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Susie Becker
A Voz Contemporânea
Dissertação apresentada ao Departamento
de Música da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, como
cumprimento da exigência parcial para a
obtenção do tulo de Mestre em Artes, sob
orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes
Costa.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Escola de Comunicações e Artes
São Paulo
2008
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2
Banca Examinadora
___________________________________
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3
Sou primeiro o canto
e o que cantou
e só depois – palavra
e o que falou.
Meu corpo testifica este conflito
quando entre palavras e canto
não se perde ou se dissipa,
mas se afirma
e me redime.
O homem primeiro é o canto.
só depois se organiza,
se acrescenta
se articula,
se clareia de palavras
e dissipa o que são brumas.
Se o canto é o eu fluindo,
a palavra é o eu pensado.
na palavra eu sempre guio,
mas no canto eu sou guiado.
O canto é o que atinjo
(ocultamente) sem me oferecer,
e quando, de repente,
eu me descubro
– sem querer.
A palavra, ao contrário,
é o ato claro,
o talho e o atalho
– no objeto,
embora seja como o corpo
um ser concreto
e como o mito
– um ser incerto.
Canto e Palavra
Affonso Romano de Sant ' Anna (excerto)
4
À minha mãe, Daise Hannickel, que sempre com muito amor me
estimulou a criar e buscar; e me ajudou com o francês;
Ao meu pai, Milton Becker, que sempre me apoiou em minhas investidas,
e sempre teve palavras incentivadoras e carinhosas;
Ao meu filho, Julian Becker Domingues, luz que me acompanha, que ficou
muito contente por eu fazer esse trabalho, e esse seu contentamento foi
fundamental para que eu não esmorecesse;
Ao meu orientador, Rogério Costa, que ajudou a abrir meus ouvidos para
uma nova música, que desde o primeiro momento me incentivou a seguir
em frente, e me fez acreditar que valia a pena;
Aos professores da Eca, dos departamentos de Música e Artes Cênicas,
com quem tive oportunidade de aprender coisas valiosas;
Aos meus amigos, que me estimulam e me desafiam;
À vida, enfim!
5
Resumo
Este trabalho busca o entendimento da voz
contemporânea, enquanto expressão musical: sua forma, significado, sua
gênese histórica. Tenta configurar a voz contemporânea como uma
realidade artística da música vocal do culo XX, sobretudo a partir da
segunda metade, e que se estende até nossos dias.
Por estar a voz intimamente ligada a um corpo, que por
sua vez relaciona-se existencialmente com a moral, política, filosofia, arte,
da época em que vive, e, intimamente vinculada à escuta, que também se
relaciona existencialmente com todas as transformações do século XX, a
voz irá, da mesma forma, transformar-se substancialmente enquanto
estética musical, justamente na medida em que o corpo e a escuta se
transformam.
Entender essas transformações do corpo, da escuta e da
voz, numa perspectiva histórica, filosófica e artística, para compreender a
forma a que chegou a voz na contemporaneidade, enquanto uma
realidade artística manifestada em vários trabalhos vocais principalmente
a partir dos anos 60 do século XX, é o objetivo deste trabalho.
6
Abstract
This work focuses on the comprehension of contemporary
voice as a musical expression: its form, its meaning, and its historical
origin. We intend to portrait it as an artistic reality of the vocal music in the
20
th
century, particularly since the 60’s until nowadays.
Since the voice is intimately connected to the body, which,
by its turn, is related to a wide range of cultural aspects and
transformations of its time, like morality, politics, philosophy, arts, and also
the act of listening, therefore, it will be affected by the same changes
occurred in the century - in terms of musical aesthetics, because the body
and the listening will change as well.
It is our goal to analyze these changes concerning the
body, the listening and the voice, through a historical, philosophical and
artistic approach, in order to comprehend the actual condition of
contemporary voice, as an artistic reality expressed in many vocal works
since the 60’s.
7
Sumário
Introdução..................................................................................................9
Capítulo 1
O que entendemos por voz....................................................................11
1.1 A separação mente-corpo..................................................................14
1.2 Corpo e música................................................................................. 24
1.3 Corpo e voz, música e voz, poesia e voz...........................................28
1.4 A voz...................................................................................................35
1.5 A voz contemporânea....................................................................... 40
Capítulo 2
Influências históricas.............................................................................47
2.1 Pesquisas teatrais: Antonin Artaud................................................48
2.2 Poesia fonética e poesia sonora....................................................62
2.3 Música do século XX......................................................................93
2.3.1 Música serial, eletrônica, concreta...............................................100
2.3.2 Música eletroacústica...................................................................109
2.3.3 Música acústica............................................................................112
2.3.4 Música indeterminada..................................................................117
2.3.5 Música de livre improvisação.......................................................122
2.3.6 Músicas não ocidentais................................................................125
2.3.7 Algumas notas a mais..................................................................129
Capítulo 3
Audição, Escuta....................................................................................134
3.1 O século XX e uma nova escuta......................................................139
3.2 Audição e voz..................................................................................153
3.3 A escuta e a voz contemporânea....................................................168
8
Capítulo 4
A Forma.................................................................................................175
4.1 A Forma vocal.................................................................................178
4.2 A Forma corporal.............................................................................189
Conclusão..............................................................................................193
Anexo A..................................................................................................201
A voz contemporânea – percurso histórico
Seqüência das faixas do CD
Anexo B..................................................................................................204
A voz contemporânea – percurso histórico (do presente ao passado)
Seqüência das faixas do DVD
Bibliografia............................................................................................206
9
Introdução
O
objetivo desse trabalho é tentar entender a voz
contemporânea. O que seria exatamente esta vocalidade contemporânea
onde ouvimos gritos, sussurros, risos, gemidos, respiração em primeiro
plano, palavras sem sentido, sons onomatopaicos, sons difônicos, ruídos
vários do aparelho fonador; fragmentos melódicos dispersos, sem alturas
definidas, sem pulso; que vocalidade é esta que muitas vezes interage
com outras mídias artísticas numa performance; que sica essa voz
revela; que corpo essa voz expõe; que forma ela apresenta; que sentido
nos traz; que artistas a expressam; de onde ela vem; desde quando; por
que no século XXI ainda não é assimilada, aceita, ou compreendida;
enfim, busca-se responder, na medida do possível, essas questões. Para
isso organizamos o trabalho em quatro capítulos, a saber:
Capítulo 1 - O que entendemos por voz: Tentamos, a partir de um
entendimento da voz enquanto uma unidade corpo-voz-escuta,
compreender o paralelo existente entre - a história da divisão corpo-mente
e a posterior tentativa de superação no entendimento filosófico e
existencial ocidental - e a história da música vocal. A voz contemporânea
emerge, pois, como uma expressão atístico-musical-existencial dessa
superação, ou em outras palavras, é uma voz que surge da busca da
integração corpo-mente, a qual pressupõe uma nova escuta.
10
Capítulo 2 - Influências históricas: A expressão vocal, podendo ser
musical, poética e teatral, reúne na voz contemporânea essas três
vertentes. Neste capítulo temos uma visão mais detalhada, histórica,
destas três grandes influências que estão na gênese da formação, ou
configuração da voz contemporânea.
Capítulo 3 - Audição, Escuta: A audição, que está na base da produção
vocal, é em si um elemento importantíssimo para a voz, e tanto mais para
a configuração de uma nova vocalidade, pois audição é também escuta, e
a voz contemporânea se a partir de uma nova escuta. Entender as
dimensões da escuta, sua transformação junto à música do século XX é o
assunto deste capítulo.
Capítulo 4 - A Forma: Neste capítulo buscam-se elementos formais para
a voz contemporânea, características recorrentes que podem ser reunidas
para darem um contorno, um recorte formal a essa vocalidade que surge,
sobretudo, na segunda metade do século XX.
Com o intuito de tornar mais concreto o que abordamos,
acompanha esse trabalho dois CDs de áudio e um DVD. Nos CDs
acompanhamos um percurso histórico que percorre o século XX. No DVD
começamos por assistir vídeos de performances de vários artistas da voz
em realizações da primeira década do século XXI, alguns vídeos
realizados nos anos 70, 80 e 90 do século XX, e outros vídeos
relacionados às influências dessa vocalidade, conforme nos referimos no
decorrer do trabalho.
11
Capítulo 1
O que entendemos por voz?
A voz é da ordem do corpo
Corpo e audição produzem a voz
Corpo e ambiente interagem mediados por uma escuta
resultando numa determinada estrutura de existência,
que produz uma determinada música,
que produz uma determinada voz .
Tempo ..............................
SOM
CORPO
ESCUTA
12
À
materialidade do corpo acrescenta-se uma escuta e
juntos produzirão uma outra materialidade: um som. Que por sua vez é
alimentado por outra escuta que transmitirá determinadas vibrações ao
corpo que produzirá outro som.
Som Escuta Corpo Som gera uma circularidade, a
qual, movimentando-se numa sucessão temporal, resulta num fazer
musical específico. Nem a escuta, nem o corpo e o conseqüente som
produzido são neutros, ou puros, ou desvinculados dos contextos reais
onde se inserem.
Quando dizemos fazer musical específico, implicitamente
estamos pensando numa determinada estética
1
, isto é, numa determinada
concepção sobre o que é o belo e o sensível.
“A imersão numa obra de arte, por esquecida que seja de si,
raramente é um estado místico em sentido definido, uma
rigidez insensível e extática. Mas é uma oscilação entre
contemplação e reflexão, de modo que o estágio por ela
alcançado depende das experiências estéticas e intelectuais
que um ouvinte traz consigo e em cujo contexto insere a
obra, que justamente contempla. Os momentos intelectuais
não são ingredientes supérfluos, mas encontram-se sempre
contidos na percepção estética e, claro está, de forma
rudimentar ou desenvolvida” (Dahlhaus, s/d).
E o que é o belo e o sensível em sica? Questão por
demais complexa para responder, e sobre a qual não temos uma
resposta, mas várias, dependendo da compreensão intelectual, da
interação sensível, do momento histórico, social, cultural e psicológico em
que nos encontramos. A apreciação de uma obra, portanto, não é “livre”,
1
Estética: (a ) Estudo das condições e dos efeitos da criação artística.
(b) Tradicionalmente, estudo racional do belo, quer quanto à possibilidade da sua
conceituação, quer quanto à diversidade de emoções e sentimentos que ele suscita no
homem. Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira (s/d)
13
é subordinada à cultura, ideologia, que por sua vez são vinculadas à
história.
Não pretendo responder essa questão, mas tão somente
considerá-la como um nue pano de fundo, pois não como ignorá-la,
que, ao tentarmos entender a voz contemporânea e a forma que
assumiu, estamos pensando numa forma estética, na forma estética da
voz contemporânea, que nada tem a ver com toda a estética anterior, que
se forjou em séculos de prática vocal, a partir do canto gregoriano até o
século XIX, sobretudo. Essa voz contemporânea, no entanto, não aparece
imediatamente junto com as transformações radicais que vão lançando a
música para outros parâmetros do fazer musical, da compreensão do que
é e pode ser música, desde as primeiras décadas do século XX. Ela
começa a surgir somente em fins da década de 50 e 60 do século
passado, e podemos dizer que, a hoje, ainda está surgindo, pois sua
existência ainda é muito restrita, pouco conhecida; a estética do bel canto
continua forte dentro do que chamamos de música erudita, e é justamente
nessa esfera que se inscreve a voz contemporânea.
A voz contemporânea nega toda a estética do bel canto,
contrapõe-se a ela, sendo a própria transformação a que chegou a voz
lírica em seu devir histórico, como o esgotamento do sistema tonal que se
transformou em s-tonal, atonal, serial, eletro-acústico. Mas claro, para
entendê-la e ouvir sua beleza, contemplar e refletir, depende das
experiências estéticas e intelectuais que um ouvinte traz consigo e em
cujo contexto insere a obra, que justamente contempla .
O que escutamos e apreciamos é filtrado por nossas
experiências estéticas e intelectuais e em cujo contexto inserimos a obra.
Portanto, se uma determinada obra não se encaixa em nossas
experiências, dificilmente iremos atingir um estágio de fruição. A escuta
banal recusa uma voz que se remete a um corpo livre, um corpo que não
tem medo de sua humanidade. Precisamos então começar por libertar a
própria escuta e a concepção que temos do corpo, para podermos
entender e fruir a voz-música contemporânea.
14
A concepção que temos do corpo é algo muito complexo e
definido por uma rede de condicionamentos mentais, psicológicos,
sociais, culturais, filosóficos, que, praticamente , se não impedem,
dificultam muito a possibilidade de termos uma outra concepção do corpo.
Muito desse limite se deve à herança do pensamento ocidental que se
desenvolveu a partir de uma concepção dualista entre mente e corpo.
Façamos uma pequena digressão para entendermos melhor
essa questão.
1.1 A separação mente-corpo
O pensamento ocidental desenvolveu-se, sobretudo a
partir das bases fundadas por Sócrates, Platão e Aristóteles. Com
Sócrates, o pensamento filosófico ganha um todo e um racionalismo
que irá influenciar decisivamente toda a produção posterior. Esses são os
pensadores clássicos da Grécia dos séculos V e IV a.C. que constituíram
a filosofia, fornecendo os alicerces de toda a tradição filosófica do
Ocidente. A atividade filosófica, enquanto abordagem racional, surge no
contexto cultural grego (com os filósofos pré-socráticos), expressando - se
inicialmente como tentativa de explicar a realidade do mundo, sem
recorrer à mitologia e à religião (Severino, 1992).
O que ocorre então é uma mudança de paradigma do
entendimento humano sobre a vida, de uma abordagem mítica, poética,
visceral para uma racional, mental. Com isso, a partir de Sócrates, pois, a
razão é eleita como um Bem supremo em detrimento do corpo e
emoções. Assim, desenvolve-se uma visão dualista entre mente e corpo.
Essa visão dualista grega estabelecida a partir de Sócrates
e Platão será difundida por Plotino pelo viés da religião cristã e
15
influenciará os pensadores da Era Cristã e Medieval. Todo o pensamento
filosófico e científico posterior partirá dessa visão dualista culminando no
Iluminismo com o triunfo da Razão. Naturalmente as idéias sobre música
estavam subordinadas a uma concepção filosófica geral sobre as coisas,
como tudo, aliás, e é essa visão geral que temos que entender um pouco
mais para podermos pensar sobre o tema mente e corpo, e a voz que sai
desse corpo.
Nos textos de Platão (A República, livro III, ca 380 aC ) ,
Aristóteles ( Política , livro VIII, cap 3 , ca 330 aC ) , Santo Agostinho
(Confissões , livro X , ca 400 dC ) e Boécio ( De Institutione Musica , livro
I , ca 510 dC ) sobre música, percebe-se uma idéia central a saber ,
guardadas as particularidades de cada pensador : a música deve ser
intelectual , espiritual , acima dos impulsos corporais , emocionais e
residirá a sua nobreza .
Para Platão, uma pessoa justa é aquela cujo elemento
racional, com ajuda da vontade, controla seus desejos. Sua teoria ética
repousa na suposição de que a virtude é conhecimento e que este pode
ser aprendido. Deste modo, a música é vista por ele como algo que deve
ser aprendido, porém excluindo-se todos os modos que considera
lamentoso, ou efeminado
2
, e instrumentos que emitem vários sons como
harpas, trígonos e aulo. Resta-lhe a lira e a cítara para a cidade, e a sirinx
para o campo, e o modo dórico, considerado o único verdadeiramente
digno. Uma nação belicosa ama e produz marchas militares heróicas, que
excitam e aumentam sua tendência à bravura. Um povo decadente
entregar-se-á a sicas e canções lânguidas, que aumentarão sua
moleza. Tendo em vista isso, Platão pergunta qual deve ser o papel da
música na educação, e qual o papel do Estado em face à preservação
2
Diz Platão no texto citado A República, livro III:crates pergunta: “ _ Quais são, pois, dentre as
harmonias, as moles e as dos banquetes? Gláucon responde: Há uma variedades da jônia e da lídia,
a que chamamos efeminadas. Sócrates : E essas poderás utilizá-las na formação de guerreiros, meu
amigo? . Gláucon: De modo algum, respondeu. Mas arriscas-te a que fiquem apenas a rica e a
frígia.”
Aristóteles em Política, livro VIII, cap 7, afirma: “Voltando ao modo dórico, todos estão de acordo
que ele seja o modo mais sério e o que melhor manifesta um caráter varonil. Ademais, posto que
nossa aprovação se dirige ao que ocupa um lugar intermediário entre extremos, e o modo dórico se
acha nessa situação, é evidente que as melodias dóricas se acomodam melhor à educação dos
jovens.
16
dos bons costumes do povo. Daí toda a preocupação em enaltecer uma
música alicerçada pela razão que conduziria à Virtude, ao Bem, e que se
daria através da educação. Para ele, a educação musical era a mais
poderosa, porque permitia introduzir na alma da criança, desde a mais
tenra infância, a graça e o amor à beleza e à virtude. A pessoa assim
educada seria a que mais facilmente perceberia a beleza e a harmonia. E
como não amor sem ódio, tal pessoa seria também a que mais odiaria
o feio e o mal, a que seria mais suscetível a qualquer coisa que ferisse a
harmonia, a que mais fortemente reagiria contra as deformidades.
Aristóteles tem uma postura mais flexível, pois embora
reconheça a importância da música para a educação e do modo rico
em particular, como Platão, por ser intermediário entre os extremos,
reconhece as várias funções que a música pode assumir.
“Admitimos, pois, a classificação das melodias,
proposta por alguns entendidos em filosofia, em “melodias
morais”, “melodias ativas” e “melodias que induzem ao
entusiasmo”. Segundo eles, a natureza dos modos se adequa
também a cada uma destas melodias, sendo um modo mais afim
a um tipo, e outro a outro. Nós, por nosso lado, dizemos que a
música deve ser praticada não por uma só vantagem que possua,
mas por várias ( pois ela tem como fim a educação e a Katarsis ...
; e serve também, em terceiro lugar, para a vida de ócio digna e,
finalmente, é útil para o relaxamento após um grande esforço ) e
que em tais condições, é evidente que temos de nos servir de
todos os modos musicais, se bem que não precisamos empregar
a todos da mesma maneira. Assim, empregamos para a
educação os modos morais” , e para a audição de música
executada por outros aceitaremos os “modos ativos e
entusiásticos”,... (Política, livro VIII, cap. 3, ca 330 aC).
17
Santo Agostinho, muito influenciado por Plotino, um
neoplatônico, reconhece o poder da música sobre o corpo através do
prazer que ela proporciona, para advertir o perigo que isso representa.
Sinto que todos os afetos da minha alma se
encontram, na voz e no canto, segundo a diversidade de cada
um, as suas próprias modulações, vibrando em razão de um
parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe.
Mas o deleite da minha carne, de enervar a alma, engana-me
muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-se
humildemente atrás da razão, negam-se a acompanhá-la.
porque, graças à razão, merecem ser admitidos, se esforçam
por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem
consentimento, mas advirto depois” (Confissões, livro X, ca 400
dC).
Boécio nos diz que “A música nos é relacionada pela
natureza, e pode enobrecer ou corromper o caráter”. Também nele vemos
a preocupação em orientar a música para aquilo que é correto e racional.
Reconhece o poder da música no corpo, e por isso mesmo afirma a
necessidade do poder da mente sobre ela. Boécio, seguindo Platão,
mostra que sempre uma interação entre a música e a alma; ou,
utilizando termos medievais, a sica humana e a música exterior,
qualquer que seja ela, se influenciam mutuamente. Para ele é natural que
uma pessoa alegre componha cânticos aprazíveis e se rejubile ainda mais
quando ouça canções alegres, e que por sua vez, uma alma impura, se
deleita com melodias lascivas, que aumentam ainda mais sua lascívia.
Tais princípios valem, segundo Boécio e Platão, quer para os indivíduos
quer para os povos.
Foi por isso que Platão escreveu que os
meninos não deveriam ser treinados nesses modos, mas
somente naqueles fortes e simples. E devemos, acima de tudo,
18
ter em mente que se em tal assunto uma série de pequenas
mudanças forem feitas, não ocorrerá uma mudança com frescor,
e isso posteriormente criará uma grande diferença e passará
através do sentido de audição à mente. Por essa razão Platão
considerou esta música, da mais alta qualidade moral e
puramente composta, sendo modesta e simples e masculina, e
não efeminada ou selvagem, ou mal construída, uma grande
guardiã da comunidade.”
“Muito mais admirável então é a ciência da
música, por apreender pela razão e não pela realização através
do trabalho e ação performática! E mais além, ou seja, como o
corpo é suplantado pela mente, porque a pessoa destituída de
razão viverá em servidão” (De Institutione Musica , livro 1 , ca 510
dC).
Plotino ( 205 270 dC ) , filósofo romano , fundador do
Neoplatonismo , difundiu na Era Cristã ( 100-450 ) justamente a idéia de
que os seres humanos pertencem a dois mundos , o dos sentidos e o da
inteligência pura . Sendo a matéria a causa de todo o mal, o objetivo da
vida deveria ser escapar do mundo material dos sentidos , e por essa
razão as pessoas deveriam abandonar todos os interesses terrenos pela
meditação intelectual.
Todo o pensamento filosófico e científico posterior
partirá dessa visão dualista culminando no Iluminismo com o triunfo da
razão.
Vamos percebendo que todo o pensamento filosófico
e científico ocidental foi se estruturando em cima de uma concepção
dualista, que entendia a razão e a emoção, ou intelecto e sentimento, ou
mente e corpo como coisas separadas e até antagônicas. Esse processo
do pensamento filosófico atingiu o seu ápice com Descartes ( 1596-1650)
e o seu Discurso do Método ( 1637 ) , que com ele definiu o racionalismo
para além do viés religioso que havia dominado o pensamento ocidental a
partir da Idade Média. O pensamento filosófico elege a Razão como
19
verdade primeira e última, o que foi crucial para o desenvolvimento
científico, que assim pôde se desenvolver sem as amarras religiosas, no
entanto disseminou-se a visão dualista entre mente e corpo de maneira
ainda mais radical, pois Descartes afirmava que matéria ( res extensa ) e
espírito ( res cogitans ) são irredutíveis um ao outro. Algo ou é material ou
é espiritual (Haddock Lobo, 1979). Daí o entendimento de que corpo é
uma coisa e mente outra, separados um do outro.
Um filósofo importante que podemos citar como
aquele que questionou de forma contundente esse dualismo instaurado
no pensamento ocidental é Friedrich W. Nietzsche.
Numa das suas primeiras obras, A Origem da Tragédia
(1871), Nietzsche justamente situa Sócrates como aquele responsável
por separar Eros e Logos. Distingue na cultura Grega dois princípios
fundamentais, e que irão servir de matriz para analisar a cultura Européia:
o Apolíneo e Dionisíaco.O princípio Apolíneo (do deus Apolo) simboliza a
serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem
tradicional da Grécia Clássica e que aparece frequentemente associada
às figuras de Sócrates e Platão. O Dionisíaco (do deus Dionísio) simboliza
as forças impulsivas, o excesso transbordante, o erotismo, a orgia, a
afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade). Estes dois
princípios estavam presentes na tragédia e na cultura grega, antes da
influência de Sócrates se fazer sentir. Sócrates submete os impulsos
vitais e a sua energia excessiva aos constrangimentos da razão. A partir
de Sócrates-Platão, a cultura ocidental seria marcada pela repressão dos
instintos vitais e a negação do prazer.
Em A origem da Tragédia, a arte é o resultado do conflito
entre dois espíritos, simbolizados por dois deuses: Apolo e Dioniso. O
primeiro individualiza e forma à energia vital que o segundo emana.
Nas formas criadas por um descobrimos a energia transbordante do
outro. Os dois tipos de arte: a apolínea (poesia) e a dionisíaca (música)
eram complementares. A harmonia da arte grega resultava desta tensão
( reconciliação ) de forças opostas . O auge da cultura grega estaria na
tragédia antiga anterior a Eurípides, onde a tensão entre os dois espíritos
20
está ainda viva. Para Nietzsche, a imagem da cultura grega, simbolizada
por Apolo e um mundo do Olimpo tranqüilo, não passa de uma tentativa
de negar a existência do espírito dionisíaco na arte. Procura-se desta
forma exorcizar heróis trágicos como Prometeu, Édipo, Orestes... E a arte
passa a ser identificada apenas com o lado apolíneo, que representa a
individualização, a medida, a ordem, exprime o triunfo da razão e da
moral. A música, identificada como essência da arte dionisíaca que
exprime o uno primordial, a fonte inesgotável de toda a arte, sucumbe
pois, perante a medida e a ordem . Ocorre, portanto, a racionalização da
arte com a supremacia do espírito apolíneo, que se espalha pela ética,
lógica, ciência, etc, a partir, pois do estabelecimento do pensamento
socrático.
Nietzsche marcou uma profunda ruptura na cultura
ocidental. Crítico da racionalidade imperante, afirmou a primazia de tudo
aquilo que fora recalcado, como a vida instintiva.
Outro importante pensador que muito contribuiu para
redimensionar o ser humano foi o médico austríaco Sigmund Freud
(1856-1939). Freud afirmou que as pessoas não eram fundamentalmente
racionais; afirmou que o comportamento humano é governado
essencialmente por poderosas forças interiores que o consciente não
percebe; e que esses impulsos instintivos e essas faculdades não
racionais é que constituem a maior parte da mente.
a partir do século XX, sobretudo a partir da segunda
metade para cá, é que vemos estudos específicos e interdisciplinares que
caminham na direção da superação dessa dicotomia. Desde Platão a
mente é considerada a parte mais nobre do ser humano, e o corpo, a
sensibilidade, a emoção tornaram-se obstáculos ao conhecimento. Desta
forma, até hoje ainda se suprime, em nome da consciência e do
conhecimento, a dimensão erótica da existência. Devido à ameaça de
descontrole da racionalidade, suscitada pela emoção e pelo desejo,
estabeleceu-se a oposição entre eros e cognição . De um modo geral, o
que se evidencia nos escritos dos filósofos, da Grécia antiga até o início
do século XX, é uma concepção dissociada, na qual a razão quase
21
sempre tem status superior com relação aos sentimentos (que são
relativos ao corpo e emoções).
Nós ocidentais herdamos, principalmente com Descartes
a metáfora de um corpo que seria inferior à razão. Descartes,
definitivamente, instalou a divisão corpo/mente com seu pensamento
metafísico. Mesmo se antes se pensava o ser humano como
constituído por um corpo físico e uma outra parte subjetiva, a partir de
Descartes essa divisão foi realmente instituída e, conseqüentemente, o
físico passou a estar a serviço da razão. Na época de Descartes, a razão
adquiriu tanta importância que se colocou numa relação de superioridade
com o mundo de forma inquestionável. Francisco Fontanella
3
observa que
“o ‘eu’, - o sujeito - se separou e se tornou todo-poderoso em relação ao
mundo. E o corpo, conjunto biológico, material, mundano, cheio de
humores e excreções ficou relegado, mais ainda que o mundo".
A sociedade ocidental incorporou essa subjetividade
ampliando essa dualidade para outros preceitos como: espírito/matéria;
masculino/feminino;branco/preto;dominante/dominado;civilizado/primitivo;
culto/inculto;letrado/analfabeto;desenvolvido/subdesenvolvido .
Tal cisão foi mantida intocável até o século XX, pois “o
movimento dessas dicotomias ganhou força em diferentes áreas e
culminou numa discussão quase inconciliável entre os sistemas teóricos
empiristas e inatistas, que dominaram o cenário dos debates sobre
conhecimento, pensamento, comportamento e sentimentos humanos. Os
empiristas ‘cuidaram’ da razão e os inatistas da emoção. Posteriormente,
com a consolidação de grandes teorias psicológicas como a gestalt, a
psicanálise, o behaviorismo, a epistemologia genética, a psicologia
cultural e a psicologia sócio-histórica, o problema passa a ser debatido de
modo mais aprofundado por cada modelo e começaram a aparecer
estudos sobre as relações entre cognição e afetividade”.
4
3
Fontanella, Francisco. O corpo no limiar da subjetividade. Piracicaba: Unimep, 1995. Apud
Rosário, Nísia Martins do. Mundo Contemporâneo: Corpo em Metamorfose. Artigo disponível em
www.comunica.unisinos.br/semiotica/nisia_semiotica/conteudos/corpo.htm
4
Vasconcelos, Mário Sérgio. Afetividade na Escola: Alternativas Teóricas e Práticas. Educ. Soc,
Campinas, vol. 25, n° 87, maio/ago 2004. Disponível em www.cedes.unicamp.br
22
Arantes (2002)
5
aponta que o neurologista Antônio R.
Damásio, em sua obra O erro de Descartes (1996), postula a existência
de uma forte interação entre a razão e as emoções, defendendo a idéia
de que os sentimentos e as emoções são uma percepção direta de
nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a
consciência.
Arantes nos convida a observar a essência do erro de
Descartes, segundo Damásio:
“... a separação abissal entre o corpo e a mente,
entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume,
com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado,
e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e
intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral
e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional
poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente:
a separação das operações mais refinadas da mente, para um
lado, e da estrutura ou funcionamento do organismo biológico
para o outro."
E conclui: Damásio rompe com a idéia cartesiana de uma
mente separada do corpo. Como ele mesmo apontou, talvez a famosa
frase filosófica - Penso, logo existo - devesse ser substituída pela anti
cartesiana - Existo e sinto, logo penso.
Disso tudo depreendemos que o profundo entendimento
dual que se estabeleceu em nossa consciência ocidental a partir de
Sócrates, que ganhou matizes religiosos com o cristianismo e se
desenvolveu com o pensamento científico moderno, essa dicotomia
cognição/emoção, corpo/mente, razão/sentimento, com a conseqüente
5
Arantes, Valéria Amorim. Afetividade e cognição: Rompendo a dicotomia na Educação.
Publicado originalmente em Oliveira, M. K.; Trento, D. ; Rego, T ( org ) . Psicologia, Educação e
as Temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002
23
supremacia da mente/razão/cognição, e que está sendo posta abaixo
cada vez mais pelas descobertas na física, biologia, neurociências e
ciências cognitivas, permeou o entendimento sobre o corpo, a escuta, e
consequentemente a voz, enquanto um fazer musical e artístico
específico.
A partir do século XX, principalmente na segunda metade,
vários estudos vão questionar essa dualidade, essa supremacia da razão
que desconsidera o corpo vivo. Que desconsidera o corpo como fundante
de significados e que pensa o corpo como um objeto a serviço da razão
civilizatória. Corpo natural ou cultural? Corpo humano ou animal? Corpo
universal ou singular? O corpo é nossa possibilidade de existência.
Imperfeito, maravilhoso, ao mesmo tempo em que se mostra, esconde
muito do que é registrado durante suas vivências, sendo capaz de
questionar as separações e fixações impostas pela ciência clássica
6
.
O corpo é incapaz de apresentar respostas pré-
estabelecidas como uma máquina, pois para o ser vivo, a aquisição de
um hábito verdadeiro é a incorporação de uma forma suscetível de
transformar-se. Em contrapartida, a máquina executa uma montagem
prevista para um número finito de casos. A margem de imprevisto da
máquina é muito reduzida. A máquina funciona, o animal vive, ou seja, ele
reestrutura seu mundo e seu corpo
7
. Corpo capaz de revelar o “ser
selvagem”, o “ser do abismo” marcado por infinitas transformações. Um
ser que, ao invés de ficar fixo, modifica-se constantemente
8
.
Para compreender a lógica dinâmica de um corpo marcado
por infinitas transformações, capaz de se auto-organizar, é necessário
unir domínios separados, inclusive entre humanidade e animalidade;
6
Mendes
,
Maria Isabel Brandão de Souza. Corpo, atureza e Cultura: Contribuição para a
Educação
.
Disponível no site www.anped.org.br/rbe27/anped-n27-art08.pdf
7
Merleau-Ponty, M. A atureza: notas: cursos no Collège de France. Martins Fonte, 2000 Apud
Mendes
8
Merleau-Ponty, M. Textos escolhidos. Seleção e Tradução de Marilena Chaui. SP: Abril Cultural,
1980. Apud Mendes
24
natureza e cultura; corpo e mente; razão e emoção, conceitos
considerados antagônicos, recusar a causalidade linear e caminhar na
busca da superação dos dualismos e dos determinismos de toda ordem.
Corpo multidimensional, que além de ser técnico e
racional, é mítico, festivo, dançante, capaz de sentir e provocar êxtase,
amor e guerra. O homem é considerado um ser bio-cultural, sendo
totalmente biológico e totalmente cultural, pois tudo o que é humano
possui ligação com a vida
9
.
Nessa perspectiva podemos entender o recalque do ruído
na música ocidental e o seu posterior desrecalque. Recalque do ruído
intimamente ligado ao recalque do corpo. Podemos entender igualmente
que toda a revolução que tomou conta da poesia no sentido de resgatar a
voz e o corpo, do teatr
o buscando as profundezas do corpo e suas
manifestações, acenava com o forte desejo de superar essa dicotomia
entre mente e corpo.
1.2 Corpo e Música
Todas essas considerações sobre o corpo são muito
importantes para entendermos melhor as várias formas que a voz cantada
assumiu e assume e então começarmos a refletir sobre as estéticas da
voz cantada. Pois uma vez que é intrínseca a relação da voz com o corpo,
entendendo melhor esse corpo, como é esse corpo, estaremos
consequentemente entendendo melhor as formas que a voz assume a
partir de um determinado corpo e o entendimento que se tem desse
corpo. Veremos também como a escuta, o sendo neutra, define
9
Morin, E. O Paradigma perdido: A atureza Humana. 5ª edição. Tradução de Hermano Neves.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1973. Apud Mendes, Maria Isabel Brandão de Souza, op.
cit.
25
igualmente um entendimento da produção dessa voz. Assim como
precisamos educar o olhar para além das formas incutidas por ideologia e
massificação e assim conseguirmos ver além, também precisamos educar
o ouvir para podermos escutar além.
Música e corpo sempre estiveram intimamente ligados.
Pulso musical e pulso sanguíneo, frase musical e respiração, categorias
de andamento (andante, largo, allegro, vivace) e as disposições físicas e
psicológicas, como bem nos lembra Jo Miguel Wisnik em seu livro O
Som e o Sentido.
“(...) podemos usar uma metáfora corporal: a
onda sonora obedece a um pulso, ela segue o princípio da
pulsação. Bem a propósito, é fundamental pensar aqui nessa
espécie de correspondência entre as escalas sonoras e as
escalas corporais com as quais medimos o tempo. Porque o
complexo é um medidor freqüencial de freqüências. Toda a
nossa relação com os universos sonoros e a música passa por
certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos, com os
quais jogamos ao ler o tempo e o som” (Wisnik, 1989, pg. 19).
E ainda esclarece que:
“Mas é preciso dizer como se apresenta o pulso
na música. Assim como o corpo admite ritmos somáticos ( a
exemplo do sanguíneo ) e ritmos psíquicos ( como as ondas
cerebrais ) , que operam em diferentes faixas de onda , as
freqüências sonoras se apresentam basicamente em duas
grandes dimensões : as durações e as alturas ( durações
rítmicas e alturas melódico – harmônicas )” . (Idem, pg. 20).
“É impossível a um som se apresentar sem
durar, minimamente que seja , assim como é impossível que
uma duração sonora se apresente concretamente sem se
26
encontrar numa faixa qualquer de altura , por mais indefinida e
próxima do ruído que essa altura possa ser” (Idem, pg. 21).
Portanto, o som traz em si fatalmente a possibilidade de ruído.
“Ao fazer música, as culturas trabalharão nessa
faixa em que som e ruído se opõem e se misturam” (Idem, pg.
27).
“Nos rituais que constituem as práticas da
música modal invoca-se o universo para que seja cosmos e não
caos. Mas, de todo modo, os sons afinados pela cultura, que
fazem a sica, estarão sempre dialogando com o ruído, a
instabilidade, a dissonância” (Idem, pg. 27).
“Som e ruído não se opõem absolutamente na
natureza: trata se de um continuum, uma passagem gradativa
que as culturas irão administrar, definindo no interior de cada
uma qual a margem de separação entre as duas categorias (a
música contemporânea é talvez aquela em que se tornou mais
frágil e indecidível o limiar dessa distinção )” (Idem, pg. 30).
“O jogo entre o som e ruído constitui a música. O
som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para s a todo
o momento através de freqüências irregulares e caóticas com
as quais a sica trabalha para extrair lhes uma ordenação
( ordenação que contém também margens de instabilidade ,
com certos padrões sonoros interferindo sobre os outros )”
(Idem, pg. 33).
Pensando na história da música ocidental, Wisnik coloca
que a partir do canto gregoriano ouve um deslocamento da música para o
27
plano das alturas e um recalque do ruído, que será desrecalcado na
música do século XX.
“O canto gregoriano, que inaugura uma tradição
que conhecemos bem, aquela que vai dar na música barroca e
clássico romântica dos séculos XVII , XVIII , e XIX , é uma
música que primou por evitar sistematicamente os instrumentos
acompanhantes , não os percussivos, como também o
colorido vocal dos múltiplos timbres” (Idem, pg. 44 ).
“A música que evita o pulso e o colorido dos
timbres é uma música que evita o ruído, que quer filtrar todo o
ruído, como se fosse possível projetar uma ordem sonora
completamente livre da ameaça da violência mortífera que está
na origem do som” (Idem, pg. 42).
“Recalcar os demônios da sica equivale de
certa forma, no plano sonoro, a cobrir ( ou rasurar ) o sexo das
estátuas ” (Idem, pg. 42).
“A partir do século XX opera-se uma grande
reviravolta nesse campo sonoro filtrado de ruídos, porque
barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como
integrantes efetivos da linguagem musical. A primeira coisa a
dizer sobre isso é que os ruídos detonam uma liberação
generalizada de materiais sonoros. Dá-se uma explosão de
ruídos nasica de Stravinsky, Schoenberg, Satíe, Varèse
(para citar alguns nomes decisivos)” (Idem, pg. 43).
28
1.3 Corpo e Voz
Música e voz
Poesia e voz
Transferindo esse painel histórico para o corpo e a voz
cantada, percebemos que ao recalcar o ruído houve conjuntamente um
recalque do corpo e a sua voz plena. Mulheres foram proibidas de cantar,
primeiro nas igrejas e depois nos palcos de teatro, e difundiu se do
século XV ao XVIII (quando então entrou em decadência) o uso dos
castrati, homens castrados na puberdade para manterem na vida adulta
vozes agudas. Eram sopranistas e contraltistas, porém “mais” que
mulheres, pois eram um misto de homem, mulher e criança. Foram
idolatrados no seu tempo e eram a encarnação da metáfora dos anjos.
Possuíam vozes angelicais e foram a encarnação de uma metáfora
trágica: a mutilação do próprio corpo , que no entanto não era nada se
com isso se conseguisse ter uma voz de anjo : nem homem , nem mulher,
nem criança , sendo os três ao mesmo tempo . Contradição máxima: o
corpo deveria ser assexuado e produzir uma voz de anjo, e esse mesmo
corpo com essa voz angelical despertava desejos sexuais em mulheres e
homens.
Com o Iluminismo, a decadência dos castrati se acelera,
pois a sua existência era uma ofensa `a Razão . Os compositores pouco
a pouco vão deixando de escrever para os sopranistas. Gluck confiara
sua segunda versão do papel de Orfeu a um tenor, e Mozart, depois de
várias tentativas, claramente privilegiou as cantoras e os tenores ligeiros
(Barbier, 1993).
As vozes passam a existir como femininas e masculinas
de acordo com o dualismo cartesiano, e acabam por ficar refém da moral
burguesa vitoriana . Como nos diz Janete el Haouli (1993),
29
“O corpo humano e a voz renascerão para uma
nova incursão repressora de conteúdo essencialmente moral
pelos sábios e filósofos do século XIX. (...) No mesmo século
surge a moral vitoriana e a sexualidade camuflada da
burguesia, o advento do casal legítimo e procriador, que
trancafia o erotismo no quarto, recobre o discurso com o decoro
e oculta ou exclui os mais simples atos de desejo, como nos diz
M. Foucault” (Haouli, 1993, pg. 55).
A partir do século XX, com o progressivo desrecalque do
ruído, aos poucos a voz também foi se libertando. Uma nova imagem, ou
metáfora corporal vai se delineando e a voz vai incorporando esse novo
corpo que não se quer mais reprimido, dual, artificial.
