitos localmente e
membros do Senado das Câmaras. Enquanto o cargo de juiz ordinário era exercido por
homens da própria localidade, em geral despreparados e que tinham de seguir cuidando de
seus interesses interesses esses que não raro influenciavam suas decisões jurídicas -, o cargo
de juiz de fora era profissionalizado, como parte da burocracia judiciária, e ocupado por
homens de formação jurídica, que, a princípio, guardavam uma posição de externalidade em
relação aos interesses locais.
292
290
Ibid.
291
VELLASCO, Ivan de Andrade. O Juiz de Paz e o Código do Processo: vicissitudes da justiça
imperial em uma comarca de Minas Gerais no século XIX. Revista JH, v. 3, n. 6, 2003. Disponível
em: www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/RevistaJH/vol3n6/03-Ivan_vellasco.pdf-. Acesso em 24 mar.
2007.
292
Ibid. p. 03.
127
As mudanças que se põem em marcha então, buscam estreitar o espaço de abusos e
arbítrio praticados pelos magistrados, enfrentar o problema crônico da ineficácia e
morosidade dos serviços jurídicos, conseqüência em grande parte da escassez de
profissionais letrados e o mais importante prover o Império de leis adequadas
ao sistema constitucional e à marcha civilizatória. Ao lado das ações que visavam
disciplinar os aspectos processuais da justiça preparam-se as transformações
fundamentais que irão definir a estrutura jurídica brasileira: o Código Criminal,
promulgado em 16 de dezembro de 1830, e o Código do Processo Criminal,
tornado lei em 29 de novembro de 1832. (VELLASCO, 2003, p. 04)
293
A criação do juizado de paz marcava uma mudança importante na configuração do
poder judiciário e criava um personagem que marcaria toda a década seguinte, alterando
profundamente o cotidiano da justiça. Com atribuições administrativas, policiais e judiciais, o
juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes
autoridades (juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena) ou reservados aos juízes letrados
(tais como julgamento de pequenas demandas, feitura do corpo de delito, formação de culpa,
prisão etc.), que passavam então a ter de compartilhá-los com esse intruso personagem. O
exercício do juiz de paz envolvia a justiça conciliatória e o julgamento de causas cujo valor
e/ou a pena não ultrapassasse certo limite, a imposição do termo de bem viver, a manutenção
da ordem pública e emprego da força pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais,
a condução das eleições, enfim, funções administrativas, judiciais e policiais as mais amplas.
Os argumentos em torno da administração da justiça e suas vicissitudes que levaram à
introdução do juizado de paz se desenvolviam, fundamentalmente, em dois campos. O
primeiro, centrado nas críticas aos reiterados problemas e queixas da estrutura jurídica, em
grande parte herdada do período colonial, com o predomínio abusivo dos magistrados e seus
sistemas de emolumentos. O segundo situava-se no campo da percepção de que era necessário
introduzir mecanismos de implementação da justiça, capazes de levar seus benefícios a toda,
ou quase toda, extensão do território do Império; o que constituiria um dos pilares básicos de
sustentação e fortalecimento do sistema constitucional e uma tarefa primeira do Estado em
construção. No primeiro caso, o juiz de paz seria uma alternativa de distribuição da justiça,
baseada no poder local e capaz de se contrapor às práticas ortodoxas de uma máquina lenta,
decadente e ineficiente. Como acentuou Thomas Flory, imaginava-se uma espécie de
guerrilha burocrática (Flory, 1986: 85). No segundo caso, a ênfase recaía nas funções de
conciliação e arbítrio das pequenas causas o que tornaria efetiva a extensão da justiça ao
grosso da população livre bem como na atividade de policiamento e controle da ordem,
ambas então em estado mais que precário.
293
Ibid. p. 04.
