Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
LOORES”E“MIRAGRES”:
DA OPERAÇÃO PUBLICITÁRIA DE D. AFONSO X, O SÁBIO, EM
HONRA DE SANTA MARIA
Érica Patrícia Moreira de Freitas
BELO HORIZONTE
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ÉRICA PATRÍCIA MOREIRA DE FREITAS
LOORES” E “MIRAGRES”:
DA OPERAÇÃO PUBLICITÁRIA DE D. AFONSO X, O SÁBIO, EM
HONRA DE SANTA MARIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Lingüística e Língua
Portuguesa.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanda de Oliveira
Bittencourt
BELO HORIZONTE
2007
ads:
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela
seguinte Comissão Examinadora:
_______________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria do Amparo Tavares Maleval
(UERJ)
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ângela Vaz Leão
(PUC-MINAS)
__________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vanda de Oliveira Bittencourt - Orientadora
(PUC-MINAS)
Belo Horizonte, 30 de novembro de 2007
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Ao meu filho,
ao meu marido,
à minha mãe,
A grande conquista de hoje se reflete em seus olhares cheios de orgulho e traz a
certeza de que venci uma etapa muito importante em minha vida. Foram grandes os
obstáculos superados, graças ao amparo recebido de vocês, que não mediram esforços
para que eu prosseguisse em minha caminhada, jamais permitindo que o desânimo me
dominasse. Não existem palavras capazes de expressar todo o meu amor e toda a minha
gratidão por senti-los sempre perto, mesmo quando eu parecia estar tão longe. Obrigada
por me ajudarem a enfrentar os desafios que me foram impostos. Dedico esta vitória e
tudo o que sou hoje a VOCÊS.
Ao meu pai, Jorge José de Freitas,
Um dia, estive em seus braços. Voouviu minhas primeiras palavras,
ensinou-me a dar os primeiros passos, enxugou minhas lágrimas e me animou a
ser gente. O tempo em que estivemos juntos foi maravilhoso! Com o seu espírito
de luta, você me fez encarar os obstáculos como desafios a serem vencidos!
Hoje, celebro uma conquista obtida em parceria com alguém que, embora
ausente no plano físico, deixou-me em companhia de seu amor, tão vivo em meu
coração. Pai, você habita a morada de meus pensamentos e alimenta a minha
memória... Você se encontra presentificado em mim, desde os pequenos gestos
aos grandes anseios, revigorando a seiva que me doou. Se hoje sinto falta de seu
abraço, de seu sorriso “coruja”, é porque ainda sou aquela criança que carece de
sua presença física, para acreditar que não recebeu um tomé” num momento
como este.
AGRADECIMENTOS
a Deus, que se faz presente em todos os momentos firmes ou trêmulos;
a Santa Maria, “que aos Seus, sempre muito ben os ampara”.
ao meu filho, Eduardo Augusto, minha essência, razão maior do meu Ser, obrigada
pelo amor incondicional;
ao meu marido, José Eduardo, meu grande amor, com que aprendi a viver a vida com
poesia, com quem aprendi a voltar atrás, a recomeçar e, sobretudo, a continuar, sempre;
a minha mãe Elvira, meu amor sublime, sempre orgulhosa e incentivadora de cada
passo, presente em todos os momentos da minha vida, meu muito obrigada;
aos meus irmãos Nilson, Nilton e Antônio César pelos incentivos constantes, por me
encorajarem na busca deste sonho que agora se concretiza;
aos meus colegas e companheiros do Curso de Mestrado, de um modo especial,
Renata, Bruno, Kariny, Darinka e Sílvia, que tanto me animaram a continuar
perseguindo o objetivo comum;
à Profa. Ângela Vaz Leão, pelas infinitas lições de sabedoria e, principalmente, pelo
privilégio que me concedeu de ser sua aluna e “cantigueira de Santa Maria”;
aos meus colegas Cantigueiros de Santa Maria”, da PUC Minas, pelas adoráveis
tardes de aprendizagem e produção de conhecimento;
à Coordenação e ao Colegiado do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
Minas, por terem compreendido as dificuldades de uma principiante na leitura do mais
extenso, rico e completo cancioneiro medieval escrito em honra de Nossa Senhora.
a todos os Professores do Programa, de um modo particular, os da área de Lingüística e
Língua Portuguesa, pelas lições ministradas e pelo exemplo de vida transmitido;
aos Funcionários da Secretaria do Programa, pela atenção, delicadeza e paciência com
que sempre me atenderam, aliviando-me as aflições burocráticas e regimentais;
à historiadora Miriam de Oliveira Bittencourt, pelos entusiásticos esclarecimentos
acerca da história medieval e pela ajuda na coleta e seleção do material ilustrativo.