É preciso que retomemos ao início do século XX, onde
várias novas perspectivas se colocaram para músicos, poetas e
teatrólogos. Com o intenso crescimento da indústria, e o seu conseqüente
barulho transformando a vida conhecida até então, esse ruído-barulho
será o principal elemento constituinte do Futurismo e das artes de
vanguarda das primeiras décadas do século XX. Como diz Heloisa
Valente (1999), “o ruído ganha status de elemento estrutural na
composição”.
“A sica do século XX, pelo que mostram as
mais diversas obras conhecidas, necessitam do virtuosismo
técnico; em alguns aspectos, até mais que em épocas
anteriores. A diferença reside no fato de que os referenciais
estéticos não são mais os mesmos. A voz do século XX rompeu
com o legato, o som redondo, valores inalienáveis do bel canto.
Em contrapartida, incorporou sons vocálicos outrora banidos do
universo da arte (soluço, sussurro, tosse, etc.); ou, dito de outro
modo, agregou o ruído” (Valente, 1999, pg.132).
30
Em 1916, Eric Satie, com Parade, incorporou
instrumentos como sirenes, máquina de escrever, garrafafone. Em 1931,
Varèse compôs Ionisation
10
para 37 instrumentos de percussão de altura
indeterminada, e com isso ficou estabelecido que o parâmetro da altura
(freqüência) não seria mais imprescindível para a criação musical (Idem,
op. cit.).
Schoenberg cria o dodecafonismo e o Sprechgesang, o
canto falado, sobretudo em Pierrot lunaire
11
(1912). A voz emite, então,
um canto-falado que o se apóia nas alturas fixas (as notas musicais).
Deparamos com um ruído no código musical, que seampliado para o
canto sussurrado, sussurrado bem sonoramente, sussurrado sem
sonoridade, falado sonoramente, entre outros
12
. Com Berg, temos a
declamação rítmica. O próximo marco nas pesquisas vocais será,
sobretudo com Luciano Berio, cujas obras opõem-se deliberadamente à
tradição do bel canto italiano, e em Sequenza III (1966)
13
temos o riso em
suas diversas manifestações (sorriso, gargalhada, riso nervoso etc.),
guiadas não por signos musicais (meio-forte, forte, piano), mas por
comportamentos vocais (langoroso, terno, tenso, sonhador...) (Valente,
op. cit.).
No campo das pesquisas poéticas temos a poesia
fonética
14
, o letrismo e a poesia sonora
15
. A poesia fonética surge com os
poetas futuristas e dadaístas, com o objetivo de criar uma linguagem
fonética destituída de carga semântica. Assim, o aparelho fonador vira um
laboratório para todas as possibilidades. O Dadaísmo procura subverter a
língua através da ironia e do humor baseados numa linguagem pré verbal,
onde o próprio nome Dada viria do balbucio infantil. O Futurismo russo
trabalha, contemporaneamente ao Dada, a mesma proposta de
10
Há um vídeo dessa obra no DVD que acompanha esse trabalho, faixa 47.
11
Faixas 2,3, e 4 do CD 1, e 49 e 50 do DVD.
12
Menezes, F. 1987, A apoteose de Schöenberg apud Valente, Heloisa, op. cit.
13
Faixa 20 do CD 1 que acompanha esse trabalho. Também é possível assistir a um estudo dessa
obra no DVD, faixa 23, além da faixa 22 (Trecho com Cathy Berberian) .
14
Faixas 1, 5, 6 , 7, 8, 9, 10 e 11 do CD 1. Embora a Ursonate de Schwitters, a rigor, seja poesia
fonética, até por ter sido gravada por ele, podemos chamá-la de poesia sonora.
15
Faixas 17, 18 e 19 do CD1. A poesia sonora, propriamente, é aquela feita a partir da década de
50 já com os recursos de gravação e manipulação dos sons.
31
linguagem sem sentido, de palavras destituídas de significado. Mas
enquanto o Dada se baseia na linguagem das crianças em sua procura
de uma comunicação pré-gramatical, o futurismo russo recupera a
linguagem dos loucos e dos folclores dialetais criando uma linguagem
transmental.
16
o futurismo italiano busca nas parole in libertà, a
utilização de onomatopéias, reconstruindo a nova sonoridade da vida
moderna. O letrismo, algumas décadas depois (1947), “radical como o
dadá na experimentação acústica com sons não verbais produzidos pelo
aparelho fonador humano (arroto, tosse, espirro, suspiro, etc.) é o último
movimento de vanguarda anterior ao aparecimento da aparelhagem
eletromagnética” (Menezes, 1992). A partir de então surge a poesia
sonora.
“Com o surgimento dos estúdios eletroacústicos
nos anos 50, a poesia oral das vanguardas lugar às
potencialidades de modificação do som vocal, com efeitos de
repetição, alongamento, contração, sobreposição de fonemas
nunca antes ouvidos. Os poetas, denominados então sonoros,
associam-se aos músicos concretos e eletroacústicos.”
(Menezes, 1992, pg. 13)
“Tomando a voz em sua materialidade pura,
explorada no seu aspecto sonoro, por intermédio da
manipulação dos recursos da eletroacústica, a poesia sonora
conseguiu reunir um conjunto de obras que poderiam ser
encaradas como obras musicais”. (Valente, 1999, pg. 155)
“Se as vanguardas históricas haviam mantido
uma marca nítida da poética em seus experimentos fonéticos,
ainda que em ruptura com os cânones clássicos, e uma
distinção mais ou menos clara entre poesia e canto, a poesia
16
Menezes, Philadelpho. Introdução: da Poesia Fonética à Poesia Sonora in Poesia sonora:
poéticas experimentais da voz no século XX / organização Philadelpho Menezes.
32
sonora e as músicas concreta e eletrônica pareciam buscar, ao
contrário, o definitivo cancelamento de suas diferenças”
(Menezes, 1992, pg. 14).
No campo teatral, houve intensas pesquisas com Antonin
Artaud.
17
Os caminhos apontados por Artaud em O Teatro Alquímico
(1932) e principalmente O Teatro e seu Duplo ( 1938 ) sobre a voz e o
corpo, depois aprofundados, nos anos 60, pelas pesquisas vocais de
Jerzy Grotowski, foram decisivos. Também podemos citar Roy Hart e o
seu Roy Hart Theatre (cujas pesquisas e conquistas devem muito a Alfred
Wolfsohn
18
). Alfred Wolfsonh, que após intensas vivências como soldado
na primeira grande guerra, escapou para Londres, e tornou-se professor
de canto, desenvolveu um método em que os cantores , numa
perspectiva holística, chegavam a um alcance vocal de 6 oitavas , e dizia:
A voz é o músculo da Alma . Roy Hart foi seu aluno nos anos 50, e
difundiu suas pesquisas nos anos 60 através do Roy Hart Theatre. Noah
Pikes, integrante e co-fundador do Roy Hart Theatre, difunde até hoje
essas pesquisas e publicou um livro em 1999 chamado “Dark Voices
the Gênesis of Roy Hart Theatre”
19
.
Como diz Jean - Jacques Roubine (1998): as vozes, os
ruídos e a música no teatro de Artaud têm o objetivo de atingir fisicamente
o espectador no mais profundo do seu ser, onde a voz é arrancada das
profundezas do corpo humano, onde as palavras devem ser utilizadas
num sentido encantatório, em função de sua forma, de suas emanações
sensíveis, e não mais do seu significado. Grotowski também buscará
vozes inauditas, ainda de acordo com Roubine:
17
Faixa 12 e 13 do CD 1. Essas faixas pertencem à obra radiofônica Para acabar com o juízo de
Deus ( Pou em finir avec le jugement de Dieu) realizada para a rádio Francesa em 1947. É possível
ver fotos e desenhos de Artaud no DVD faixa 34; áudio: Para acabar com o juízo de Deus. Na
faixa 18 do DVD há uma homenagem a Artaud, por Demétrio Stratos.
18
Sobre Alfred Wolfsohn: www.vozterapia.com.br Site de Sônia Prazeres, musicista e atriz , que
estudou em Londres as técnicas da voz terapia de Alfred Wolfsohn e trouxe para o Brasil.
19
Sobre Alfred Wolfsohn , Roy Hart e Noah Pikes : www.thewholevoice.com
33
“O corpo humano, segundo observação de
Grotowski, utiliza no cotidiano uma parte ínfima dos seus
recursos vocais. Isso vale também para o ator ocidental*, e até
mesmo para o cantor. Um treinamento adequado capacitará o
ator a fazer sair de dentro de si mesmo, e, portanto a explorar,
vozes literalmente inauditas, que parecerão emanar de
diferentes pontos de seu organismo: occipício, plexo solar,
ventre etc.. São essas zonas que ele denomina caixas de
ressonância. Desse modo, o ator grotowskiano disporá de uma
paleta sonora inteiramente nova, e mil vezes mais rica do que a
do intérprete convencional, que geralmente domina a caixa
de ressonância da laringe. No caso, a voz pode tornar - se, à
vontade, esse ruído ao mesmo tempo humano e desumano
suscetível de transtornar o ouvinte, essa pura energia sonora,
em busca da qual Artaud também se havia lançado.
*Já Artaud havia lamentado que o ator ocidental se tivesse
tornado incapaz de emitir um verdadeiro grito...” (Roubine,
1998, pg. 164)
Luis Otávio C. G. de Souza (1999), também nos informa que:
“É muito importante destacar o fato de que, na
música da cena artaudiana, vamos encontrar nitidamente a
manipulação de características do som, que eram, também,
objeto de pesquisa nas tentativas revolucionárias dos músicos
contemporâneos, como, por exemplo, Edgar Varèse. Pierre
Boulez, um dos nomes mais expressivos no panorama da
música atual, declarou: ”Pude encontrar em Artaud, as
preocupações fundamentais da música atual; tê-lo visto e
ouvido ler seus próprios textos, acompanhados de gritos, ruídos
e ritmos, mostrou-nos como efetuar uma fusão do som e da
palavra, como fazer explodir o fenômeno, quando a palavra
34
nada mais consegue; em resumo, como organizar o delírio”.
(Souza, 1999, p
g. 42)
“Artaud explorava os sons, os ruídos, os timbres
e as pulsações da palavra, da música de instrumentos, da voz e
do corpo do ator, buscando articular, essencialmente as
vibrações e os ruídos em vez da melodia e do ritmo
mensurado”. (Idem, pg. 42)
Heloísa Valente (1999, pg. 164), em seu citado livro Os
Cantos da Voz entre o ruído e o silêncio, então assim nos resume os
procedimentos vocais principalmente a partir da década de 1960:
A introdução do ruído, aqui representado pelos sons
anteriormente banidos do universo da arte (arrotos, tosse,
gritos, etc.) e pela voz mal colocada, isto é, sem a impostação
tradicional do bel canto;
A utilização dos recursos da eletroacústica, que permite
decompor o som vocal em seus harmônicos, reorganizá-los;
submetê-los ainda à sobreposição, aceleração ou retardo ,
repetição , fragmentação , retrocesso etc. ; inclua-se nesse item
a recuperação do ruído , banido do bel canto ;
O rompimento da integridade do texto lingüístico, muitas
vezes fragmentado, com vistas a uma utilização meramente dos
elementos fonéticos, sobretudo após a introdução do
pontilhismo serial; o rompimento semântico coincidindo, muitas
vezes, com uma escritura pontilhista da parte vocal, evitando o
fraseado melódico tradicional;
A eliminação da fronteira entre som vocal e signo
lingüístico, portador de significação precisa, permitindo à
música engendrar gestos ( também vocais ) como expressão de
afetos , subjacentes à expressão verbal ;
35
A voz extraída de seu uso cotidiano, banal, submetida a um
tratamento musical bem mais complexo, exigindo virtuosidade
por parte do executante.
A inclusão, na música, de expressões vocais não-
lingüísticas (gritos, sussurros, choro, riso etc) despojadas de
seus valores afetivos e encaradas como elementos expressivos
de uma linguagem musical de horizontes mais amplos (vide, por
exemplo, o riso em Sequenza III, de Berio ) ; também o inverso
: expressões emotivas transportadas diretamente para a
linguagem musical ( vide Eight songs for a Mad King , de Peter
Maxwell Davis , 1969)
1.4 A Voz
Quando pensamos na voz humana, seja ela falada ou
cantada, nunca podemos esquecer o seu suporte, ou seja, o corpo e toda
a materialidade que lhe é inerente. Para começar a trabalhar a voz,
desenvolvê-la e dar forma de modo que ocupe o espaço com brilho, força,
expressividade, flexibilidade, projeção, sustentação, temos que
necessariamente trabalhar o corpo que irá dar-lhe vida. Para um cantor,
que tem a sua xima expressão apenas na materialidade da voz, o
trabalho com o corpo para se chegar a essa expressão máxima chega a
ser uma obsessão. Esse corpo precisa ter um tônus ideal, num vigor e
relaxamento perfeitamente sincronizados, todo o mecanismo fono-
respiratório perfeitamente articulado. Isso parece óbvio, e é então
buscado por todos aqueles que buscam se expressar com a voz cantada.
A expressão artística não se limita a esta questão técnica,
então ocorre a busca de uma voz que consiga expressar emoções, e
assim, o corpo é chamado a comparecer libertando estados emocionais
por mais suaves e contidos que esses possam ser . Todo esse trabalho é
36
comandado pela audição da própria voz e de outras que servem como
parâmetros, e que vai orientando o caminho a percorrer. Temos então
uma circularidade entre escuta - corpo som, que gera o movimento
necessário para a projeção da voz no espaço.
Portanto a questão fundamental para a arte do canto, a
harmonização entre o som puro (música) e o verbo (palavra), não encerra
a questão, posto que esse canto se dá num corpo que vivencia e
transmite emoções e signos variados e ocupa um espaço fluindo num
tempo. A voz humana é o único instrumento que se caracteriza por reunir
num mesmo corpo, executante e meio de execução (Valente, op.cit.).
Com isso temos uma série de questões a considerar. Como nos diz Paul
Zumthor
20
,
“O que quer que evoque, por
meios lingüísticos, o texto dito ou cantado, a performance lhe
impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo
corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama,
emanação de nós”.
Essa ligação voz-corpo-gesto-espaço forma um todo
coeso, que precisamos compreender e dominar para uma situação de
performance.
Em Teogonia , A Origem dos Deuses , de Hesíodo , poeta
grego da era arcaica, que viveu por volta de 800 aC na Beócia ( situada
na região central da Grécia ) , Zeus e Memória geram as Musas . Em
Hesíodo, as Musas são o Canto e o Canto é Presença. As palavras
cantadas são forças divinas. a força nomeadora da voz das Musas
pode retirar os seres e fatos passados e futuros do reino noturno do
Esquecimento, isto é, da Força de Ocultação e torná los Presentes,
20
Zumthor, Paul. Introduction à la poesie orale, Paris: editions du Seuil, 1983. Apud. Valente,
Heloisa (1999).
37
mostrá–los à luz: revelação . As Musas, invisíveis, ocultas por muita
névoa, manifestam se unicamente como o canto e o som da dança
dentro da noite. Uma procissão de cantoras dançarinas, faz surgir, por
suas vozes e gestos, os deuses. Cantar e dançar, a voz e o gesto, sendo
uma unidade. Nas palavras de Jaa Torrano, o tradutor da Teogonia
(1992), no prefácio ao livro:
“Em verdade, o mo(vi)mento do
Cantar ( das Musas ) é analogicamente o mo(vi)mento mesmo
do que o Cantar presentifica , que o Cantar é Ser. As musas
nascidas na Piéria não vêm à luz de um tempo preexistente a
elas e indiferente à existência ou inexistência delas, pois não
há, para Hesíodo e sua época, essa preexistência incondicional
do tempo . Assim como cantar é a função pela qual as Musas
se dão como Musas, que musa é essa força divina que canta
em cada cantar , - o tempo, em que as Musas nascem, nasce
como a temporalidade própria das Musas e , além deste tempo
qualificado e originado pelo nascimento natureza das próprias
Musas, não para elas nenhum outro tempo a que a
Presença absoluta dessas Deusas possa ser referida .
A presença numinosa, por
excelência, só se refere a Si mesma, e, ao dar –-Se como
Presença o Deus, sua Presença impõe Se e impõe, como
única remissão e referência possível ante sua Presença, a
remissão e referência a Si mesma” . (Hesíodo, 1992, prefácio,
pg. 84)
Disso depreendemos a força do cantar que se faz
presente. O presente mesmo que se impõe como referente a si próprio,
quer dizer, o momento que faz existir algo, algo que sai do Caos, do
Esquecimento, da Ocultação e é revelado. Sai do Caos para
38
criativamente ganhar uma forma no Presente, a cada vez, que Musa é
essa força divina que canta em cada cantar. Palavras Cantadas. Cantar e
dançar, a voz e o gesto, sendo uma unidade. Antes de mais nada a
presentificação dessa unidade. O Canto é Presença. Diz-nos Paul
Zumthor (1993):
“Um laço funcional liga de fato à voz o gesto:
como a voz, ele projeta o corpo no espaço da performance e
visa conquistá-lo, saturá-lo de seu movimento. A palavra
pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num
contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de
um processo mais amplo, operando sobre uma situação
existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja
os corpos dos participantes. Marcel Jousse, ao cabo de vinte
anos de pesquisas e de tentativas de descer às próprias raízes
da espontaneidade expressiva, colocava como indissociáveis o
gesto e a palavra, num dinamismo complexo que ele chamava
de verbomotor. A partir de outras premissas, e na perspectiva
da performance, Brecht criou para si a noção de gestus,
envolvendo, com o jogo físico do ator, certa maneira de dizer o
texto e uma atitude crítica do locutor quanto às frases que ele
enuncia. Na fronteira entre os dois domínios semióticos , o
gestus conta do fato de que uma atitude corporal encontra
seu equivalente numa inflexão de voz, e vice-versa,
continuamente (Zumthor, 1993, pg. 243).
A relação entre voz, voz cantada e corpo parecem-nos,
pois, algo que não nos deixa dúvida. No entanto, as questões surgem
quando começamos indagar de que corpo, voz e escuta estamos falando.
Essas questões não são tão simples assim e são extremamente
importantes para nos fazer refletir acerca das várias estéticas que se nos
apresentam como possibilidades e não como verdades únicas
inquestionáveis, e para entendermos a voz contemporânea.
39
O corpo e suas reflexões é um assunto vastíssimo que
abrange a filosofia, as ciências cognitivas, a biologia, a antropologia, a
psicologia e o pensamento artístico sobre o corpo. E tudo isso dentro da
História, quer dizer, assumindo significados diferentes ao longo da
História e em diferentes culturas.
O que nos interessa entender é que a base material da voz
o corpo - não é apenas um ser biológico e psicológico tecnicamente
treinado, mas um ser complexo para onde confluem inúmeras
informações de toda ordem e de onde igualmente saem informações, que
por sua vez estão subordinadas a um entendimento metafórico que se
tem sobre o corpo.
“A diferença entre discutir “o corpo” ou “as suas
corporeidades” é a tentativa evidente de estudar “diferentes
estados” de um corpo vivo, em ação no mundo”. (Greiner, 2005,
pg. 22).
“(...) O que interessa aqui é perceber que a
imagem do corpo alimentou o esquema do corpo, para que
pudesse ser organizado novamente (Idem, pg. 102)”.
“Assim, lembrando o corpo organismo, o corpo
sem órgãos, o corpo como plataforma semântica e o corpo
treinado, percebe-se que se a metáfora muda, muda o
entendimento ontológico do corpo e sua possibilidade de
experimentação. (Idem, pg.122 )”.
Essa idéia de que se a metáfora muda, muda o
entendimento ontológico do corpo e sua possibilidade de experimentação,
me parece muito instigante e pertinente para refletir sobre as várias
estéticas vocais que se nos apresentam geograficamente e ao longo da
história . Instigante para compreender a voz cantada contemporânea num
corpo que se organiza a partir de uma outra metáfora, que o é com
40
certeza, aquela ainda vinculada ao século XIX. Pois a voz contemporânea
vem de um corpo que se quer livre e pleno, vem de um corpo que se
livre e pleno, que reconhece suas imperfeições, contradições, seus
ruídos, sua naturalidade, que admite sua dimensão erótica, sua
agressividade. Somente com essa mudança do entendimento ontológico
do corpo que vai ocorrendo ao longo do século XX é que se pode
imaginar outras formas possíveis de experimentação vocal.
Portanto, a voz artística
21
parte de um entendimento
vivenciado que se tem sobre o corpo e sua relação com o mundo, e é
nessa perspectiva que podemos compreender a produção, a estética
delineada da voz contemporânea, que é gerada a partir de um outro
corpo, de uma outra escuta.
Sobre essa base corporal temos uma escuta interagindo
ativa e simultaneamente, e um influindo sobre o outro no sentido de uma
produção vocal.
1.5 A Voz Contemporânea
“Mas é outra voz outra escuta à qual nos
convida nossa música mais recente - que se recusa a pensar o
uno, que se recusa a reduzir o ato vocal ao produto de uma
cadeia causal unívoca” (Zumthor,1993, pg. 21).
Temos então uma voz que ocupa um corpo que se
movimenta no espaço. É nessa unidade que precisamos pensar quando
21
Voz orientada para uma determinada produção estética. Voz concebida para além de seu uso
banal, cotidiano.
41
concebemos uma performance musical da voz cantada. Essa unidade é
trabalhada, orientada por uma determinada estética.
Temos o canto de Meredith Monk
22
, de Demetrio Stratos
23
,
da cantora siberiana Sainkho Namtchylak
24
, da canadense Tanya
Tagaq
25
, da cantora americana de origem grega Diamanda Galás
26
, por
exemplo, como resultado de intensas pesquisas vocais e corporais que
vão do erudito, ao popular, ao étnico
27
, nos trazendo e revelando
possíveis outras técnicas, formas e sensibilidades artísticas. Um canto
dentro da estética configurada da voz contemporânea. Temos também o
poeta sonoro performático de origem holandesa Jaap Blonk
28
.
Esses artistas recuperam a voz em sua dimensão
performática e corporal, e o caráter iniciático e ritualístico, como nos diz
sobre Demétrio e Meredith, Janete El Haouli em seu trabalho Demétrio
Stratos: a escuta da voz - música. A experiência de Demetrio Stratos
(1945- 1979)
29
, que desenvolveu em seu trabalho solo intensas pesquisas
vocais, as quais foram inclusive estudadas por importantes
fonoaudiólogos como novos parâmetros vocais, é decididamente um
marco nesse percurso da voz contemporânea.
Para Janete,
“Demétrio inaugura o tempo do fragmento ou o
tempo do ruído como uma presentificação do instante onde
ocorre uma interação de eventos sonoros ao acaso. Assim não
se admite a voz como uma linearidade pré - constituída
simbolicamente por certas construções objetivadoras, como no
canto lírico. A voz não se deixa amordaçar porque quer gemer
22
Faixa 8 do CD 2 e 13 do DVD.
23
Faixas 7, e de 9 a 14 do CD 2, além das faixas 16 a 21 do DVD.
24
Faixa 18 do CD 2, e 4 e 5 do DVD.
25
Faixa 19 do CD 2, e faixa 3 do DVD.
26
Faixas 14 e 15 do DVD.
27
Exemplos celta e asiático: faixas 20, 21 e 22 do CD 2, e exemplos esquimós e asiáticos faixas 24
a 29 do DVD.
28
Faixas 16 e 17 do CD 2, e faixas 2, e de 6 a 9 do DVD.
29
Músico - cantor egípcio-greco-italiano que transitou do rock à música de vanguarda de
John Cage , passando pelas músicas étnicas , cantou com o grupo de rock progressivo
italiano Área.
42
de prazer. (...) A desmetaforização da voz ocorre no trabalho de
Demetrio Stratos pela ruptura do tempo linear dessas
convenções vocais. Cria tempo de ritual, tempo do que é
simultâneo e não entendido como isolado e único. Limpa - se a
voz de qualquer significado fixo e sujeito a uma interpretação
“verdadeira”, definitiva. O que a voz de Demétrio reclama é a
improvisação, aquilo que no instante se apresenta como
irrepetível e não passível de fixação monolítica. A
indeterminação é desejada como sedução. Tempo de
erotização, prelúdio ao ato sexual, onde a voz é um aglomerado
de sussurros, gemidos, sopros e gritos. Grito do recém -
nascido, grito de guerra, grito do Xamã.... a voz de Stratos não
é " neutra " . Ela é puro desejo de um corpo que se canta.”
(Haouli, 1993, pg. 37).
Percebemos que uma nova metáfora, uma nova imagem
do corpo vai se formando ao longo do século XX a partir de tantos
questionamentos filosóficos, psicológicos, antropológicos, biológicos,
científicos que vão se cruzando e assim gerando uma outra sensibilidade
artística que irá buscar expressar esse outro corpo que se quer inteiro,
imperfeitamente natural, para além de todas as convenções civilizatórias
ao qual fora submetido. E claro, a voz do século XX, principalmente a
partir dos anos sessenta irá buscar a sua materialidade nesse novo
entendimento do corpo.
Na cada de 60 do século XX, Murray Schafer (1992)
escreveu em seu livro O Ouvido Pensante:
“O vocabulário básico da música se modificará.
Falaremos talvez de ”objetos sonoros”, de “envelopes” e
transientes de ataque em vez de ”tríades”, sforzando e
appoggiatura. Sons isolados serão estudados mais
atentamente, e se prestará atenção aos componentes de seus
espectros harmônicos e às suas características de ataque e
43
queda. O estudo será talvez dirigido à descrição da música em
termos de freqüências exatas ou faixas de freqüência, em vez
da limitada nomenclatura do sistema tonal. (pg. 122) (...) A
psicologia e a fisiologia da percepção de padrões auditivos
suplantarão muitos estudos musicais passados, em que os
sons musicais eram emudecidos por exercícios escritos, (Os
livros tradicionais de teoria negam vida aos sons, considerando-
os como cadáveres imóveis.)” (Schafer, 1992, pg. 123).
Ainda Murray Schafer:
“Quanto mais a ngua se torna civilizada, tanto
menor a quantidade de exclamações e interjeições , menos os
risos e inflexões que a voz adota . O lingüista Otto Jespensen
conjeturou sobre as razões para isso : Agora , é uma
conseqüência do avanço da civilização que a paixão seja
moderada , e , desse modo , podemos concluir que a fala dos
homens não civilizados e primitivos era mais apaixonadamente
agitada que a nossa , mais parecida com o canto“ (Schafer,
1992, pg. 235)
“Não comecei com o canto tradicional. Pelo
contrário, minha intenção foi trabalhar com o som vocal bruto,
recomeçar tudo como os aborígines , que nem sabem a
diferença entre fala e canto, significado e sonoridade. Gostaria
de poder cantar esta parte, e entoa-la, sussurrá-la e gritá-la.
Quero tirá-la de seu sarcófago impresso. Ela precisa ser tocada
no instrumento humano” (Idem, pg. 208).
“Como podemos liberar a linguagem de seu
sarcófago impresso? Como podemos quebrar os ataúdes
cinzentos de murmúrios e permitir que as palavras uivem da
página, como que possuídas por espíritos? Os poetas tentaram.
44
Primeiro, os dadaístas e futuristas, e agora os poetas
concretistas de nosso tempo.” (Idem, pg. 236).
Nesse início de século XXI tudo isso ainda é algo a ser
muito explorado. Ainda estamos abrindo nossa escuta para outros sons
que o corpo é capaz de produzir e disso fazer música. Esta voz
contemporânea é fruto, portanto, de um novo entendimento do corpo, que
por sua vez se abre a uma nova escuta.
Com o resgate do corpo, a voz passa a habitar o corpo
total, e dessa forma incorpora todos os sons possíveis que o corpo é
capaz de produzir. Ao mesmo tempo se abre e se permite a escuta de
outros sons outrora banidos do universo da arte.
A existência dessa voz ocorre na medida em que o corpo
se liberta, sendo isso um processo encadeado a partir de várias frentes,
onde a experiência e legado de Antonin Artaud foram os mais radicais e
seminais, - muito provavelmente por trabalhar com profundidade em
termos dessa unidade corpo-voz -, porém não foram únicos
.
Nesse
sentido podemos pensar também na influência da dança de Nijinsky, Mary
Wigman ou Isadora Duncan
30
sobre corpos e mentes daquele início do
século XX.
No entanto, irão ainda transcorrer cadas, até o final dos
anos 50, para que uma nova estética da voz principiasse a se configurar,
cruzando três influências decisivas: as pesquisas da poesia fonética e
sonora, as pesquisas teatrais com corpo e voz, e as músicas concreta,
eletroacústica e indeterminada.
Este novo perfil da voz inicia-se no final dos anos 50,
desenvolve-se nos anos 60 e 70 do século XX, e caminha até os nossos
dias de século XXI, quando agora, aos poucos, vai sendo descoberta.
Esta demora deve-se à sua difícil aceitação, pois no âmbito da música
30
Sobre esses artistas ver faixas 53, 54 e 55 do DVD. Importantes dançarinos, artistas do corpo do
começo do século XX, que muito contribuíram para a revolução corporal na dança, abriram
caminho para a dança moderna, e a uma nova forma de se vivenciar o corpo.
45
erudita ainda é muito forte a estética do bel canto, do canto lírico, e essa
nova estética vocal, já não tão nova, é encarada como não música, como,
aliás, é encarada boa parte da sica contemporânea, por grande parte
das pessoas.
Digo no âmbito da música erudita, pois se considerarmos
também a música popular, ou a sica popular experimental, a qual
engloba procedimentos ditos populares com pesquisas da sica erudita
contemporânea, veremos que vários procedimentos englobando o ruído
na voz foram largamente utilizados, a ponto de se tornarem o próprio
estilo de se cantar, o próprio referencial da voz moderna. Não é assim
com todas as formas de rock? Não foi uma das coisas mais evidentes que
o rock configurou? A explosão do corpo e da voz em larga escala? O
grito, a voz primal, as risadas, os gemidos de dor e de prazer, urros e
suspiros, som de cuspe, de vômito, palavras sem valor semântico, voz
usada em seus registros limites, canto falado, etc, sempre foram
constituintes da voz no rock, em maior ou menor destaque, mais ou
menos experimental, mas sempre foram o seu principal diferenciador.
Vale lembrar que o próprio Demetrio Stratos (já citado), antes de fazer o
seu trabalho solo no âmbito da música contemporânea, cantava no grupo
italiano de rock progressivo Area.
No campo da música contemporânea, a estética da voz
contemporânea se forjou a partir de três grandes vetores, comentados,
a saber: as transformações radicais da música no século XX, sobretudo
com o advento da música eletroacústica; da poesia, com o surgimento da
poesia fonética e posteriormente a poesia sonora; e as pesquisas teatrais
com a voz. Veremos esses pontos melhor detalhados a seguir.
46
47
Capítulo 2
Influências Históricas
C
omo dissemos anteriormente, a configuração de uma
nova vocalidade, que passa a existir a partir de uma outra estética vocal
que não a do bel canto, que inclui o ruído, os vários sons possíveis do
aparelho fonador e uma nova concepção e vivência do corpo, formou-se
ao longo do século XX, sendo fruto de três grandes influências: as
pesquisas teatrais aqui representadas por um de seus maiores
investigadores, Antonin Artaud; as pesquisas poéticas dos poetas da
poesia fonética e sonora; e as transformações por que passou a música
neste século com todos os seus questionamentos e ampliação do próprio
conceito do que pode ou não ser música.
A voz como um elemento corporal, poético e musical,
fazendo parte de um ser em relação com o mundo e suas
transformações, não poderia obviamente passar imune a todas essas
revoluções. Assim, podemos entender o seu percurso e a nova forma que
assume enquanto estética musical, ou tão somente estética sonora.
Neste capítulo iremos ver mais detalhadamente estas
influências.
48
2.1 Pesquisas Teatrais
Antonin Artaud
A
ntonin Artaud, poeta, ator, dramaturgo, nasceu em 1896
em Marselha e morreu em 1948 em Paris. O seu trabalho inclui poemas
em prosa e verso, roteiros de cinema, diversas peças de teatro, inclusive
uma ópera, ensaios sobre cinema, pintura e literatura, notas e manifestos
polêmicos sobre teatro, notas sobre projetos não realizados, um
monólogo dramático escrito para rádio
31
, ensaios sobre o ritual do peyote
entre os índios Tarahumara do México, aparições como ator em dois
grandes filmes e outros menores, e centenas de cartas, que são a sua
forma mais dramática de expressão.
Concebeu um teatro onde não haveria nenhuma distância
entre ator e platéia, onde todos seriam atores e todos fariam parte do
processo, ao mesmo tempo.
Contra a tradição racionalista, buscou gestos e sons
primevos, onde estes possuem força encantatória. Buscou viver o teatro
como uma pulsão de vida, onde não há separação entre vida e arte.
Muito se pode falar de Artaud, tamanha é a riqueza de seu
legado e por ter sido um visionário que acabou por ser resgatado e
compreendido nos libertários anos 60 do século XX, quando serviu de
referência para as várias revoluções em curso: artísticas, políticas,
comportamentais. Sua obra O teatro e seu duplo (publicada em Paris em
1938) tornou-se um dos principais escritos sobre teatro do século XX, e
referência para grandes diretores como Peter Brook e Jerzy Grotowsky.
Artaud buscava um teatro com dança, gritos, sombras,
iluminação, pouco diálogo e muita expressão corporal, indo na contramão
31
Essa obra chama-se Pour em finir avec le jugement de Dieu (Para acabar com o julgamento de
Deus). Foi realizada em novembro de 1947 na Radiodiffusion française, mas acabou sendo
proibida de ir ao ar. Uma amostra está presente em duas faixas do CD 1, faixas 12 e 13, e na faixa
34 do DVD sobre Antonin Artaud.
49
do teatro naturalista francês, muito retórico e completamente subordinado
ao texto.
Suas propostas sobre teatro são hoje práticas correntes: a
criação coletiva, a improvisação em cena, o primado do gestual e da
expressão corporal, união palco e platéia, o happening, a performance; as
correntes de pensamento da chamada contracultura são de alguma forma
um legado de Artaud, conforme nos lembra o escritor e poeta Cláudio
Willer (apud Nogueira, 2007)
32
.
No entanto, não é nosso objetivo explanar sobre sua obra
e vida, mas tão somente enfocar alguns conceitos sobre voz, palavras e
corpo,- aqueles naturalmente que são pertinentes a esse trabalho.
Antes de qualquer coisa falemos um pouco sobre a
glossolalia, usada por Artaud. Glossolalia é entendida como o dom de
falar línguas desconhecidas, num sentido religioso. Também pode ser
entendido num sentido mais amplo, como quer Oliveira Junior (2004,
pg.18): “considero a glossolalia como a capacidade humana de produzir
uma vocalização cuja característica constituidora é justamente a ausência
de referencialidade e, na quase totalidade dos casos, a inexistência de
estrutura rígidas e pré-definidas; sua abertura”. Esse tipo de vocalização
é algo presente em muitas culturas desde a antiguidade; da fala
enigmática das pitonisas do oráculo de Delfos aos experimentalismos
vocais dadaístas, e, portanto, não é invenção de Artaud. No entanto, ele
aprofundou a materialização desta vocalidade enquanto fazer artístico,
abrindo caminho para a sua busca do poder espacial das palavras,
quando as palavras são tratadas como material concreto (vibração
sonora). Em seu dizer:
“Não se trata de suprimir a palavra do teatro,
mas de fazê-la mudar sua destinação, (...) Ora, mudar a
destinação da palavra no teatro é servir-se dela num sentido
concreto e espacial, na medida em que ela se combina com
tudo o que o teatro contém de espacial e de significação, no
32
Nogueira, Lucila. Artaud e a reinvenção do teatro europeu. Disponível em
www.revista.agulha.nom.br/ag52artaud.htm. Acessado em agosto/2007.
50
domínio concreto; é manipulá-la como um objeto sólido e que
abala coisas, primeiro no ar e depois num domínio infinitamente
mais misterioso e secreto (...)”
(
Artaud, 1999, pg 80
).
Para ele, era fundamental ocupar o espaço sonoramente,
para além do habitual que se ouvia.
“Ninguém mais sabe gritar na Europa, e
especialmente os atores em transe não sabem mais dar gritos.
Quanto às pessoas que sabem falar e que se esqueceram
de que tinham um corpo no teatro, também se esqueceram de
usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais, não é nem
mesmo um órgão, mas sim uma monstruosa abstração que
fala: os atores, na França, agora sabem falar” (Idem, pg.
160).
Para Artaud, era claro a integração do som ao gesto ao
movimento à vida, e isso justamente deveria ser buscado e trabalhado:
“Mas, se voltarmos, por pouco que seja, às
fontes respiratórias, plásticas, ativas da linguagem, se
relacionarmos as palavras aos movimentos físicos que lhes
deram origem, se o aspecto lógico e discursivo da palavra
desaparecer sob seu aspecto físico e afetivo, isto é, se as
palavras em vez de serem consideradas apenas pelo que
dizem gramaticalmente falando forem ouvidas, sob seu ângulo
sonoro, forem percebidas como movimentos, e se esses
movimentos forem assimilados a outros movimentos diretos e
simples, tal como os temos em todas as circunstâncias da vida
e como os autores não os têm suficientes em cena, a
linguagem da literatura se recomporá, se tornará viva;” (Idem,
pg. 140,141)
51
“Trata-se de nada menos do que mudar o ponto
de partida da criação artística e de subverter as leis habituais
do teatro. Trata-se de substituir a linguagem articulada por uma
linguagem de natureza diferente, cujas possibilidades
expressivas equivalerão à linguagem das palavras, mas cuja
fonte será buscada num ponto mais recôndito e mais recuado
do pensamento. A gramática dessa nova linguagem ainda está
por ser encontrada. O gesto é sua matéria e sua cabeça; e, se
quiserem, seu alfa e seu ômega. Ele parte da NECESSIDADE
da palavra, mais do que da palavra formada. Mas,
encontrando na palavra um beco sem saída, ele volta ao gesto
de modo espontâneo. De passagem ele roça algumas das leis
da expressão material humana. Mergulha na necessidade.
Refaz poeticamente o trajeto que levou à criação da linguagem.
Mas com uma consciência multiplicada dos mundos resolvidos
pela linguagem da palavra e que ele faz reviver em todos os
seus aspectos. (...) todas essas operações através de gritos,
onomatopéias, sinais, atitudes e modulações nervosas, lentas,
abundantes e apaixonadas, plano a plano, termo a termo, ele
as refaz” (Idem, pg. 129,130).
Buscando romper com o tradicional teatro da palavra,
Artaud vai buscar o teatro do corpo, com o que esse tem de material, de
espacial, de concreto, de vivo. Um corpo vivo onde pulsa um centro frágil
e turbulento que as formas não alcançam, (...) cujas possibilidades
expressivas equivalerão à linguagem das palavras, mas cuja fonte se
buscado num ponto mais recôndito e mais recuado do pensamento
(Artaud, 1999, pg.8).
Antes da palavra, a necessidade da palavra. A
necessidade da palavra que leva a um gesto espontâneo, que por sua vez
nutre a palavra com a expressão material humana.
Ele nos fala de um corpo presente, pleno, de um corpo que
é, que não se esquece de usar a garganta para muito além da fala
52
racional, que rompe a linguagem para tocar na vida, esse “centro frágil e
turbulento que as formas não alcançam” (Idem, pg.8).
Artaud não quer suprimir a palavra, mas dar-lhe outro
destino. Concebendo-a como um objeto sólido e espacial atentará para
seu aspecto vibracional, pois se forem ouvidas sob seu ângulo sonoro,
forem percebidas como movimentos, (...) a linguagem da literatura se
recomporá, se tornará viva.
De acordo com Esslin (1978), “para comunicar emoção,
substância da poesia, palavras abstratas o eram suficientes. Daí a
poesia utilizar aspectos concretos da linguagem, que se comunicam
diretamente ao corpo, elementos tais como a qualidade musical das
palavras, a natureza sensual dos sons de que são feitas, a qualidade
rítmica do poema que ativa diretamente os ritmos próprios do corpo: o
latejar do sangue e a enorme multidão de associações não verbais
inerentes à linguagem e ativadas pelas palavras.”