128
A Relação de Minas Gerais seria criada em 1873 e a idéia de um curso ou o
funcionamento de cadeiras de Direito na província o se realizou no Império. Entretanto, as
demais mudanças apontadas foram realizadas com as reformas que vieram. Segundo Flory, a
antecipação do implemento do juizado de paz em relação a um novo código legal, que
atacasse o problema da reorganização e transformação da estrutura judicial, teria sido
responsável pelo fato de o juiz de paz ter ficado inicialmente à deriva na estrutura incompleta
e hostil de uma judicatura colonial sem mudança. Tal opção teria sido tomada pelos
partidários do melhorismo judicial em função da urgência em dar resposta ao estado de
desmantelamento da antiga estrutura e da impossibilidade de retardar as mudanças possíveis à
espera de soluções legais abrangentes, que demandariam um demorado processo de
maturação e realização; desse ponto de vista, segue Flory, o estabelecimento do juiz de paz
brasileiro foi um recurso momentâneo. Impediria as obstruções e legitimaria parcialmente o
sistema legal existente sem transtorná-lo de todo. Podemos imaginar pelo menos duas
explicações para o aumento da produção judicial verificada a partir do advento do juizado de
paz, tal como demonstrado nos dados acima. A primeira é a de que se teria estabelecido um
contexto cooperativo entre os juízes de paz iniciantes, ainda experimentando o alcance de
suas atribuições e poderes e ciosos do papel preeminente das autoridades judiciais, e os
magistrados, seguros de sua posição e domínio dos expedientes forenses, o que lhes garantiria
uma situação confortável uma ascendência moral indubitável. A segunda explicação plausível
seria a do estabelecimento de um contexto competitivo entre nossos protagonistas, ambos
emulados pela presença do novo: de um lado, os juízes de paz, investidos de um papel
institucional sobre o qual repousavam as expectativas, tanto de setores da elite politicamente
envolvida, quanto da população como um todo, que passaria a ter uma autoridade local a
quem recorrer; de outro, os juízes letrados, desafiados por uma realidade que fora fruto, entre
outras coisas, das sucessivas críticas à ineficiência e elitização da estrutura jurídica que
representavam; enfim, todos buscando mostrar serviço. Creio que ambos os raciocínios são
possíveis. Até porque não são excludentes. É razoável supor que uma cooperação competitiva
tenha se estabelecido de início, com resultados positivos para o andamento da justiça e seus
beneficiários. E, desse ponto de vista, a criação do juizado de paz teria representado uma
lufada de ar em um ambiente viciado e pouco arejado.
O crime era uma afronta ao poder metropolitano e o criminoso deveria ser
combatido. As Ordenações Filipinas afirmavam esta máxima, mas como já comentamos
acima nem todas as pessoas sofriam as mesmas punições, o que faz deste código criminal uma
execução de justiça muito particular, já que as leis não eram para todos. A falta de prisões
129
preocupava o poder português. Os relatórios executivos provinciais posteriormente
mostrariam essa inquietação. Além disso, as prisões possuíam características e fins diferentes
das prisões atuais. Afinal de contas quem eram estes criminosos que causavam tanto temor na
administração colonial, que pessoas eram consideradas criminosas?
Thompson
294
, se referindo à Inglaterra, nos informa que é possível isolar duas
maneiras pelas quais as tradições subpolíticas afetam o movimento operário inicial: os
fenômenos do motim e da turba, e as noções populares de um direito de nascimento do
inglês. Quanto aos primeiros, devemos compreender que sempre persistiram atitudes
populares em relação ao crime, chegando por vezes a constituir um código não-escrito
totalmente diferente das leis do país. Certos crimes eram condenados por ambos os códigos:
um assassino de mulheres ou crianças seria lapidado e execrado a caminho de Tyburn. Os
salteadores e piratas pertenciam às baladas populares, em parte como mito heróico, em parte
como advertência aos jovens. Mas outros crimes eram ativamente perdoados por comunidades
inteiras: a cunhagem de moedas falsas, a caça e pesca ilícitas, a sonegação de taxas ou
impostos de consumo, a fuga ao recrutamento. Comunidades contrabandistas viviam num
estado de guerra constante contra as autoridades, e suas normas não-escritas eram
compreendidas por ambos os lados; as autoridades podiam apreender um barco ou dar uma
batida na aldeia, e os contrabandistas podiam resistir a prisão, mas o fazia parte das táticas
contrabandistas levar a guerra além da defesa devido às medidas de retaliação que
seguramente se seguiriam. Por outro lado, outros crimes que eram comumente cometidos, e,
no entanto afetavam a subsistência de determinadas comunidades, como o roubo de ovelhas
ou de roupas em varais ao ar livre, suscitavam a condenação popular. Esta distinção entre
código legal e o código popular não-escrito, segundo Thompson, é um lugar comum em
qualquer época.