à FAPEMIG, pela bolsa a mim concedida durante os dois anos do curso de Mestrado.
Agradecimento Especial
A minha mestra,
Vanda de Oliveira Bittencourt
Professora, orientadora, amiga,
Agradeço-lhe pela disposição com que me orientou e pela inquestionável
competência que, aliada a sua infinita paciência, colaboraram para o amadurecimento de
meus verdes conhecimentos. Agradeço-lhe, sobretudo, pela empolgação, pelo
entusiasmo demonstrados no desenvolvimento do meu trabalho, o que foi decisivo nos
momentos mais difíceis dessa empresa acadêmica controlada por um tempo tão exíguo,
que chegou quase a me fazer desistir.
Obrigada!
Tanto é Santa Maria de ben mui conprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
E como pode per lingua seer loada
a que fez porque Deus a ssa carne sagrada
quis fillar e ser ome, per que foi mostrada
sa deidad’ en carne, vista e oyda?”
(Afonso X, Cantigas de Santa Maria, n.º 110.)
RESUMO
Uma opinião unânime entre medievalistas de diferentes áreas de estudos é a de que o
cancioneiro conhecido como Cantigas de Santa Maria, composto por D. Afonso X, o Sábio,
com a colaboração dos eruditos de seu scriptorium de Toledo, constitui a mais extraordinária e
grandiosa coletânea lírico-religiosa do Ocidente Medieval, com seus cantares e sões saborosos
de cantarfeitos em honra de Nossa Senhora. Lavrados em galego-português (século XIII) e
distribuídos, genologicamente em dois grandes gêneros, de loor e de miragre, esses “cantares e
sões nos revelam todo um empenho posto na produção de um aparato publicitário e proselitista
por parte desse “Trovador da Virgem”, a partir de um diálogo intersemiótico entre três artes: a
literária, a pictórica e a musical, cuja finalidade era propalar por toda o Ocidente Medieval, o
culto à Virgem Maria. No intuito de identificar, revelar e analisar alguns dos recursos utilizados
por D. Afonso nesse seu “fazer publicitário”, elegeram-se, no trabalho aqui empreendido, dois
deles, considerados como de grande representatividade. Um deles tem a ver com o esquema
organizacional da obra como um todo; outro, com as formas epitéticas e antonomásticas
utilizadas pelo autor, na identificação, nomeação e qualificação de Maria, formas essas
procedentes de camadas lexicais temporal e institucionalmente distintas. Para a realização da
empresa almejada, além de uma consulta geral da obra em sua totalidade, elegeu-se, como
corpus específico, o conjunto formado pelas primeiras 100 cantigas dentre as 427 que integram
o cancioneiro. O exame das duas categorias de análise propostas permitiu-nos comprovar,
dentre outros fatos, os seguintes: o cumprimento da missão assumida, explicita e
metalingüisticamente, pelo Rei Sábio, no segundo Prólogo B, que serve como abertura de seus
cantares e de sua instauração como “trobador” da Virgem; o magnífico desempenho do Rei
Sábio na qualidade de “agente publicitário” de uma Dama habitante dos Céus, por Quem ele
abandonou as “donas” da Terra. Com o seu exemplo pessoal, com as suas técnicas de
convencimento, com a sua mestria no trato das artes que explorou, D. Afonso X deve ser visto
por todos nós como uma das vozes mais grandiloqüentes da Igreja Cristã que se bateu pela
divulgação do culto de Sua figura feminina de maior representatividade: a Virgen Maria,
Sennor onrrada, en que Deus quis carne fillar, beyta e sagrada.
Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria; D. Afonso X, o Sábio; Discurso publicitário de
caráter pessoal; Estratégias organizacionais; Estratégias referenciais.