Artaud chega, pois, à compreensão, na década de 1930,
de que “tanto o instrumento a ser utilizado na transmissão dessa espécie
de poesia quanto o seu receptor, a ser exposto a ela para receber-lhe
apropriadamente o impacto, era de fato o corpo humano” (Esslin, 1978).
Como Nietzsche, identificava o teatro com as forças
dionisíacas, com toda a sua violência e mistério, turbulência, paixão e
êxtase musical. Mas, contrariamente ao filósofo, rejeitava totalmente o
elemento apolíneo. Daí o seu repúdio a usar as palavras num sentido de
definição, no domínio da precisão, de pensar que a obsessão pela palavra
clara que diga tudo leva ao ressecamento das palavras (Artaud, 1999,
pg.139).
Contudo, os pontos de encontro com Nietzsche são
muitos, sobretudo a grande ênfase, a importância decisiva concedida ao
corpo. Assim dizia o filósofo:
“Desgraçado o miserável a quem o corpo
parece mau e a beleza diabólica! Atrás de teus pensamentos e
53
sentimentos acha-se o corpo e no corpo encontra-se o “Eu” que
só a ti pertence: a terra ignota”.
33
As idéias de Artaud também encontravam eco em Freud,
para quem o mal-estar na civilização ocidental era devido à repressão da
vida instintiva, inconsciente e impulsiva do homem.
Antonio Januzelli nos diz que Artaud pretende um retorno
às reações iniciais do ser, com os gestos purificados de todo resíduo
cotidiano, sugerindo a busca do sopro vital e do grito orgânico (Aslan,
Odette em L’acteur au XX siècle apud Januzelli, 2003, pg.21).
Em Artaud,
“A voz, como fonte de energia sonora, deve
repercutir sobre a sensibilidade e os nervos do espectador
através de qualidades e vibrações de sons não habituais. Não
há a intenção de suprimir o texto ou a fala no teatro, mas
libertá-lo da tutela de ambos, utilizando a palavra num sentido
concreto e especial, exprimindo o que de hábito ela não
exprime. A palavra deverá ser manipulada “como um objeto
sólido, um objeto que derruba e perturba as coisas”. É vital
reuni-la de novo aos movimentos físicos que a suscitam,
tomando-a em sua sonoridade, e não exclusivamente no seu
significado gramatical; apreendê-la enquanto movimento que é,
retornando desse modo às origens ativas, plásticas e
respiratórias da linguagem. As palavras deverão ser
interpretadas não no sentido lógico, mas também no seu
sentido de sortilégio, o que dará maior amplitude à voz, tirando
partido das vibrações, das modulações e evoluções de toda
espécie” (Januzelli, 2003, pg.22).
33
Nietzsche, Fragmentos dos Inéditos Póstumos, Quinzaine Littéraire, nº28, 1967. Apud Virmaux,
Alain. Artaud e o Teatro (1970)
54
Romper a linguagem para tocar na vida. Essa frase nos
diz muito de sua busca em direção ao sopro vital, ao grito orgânico. Pois
podemos dizer que a linguagem aqui, é toda a cultura, todo o pensamento
estruturado, cristalizado, fossilizado, toda a representação de papéis
sociais, que levam a linguagem a uma expressão de palavras ressecadas,
sem vida, sem verdade. E vida para Artaud não é o “reconhecido pelo
exterior dos fatos, mas essa espécie de centro frágil e turbulento que as
formas não alcançam”.
Centro frágil, informe, que precisa se expressar, que
precisa se libertar, ganhar o espaço através da voz encarada como um
objeto sólido, que vibra e que abala as coisas, onde “suas conseqüências
vibratórias não são tiradas num único plano, mas em todos os planos do
espírito ao mesmo tempo” (Artaud, 1999, pg.80), como no teatro oriental
que tanto o marcou.
Importante observar que ele não acreditava que isso
pudesse ser realizado por qualquer pessoa, assim levianamente. Não, era
necessário preparação. “Isto leva a rejeitar as limitações habituais do
homem e a tornar infinitas as fronteiras do que chamamos realidade”
(Idem, pg.8).
Portanto, o mergulho na necessidade da palavra, na
libertação do centro frágil e turbulento para se “refazer poeticamente o
trajeto que levou à criação da linguagem”. Daí a busca do sopro vital, do
grito orgânico. Para uma palavra livre, um corpo livre. Para uma palavra
viva, um corpo vivo, uma garganta viva, uma voz que, como fonte de
energia sonora, deverá repercutir sobre a sensibilidade e os nervos do
espectador, através de qualidades e vibrações de sons não habituais.
Essas vibrações de sons incomuns são almejadas no
plano sonoro geral, ou seja, a busca desse entendimento igualmente
para os instrumentos musicais.
“A necessidade de agir diretamente e
profundamente sobre a sensibilidade pelos órgãos convida, do
55
ponto de vista sonoro, a que se procurem qualidades e
vibrações de sons absolutamente incomuns, qualidades que os
instrumentos musicais atuais não possuem, e que levam ao uso
de instrumentos antigos e esquecidos, ou a criar novos
instrumentos. Elas também levam a que se procurem, além da
música, instrumentos e aparelhos que, baseados em fusões
especiais ou em novas combinações de metais, possam atingir
um novo diapasão da oitava, produzir sons ou ruídos
insuportáveis, lancinantes” (Idem, pg. 109).
Percebemos com esse seu dizer uma sintonia com o que
alguns músicos nessa mesma época procuravam: qualidades e vibrações
de sons absolutamente incomuns e a necessidade de criar novos
instrumentos.
“Pude encontrar nos escritos de Artaud, diz
Pierre Boulez, “as preocupações fundamentais da música atual;
tê-lo visto e ouvido ler seus próprios textos, acompanhados de
grito, ruídos e ritmos, mostrou-nos como efetuar uma fusão do
som e da palavra, como fazer explodir o fenômeno, quando a
palavra nada mais consegue; em resumo, como organizar o
delírio” (Virmaux, 1970).
Virmaux (1970) nos conta de que, embora não tenha
sido concretizado nenhum trabalho, Artaud teve contato com Olivier
Messiaen, e Edgar Varèse no ano de 1932, quando teve com esse um
projeto de ópera, mas que infelizmente foi momentâneo e dele não restou
nada além do libreto inacabado de o mais firmamento, quando teria
havido o projeto de uma música que envolvesse a platéia.
De qualquer forma, a importância da música para Artaud é
inegável, bem como a sua sintonia com novas idéias musicais que
estavam em andamento nas primeiras décadas do culo XX. Idéias
como, por exemplo, de considerar o som como um objeto sólido
56
vibracional a ocupar o espaço com diretrizes e forças, e a necessidade de
novos instrumentos que possam gerir novos sons e ruídos.
Podemos dizer que o entendimento da voz como fonte de
energia sonora, como um novo instrumento vibracional que lança palavras
como objetos sólidos no ar a partir de um novo corpo liberto das
repressões culturais é um pensamento também musical, além do
filosófico existencial e teatral. Não à toa, Pierre Boulez diz que pôde
encontrar nos escritos de Artaud, “as preocupações fundamentais da
música atual”, que ele “mostrou-nos como efetuar uma fusão do som e da
palavra, como fazer explodir o fenômeno”.
Em Artaud, tudo se encontra, tudo se funde, pois foi um
homem absolutamente sensível e permeável a tudo o que ocorria no
mundo, ou o que estava para acontecer. Assim, muito de suas idéias com
relação às palavras vêm das experiências e pesquisas poéticas do
experimentalismo futurista e dadaísta, e antes disso, do movimento
surrealista de André Breton, do qual havia participado ativamente no seu
início até romper com eles, entre outras coisas, porque não acreditava e
não queria militar no partido comunista. Para Artaud, os marxistas e os
surrealistas eram revolucionários que não revolucionavam nada, pois não
se atreviam a atacar as verdadeiras causas da dor.
Os futuristas pretendiam, desde a década de 10 do século
XX, o desprezo pela sintaxe, a destruição da literatura tradicional e a
instauração de uma “arte de vida explosiva”. O dadaísmo desenvolveu
uma atividade poética de natureza teatral. “Para que o público seja
envolvido e atingido no âmago, é preciso não mais se dirigir à sua razão,
e sim ao seu corpo, a todo o seu ser. Anteriormente a Artaud, Dada
descobre a necessidade de forjar uma nova linguagem que agite e faça
vibrar em lugar de simplesmente significar. Daí a importância conferida à
entonação e ao ritmo : a palavra é gritada ou escandida” (Virmaux, 1970).
Em Artaud, no entanto, tudo é levado até as últimas
conseqüências, e desse mergulho absoluto nasce seu teatro, suas
concepções sobre a importância de um novo corpo, uma nova voz, uma
nova palavra.
57
“Quando recito um poema o o faço para ser
aplaudido, senão para sentir corpos de homens e mulheres...
Digo “corpos”, a materialização corporal de um ser em poesia”
(Stoppelman e Hardmeir, !998
)
“Há que se inventar uma nova voz para falar e
uma nova voz para escrever. Devo separar-me de tudo o que já
fiz para recomeçar. Também tenho que refazer meu corpo.
Uma revolução fisiológica total” (Idem).
Contudo, como foi comentado anteriormente, ele se
preocupava com a preparação. Em O teatro e Seu Duplo um capítulo
intitulado Um Atletismo Afetivo onde compara o ator a um atleta, mas a
um atleta do coração. Aqui ele se preocupa com algumas questões
técnicas, a começar pela respiração, que encara como fato primordial.
“Não há dúvida de que a cada sentimento, a
cada movimento do espírito, a cada alteração de afetividade
humana corresponde uma respiração própria” (Artaud, 1999,
pg. 152).
“A crença em uma materialidade fluídica da alma
é indispensável ao ofício do ator. Saber que uma paixão é
matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria,
sobre as paixões, um domínio que amplia nossa soberania.
Alcançar as paixões através de suas forças em vez de
considerá-las como puras abstrações confere ao ator um
domínio que amplia nossa soberania.” (...) “Saber que existe
uma saída corporal para a alma permite alcançar essa alma
num sentido inverso e reencontrar o seu ser através de uma
espécie de analogias matemáticas. Conhecer o segredo do
58
tempo das paixões, dessa espécie de tempo musical que rege
seu batimento harmônico, é um aspecto do teatro em que
nosso teatro psicológico moderno há muito não pensa” (Idem,
pg. 154).
“O que a respiração voluntária provoca é uma
reaparição espontânea da vida” (Idem, pg. 155).
Baseado nos ensinamentos da Cabala, Artaud desenvolve
um sistema de tríades de respiração e técnicas de expressão. É algo um
pouco obscuro e complexo, mas o fundamento é o de certo número de
tríades baseadas em: 1) inspiração; 2) expiração; 3) retenção de fôlego.
Ligando a maneira de emissão da voz a cada uma dessas três
possibilidades, produzem-se diferentes coloridos expressivos; o mesmo
ocorre com outra tríade, a da colocação da voz: 1) no diafragma; 2) no
peito, ou 3) na cabeça. Tomando-se estas seis possibilidades de
expressão como as cores primárias, pode-se então variar e permutá-las,
colocando a voz na cabeça enquanto se expira, ou inspira, ou se retém a
respiração, e assim por diante. Utiliza ainda conceitos como masculino,
feminino e neutro, faz referência ao yin, yang e aos 380 pontos da
acupuntura chinesa (Esslin, 1978).
Tudo isso nos mostra o quanto era nítido para ele o
trabalho a partir do corpo, a base sobre o qual tudo começa. Um
entendimento que muito depois se fez presente de uma forma
irradiada.
A influência marcante de Antonin Artaud, de suas idéias
estéticas, filosóficas, existenciais, políticas, revolucionárias, foi vingar
muito depois, sobretudo nos libertários anos sessenta, quando até o
movimento estudantil na França o reivindicou como bandeira.
Peter Brook, Charles Marowitz, o teatro de vanguarda
norte-americano, notadamente o Living Theatre de Julian Beck e Judith
Malina, o Open Theatre de Joseph Chaikin e o Performance Group de
59
Richard Schechner; o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnoujkine, também
Jean-Louis Barrault na França, Luca Ronconi na Itália, os diretores latinos
na França Jorge Lavelli, Jerome Savary e Victor Garcia, todos são
fortemente influenciados pelas idéias de Artaud (Esslin, 1978). E no
Brasil, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa.
Além dos espetáculos orientados sob sua influência, o
postulado de Artaud de que o teatro devia fundir-se com a vida real, para
compor um acontecimento genuíno, teve certamente seu papel em
inspirar e influenciar o movimento por uma nova forma: o happening
(Esslin, 1978). Forma de arte que se alastrou nos anos 60 e 70 do século
XX, onde havia uma fusão de teatro, música, artes plásticas, dança,
expressão corporal, em torno de uma improvisação coletiva.
O que nos interessa aqui é perceber e entender as
influências que marcaram a forma de uma nova concepção de voz, que
por sua vez, como venho assinalando, vem de uma nova concepção de
corpo que se quer pleno, vivo, que quer expressar essa espécie de
centro frágil e turbulento que as formas não alcançam.
A busca de Artaud,
Do sopro vital e do grito orgânico;
Da necessidade da palavra que leva a um gesto espontâneo, que
por sua vez nutre a palavra com a expressão material humana, que
mergulha na necessidade e refaz poeticamente o trajeto que levou à
criação da linguagem, (...) todas essas operações através de gritos,
onomatopéias, sinais, atitudes e modulações nervosas, lentas,
abundantes e apaixonadas, plano a plano, termo a termo;
De um corpo vivo, um corpo que é, que não se esquece de usar a
garganta para muito além da fala racional, que rompe a linguagem para
60
tocar na vida, esse “centro frágil e turbulento que as formas não
alcançam”;
Da voz, como fonte de energia sonora, que deve repercutir sobre a
sensibilidade e os nervos do espectador através de qualidades e
vibrações de sons não habituais;
Em não usar as palavras num sentido de definição, no domínio da
precisão, de pensar que a obsessão pela palavra clara que diga tudo leva
ao ressecamento das palavras;
Do “ponto de vista sonoro, a que se procurem qualidades e
vibrações de sons absolutamente incomuns, qualidades que os
instrumentos musicais atuais não possuem, e que levam ao uso de
instrumentos antigos e esquecidos, ou a criar novos instrumentos”.
“Além da sica, de instrumentos e aparelhos que, baseados em
fusões especiais ou em novas combinações de metais, possam atingir um
novo diapasão da oitava, produzir sons ou ruídos insuportáveis,
lancinantes”;
De um domínio da respiração, para se ter um domínio do corpo e da
expressão plena;
De inventar uma nova voz para falar e uma nova voz para escrever;
De separar-se de tudo o que fez para recomeçar. De refazer seu
corpo, de buscar uma revolução fisiológica total;...
61
... Nos faz entender um pouco mais sobre as
manifestações da voz contemporânea, sua materialização enquanto um
ideal artístico, enquanto uma determinada estética.
Não quero, no entanto, dizer que todas as realizações de
obras musicais, onde essa concepção do que chamo de voz
contemporânea, sejam descendentes em linha absolutamente direta de
Antonin Artaud. Quero apenas apontar influências que, direta ou
indiretamente, estão presentes até por uma questão de contigüidade
histórica.
62
2.2 Poesia Fonética
e
Poesia Sonora
“A palavra é o próprio homem. Somos feitos de
palavras. (...) A palavra é uma ponte através da qual o homem
tenta superar a distância que o separa da realidade exterior.”
34
Se a palavra é uma ponte para superar a distância que nos
separa da realidade exterior, o como construir essa ponte e a própria
ponte, seu material, sua forma, sua direção irá variar muito através da
história e da geografia.
É sabido que após o surgimento da escrita e o seu incrível
ascendente desenvolvimento, a oralidade, a transmissão oral e a sua
conseqüente força e veemência vão se enfraquecendo, se perdendo e
praticamente saem de cena. A poesia torna-se então, majoritariamente,
uma literatura escrita, para ser lida em silêncio. Não que não houvesse
eventualmente declamações, mas, digamos, não era essa a intenção
primeira. Perde-se a intenção da presença, da corporeidade, da
espacialidade do corpo e da voz. Essa dimensão é que vai ser resgatada
pela poesia fonética e sonora como um dos seus pressupostos
primordiais. Voltaremos a falar sobre isso mais à frente.
Identificamos a chamada poesia fonética no período que
vai das vanguardas históricas
35
até o surgimento e desenvolvimento da
34
Paz, Otávio. O Arco e a Lira (1956)
35
Dadaísmo, Futurismo italiano e russo movimentos artísticos que eclodiram no começo do
século XX na Europa. Mais sobre o dadaísmo e futurismo italiano faixas 56-59 do DVD.
63
aparelhagem eletromagnética, e a poesia sonora a partir daí, que seria da
década de 50 do século XX até os nossos dias, agora em ambiente
digital. Toda a poesia fonética se dá em solo europeu e a poesia sonora
começa e se irradia para as Américas e para alguns outros pontos do
globo, sobretudo após a intensa intercomunicação surgida com a internet.
Recapitulando o que havia sido dito anteriormente no
capítulo um, a poesia fonética surge com os poetas futuristas e dadaístas,
com o objetivo de criar uma linguagem fonética destituída de carga
semântica. Assim, o aparelho fonador vira um laboratório para todas as
possibilidades. O Dadaísmo procura subverter a língua através da ironia e
do humor, baseados numa linguagem pré verbal, onde o próprio nome
Dada viria do balbucio infantil. O Futurismo russo trabalha
contemporaneamente ao Dada a mesma proposta de linguagem sem
sentido, de palavras destituídas de significado. Mas enquanto o Dada se
baseia na linguagem das crianças em sua procura de uma comunicação
pré-gramatical, o futurismo russo recupera a linguagem dos loucos e dos
folclores dialetais, criando uma linguagem denominada por seus
representantes de transmental. o futurismo italiano busca nas parole in
libertà, a utilização de onomatopéias, reconstruindo a nova sonoridade da
vida moderna. O letrismo, algumas décadas depois (1947), radical como o
Dada na experimentação acústica com sons não verbais produzidos pelo
aparelho fonador humano (arroto, tosse, espirro, suspiro, etc.) é o último
movimento de vanguarda anterior ao aparecimento da aparelhagem
eletromagnética. A partir de então surge a poesia sonora.
A poesia fonética, ou sonora, é aquela poesia que evita
usar a palavra como mero veículo de significado, e a composição do
poema ou texto fonético está estruturado em sons que requerem uma
realização acústica. No entanto, diferencia-se da poesia declamada ou
recitada tradicional através da introdução de técnicas fonéticas, ruídos e
por seu caráter experimental. Nos poemas fonéticos, desenvolvem-se
elementos básicos da música como intensidade, dinâmica, ritmo, cor
timbrística, duração, etc. Não se trata de palavras e música, mas música
das palavras através da mídia voz. Daí a intensa pesquisa e laboratório
64
vocal, que, com o letrismo, se chegará a buscar a música da voz anterior
às próprias palavras.
“Que pretendiam afinal os futuristas? Desde antes de
1914, preconizavam o desprezo pela sintaxe, a destruição dos veículos
literários tradicionais e a instauração de uma arte de vida explosiva
(Virmaux, 1978).
Os futuristas italianos compunham seus poemas sem
adjetivos, advérbios, verbos ou signos de pontuação; utilizavam uma
colagem de substantivos que evocavam uma sucessão contínua de
imagens até chegar à base mais primitiva do idioma, à onomatopéia e ao
ruído. Este se materializou na Arte do Ruído (1913) de Luigi Russolo, uma
das grandes contribuições para a sica moderna. Neste livro um
capítulo intitulado Os ruídos da linguagem em que ele discorre sobre a
importância das consoantes, pois são estas que materializam os ruídos
na linguagem:
“Vogais representam som na linguagem,
enquanto consoantes claramente representam ruído. Portanto,
ruído - o qual encontra tanta hostilidade quando tentamos trazê-
lo para dentro do reino da música é uma parte muito
importante da linguagem, e também do canto.
A linguagem tem uma riqueza de timbre
desconhecida para a orquestra, a qual deve provar que a
própria natureza teve que recorrer aos timbres do ruído quando
desejou aumentar e enriquecer os timbres do magnífico
instrumento que é a voz humana. É importante considerar que
não existe ruído na natureza ou vida (ainda que estranho e
bizarro no timbre) que não possa ser adequadamente, ou até
mesmo exatamente, imitado através das consoantes. (...) Mas
somente os poetas futuristas, com suas palavras livres, eram
habilitados a ouvir o inteiro valor do ruído na poesia. Fazendo
uso do ruído nas onomatopéias, eles revelaram toda a enorme
importância desse elemento da linguagem, o qual teve
65
anteriormente que permanecer escravo das vogais. Por
séculos, poetas não souberam como fazer uso disso
efetivamente como fonte de expressão da linguagem. Nas
futuristas palavras livres, a consoante representando ruído é
finalmente adotada por seus próprios interesses; e como na
música, serve a multiplicar os elementos de expressão e
emoção” (Russolo, 1986, pgs. 56,57).
Marinetti através de seu manifesto “A declamação
dinâmica e sinóptica”
36
fixou as bases da declamação futurista em
oposição à simbolista. O poema deveria sair da página e ser recitado em
alta voz, devendo ser acompanhado das pernas e braços, podendo ser
acompanhado por diferentes instrumentos de percussão; poderia haver
também declamações simultâneas. O futurismo pretendia acabar com a
imagem do poeta romântico, algo melancólico e focado em seus
sentimentos, e contrapor uma ação dinâmica e um espetáculo visual e
fonético. O poema é estruturado então como uma partitura para a
vocalização teatralizada. “Marinetti não quer o silêncio, mas o ruído, não a
lacuna, mas o preenchimento do excesso, não o rigor, mas a
manifestação espontaneísta e a ausência de limites, não a leitura
silenciosa, mas o berro e o estrondo” (Agra, 1986).
Além de Marinetti, um importante poeta foi Fortunato
Depero, o criador da Onomalíngua, espécie de dialeto de onomatopéias.
Nas poesias futuristas, os elementos gráficos como corpo
da letra, direção espacial, disposição das palavras, tipo de fonte, ganham
total importância, pois funcionam como uma referência sonora para
fortíssimos, pianíssimos, crescendos e diminuendos, e passam a ser
igualmente uma composição gráfica, isto é, um objeto gráfico, referência
para uma série de trabalhos posteriores que caminharam nessa linha,
como a poesia concreta brasileira.
Mas é a relevância da voz o elemento primordial para a
estética futurista. “O futurismo detona definitivamente o processo de
36
Disponível em www.uclm.es/artesonoro/FtMARINETI/html/DECLA.html.
66
entrada em cena da amplificação vocal, de entrada em cena da oralidade
como componente fundamental da poética moderna” (Agra, 1986).
Nas poesias futuristas de Marinetti a seguir, podemos
observar a composição gráfica que serve de guia para a vocalização. São
elas: Marcia futurista (1916) e Dune, declamazione futurista (1914):
37
37
Márcia futurista, 1916. Disponível em
www.uclm.es/artesonoro/FtMARINETI/html/marcha.html O áudio dessa poesia encontra-se na
faixa 6 do CD 1.
67
38
38
Disponível em www.ubu.com/sound/marinetti.html. O áudio desta poesia encontra-se na faixa 5
do CD1. Mais sobre o futurismo italiano na faixa 59 do DVD.
68
Os futuristas russos inventaram o conceito “zaum”. Eles
diziam que a língua comum escravizava, e a nova zaum - tornava livre
esta língua mais conceitual que real, e, sem um sentido racional,
mostrava as possibilidades de uma linguagem transmental. Uma
linguagem que buscava não um significado objetivo, mas um outro
significado. Linguagem essa que ganha sentido pela melodia da voz,
como as glossolalias, o poder de falar em línguas.
Assim se manifestou Alexei Krutchenik em sua Declaração
da Língua Transmental :
“1) O pensamento e a linguagem não podem
estar atrás do artista inspirado, que é, por isso, livre para
exprimir-se recorrendo não somente à língua comum ( ou dos
conceitos ) mas também a uma língua pessoal ( o criador é o
indivíduo ) e a uma língua privada de significado determinado
( ainda não cristalizado ) transmental. A língua comum põe
impedimentos, a livre permite exprimir-se com mais intensidade
( por exemplo: go osneg kajd etc ).
2) O zaum é a forma poética primigênia (no
sentido histórico do indivíduo). Na origem há um movimento
rítmico-musical, um proto-som (que o poeta deveria registrar,
pois que pode ser esquecido no desenvolvimento do
trabalho)”
39
.
Observa-se a busca da liberdade de criação e a busca de
uma expressão sonora primordial dando forma a essa liberdade.
Lúcio Agra (1986) nos informa que, em 1922, o devir
oralizante da poesia de vanguarda russa alcança seu apogeu na
publicação, na Alemanha, de Para a voz (Dliá Golossa), de Maiakowski,
título que pode ser entendido também como Para ler em voz alta.
Mas seriam os dadaístas que realmente se aprofundariam
na poesia fonética. Encontramos em 1897, um dadá antes do
39
Krutchenik, Alexei. Declaração da Língua Transmental. In Menezes, org., 1992, op. Cit.
69
movimento Dadá propriamente, o qual irá eclodir em 1916, em Zurique,
Suíça. O alemão Paul Scheerbart publica em 1897 o poema Kikakoku e
em 1905, Christian Morgenstern publica Das große Lalula. Notamos
referência aos idiomas infantis, às rimas cantadas, aos idiomas artificiais,
à onomatopéia e à imitação dos animais.
A seguir, esses poemas :
Paul Scheerbart: KIKAKOKU!
40
Ekoralaps!
Wiso kollipanda opolosa.
Ipasatta ih fuo.
Kikakoku proklinthe peteh.
Nikifili mopalexio intipaschi benakaffro - propsa
pi! propsa pi!
Jasollu nosaressa flipsei.
Aukarotto passakrussar Kikakoku.
Nupsa pusch?
Kikakoku buluru?
Futupukke - propsa pi!
Jasollu.......
40
Faixa 1 do CD1
70
Christian Morgenstern: Das große Lalula.
Kroklokwafzi? Semememi!
Seiokrontro - prafriplo:
Bifzi, bafzi; hulalemi;
quasti basti bo ...
Lalu lalu lalu lalu la!
Hontraruru miromente
zasku zes rü rü?
Entepente, leiolente
klekwapufzi lü?
Lalu lalu lalu lalu la!
Simarar kos malzipempu
silzuzankunkrei (;)!
Marjomar dos : Quempu Lempu
Siri Suri Sei ( )!
Lalu lalu lalu lalu la!
Ao contrário dos futuristas que acreditavam nas máquinas,
na velocidade, nas indústrias, os dadaístas duvidavam de tudo. Hugo Ball
inventou a anti-arte, a anti- poesia, “versos sem palavras” ou “poema de
sons”, juntamente com seus companheiros Tristan Tzara e Marcel Janco,
entre outros.
No Cabaret Voltaire, Zurique 1916, Ball estreou seu poema
Gadgi beri bimba e Karawane. Vestido com roupas de cartolina e chapéu
de feiticeiro, declamando como que em transe e provocando a platéia, o
Dadá desenvolveu, desde o início, uma atividade poética de natureza
teatral. O ruidismo de Russolo foi retomado e enriquecido com gritos e
71
suspiros, dando início à nova performance vocal. Tristan Tzara, Marcel
Janco e R. Huelsenbech exploraram o poema simultâneo e bruitista ( de
bruit- ruído) como L’amiral cherche une maison à louer ( O almirante
busca uma casa para alugar), onde os participantes assobiam, cantam,
falam e fazem ruído. Hugo Ball escreveu em seu diário:
o poema simultâneo cria o problema do valor
da voz. O órgão humano encarna a alma, a individualidade
errante entre os demônios que a acompanham. Os ruídos
representam o pano de fundo: todo o inarticulado, inexorável,
determinante. O poema deve elucidar o problema do homem
surpreendido no processo mecânico. De forma sintética e
generalizante mostra a luta entre a voz humana e um mundo
ameaçador, invasor e destruidor, de cujo ritmo sonoro é
impossível escapar.”
41
No entanto, Raoul Hausmann, também ele um poeta
adepto e criador da poesia fonética, diz que “está fora de dúvida que
Hugo Ball tenha feito essa invenção sozinha, a partir de seu próprio gênio,
ele foi sim inspirado por seus precursores russos, Khebnikov, Krutchenik
e Kandinsky, que, originariamente, ao lado de Scheerbart e Morgenstern,
foram os verdadeiros inventores da poesia fonética.”
42
A seguir, os poemas Karawane, de Hugo Ball e L’amiral
cherche une maison à louer
43
, de Tristan Tzara, Marcel Janco e
Huelsenbeck:
41
Disponível em www.uclm.es/artesonoro/hball/indiceHB.html e
www.elfloridobyte.com/navegaciones/1579/rima-primordial
42
Hausmann, Raoul. História da poesia fonética. In Menezes, 1992, op.cit.
43
Faixas 7 e 8 do CD1. Há também uma faixa (30) com Karawane no DVD.
72
L'a m i r a l c h e r c h e u n e m a i s o n à l o u e r
Poema simultáneo por R. Huelsenbeck, M. Janco, T. Tzara.
HUELSENBECK Ahoi ahoi Des Admirals gwirktes Beinkleid schnell
JANCO(cantando) Where the honny suckle wine twines ilself
TZARA Boum boum boum Il déshabilla sa chair quand les grenouilles
HUELSENBECK zerfällt Teerpappe macht Rawagen in der Nacht
JANCO(cantando) arround the door a swetheart mine is waiting patiently for me
I
TZARA humides commancèrent à bruler j'ai mis le cheval dans l'âme du
HUELSENBECK und der Conciergenbäuche Klapperschlangengrün sind milde
ach
JANCO(cantando) can hear the weopour will arround arround the hill
TZARA serpent à Bucarest on dépendra mes amis dorénavant et
HUELSENBECK verzerrt in der Natur chrza prrrza chrrrza
JANCO(cantando) my great room is
TZARA c'est très intéressant les griffes des morsures équatoriales
73
Mas seria Kurt Schwitters a figura mais influente da poesia
fonética. Foi o seu maior defensor e quem a desenvolveu melhor. Criou o
movimento MERZ
44
, onde buscava integração entre todas as artes, pois
acreditava que um domínio artístico se enriquece por outro. Assim como
pensava que todo o material percebido pelo olho é apropriado para a arte,
entendia que todos os sons encontrados são apropriados para a poesia.
Seu poema Ursonate , algo assim como canção primordial,
a canção Ur, ou sonata em sons primitivos (1922-32), é uma das maiores
contribuições à poesia fonética. Surgiu através da repetição do poema
cartaz “fmsbw” (1918) de Raoul Hausmann, e inclusive antes de chamar-
se Ursonate chamou-se Retrato de Raoul Hausmann.
O poema cartaz fmsbw :
45
44
Mais sobre o Merz, Schwitters, Ball, Tzara, Hausmann, Huelsenbech, nas faixaz 56, 57 e 58 do
DVD, a respeito do dadaísmo.
45
Disponível em www.uclm.es/artesonoro/r.hausmann/html/fmsb.html.
74
A Ursonate é estruturada como uma sonata, com
introdução de temas, exposição, desenvolvimento e final na primeira
parte, com largo na segunda parte, scherzo e trio na terceira parte, e
presto, desenvolvimento, resolução e cadência final na quarta parte.
Schwitters conseguiu gravá-la completa na Inglaterra onde
morreu em 1948 no exílio, mas sua Ursonate foi descoberta em
meados dos anos sessenta. É interessante observar que o texto escrito
da poesia funciona como uma partitura, que é seguida à risca pelo
intérprete. No entanto, essa peça de aproximadamente 35 minutos de
duração, possui uma partitura aberta, passível de várias interpretações e
reinvenções. Vejamos, a seguir, o largo e o scherzo
46
. Depois disso
teremos uma parte de sua explicação da Ursonate,
47
e finalmente o
poema Scherzotos :
46
Faixas 9 e 10 do CD 1, performance do próprio Schwitters; e faixas 16 e 17 do CD 2 com Jaap
Blonk (a cadenza e o largo, respectivamente). No DVD faixa 2, com Jaap Blonk, e faixa 31, uma
recriação gráfica com performance de Schwitters.
47
Textos encontrados em www.uclm.es/artesonoro/archivo.html
75
76
77
78
79
Scherzotos
1936-37
80
Como a Ursonate, este último poema, o Scherzotos
48
, de
1936, ganha sentido e relevo através da vocalização. Aqui
antecipando sons orgânicos do aparelho fonatório, como tosse, pigarro,
espirro, os quais serão explorados artisticamente, no decorrer do século
XX. Observamos também o uso enfático das consoantes para a obtenção
de ruídos, conforme havia assinalado Luigi Russolo. Kurt Schwitters
prenuncia uma vertente das poéticas sonoras, que chega até os
Mesósticos de John Cage.
É com o letrismo (1947), de Isidore Isou, que irá ocorrer a
radicalização na experimentação acústica com sons não verbais,
produzidos pelo aparelho fonador humano como arroto, tosse, espirro,
suspiro, etc., ou seja, uma linguagem anterior às palavras e, como foi
dito, é o último movimento de vanguarda anterior ao aparecimento da
aparelhagem eletromagnética, pois a partir d surge a poesia sonora
propriamente dita.
“Ao substituir a palavra pela letra como unidade mínima do
poema, Isou fixa a necessidade de desmanche interno da verbalidade, da
poesia como a arte verbal. E se filia aos projetos desconstrucionistas da
linguagem.”
49
Em Por Uma Nova Poesia Oral
50
, publicado em 1947, Isou
escreve:
“No letrismo, o poder sonoro formará o
fundamento. Dever-se-ia realçar novamente na linguagem o
que impressionava o ouvido (estertor, eco, estalido da língua,
gargalhada). Estas substâncias foram eliminadas em favor das
significações. (...) No lugar do conceito de belezas cerebrais
que foi criado na poesia cinzelante, replicaremos simplesmente
com o entendimento auditivo, imediato. Trata-se, portanto, de
48
Faixa 11 do CD1.
49
Menezes, Introdução. 1992, op. cit.’
50
Isou, Isidore. In Menezes op. cit.
81
descobrir fermentações desconhecidas, confecções puramente
orais; descobrir sons intangíveis no vocabulário. (...) Porque a
poesia foi criada por indivíduos que queriam se ouvir, sentir as
baterias lingüísticas contra o palato.”
Isou cria um alfabeto letrista em que a cada letra do
alfabeto grego corresponde um som orgânico como: aspiração, expiração,
sibilo, estertor, grunhido, som de fadiga, suspiro, ronco, gargarejo,
gemido, soluço, tosse, espirro, estalido de língua, estalo com lábios,
crepitação (como o imitar de barulho de carro), som de escarro, beijo
(ruidoso) e assobio (simples, não melodioso). Aproveitando o aparato
bucal (língua, dentes, abóbada palatal e lábios), valoriza as vibrações dos
fonemas numa espécie de vocalização poética. Essa forma de atuação,
característicamente performática, foi mais tarde denominada Poética do
Grito em referência a Antonin Artaud.
Nos anos 50 ocorre o surgimento dos estúdios
eletroacústicos e a poesia fonética é substituída pela poesia sonora, que
parte dos mesmos princípios, porém é viabilizada a modificação
tecnológica do som vocal, através de procedimentos como efeitos de
repetição, alongamentos, contrações, distorções, sobreposições de
fonemas. Os poetas sonoros unem-se aos sicos concretos e
eletroacústicos, sobretudo na França, onde se reúnem na RTF, sob o
comando de Pierre Schaeffer.
Os músicos concretos e eletrônicos se interessam pela
organização de qualquer som, incluindo os de origem vocal, e, aliás, é
justamente desse encontro – da voz com os procedimentos eletrônicos do
som - que surge a música eletro-acústica
51
e por outro lado, a poesia
sonora e suas experimentações.
51
A voz, enquanto um objeto concreto acústico, portanto distinta de sons sintetizados, puramente
eletrônicos, foi manipulada eletronicamente primeiramente por Stockhausen, e o resultado foi
chamado de eletroacústico, dando origem à música eletroacústica. Embora o repertório desse
82
Giuliano Tosin
52
nos informa que, em abril de 58,
começaram a surgir na revista francesa Cinquième Saison, textos que
tratavam de poesia sonora, e alguns meses depois, Maguy Lovano e
Henri Chopin difundiram obras de sua própria autoria além de Altagor,
Bernard Heidsieck e Pierre Garnier, ao longo de doze emissões na rádio
Paris-Inter. Neste ano, Dûfrene usou o magnetofone
53
para gravar seus
crirythmes, e no ano seguinte foi a vez de Heidsieck gravar seus Poèmes-
partitions.
De acordo com Tosin, Henri Chopin
54
, que juntamente com
Heidsieck, compõem os nomes mais expressivos da poesia sonora, -
sobretudo por seu pioneirismo e pela extensa produção de poemas e
textos teóricos, - foi o editor da revista Cinquième Saison, o periódico
mais importante na difusão da poesia sonora, que mais tarde juntou-se
com a revista Ou, para o lançamento das revistas-discos antológicas
deste âmbito. Segundo Tosin, desde o início, Henri Chopin utiliza
manipulações eletroacústicas com variações de velocidade de rotação,
ecos e reverberações e coloca microfones muito próximos e amesmo
dentro da boca, para obter sons que saem de regiões distintas do
aparelho fonador. Este autor afirma que no início de sua produção,
Chopin conservava a palavra como ponto de partida para sua criação
poética, como é o caso de Pêche de Nuit, Espace et Gestes e Sol Air,
porém pouco a pouco, a palavra começou a perder importância para
Chopin, que passou então a trabalhar mais próximo aos ruídos do corpo,
manipulados pelas possibilidades eletrônicas. Os poemas produzidos
desta maneira normalmente recebem nomes alusivos ao corpo, como Le
Corps, Mes Bronches, Le Bruit du sang e L’Energie du Sommeil.
gênero musical não esteja particularmente associado à música vocal, a voz, no caso, foi o elo de
ligação entre a música concreta e eletrônica, primordialmente.
52
Giuliano Tosin. Poesia Sonora no Brasil e no mundo. Disponível em
www.unopec.com.br/revistaintellectus/_Arquivos/Jan_Jul_04/PDF/Artigo_Giuliano.pdf
53
magnetofone é um aparelho de som para gravação e reprodução de sinais de áudio em fitas
magnéticas. Posteriormente surgiram os gravadores de K7.
54
Faixas 17, 18 e 19 do CD 1, e 32 e 33 do DVD.
83
Ainda de acordo com Tosin, nos anos 60 e 70, a poesia
sonora difundiu-se pelo mundo inteiro através de revistas (Ou, Cinquième
Saison, Axe, de Tafel Ronde, etc.), festivais (Festival of the Contemporary
Arts, Festival de Provins, Primeiro Festival de “Sound Poetry” de
Estocolmo, Primeiro Festival Internacional de Poesia Sonora, etc.) e
exibições (Le Merveilleux Moderne, Exposition Sonore et Phonétique de
Modena, Poésie-action, Bienalle de 65 à Paris, etc.).
Bernard Heidsieck, a partir de 1963, continua Tosin em
seu artigo, começou a dedicar-se também à poésie-action, espetáculos e
performances onde a poesia se manifesta como articulação gestual,
constituindo um território intermediário entre poesia, sica, dança e
artes visuais, unidas em um ritual onde todas se fundem.
Ao magnetofone, seguiram-se outros suportes de
gravação como o disco de vinil e o K7, e as captações de som passaram
a ser realizadas em estúdios eletrônicos. Estes estúdios possuem
também equipamentos de equalização, efeitos e mixagem, que permitem
agir diretamente sobre o campo acústico de modo detalhado, por
modulação, variação de velocidade, reverberação, produção de ecos e
utilização múltipla de sintetizadores.
Nos anos 90, estes aparelhos analógicos foram
substituídos pelos digitais, que realizam as mesmas operações de modo
muito mais preciso.