Pensando as três primeiras décadas do século XIX para Minas Gerais, para a cidade
de Mariana, buscamos numa documentação oficial denominada auto de prisão hábito e
tonsura
295
algumas informações que nos ajudem a identificar quem era considerado
criminoso no início do século XIX.
A aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura está assim definida no Livro V das
Ordenações Filipinas:
294
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987. p. 62.
295
Códice 167 do AHCMM.
130
Mandamos aos desembargadores, corregedores, juízes e mais justiças, alcaides,
meirinhos, escrivões e tabeliães que nas prisões de quaisquer pessoas se acharem,
sejam obrigados perguntar às pessoas que prenderem, tanto que forem presos, se
têm ordens menores; e o que responderem escrevam ou façam escrever no ato, e os
vestidos e trajos em que forem achados, e as cores e feição, e comprimento deles,
declarando se trazem coroa e o tamanho e comprimento dos cabelos dela, e quanto
mais curtos são que os outros cabelos da cabeça; e não o fazendo assim o julgador
que ai presente estiver à prisão e os tabeliães ou escrivões que aí presentes forem
percam os ofícios. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, livro V, 1999, p. 405).
Encontramos na documentação referente à Cadeia Pública de Mariana presente no
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana, entre os anos de 1803 e 1809, quarenta e
cinco (45) autos de prisão hábito e tonsura. A aplicação destes autos está determinada nas
Ordenações Filipinas, mas esta documentação surge na cidade de Mariana pela primeira vez
no ano de 1803, e como veremos nem todas as prisões eram acompanhadas da aplicação
destes autos.
296
Através das informações contidas nos 45 autos de prisão, bito e tonsura
encontrados para Mariana entre 1803-1809 pudemos traçar o perfil
297
do criminoso da Cadeia
de Mariana: homem pardo, com idade entre 21 e 30 anos, escravo, com boa estatura, olhos
pardos e pequenos, cabelos negros e crespos, corpo cheio, rosto comprido e com alguns
sinais, orelhas pequenas, sobrancelhas pretas e abertas, falta de muitos dentes na boca, beiços
grossos e mãos cabeludas. Era esta, a figura do criminoso com que a Câmara tinha de lidar,
um criminoso, que tinha no seu fenótipo a marca da miscigenação. Analisando estes poucos
autos temos uma visão equivocada de qual era, na realidade, o perfil da população carcerária
de Mariana como um todo. Parecia-nos assim que o escravo em geral e o mestiço eram os
criminosos do início do século XIX.
Ao verificarmos a incidência dos autos de prisão hábito e tonsura na documentação
referente à Cadeia de Mariana percebemos que ao longo dos anos sua aplicação foi muito
dispersa e sem uma regularidade que nos permitisse maiores estudos em relação ao criminoso.
Estes autos não eram padronizados e na maioria dos casos, diversas informações que
apareciam em documento não eram encontradas no documento seguinte. Vale ressaltar, que
apesar desta variação, os anos de 1804 e 1805, são os anos em que esta documentação está
mais presente, e são aplicados em quase 100% dos casos de homicídio, furtos e agressões
físicas.
296
Procuramos entre os assentos de prisão da Cadeia Pública de Mariana ao longo dos séculos XVIII e XIX,
sendo estes 45 autos de prisão hábito e tonsura os únicos encontrados.
297
Este perfil não possui qualquer caráter determinista e é colocado aqui justamente para demonstrarmos o
que a fonte enganosamente nos mostra em relação a uma totalidade de pessoas que eram presas na Cadeia
Pública de Mariana.