Linhas de Pesquisa: Enunciação e Processos Discursivos
Variação e Mudança Lingüística
RÉSUMÉ
Les specialistes dediés aux études du Moyen Age Européen considèrent les
Cantigas de Santa Marie la plus vaste, riche et remarquable œuvre lyrique-réligieuse
écrite en galicien-portugais, au XIIIème siècle, par le roi D. Afonso X, intitulé “Le
Savant”, et ses colaborateurs de la oficine de Toledo. En prenant surtout les cent
premiers poèmes de cette collection dediée à Notre Dame, dans ce travail nous essayons
de montrer et d’ analyser quelques recours utilisés par le souverain avec l’objectif d’
exalter la Vierge Marie, sa Dame du Ciel. Ce compromis est explicitement assumé par
lui dans le “Prólogo B” (avant-propos B), avec lequel il promette glorifier, au moyen de
cantares e sões, la plus representative figure féminine de la religion chrétienne: la
Vierge Marie. En faisant cela, D. Afonso se revele un grand dévot, aussi qu’un grand
propagateur du culte de Notre Dame parmi les gens du Moyen Age Européen. Au
milieu des techniques qu’ il utilise en hommage à sa “Sennor”, on remarque les
suivantes: celle de la organisation générale de l’œuvre, qui est liée à la disposition qu’il
donne aux deux grands genres de poèmes de loor et de miragre qui font partie
d’un ensemble de 427 chansons. Ces chansons résultent d’ un dialogue intersémiotique
parmi trois formes d’expression artistique: la littéraire, la musicale et la pictural. Riche
en extension et extremement varié dans sa forme et dans son contenu, cet ensemble se
déplie, peu à peu, dans une séquence de groupes poètiques distingués, différents les uns
des autres, en termes quantitatifs et aussi génériques, énonciatifs et fonctionnels. En
prenant, dans un premier moment, les Cantigas dans sa totalité, on cherche de montrer
la force publicitaire obtenue par le roi-poète avec la distribution de ses chansons en
deux genres poetiques principaux: “de loor” et “de miragre”. Ensuite, on regarde une
des ressources publicitaire la plus courrante dans les “Cantigas”: celle de la indication
des vertus attribuées à Notre Dame, en forme d’ épithètes et d’ antonomases, avec ses
différents types de manifestation.
Mots clés: Cantigas de Santa Maria; D. Afonso X, le Savant; Le discours publicitaire
de personne; Stratégies de caractère structurel et typologique; Formes de
référenciation.
Lignes de recherche: Enunciação e Processos Discursivos (Énonciation et Processus
Discoursives)
Variação e Mudança Lingüística (Variation et Changement
Linguistiques
LISTAS DE ILUSTRAÇÕES
GRAVURAS
Gravura 1: D. Afonso e sua corte.....................................................................................
Gravura 2: Uma rainha egípcia e sua serviçal (1360 a.C.)...........................................
Gravura 3: Tutankhamon e sua esposa (1330 a.C.) ......................................................
ILUMINURAS DAS CANTIGAS DE SANTA MARIA
Iluminura 1: Cantiga de louvor nº 10, vinheta 4...........................................................
Iluminura 2: Cantiga de milagre nº 58, vinheta 4.........................................................
Iluminura 3: Santa Maria e os trovadores......................................................................
QUADROS
Quadro 1: Códices remanescentes das Cantigas de Santa Maria ...............................
Quadro 2: Configuração macroestrutural das Cantigas de Santa Maria segundo
sua constituição e distribuição genológicas..................................................
ESQUEMAS
Esquema 1: Gêneros primordiais da poesia medieval portuguesa .............................
Esquema 2: Caracterização formal, semântica e discursivo-funcional dos adjetivos
No português................................................................................................
Esquema 3: Caráter tríplice do plano estrutural das Cantigas de Santa Maria.........
Esquema 4: Caráter tríplice da distribuição dos epítetos e antonomásias alusivos a
Nossa Senhora..............................................................................................