Henri Chopin compara os poetas fonéticos (em relação
aos poetas sonoros) a artistas do cinema mudo, estes grandes atores que
não souberam ou não puderam adaptar-se ao cinema falado, que não
souberam ouvir a própria voz. Ele observa que o gravador parece ter
surgido num momento em que a voz desejava aparecer, no momento em
que ela já se sabia múltipla. E conclui:
“A voz aparece realmente pelos anos 50, no
momento em que ela pode se ouvir a si mesma. Desde então, o
gravador entra na boca quase naturalmente, adivinha-a,
apreende-a e descobre suas forças vocais. O fenômeno é tão
84
misterioso quanto o nascimento do poeta que, outrora, soube
submeter-se à escritura” (Chopin, 1992, pg. 62)
55
Como bem explicita Paul Zumthor, a poesia sonora está
hereditariamente marcada por dois desejos aparentemente contraditórios,
mas que se complementam e lhe deram origem: o desejo do retorno ao
oral, por parte dos poetas, e o desejo do retorno ao falado, por parte dos
músicos.
56
A poesia sonora surge com o desenvolvimento tecnológico
e a aguda consciência da espacialidade da voz, de sua existência
enquanto objeto sonoro, passível de infindas manipulações.
Giovanni Fontana sintetiza bem os procedimentos
utilizados na poesia sonora:
“Infinitas as técnicas, infinitas as possibilidades:
seja partindo das palavras, seja partindo dos segmentos dela, a
individuação de um espaço acústico é determinada na ação por
combinações, atritos, contrastes, faixas sonoras, afloramentos,
fluxos e refluxos, pontilhismo, corpos magmáticos, dilatações,
concentrações, retalhos; manobrando sobre dicção, pronúncias,
timbres, tons, registros; utilizando dissolvências, crescendos e
decrescendos, solavancos, retroversões, desnaturações,
cancelamentos, glissandos, seleções, potencializações
colorísticas, fusões, intercalações, agregações,
espacejamentos, análises, superposições, amplificações,
montagens, multiplicações, acelerações, afrouxamentos, ecos,
reverberações, desvitalizações e assim por diante” (Fontana,
1992, pg. 135)
57
55
Chopin, Henri. Mutações Poéticas. In Menezes, 1992, op. cit.
56
Zumthor, Paul. Poesia do Espaço. In Menezes, op. cit.
57
Fontana, Giovanni. A poesia pré-textual. In Menezes, 1992, op.cit.
85
Paralelamente às experimentações da poesia em
ambiente eletroacústico a investida na performance da poesia–ação
por Heidsieck, as improvisações–show do Cabaret Voltaire são
parcialmente retomadas pelos hapenings do Fluxus
58
(1961) e a
retomada da valorização espiritual do fazer, da valorização do corpo (e
seus sons) como produtor poético, da energia, do sopro vital, - pelo casal
Ilse e Pierre Garnier, que nomearam seu trabalho de Sonia.
“Este lugar da energia existe no homem. Sob as
palavras usadas, amesmo sob as articulações primitivas, em
pleno pulmão: o sopro. (...) Chamo de poesia o conhecimento
do sopro, que é o esgotamento do universo para o universo.
Aí então o corpo se reinventa. (...)
Desembaracei a poesia das frases, palavras,
articulações. Eu a ampliei ao nível do sopro. A partir desse
sopro, posso reinventar uma língua, nascerão sons,
articulações, palavras, novos conjuntos que o mais serão
frases baseadas sobre a trindade indo-européia: sujeito-
predicado-complemento - a partir desse sopro podem nascer
58
O Fluxus foi um grupo de artistas de várias nacionalidades que colaboravam entre si
na Europa, EUA e Japão durante a década de 60. Estruturado ao redor da figura de
George Maciunas; um artista lituanês, radicado nos Estados Unidos, o Fluxus
desenvolveu uma atuação social e política radical que contestava o sistema museológico
através de performances, filmes e de suas publicações. O termo ‘Fluxus foi
originalmente criado, por Maciunas, para ser o título de uma revista que teria como
objetivo publicar textos dos artistas da vanguarda, muitos dos quais tiveram seus
trabalhos apresentados, entre 1960 e 1961, no estúdio de Yoko Ono e na AG Gallery de
Maciunas, ambas em Nova York. Todavia, ‘Fluxus’ passou a designar e caracterizar um
série de performances organizadas por Maciunas na Europa durante três anos (1960-
1963). Essas apresentações foram prolongadas tornando-se festivais Festum
Fluxorum que percorreram várias cidades como Copenhague, Paris, Düsseldorf,
Amsterdã e Nice. As performances e happenings realizados pelo grupo, bem como suas
publicações, e vídeos tiveram um profundo impacto nas artes das décadas de 60 e 70 a
partir de sua postura radical e subversiva – ainda que raramente política – na medida em
que trabalhava com o efêmero, misturando arte e cotidiano, visando destruir convenções
e valorizar a criação coletiva. O grupo marcou um momento de experimentação comum
entre artistas da Europa e América do Norte, possibilitando a afirmação da idéia de
coletividade como distintiva das proposições artísticas posteriores
. Texto sobre Fluxus
encontrado em www.mac.usp.br/projetos/arteconceitual/fluxus.htm
86
um outro corpo, outro espírito, outra língua, outro pensamento –
posso reinventar um mundo e me reinventar. (...)
É esta via em direção às energias, às forças e
às ondas que me parece ser, agora, aberta graças à sonia. (...)
A sonia é concreta, pois escapa ao enunciado
do pensamento, à explicação que a língua incessantemente
de si mesma. Mas devemos ir mais longe, ultrapassar a idéia de
objeto sonoro – a idéia mesmo de obra” (Garnier, 1992, pgs. 55,
56).
59
A busca do corpo, da experimentação desse corpo, da voz
e sua experimentação, da respiração, do fluir, da liberdade de expressão,
da liberdade da voz, da possibilidade de interagir no presente, criando,
improvisando, experimentando, da performance estruturada ou não com
outras artes, da poética do grito, foi algo realmente marcante nos anos 60
e 70 do século XX, bem como o diálogo com músicos que também
buscavam outras possibilidades para o fazer musical.
As origens do Fluxus encontram-se em muitos dos
conceitos explorados por Jonh Cage e sua música experimental dos anos
50, já que os fundadores do movimento como Dick Higgins, George
Brecht, Al Hansen, Jackson Mac Low, além de seu principal mentor
George Maciunas, bem como Joseph Beuys, Nam June Paik, Wolf
Vostell, La Monte Young estiveram em suas classes de Composição
Experimental na New School for Social Research em Nova York no
período de 1957 a 1959. Muitos artistas eram artistas de outras áreas e
tinham pouco ou nenhum conhecimento estritamente musical, mas
absorveram totalmente as idéias musicais de Cage.
A seguir alguns desses trabalhos
60
:
59
Garnier, Pierre. Uma arte nova: A Sonia. in Menezes, 1992, op. cit
60
Encontrados em www.uclm.es/artesonoro/framemenu.html
87
MÚSICA PELIGROSA Nº17 (Mayo 1962)
Dick Higgins
¡Gritar! ¡Gritar! ¡Gritar! ¡Gritar! ¡Gritar! ¡Gritar!
88
OBRA PARA VOZ DE SOPRANO (Otoño 1961)
Yoko Ono
Grite.
1.- contra el viento
2.- contra la pared
3.- contra el cielo
89
CONSTELACION Nº4
Dick Higgins
Se produce un sonido. El sonido ha de poseer un principio y fin
claramente definido (como el producido tirando de las cuerdas,
golpeando gongs, campanas, cascos o tubos). Cada intérprete
produce su sonido eficientemente y casi simultaneamente con los
sonidos de otros intérpretes. Cada sonido se produce solo una
vez.
"Fluxus. Internationale Festpiele Neuester Musik".
Städtischen Museum, Wiesbaden, 1962.
Intervienen: Alison Knowles, Nam June Paik y Dick
Higgins.
90
PIEZA CON CARTAS PARA VOZ (Verano 1959)
George Brecht
1. El número de intérpretes puede variar entre 1 y 54. Estos
se sientan unos al lado de otros a excepción del "presidente",
que se sitúa frente a los demás. Los intérpretes ensayan
antes de la actuación para desarrollar sonidos corrientes,
inscritos dentro de las cuatro categorías referidas más abajo.
2. El presidente coge una baraja de cartas corriente (cuatro
palos completos más un comodín y un comodín extra). Tira
cada una de las cartas al aire de forma que pueda caer
libremente boca arriba o boca abajo. Después vuelve a juntar
el mazo y lo baraja, manteniendo la nueva posición de las
cartas (boca arriba o boca abajo).
3. A continuación reparte las cartas entre los intérpretes
(incluido él) de una en una hasta que se termine la baraja.
4. Hay un segundo mazo de "cartas fonema", cartas en
blanco en las que se ha escrito un único fonema de uno o
varios de los idiomas conocidos por todos los intérpretes. Las
cartas, colocadas boca arriba, se barajan y reparten de una
en una a cada intérprete, que las coloca en un montón
separado del de las cartas de la baraja.
5. A una señal del presidente cada intérprete toma una carta
de su montón de cartas de la baraja, interpreta un sonido o
no lo hace, en función de las instrucciones de la lista
reproducida a continuación, y tira la carta. A menos que el
presidente haga una señal indicando que se repita o se
detenga la actuación cada intérprete termina cuando se le
acaba su correspondiente montón de cartas.
6. Tabla de instrucciones:
Palos: indican el órgano vocal con el que se produce el
sonido.
Corazones: Labios
Diamantes: Cuerdas vocales y garganta.
91
Tréboles: Mejillas
Picas: Lengua
Los sonidos pueden ser producidos de cualquier modo; es
decir, empleando el sonido del aire, golpes (sobre las
mejillas), etc.
Cartas con números: indican la duración aproximada de los
sonidos en segundos.
Cartas con figuras (no importa el palo): indican que debe
emitirse el sonido de un fonema con una duración
indeterminada siendo su pronunciación y dinámica más o
menos como las empleadas en una conversación normal. El
ordenamiento y la
estructura de los fonemas vendrá dado por
la lectura consecutiva de las cartas con fonemas.
Cartas del revés: indican aproximadamente cinco segundos
de silencio.
Comodín y comodín extra: son indicaciones destinadas
exclusivamente al presidente y los demás intérpretes las
pasarán por alto.
Comodín: El presidente se cruza de brazos al terminar su
montón, lo que indica a los intérpretes que debe hacerse una
repetición y éstos, al llegar al final de sus respectivos
montones, vuelven a utilizar todas sus cartas en el orden
inverso (empezando por la última carta). Cuando los
intérpretes ya no disponen de más cartas se paran. El
presidente (que ignora el comodín durante la segunda vuelta)
hace lo mismo.
Comodín extra: El presidente levanta los brazos, lo que ind
ica
que la pieza debe detenerse inmediatamente.
92
O maior referencial da poesia sonora é a voz. É ela que
lhe confere razão e sentido. Voz apoiada em um corpo que se quer pleno,
livre, que, apoiado por recursos tecnológicos, fixa em fita magnética os
sons mínimos do corpo, como Henri Chopin em L’energie du sommeil
61
(A energia do sono).
Todas as possibilidades e potencialidades vocais são
trabalhadas a partir de um corpo que passa a ser revelado. No caso da
poesia-ação, essa unidade corpo-voz é trabalhada enquanto
performance; no caso do movimento Fluxus, enquanto happening
(performance e improvisação) e enquanto reflexões, em forma híbrida de
poesia no papel; no caso da poesia sonora propriamente, essa unidade é
explorada como um objeto sonoro através de gravações eletroacústicas.
Nas palavras de Giovanni Fontana:
“A renovação (da poesia) exige um gesto
fundamental da parte do poeta: o de reapropriar-se, por meio da
oralidade perdida, de todo um patrimônio material que flui pelos
sentidos. Isso porque a poesia passa por todo o corpo, corpo
que se coloca como centro de centenas e milhares de canais
sensuais em constante entrada e saída. A inteligência ativa é
corpo; o gesto poético é corpo; o corpo, ritmo, e sem ritmo
não há linguagem” (Fontana, 1992, pg. 129)
62
.
61
Faixa 18 do CD 1.
62
Fontana, Giovanni. Oralidade, Escritura, Intermedialidade. In Menezes. Op. cit.
93
2.3 Música do Século XX
“É preciso especificar logo o seguinte: ao
falarmos de novidade como uma característica da sica
do século XX () queremos antes de mais nada, captar
uma atitude com relação ao novo, como uma postura
peculiar que caracteriza a musicalidade do século XX. (...)
Chama-se novo o que o pertence ao âmbito das coisas
familiares e conhecidas. (...) Em toda parte é possível
enxergar limitações, barreiras que nos apertam de todos
os lados e que precisam ser superadas, e justamente
nessas limitações consiste o dado velho a que se
contrapõe o novo, isto é, na derrubada de tais barreiras
consiste, sobretudo, a inovação. (...) A abertura para o
novo desde o início revela ser uma abertura para o
múltiplo. De fato, existem muitos modos de intervir na crise
do tonalismo e efetuar a sua superação.”
63
Ao impasse a que chegou a música erudita européia,
baseada nos alicerces do tonalismo, da métrica regular e simétrica, das
melodias delineadas e cantábiles, da forma estruturada como um discurso
coerente e lógico contendo exposição, desenvolvimento, re-exposição,
resolução, e eventualmente algum adendo a que chamamos de coda,
muitos caminhos novos começaram a ser buscados e trilhados por
compositores criativos e sensíveis às novas demandas clamadas no
63
Piana, Giovanni. A Filosofia da Música. (2001)
94
interior da própria música, bem como nas artes, ciências, e na sociedade
de forma geral.
Esses caminhos, conforme as cnicas utilizadas,
receberam os nomes de impressionismo, atonalismo, expressionismo,
serialismo, politonalismo, pontilhismo, microtonalismo, serialismo total,
música concreta, eletrônica, eletroacústica, música aleatória,
indeterminada, espectral. As corrente são ltiplas, sucessivas e
coexistentes, unindo-as a vontade de desbravar e inventar novos sons,
novas relações entre os sons, a vontade de criar um novo sentido, uma
nova idéia do que possa ser música. Uma longa travessia pelo século XX
que começou, na verdade, nos últimos anos do século XIX.
É importante esclarecer que não está ao alcance do
âmbito deste trabalho discorrer sobre todas estas vertentes, mas tão
somente delinear um caminho coerente e influente à configuração de uma
nova vocalidade, que vai sendo gestada ao longo do século XX.
A transformação por que passa a música inicia-se, como
foi dito, no século XIX. Wagner e Liszt haviam acelerado o processo,
devido ao intenso uso de cromatismos, e dessa forma, balançaram o
edifício da harmonia tonal estável. No entanto, a música ainda continuava
presa às estruturas da ortodoxia harmônica.
De acordo com Paul Griffiths (1998), uma das principais
características da sica moderna é justamente a libertação do sistema
de tonalidades maior e menor, que motivou e deu coerência a quase toda
a música ocidental, desde o século XVII. Segundo Griffiths, podemos
dizer que um marco importante para essa libertação foi a obra Prélude à
l’aprè-midi d’un faune (1894), do compositor francês Claude Debussy
(1862- 1918), pois esta obra liberta a sica das raízes da tonalidade
diatônica (maior-menor), instaurando uma ambigüidade harmônica. Além
disso, ritmos irregulares, oscilações de andamento, e o abandono do
modo narrativo e o seu encadeamento coerente projetado na consciência.
Debussy usando no conjunto de seus trabalhos acordes
dissonantes (freqüentemente de 9ªs e 13ªs) isolados, em “cadeias de
acordes” sem tensão harmônica entre si, utilizando-se de escalas não
95
usuais, até então, como as escalas modais, a pentatônica, a escala de
tons inteiros, ou a escala octatônica, deu à sua música o efeito diáfano e
vago de nuvens sonoras sem forma definida, como impressões (daí o
impressionismo). Com tudo isso, abrira o caminho para a música
moderna. Uma de suas últimas obras, Jeux, também composta para um
balé como o Prelude, torna-se muito indicativa quanto à forma: “música
em permanente mudança, movendo-se nas direções mais inesperadas à
medida que diferentes tipos de material são empregados, brevemente
desenvolvidos e logo abandonados. (...) tem-se a impressão de uma
substância musical fluida em que diferentes temas vêm à tona em
diferentes momentos” (Griffths, 1998, pgs. 42, 43).
A decisiva desestruturação da harmonia diatônica, no
entanto, viria com o expressionismo atonal de Arnold Schoenberg e seu
Pierrot Lunaire (1912). E a explosão da trica e do ritmo com A
Sagração da Primavera (1913), de Igor Stravinsky, que também utiliza
aqui o recurso da politonalidade, isto é, tonalidades diferentes
simultâneas.
Estas obras citadas são ícones da revolução por que
passa a música ocidental em seu primeiro momento, não significando,
naturalmente, que sejam as únicas, ou que esses compositores também
sejam os únicos, são, isto sim, marcos necessários aos quais podemos
recorrer.
Outro representante importante dessa primeira fase, em
quem vamos posteriormente nos deter, é Luigi Russolo. Músico, embora
não no sentido tradicional, construtor de novos instrumentos os
intonarumores (entoadores de ruídos) - para uma música nova, e autor de
um importante livro-manifesto L’Arte dei Rumore (A Arte dos Ruídos-
1913), seu trabalho irá correr por fora da grande música européia. Mas
contribuirá para o desenvolvimento musical posterior, a música que pensa
a sica como constituída de sons e ruídos, para além das notas
musicais, pensamento musical mais diretamente vinculado ao objeto
deste trabalho.
96
Voltemos à Sagração da Primavera. Le Sacre du
Printemps , quando estreou, foi uma escândalo tão fenomenal que foi
chamada pela imprensa de Massacre du Printemps (Carpeaux, 2001).
Logo depois transformou-se num imenso sucesso.
De acordo com Griffiths (1998), é o ritmo, sobretudo na
“Dança do Sacrifício” final, que conduz a música, ficando a harmonia
relegada a segundo plano. Grande parte dessa dança, ele continua, é
composta de “células” de uma a seis notas aproximadamente, em vez de
frases à maneira convencional, e que dada a duração desigual das
células, exige constantes mudanças de andamento, sem obediência às
barras de compasso. Outras passagens são sincopadas, em conflito com
a métrica indicada. Tudo isso levou a uma energia rítmica nunca antes
ouvida. Querendo recriar um ritual pagão, Stravinsky “inventou ritmos de
uma força capaz de traduzir o que de desenfreado e ao mesmo tempo
premeditado nas danças rituais” (Stefani, 1987).
Gino Stefani (1987) cita Gentilucci, que se impressiona
com as “melodias folclóricas deformadas, a selvagem articulação rítmica
desenfreadamente livre, as asperezas harmônicas politonais, a recusa
radical do fraseado longo, os contínuos deslocamentos do acento rítmico,
a vertiginosa invenção timbrística, a ‘explosão de vitalismo’” (Idem).
Stefani cita também o crítico alemão Hanz Heinz
Stuckenschmidt, para quem a Sagração é uma obra única no seu gênero,
pois “reúne elementos que parecem provenientes da primeira idade do
mundo e do modernismo mais avançado”.
Para Stefani, o “primitivo” stravinskiano resulta da
utilização que o compositor fez de arquétipos fundamentais de nossa
cultura, gerais e, portanto, pré-musicais, os quais todos nós, mais ou
menos, exercitamos, e esses arquétipos estabelecem coligações entre
estruturas rítmicas, dinâmicas e timbrísticas, e determinados campos da
experiência sensorial e intelectual.
Schoenberg inaugura o expressionismo com Noite
Transfigurada (1899). Em 1908 ele compõe o Segundo Quarteto de
Cordas, e é no quarto movimento que ele abandona a tonalidade, e parte
97
para a atonalidade. Mas é com Pierrot Lunaire, obra para soprano e cinco
instrumentistas (flauta, clarineta, violino, violoncelo e piano) em 1912, que
ele fixa o novo estilo. E, retrocedendo à adequação contrapontística
prepara o caminho para a organização da atonalidade que realizaria no
serialismo (Griffths, op. cit.).
Em Pierrot Lunaire
64
, Schoenberg utiliza um ciclo de
poemas do simbolista belga Albert Giraud e cria a cnica de
Sprechgesang, que consiste num canto falado. Esta obra causa um
estranhamento até hoje, o que leva Gino Stefani referir-se a ela como:
“Cinco instrumentos solistas que parecem seguir cada um por sua conta;
nenhuma relação evidente com a voz, que murmura, grita, fala, sem
jamais chegar a propriamente cantar; por sua vez, a voz mantém uma
relação esquizofrênica com o texto, que é pronunciado com acentos e
entonações totalmente independentes do sentido das palavras ou das
frases. Além disso, nesse tecido harmônico feito apenas de dissonâncias
destrói-se na raiz qualquer formação e encadeamento de acordes e,
portanto, qualquer pensamento lógico; ao mesmo tempo, não chega a
formar-se nenhuma figura familiar e cantável” (Stefani, 1987, pg. 104).
Para o crítico Luigi Rognoni, no Pierrot, “a voz humana
está desvinculada de qualquer ligação com o canto tradicional, para
exprimir, de modo direto, as imediatas reações interiores do artista: o
Urschrei - o ‘grito primal’-, e este gera a Sprechmelodie”, ou seja, a
“melodia falada”. Essa música traz o anúncio da catástrofe iminente, a
derrocada dos ideais, a clara certeza da destruição. Se o Pierrot Lunaire
tivesse sido escrito no pós-guerra, seria considerado espelho fiel do
esfacelamento; em vez disso, porém, ele o profetiza” (apud Stefani, 1987,
pg.108).
Stefani também cita Adorno, para quem Schoenberg é o
herói que assume a tarefa histórica de liquidar a linguagem musical,
irremediavelmente reificada na sociedade capitalista e que grita ao mundo
a “esperança desesperada” do sujeito, para o qual não há mais espaço na
época do coletivismo massificante.
64
Faixas 2, 3 e 4 do CD1, e 49 e 50 do DVD.
98
Do que vimos aaqui, o primeiro fato musical importante
para a voz contemporânea, - essa voz que vai ganhando contornos e
forma radicalmente distinta do bel canto, essa voz que vai incorporando o
ruído - é sem dúvida o Pierrot Lunaire, até porque dentre as obras
citadas, é a única que emprega a voz, e o faz de maneira inusitada, num
canto falado em alturas aproximadas de melodias angulosamente
desenhadas, não reconhecíveis num primeiro momento, melodias mais
próximas propriamente da fala, de um lamento do que de um canto.
certa aspereza na voz, motivada talvez pelo clima de angústia geral da
peça refletida nesse tecido harmônico extremamente dissonante, sem
uma lógica aparente. Canto falado que, às vezes, parece um murmúrio,
um lamento, outras, uma voz prestes a gritar, uma voz humana
desvinculada de qualquer ligação com o canto tradicional, para exprimir,
de modo direto, as imediatas reações interiores do artista: o Urschrei-o
‘grito primal’ - segundo as palavras do crítico musical Luigi Rognoni.
Com o Pierrot de Schoenberg, a voz, musicalmente, ganha
um novo referencial que não aquele canto legato do Bel Canto. "Legato"
que quer dizer ligado em italiano, significa entoar as notas de uma
melodia como se estivessem emendadas uma na outra, ligadas sem
interrupções, dando-lhe um sentido de fraseado musical contínuo. Como
aqui é um canto falado, a aproximação com a fala já interrompe esse fluxo
contínuo, diferentemente de um recitativo, que é uma espécie de fala
cantada vinvulada à estética do bel canto legato.
Como, em termos de fonética, o que interrompe a emissão
são as consoantes (elas são formadas por obstruções internas à saída do
ar pela boca) e as vogais representam a passagem livre do ar, sem
obstruções, cantar "legato" significaria, grosso modo, pensar em emendar
as vogais de cada sílaba, "passando por cima" das consoantes. E isso
não acontece na fala, onde as vogais, mesmo que expandidas pela
expressividade, precisam ser mais enxutas e as consoantes valorizadas.
Quando isso não ocorre, por exemplo, dizemos que a pessoa fala
cantando.
99
Essa aproximação com a fala também subtrai da voz a
impostação totalmente lírica. Por outro lado, a própria ambientação
harmônica atonal leva também a voz para um outro referencial de
comportamento, que exige dessa voz um outro tratamento, embora aqui
ainda sem a incorporação do ruído, tal como o abordamos e como
ainda iremos abordar.
Conforme já foi dito, das peças citadas, Pierrot é o primeiro
fato musical importante para a voz contemporânea, no entanto, vale a
pena destacar o seguinte: Prélude à l’aprè-midi d’un faune”,” Jeux” e Le
Sacre du Printemps” são obras musicais compostas para balé
65
, ou seja,
foram compostas para existirem através de corpos em movimento no
espaço, corpos estes distanciados do tutu do balé clássico, distantes
daquele romantismo bem comportado do século XIX, corpos que
expressam sensualidade , erotismo, vitalidade, em coreografias todas
baseadas em jogos sensuais assinadas por Nijinsky, sobretudo o L'Après-
midi d'un Faune.
A música de "L'Après-midi d'un Faune" é baseada no
poema de Stéphane Mallarmé, escrito em 1865 e publicado em 1876,
com ilustrações do pintor impressionista francês, Édouard Manet. O
poema conta a história, em um clima sensual, de um fauno que toca sua
flauta nos bosques e fica excitado com a passagem de ninfas e náiades,
tentando alcançá-las em vão. Então, muito cansado e fraco, cai em um
sono profundo e passa a sonhar com visões que o levam a atingir os
objetivos que dentro da realidade não tinha alcançado.
L’Après Midi mostrava uma sensualidade quase
afrontosa para os padrões da época. A sexualidade transbordava do
fauno protagonizado por Nijinsky que, entretanto, em nenhum momento
dava mostras de gestos sensuais, nem mesmo chegava a tocar as
ninfas/bailarinas que lhe desatavam as amarras da imaginação. Mas por
uma cnica quase sublime, o desejo do fauno é sensível. O fogo que lhe
percorre as veias não está atestado senão por um sorriso de lascívia
quase imperceptível, mas paixão, sexo e uma ousadia suprema.
65
Vídeos desses balés estão no DVD, faixas 51 e 52.
100
Volúpia de sonho e delírio. Audácia. Nijinsky escancara o rosto debaixo
da máscara, revela a sensualidade escondida, abre as janelas. O final do
ballet, com o bailarino simulando masturbar-se no palco, entrou para a
história como o maior escândalo da dança neste século”
66
.
L'Après-midi d'un Faune, Jeux, - sobre uma partida de
tênis onde duas moças e um rapaz simulam jogos sensuais e no final os
três se beijam -, e Sagração, um ritual pagão, enquanto dança, apontam
para um novo corpo que irá igualmente se configurar ao longo do século
XX, isto é, um corpo que quer se libertar da moralidade rígida e limitante,
burguesa e católica, e o começa justamente pela sexualidade.
Esta digressão foi importante, a meu ver, pois temos
falado da existência da voz contemporânea a partir justamente de uma
nova consciência e vivência corporal.
2.3.1 Música Serial
Música Eletrônica
Música Concreta
Mas voltemos à evolução da sica, particularmente
aquela evolução que nos interessa, qual seja, a que desemboca na
música concreta, eletroacústica e indeterminada.
A obra de Shoenberg foi realmente um marco muito
importante, pois ela consegue desestruturar todo o edifício tonal por
dentro, e assim dar-lhe outra construção, outro referencial. Tudo o que de
sólido e definitivo havia como pontos de referência, baseados em
princípios como “início-meio-e-fim”, consonância e dissonância, tensão e
66
Considerações encontradas em www.artelivre.net/html/danca/al_danca_vaslaw_nijinsky.htm
101
afrouxamento, sistema maior-menor caem por terra. Nas palavras de Júlio
Medaglia:
“A reviravolta proposta pelo Mestre de Viena
neste período chamado de “atonal”, incluiu a transformação do
conceito de melodia. Esta deixava de ser simétrica e cadencial.
Os motivos melódicos eram curtos e não se repetiam. Os
melismas fluíam livremente, incluíam grandes saltos e a
inexistência de pontos de apoio, iniciais ou finais. Havia
também mudanças bruscas de entoação e intensidades vocal
ou instrumental. As seqüências rítmicas perdiam a regularidade
e a harmonia não se baseava mais no acorde de três sons, o
qual, tradicionalmente, formava os “campos imantados” nos
quais se apoiava o discurso tonal. O agrupamento de notas
passou a ser livre, e mesmo comum a superposição de blocos
sonoros. (...) Após 500 anos de imperialismo absoluto do
sistema tonal, iniciam-se, aqui, as bases de um novo idioma
musical ” (Medaglia, 1988, pgs. 68 e 70).
Schoenberg também cria o que chamou de
Klangfarbenmelodie (melodia de timbres). Numa de suas 5 peças para
orquestra Opus 16, ele “estabelece um bloco de notas sem sentido tonal,
variando apenas a instrumentação, o colorido das notas. A transformação
lenta dos timbres oferece-nos a idéia da movimentação sutil de um
caleidoscópio sonoro” (Medaglia, 1988, pg. 69). Essa melodia de timbres
será explorada por seu famoso aluno Anton Webern.
Inquietando-se com a falta de um sistema que organizasse
coesa e coerentemente as novas idéias, desenvolve o método
dodecafônico, também conhecido como serial, ou serialismo. O método,
que parte da organização dos doze sons da escala ocidental em uma
sucessão, sem qualquer relação tonal entre eles, chamada série, foi
desenvolvido consistentemente e criou uma nova maneira de se fazer
102
música sem as amarras do tonalismo. Essas ries que podem ser
trabalhadas na sua posição original, retrógrada, invertida e retrógrada
invertida, foram apresentadas de maneira sintética por Webern através do
célebre quadrado mágico medieval, no qual as palavras “Sator Arepo
tenet opera rotas(O camponês Arepo põe em ação o arado) podem ser
lidas de vários modos: da esquerda para a direita, de cima para baixo, da
direita para a esquerda e de baixo para cima (Stefani, 1987):
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
O importante a considerar aqui é a questão do
pensamento serial, que posteriormente será resgatado em forma de
serialismo total, ou integral, onde além do parâmetro da altura, como
fizera Schoenberg, foram seriados fatores como duração, intensidade,
timbre, textura, pausas, e assim sucessivamente.
A obra musical que apontou para isso primeiramente foi
Mode de Valeurs et dIntensités (1949) de Olivier Messiaen, onde o
compositor estabelecia “escalas” o de altura, mas de duração,
intensidade e ataque. Não é uma obra serial, mas efetivamente abriu
caminho para o serialismo total (Griffiths, op. cit).
Dois de seus discípulos, Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen, partindo dessas idéias, juntamente com o resgate de
Webern, - a melodia de timbres composta num tecido sonoro que consiste
em timbres instrumentais que são, por assim dizer, dardejados -, irão
aprofundar essas idéias para chegar ao serialismo total. Este pensamento
musical propõe que todos os parâmetros do som como durações,
dinâmicas, velocidades, além das alturas, sejam organizados em séries e
combinados entre si.
103
A máxima concentração dos parâmetros musicais operada
por Webern, “onde cada instrumento emite um fragmento mínimo de uma
ou duas notas, constituindo, no conjunto, uma melodia abstrata de
timbres” fez com que “os compositores, que lançaram as bases do
serialismo integral, vislumbrassem o conceito da atomização do som (do
átomo do som)” (Catanzaro, 2003). O que, segundo Flo Menezes citado
por Tatiana Catanzaro, trata-se do processo da concentração da escuta
em um elemento mínimo: a procura da essência de uma unidade
fundamental. Que por sua vez leva à própria constituição dos sons.
Esse enfoque na constituição mínima do som e na
possibilidade de serializar todos os seus parâmetros na onda sonora a
sua matéria prima, a qual irá receber uma série de aprofundamentos
possíveis com o desenvolvimento da eletrônica. E é assim que nos
estúdios de Colônia, Alemanha, em princípio dos anos 50, Karlheinz
Stockhausen
67
, sobretudo, cria a música eletrônica, a partir de sínteses de
ondas sonoras.
A matéria inicial, produzida pelo gerador elétrico, pode ser
um som puro (som sinusoidal) ou um som complexo, chamado de “ruído
branco”. O músico adota, no primeiro caso, um método “sintético”, e, no
segundo, um método “analítico”. A partir dum conjunto de sons
sinusoidais, é possível construir novos sons cuja configuração definitiva
se afasta consideravelmente dos sons sinusoidais primitivos;
inversamente, o ruído branco, essencialmente “vago”, deve ser analisado,
isto é, filtrado, para se obter um som que, do mesmo modo, se torna
estranho ao ruído branco inicial. Os dois processos podem ser
empregados indiferentemente para se chegar a um resultado
teoricamente idêntico (Samuel, 1964)
68
.
“Devido à sua estreita ligação com o pensamento segundo
o qual a escolha do material musical nesse caso, a própria constituição
dos sons - deveria efetuar-se de maneira coerente em relação à estrutura
globalizante da obra, reportando-se ao rigor típico da estrutura musical, a
67
Vídeos com Stockhausen faixas 40, 41 e 42 do DVD.
68
Referente a isso ver faixas 43, 44 e 45 do DVD.
104
música eletrônica via-se submetida à condição de herdeira da tradição
musical”
69
.
Paralelamente ao surgimento da música eletrônica na
Alemanha, surge na França a música concreta nos estúdios da Radio
diffusion Francaise, comandada por Pierre Schaeffer
70
e Pierre Henri.
A musique concrète que parte da gravação em fita
magnética de qualquer som ambiental encontrado, proveniente de
qualquer fonte sonora, para então manipulá-lo eletronicamente com o
objetivo de uma composição musical, trabalha com a idéia musical da
apropriação do ruído, com a idéia de som musical para além das notas
musicais. Esse enfoque no som como um fenômeno amplo e complexo
engloba a exploração do ruído, que este também faz parte da
constituição do som.
“Concebida mentalmente, notada em símbolos e
executada por instrumentistas, a música tradicional movia-se da
abstração musical à concreção sonora. Descobrindo corpos sonoros e
maneiras de colocá-los em vibração, gravando os sons obtidos,
manipulando estas gravações, escutando-as e experimentando
estruturações, a música concreta se moveria do concreto sonoro ao
abstrato musical.”
71
E esse concreto sonoro o todos os sons existentes que,
separados da sua fonte, são transformados em “objetos” cujo valor reside
em si mesmos.
Como havia dito anteriormente, um outro pensamento
musical importante se constitui incorporando a presença concreta dos
ruídos que se configuram na nova realidade industrial. Um marco desse
pensamento é a Arte dos Ruídos de Luigi Russolo.
O pensamento musical que engloba o ruído, que tem suas
origens no futurismo italiano representado por Luigi Russolo, no trabalho
69
Menezes, Flo. Música eletracústica : História e estéticas (1996), apud Catanzaro, op. cit
70
Peça de Schaeffer, considerada a primeira da música concreta, faixa 39 do DVD.
71
Palombini, Carlos.A música concrete revisitada. Artigo disponível em
www.rem.ufpr.br/REMv4/vol4/art-palombini.htm
105
de Edgar Varèse e John Cage, pressupõe também a idéia de uma nova
escuta. Idéia esta que será explorada por Cage e Pierre Schaeffer.
Russolo chamará a atenção para os ruídos presentes na
vida moderna no caso década de 10 do século XX – e a importância de
sua presença numa música que almejava ser nova, em sintonia com uma
nova sensibilidade dos novos tempos.
Varèse (1883-1965) quis “organizar os ruídos”, e
antecipou, acústicamente, efeitos que seriam mais tarde explorados pela
música eletroacústica como em Integrales para orquestra (1924-25), onde
imita o efeito da reprodução, em sentido inverso, de uma gravação em
disco. Em sua peça Ionisation
72
(1933), escrita para uma enorme bateria
de instrumentos de percussão (incluindo piano e campainhas), além de
correntes, bigornas e sirenes, Varése criou uma forma que se define
pelas massas e blocos sonoros contrastantes.
John Cage (1912-1992) escreveu 16 sonatas para piano
preparado a partir de 1940, em cujas cordas se colocam pedaços de
borracha ou de metal ou de madeira para produzir sons inéditos.
Russolo em L’Arte dei rumori, seu livro manifesto,
perguntava: Se música é som, por que a música não emprega toda
variedade de som? Por que a música não pode abraçar sons como os
feitos por pessoas e animais, sons da natureza e sons da moderna
sociedade industrial?
“Há que se romper este círculo restrito de sons
puros e conquistar a variedade infinita dos sons-ruídos. (...)
Beethoven e Wagner nos tem agitado os nervos e o coração
durante muitos anos. Agora estamos saciados deles e
desfrutamos muito mais combinando os ruídos do trem, dos
motores de explosão, das carroças e das multidões
vociferantes, que voltando a escutar, por exemplo, a “Heróica”
ou a Pastoral” (Russolo, 1986, pg 25).
72
Faixa 47 do DVD.
106
Russolo cria os seus instrumentos fazedores de ruído os
intonarumores
73
- e os separa em seis famílias, que vale a pena conhecer
como um catálogo de sons:
os trovejantes, os explosivos, os que rugem, gritam,
roncam, que são estrondosos e retumbantes;
os que assobiam, sopram e bafejam;
os que murmuram, sussurram, rumorejam e
gorgolejam;
os estridentes, guinchantes, chiantes, rangentes,
friccionantes, zumbizantes, crepitantes e estalantes
aqueles que os ruídos são obtidos através da
percussão em metais, madeiras, peles, pedras,
cerâmicas e etc;
vozes de animais e de pessoas: gritos, guinchos,
gemidos, pios, uivos, estertores, soluços, e etc.
Como bem coloca Tatiana Catanzaro (2003), a exploração
do ruído acabou por deflagrar a possibilidade da utilização da
complexidade máxima do som, e o desenvolvimento estrutural da técnica
dodecafônica, principalmente com Webern, levou os compositores do
serialismo integral ao conceito da atomização do som e a utilização do
elemento único constituinte.
73
Uma reconstrução de alguns intonarumores encontra-se na faixa 48 do DVD.
107
Podemos fazer agora o seguinte paralelo com o trabalho
poético da poesia sonora: O caminho da exploração do ruído, onde a
utilização da complexidade máxima do som, nos leva à poética do grito
74
,
a todas as formas possíveis de utilização do aparelho fonador, quando
toda a gama de ruídos possíveis produzidos é incorporada no fazer
artístico. o caminho do serialismo total, aonde se chega à atomização
do som, coincide com o trabalho de exploração da vibração sonora de um
fonema, unidade mínima da linguagem, e à própria respiração como
portadora da onda sonora. Duas abordagens distintas levando a
caminhos e resultados distintos, mas que eventualmente também se
encontram, sobretudo quando se trabalha com a noção de contínuo
sonoro. Vejamos isto num esquema sintético a seguir na próxima página:
74
Lembrando que esse termo foi criado referindo-se a Artaud, mas englobando todo o trabalho que
explora os sons possíveis do aparelho fonador como o letrismo de Isidore Isou.
108
Utilização da Utilização da
Máxima Complexidade Atomização
Do Som Do Som
Incorporação Serialismo
Do
Ruído
Música Concreta Música Eletrônica
Música Indeterminada
Poética Exploração da vibração
Do Grito sonora de um fonema
Exploração Máxima Exploração
Do Aparelho Fonador da Unidade Mínima de
um fonema
Música eletroacústica
Música acústica
Música Indeterminada
Música performática
Música experimental
Músicas não ocidentais
VOZ CONTEMPORÂNEA
109
2.3.2 Música eletroacústica
A música eletroacústica nasce do encontro da sica
concreta com a eletrônica, ou seja, da gravação de um som concreto e a
posterior manipulação deste com a síntese de ondas sonoras
processadas eletronicamente, e isto se dá a partir justamente da voz
humana. A voz, enquanto um objeto concreto acústico, portanto distinta
de sons sintetizados, puramente eletrônicos, foi manipulada
eletronicamente primeiro por Stockhausen, e o resultado foi chamado de
eletroacústico, dando origem à música eletroacústica. Embora o repertório
desse gênero musical não esteja particularmente associado à música
vocal, a voz, no caso, foi o elo de ligação entre a música concreta e
eletrônica, primordialmente.