131
O primeiro auto de prisão hábito e tonsura documentado na Cadeia Pública de
Mariana foi aplicado no dia 24 de novembro de 1803, e se referia ao réu Thomé Pereira da
Silva, filho de Domingos Pereira da Silva. Thomé era um homem branco, de 24 anos de
idade, exercia o ofício de caldeireiro, possuía estatura proporcionada, olhos azuis claros,
corpo delgado, rosto comprido, poucas sobrancelhas, boca com todos os dentes, beiços
grandes, mãos trigueiras com dedos compridos, sem sinal de coroa na cabeça, calças de
algodão brancas, camisa de Bretanha, chinelos nos pés, jaleco de ganga, com um rosário no
pescoço, ignorava a causa de sua prisão e foi preso por fabricar moeda e ouro falso.
O último auto de prisão, hábito e tonsura documentado na Cadeia Pública de
Mariana foi feito no dia 15 de fevereiro de 1809, e se referia aos réus Manuel e João Luis.
Manuel era um escravo crioulo de propriedade de Manuel Lopes da Silva, tinha 18 anos de
idade, possuía boa estatura, corpo alguma coisa cheio, rosto comprido e sem barba, boca com
todos os dentes da frente, sem sinal de coroa na cabeça, camisa de algodão, jaleco e calças do
mesmo algodão, chapéu na cabeça. João Luis era um escravo cabra que vivia alugando dando
jornal à senhora Brígida Maria Barbosa, tinha 35 anos de idade, possuía boa estatura, corpo
proporcionado, cabelos torcidos, rosto proporcionado e barbado, boca com falta de três
dentes, sem sinal de coroa na cabeça, camisa e calças de algodão branco, jaleco azul. Ambos
foram presos por causarem ferimentos em José Basílio de França Lira, filho de Dona Lúcia
Maria de Ataíde.
Tabela 3: a aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura (1803-1809)
1803 1804 1805 1806 1807 1808 1809
Prisões
25 31 30 18 23 20 17
Prisão hábito e tonsura
2 21 11 1 3 5 2
Porcentagem
8% 68% 37% 6% 13% 25% 11%
Fonte: Códice 167 do AHCMM.
A tabela 3 nos mostra que os anos de 1804 e 1805 foram os anos em que os autos de
prisão hábito e tonsura estiveram mais presentes entre a documentação carcerária. No ano de
1804 foram realizadas 31 prisões, sendo que em 68% delas foram aplicados os autos de prisão
132
hábito e tonsura. Mas, devemos relatar que entre os dez casos em que o foram aplicados os
ditos autos não há sequer um homicídio, uma agressão física, ou um furto.
298
Já no ano de 1805 foram realizadas 30 prisões, sendo que em 37% delas foram
aplicados os autos de prisão hábito e tonsura. Esta porcentagem pode parecer pequena, mas,
notamos que entre os dezenove casos em que não foram aplicados os ditos autos não há, assim
como para o ano de 1804, sequer um homicídio ou agressão física.
299
Violência e criminalidade são fatores recorrentes em nossa história. Observamos que
a região das Minas, no século XVIII, segundo a historiografia, conviveu com altos índices de
violência, violência esta, que poderia estar presente tanto nos motins e revoltas ocorridas no
território mineiro neste período, quanto nos homicídios e agressões cometidas pela gente
comum.
Os motins, na maioria das vezes, representavam a insatisfação dos mineiros com a
administração colonial, e representavam a resistência contra os desmandos estabelecidos
pela Coroa. Estes motins, além de demonstrarem certa brecha na soberania da Coroa,
demonstravam também que reunido, o povo, poderia causar preocupação e temor aos
governantes das Minas. Estes governantes por sua vez, já vinham para a região, avisados do
caráter insurrecional das Minas e que deveriam tomar cuidado ao lidar com os mineiros.