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO:
A SANTA MARIA DADAS SEJAN LOORES ONRRADAS..........14
1.1 Delimitação do objeto e justificativa .....................................................................15
1.2
Objetivos........................................................................................................................27
1.3 Procedimentos metodológicos................................................................................28
1.3.1 Relativos à constituição do corpus e à apresentação dos dados.........................28
1.3.2 Relativos ao suporte teórico...................................................................................30
1.4 Estrutura do trabalho.............................................................................................32
2
“E O QUE QUERO É DIZER LOOR DA VIRGEN, CA PER EL QUER EU MOSTRAR
DOS MIRAGRES QUE ELA FEZ”:
“ARTES PUBLICITÁRIAS” DE D. AFONSO NA ESTRUTURAÇÃO
DO SEU TROVAR À VIRGEM MARIA
2.1 Introdução...............................................................................................................35
2.2 Embasamento teórico..............................................................................................36
2.2.1 Questões de planificação textual...........................................................................36
2.2.2 Questões de especiologia textual...........................................................................39
2.2.2.1 Panorama contemporâneo................................................................................39
2.2.2.2 Panorama medieval...........................................................................................46
2.2.2.2.1 Considerações gerais........................................................................................46
2.2.2.2.2 Considerações específicas ao cancioneiro mariano afonsino...........................50
2.3 O “trovar publicitário” de D. Afonso na estruturação de sua obra....................52
2.3.1 Configuração macroestrutural das Cantigas.......................................................52
2.3.1.1 Paradigma dominante.......................................................................................54
2.3.1.2 Hibridismo genológico.......................................................................................67
2.4. Conclusão..................................................................................................................7
3
ROSA DAS ROSAS E FROR DAS FRORES,
DONA DAS DONAS, SENNOR DAS SENNORES”:
“ARTES PUBLICITÁRIAS” DE D. AFONSO X EM SUA AÇÃO
DESIGNATIVO-ATRIBUTIVA EM HONRA DA VIRGEM
MARIA
3.1 Introdução................................................................................................................74
3.2 Considerações teóricas............................................................................................75
3.2.1 Linguagem figurada e publicidade.......................................................................75
3.2.2 Linguagem figurada: o epíteto e a antonomásia..................................................76
3.2.1.1 Problema de definição.......................................................................................76
3.2.1.2 Problemas de caracterização............................................................................77
3.3 O “fazer publicitário” de D. Afonso nas referências feitas à sua Dama.............82
3.3.1 De epítetos e antonomásias referentes a Santa Maria.........................................83
3.3.1.1 Estatuto configuracional...................................................................................84
3.3.1.2 Estatuto semântico-funcional...........................................................................91
3.4 Conclusão...............................................................................................................105
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
MUIT’ AMAR DEVEMOS EN NOSSAS VOONTADES
A SENNOR........................................109
REFERÊNCIAS...........................................................................................................115
ANEXOS ( VER SEPARATA)
Gravura 1: D. Afonso X e sua corte
1 INTRODUÇÃO:
A SANTA MARIA DADAS SEJAN LOORES ONRRADAS.
As Cantigas de Santa Maria não se afirmam apenas como
monumento poético e lingüístico do mais alto interesse, mas também
como documento insubstituível da piedade e do entusiasmo de um
Príncipe medieval pela Virgem, digno de ser considerado mesmo
naqueles passos em que a consciência moderna repeliria sem
hesitação a moralidade do exemplo ou a virtude do “milagre”. [...]
Com as Cantigas nós penetramos, de facto, em pleno ambiente
medieval, com a sua sólida, é certo, mas também com suas
crendices grosseiras, com a sua popular noção de milagre, com a
desregrada fantasia dos símbolos, com a irreverência inconsciente,
com a mescla repulsiva de sublime e de grotesco.
Pimpão (1943, p.169).
1.1 Delimitação do objeto de estudo e justificativa
Segundo Eulalio Ferrer, figura de renome na área das Ciências da Comunicação,
a publicidade
[...] faz da promessa uma proposição concreta de benefício. Provoca a ação
imediata antes que as coisas pereçam. Busca simplificar o difícil e sintetizar
tudo o que for explicável. Familiariza-nos com tudo que nos rodeia. Expressa-
se na mesma linguagem utilizada pelas pessoas. (FERRER, 2002, p. 15,
tradução nossa)
1
Explorada, através da linguagem pictórica, desde o período neolítico, e,
posteriormente, através da linguagem verbal, tal como utilizada pelos fenícios famosos
pela sagacidade com que conduziam a seu favor tanto as negociações internas quanto
externas —, a operação publicitária, de acordo com o autor supracitado, não se limita a
um simples ato de compra-e-venda, caracterizando-se, na verdade, em tempos e espaços
distintos, como um dos instrumentos passíveis de “enaltecer y consolidar las jerarquías
políticas y religiosas” (FERRER, 2002, p. 20).