Os trabalhos inaugurais da música eletroacústica, onde
a utilização da voz humana numa estética completamente diferente de
tudo o que se conhecia em termos de música vocal erudita são: Gesang
der Jünglinge
75
(1955-56) de Karlheinz Stockhausen, e Thema – Omaggio
a Joyce
76
(1958) e Visage
77
(1961) de Luciano Berio. Por outro lado, um
trabalho que o é música eletroacústica, nem propriamente música
concreta, mas vai em direção à utilização máxima do som, à incorporação
do ruído, à poética do grito, é 62 Mesostics Re Merce Cunningham
78
(1971) de Jonh Cage, bem como Sequenza III
79
(1966) de Berio.
O material de base de Gesang Der Jünglinge provém tanto
de fontes "concretas" - uma gravação de um fragmento do texto apócrifo
do terceiro Livro de Daniel da Bíblia "Gesang Der Jünglinge im Feuerofen"
(Cântico dos Adolescentes na Fornalha Ardente) cantado por um menino
cantor da Catedral de Colônia; como de fontes eletrônicas - sons
senoidais, ruídos produzidos eletronicamente e "impulsos" eletrônicos.
75
Faixa 14 do CD 1 e 40 do DVD.
76
Faixa 15 do CD 1.
77
Faixa 16 do CD 1.
78
Faixa 3 e 7 do CD 2.
79
Faixa 20 do CD 1 e 18 e 19 do DVD.
110
Para estruturar o Canto dos Adolescentes, Stockhausen
procurou criar diversas "escalas" para organizar e serializar o material que
possuía a disposição. Seu objetivo era mesclar os sons vocais e os sons
eletrônicos. Cada fonema era considerado pela sua qualidade timbrística
e possuía correspondência com algum elemento eletrônico. Desse modo,
as palavras são tratadas mais como permutações de fonemas, ficando o
entendimento do texto como mais um parâmetro a ser explorado.
Stockhausen ainda serializou os fonemas, segundo categorias
fonológicas; os timbres individuais pelas suas qualidades espectrais ou
"graus de desordem"; o relacionamento entre todas as "categorias de
timbres"; as intensidades e as alturas; a formação de texturas, além da
organização espacial dos sons nos auto-falantes.
80
Berio elabora Thema exclusivamente a partir de sons
derivados da voz de Cathy Berberian, tendo como material de base a
leitura do início do capítulo XI de Ulysses, de James Joyce. Para a
realização desse trabalho foi fundamental um estudo que Berio
desenvolveu com Umberto Eco, sobre a função onomatopaica na
literatura contemporânea.
“Criando um verdadeiro continuum entre linguagem verbal
e significado, entre texto poético e música, entre som eletrônico (derivado
da voz) e som vocal, Thema circunscreve-se no âmbito de um perfeito
isomorfismo entre estrutura musical e estrutura poética, calcado na
multireferencialidade joyceana.
81
Cathy Berberian o texto da abertura do “Sirens” (o
capítulo XI) e sua voz abre as portas às manipulações tecnológicas de
Berio. Embora não haja nenhum som eletronicamente gerado por si
mesmo, sua leitura é usada como o material para uma exploração. Os
efeitos aplicados são vários: distorções, ecos, velocidades da fita
acelerando ou retardando e modulando sua voz, sobreposições, etc.
80
Baseado em A obra de Karlheinz Stockhausen (apostila de curso ministrado no Estúdio
PANaroma - SP 2° semestre de 1998 - elaborada pelo prof. Flo Menezes). Mais sobre o
pensamento e obra de Stockhausen, faixas 41 e 42 do DVD.
81
Extraído do CD Música Eletroacústica – 1955/1993. SP: Studio PANaroma, 1993
111
“O texto dito e gravado um fragmento do Ulisses, de
Joyce liberta gradualmente o seu potencial musical, a sua música
imanente, por assim dizer: o compositor explicita essas estruturas, pondo
a nu, por meios de análise e de síntese sonora que lhe oferecem os
instrumentos eletrônicos, as interferências dos parâmetros nas estruturas
verbais, para finalmente chegar a um discurso musical autônomo, cujos
elementos textuais ficam como única matéria utilizada.”
82
Berio descreve as restrições formais usadas para criar o
Thema da seguinte forma:
“Uma vez aceito o esquema sonoro, o texto
pode gradualmente ser destacado da moldura vocal, liberto e
avaliado nos termos das possibilidades transformacionais da
eletroacústica. O texto é, portanto, separado em famílias
sonoras, grupos de palavras ou labas, organizado numa
escala de cor vocal (do “a” ao “u”) e numa escala de
consoantes (da sonora à o sonora), cuja ordenação é
determinada pelo índice de ruído.”
83
Os textos serão escolhidos de acordo com suas
possibilidades fonêmicas. A relação texto-som passa a ser pensada a
partir das vibrações sonoras dos fonemas, para além do significado das
palavras. Não se trata mais de musicalizar a palavra, mas de extrair da
palavra o conteúdo musical.
Um outro sentido se configura, onde já não é possível
distinguir entre a palavra e o som, entre o som e o ruído, entre a poesia e
a música, entre a voz e a não-voz. Esse continuum sonoro será muito
explorado pela música eletroacústica. E pela poesia sonora. Daí a enorme
semelhança entre uma e outra.
Na obra Visage não há mais um texto a ser lido. O material
musical parte de improvisações de Cathy Berberian, onde a voz se
82
Boucourechliev,André. Apud Samuel, Claude in Panorama da arte musical contemporânea.
83
Encontrado em www.themodernword.com/joyce/music/berio_thema.html
112
presentifica em entonações, inflexões sem conteúdo verbal, porém
emotivo, e num fluxo contínuo de sons surge uma única palavra: parole.
uma valorização da voz humana, como se quisesse chegar à
formação da linguagem e através desse som anterior às palavras se
contasse uma história.
2.3.3 Música Astica
Em Sequenza III, sobretudo, 62 Mesostics Re Merce
Cunningham, ou Music for two (by one)
84
, de Cage, interpretado por
Joan La Barbara, teremos não obras eletroacústicas, mas obras acústicas
para voz solo onde veremos configurada e explicitada a estética da voz
contemporânea concebida por compositores sensíveis a toda mudança
por que passou a música nesse século XX, e particularmente a voz, como
portadora de um novo entendimento e expressão.
O canto, que até então se relacionava com a emissão de
sons no espectro cantábile da voz, incorpora toda uma nova paleta de
possibilidades sonoras: gritos, sussurros, assobios, choros, risos, estalos,
efeitos percussivos, etc. No entanto, isso não quer dizer que irá se
recorrer simplesmente a um espontaneísmo, pois, sobretudo com
Berio/Berberian, o tratamento dado à voz é virtuosístico, baseado numa
partitura muito bem estruturada, embora não sendo evidentemente uma
partitura escrita nos moldes tradicionais, e que deixa alguns parâmetros
do som indeterminados, cabendo ao intérprete fornecer o material
adequado.
A peça Music for Two (by one) de 1984, não é construída a
partir de improvisação como 62 Mesostics, e sim a partir de uma espécie
de partitura como podemos ver a seguir, embora incorpore uma livre
interpretação:
84
Faixa 15 do CD 2.
113
85
A seguir, a primeira folha de Sequenza III, onde também
vemos uma nova escrita para uma nova vocalidade, e uma parte das
explicações dos significados dos elementos gráficos:
85
Este encarte faz parte do CD de Joan La Barbara Singing Through, vocal compositions by John
Cage, 1990.
114
115
116
Do livro Remembering the future (2007), série de
conferências proferidas por Berio em Harvard em 1993, João Marcos
Coelho
86
destaca alguns trechos, entre os quais:
“Berio cita um exemplo dado por Jakobson de um
missionário na África tentando convencer os membros de uma tribo local
a não andarem nus. “Mas você também está nu”, respondeu-lhe um
deles, apontando para sua face. “Mas somente meu rosto está nu”, disse
o missionário, e levou a seguinte resposta: “Bem, pra nós o rosto é tudo!”
“Para mim”, diz o compositor, “a música vocal mais significativa das
últimas décadas investiga justamente isso: a possibilidade de explorar e
absorver musicalmente o rosto inteiro da linguagem . A música vocal
lida com a totalidade de suas configurações, incluindo a fonética e os
sempre presentes gestos vocais. A música jamais vai se afastar das
palavras, nem as palavras da música.”
“Em 1965, me encontrei pela primeira vez com o lingüista
Roman Jakobson. Ele me perguntou: ‘Então, Berio, o que é música?’
Depois de um momento de frustrante silêncio, respondi que música é
tudo que ouvimos com a intenção de ouvir sica, e que qualquer
coisa (tudo) pode se transformar em sica. Sempre fui fiel a essa
resposta dada de bate-pronto - senão na prática, ao menos como ideal.
E acrescentaria agora o seguinte: qualquer coisa pode tornar-se música
na medida em que possa ser musicalmente conceitualizada, na medida
em que possa ser traduzida (transportada) para outras dimensões. Esta
concepção, esta tradução são possíveis dentro da noção de música
como Texto , um Texto multidimensional em contínua evolução.
86
Reportagem para o jornal O Estado de São Paulo em 11/03/2007.
117
2.3.4 Música Indeterminada
Essa idéia de que música é tudo que ouvimos com a
intenção de ouvir música, e que qualquer coisa (tudo) pode se transformar
em música, encontrâmo-la em grande ressonância com as idéias de John
Cage.
O trabalho de John Cage se perfila com o pensamento
musical de incorporação do ruído, portanto no caminho da utilização da
complexidade máxima do som, e a ela chega pelo negativo por assim
dizer, ao fazer com a sua famosa peça 4’ 33” (1953)
87
um enquadramento
temporal de silêncio musical, onde vêm para o primeiro plano, os sons-
ruídos presentes naquele dado momento, num dado lugar.
Cage torna sica o que não seria sica, mas apenas
ruídos. Elege o silêncio também como música, redimensiona o tempo,
subverte todas as noções concebidas do que é ou não música, do fazer
musical, do entendimento musical, da escuta. Com essa obra, exemplar
nesse sentido, Cage consegue tornar explícitas todas essas questões e
colocar em destaque a questão da escuta o quê e como escutamos o
que escutamos - como uma categoria importante e constituinte da nova
música.
A partir dessa obra, e de suas conseqüentes reflexões,
todo um amplo universo sonoro se abre a quem estiver atento a escutá-lo.
Novas abordagens, novas organizações sonoras, novos sons, novas
possibilidades para o fazer musical. A princípio qualquer som pode ser
material de uma composição musical.
Desde as peças para piano preparado dos anos 40, Cage
havia realizado uma escolha por uma música baseada no ruído e havia
criado um método de estruturação que prescindia dos parâmetros melodia
e harmonia, sendo apoiado exclusivamente nas durações. O tempo,
87
Uma versão desta obra está no DVD na faixa 36.
118
então, fora eleito o único fator determinante em música, pois seria capaz
de incluir ruídos e silêncios como elementos estruturáveis, coisa que o
pensamento tradicional, baseado em notas musicais, não era capaz.
Com essa peça é como se dissesse: livrem-se de
estruturas, harmonias, melodias, ritmos, formas estabelecidas, abram-se
ao indeterminado, ao acaso; permitam-se ouvir os sons. Precisamos ouvir
os sons neles mesmos, era o que costumava dizer. Em suas palavras:
“Onde os ouvidos estão em conexão com a
mente que nada tem a fazer, esta mente está livre para entrar
no interior do ato da audição, ouvindo cada som como ele é,
não como um fenômeno mais ou menos próximo de um
preconceito” (Cage, 1983, pg. 23).
Permitir-se ouvir os sons tais como se nos apresentam
pressupõe uma nova postura de escuta, uma nova concepção de música,
uma nova postura para o fruir musical. E isso é o que John Cage propõe,
um novo ouvido que, no silêncio, se abra a todos os sons.
Do seu encontro com a filosofia oriental do zen budismo,
Cage teria tirado o húmus que alimentaria suas idéias musicais e
existenciais. Nesta perspectiva o universo está composto por uma
quantidade infinita de seres e coisas e cada um deles é único, cada
elemento está no centro, movendo-se em todas as direções, penetrando e
sendo penetrado em qualquer momento ou lugar pelos demais. O que
aglutina esta unidade e interpenetração é o momento presente que, no
caso dos seres humanos, o objetivo é simplesmente experimentar dito
momento, que é único e não pode ser repetido. O que ocorre,
simplesmente ocorre. A vida nada mais é que uma sucessão de eventos
num tempo e num espaço, e a música não é senão um desses eventos,
que tem o mesmo grau de aleatoriedade e indeterminação que qualquer
outro. A seguir trechos de escritos de Cage, tais como ele os escreveu:
119
“Música Contemporânea não é a música do futuro
Nem a música do passado mas
simplesmente
Música presente conosco: este momento, agora,
Neste momento agora.” (Cage, 1983, pg. 43).
“Quando separamos sica da vida o que nós conseguimos é arte (um
compêndio de obras-primas). Com a música contemporânea, quando é
realmente contemporânea, nós não temos tempo de fazer esta separação
(a qual nos protege da vida), e então música
contemporânea não é tanto arte quanto é vida
e qualquer um que a faça, tão logo
termina uma começa a fazer outra, como as pessoas
que seguem lavando pratos, escovando seus dentes, caindo no sono e
daí em diante” (Idem, pg. 44).
“ A singularidade ,
tendo um aspecto particular , está extremamente perto
de estar aqui e agora. E eu imagino que se a música contem-
porânea continuar mudando no sentido em que eu estou mudando,
o que se fará será libertar cada vez mais completamente
os sons das idéias abstratas sobre eles e cada vez mais ex-
atamente deixa-los ser fisicamente, singularmente, eles mesmos .
Quer dizer: conhecer mais e mais não o que eu penso que
um som é, mas o que ele realmente é em todos os seus
detalhes acústicos, e então deixar esse som existir, ele próprio,
mutável num ambiente sonoro mutável.
Eles são com
respeito ao contraponto, à melodia, à harmonia, ao ritmo, e
todos os outros métodos musicais, sem sentido. Eles são real-
120
mente sem propósito mas, em seu despropósito,
expressando a própria vida que flui deles
, em todas as direções. O silêncio rodeia muitos deles de forma
que passam a existir no espaço, desimpedidos uns dos outros
,
mas se interpenetrando uns nos outros pelo fato de Feldman
nada ter feito para impedi-los de serem eles mesmos
. Ele não está preocupado com a continuidade porque ele sabe
que qualquer som dá seqüência a qualquer outro.
(Cage, 1985, pg 99, 100)
Nenhum som teme o silêncio que o extingue. E
Nenhum silêncio existe que não esteja grávido de sons”
(Idem, pg. 98).
“Em outra palavras, não há ruptura
entre espírito e matéria. E para compreender isso,
só é preciso despertar subtamente para o fato”
(Idem, pg. 111)
Se a palavra “música” é sagrada e reservada
para os instrumentos do século XVIII e XIX, nós podemos
substituí-la por um termo mais significativo: organização do
som.” (Cage, 1983, pg.3).
Todas essas idéias de Cage
88
são disseminadas em suas
classes de composição no final dos anos 50, quando também nasce o
88
Mais sobre as idéias e o trabalho de Cage, ver faixas 35-38 do DVD que acompanha este
trabalho.
121
movimento fluxus, citado, e encontra total ressonância nos movimentos
artísticos experimentais dos anos 60, também sensibilizados com a
filosofia oriental e a abertura para o aqui-e-agora, com a idéia de contínuo
entre arte e vida, - idéia também propagada por Artaud que repercute nos
anos 60 e 70 - , o desejo de experimentar novos sons, novas maneiras
de produzi-los, com a abertura para o total, a incorporação da
complexidade máxima do som, com o conceito e a vivência do happening
vindo dos movimentos de vanguarda teatrais como o Living Theatre de
Julian Beck e Judite Malina, por exemplo, com a abertura para a
improvisação, com a noção de processo em arte, com a interpenetração
das várias linguagens artísticas.
Não à toa John Cage foi um dos músicos mais influente na
segunda metade do século XX, sobretudo nos anos 60 e 70. Com seu
pensamento musical e existencial orientou músicos e artistas de outras
linguagens a ousarem num caminho de liberdade criativa, em busca de
novas sonoridades, novas relações com a sica, com a escuta, com a
vida.
“Para Cage a música não é uma técnica de compor
sons (e silêncios), mas um meio de refletir e de abrir a cabeça do ouvinte
para o mundo”.
89
Esse caminho musical, sem dúvida, abriu o campo para a
experimentação vocal. A sua Ária para soprano (1958) tem uma notação
em curvas coloridas e interrompidas que deixam livre à intérprete a
escolha de quaisquer estilos (lírico, folclórico, jazz, canção napolitana,
ópera, etc.) além de toda a sorte de ruídos (choro de bebê, ganido,
gemido voluptuoso, etc.), podendo ser cantada junto com fontana mix ,
mistura de vários teipes.
90
O chamado, digamos assim, para abrir os ouvidos a outros
sons, aos ruídos, aos sons cotidianos, a outras possibilidades de criação
musical e artística, ao aqui e agora, ao experimentalismo, à
89
Campos, Augusto de. Prefácio in De segunda a um ano, John Cage, 1985.
90
Idem
122
performance corporal, à integração arte-vida, à abertura a novas formas
de existência, ao happening, sem dúvida influenciou enormemente a
configuração de uma nova vocalidade, a qual vem sendo chamada neste
trabalho de voz contemporânea.
A noção de acaso com que ele também trabalha é uma
forma de ajudar a mente a se libertar de idéias pré concebidas. Por isso a
improvisação, que lida com o acaso, é um atalho importantíssimo para
mudar a mente e se permitir outros sons.
2.3.5 Música de Livre Improvisação
A música nasceu e se forjou em práticas de improvisação,
isto é, em atos simultâneos e espontâneos de criação e execução.
Naturalmente toda essa prática foi sendo substituída gradualmente pela
notação musical que foi se aprimorando e transformou-se em música
impressa, o que fez com que a improvisação perdesse importância, e
consequentemente, a criação e a execução em tempos separados
tornaram-se uma “natureza” do fazer musical, e os sons transformados
em símbolos gráficos foram confundidos com a própria música. Mas, é
claro, temos o Jazz, dentro da música ocidental, que resgata a
improvisação para a sua própria razão de ser, ou a música indiana, por
exemplo. E temos a livre improvisação. Um caminho aberto sem dúvida
por John Cage e pela “tendência de radicalização dos princípios de
renovação constante da prática musical por parte de grupos de
performance de free jazz europeus”
91
91
De acordo com o músico e free improvisor Derek Bailey, citado por Rogério Costa em O músico
enquanto meio e os territórios da livre improvisação. 2003
123
Contudo, em Cage não a preocupação com o som em
si, o que importa é o conceito do som e de processo, o que não ocorre
com a livre improvisação, conforme nos esclarece Rogério Costa (2003).
Como nos mostra Costa, o Jazz, o blues, a música
indiana, a música flamenca, o chorinho, a música barroca, por exemplo,
seriam expressões de improvisação idiomática, pois são estilos que
demarcam um território, um idioma específico, com suas características
harmônicas, melódicas, rítmicas. As regras estão em sua estrutura
abstrato-constante, e cada sessão de improvisação é uma realização das
variáveis possíveis. Os músicos dispostos a improvisar em cada estilo
conhecem as regras de cada idioma, e, portanto, conversam a mesma
linguagem. Trata se de um jogo com regras que todos os participantes
devem conhecer previamente.
a livre improvisação, é um jogo sem regras prévias, as
quais são criadas coletivamente a cada jogo. É um jogo ideal, onde o
compromisso se com o processo e não com a forma. A música de
improvisação é uma “música de fazer”, uma música em ação, é o
pensamento musical em tempo real, daí a noção de processo ser muito
importante. Mas na livre improvisação o que está em jogo é a criação total
em tempo real, o pensamento voltado para a criação, do jogo, das regras,
da própria forma musical que vai sendo gestada.
Rogério Costa
92
nos lembra que a criação vem de uma
necessidade lúdica, sem o qual o jogo não acontece. que se ter o
desejo de. Desejo de jogar, desejo de criar, de transgredir, de conversar,
de se lançar no vazio informe, e aos poucos ir materializando o som no
espaço como um escultor sonoro, sem perder a percepção do fluxo
energético que tudo liga e conduz. Transgredir os idiomas, buscar
encadeamentos sonoros para além das figuras idiomáticas. Conversar -
como numa conversa normal , informal sem regras pré-existentes , e
onde trocas de interações diversas : de informações , opiniões ,
92
Muitas idéias de Rogério Costa foram extraídas de suas aulas da disciplina O músico enquanto
meio e os territórios da livre improvisação, ministrada em 2004, no programa de pós-graduação
do departamento de música da ECA-USP.
124
sensações , olhares , etc . Na improvisação livre as propostas se apóiam
na materialidade sonora e em suas múltiplas possibilidades de
transformação e relacionamento e não nas linguagens, idiomas e
sistemas musicais social e historicamente definidos.
A percepção do fluxo energético que tudo liga e conduz
nos leva a entender que, na livre improvisação, a ênfase está colocada na
sensação e não na narração. Cada acontecimento é único, o depende
dos anteriores ou posteriores para adquirir sentido. A sucessão de
instantes vai se dando no fluxo do devir, que vai sendo direcionado pelo
pensamento musical dos sicos participantes. Como nos diz Rogério
Costa, o arsenal de soluções pessoais vai se equilibrando com a busca
do novo, bem como as relações entre o premeditado, o previsto, o acaso
e o imprevisto; o pretendido e o atingido, o diálogo entre os músicos.
Importante também é o desejo que está no presente e impulsiona a
performance, que, sem ele, morre. O desejo/decisão aciona o passado de
maneira intencional e lida com a surpresa e o imprevisto de maneira ativa
e prospectiva, engajando o músico no fluxo dos instantes que vão
gerando uma forma musical ou sonora, criada coletivamente, onde a
essência é o processo, pois estamos lidando com o tempo presente. Os
objetos sonoros vão sendo criados é um evento em movimento - , a
partir da interação dos músicos , que , numa conversa musical , vão
gerando um caos criativo que caminha para uma forma que vai se
fazendo na hora . Tempo presente que contém o passado, através dos
sistemas de referência, dos procedimentos usuais, e que contém o futuro
como busca, desejo. Memória e imaginação caminhando juntas o tempo
todo.
A música improvisada é particularmente instrumental,
contudo temos a voz também querendo brincar neste jogo.
No Jazz, onde se concebe a improvisação vocal através
do scat singing, concebe-se a voz como um instrumento, que fará escalas
e improvisará como um instrumento, através de vogais e sílabas sem
conteúdo semântico, respeitando naturalmente as regras deste território
125
idiomático. As técnicas vocais, claro, também são compatíveis, precisam
ser, com cada território idiomático.
Mas quando pensamos na livre improvisação, no espaço
vazio a ser preenchido pela criação, em sons para além de idiomas
definidos , quando pensamos nos objetos sonoros de Pierre Schaeffer ,
quando pensamos em parâmetros de tessitura, fluxo energético,
paisagem sonora (conjunto de sons ouvidos num determinado lugar , na
definição de M. Schafer) , ... toda uma outra concepção de inserção vocal
se configura .
Na livre improvisação, a voz necessita ser concebida em
sua totalidade, o que implica em considerarmos a voz “suja” como parte
integrante. O grito, a voz gutural. Palavras sem significado, trabalhadas
em freqüências que sua materialidade fonológica sugere. Palavras com
significado também, com novo significado.
2.3.6 Musicas não Ocidentais
A aproximação com músicas ou simplesmente escalas
oriundas de regiões não européias não é um fato novo. Mozart havia
usado melodias e ritmos turcos, Liszt e Brahms usaram as danças
húngaras, Mahler utilizou-se de melodias pentatônicas evocando sica
chinesa ( Das Lied von der Erde, 1908), Darius Milhaud utilizou melodias
e ritmos brasileiros no balé boef sur le toit (1919) e em Saudades do
Brasil para piano (1921). Zoltán Kodály, Béla Bartók, Mussorgsky, Heitor
Villa-Lobos, Aaron Copland, Manuel de Falla igualmente utilizaram-se de
elementos folclóricos de seus países.
Para Debussy, e para a música moderna, o seu encontro
com a música da Indonésia, o qual se deu por ocasião de uma feira de
126
mostra de cultura oriental em Paris (1889), foi crucial. Novas escalas,
nova forma de estruturar a música, novos timbres, enfim, uma nova
sonoridade foi percebida por ele, que a absorveu e a incorporou em seu
trabalho musical, gerando uma nova música.
A música não européia foi sendo percebida como um
material sonoro inspirador, pois original e inovador, capaz de lançar um
novo sopro à música tradicional tonal.
Este movimento foi, em grande parte, instigado pelo
americano Henry Cowell, que de 1930 a 1950 viajou através da Ásia e
oriente médio, tendo incorporado em suas músicas várias referências a
essas culturas, utilizando-se inclusive de instrumentos da cultura asiática.
Outros que absorveram e traduziram para suas músicas sonoridades e
conceitos orientais foram John Cage, Lou Harrison e Harry Partch
(Schwartz e Godfrey, 1993).
Harry Partch, por exemplo, usa acalantos chineses,
canções de rituais da puberdade do Congo, canções de rituais Yaqui,
entre outros, explorando novos sistemas de afinação.
Na obra Turangalîla- symphonie (1948), de Messiaen,
observa-se a influência indiana no ritmo e a influência dos gamelões da
Indonésia no timbre exótico e metálico da percussão.
George Crumb, em Ancien Voices of Children (1970), inclui
referências às canções de índios americanos, idiomas folclóricos
espanhóis, músicas da corte japonesa, e música de gamelão da
Indonésia.
O encontro de Steve Reich, La Monte Young, Terry Riley e
Philip Glass com a sica oriental, e a sua estrutura cíclica,
harmonicamente estática, e com repetições de padrões, gerou a música
conhecida como minimalista (Idem, 1993).
A função ritualística da música nas culturas orientais ou
indígenas da América também foi algo que marcou compositores, que
estavam sensibilizados com outras formas de se vivenciar a música.
127
Harry Partch (1901-1974) fez uma distinção entre sica
abstrata e música corporal. Asica ocidental seria abstrata, direcionada
para a mente, a música de outras culturas seria uma música corporal,
uma vez que a voz e o corpo são sempre veículos essenciais de
expressão. A arte corporal é fundamentalmente enraizada na realidade
física e emocional da vida, transmitida através do canto, da poesia, da
narração de estórias, da atuação, e da dança, integradas numa ação
singular. E era isso que ele procurava em seu trabalho musical (Idem,
1993).
Cage, como foi dito, inspirou-se na filosofia zen-budista
e no livro do oráculo chinês I Ching.
David Hykes dedicou toda a sua carreira à forma vocal
baseada nos cantos dos budistas Tibetanos e nos throat singers da
Mongólia. Nesses cantos, ocorre a formação de um acorde vocal
produzido por uma única voz, onde se utiliza uma técnica que trabalha
com os harmônicos do tom fundamental.
93
Toda essa busca por sonoridades e formas diferentes de
se vivenciar a música encontrada nas sicas não ocidentais,
naturalmente influenciaram a voz ocidental, concebida como um
instrumento em busca igualmente de novas sonoridades e vivências. O
contato com outras formas possíveis do cantar, com outras formas
possíveis de se usar o aparelho fonador, sem dúvida foi fundamental para
a ampliação do repertório vocal ocidental.
A influência oriental do canto com os harmônicos, por
exemplo, é bastante observada no trabalho de Demetrio Stratos,
notadamente em Passagio I, II ( diplophonie e triplophonie).
94
Nos anos 60 do século XX, eclodiu o interesse por
músicas, escalas, estruturas musicais, instrumentos, timbres vocais e
instrumentais, vivências musicais, etc., não ocidentais, tanto na sica
erudita quanto na música popular. Não ocidentais aqui também incluídas
93
Exemplos nas faixas 21 e 22 do CD 2, e 24, 25, 26 e 27 do DVD.
94
Faixa 13 do CD 2.
128
as músicas folclóricas de países ocidentais, porém que não fazem parte
da tradição européia.
Isso se deve, segundo Joseph Kerman (1987), ao fato de
que, desde os anos 50, havia um sentimento disseminado associado a
atitudes anti-establishment, que repercutiu tanto no âmbito da música
popular, quanto no âmbito da música erudita.
A etnomusicologia, como disciplina acadêmica, difundiu-se
rapidamente nos EUA nos anos 60. E isso porque, com sua abrangência
antropológica, estudando não apenas a música erudita ocidental, mas
qualquer música enquanto música, inserida num contexto cultural e social,
estava assim em sintonia com as aspirações largamente presentes na
época. E até hoje podemos dizer, pois hoje mais do que nunca é
difundida a música do mundo.
Nos anos 60 e 70, resistir e combater as regras clássicas
da sica era também uma questão política. Combater a música “vinda
de cima”, vinda da elite. Neste contexto, era hora de deixar soar as
músicas e vivências musicais consideradas à margem da história clássica
européia. Discussões à parte, o fato é que a etnomusicologia alargou o
campo de visão da musicologia, tradicionalmente ocupada com questões
analíticas da música européia, ao colocar a problemática do contexto
cultural, ao valorizar o diferente, ao questionar a noção de música inferior.
Diante disso tudo, entendemos a repercussão inevitável de
todas essas referências sobre a configuração de uma nova vocalidade
como forma artística.
A distinção feita por Harry Partch entre a música abstrata,
ocidental, e a música corporal, não ocidental, vem ao encontro do que
falamos anteriormente sobre a separação corpo-mente, presente no
ocidente em sua filosofia, música e práticas. É justamente a superação
desta dicotomia, ou a tentativa de, que irá marcar toda a revolução no
pensamento filosófico e artístico ocidental, sendo a voz contemporânea,
uma expressão de um novo corpo que se quer pleno e integrado.
129
2.3.7 Algumas notas a mais
Definir a música meramente como sons teria sido
impensável alguns anos atrás, disse o compositor, professor e escritor
Murray Schafer em 1977, data da edição do seu livro The tuning of the
world. Assim ele resume a música do século XX:
“Pouco a pouco, no decorrer do século XX,
todas as definições tradicionais de música foram caindo por
terra em razão da abundante atividade dos próprios músicos.
Em primeiro lugar, pela enorme expansão dos instrumentos de
percussão nas nossas orquestras, muitos dos quais produzem
sons sem altura definida ou arrítmicos; depois, pela introdução
de procedimentos aleatórios, nos quais todas as tentativas para
organizar os sons de uma composição racional foram
suplantados pelas leis “mais altas” da entropia; em seguida,
pela abertura dos recipientes espaço-temporais que chamamos
de “composições” ou “salas de concerto” para permitir a
introdução de todo um mundo novo de sons situados fora delas
(em 4’ 33’’ Silence de Cage, ouvimos apenas sons externos à
própria composição, que não passa de uma cesura
prolongada); depois, pelas práticas da musique concrète, que
insere qualquer som ambiental na composição por via de fita; e,
finalmente, pela música eletrônica, que em todo mundo nos tem
revelado toda uma nova gama de sons musicais, muitos deles
relacionados com a tecnologia industrial e elétrica” (Schafer
1997, pg. 20).
E conclui:
130
“Hoje, todos os sons fazem parte de um campo
contínuo de possibilidades, que pertence ao domínio
compreensivo da música. Eis a nova orquestra: o universo
sonoro! E os músicos: qualquer um e qualquer coisa que soe!”
(Idem).
Eis a grande transformação do pensamento musical no
século XX: qualquer som, todos os sons podem ser música, isto é,
organizados com um propósito musical, - que é sempre um discurso no
tempo e no espaço-, para além da harmonia, melodia, contraponto, ritmo
e demais parâmetros musicais desenvolvidos e fixados até o século XIX.
E, naturalmente, a voz faz parte desse contínuo de possibilidades que
pertence ao domínio compreensivo da música.
O que acontece com a voz é que, na medida em que
pertence a um corpo e esse corpo é sujeito às repressões sexuais e
sociais, a sua transformação, enquanto estética musical, foi acontecer
realmente nos anos 60 do século XX – quando a reunião de uma série de
fatores possibilitou essa transformação. No entanto, ainda hoje, no final
da primeira década do culo XXI, essa nova vocalidade que se
apresenta como nova diante de toda a história da música vocal ocidental -
ainda não foi assimilada e em grande parte não é aceita.
A forma a que chegou a voz contemporânea é menos
assimilada e aceita que a forma musical da música contemporânea como
um todo, porque temos mais resistência com esse instrumento particular –
a voz que qualquer outro. Pois a voz sempre irá nos remeter a um
corpo, sua concretude, podendo nos trazer suas imperfeições, seus
desejos não ditos, seus abismos, sua fragilidade, seus medos, e
frequentemente prefere-se o lado apolíneo da voz, a perfeição do ser
95
.
95
Relembrando os dois princípios fundamentais presentes na cultura Grega, e que irão servir de
matriz para analisar a cultura Européia, de acordo com Nietzsche: O princípio Apolíneo (do deus
Apolo) simboliza a serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem
tradicional da Grécia Clássica e que aparece frequentemente associada às figuras de Sócrates e
131
Essa nova vocalidade traz em muitos trabalhos, como
podemos observar, a manifestação, ou a revelação do imperfeito, do ruído
do som e do sentido -, daí a dificuldade maior em absorvê-la, pois a voz
possui essa qualidade demasiadamente humana.
Novos conceitos foram desenvolvidos para essa nova
música. Novas prioridades e conceitos necessitaram de uma nova
terminologia, a qual se baseou em nossa escuta, análise, discussão e
apreciação musical.
Schwartz e Godfrey (1993) listam nove conceitos para se
analisar a nova música: a questão do tom na música, do tempo, da cor do
som, da textura, do processo, do ritual da performance, da paródia
(historicismo), da tecnologia e da notação. Estes conceitos em si o são
novos, ressaltam, mas sim a abordagem dos compositores que podem
agora examinar e explorar individualmente o potencial de cada elemento
desses.
O tom, a tonalidade, a organização das alturas numa
sintaxe harmônica fora o centro da sica ocidental, e deixando de ser
esse centro cada compositor pode decidir sobre como (e se) usa a
tonalidade. Eles podem usar qualquer sistema de afinação dentro da
oitava e podem formar uma escala de qualquer combinação de tons. Um
tom pode funcionar como uma chave central, ou vários tons podem ter a
mesma significância. O compositor pode escolher dar relevância ao tom,
ou decidir compor com sons que não têm alturas identificáveis.
O tempo, também sempre fora um elemento essencial,
enquanto métrica, ritmo, pulso, andamento, enquanto um transcorrer
linear do presente para o futuro. Agora, após 1945, os compositores
passaram a se fascinar nem tanto com as possibilidades rítmicas, mas
com o tempo em si, com o potencial de experimentação do fenômeno
temporal. A métrica e os padrões rítmicos podem ser organizados em
qualquer rmula de compasso, mudando a métrica e as subdivisões dos
Platão. O Dionisíaco (do deus Dionísio) simboliza as forças impulsivas, o excesso transbordante, o
erotismo, a orgia, a afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade).
132
tempos. Eventos rítmicos também não precisam aderir a um padrão
métrico. O compositor pode estruturar eventos no tempo em qualquer
grau de espontaneidade, irregularidade, ou complexidade. Novos
caminhos de perceber o tempo são explorados pelo compositor para que
se libere da experiência estritamente linear do tempo, da orientação
passado-presente-futuro.
A cor do som, o timbre, por muito tempo esteve
associada aos outros parâmetros musicais, mas no século XX esse
elemento tornou-se um campo privilegiado de exploração. Buscou-se não
somente instrumentos inusuais ou especiais para produzir sonoridades
únicas, como também buscou-se explorar novas sonoridades e recursos
de instrumentos tradicionais, como por exemplo em registros extremos,
em articulações, em dinâmicas. Uma vasta coleção de cores sonoras
passou a se apresentar ao compositor, que pode trabalhar com sons
puros, gravados, distorcidos, sintetizados eletronicamente, sons de
instrumentos tradicionais ocidentais, de outras culturas, ou ainda de
novos instrumentos inventados. Pode trabalhar com qualquer som vindo
de qualquer fonte sonora.
A textura em música, que sempre foi identificada com
termos pictóricos, como densa, transparente, pesada, leve, emaranhada
ou simples, sempre esteve associada aos outros parâmetros musicais
como alturas, ritmo e timbre. Porque, por exemplo, várias notas tocadas
juntas, com apenas um semitom entre elas, o resultado é um som
apertado em cacho (cluster), gerando uma textura densa e emaranhada.
Esse som sendo tocado sul ponticello por 15 violas é completamente mais
rarefeito que sendo tocado por 15 trombones em pleno vibrato. O que
acontece com a música do século XX é que a textura em si será
enfatizada, sendo a música trabalhada como uma massa sonora, que vai
sendo moldada de acordo com pontos no silêncio.
O processo através do qual um trabalho passa a existir
tem sido o maior foco de exploração e inovação para muitos
compositores. Processos que governam a duração de eventos no tempo,
133
processos baseados em séries numéricas, em relações matemáticas, em
aspectos do fenômeno natural, na casualidade. Muitos compositores se
preocupam com os métodos composicionais, talvez por encontrarem-se
diante de muitas possibilidades.
O Ritual da performance musical também muda. Com as
novas formas de se tocar (onde se explora os extremos dos registros dos
instrumentos, por exemplo), com a utilização de novos instrumentos, com
o uso de instrumentos tradicionais transformados, como por exemplo, o
piano preparado de Cage, com uma nova forma de cantar utilizando o
corpo diferentemente do tradicional, com novas concepções sobre o
tempo, sobre a utilização do espaço acústico, sobre o fazer musical,
sobre o que pode ser música, com as influências não ocidentais sobre
como se vivenciar a música, com a participação da platéia, com
improvisação, etc., inevitavelmente o ritual da performance transforma-se.
Ocorre também a interação com outras artes, surgindo assim um
espetáculo musical multimídia.
A paródia o pensada em termos de piada, mas de
historicismo, sempre fora um recurso utilizado para se criar climas
específicos dentro de uma música, e após a grande divulgação através do
rádio e de gravações em discos de músicas de vários gêneros, culturas e
épocas, esse recurso passou a ser largamente empregado.
O novo caminho radical para a transformação dos itens
acima mencionados foi possível com a inovação da tecnologia e da
notação musical. O desenvolvimento da tecnologia em captação e
gravação de áudio, e novas formas de notação para a nova música
possibilitaram o desenvolvimento desta.
Um conceito importantíssimo para a nova música é o
conceito de escuta, pois junto com a transformação da música ocorre a
transformação da escuta. Ou melhor, ocorre a necessidade da
transformação da escuta para que se possa adentrá-la. E é sobre essa
questão que iremos tratar no capítulo seguinte.
134
Capítulo 3
Audição, Escuta
Vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como ele corre o mundo
para levar-me longe.
(excerto de O Vento na Ilha, Pablo Neruda)
Há um grande silêncio que está sempre à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.
( O Silêncio, Mário Quintana)
Agora nada faço além de ouvir...
Ouço todos os sons que correm juntos, combinados,
Que se fundem ou se sucedem,
Sons da cidade e de fora da cidade, sons
Do dia e da noite...
(Songs of Myself, Walt Whitman)
135
Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria? (...)
Vozes, vozes. Ouve meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
(excertos de Primeira Elegia, Rainer Maria Rilke)
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto ... (...)
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."
(Excerto de Ora (direis) ouvir estrelas! , Olavo Bilac)
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.
Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.
Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis?
Escuta só meu coração.
(Glosa, Fernando Pessoa)
136
A
lgumas idéias nos ecoam a partir dessas poesias. Ouvir
está num plano, escutar em outro. Ouvimos um som, escutamos seu
sentido. È o silêncio que realmente escuta, portanto o sentido, o
significado está no silêncio. A verdadeira audição está além do simples
ouvir. Ouve-se espiritualmente, ouve-se emocionalmente. Os poetas
ouvem o inaudível, pois se permitem ouvi-lo. Tudo está aí para se ouvir,
escutar, basta permitir-se.
O que temos com isso são as várias possíveis abordagens
sobre o ouvir, escutar, sobre o quê e como ouvimos ou escutamos, sobre
o valor do silêncio, o valor da escuta consciente, a liberdade de permitir-
se ouvir o que não é dado de imediato, o convite a abrir os ouvidos e ouvir
as várias dimensões possíveis.