Minas Gerais apresentou no período citado, além dos motins, um grande número de
infrações que de certa maneira, preocupavam os governantes. Homicídios, agressões e furtos,
entre outros, estiveram presentes nos assentos da Cadeia Pública de Mariana analisados. A
participação de negros e mestiços nestes delitos, cometidos nos caminhos mineiros,
preocupavam e aterrorizavam o povo e as autoridades principalmente pela morte de Senhores
causadas por seus próprios escravos.
Observamos ainda que a Coroa possuía meios próprios para conter ou diminuir a
violência e a criminalidade em suas colônias. As Ordenações Filipinas previam punição
rigorosa à diversidade de infrações cometidas. A Cadeia por sua vez, neste período, o tinha
298
Cinco dos dez casos se referiam a prisão por penhora de escravos, penhora de duas bestas, e penhora de bens
em geral. Um caso foi por uma querela feita por não ter ocorrido o pagamento de uma vida no seu tempo
devido. Dois casos envolviam autoridades, no primeiro, um Juiz não fez exame de corpo delito que deveria
ter feito a respeito de uns ferimentos e tiros ocorridos no distrito de São Caetano; no segundo, o Meirinho
das Execuções insultou e se desentendeu com palavras, certas mulheres da cidade por conta de uma
cobrança. E em duas prisões não consta sequer o crime cometido pelo preso.
299
Apenas em um caso de furto não foi realizado o auto de prisão hábito e tonsura, um furto cometido no fim
do dito ano. Sete dos dezenove casos se referiam a prisão por penhora de escravos e penhora de bens em
geral. Um caso ocorreu porque o réu não compareceu no Termo no tempo em que o Juiz lhe determinou. Um
caso foi por uma querela. Um outro caso se referia a uma desobediência, pois o réu não exibiu em juízo, os
papéis e provisão, que por uma determinada pessoa lhe foi intimado. Em oito prisões não consta também o
crime cometido pelo preso.
133
qualquer intenção de recuperar o indivíduo e quando utilizada, objetivava a punição e a
demonstração de poder, buscando simplesmente retirar da sociedade aqueles que
desrespeitavam e não cumpriam as leis, trancafiando em celas aqueles que eram julgados e
considerados delinqüentes. Quem eram estes delinqüentes é uma pergunta de difícil resposta
que estamos tentando descobrir. Notemos que os autos de prisão, hábito e tonsura o eram
utilizados, por exemplo, quando o delito se referia a penhora, e acreditamos que as pessoas
presas por penhora não eram consideradas criminosas, pois participavam das atividades
econômicas e sociais na Colônia. Então poderíamos dizer que criminosos eram os que
cometiam homicídios, furtos e agressões, por exemplo. Mas não é tão simples assim, pois a
condição social pesava na prisão e na punição. O que nos parece é que o termo criminoso não
se referia a todos que cometiam delitos e que talvez, o código moral mencionado por
Thompson perpassasse os interesses da comunidade e atingisse também os interesses da
administração colonial.
A aplicação dos autos de prisão hábito e tonsura demonstra a preocupação da
administração colonial com a prática do crime no território mineiro no início do século XIX.
A aplicação destes autos permitia que os oficiais da Cadeia Pública registrassem, como em
uma fotografia, as características físicas de cada uma das pessoas presas naqueles tempos. Um
olhar mais atento sobre a população tornava-se possível, na medida em que estes registros
criminais gravavam a imagem do criminoso. Os autos de prisão hábito e tonsura auxiliavam
ainda nos casos de fuga, já que seria muito mais fácil capturar o fugitivo tendo em os além
do nome do indivíduo, suas características físicas. No entanto, a aplicação destes autos
desaparece no ano de 1809 e não foi possível identificar o motivo deste desaparecimento. O
início do século XIX é afetado por significativas mudanças e talvez estas, interfiram na
aplicação da Justiça. A chegada da família Real no Brasil, o processo de Independência, a
Constituição de 1824, a criação do cargo de Juiz de Paz e o Código Criminal do Império em
1830 são alguns dos acontecimentos que poderiam ter interferido na aplicação da Justiça.