Se é verdade que a atenção à audição sempre esteve
presente na humanidade, caso contrário não se desenvolveria sequer
como sociedade, - é somente no século XX que a questão da escuta
ganha realmente um status privilegiado de objeto de estudo, pesquisa e
reflexão. Assim, com a música do século XX nasce uma nova abordagem
sobre a escuta, necessária para a fruição de uma nova música. Ouvidos
confinados a uma escuta pré-determinada são incapazes de entender
essa nova música que passa a existir no século XX. Luigi Russolo, Edgar
Varèse, Pierre Schaeffer, John Cage, Murray Schafer estão entre os
músicos que mais contribuíram, seja com obras musicais, literárias, ou
ambas, para a conscientização e o alargamento da noção de escuta. Mais
à frente veremos melhor essas contribuições.
A função da audição, que é por certo importantíssima e
desenvolveu-se, sofisticou-se juntamente com o desenvolvimento
musical, é o sentido mais antigo que possuímos, anterior à visão, prévio à
linguagem, intra-uterino. Ela sempre esteve presente no ser humano
saudável e prestou-se a várias necessidades como à da sobrevivência em
meio hostil.
Foi através dela que o homem pode ouvir os sons emitidos e
137
desenvolver posteriormente a linguagem. Sem a audição o ser humano
não falaria, nem cantaria, ou seja, não se comunicaria, e sem
comunicação não desenvolveria a linguagem e nem se desenvolveria em
sociedade
96
. Ademais, reside no ouvido, além da capacidade de ouvir,
outra função importantíssima: a de mantê-lo de pé, em equilíbrio.
Graças às escavações das tumbas reais de Ur,
encontramos registros de instrumentos musicais mesopotâmicos do
século XXV aC ciclo da primeira dinastia , iniciada no culo XXVIII
(Robertson e Stevens, 1968), e isso mostrou-nos quão antigo é o fazer
musical. Que, claro, iniciou-se a partir da audição.
Para uma história mais recuada no tempo ainda, Robert
Jordain (1998, pg. 385) nos informa que arqueólogos franceses no final
dos anos 80 do século XX
exploraram cavernas pré-históricas no
sudoeste da França de um jeito bem singular: cantando. Com isso
descobriram que os lugares com mais pinturas eram justamente os mais
ressonantes. Disso deduz-se que, ao lado de representações gráficas,
havia a presença de som, e sugere que as cavernas eram locais de
cerimônias religiosas que envolviam música. O interessante a observar
aqui é que, cantando e se ouvindo, esses arqueólogos encontraram os
pontos de maior ressonância, da mesma forma que muito provavelmente
fizeram nossos ancestrais pré-históricos. Podemos dizer com Tomatis
(1969, pg.73) que “o conhecimento do mundo é um conhecimento sonoro
deste mundo; ou melhor, parece que penetramos nele pelo conhecimento
de nossa voz”. E o conhecimento de nossa voz se dá, claro, ouvindo-a.
Nas palavras de Tomatis:
“A partir deste momento assistimos à
elaboração do condicionamento áudio-vocal. Subitamente,
96
Pode-se objetar dizendo que o ser humano se comunicaria sem a fala, como de fato ele o faz por
outros meios, através de sinais variados, mas com certeza seria muito mais lenta e complicada a
evolução da humanidade. Pode-se ainda questionar a eficácia das palavras que para muitos já não
dizem mais nada, mas isso é uma outra história.
138
enquanto ouvimos, enquanto chamamos (talvez tenhamos
vociferado), tomamos consciência de uma possibilidade
extraordinária que por sorte nos tocou: a de fazer ruído. Mas
que ruídos! Altos, baixos, agudos, graves, curtos, longos, fortes,
menos fortes. Temos um jogo que se inscreve em nossa
aprendizagem humana, muito antes do uso de nossas pernas.
Gritar, contestar, ouvir-se gritar, estranhar o som que acaba de
escutar, reconhecer-se capaz de emitir e de mandar, ou em
certa medida, ouvir essa emissão, é talvez o jogo mais atrativo
que cabe imaginar (idem)”.
Aqui se insere outro ponto importantíssimo para esse
trabalho: a emissão da voz está intrinsecamente vinculada à escuta, que
por outro lado não é única, simplesmente objetiva, ou linear, como
veremos. Portanto uma determinada escuta implicará em uma
determinada emissão vocal. E isso se dá em vários planos, do mais
elementar cnico ao estético, cultural. Pois a audição, assim como a
visão, está condicionada a padrões culturais. Ou melhor, ao que
entendemos e ao que interpretamos do que vemos ou ouvimos.
Até aqui tocamos em várias questões que englobam a
questão da escuta e tentaremos organizá-las da seguinte maneira:
iniciaremos com o desenvolvimento e a importância da noção de escuta
para a música do século XX, através das contribuições dos músicos
citados; em seguida, a importante contribuição de Alfred Tomatis, médico
francês otorrino que dedicou-se a pesquisar profundamente a questão da
audição e produção vocal, para quem somos o que somos de acordo
como ouvimos, para quem “cantamos com o ouvido”. E finalmente
algumas considerações sobre a escuta e a voz contemporânea.
139
3.1 O século XX e uma nova escuta
A intensificação do processo de mecanização industrial e a
revolução elétrica durante o século XIX - e o constante aumento dos
ruídos resultantes desse processo - ampliou-se consideravelmente nas
primeiras décadas do século XX, sobretudo com a primeira grande
guerra. Por outro lado, três importantes revolucionários mecanismos
sonoros foram criados: o telefone, o fonógrafo
97
e o rádio. Com o telefone
e o rádio o som já não estava ligado ao seu ponto de origem no espaço, e
com o fonógrafo ele foi liberado de seu ponto original no tempo (Schafer,
2001, pg. 132).
Esta irrupção dos ruídos e por outra, a possibilidade de
gravação dos sons e desenvolvimento da eletrônica seriam
determinantes, conforme vimos, para o surgimento de uma outra
concepção e sensibilidade musical. A paisagem sonora
98
havia se
transformado drasticamente, o tempo havia se acelerado e encurtado, o
som não mais se prendia à fonte original. Esses fatos, em si marcantes,
não deixariam de perturbar sensibilidades atentas ao novo mundo.
É assim que em 1913 em seu manifesto futurista,
Russolo se expressa
com consciência das transformações que se
operaram nos decibéis e timbres ouvidos clamando por uma nova
estética:
97
Antigo aparelho destinado a reproduzir sons gravados em cilindros ou discos metálicos.
98
Termo cunhado por Murray Schafer designando os sons ouvidos num determinado período de
tempo, num determinado lugar.
140
“A vida antiga foi toda de silêncio. No século
XIX, com a invenção das máquinas, nasceu o Ruído. Hoje, o
ruído triunfa e domina soberano sobre a sensibilidade dos
homens. Durante muitos séculos, a vida se desenvolveu em
silêncio, ou ao menos em surdina. Os ruídos mais fortes que
interrompiam este silêncio não eram nem intensos, nem
prolongados, nem variados. que, excetuando os movimentos
telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as
cachoeiras, a natureza é silenciosa. (...)
Esta evolução da música é paralela ao
multiplicar-se das máquinas, que colaboram por todas as partes
com o homem. (...) A máquina tem criado hoje tal variedade e
concorrência de ruídos, que o som puro, em sua fragilidade e
monotonia, tem deixado de suscitar emoção.
Para excitar e estimular nossa sensibilidade, a
música foi se desenvolvendo até a mais completa polifonia e
até a uma maior variedade de timbres, ou coloridos
instrumentais, buscando as mais complicadas sucessões de
acordes dissonantes e preparando vagamente a criação do
RUÍDO MUSICAL. Esta evolução até o “som ruído” não havia
sido possível até agora. O ouvido de um homem do século
XVIII não teria sido capaz de suportar a intensidade
inarmônica de certos acordes produzidos por nossas
orquestras (triplicadas em número de intérpretes em relação
às antigas). Mas nossos ouvidos têm prazer com isto, desde
que educados pela vida moderna, tão pródiga em ruídos
díspares. Contudo, nosso ouvido não se por satisfeito e
reclama emoções acústicas cada vez mais amplas” (Russolo,
1986, pgs. 23,24).
141
O músico que muito proveito tirou do gosto futurista foi o
francês Edgar Varèse. Emigrou para os Estados Unidos em 1915 e
disseminou suas obras e idéias a partir de lá. Muito influenciado pela
leitura do livro A fisiologia do som, do físico Helmholtz, “conceberá a
música como sendo espacial, como corpos sonoros movidos no espaço”
(Vivier, apud Ferraz, 1998).
Segundo Ferraz (1998, pg. 52), Varése constrói suas
composições tendo o som como ponto de partida, transformado,
submetido a contrações, expansões, espaçamento, filtragens, alterações
espectrais. O som é a idéia, continua Ferraz, é a sua forma que a música
expõe: a forma é visível, pois ela é o próprio tratamento, as
transformações mesmas do som. Para Ferraz,
“A importância da obra de Varése está ligada ao
fato de que, em vez de tratar as notas as alturas
isoladamente, como no serialismo, ou agrupá-las
melodicamente como na música tonal e em Schöenberg, ele
trabalha com a noção de massas sonoras e agregados sonoros;
respectivamente, um grupo de sons homogêneos ou
heterogêneos reunidos num determinado bloco sonoro e a
composição de espectros sonoros resultantes da reunião de
freqüências relacionadas a determinados timbres, que o
compositor visa enfatizar” (Ferraz, 1998, pg. 52).
Varèse não escreveu sobre a escuta como Cage e
Schaeffer, Schafer ou Russolo e seu manifesto, no entanto deixou um
testemunho musical ímpar com suas obras como, por exemplo,
Hyperprisme, Integrales, Densité 21.5 e Ionisation, que por si geram
um novo sentido para a escuta.
142
Quando em fins dos anos quarenta do século XX, Pierre
Schaeffer criou a música concreta
99
, aquela que parte da gravação em
fita magnética de qualquer som encontrado, proveniente de qualquer
fonte sonora, não pensava em descrever a experiência da escuta.
Preocupou-se com questões de composição, mas que, em se tratando de
música concreta, poderiam ser esmiuçadas através de um
entendimento e aprofundamento da escuta. Assim, em 1966 publica o seu
'Traité des Objets Musicaux', um método para descrição da experiência da
música concreta.
Nesta obra, Schaeffer direciona a atenção aos sons por
meio da “escuta reduzida”. Baseada na fenomenologia de Husserl
100
, a
99
Exemplo faixa 39 do DVD.
100
A postura fenomenológica consiste em estudar o fenômeno tal qual nos
aparece através da consciência. No dicionário Aurélio lemos: “sistema de Emund
Husserl, filósofo alemão (1859-1938), e de seus seguidores, caracterizado
principalmente pela abordagem dos problemas filosóficos segundo um método
que busca a volta “às coisas mesmas”, numa tentativa de reencontrar a verdade
nos dados originários da experiência”.
Em
Cobra, Rubem Q. - Fenomenologia. Filotemas, Site www.cobra.pages.nom.br, Internet,
Brasília, 2001, rev. 2005.
encontramos a definição: A redução fenomenológica: A
fenomenologia é o estudo da consciência e dos objetos da consciência. A redução
fenomenológica (ou "epoche" no jargão fenomenológico), é o processo pelo qual
tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de
consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo.
Coisas, imagens, fantasias, atos, relações, pensamentos eventos, memórias,
sentimentos, etc. constituem nossas experiências de consciência. Husserl propôs
então que, no estudo das nossas vivências, dos nossos estados de consciência, dos
objetos ideais, desse fenômeno que é estar consciente de algo, não devemos nos
preocupar se ele corresponde ou não a objetos do mundo externo à nossa mente. O
interesse para a Fenomenologia não é o mundo que existe, mas sim o modo como
o conhecimento do mundo se dá, tem lugar, se realiza para cada pessoa. A
redução fenomenológica requer a suspensão das atitudes, crenças, teorias, e
colocar em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de
concentrar-se a pessoa exclusivamente na experiência em foco, porque esta é a
realidade para ela. Na redução fenomenológica, a oesis é o ato de perceber.
Aquilo que é percebido, o objeto da percepção, é o noema. A coisa como
fenômeno de consciência (noema) é a coisa que importa, e refere-se a ela a
conclamação "às coisas em si mesmas" que fizera Husserl. "Redução
fenomenológica" significa, portanto, restringir o conhecimento ao fenômeno da
experiência de consciência, desconsiderar o mundo real, colocá-lo "entre
143
escuta reduzida consiste em exercitar a escuta dos objetos sonoros
concretos que, para ele, segundo Costa (2003), é um fenômeno físico-
acústico, é uma realidade anterior, pré-existente e por isso, transcende às
variadas percepções que dele venhamos a ter.
As obras de música concreta, não sendo passíveis de
notação pela grafia das partituras tradicionais, dependiam unicamente do
‘ouvido’ para serem apreciadas e analisadas. Necessitavam, portanto, de
uma nova linguagem para sua ‘descrição’. Assim, portanto, a descrição
pormenorizada da escuta surge como uma importantíssima ferramenta
para o entendimento e a análise dos objetos sonoros.
Schaeffer busca apropriar-se do fenômeno sonoro,
independente de sua origem, para atingir o objeto sonoro e extrair dele
suas potências musicais. Ele buscava uma escuta livre de significados
externos associados ao som e, para isso, propôs uma situação
acusmática
101
. Esta situação acusmática leva ao que ele chama de
“escuta reduzida”. Conforme Schaeffer, o ato de redução da escuta
implica em neutralizar os valores abstratos e as referências concretas
associadas à origem do objeto sonoro, pois ele interessava-se pelo
próprio som em sua concretude. Podemos dizer que a escuta reduzida é
um caminho para se ouvir os potenciais sonoros para a criação artística.
O conceito de escuta reduzida é uma ferramenta para a avaliação dos
objetos sonoros. Trata-se de ouvir as qualidades internas do som, ouvir o
som nele mesmo, descontextualizando-o de suas referências externas e
de seu sentido associado. A escuta reduzida é, portanto, uma intenção de
escuta. No entanto, é importante salientar que a idéia de uma escuta
parênteses", - o que no jargão fenomenológico não quer dizer que o filósofo deva
duvidar da existência do mundo como os idealistas radicais duvidam mas sim
que a questão para a fenomenologia é antes o modo como o conhecimento do
mundo acontece, a visão do mundo que o indivíduo tem.
101
A situação acusmática diz respeito a uma prática na Grécia, na qual Pitágoras fazia-se ouvir
escondido atrás de uma cortina para que seus discípulos só se concentrassem na mensagem ouvida.
A intenção era de que apenas o texto fosse transmitido, sem apoio visual do gesto e da presença
cênica.
144
“pura”, totalmente descondicionada que subjaz ao conceito de escuta
reduzida de Schaeffer, parece hoje totalmente descartada. um
consenso no sentido de afirmar que “todo universo complexo e dinâmico
da escuta não se restringe apenas à atividade de ouvir sons (Rodrigues,
2007, p. 97)”.
Para Schaeffer, tratava-se de “negar o instrumento e o
condicionamento cultural, lançando-nos face a face com o sonoro e o seu
‘possível’ musical” (apud Ferraz, 1998). Com suas idéias, ele chamou a
atenção para a questão de se ouvir a concretude sonora nela mesma,
atentando para uma intenção de escuta consciente.
Para o entendimento aprofundado da noção de escuta, de
como ela se processa, Schaeffer classificou os modos de escuta em
ouvir, escutar, entender e compreender.
Ouvir é uma percepção bruta, um ouvir passivo. É a
audição da paisagem sonora em que estamos inseridos. É a nossa
resposta imediata ao som. Nas palavras de Ferraz (1998), não significa o
simples contato com o som, mas sim um contato em que exista uma
reação do ouvinte, se bem que não exatamente consciente. Como por
exemplo, elevar a voz quando um ruído qualquer se apresenta sem que
dele se tenha total consciência.
Escutar é tentar entender o que aquele som significa, é
escutar o semântico. De acordo com Ferraz, aqui está presente uma certa
intenção do sujeito, que busca identificar os dados sonoros que o som
indica. É a reação com o som de modo que este apresente características
específicas, as quais poderão ser acessadas posteriormente pela
memória.
Entender é uma escuta qualificada, um ouvir de perto,
uma atitude aproximativa, um enquadramento. Esta etapa Schaeffer
separa em ouvir-entender e escutar-entender. Nas palavras de Ferraz, o
ouvir-entender corresponde a uma escuta que põe o som no espaço. Ela
dispara operações como a de localizar os sons (próximos-distantes;
145
obsessivos-pontuais; fortes-fracos; etc). É assim que opera a escuta
humana, quando em meio a um turbilhão de vozes e ruídos, seleciona
aqueles sons aos quais o receptor será interlocutor. no escutar-
entender o que se é uma espécie de aprofundamento nas nuanças do
objeto, uma escuta qualificada em que o objeto é explorado sem que seja
esgotado e também associado a experiências anteriores.
Compreender é todo o trabalho de dedução, comparação
e abstração para além do que é “dado entender”. Ainda de acordo com
Ferraz, nesse ponto é que se realiza a seleção de um significado em meio
à cadeia de significados observados no escutar-entender. Tanto em
entender como em compreender tem-se por finalidade buscar um sentido.
Mas na quarta escuta o sentido é aquele da linguagem, é o sentido
enquanto significado, o reino próprio ao conceito.
Temos, portanto, que ouvir e escutar referem-se a algo
concreto, e entender e compreender referem-se à atividade de abstração,
quando se relaciona o som com outros sistemas de referência. Estas
quatro etapas devem ser entendidas como complementares e que
interagem entre si, sendo cada vez destacada uma em relação às outras.
A partir do reconhecimento da percepção sonora,
Schaeffer identifica dois pares de atitudes ou tendências espontâneas de
escuta: a escuta natural e a cultural, e a escuta banal e a especializada.
Escuta natural é a função prioritária e primitiva de ouvir
um som como indicativo de um evento ou acontecimento. Natural, relativo
à natureza, função presente em toda a humanidade e em grande parte
dos animais. É a capacidade de ouvir um som concreto.
Escuta cultural corresponde à abstração, ao simbólico,
ao compreender. Esta escuta está vinculada às referências culturais, que
são específicas a cada cultura, a cada povo; não é, portanto, universal.
A oposição entre escuta banal e especializada procura
diferenciar a qualidade da atenção. Na escuta banal, a atenção do ouvinte
passeia por qualquer direção, enquanto que, na escuta especializada,
146
ocorre a focalização num tipo de escuta específico. Aqui ocorre uma
escolha, uma seleção do que se quer escutar. Busca-se uma objetividade,
no entanto esta objetividade está vinculada à aproximação subjetiva, pois
os interesses particulares dos ouvintes são distintos. Ele cita como
exemplo três especialistas, um sico, um físico acústico e um índio do
faroeste diante do som do cavalo galopando. O músico tentará identificar
padrões rítmicos resultantes; o físico observará aspectos relacionados ao
sinal físico como freqüência e características de transmissão; e o índio
tirará conclusões sobre a ameaça que isto pode representar, a velocidade
com que o cavalo se aproxima e o tempo que lhe resta para se aprontar.
Portanto, de um mesmo registro sonoro, aparelhos auditivos humanos
presumidamente similares, numa intenção de escuta, processam o
fenômeno sonoro com filtros específicos e identificáveis às experiências e
necessidades individuais.
Concluindo que uma objetividade absoluta na percepção
auditiva é inexistente, Schaeffer procurará destacar, pois, o objeto sonoro
nele mesmo, através de uma situação acusmática, para uma escuta
reduzida, que por sua vez busca o descondicionamento da escuta.
Sem dúvida foi muito significativa a contribuição de Pierre
Schaeffer para a conscientização do processo de escuta, para o foco no
som em si, para um maior entendimento das relações sujeito-objeto em
música.
Menos cientificista, porém não menos importante, foi a
contribuição de John Cage, músico e pensador que também buscou ouvir
os sons neles mesmos. Se Schaeffer busca separar e classificar os
objetos sonoros e a percepção desses para se chegar a um objeto
musical, depurando vieses subjetivos, através de uma metodologia
científica, Cage, a partir do pensamento zen budista, - que busca a
totalidade no aqui-agora, onde o universo está composto por uma
quantidade infinita de seres e coisas e cada um deles é único, cada
elemento está no centro, movendo-se em todas as direções, penetrando e
sendo penetrado em qualquer momento ou lugar pelos demais, sendo o
147
momento presente o que aglutina esta unidade e interpenetração, - irá
propor uma imersão no som, que, deixando-se de lado a ênfase no
sujeito, abre caminho para ouvir os sons neles mesmos, não algo próximo
a um preconceito.
Nesse modo dialético de perceber o mundo, as oposições
não se excluem; pelo contrário, se completam, se interpenetram,
existindo uma porque existe a outra, como muito bem ilustra o símbolo
gráfico yin / yang, e como tão bem encontramos em sua frase Nenhum
som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não
esteja grávido de sons (Cage, 1985, pg.98).
Kostelanetz (1972) afirma justamente que “uma das
postulações do zen, em que Cage encontra total afinidade com suas
próprias idéias, é que devemos aceitar a totalidade de nossa realidade
perceptiva: a sica que nos rodeia todo o tempo, por exemplo. ‘Abrimos
nossos olhos e ouvidos cada dia para contemplar a vida, em toda a sua
formosura’. Tal atitude, admite, deverá negar por completo a existência de
gostos discriminatórios e a expressão de juízos de valores”.
Desta forma, Cage terá a compreensão de que ruído e
silêncio estão unidos numa mesma totalidade, como valores que se
opõem e se completam com a mesma relevância. Que os sons m valor
neles mesmos e não apenas a partir do que o ‘eu’ julga sobre eles. Que o
que ouvimos no aqui - agora, por si só, é relevante, pois a vida nada
mais é que uma sucessão de eventos num tempo e num espaço, sendo a
música um desses eventos, que tem o mesmo grau de aleatoriedade e
indeterminação que qualquer outro. O que ocorre simplesmente ocorre, e
a beleza está em perceber isso e deixar acontecer. Para isso é preciso
uma nova mente e um novo ouvido, o que nesta perspectiva são a
mesma coisa. Cage (1985) então deseja um HAPPY NEW EAR. No
prefácio do livro De segunda a um ano (1985), Augusto de Campos
escreve:
148
HAPPY NEW EAR
Feliz anouvido novo (YEAR / EAR trocadilho intraduzível)
NEW MUSIC : NEW LISTENING
Ou em canibalês brasileiro:
Ouvidos novos para o novo
Ouvir com ouvidos livres
A música está ao seu redor
Por dentro e por fora
É só usar os ouvidos
A mente precisa estar livre para se permitir ouvir
simplesmente os sons, da forma como eles se apresentam. A música
proposta por Cage convida a que as pessoas desenvolvam o próprio
sentido e modo de ouvir. Como já vimos no capítulo anterior, a sua
emblemática obra 4’33” é o resumo de seu pensamento, um
enquadramento temporal de silêncio musical, onde vêm para o primeiro
plano os sons- ruídos presentes naquele dado momento num dado lugar.
Ainda recapitulando, torna música o que não seria música,
mas apenas ruídos. Elege o silêncio também como música, redimensiona
o tempo, subverte todas as noções concebidas do que é ou não música,
do fazer musical, do entendimento musical, da escuta. Com essa obra,
exemplar nesse sentido, Cage consegue tornar explícitas todas essas
questões e colocar em destaque a questão da escuta o quê e como
escutamos o que escutamos - como uma categoria importante e
constituinte da nova música.
Cage, recusando a noção de obra acabada, trabalha com
o conceito de processo, porque:
“Viver ocorre a cada instante e esse instante
está sempre mudando. A coisa mais sensata a fazer é abrir os
149
ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente, antes que o
pensamento tenha a chance de transformá-lo em algo lógico,
abstrato, ou simbólico. Sons são sons e homens são homens,
mas agora nossos pés estão um pouco fora do chão” (1985, pg.
98).
Assim, os sons estão aí, basta ouvi-los sem preconceitos,
basta trazê-los em evidência, jogar com eles e disso fazer arte e um modo
de afirmar a vida, pois para Cage não havia separação entre arte e vida.
Esta é a beleza de sua arte, o permitir-se ouvir e ser e fazer para além de
convenções cristalizadas, seja de procedimentos artísticos
composicionais, performáticos, seja de atitudes comportamentais ou
mentais.
Murray Schafer, indo na direção do entorno sonoro, dos
sons a nossa volta, do ambiente acústico, da conscientização de que
estamos indubitavelmente imersos em sons o tempo todo, irá propor um
ouvido pensante para a paisagem sonora. “O ouvido pensante”, título do
livro que escreveu no final dos anos 60 do século XX, mostra que todos
os sons fazem parte das possibilidades musicais, e assim propõe uma
“escuta pensante”, isto é, uma escuta consciente desse fato, consciente
da “paisagem sonora”, e consciente do fato de poder tornar os ambientes
sonoros menos poluídos e mais agradáveis. Soundscape, paisagem
sonora - um termo criado por ele a partir das palavras sound e landscape
e que se refere aos sons ouvidos num determinado período de tempo
num determinado lugar qualquer, transformou-se numa referência mundial
para explicitar o contexto sonoro e originou o projeto World Soundscape
Project (WSP). Liderados por Murray Schafer, pesquisadores da Simon
Fraser University no Canadá, no final dos anos 60, criaram o conceito de
paisagens sonoras e ecologia sonora, com a finalidade inicial de estudar o
meio ambiente sonoro.
Segundo Shafer, o primeiro passo para ser um ouvinte
"ecologicamente correto" é "aprender a ouvir a paisagem sonora como
150
uma composição musical". “Ecologia sonora" ou "ecologia acústica" se
refere à ciência que estuda os efeitos do ambiente acústico e das
paisagens sonoras, com as conseqüências físicas e comportamentais nos
seres vivos. Este projeto acabou orientando projetos em vários países, de
composição musical baseados na paisagem sonora, bem como projetos
de ecologia acústica, onde há a preocupação com a poluição sonora
ambiente, e ainda trabalhos relativos às histórias de paisagens sonoras
específicas, como ocorre, por exemplo, em outro importante livro de
Schafer, publicado originalmente em 1977, A afinação do mundo. Neste
livro, entre outros tópicos como análise (notação, classificação,
percepção, morfologia, simbolismo), ou elementos para um projeto
acústico que pense a ecologia sonora, o relato histórico da paisagem
sonora mundial até 1975.
Schafer busca identificar eventos sonoros e não objetos
sonoros. Nas suas palavras:
“Quando se focalizam sons individuais de modo
a considerar seus significados associativos como sinais,
símbolos, sons fundamentais ou marcos sonoros, proponho
chamá-los de eventos sonoros, para evitar confusão com
objetos sonoros, que são espécimes de laboratório. Isso está
de acordo com a definição de evento no dicionário, como
“alguma coisa que ocorre em algum lugar e que dura um
determinado lapso de tempo” em outras palavras, implica um
contexto. Assim, o mesmo som – por exemplo, um sino de
igreja – poderia ser considerado objeto sonoro se fosse gravado
e analisado em laboratório, ou como evento sonoro, se fosse
identificado e estudado na comunidade.
A paisagem sonora é um campo de interações
mesmo quando particularizada dentro dos componentes de
seus eventos sonoros. Determinar o modo pelo qual os sons
afetam e se modificam (e a s mesmos) em situação de
151
campo é tarefa infinitamente mais difícil do que separar sons
individuais em um laboratório, mas esse é o novo e importante
tema com que se defronta o pesquisador da paisagem sonora.”
(Schafer, 2001, pg. 185)
À Schafer interessa, pois, a interação dos sons - ambiente
com as pessoas, os seus significados, em que “a amplidão cultural
histórica e geográfica que caracteriza o nosso tempo nos tornou muito
conscientes da falácia de controlar o temperamento de todas as filosofias
musicais pelo mesmo diapasão” (Schafer, 1991, pg. 122).
Ele trabalha com as noções de “figura”, “fundo” e “campo”,
e esclarece que essas noções foram tomadas de empréstimo à
percepção visual, formatada pelos psicólogos da Gestalt. Figura fora
definida como foco de interesse, fundo como o cenário ou contexto, e
campo como o lugar onde ocorreu a observação. Destaca ainda que
foram esses psicólogos que apontaram o fato de que aquilo, que é
percebido como figura ou fundo, é determinado, principalmente, pelo
campo e pelas relações que o sujeito mantém com esse campo (2001, pg.
214). Schafer, em seu trabalho, associa figura com sinal, ou marca
sonora, fundo com os sons do ambiente à sua volta, e campo, ao lugar
onde todos os sons ocorrem, a paisagem sonora. Entretanto,
“Considerar o som como figura ou fundo está
parcialmente relacionado com a aculturação (hábitos treinados),
parcialmente com o estado da mente do indivíduo (estado de
espírito, interesse) e parcialmente com a relação individual com
o campo (nativo, forasteiro). Não nada a fazer com a
dimensão física do som, pois já mostrei de que modo mesmo os
sons muito fortes, como os da Revolução Industrial,
permaneceram completamente indiscerníveis até que sua
importância social começou a ser questionada. Por outro lado,
152
mesmo os sons mais delicados serão notados como figuras
quando são novidade, ou quando são percebidos por
forasteiros” (2001, pg. 215).
O livro O ouvido pensante (1992), baseado em suas aulas
práticas de música para alunos de 10/12 anos até o curso superior, tem
grande importância educacional, não para a música em geral, mas
para a música do século XX, pois nesse livro Schafer trabalha com
noções de ruído, silêncio, texturas, timbres, colagens musicais, paisagem
sonora, improvisação instrumental e vocal. Inspirada por seus escritos,
Marisa Trench de O. Fonterrada, uma de suas tradutoras brasileiras,
escreve no prefácio ao livro:
“Abre-te! Abre-te, ouvido, para os sons
existentes, desaparecidos, imaginados, pensados, sonhados,
fruídos! Abre-te para os sons originais, da criação do mundo, do
início de todas as eras... Para os sons rituais, para os sons
míticos, místicos, mágicos. Encantados... Para os sons de hoje
e de amanhã. Para os sons da terra, do ar e da água... Para os
sons cósmicos, microcósmicos, macrocósmicos... Mas abre-te
também para os sons de aqui e de agora, para os sons do
cotidiano, da cidade, dos campos, das máquinas, dos animais,
do corpo, da voz... Abre-te, ouvido, para os sons da vida...”
Ao refletir sobre os sons que são ouvidos ao nosso redor,
podemos dizer que Schafer tem uma aproximação de caráter mais
histórico - antropológico e educacional, Schaeffer tem uma aproximação
de caráter mais analítico científico, e Cage tem o seu approach de
caráter mais artístico, no sentido em que privilegia a sensibilidade
estética, o lúdico, para a imersão no som, ainda que apoiado na filosofia
153
zen. De qualquer forma, esses três caminhos levam a projetos artístico
musicais, e em todos há o filtro da sensibilidade estética.
O que nos interessa aqui é ampliar a nossa consciência
sobre a escuta, sobre os vários níveis e planos em que ela ocorre e
associá-la à audição da voz contemporânea enquanto um fato estético
musical. Por outro lado, a própria emissão vocal está intrinsecamente
vinculada à audição, e, portanto antes das nossas considerações,
veremos o que nos diz Alfred Tomatis, importante médico
otorrinolaringologista e grande pesquisador sobre a audição e produção
vocal.
3.2 Audição e voz
Cantamos com o ouvido
O francês Alfred Tomatis (1920 – 2001) formou-se em
medicina, tornou-se médico otorrinolaringologista especializado em
cirurgias do ouvido, e, uma vez que sempre estivera cercado de música
seu pai fora cantor de ópera aprofundou seus estudos sobre a audição
e a produção da voz. Inicialmente ele se interessou em entender por que
um grande número de cantores profissionais de ópera tendia a perder
suas qualidades vocais relativamente cedo, fato que os forçava a
interromper suas carreiras. Nos anos 40 realizou uma série de
experimentos, os quais o levaram a concluir que nossa habilidade vocal e
musical era diretamente vinculada com nossa capacidade de ouvir. No
começo dos anos 50, Tomatis então desenvolveu um dispositivo
eletrônico chamado ouvido eletrônico - para ajudar as pessoas a
ouvirem melhor, seja para cantar ou falar; tanto para pessoas que
queriam melhorar suas performances como cantores ou atores, como
154
para pessoas com sérios problemas médicos de audição, fala,
comunicação.
Aprofundando seus estudos, Tomatis descobriu que a
audição é um dos principais fatores que contribuem para o bom
desenvolvimento do indivíduo. O fato de que o ouvido humano passa a
receber estímulos desde o 4º mês de gestação, o fez desenvolver o
ouvido eletrônico com capacidade de prover a reeducação auditiva, por
intermédio de sons similares aos captados pelo feto no útero materno,
além de trabalhar com filtragens das ondas sonoras da própria voz da
pessoa.
Desenvolveu um método, conhecido como Método
Tomatis, que consiste em escutar o som através do ouvido eletrônico, que
é um complexo simulador do ouvido humano. São reeducados os
músculos do ouvido médio, são restituídas as freqüências perdidas, e
assim, se restabelece o bom funcionamento do sistema nervoso, de modo
a recuperar a capacidade de escuta que proporciona energia ao cérebro e
ao corpo. De acordo com o Centro Tomatis Brasil
102
, o método baseia-se
nas relações existentes entre o ouvido e a voz, e por extensão entre a
escuta e a comunicação: o método permite ao sujeito reencontrar o
desejo de comunicar-se, aprendendo a utilizar melhor o seu sistema
auditivo. O Método está baseado em três leis que foram temas em 1957 e
1960, nas academias de Ciências e de Medicina de Paris:
- A voz só contém o que o ouvido é capaz de captar.
- Ao darmos ao ouvido a possibilidade de recuperar as freqüências
perdidas, estas são espontaneamente integradas à emissão vocal.
- É possível modificar a fonação, através de uma estimulação auditiva
emitida durante certo tempo. (lei de remanência)
102
www.tomatis.com.br/metodo.htm
155
Para entender um pouco melhor o que é o ouvido médio,
vejamos a seguir:
103
103
Herlihy, Bárbara e Maebius, Nancy K. Anatomia e Fisiologia do Corpo Humano Saudável e
Enfermo. SP: Editra Manole Ltda, 2002
156
104
160
104
A parte auditiva do ouvido interno é formada pela cóclea. Os
receptores da audição (órgão espiral) estão localizados no interior da cóclea. O
nervo coclear conduz informação para o lobo temporal do cérebro. A parte do
equilíbrio do ouvido interno está contida no vestíbulo e nos canais semicirculares.
Os receptores do equilíbrio são as células pilosas. As alterações nas posições da
cabeça encurvam os pelos dessas células receptoras, estimulando o impulso
nervoso. O impulso nervoso é conduzido pelo nervo vestibular do nervo
vestíbulo-coclear para várias partes do encéfalo. A cóclea é a parte do labirinto
ósseo em forma de caracol. Assentando-se sobre uma membrana localizada no
interior da cóclea e imersos em endolinfa, estão os receptores da audição. Os
receptores são as células pilosas que contém pelos minúsculos (cílios) e que
constituem o órgão espiral. Quando os cílios, localizados sobre as células
receptoras, se curvam, um impulso nervoso é conduzido pelo ramo coclear do
nervo vestíbulo-coclear ao lobo temporal do cérebro, onde a sensibilidade é
interpretada como audição. No vestíbulo, existem receptores que produzem
informações sobre a posição da cabeça, quando em repouso. Os receptores dos
canais semicirculares fornecem informações sobre a posição do corpo à medida
157
Menezes (2003), assim resume a trajetória que o som
realiza desde sua chegada no ouvido externo até seu entendimento pelo
cérebro:
1. as ondas sonoras chegam ao ouvido externo, causando flutuações
de pressão que fazem o tímpano vibrar;
2. esse fenômeno ocasiona movimentos nos ossículos do ouvido
médio, fazendo que a janela oval vibre na entrada do ouvido interno;
3. a vibração resultante no fluido da cóclea gera uma onda que se
desloca por sobre a membrana basilar;
4. a oscilação na membrana basilar faz que as células de fibras
nervosas (cílios) emitam sinais elétricos, transmitindo a informação
ao cérebro, que os interpreta.
Tomatis explica que é possível corrigir um problema
auditivo ou de aprendizado, estimulando os músculos do ouvido dio,
que é onde começa a distinção entre escutar e ouvir (Campbell, 2001, pg.
58). Vemos aqui que essa distinção entre ouvir e escutar ocorre de
fato no plano físico, pois no processo complexo da audição/escuta,
uma captação de ondas sonoras e uma interpretação do cérebro, que é
quem de fato “ouve”.
“Em comparação com a audição, que é a
capacidade para receber informações auditivas por intermédio
que ele se movimenta. Esses receptores são sensíveis às alterações de posição da
cabeça. Quando ela se altera, os cílios se curvam e as células receptoras enviam
impulsos pelo nervo vestibular do nervo vestíbulo-coclear para várias partes do
cérebro, incluindo o cerebelo, o mesencéfalo e o lobo temporal. (Herlihy, e
Maebius, 2002)
158
dos ouvidos, da pele e dos ossos, escutar é a capacidade de
filtrar, focalizar seletivamente, recordar e responder ao som.”
(Idem, pg. 55).
O ouvido integra as informações transmitidas pelo som,
organiza a linguagem, nos a capacidade de perceber o horizontal e o
vertical, de perceber distâncias, de coordenar o equilíbrio corporal. É a
esse importantíssimo órgão, visto de uma forma abrangente e multi-
relacionada, que Tomatis irá dedicar toda a sua vida de pesquisa,
trabalho e reflexão.
Em seu artigo O ouvido à escuta da música, Tomatis
(1991) escreve:
“Se, propositalmente, sugerimos que o ouvido
pode se colocar à escuta da música, é para sublinhar que ele
pode também não se prestar a tal atitude. Porque trata-se de
uma atitude. Colocar-se à escuta consiste em responder a um
apelo de forma deliberada” (pg. 113).
“O homem torna-se escuta total. Inúmeros
fatores o demonstram, mesmo que não nos preocupemos em
situar a escuta em seu verdadeiro nível e que não saibamos
toma-la como um fio condutor da organização que induz a
estrutura humana. É dela que depende a dinâmica
neurofisiológica. A escuta leva o homem a expandir-se numa
dimensão mais vasta. Ela lhe revela sua inserção em um
universo que ultrapassa, infinitamente, seus limites anatômicos.
Liberto de seus limites físicos, graças a essa antena auditiva,
ele se engaja num processo de total comunicação, em uma
comunhão com seus pares. Através de sua escuta interior, o
homem chega a se diluir no espaço sideral e consegue
159
perceber e escutar, concomitantemente, sua própria
interioridade material. Ele pode, assim, até dialogar com suas
estruturas orgânicas” (pg. 114).
“O corpo humano é um instrumento neural apto
a integrar os sons modulados, pertinentes a seu ritmo, sua
cadência seqüencial e sua discriminação freqüencial. Ele está
em condições de integrar este desenvolvimento acústico, o que
significa dizer que, por isso mesmo, está apto a colocar-se em
ressonância sob o impulso de tais solicitações e, melhor ainda,
é capaz de reproduzi-las à vontade” (pgs. 126,127).
“Todo o corpo, efetivamente, está envolvido
quando se trata de perceber as seqüências musicais. E não
devemos, em nenhum caso negligenciar o papel preponderante
exercido pelo complexo vestibular, que visa colocar em
funcionamento, no plano neurovegetativo e psicofisiológico, um
programa de alto nível. Este programa ‘do alto’, como
habitualmente o denominamos, é chamado a dirigir em seguida
toda a dinâmica afetiva e motora do ser, na sua procura de uma
paz interior. É, portanto, necessário avaliar, e corrigir, se
preciso for, este diálogo vestíbulo-coclear que está na origem
de toda ação psicossomática. Se o vestíbulo não exerce seu
papel, os ritmos não são integrados corporalmente. Se a função
coclear é deficiente, a discriminação total não ocorre” (pgs.
129,130).
Para Tomatis, o ouvido ocupa, portanto, um lugar
primordial, sendo a porta de entrada e o principal controlador da saída.
Para ele, falar e ouvir, emitir ou receber são atos dotados de um mesmo
valor e mesma significação psicosensorial e psicomotriz.
160
“É ao escutar sua própria voz, que penetra nele
(no ser humano) a noção de vida. É por esse jogo incessante
com o verbo que seu corpo assume uma imagem” (Tomatis,
1969, pg. 65).