134
CONCLUSÃO
A discussão gerada a partir dos métodos de controle social nas várias sociedades nos
permite uma aproximação com a realidade local. E qual seria a realidade no início do século
XIX em Minas Gerais? Quando pensamos numa sociedade violenta a imagem que temos é de
uma região na qual o número de crimes cometidos é muito alto. Com os dados apresentados
ao longo deste trabalho é possível afirmar que as Minas do XIX eram violentas? Certamente
não. Aliás, determinar o índice de violência de qualquer cidade ou região só é possível através
da quantificação. Relatos eventuais de violência por parte de algum criminoso, seja na
Colônia ou no início do Império, o o representativos, visto que as fontes oficiais não
abarcam a sociedade como um todo.
E qual era então o papel da Cadeia Pública neste quadro? Existia alguma
preocupação que visasse a recuperação do criminoso? o existiu no período qualquer
intenção de reeducar o preso para sua volta à sociedade. Além do que, esta volta poderia ser
rápida. Como vimos, o tempo que os criminosos passavam encarcerados era, na maioria dos
casos, curto. E era essa a intenção da administração carcerária. A cadeia funcionava como
método coercitivo e sequer tinha condições estruturais para manter um grande número de
pessoas presas por um longo tempo. Os relatórios dos presidentes e vice-presidentes de
província apontam para uma preocupação com o número reduzido de cadeias em Minas
Gerais e com a falta de estrutura das que já existiam. No entanto, tais apontamentos não saíam
do campo do discurso e as cadeias continuavam sujas, úmidas e com uma péssima estrutura
física.
Analisando a população carcerária de Mariana no período é possível notar uma
variação no que diz respeito à qualidade dos presos. Logicamente, algumas categorias
prevalecem, como o número de homens presos, por exemplo, mas o quadro geral é
diversificado. O número de ocorrências na sede é maior que nos distritos, tendo em vista que
é mais fácil tomar conhecimento dos delitos quando estes ocorrem próximos a um centro
regulador. O número de homens é infinitamente maior que o de mulheres. Os livres o os
responsáveis pelo maior número de crimes, seguido pelos escravos e forros, sendo que os
crimes cometidos pelos escravos, na sua maioria, são violentos. Os mestiços, segundo os
135
dados, cometeram mais crimes que os brancos. Para esta estatística vale lembrar o número
total da população de brancos e mestiços na cidade de Mariana, e que quase 50% dos autos
não identificaram a cor do preso. Foi possível notar ainda que apenas 13% da população
carcerária ficou presa por um período maior que um ano.
Os relatos contidos nos processos-crime permitiram verificar a ação da Justiça e a
diversidade de alguns casos dentro de uma quantificação. A relação da população com as
autoridades era conturbada. Nem todas as pessoas reconheciam a autoridade dada a certos
indivíduos da população. E esta falta de reconhecimento recaía nas atitudes cotidianas deste
povo. Por outro lado, vimos oficiais tentando cumprir suas obrigações e arriscando suas vidas
em empreitadas perigosas, como tocaias, por exemplo.
As Ordenações Filipinas regiam a ação da sociedade e da Justiça. Como vimos este
era um código que privilegiava as figuras mais importantes da sociedade em detrimento aos
homens livres pobres da população. Contudo a Coroa nunca perdia, e qualquer atitude que a
prejudicasse seria punida exemplarmente com a morte natural. A Justiça não era cega no
período. Sua ineficiência devia-se ao número reduzido de oficiais, de cadeias e de recursos
financeiros.
Enfim, este foi o quadro pintado ao longo da pesquisa. O cruzamento de fontes foi
essencial para atingirmos esse resultado. Inúmeros trabalhos serão realizados nesta área e
existe um número de fontes muito grande para tal. A análise e a utilização de outras fontes
devem ser feitas para conhecermos ainda mais o universo dos encarcerados e da sociedade ao
seu redor.
136
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Códice 193 n° do auto: 4828
Códice 190 n° do auto: 4771
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Códice 230 n° do auto: 5729
Códice 201 n° do auto: 5027
Códice 214 n° do auto: 5349
Códice 215 n° do auto: 5375
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