Não falamos se não ouvimos, e falamos e cantamos de
acordo com o que ouvimos, em correspondência ao como ouvimos. Em
seu livro O Ouvido e a linguagem (1969, pg.70), Tomatis relata um fato
extraordinário que Negus descreve em The mecanism of the larynx, a
respeito das aves canoras. Se os ovos postos por essas aves são
incubados por aves não canoras, os pássaros que aí nascem não cantam.
Este fato desconcertante, diz Tomatis, revela até que ponto a aquisição
da linguagem, ainda que seja tão pouco evoluída como a do pássaro,
necessita, na elaboração da associação auditiva e fônica, uma excitação
permanente desta sinergia neuro-muscular, que estrutura esse órgão
funcional da linguagem.
O desenvolvimento da linguagem envolve ouvir e ouvir-se,
escutar e escutar-se. Falar e cantar envolve uma combinação de órgãos
de parte do sistema digestivo (os lábios, a boca, o véu palatino, a língua,
os dentes), com o aparato respiratório (a laringe, as fossas nasais, o
pulmão, o diafragma, o tórax) mediados pela audição, que posiciona a
vibração das pregas vocais para a escala das alturas. Mas, para Tomatis,
o cerne da questão reside mesmo no controle auditivo. “O ouvido se
converte, pois, no principal órgão de controle de nossa informação dirigida
até o exterior, de nosso gesto vocal informacional, de nossa linguagem”.
(1969, pg.88)
Anteriormente a Tomatis, - e ainda hoje é possível que
encontremos quem assim pense -, todo o foco de problemas com a
emissão vocal estava concentrado na laringe e cordas vocais (pregas, na
moderna terminologia fonoaudiológica). Mas, através de suas pesquisas
práticas, constatou que o problema em muitos casos era realmente com a
audição. Neste livro, O ouvido e a linguagem, ele conta que em 1947 foi
161
procurado por um cantor que se queixava de não afinar mais em uma
determinada região (começando próximo ao mi b3). Os exames de laringe
demonstraram que o problema não residia naquele órgão. O pesquisador
passou, então, a investigar as causas no campo da audição. Os
resultados dos testes auditivos demonstraram que os cantores correm
riscos de desenvolver uma surdez funcional, comum em pessoas que
trabalham em ambientes muito ruidosos. Tomatis mediu os sons
produzidos pelo cantor e observou que eles atingiam surpreendentes 100,
110, 120 e até 130 decibéis, estando o aparelho de medição posicionado
a um metro do cantor. Constatou-se que um cantor profissional emite
sons que podem ser destrutivos para o seu próprio ouvido; quando o
ouvido é exposto a ruídos intensos, ele sofre o que Tomatis chama de
saturação, sendo ela causada pela fadiga auditiva. A surdez profissional
se caracteriza por uma desarticulação da curva auditiva, cujo campo de
freqüências se reduz por perda da sensibilidade aos sons agudos.
Quando a desarticulação encontra-se próxima a 2000 hz, a voz do cantor
torna-se menos rica harmonicamente, mais vacilante. Quando está entre
1000 e 2000 hz, aparecem dificuldades de controle tonal. Tomatis
prosseguiu fazendo experiências a fim de determinar a influência da
saturação auditiva. “Assim, nos limitamos a adquirir a certeza de que o
próprio ruído emitido por um cantor destruía seu ouvido, e que sua vida
profissional estava unicamente sob a dependência da solidez de sua
audição” (1969, pg.94).
Com essas e outras pesquisas, Tomatis desenvolveu o
ouvido eletrônico para que, com seu auxílio, a pessoa passe a ouvir as
freqüências perdidas, e desta forma volte a conseguir emitir as notas
perdidas.
O fato fundamental, ressalta o médico, é que a voz não
reproduz mais do que o ouvido ouve. A voz reproduz o que o ouvido
ouve. Contudo, se a pessoa não pode emitir mais do que ouve, tampouco
emite tudo o que ouve. Isso se deve ao fato de que o aparelho fonatório
não é capaz de reproduzir todos os sons que o ouvido pode detectar, e
162
também porque ocorre uma busca da banda preferencial de escuta,
própria de cada indivíduo num instante determinado. (1969, pgs. 104,
105). Pois esta escuta seletiva possui um filtro psicológico e cultural.
“Escutar, escutar-se, é um ato voluntário, é uma aquisição tardia e
humana da evolução, enquanto que ouvir é um ato automático. (idem,
pg. 115)
Em seu outro livro O ouvido e a voz (1987), Tomatis afirma
que a curva de resposta auditiva é modificada conforme o desejo de
audição. Ela é como que modelada em função do desejo de escuta. Há,
portanto, coesão entre o psiquismo e a abertura ao mundo exterior, por
intermédio do ouvido. O psiquismo age sobre a audição, tanto quanto a
audição sobre o psiquismo. E uma vez que a audição comanda a emissão
vocal, não à toa dizemos que a voz é o reflexo da alma.
Neste livro, ele enfatiza a necessidade de uma postura de
escuta, que, além de significar a intenção de uma escuta consciente,
significa colocar-se corporalmente numa postura de escuta, o que implica
numa verticalidade e numa lateralidade, onde o ouvido direito deve ser
beneficiado
105
. Saber se colocar numa postura de escuta é poder dominar
as tensões do estribo e do martelo, os dois ossículos que regulam um, o
ouvido interno, e o outro, a tensão timpânica. Escutar é decidir - se abrir
ao mundo acústico circundante e tentar integrar tudo aquilo que deve ser
memorizado. Trata-se realmente de um treino. Para tanto, é necessário
trabalhar os músculos do ouvido médio; por exemplo, franzindo e
alongando a testa, depois puxando a pele da testa para trás (1987, pgs.
206, 207).
Neste aprimoramento da escuta é necessário estar sempre
conectado com o corpo, inserido totalmente nele, ouvindo como se o
105
O ouvido direito é dominante porque transmite os impulsos auditivos mais depressa aos centros
da fala no cérebro. Os impulsos nervosos do ouvido direito vão diretamente para o hemisfério
esquerdo, onde estão localizados os centros da fala, enquanto os impulsos nervosos do ouvido
esquerdo fazem uma jornada mais longa através do hemisfério direito, o qual não tem centros da
fala, e então vão para o hemisfério esquerdo. O resultado é uma reação retardada, medida em
milésimos de segundo, e uma sutil perda de atenção e vocalização. (Campbell, 2001, pg. 61)
163
ouvido estivesse ao longe num lugar bem preciso, captando a vida como
ela é (Idem, pg. 209). Para Tomatis,
o ideal é então perceber a própria voz como se
a gente estivesse numa orla longínqua, neste cume que parece
ser o lugar da consciência, o ponto referencial de onde se pode
objetivar a relação consigo mesmo e com os outros”.
Escutar, e escutar livremente, deliberadamente, nada é
mais liberalizante, diz, do que se deixar transportar nessa dinâmica.
Assim, para quem escuta e sabe se escutar, isso não é mais do que
abandonar-se ao canto. Pois cantar, prossegue, é na verdade saber se
escutar, é deixar acontecer a audição aberta sobre a voz autêntica.
Para Tomatis, a postura de escuta deve ser o primeiro
foco de atenção. Devemos estar à escuta de tudo e de todos a
chegarmos à escuta de nós mesmos. A postura de escuta deverá ser o
grande exercício do cantor, que começa com ele estando na vertical,
solidamente amparado sobre seus pés, pois uma boa voz assim o exige.
O acesso à postura de escuta nos introduz, por si mesmo, ao domínio da
postura corporal, quando se trata de emitir os sons cantados, ou mesmo
falados. Portanto, espontaneamente o corpo se ergue em sua
verticalidade. Na postura de escuta o indivíduo mergulha no universo
sonoro circundante, e desenvolve a auto-escuta. Isto permite a liberação,
pelo corpo, das percepções proprioceptivas que possibilitam a
verticalidade. Existe assim uma verdadeira ressonância sobre o corpo,
determinada pelo som, pelo próprio som, o qual se torna tanto mais fácil
de produzir quando é adquirida esta postura (Idem, pgs 214, 215, 216).
Tomatis nunca deixa de afirmar a importância do corpo.
Com efeito, ele diz,
164
“É o corpo na sua totalidade que age quando
alguém decide cantar, mas trata-se do corpo colocado em
situações bem particulares. Existe primeiramente, uma
predisposição mental que se refere a uma imagem corporal,
permitindo ao indivíduo colocar-se em condição adequada para
realizar o ato de cantar. Vê-se portanto que, antes mesmo que
um som seja emitido, existe toda uma preparação consciente
da colocação do corpo a fim de que este possa por si mesmo
adquirir um esquema corporal que lhe convém para tornar-se
instrumento do canto. Dito de outra maneira, o canto é
secundário ao conhecimento do corpo. É secundário ao
domínio corporal que induz à postura do canto” (Idem, pg. 105,
106).
Claro que não basta simplesmente ouvir, abrir a boca, e
cantar bem. que se encontrar os automatismos correspondentes, e
isso requer preparação e dedicação permanente, apesar da facilidade, ou
da espontaneidade que se possa ter. Sempre terá que se estar renovando
e redescobrindo a técnica para mantê-la. Em outras palavras, ainda que a
voz esteja aí, sempre será necessário exercitar-se para melhorá-la. É fácil
emitir um som qualquer e muito mais complexo emitir sons de qualidade.
Mas, o que Tomatis está enfatizando é que tudo começa com a escuta, e
a postura de escuta, que envolve uma conscientização corporal.
Na postura corporal de escuta, a verticalidade tem um
papel fundamental em vários níveis:
1. De uma parte, nesta atitude postural, a laringe vem, pela sua face
posterior aplicar-se sobre a face anterior da coluna vertebral. O
esôfago desce e mantém o diafragma abaixado;
165
2. Por outra parte, sempre nas mesmas condições, os músculos e os
ligamentos que seguram ou que mantém as vértebras entre elas são
estendidos e puxados de tal maneira que a coluna vertebral age como
uma coluna compacta, feita de uma única peça. Ela se põe a vibrar
sem obstrução sob o efeito das incitações da laringe;
3. Enfim, nesta posição ideal, a laringe muda toda a sua mecânica de
emissão. Com efeito, quando a laringe se encontra nesta posição, ela
vibra como uma embocadura, que incita as cavidades subjacentes.
São, por sua vez, essas cavidades que, incitadas, vão modificar,
colorir, e ampliar os sons laríngeos. Na postura corporal de escuta
ideal, a laringe põe em ressonância a estrutura óssea e é esta que se
põe a cantar. É pelo ouvido, e pelo ouvido somente, que as regulações
laríngeas se efetuam. A laringe emite o que o ouvido controla. A
laringe encontra seu lugar sobre a coluna cervical e as cordas vocais a
sua tensão satisfatória. A laringe se desloca, se altera, mas é preciso
fazer tudo isso de maneira espontânea e natural, sob o controle
vigilante do ouvido direito.
4. A coluna impõe, desde então, sua presença, introduzindo a sua
ressonância específica, ligada a sua estrutura óssea. Trata-se de dizer
que, quando um objeto em vibração entra em contato com outro, esse
último se põe a vibrar por sua própria conta. Assim, a coluna vertebral
em contato com as vibrações laríngeas se porá a cantar sob essas
excitações.
5. Esse colocar-se em atividade da estrutura óssea, muda
inteiramente o controle da emissão. Primeiramente, é necessário dizer
que esse controle não tem nada em comum com o que se produz
ordinariamente. Esclareçamos que graças a essa excitação e a
particular transmissibilidade dos sons pelo esqueleto, o controle
166
auditivo adota a via óssea direta, sem perda de energia, sem alteração
do espectro sonoro, mesmo quando isso é difícil pela condução da via
aérea
106
. O osso opera como um seletor, isto é, ele seleciona os sons
agudos em detrimento dos sons graves. É assim que os sons
emitidos, segundo esse procedimento, são dotados de uma faixa
aguda particularmente rica e densa.
6. A verticalidade facilita a emissão e provoca uma energização
sempre eficiente.
(Idem, pgs. 218, 219, 220, 222, 223)
Segundo a curva de resposta que desenvolve o espectro
da análise da voz, é fácil precisar se o controle é realizado pela via aérea
ou óssea. As curvas de resposta indicam com nitidez a presença ou não
de uma faixa nos agudos. Nesse caso a via óssea foi escolhida, e caso
contrário, a menor riqueza das freqüências agudas denota uma regulação
confinada à audição de auto-escuta aérea. A voz muda, conforme as
modificações impostas, pelo modo de controle adotado. (pg. 224)
Pergunta Tomatis: Como adquirir esta sensação da voz
óssea tão fundamental para a voz cantada? Como ter essa voz tão
específica, permitindo fazer vibrar o conjunto do corpo? Primeiramente é
indispensável que a escuta seja boa o quanto melhor, e o treino deve ser
constante para o ouvido melhorar sempre (pg. 226). De onde vem o som
que o sai nem da boca, e nem do nariz? Emana verdadeiramente de
todo o corpo, pela excitação da coluna vertebral, graças à laringe que se
apóia sobre as vértebras cervicais. Para realizar tal performance,
continua, basta pensar que um ouvido atento escuta ao nível da nuca. O
som assim emitido dá a impressão de sair atrás, na direção de um público
106
O ouvido interno é ativado pelo ouvido médio por via óssea e por via aérea. Por via óssea,
graças ao trabalho do músculo do estribo que controla as pressões internas da vesícula labiríntica;
por via rea, graças à intervenção do músculo do martelo que regula as tensões timpânicas
adequadas.
167
que nos ouviria, enquanto nós daríamos as costas. O som toma um
timbre muito especial, muito denso, colorido, bom de qualidade, luminoso,
leve, enchendo o espaço de maneira etérea. Ele parece exterior ao corpo,
e se propaga com facilidade. Aquele que o escuta não consegue localizá-
lo. Tal som pode ser modulado muito rapidamente em duas a três oitavas,
sem que custem esforços. Isto é o som ósseo. A laringe age como
diapasão, vibrando e fazendo vibrar a coluna cervical. Esta, em posição
reta, se põe a vibrar e a cantar, incluindo a caixa craniana em seu jogo
vibratório (pgs 229, 230). O canto torna-se, verdadeiramente, um assunto
de respiração, quando a escuta, e o posicionamento da língua e da
laringe estão assegurados. A ressonância depende da condução óssea,
da respiração e da adaptação faringo-laríngea. O passo seguinte é
concentrar-se no estudo das vogais, do volume (espacial) exato das
vogais nas duas cavidades essênciais de ressonância: a cavidade
cantante (faríngea) e a cavidade falante (bucal) (pgs.283, 284) .
Um longo treinamento é necessário para que se adquira
uma consciência proprioceptiva, encontrando-se o ouvido, portanto, no
ápice da aprendizagem do canto. É preciso saber escutar e saber se
escutar. É necessário compreender que uma progressão da escuta à
auto-escuta. Daí a importância do desenvolvimento das sensações
proprioceptivas, que procedem das contra-reações áudio-vocais e áudio-
fonatórias (pg. 303).
Existe uma curva ideal de boa audição, no entanto
numerosos fatores de ordem orgânica, e, sobretudo psicológica,
modificam o comportamento da curva.
Mesmo com uma boa audição, os controles áudio-vocais
podem demorar a se estabelecer. Muitas vezes é preciso re-educar,
refazer os circuitos de controle que foram prejudicados por uma má
educação, por um mau uso. Com o objetivo da educação, ou re-educação
psico-sensorial, procede-se à realização de contra-reações áudio-
fonatórias, por intervenção de complexos eletrônicos, os comentados
ouvidos eletrônicos, que atuarão sobre o ouvido interno, pelas vias óssea
168
e aérea. Básculos eletrônicos asseguram esse jogo, enquanto que eles
suscitam ao mesmo tempo automatismos destinados a colocar em prática
os mecanismos do ouvido médio, a fim de que a curva ideal seja obtida.
O objetivo, assegura Tomatis, é escutar e escutar-se, a fim
de potencializar o gesto vocal até chegar à maestria, ao domínio de todos
os circuitos colocados em rota por ocasião do ato cantado, a saber:
circuito ouvido-postura, ouvido-laringe, circuito ouvido-faringe, ouvido-
pulmões, etc. (pg. 313).
Para Tomatis, se conseguíssemos nos expressar
espontaneamente, a língua cantaria como a do poeta. Ela descobriria um
sopro e uma cadência, totalmente diferente, daquela língua corrente e
viciada, ou vulgar. A pessoa que não possui um ouvido, no sentido
musical, se expressa sem inflexões, monocordicamente, sua linguagem é
plana, quando muito composta de um vocabulário já gasto; as entonações
soam falso. Quer se trate do canto ou da palavra, tudo deve estar
preparado sob o trato áudio-vocal.
Bem, por tudo o que foi exposto, podemos entender o
subtítulo que Tomatis ao seu livro O Ouvido e a voz: “canta-se com o
ouvido”.
3.3 A escuta e a voz contemporânea
Considerando que uma determinada escuta implica numa
determinada emissão vocal, e que essa escuta, por sua vez, está
condicionada a padrões culturais, temos aqui o ponto crucial para refletir e
tentar entender a questão da voz contemporânea, tanto da perspectiva do
artista da voz e sua produção vocal, como da perspectiva do ouvinte
dessa voz, do ouvinte dessa estética vocal.
169
Para ambos, o cantor e o ouvinte, está pressuposta a
questão de se permitir ouvir outros sons que não aqueles do espectro
cantabile da voz, sons considerados ruídos, e ver beleza nisso, ou ao
menos achar interessante. Para o cantor, sobretudo, além disso é
necessário que tenha o desejo de emitir outra sonoridade, que não aquela
baseada em notas musicais, arredondamento da voz, perfeição de
emissão, equilíbrio, etc. Isso implica em permitir-se vivenciar o corpo,
considerando suas imperfeições, e ver beleza nisso, no sentido em que
isso coincida com sua vontade de potência. Implica em ouvir todos os
sons que o aparelho fonador é capaz de emitir, e ver beleza nisso,
assumindo esta expressividade. Ou seja, quando falamos ver beleza
nisso, estamos nos referindo à questão estética, e justamente o que
temos visto, é que até hoje a estética da voz contemporânea não foi
aceita ou compreendida, e sendo assim não é ouvida, melhor dizendo é
muito pouco ouvida, e menos ainda apreciada. Não se trata de tentar
colocá-la como “o” ideal vocal a ser alcançado na contemporaneidade,
mas tão somente de entendê-la um pouco melhor, sua forma, seu sentido,
sua história, enfim, sua existência como fato musical, cultural.
Consideramos que a ampliação das possibilidades
timbrísticas e a incorporação do ruído na música instrumental não foi
acompanhada por um movimento equivalente na música vocal, porque
temos mais resistência com esse instrumento particular a voz do que
com qualquer outro. Pois a voz sempre irá nos remeter a um corpo, sua
concretude, podendo nos trazer suas imperfeições, seus desejos não
ditos, seus abismos, sua fragilidade, seus medos, e frequentemente
prefere-se o lado apolíneo da voz, a perfeição do ser, como
observamos anteriormente.
Essa nova vocalidade traz em muitos trabalhos, como
podemos observar, a manifestação, ou a revelação do imperfeito, do ruído
do som e do sentido -, daí a dificuldade maior em absorvê-la, pois a voz
possui essa qualidade do demasiado humano. Porém, é bom que nos
lembremos que preferir o lado apolíneo da voz não é uma preferência
170
universal do ser humano, e sim uma preferência da cultura branca e
ocidental. Pois como vimos com Schaeffer, a escuta é também uma
escuta cultural, vinculada às referências culturais, que são espeficas a
cada cultura, a cada povo, e, portanto, não é universal. Por isso o contato
com outras formas de cantar, com outras formas de se vivenciar o corpo,
que o a ocidental, foi o importante para a configuração dessa nova
vocalidade. Por isso o pensamento de Cage, influenciado pelo
pensamento oriental zen, - de que devemos aceitar a totalidade de nossa
realidade perceptiva, por exemplo, os sons que nos rodeiam o tempo todo
sejam eles quais forem -, foi tão determinante, pois justamente o que
encontramos quando, simplesmente, nos pomos a ouvir os sons neles
mesmos, está longe da perfeição.
São fatos que abalaram justamente pressupostos culturais
e, com isso, abriram o terreno para a possibilidade de uma outra escuta,
que se abre ao mundo de uma forma mais abrangente, menos
preconceituosa, menos determinista. Ou seja, sem uma “re-configuração”
do pensamento, dos seus pressupostos culturais, filosóficos, suponho que
não há possibilidade de uma nova escuta, que se abra aos sons da
música do século XX, pois a sua sonoridade, como um todo, reflete toda
essa mudança de parâmetros, de paradigmas do pensamento ocidental.
E a escuta, como vimos, no seu plano mais complexo do compreender,
está relacionada com o sentido enquanto significado, o reino próprio ao
conceito, que por sua vez está vinculado às referências culturais,
estruturadas na linguagem.
Quando dizemos “referências culturais” estamos usando o
termo cultura como é entendido pela antropologia. Nas palavras do
antropólogo Clyde Kluckhohn (1972):
“A cultura é um modo de pensar, sentir e
acreditar. É o conhecimento do grupo armazenado (na memória
dos homens; nos livros, nos objetos) para uso futuro. (...) Não é
171
uma força dispersa; é criada e transmitida pelas pessoas”
(Kluckhohn, 1972, pg. 33).
“Os indivíduos aprendem determinada cultura
em conseqüência de pertencerem a determinado grupo
particular, e essa cultura constitui aquela parte do
comportamento aprendido que é partilhada com os demais. É a
herança social, em contraste com a herança orgânica (Idem,
pg.36).
“Muitos aspectos de uma cultura são explícitos.
A cultura explícita consiste naquelas regularidades de palavra e
de ação, que podem ser generalizadas diretamente, a partir da
evidência dada pelos ouvidos e pelos olhos. Reconhecer isso é
como reconhecer o estilo na arte de um determinado lugar e
época” (Idem, pg. 41).
“Para que se compreenda corretamente o
comportamento cultural, é necessário estabelecer as categorias
e os pressupostos que constituem a cultura implícita” (pg. 43).
“Se existe um princípio fundamental na cultura implícita, é ele
muitas vezes chamado o ethos ou Zeitgeist
107
(pg. 44)”.
“A compreensão da cultura proporciona certo
desprendimento dos valores emocionais conscientes e
inconscientes da nossa própria cultura (pg. 49)”.
107
Palavra alemã que significa “do espírito do tempo” e designa o estado geral, cultural ou
moralmente, ou a tendência da cultura e o gosto característico de uma época.
172
Percebemos que o caldo cultural, do qual fazemos parte, é
algo muito marcante em nossa maneira de perceber e interagir com o
mundo, e somente certa compreensão disso poderá proporcionar um
desprendimento dos valores emocionais conscientes e inconscientes da
nossa própria cultura. Diante disso, podemos entender a busca de
Schaeffer numa escuta reduzida, que conseguisse ouvir o objeto sonoro
em si, isto é, livre de pressupostos culturais ou psicológicos. Podemos
entender o redimensionamento da escuta por Cage, quando ele passa a
ver a vida nos termos da cultura oriental zen, afastando-se, portanto, da
sua referência ocidental de cultura. Podemos entender Schafer quando
diz que “a amplidão cultural histórica e geográfica que caracteriza o nosso
tempo nos tornou muito conscientes da falácia de controlar o
temperamento de todas as filosofias musicais pelo mesmo diapasão”
(Schafer, 1991, pg. 122).
Existe um pressuposto cultural de como se deve pensar,
agir, existem hábitos auditivos reforçados pelo entendimento do que deve
ser a música. Em A filosofia da música, Piana (2001) escreve:
“Um trecho musical é eminentemente um ”objeto
cultural” a música é, antes de mais nada, uma práxis social
que deve ser considerada na sua integração com a cultura a
que ela pertence. Isso significa que a música traz consigo o
peso de uma tradição que determina não as modalidades da
ação musical, mas obviamente também as modalidades de
escuta”. (Piana, pg. 19)
“Na freqüente repetição da escuta de trabalhos
musicais que repropõem continuamente determinadas formas
de seqüências sonoras, bem como determinados tipos de
relações de intervalos, com a prevalência de uns a respeito de
outros, eventualmente conforme hierarquias particulares
173
constantemente reconfirmadas todas essas formas e
conjuntos relacionais geram no ouvinte um verdadeiro e próprio
“sentimento da tonalidade”. Em se tratando de sua gênese, fica
claro que tal sentimento é, em sua totalidade, um produto da
aculturação, e não é nada mais do que um conjunto de hábitos
auditivos que se estabeleceram a ponto de se traduzirem em
uma verdadeira e própria forma de sentir. Por isso, fica logo
evidente que aqui se insere também o tema do preconceito e da
resistência que tal “sentimento” pode, eventualmente, opor à
escuta de outras linguagens”. (Idem, pg. 32)
Piana (2001), refletindo sobre a questão do novo como
característica da música do culo XX, refere-se à atitude com relação ao
novo, como uma postura peculiar que caracteriza a musicalidade do
século XX. Definindo novo - como o que não pertence ao âmbito das
coisas familiares e conhecidas, e ir em busca do novo - como um afastar-
se de casa e adentrar-se num país estrangeiro, - afirma que a abertura
para o novo, desde o início, revelou ser uma abertura para o múltiplo.
Interessante pensar em termos de atitude, pois atitude implica numa
determinada ação, num determinado comportamento, numa maneira de
ser e manifestar um propósito, num jeito e posição do corpo, ou seja,
novas concepções musicais surgem através de um jeito de ser, de uma
maneira de comportamento em relação ao novo. Isto nos leva a
considerar todo um contexto cultural sendo questionado por um novo
comportamento. Sem uma atitude em relação ao novo, sem a busca
desse novo, isto é, sem a busca daquilo que não pertence ao âmbito das
coisas familiares e conhecidas, sem afastar-se de casa, não mudança
dos hábitos culturais herdados e assimilados, e assim sendo, não
abertura da escuta a novos sons.
Para a voz contemporânea, também é preciso ter atitude.
É preciso ter atitude com relação ao novo, e aqui implica literalmente uma
nova postura corporal, para uma nova escuta, para uma nova voz.
174
Quando falamos em “atitude”, podemos estar falando tanto de postura
corporal, quanto de postura comportamental, ou política. Lembrando
Tomatis, a postura corporal leva a uma postura de escuta. Ele refere-se
ao plano físico, significa que a postura do corpo posiciona a melhor
escuta, ou não. Por isso é necessária a consciência corporal, a
consciência dos processos proprioceptivos, e isso leva a preparar o
corpo, o ouvido, para melhor captar os sons, e consequentemente obter
uma emissão cada vez mais satisfatória. Porém, se a escuta, como
vimos, é cultural e seletiva, há também que se abrir a mente para a voz
contemporânea. Mente, ouvido e corpo têm que se abrir aos sons “neles
mesmos, não algo próximo de um preconceito”. E isso acaba levando a
uma postura política, não partidária bem entendido, mas no sentido em
que, ao configurar uma realidade distinta da tradição, - a tradição do bel
canto, no caso - terá que se impor, que se afirmar para poder existir, te
que ter poder para existir. havendo sentido para isso, se o desejo
de; desejo que, antes de tudo, é uma necessidade de expressão nesses
termos. Como disse Janete el Haouli (1993) sobre Demetrio Stratos em “A
escuta da voz música”, a voz não se deixa amordaçar porque quer
gemer de prazer.
175
Capítulo 4
A Forma
C
onforme vimos anteriormente, a voz, sobretudo a
partir da década de 60 do século XX, configura-se esteticamente bastante
distinta da tradição do bel canto, onde identificamos os procedimentos de
incorporação do ruído, aqui significando todos os sons possíveis do
aparelho fonador; a ruptura da semântica lingüística; a utilização dos
recursos da eletroacústica, que possibilita decompor o som vocal em seus
elementos mínimos fonêmicos e harmônicos e submete-los à
sobreposição, aceleração ou retardo, repetição, fragmentação, etc.; o uso
da voz extraída de seu uso cotidiano, submetida a um tratamento musical
complexo; utilização de expressões vocais o lingüísticas como gritos,
sussurros, choro, riso, de que se retira o valor afetivo, transformando-os
num elemento expressivo musical. Vimos também que podemos associar
essas características aos dois caminhos essenciais da música do século
XX, o caminho em direção à máxima complexidade do som, e o caminho
em direção à atomização do som.
Vimos que o caminho em direção à máxima
complexidade do som, que busca a exploração do ruído do som,
enquanto valor estético, nos leva à música concreta, indeterminada, e à
poética do grito, isto é, a todas as formas possíveis de utilização do
176
aparelho fonador, quando toda a gama de ruídos possíveis produzidos é
incorporada no fazer artístico. o caminho em direção à atomização
do som, nos leva ao serialismo total e à música eletrônica, que coincide
com o trabalho de exploração da vibração sonora de um fonema, unidade
mínima da linguagem, e à própria respiração como portadora da onda
sonora (ver esquema sintético à pg. 108). Duas abordagens distintas
levando a caminhos e resultados distintos, mas que eventualmente
também se encontram, sobretudo quando se trabalha com a noção de
contínuo sonoro, levando-nos à música eletroacústica, experimental,
performática, e à acústica simplesmente.
Como vimos também, o corpo apresenta-se como uma
realidade totalmente indissociável da voz, que tem nele o seu próprio
suporte material. Assim, ao buscarmos falar da forma da voz, somos
compelidos a igualmente falar do corpo, e da forma que esse assume.
Tomando o arco evolutivo da música erudita vocal ocidental, temos numa
ponta a voz do canto gregoriano, e na outra, a voz contemporânea. O que
podemos observar? De um lado, a imaterialidade da voz no canto
gregoriano nos remete à sua não corporeidade, nos remete à abstração
do corpo real mundano, - o que foi sem dúvida um objetivo da igreja
católica -, traz a separação corpo-mente. De outro lado, a voz
contemporânea traz a materialidade de um corpo que afirma a sua
corporeidade, que afirma a concretude que lhe é inerente, que busca a
integração corpo-mente, trazendo com isso, os sons de um corpo
concreto em sua realidade mundana, que traz o ruído, o desmoronamento
de convenções, da moral.
Piana (2001), ao refletir sobre a matéria do som, nos fala
justamente da oposição entre sonoridades que se relacionam com a
materialidade em grau máximo e, sonoridades em que, ao contrário,
predomina a tendência a atenuá-lo e enfraquecê-lo. Em suas palavras:
“No interior da fantasmaticidade que cabe em
geral aos sons podemos ainda distinguir entre sons que tomam
177
as máximas distâncias do objeto como se quisessem libertar-se
do peso da sua matéria; e, ao contrário, sons orientados na
direção oposta, enredados na matéria, nos quais predomina o
elemento corpóreo e maciço, o peso e a espessura.” (Piana,
2001, pg. 118)
Portanto, ao buscar uma voz sem as impurezas da
matéria, busca-se um som sem corpo, e, ao se buscar o corpo, encontra-
se uma voz com as impurezas da matéria. Essa busca do corpo, da
presentificação, tornou-se um imperativo filosófico, estético, cultural,
político, e desta maneira, configurou a estética da voz contemporânea.
Zumthor (1992), refletindo sobre a poesia sonora e a importância que o
corpo assume para a existência dessa poesia, escreve:
“Seja nos bitos ou nas artes, o corpo hoje vai
à desforra selvagem contra séculos de opressão, legitimamente
levada, às vezes, até o grotesco! O corpo se descobre como o
único lugar no qual se opera o encontro entre a linguagem e o
mundo. Ele rejeita, assim, o ceticismo, difundido em muitos de
nós a partir do período entre guerras, sobre a capacidade
referencial das nossas línguas. Insurge-se contra o
imperialismo lingüístico, ressuscitado sem descanso pelos
herdeiros de Saussure. Certamente pode-se falar em termos
semiológicos do corpo como emissor de palavras; mas o corpo
respira, trabalha, sofre e morre, coisa que nenhum signo jamais
fez. (...)
A voz emana do corpo total e a ele nos
reconduz: corpus et epiritus, como escreve ainda Giovanni
Fontana, ambíguo sopro, espécie de grito primigênio,
sonoridade destinada a extinguir-se com o último respiro,
178
identificada por um gesto do corpo, pelo gesto mais simples e
radical: o de viver.” (Zumthor, 1992, pgs. 141, 142)
O entendimento, a vivência que se tem desse corpo,
levará a uma vocalização específica, mediada pela escuta, que como
vimos também é seletiva e cultural. Por outra parte, a presentificação
desse corpo se abrirá à performance, que integrará também,
eventualmente, outras linguagens artísticas. Por isso, ao nos referirmos à
forma artística da voz contemporânea temos intrinsecamente duas
dimensões imediatas: a forma vocal propriamente, e a forma corporal que,
ocupando o espaço com sua concretude, irá lançar-se numa performance
igualmente distinta da tradição. Essas duas dimensões não acontecem
em separado, sendo uma a expressão da outra, e, se as separamos, é
tão somente para melhor entendimento.
4.1 A Forma Vocal
Com relação à forma vocal, - o que nos remete à forma
musical -, além das características mencionadas (incorporação do
ruído, utilização dos recursos da eletroacústica, uso de expressões não
lingüísticas, rompimento da semântica, etc.), vejamos melhor como ela se
configura enquanto forma musical propriamente dita, isto é, enquanto
estrutura.
Ouvindo as obras onde a presença dessa nova
vocalidade, que venho chamando de voz contemporânea, (várias delas
disponíveis nos CDs e no DVD que acompanham esse trabalho), obras
tanto de compositores como Luciano Berio, ou John Cage, como obras
dos artistas da voz, a saber, Demetrio Stratos, Joan La Barbara, Sainkho
179
Namtchilak, Meredith Monk, Jaap Blonk, Tanya Tagaq, Diamanda Galas,
Madalena Bernardes, Clara Guimarães - o que nos parece bastante
relevante, é o fato de, em quase todos os casos, tratar-se de uma
monodia. Embora eventualmente se possa constatar a presença de uma
outra voz (em sentido melódico), ou de algum instrumento, o que
fundamentalmente ouvimos trata-se de uma monodia.
A monodia, que etimologicamente vem do grego monos,
único, e ode, canto, que é uma composição musical para uma voz,
uma melodia, pertence, nas palavras de Boulez (1972), à ordem
horizontal – individual, distinta da homofonia, por exemplo, que pertence à
ordem horizontal coletivo, e mais distinta ainda da polifonia, em seu
sentido harmônico, que pertence à ordem vertical – coletivo.
Considerando as duas pontas do arco evolutivo da sica
vocal erudita ocidental, temos então a homofonia em uníssono do canto
gregoriano, em sua ordem horizontal – coletivo, e a monodia da voz
contemporânea, em sua ordem horizontal individual. No entanto, a
monodia aparece como proposta estética pelos idos da década de 70 do
século XVI, na Itália, através dos integrantes da Camerata Florentina. É
abraçada por compositores como Giulio Caccini, Jacopo Peri e, logo
depois, por Cláudio Monteverdi, que assim dão início à ópera, com seus
recitativos e árias solos, prática que irá se estender pela Europa. A
monodia surge como uma proposta revolucionária à época, e vale a pena
conhecermos um pouco mais os pressupostos estéticos levantados,
devido aos pontos em comum que podem ser traçados com a voz
contemporânea.
Giovanni Bardi acolhia em seu palácio de Florença, desde
o início da cada de 1570, uma academia informal onde se discutia
literatura, filosofia, arte, e música. Esta Camerata Florentina, como ficou
mundialmente conhecida, abrigou, entre outros, os teóricos Girolamo Mei,
Vincenzo Galilei, e Giovanni Batista Doni, os responsáveis pela
divulgação da nova estética. Dentro do contexto renascentista da busca
do humanismo através do resgate dos valores gregos, esses teóricos irão
180
encontrar na monodia grega o referencial que precisavam. Eles
almejavam uma música que movesse os afetos, e identificaram na
monodia essa possibilidade. Isto porque a música que se fazia então era
polifônica, com várias vozes em contraponto, o que dificultava a
compreensão do texto, e consequentemente, a possibilidade de
emocionar identificando paixões humanas, no entender desses
pensadores que buscavam o novo. Mei chegara à conclusão de que os
gregos conseguiam obter efeitos ímpares com a música, porque esta
consistia numa única melodia, cantada a uma só voz, e esta tinha o poder
de afetar os sentimentos do ouvinte, uma vez que explorava a
expressividade natural das subidas e descidas de altura, do registro da
voz e das mudanças de ritmo e andamento, inequivocamente. Para Mei, o
modo de compor polifônico era uma veleidade que não tinha mais razão
de ser, pois encobria a voz humana e sua dimensão afetiva. Em carta de
1572 a Galilei (apud Chasin, 2004, pg. 44), escreve Mei:
“Visto que a música que concerne ao canto
gravita em torno das qualidades da voz, e nisto, especialmente,
em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser
primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal
fundamento necessariamente nestas disposições (tímbricas). E,
ademais, o havendo semelhança entre cada uma destas
paixões da voz (grave, média, aguda), seria irrazoável que
tivessem as mesmas faculdades. De fato, por serem contrárias
entre si nascidas de disposições (humanas e sonoras)
contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem
propriedades contrárias, as quais, por sua vez, tinham força
para produzir reciprocamente efeitos contrários. (...) Era
efetivamente razoável que essas qualidades diversas
fundamentalmente divergentes uma das outras fossem
adequadas, cada uma por si e distintamente, para expressar
afeições determinadas; como também era necessário, ademais,
181
que cada uma exprimisse, comodamente, as suas próprias
afeições e não as das outras. (...) A partir dessa ideação e
fundamento passei a argumentar que se a sica dos antigos
cantasse simultaneamente e misturadamente várias árias na
mesma canção, como fazem nossos músicos com o baixo,
tenor, contralto e soprano ou mesmo com mais ou menos
vozes dispostas a um tempo, sem dúvida teria sido
impossível que tivesse podido, galhardamente, mover os afetos
desejados no ouvinte, como se que a isto chegasse pelos
inúmeros relatos e testemunhos de grandes e nobres
escritores.”
Chasin (2004, pg.60) conclui que:
“O que importa fundamentalmente frisar, no
substrato à interdição da polifonia está o argumento de que
cada um dos três registros da voz engendra ou melhor,
substantifica um espaço ou complexo afetivo. Espaços
afetivos assim produzidos que se vinculam, cada qual, a uma
das regiões vocais, de tal modo que na letra meiana cada um
dos timbres possui, reverbera e corporifica uma natureza
própria, que se antagoniza às outras. Destarte, cada um dos
timbres funda e ressoa afetos determinados, o que significa que
a evocação afetiva da gravidade não a pode propor os tons da
agudez, ou a pulsação da voz média. Vale dizer, quem se
lamenta não se afasta nunca dos tons agudos; ao revés, quem
está triste jamais se aparta dos graves. Portanto, em Mei, a voz,
ou mais rigorosamente, sua região, implica ou dispõe os afetos
em si: por seu fluxo se objetivam, adquirem concreta
corporeidade.”
182
Doni colocará a questão o em termos do timbre
grave, agudo, ou médio da voz, que por si trariam disposições distintas de
afetos, corporificando por si sentimentos humanos. Ele se referirá ao
movimento da fala na disposição afetiva, isto é, “o que ocorre é que os
timbres consubstanciam seu efetivo caráter e significado no projetar-se da
voz, que ao se fazer grave e aguda em seu fluxo que ao variar de tom
no movimento do dizer, assim expressa diferentes disposições afetivas”
(Chasin, 2004, pg.99). Para Doni, a sonoridade da voz é subjetividade,
interioridade que se expressa, não um sentimento em si (Idem, pg. 102).
O movimento do dizer, expressando diferentes disposições afetivas,
seria uma espécie de proto melodia. “O falar comum, estabelece Doni
coerentemente, é canto em potência, pois naturalmente subentende
emissão sonora, modulação” (Idem, pg. 104). Em Doni, “o som que se
transforma em melodia não se origina da sonoridade prosódica, mas
daquela que expressa e evoca inclinações, posturas, sentimentos,
paixões humanas” (Idem, pg. 109). Em Doni, o canto nasce da fala, do
movimento do dizer, que por sua vez reflete o movimento dos afetos na
vida.
Todos estavam de acordo com o fato de que a voz
expressava afeto, paixões humanas, estados de alma, subjetividade, e
justamente por isso, era necessário que se manifestasse numa monodia,
para que, sendo ouvida inequivocamente, movesse afetos nos ouvintes. E
do entendimento do canto com sua proximidade da fala, do canto vindo
do movimento do dizer, nasceu o recitativo.
Essas idéias foram totalmente revolucionárias à sua
época, pois de fato geraram uma nova forma musical, que fez a voz fazer-
se ouvir em sua dimensão humana, individual e subjetiva. Evidentemente,
não para os nossos padrões atuais, mas com certeza para os ouvidos e
mentes do final do século XVI e início do XVII. Existia um pressuposto
filosófico humanista que buscava colocar o Homem em evidência, com
suas paixões e afetos reais, e para tal possibilidade em música, foi
resgatada a forma da monodia. Pouco a pouco, a monodia inicial
183
transformou-se em melodia acompanhada, e essa se tornou a forma
musical mais difundida desde então. Mas o que nos interessa, o os
pressupostos estéticos e filosóficos que trouxeram a monodia para a
música vocal ocidental. Ao querer enfatizar o humano, aqui em termos de
afetos que se manifestam na voz, especificamente no timbre da voz, ou
no movimento do dizer, os teóricos e músicos do final da renascença e
início do barroco encontraram na monodia a sua expressão musical. Com
a monodia, ao contrário do intrincado tecido polifônico, a voz pôde se
projetar em sua subjetividade, a voz pôde melhor revelar sua
individualidade, ainda que por essa época as mulheres não cantassem, e
sim os castrati, como vimos no primeiro capítulo. De qualquer maneira,
houve um movimento profundo para essa transformação, e as cartas e
tratados dos teóricos da Camerata Florentina nos mostram com clareza
as suas intenções e justificativas.
Qual o interesse dessas colocações para nós? O interesse
reside no fato de que, embora provavelmente não seja consciente, a voz
contemporânea se expressa numa monodia que, podemos dizer, permite
um novo resgate humanizante, porém de outra ordem, um resgate de um
corpo desreprimido. O interessante é observar que a busca de uma nova
vocalidade, com toda a incorporação do ruído, de expressões não
lingüísticas, de ruptura da semântica, de uso da respiração como valor
estético, fundada num corpo que se deseja pleno, foi se expressar
justamente em forma de monodia. Digo que não seja consciente, no
sentido em que não nenhum tratado, ou coisa que o valha, em que se
postule tal necessidade. A forma monódica simplesmente aconteceu. E
aconteceu por uma necessidade intrínseca à voz, diria, de ganhar um
novo relevo, nova substância, nova existência, nova subjetividade. A
monodia, em sua ordem horizontal individual, revelou-se mais uma vez,
a forma primordial de expressão de uma nova subjetividade, de um novo
resgate humanizante, de uma nova projeção existencial vocal. Um
pressuposto filosófico humanista buscou colocar o Homem em evidência,
com suas paixões e afetos reais, e para tal possibilidade musical, foi
184
resgatada a forma da monodia, encontrada entre a prática musical dos
gregos, conforme relatos escritos, uma vez que eram os únicos materiais
acessíveis possíveis; agora na contemporaneidade, uma necessidade
existencial coloca igualmente o ser humano em evidência, não em termos
de seus afetos, mas de sua concretude corpórea, o que também não
deixa de ser um resgate humanizante, porém em outras bases. O
pressuposto filosófico é o da integração corpo-mente, onde o corpo surge
em sua materialidade orgânica.
Conforme vimos no capítulo Um deste trabalho, o "eu", o
sujeito, havia se separado e se tornado todo-poderoso em relação ao
mundo. E o corpo, conjunto biológico, material, mundano, cheio de
humores e excreções havia ficado relegado, mais ainda que o mundo, no
dizer de Fontanella (1995). Vimos que o profundo entendimento dual que
se estabeleceu em nossa consciência ocidental, a partir de crates, que
ganhou matizes religiosos com o cristianismo e se desenvolveu com o
pensamento científico moderno, essa dicotomia cognição/emoção,
corpo/mente, razão/sentimento, com a conseqüente supremacia da
mente/razão/cognição, foi sendo posto abaixo cada vez mais pelas
descobertas na física, biologia, neurociências e ciências cognitivas. E
isso, claro, permeou o entendimento sobre o corpo, a escuta, e
consequentemente a voz, enquanto um fazer musical e artístico
específico. A partir do século XX, principalmente na segunda metade,
vários estudos vão questionar essa dualidade, essa supremacia da razão
que desconsidera o corpo vivo. E é esse corpo vivo que agora quer se
fazer ouvir.
Essa vocalidade surgida no século XX, sobretudo na
segunda metade, surge, pois, plasmada em uma monodia. É como se
fosse a voz refletindo sobre ela mesma, sua concretude existencial. A
voz, que surge de um novo entendimento do corpo, projeta-se no espaço
e precisa ser ouvida sozinha, inequivocamente, numa monodia. Mostra-se
significativo os títulos de trabalhos como Voice is the Original Instrument,
de Joan La Barbara (1974), com faixas como “one-note internal
185
resonance investigation, for voice”, e “hear what I feel” ou Cantare la
Voce, de Demetrio Stratos (1978), com faixas como “Criptomelodie
Infantili, “Passagio”, e “Investigazione”, onde aqui os dois sons que
ouvimos são de sua própria voz. O que ouvimos são monodias. Ursonate,
algo como canção primordial, de Kurt Schiwitters (1922) igualmente é um
título revelador para uma voz que intenta revelar-se nela mesma. Jaap
Blonk, que a executa até hoje, cada vez com mais virtuosismo, revela a
voz através da obra, que, claro, também é uma monodia. Eu e meu choro
na escadaria ( in Pour em finir avec le jugemente de Dieu, 1947), de
Artaud, também seria uma monodia de uma voz que grita a sua
existência. Sequenza III (1966) de Berio, bem como 62 Mesostics Re
Merce Cunningham (1971), e Music for Two (by one)(1984), de John
Cage, são igualmente monodias. Ach So (1992), de Sainkho Namtchylak,
Breather (2005), de Tanya Tagaq, uma composição com o som da
respiração, idem. Thema- Omaggio a Joice (1958) e Visage (1960), de
Berio, são composições eletroacústicas, em que ouvimos, além da voz,
alguns outros sons; entretanto, são sons obtidos eletronicamente a partir
da própria voz de Cathy Berberian, e esta sim, está em primeiro plano,
sobretudo em Visage, onde não mais um texto a ser lido. O material
musical desta obra parte de improvisações de Cathy Berberian, onde a
voz se presentifica em entonações, inflexões sem conteúdo verbal, porém
emotivo, e num fluxo contínuo de sons surge uma única palavra: parole.
uma valorização da voz humana, como se quisesse chegar à
formação da linguagem e, através desse som anterior às palavras, se
contasse uma história. Aqui também podemos nos referir a uma monodia,
ainda que acompanhada de alguns sons, tamanha a evidência com que a
voz, nela mesma, é projetada no espaço, traçando um percurso
inequívoco de sua existência. Education of the Girlchild
(1976), de
Meredith Monk, também é uma monodia onde a voz canta-se a si mesma,
explora as possibilidades do aparelho fonador, brinca com os sons, ainda
que haja algumas notas de piano ao fundo.
108
108
Todas as obras citadas encontram-se nos CDs que acompanham esse trabalho.
186
Eventualmente, essa nova vocalidade, com seus ruídos e
impurezas, foi incorporada à escrita coral, como por exemplo, em Beba
Coca- cola, onde um arroto no final, ou em Ashmatur, onde ouve-se
sons de alguém com asma, ambas de Gilberto Mendes. Mas a escrita
coral é exceção.
A monodia, que é uma composição musical para uma
voz, uma melodia, apresenta-se aqui em sua ordem horizontal
individual, para uma voz, mas não exatamente para uma melodia,
pois aqui não se trata de melodia no sentido tradicional, isto é, de notas
baseadas em escalas sejam tonais, modais ou seriais, estruturadas num
determinado ritmo. Embora em algumas obras possamos identificar
pequenos fragmentos melódicos, e até às vezes recorrentes, como por
exemplo, em Flautofonie ed Altro, de Demetrio Stratos, no geral não a
referência a alturas estruturadas; talvez possamos falar em alturas
sugeridas. Talvez possamos falar que a voz segue alturas do movimento
do dizer, em seu movimento primordial, anterior mesmo à fala. Ou que a
voz presentifica timbres anteriores mesmo aos sentimentos. “Trata-se de
fazer falar a voz por si, enquanto potência física dotada de qualidades
incomparáveis” reflete Zumthor (1992, pg.142) sobre a poesia sonora, que
como já vimos é um dos principais esteios da nova vocalidade.
Para pensarmos um pouco mais sobre a forma em que a
monodia da voz contemporânea se configura, podemos considerar o
timbre, dada a relevância por ele alcançada no século XX. Tomemos o
que escreve Zuben (2005) a esse respeito:
“A nova hierarquia alcançada pelo timbre na
primeira metade do século XX, principalmente após Varèse,
com suas massas sonoras e seus aglomerados e compostos
tímbricos, sedimenta a idéia de composição construída
diretamente sobre a transformação do objeto sonoro, inclusive
com a consideração dos fenômenos físico acústicos para a
escuta. A concepção de forma, como resultado de um
187
processo, desconsidera totalmente os modelos arquiteturais de
organização musical, estabelecidos anteriormente, lançando o
compositor em um novo e infinito universo de possibilidades. O
trabalho de Varèse na construção de novas entidades
harmônicas e de novos procedimentos de derivações de
materiais, como as rotações, contrações, expansões e
distorções, enfim, na intensiva transmutação de seus blocos
sonoros heterogêneos, que se fundem e se repelem
continuamente, revela a presença de novas forças na
organização do percurso das obras. Agora, são os processos
que delineiam a forma do som que se transforma no tempo”
(Zuben, 2005, pg.164).
A idéia de composição construída diretamente sobre a
transformação do objeto sonoro, que vai se dando através das
transformações do timbre, em que são os processos que delineiam a
forma do som, que se transforma no tempo -, pode, a nosso ver, ser
aplicada à monodia da voz contemporânea. Pois podemos identificar esse
processo, ou seja, a voz, enquanto um objeto sonoro, vai se
apresentando e se transformando através dos vários timbres,
configurados pela exploração dos sons possíveis do aparelho fonador, e é
nesse processo em transformação no tempo que a forma vai sendo
delineada. A idéia musical de Varése - que constrói suas composições
tendo o som como ponto de partida, sendo o som a própria idéia, que vai
se transformando no tempo e no espaço, e assim revelando a sua forma -
, pode nos auxiliar a refletir sobre a forma musical da voz contemporânea.
Pois para Varèse, “o som é a idéia, é a sua forma que a sica expõe: a
forma é visível, pois ela é o próprio tratamento, as transformações
mesmas do som” (Ferraz, 1998, pg. 52).
A audição da monodia da voz contemporânea se dá,
portanto, sobre as novas bases de entendimento musical, e é sobre essas
188
novas bases que se pode vislumbrar a sua forma musical. Pierre Boulez
(1992, pg. 101), ao referir-se à música hoje, diz que:
“Como os esquemas formais de hoje não são
mais pré-concebidos, mas se forjam gradualmente numa
espécie de tempo que se tece, se pode conhecer a forma se
ela for uma vez ‘traçada’ no sentido da geometria. (...) Não
tenho, portanto, qualquer conhecimento da forma e meu ângulo
de audição se estabelece a posteriori, uma vez desenvolvida
inteiramente a forma.”
Boulez refere-se ao “ângulo de audição” a posteriori da
nova música, em contraste com o “ângulo de audiçãoa priori da música
anterior à nova música do século XX, em que a percepção da forma
baseia-se numa memória de um conhecimento a priori dos esquemas
formais empregados.
Concluindo, podemos dizer então que, em linhas gerais, a
forma musical da voz contemporânea apresenta-se numa dimensão
timbrística onde é dada existência a todos os sons possíveis do aparelho
fonador, incluindo a incorporação do ruído; que essa voz, enquanto um
objeto sonoro, vai se transformando através de suas mudanças
timbrísticas num processo através do tempo, de um tempo que se tece; e
que esses eventos vocais em transformação são plasmados em uma
monodia, posto que de voz canto se trata. E ainda podemos dizer que
essa monodia da voz contemporânea encontra-se filiada aos dois
caminhos essenciais da música do século XX: o caminho em direção à
máxima complexidade do som, e o caminho em direção à atomização do
som.
189
4.2 A Forma Corporal
O corpo que, em si, nunca está desvinculado da voz,
posto que é justamente o próprio corpo de seu instrumento, ganha
conforme vimos, uma outra existência a partir de novos pressupostos
filosóficos, que não o interpretam mais como algo separado, inferior, visto
de fora; muito pelo contrário. Descobertas na física, biologia,
neurociências e ciências cognitivas revelaram a importância real do corpo
e seus processos, para a própria gênese das emoções e pensamentos.
O corpo o é mais encarado como um depósito de
informações; nas palavras de Greiner (2005, pg.131):
“O corpo não é um meio, por onde a informação
simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em
negociação com as que estão. O corpo é o resultado desses
cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas
abrigadas”.
O corpo passa a ser entendido como algo dinâmico, em
constante negociação com o meio circundante, e libertador de processos
emocionais, comportamentais, existenciais, estéticos. Essa busca do
corpo, que implica em sua presentificação, tornou-se um imperativo
filosófico, estético, cultural, político, e desta maneira, configurou a estética
da voz contemporânea. Por outra parte, a presentificação desse corpo se
abrirá à performance, que integrará também, eventualmente, outras
linguagens artísticas.
Numa primeira instância temos, então, uma consciência
corporal que, num diálogo com a reflexão filosófica, engendrará uma
determinada presença corporal. Ao filosofar com o corpo, através de seus
vários canais de percepção e em negociação com as informações em
190
trânsito constante, pode-se buscar experimentar esteticamente esse
corpo numa performance. É o que acontece com essa vocalização
contemporânea, onde a dimensão da performance se instaura
conjuntamente com a busca da presentificação do corpo, sobre novas
bases filosóficas.
A presentificação do corpo é um imperativo para o corpo
em performance. A presentificação, isto é, torná-lo presente, vivo, em
constante negociação com o seu entorno, sendo atualizado a todo
instante.
Para começar, “a capacidade da voz em produzir sentido
não se extra corporalmente” (Oliveira Junior, 2004, pg.98). O gesto, a
menor partícula significativa, “projeta o corpo para o lugar da performance
e, assim como a voz, domina e satura o espaço de movimento, impõe a
força de sua presença (Idem, pg. 99).
A presença do corpo para a voz, é, em si,
intrinsecamente relevante, mas o que queremos ressaltar é que com
todas as transformações filosóficas, científicas, artísticas, musicais,
existenciais, etc., que ocorreram no século XX, passa-se a ter um novo
entendimento sobre o corpo, que acaba abrindo-se às experimentações.
E, desta forma, mediado igualmente por uma nova escuta, abre caminho
para as experimentações vocais, distintas da tradição do bel canto.
Portanto, as transformações vocais acompanharam as transformações
corporais, que acompanharam as transformações de pensamento, num
vai e vem constante, mediado pela transformação da escuta.
Temos uma unidade corpo-voz que se presentifica no ato
de sua manifestação expressiva, e a possibilidade dessa manifestação
ocupar o espaço numa performance. São duas instâncias, portanto: a
performance da voz cantada (ou falada) que engloba naturalmente gestos
corporais, e a performance dessa unidade corpo-voz ocupando o espaço.
“A voz, assim, não preenche o espaço, mas o habita,
recobre-o, constringe-o a dizer-se na sua própria linguagem de espaço”
191
(Zumthor, 1992, pg. 142). A questão da performance sempre esteve
presente para os poetas fonéticos e sonoros. Nas palavras de Zumthor
(Idem, pg.143):
“A Poesia Sonora se abre em performance. A
‘tentação do espaço’ que carrega em si é vontade de dança:
outro traço comum com o Dadá do Cabaret Voltaire, que era
fascinado por uma arte concebida como articulação gestual e,
talvez, mimesis de ritos ancestrais. Desse modo, diversificando
também aqui temperamentos e hábitos, os poetas sonoros ‘se
põem no espetáculo’ numa cena que constitui um território
intermediário entre poesia, música, dança, pintura, unidas por
um ritual no qual se fundam em feixes expressivos controlados
pelo primado do corpo sonoro. Ser um ’performer’, para um
autor, é tornar-se intérprete de si mesmo.”
A performance pode ser estruturada como numa partitura
de cena, ou abrir-se ao improviso em um happening; pode ter mais ou
menos elementos visuais; pode incorporar modernas tecnologias ou não.
Mas, nesses casos, sempre estamos falando de uma ação corporal
ocupando o espaço, interagindo com ele, num desenrolar temporal, e, no
caso, a partir do elemento sonoro-vocal.
Alguns artistas da voz exploram mais a dimensão
performática do que outros, como por exemplo, Jaap Blonk, Joan La
Barbara, Madalena Bernardes, Meredith Monk. No DVD que acompanha
esse trabalho é possível assistir trabalhos atuais de Jaap Blonk e Joan La
Barbara, em que exploram a dimensão performática integrada a outras
linguagens artísticas, a partir do corpo sonoro. Neste DVD também se
assiste às performances atuais de Sainkho Namtchylak, e Tanya Tagaq, e
às antigas de Demetrio Stratos, uma vez que ele morreu em 1979, com
33 anos de idade.
192
As performances integradas a outras linguagens artísticas,
incluindo improvisação ou não, muito devem às experimentações
artísticas propostas por John Cage, que, por sua vez, havia tomado
contato com os escritos de Antonin Artaud, através de Pierre Boulez, em
Paris. Banes (1999, pg. 76) relata que:
“Tanto os happenings como o fluxus evoluíram a
partir de idéias das aulas de John Cage em ‘Composição de
Música Experimental’, que ele deu na New School for Social
Research, de 1956 a 1960. Vários participantes de sua turma,
em que os alunos faziam apresentações e as discutiam,
atribuíram o começo dos happenings a suas experiências ali.
Influenciado pelos futuristas italianos, pelos dadaístas, pelo
zen-budismo e pelas teorias de Antonin Artaud, a noção de
música por parte de Cage havia-se expandido para se tornar
uma forma não dramática de teatro. Por volta da década de
1970, essa espécie de teatro seria caracterizada como ‘arte de
apresentação’. O próprio Cage organizara, em 1952, um
precursor dos happenings no Black Mountain College mas, na
maior parte, suas apresentações permaneceram classificadas
apenas como música.”
Sem dúvida, Cage teve um papel ímpar em semear e
difundir idéias e propostas de experimentação artística que buscavam
integrar as várias linguagens, sob a égide da liberdade de criação. Ele
atualizou nessa passagem para os anos 60, várias idéias e propostas
originárias das vanguardas européias das primeiras décadas do século
XX. Por sua vez, os artistas por ele influenciados, toda uma geração,
difundiram mais ainda, mundo a fora, a manifestação de arte enquanto
performance.
193
Capítulo 5
Conclusão
E
nzo Minarelli, formado em psicolingüística pela
Universidade de Veneza, poeta, artista, ator e escritor, além de trabalhar
com vídeo, literatura experimental e sons, - em seu trabalho sobre a
História da poesia sonora no século XX (1992) cria uma tabela de
classificação para os artistas da voz. Essa tabela inclui 50 artistas entre
poetas fonéticos e sonoros como Hugo Ball, Tzara, Schwitters, Isidore
Isou, Dick Higgins, Henri Chopin, cantores como Cathy Berberian,
Meredith Monk e Demetrio Stratos, e pessoas que influenciaram a nova
vocalidade como Russolo e Antonin Artaud. A classificação não é
hierárquica, mas tão somente uma proposta de organizar esses artistas
da voz contemporânea, de acordo com a presença ou não, detectável em
seus trabalhos, de certas características relevantes para esse trabalho
vocal. As características levantadas são: Poder da palavra oral;
Onomatopéia; Zaum neolinguagem; Simultaneísmo; A graça do cabaret;
Desenvolvimento do fonema; Intraverbalismo; Permutação; Destruição da
língua; Rumorismo fonético; Valores tonais; Conceitualismo; Música; Fala
teatral; Aparato bucal; Aparato tecnológico; Computação; Ação polipoesia;
194
Vídeo signo; Repetição; Sentido de duração; A montagem; Sentido de
existência; Função social.
Como podemos observar, essas características apontadas
tentam dar conta de várias dimensões envolvidas nesse trabalho vocal
contemporâneo: do poder da oralidade e aparato bucal ao sentido de
existência e até função social, passando pela performance e aparato
tecnológico. E isso vem corroborar a nossa tentativa de mostrar que a
nova vocalidade se a partir de um cruzamento de vários níveis de
abordagens.
O que tentamos traçar ou mapear neste trabalho foi a voz
contemporânea, como uma existência particular de vocalidade surgida no
século XX, sobretudo na segunda metade, detectável em vários trabalhos,
e passível de ser identificada numa forma artística específica, a partir de
suas influências históricas determinantes.
Entendemos que essa nova vocalidade se deu a partir de
um novo entendimento do corpo, da escuta e do pensamento ocidental,
que geraram um profundo questionamento existencial, o qual abriu
caminho para a voz contemporânea que por sua vez preencheu o espaço
de uma forma totalmente distinta daquela dos séculos anteriores,
enquanto forma artística. Ou seja, a voz mudou radicalmente, porque o
corpo, o entendimento desse corpo, e a escuta, mudaram radicalmente no
século XX. E sendo a voz parte da unidade corpo voz escuta não
poderia ser diferente. No entanto, a história não é linear, de modo que a
transformação substancial dessa unidade coexiste com as formas
tradicionais, que, aliás, ainda são hegemônicas.
Conforme vimos no primeiro capítulo, a separação corpo
mente e a conseqüente super valorização da mente (racional) e a
desvalorização do corpo (irracional), - processo iniciado na Grécia a partir
de Sócrates, que se desenvolveu na Idade Média através do pensamento
cristão, e que culminou no iluminismo com o triunfo da Razão, - levou à
busca da voz distanciada de um corpo concreto. Com Nietzsche e Freud
o “irracionalismo” ganha novo status, ganha profundidade, relevância. A
195
sensibilidade poética do filósofo Nietzsche e a sensibilidade científica do
médico Freud resgataram a importância fundamental do corpo, seus
impulsos instintivos, seus desejos profundos, suas faculdades não
racionais, e com isso abriram caminho para todo o posterior
questionamento da supremacia da razão.
Nas primeiras décadas do século XX, os pressupostos da
filosofia iluminista desordenaram-se. Dúvidas sobre a racionalidade e
sobre o progresso da civilização haviam abalado a tradição iluminista. A
natureza humana parecia muito mais incerta do que haviam imaginado os
filósofos. O abalo nas certezas também ocorreu com a visão que se tinha
do universo. A emergência de uma física moderna levou os cientistas a
questionarem, a modificarem, a abandonarem as noções tradicionais de
matéria, movimento, luz, espaço, tempo, causa e efeito e o significado da
verdade científica. Para os físicos modernos, o espaço e o tempo não
constituem uma realidade objetiva que existe independentemente dos
seres humanos. É nossa posição no espaço e no tempo que determina o
que entendemos por realidade. A natureza não pode ser inteiramente
inteligível para nós. Muito longe de ser uma máquina cujas operações são
todas conhecidas da mente, o universo contém elementos de incerteza e
mistério; é governado pela probabilidade e pela relatividade (Perry, M.,
1985).
O filósofo francês Edgar Morin (1999) ao propor uma
reforma do pensamento, explica que as três idéias poderosas que davam
a certeza de conhecimento, a saber, as idéias de ordem, separação e
razão, foram justamente aquelas mais abaladas nos alicerces. A idéia de
desordem e de incerteza surgiu quando o físico Boltzman, em fins do
século XIX, enunciou o segundo princípio da termodinâmica, dizendo que
no tempo a entropia tende a crescer, isto é, perda da capacidade da
energia de se transformar em trabalho, traduzida também por uma
tendência à desintegração do que é ordenado ou integrado. Diz Morin:
196
“A desordem estava instalada no coração do
nosso mundo, que comporta sempre fenômenos caloríficos,
porque produzimos calor a partir do momento em que fazemos
qualquer ação. Viver é um fenômeno calorífico. E este
fenômeno está intensificado hoje em dia na cosmo-física, já que
a origem do universo é um brilho muito intenso, uma agitação
absolutamente demente... Portanto, nosso universo é
inseparável da desordem. (...) Enfim, o universo sempre nos
aparece como um coquetel espantoso de ordem e desordem. E
depois, como vocês sabem também, em nível microfísico,
apareceu o fenômeno chamado de indeterminação” (1999, pgs.
23, 24).
A idéia da separação, - a separação das disciplinas, a
separação das experiências (quando um corpo qualquer é retirado do seu
meio natural, separado e colocado num meio artificial para ser observado)
- foi igualmente abalada com o surgimento das ciências sistêmicas,
sobretudo a ecologia, fundada na noção de ecossistema, isto é, as
interações entre os diferentes seres vivos. Assim,
“Temos também o problema da não
separabilidade. Com ele nos deparamos com algo
absolutamente banal na psicologia cognitiva: o fato de que a
atividade normal do nosso espírito, do nosso cérebro, nossa
atividade mental normal, funciona integrando informação num
conjunto que lhe dá sentido. (...) Contextualizar é o problema da
ecologia. Nenhum ser vivo pode viver sem seu ecossistema,
sem seu meio ambiente. Isso quer dizer que não podemos
compreender alguma coisa autonomamente, senão
compreendendo aquilo de que ele é dependente. O que
determina também uma revolução no pensamento, pois, o
conhecimento ideal implicava fechar inteiramente um objeto e
197
pesquisa-lo exaustivamente. (...) Mas, enfim, qualquer pessoa
que tenha estudado um pouco de sociologia ou de antropologia
sabe que somos obrigados a nos situar, reconhecer-nos a nós
mesmos para falar da sociedade da qual fazemos parte” ( Idem,
pgs. 25 e 26).
Com relação à razão, o pensamento caminha em direção à
pesquisa de uma razão aberta, e não mais de uma razão fechada nos
princípios da lógica clássica.
“O problema que se coloca atualmente não é o
de substituir a certeza pela incerteza, a separação pela
inseparabilidade, ou a lógica clássica por não sei o quê... Trata-
se de saber como vamos fazer para dialogar entre certeza e
incerteza, separação e inseparabilidade, etc” (Idem, pg. 27).
Morin buscará alternativas a esse pensamento fundado
nas idéias de ordem, separação e razão, baseado na teoria dos sistemas,
na teoria da informação e na cibernética, além das idéias de auto-
organização, e da tradição filosófica que enfrenta a contradição, para o
mundo que se ergue diante de nós. A auto-organização é o poder que os
seres vivos têm de se auto-reparar, de se auto-transformar, de se auto-
reproduzir. Um poder que se alimenta da desordem para se regenerar.
Ele usa ainda o termo auto-eco-organização, porque inclui os elementos
regeneradores do meio exterior.
Morin busca uma reforma do pensamento, uma mudança
paradigmática, uma mudança que inclua a desordem, a inseparabilidade,
a contradição. Assim, ele tenta dar conta da complexidade da vida, num
movimento de integração total, em que o ser humano possa se
reconhecer em todas as dimensões. Em suas palavras:
198
“É preciso compreender a religação humana
(re)ligando o homem racional (sapiens) ao homem louco
(demens), o homem produtor, o homem técnico, o homem
construtor, o homem ansioso, o homem do prazer, o homem
extático, o homem cantando e dançando, o homem instável, o
homem subjetivo, o homem imaginário, o homem mitológico, o
homem crítico, o homem neurótico, o homem erótico, o homem
lúbrico, o homem destruidor, o homem consciente, o homem
inconsciente, o homem mágico, o homem racional, num rosto
de múltiplas faces em que o hominídeo se transforme
definitivamente em homem (em homem complexo)” (Edgar
Morin, apud Pena-Vega e Stroh, P. , 1999, pg.180).
“As surpreendentes descontinuidades do ser e a
aceitação de que o irracional coabita com o racional: alguma
coisa na explicação permanece inexplicável, alguma coisa na
inteligência permanece ininteligível. (...) Se a insatisfação
acompanha toda elucidação racional, isto significa que todo
progresso do racional é acompanhado de um progresso do
irracional... Racionalidade e irracionalidade se formam e se
forjam simultaneamente” (Idem, 1999, pg. 184).
Essa pequena digressão apresentando algumas idéias de
Edgar Morin veio em função de corroborar as idéias apresentadas nesse
trabalho, no intuito de elucidá-las ainda mais. Pois estamos tratando de
uma voz, expressão de um corpo vivo, que justamente, poderemos falar,
parte da inseparabilidade, da desordem, da auto-eco-organização. Um
corpo que se alimenta da desordem para se regenerar. Bem como a
música que igualmente se nutriu da desordem, e da indeterminação,
fenômenos encontrados na própria constituição da natureza. que tudo
está em relação com tudo, como num ecossistema, não poderia ser
199
diferente, e é nesse contexto que podemos entender a gênese da voz
contemporânea.
Para além dessa base existencial, vimos que a voz
contemporânea artística forjou-se a partir de três grandes influências: da
poesia sonora, das pesquisas teatrais, e da música do século XX. Dentre
as influências musicais marcantes, como a incorporação do ruído
enquanto valor estético, ou a idéia de indeterminação como processo,
estão os cantos étnicos. Esses cantos, resgatados a partir do interesse
despertado pela etnomusicologia, foram e são fundamentais para a
estética da voz contemporânea, na medida em que concretamente
apresentam outras possíveis técnicas vocais. Demetrio Stratos, por
exemplo, muito se utilizou da técnica do canto difônico (dois sons
simultâneos) comum entre os habitantes da Ásia central. Tanya Tagaq
empresta a técnica do canto Inuit (esquimó) para a sua arte. Sainkho
Namtchylak recorre ao canto de sua região, Tuva (situada entre a
Mongólia e a Rússia). Esses cantos costumam ser chamados de throat
singing (canto de garganta) ou Overtone singing.
Para concluir:
A incorporação do ruído, do silêncio, da indeterminação na
música, a utilização dos recursos da eletroacústica, da voz extraída de
seu uso cotidiano, de expressões vocais não lingüísticas, do canto falado,
da poesia sonora, da poética do grito, da performance envolvendo outras
mídias, de cnicas dos cantos étnicos, a abertura do corpo à desordem,
indeterminação e inseparabilidade, a presentificação do corpo vivo, a
abertura para uma nova escuta,... - no contexto das transformações
filosóficas, científicas, artísticas, musicais, existenciais, etc., que
ocorreram no último século, - abriram caminho para as experimentações
vocais distintas da tradição do bel canto, e, com isso, emergiu a monodia
da voz contemporânea.
As transformações vocais acompanharam as
transformações corporais, que acompanharam as transformações de
200
pensamento, num vai e vem constante, mediado pela transformação da
escuta.
A existência dessa voz ocorre na medida em que o corpo
se liberta, sendo isso um processo encadeado a partir de várias frentes.
Irão transcorrer décadas do século XX, até o final dos anos 50, para que
uma nova estética da voz principiasse a se configurar, cruzando as três
influências decisivas, já comentadas.
Este novo perfil da voz iniciado no culo XX caminha até
os nossos dias de século XXI, quando, aos poucos, vai sendo descoberta.
201
Anexo A
A voz contemporânea
percurso histórico
Seqüência das faixas do CD 1
1. Paul Scheerbart – Kikakou (1897)
Performed by Trio Exvoco: Hanna Aurbacher, Teophil Maier, Ewald Liska
LP Futura Poesia Sonora (Cramps Records, Milan)
2. Arnold Schoenberg – Pierrot Lunaire (1912)
Part I - Mondestrunken
Voz Helga Pilarczyk, Direção Pierre Boulez. Disques Ades, 1962
3. Arnold Schoenberg – Pierrot Lunaire
Part I - Colombine
4. Arnold Schoenberg – Pierrot Lunaire
Part I – Der Dandy
5. F.T.Marinetti - Dune, parole in libertá (1914)
Performance Luigi Pennone, Arrigo Lora-Totino. LP Futura Poesia Sonora (Cramps Records, Milan, 1976)
6. F.T.Marinetti – Marcia Futurista (1916)
Storia della poesia sonora Baobab, n.18 Reggio Emilia (Italia), 1989
7. Hugo Ball - Karawane ( 1916 )
Performance Trio Exvoco: Hanna Aurbacher, Teophil Maier, Ewald Liska .
LP Futura Poesia Sonora (Cramps Records, Milan, 1976)
8. Tristan Tzara L’amiral cherche une maison à louer ( 1916 )
Performance Trio Exvoco: Hanna Aurbacher, Teophil Maier, Ewald Liska .
LP Futura Poesia Sonora (Cramps Records, Milan, 1976)
9. Kurt Schwitters - Ursonate (1922 – 1932) - Largo
Performance Kurt Schwitters, Gravado em 05/ 05/1932
Wergo Records
10. Kurt Schwitters - Ursonate – Scherzo
11. Kurt Schwitters – Scherzotos (1936- 37)
LP Futura Poesia sonoraa ( Cramps Records, Milan, 1969
)
12. Antonin Artaud - Pour en finir avec le jugement de dieu – Eu e meu
choro na escadaria ( 1947 )
CD pour finir avec le jugement de dieu (Sub Rosa aural documents SR92). Gravado em 22-29/11/1947.
13. Antonin Artaud - Pour en finir avec le jugement de dieu
202
14. Karlheinz Stockhausen - Gesang der Jünglinge (1955-56) - extrato
15. Cathy Berberian / Luciano Berio - Thema- Omaggio a Joyce (1958)
Luciano Berio- Many More Voices – RCA, 1998
16. Cathy Berberian/ Luciano Berio - Visage (1960)
Luciano Berio- Many More Voices – RCA, 1998
17. Henri Chopin – La Fusée Interplanétaire – Audio-poème (1963)
CD "Audiopoems" .
18. Henri Chopin – Le Corps – L’energie du sommeil (1965)
OU Review
19. Henri Chopin - Chant du corps – 3ªparte (1966)
OU Review
20. Luciano Berio/ Cathy Berberian - Sequenza III ( 1966 )
Berio: Circles; Sequenzas 1, 3 & 5 . Wergo Germany
Seqüência das faixas do CD 2
1. John Cage – Solo for voice 2 - 1967
Eletronic Realization by Gordon Mumma and David Tudor. Odyssey Label, 1968
2. Pauline Oliveros- Sound Patterns - 1968
Odyssey Label, 1968
3. John cage – 62 Mesostics Re Merce Cunningham (1971)
Voz Jack Briece . 10+2: 12 American Text- Sound Pieces.
Arch Records, San Francisco, USA, 1974
4. Joan La Barbara – Voice piece : One-Note Internal Ressonance (1974)
Voice is the original instrument, Disc 1
5. Joan La Barbara- Les Oiseax Qui Chantent Dans Ma Tete
Voice is the original instrument, Disc 1
6. Joan La Bárbara – Hear What I feel, for Voice
Voice is the original instrument, Disc 1
7. Demetrio Stratos - 62 Mesostics Re Merce Cunningham (1974)
8. Meredith Monk – Education of the Girlchild (1976)
Gravação WBAI, NYC, May 15, 1976. Big Ego (Giorno Poetry Systems)
9. Demetrio Stratos – Criptomelodie Infantili (1978)
CD Cantare la Voce. Cramps Records, Nova Musicha n. 19.
203
10. Demetrio Stratos - Flautofonie ed Altro
CD Cantare la Voce. Cramps Records, Nova Musicha n. 19.
11. Demetrio Stratos – Investigazione
CD Cantare la Voce. Cramps Records, Nova Musicha n. 19.
12. Demetrio Stratos – Le Sirene
CD Cantare la Voce. Cramps Records, Nova Musicha n. 19.
13. Demetrio Stratos - Passagio I, II ( diplophonie e triplophonie)
CD Cantare la Voce. Cramps Records, Nova Musicha n. 19.
14. Demetrio Stratos – Tizitziras o Mitiziras
LP Futura Poesia Sonora (Cramps Records, Milan)
15. Joan La Barbara – Music for Two (by one) (1984)
(John Cage)
CD de Joan La Barbara Singing Through , vocal compositions by John Cage, ,
New Albion Records, 1990
16. Jaap Blonk - Ursonate – Cadenza (1986)
(Kurt Schwitters)
17. Jaap Blonk - Ursonate – Largo
18. Sainkho Namtchylak – Ach So ( Dedicated to women ) ( 1992 )
Lost Rivers FMP, CD 42, 1992
19. Tanya Tagaq – Breather (2005)
CD Sinaa
20. Celthic mouth music – Bird imitation
Celtic Mouth Music, Ellipsis Arts, 1997.
21. Voices from the center of Asia – Sigit with Khomuz (canto com os’
harmônicos)
CD "Voices from the Center of Asia," Pan Records, 1991
22. Voices from the center of Asia – Borbannadir with finger strokes
across lips ( com dois sons simultâneos )
CD "Voices from the Center of Asia," Pan Records, 1991
204
Anexo B
Percurso histórico - Do presente ao passado
Seqüência das faixas do DVD
1. Abertura
2. Jaap Blonk – Ursonate / 2005
3. Tanya Tagaq – Quimmiruluapik / 2006
4. Sainkho Namtchylak
5. Sainkho Namtchylak - Live 2002
6. Jaap Blonk Installation Messa di voce / 2003.
Audiovisual Performance
and Installation for voice and Interactive media - por Golan Levin e Zach Lieberman com
Jaap Blonk e Joan La Barbara
7. Jaap Blonk e Joan La Barbara - Fluid quot :
Installation Messa di voce
8. Jaap Blonk e Joan La Barbara - Pitchpaint :
Installation Messa di voce
9. Jaap Blonk e Joan La Barbara - Ripple quot :
Installation Messa di voce
10. Joan La Barbara – Woolfsong / 2004 (fragmento)
11. Madalena Bernardes – Aperto – meu ex-passo / 2007 (trecho)
12. Clara Guimarães – Peça de Clara sobre um Hai Kai / 2004
13. Meredith Monk
14. Diamanda Galás – Eyes without blood (1993)
15. Diamanda Galás – Saint of the pit ( 1986)
16. Demetrio Stratos – Cometa Rossa (filmado nos anos 70)
17. Demetrio Stratos – Scioglilingua grego
18. Demetrio Stratos – Omaggio a Artaud
19. Demetrio Stratos – Você Vox
20. Demetrio Stratos – Cowboys and Indians
21. Demetrio Stratos - Intro
22. Cathy Berberian – Sequenza III (fragmento)
23. Sequenza III – Um estudo
24. Inuit Tthroat Singing – O canto esquimó
25. Inuit Throat Singing – “
26. Overtonet Singing – singing in a lake - Mongólia
27. Throat Singing Siberian
205
28. Tuvan Throat singing ou Overtone –Tuva
29. Throat Singing ou Overtone
30. Karawane
31. Ursonate
32. Henri Chopin
33. Hommage a Henri Chopin
34. Antonin Artaud
35. John Cage - Depoimento
36. 4’33” – BBC Symphony Orquestra
37. John Cage – Master works part 1
38. John Cage - Master works part 2
39. Pierre Schaeffer – Etude aux chemins de fer (1948)
40. Stockhausen – Gesang der Jünglinge (1955-56)
41. Stockhausen – Esposição (1972)
42. Stockhausen - Entrevista
43. RAI – Studio di fonologia – parte 1
44. RAI – Studio di fonologia– parte 2
45. RAI – Studio di fonologia –parte 3
46. Edgar Varèse – Poème Électronique (1958)
47. Edgar Varèse – Ionisation / Boulez Ensemble
48. Russolo Ensemble – Intonarumori / Noise Machine (reconstrução)
49. Pierrot Lunaire – uma versão possível
50. Pierrot Lunaire – outra versão possível
51. Prélude à l’après-midi d’un faune – Ballet com Rudolf Nureyev
52. Sacre du printemps – Ballet Bejart
53. Mary Wigman
54. Nijinski
55. Isadora Duncan
56. ABC of dada – part 1
57. ABC of dada – part 2
58. ABC of dada – part 3
59. Futurismo
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