2
Comprova-nos isso, por exemplo, o
antigo costume do povo egípcio em representar, iconicamente, nas diferentes artes que
exerciam, hábitos, acontecimentos, personagens, objetos, etc., relacionados,
naturalmente, com o modo como concebiam e vivenciavam a vida. Assim, sua produção
arquitetônica, escultural, pictórica apenas para mencionar as artes visuais nos revela,
dentre outras coisas, a própria escala hierárquica correspondente à sua distribuição
sociocultural e funcional, observada tanto no plano sagrado, quanto no terrestre. A partir
da exploração de técnicas variadas como as da disposição espacial, porte físico e
intensidade das cores conferidos aos personagens humanos representados em seus
trabalhos, por exemplo, os artistas egípcios deixaram registrada para a posteridade o
modo de constituição de seu quadro social, que, em forma de pirâmide, mostrava uma
distribuição qualitativa e quantitativamente desigual de seus integrantes. Assim é que, o
seu vértice, como era de esperar, era ocupado pelos faraós e seus respectivos familiares,
e a parte restante, alocada logo abaixo, por uma camada de maior extensão, dividida,
1
[...] hace de la promesa una proposición concreta de beneficio. Provoca la acción inmediata antes de que
las cosas perezcan. Vive de simplificar todo lo dificil y de convenir en sintesis todo lo explicable. Nos
familiariza con todo cuanto nos rodea. Se expresa en el lenguaje que los demás
hablan.
1
(FERRER, 2000,
p. 15)
2
Embora alguns estudiosos prefiram distinguir os termos “propaganda” e “publicidade”, entendendo o
primeiro como ‘propagação de idéias, sobretudo políticas’, e o segundo, como ‘propagação destinada à
venda de produtos ou serviços’, de nossa parte, diferentemente de Sandmann (1993, p. 10), optamos por
por sua vez, em duas outras: uma, mais próxima à dos faraós, composta por sacerdotes
e escribas, e outra, mais distante da primeira, pelo resto da população. Obviamente,
considerada em termos quantitativos, essa pirâmide se invertia, favorecendo sua face
plana horizontal, que, embora desfavorecida em termos econômicos, funcionais e
culturais, suplantava, de longe, as duas outras, somadas entre si. Contudo, repita-se, no
plano da exposição artística, esse desnível numérico era compensado, na esfera da
mensuração, pelo agigantamento físico (e icônico) das figuras representantes da minoria
dominante, na qual, era enfatizada, de uma forma especial, a do faraó e/ou de seus
familiares. Comprovam-nos isso pinturas como as de abaixo, reproduzida, no caso em
questão, de Gombrich (1999, p. 63), em que a rainha, além de ser representada com uma
pigmentação de pele conferida aos homens, aparece em plano superior, relativamente a
uma de suas serviçais:
usar o vocábulo “publicidade”, levando em conta a acepção etimológica de seu componente público, que
significa “pertencente ou destinado ao povo, à coletividade” (CUNHA, 1991, p. 646; grifos nossos).
Gravura 2: Uma rainha egípcia e sua serviçal (1360 a.C.)
Fonte: Gombrich (1999, p. 63).
Todavia, a par dessa distinção de âmbito sociocultural e funcional mais amplo,
havia outra, que, expressa por intermédio da intensidade da coloração das figuras
humanas, era utilizada para indicar a diferença de gêneros, salientando, em verdadeira
operação publicitária, o contingente masculino em detrimento do feminino, por meio do
reforço corante sentido da visão da pigmentação da pele das figuras masculinas. Um
exemplo prototípico desse tratamento especial conferido ao homem nos é fornecido pelo
mesmo Gombrich (1999, p. 69):
Gravura 3: Tutankhamon e sua esposa, 1330 a.C.
Fonte: Gombrich (1999, p. 69).
Enfim, como fecho-síntese desse jeito próprio do “fazer publicitário” dos
pintores egípcios, transcrevam-se, aqui, a seguinte observação de Gombrich,
especialista reconhecido no meio acadêmico como um dos maiores conhecedores da
história da arte:
A tarefa do artista consistia em preservar tudo com a maior clareza e
permanência possível. Assim, não se propuseram a bosquejar a natureza tal
como se lhes apresentava sob qualquer ângulo fortuito. Eles desenhavam de
memória, de acordo com regras restritas, as quais asseguravam que tudo que
tivesse de entrar no quadro se destacaria com perfeita clareza.
(GOMBRICH,
1999, p. 60)
De caráter introdutório, as considerações feitas acima, com a brevidade exigida
pelo tempo e pelo próprio tipo de material expressivo examinado no presente trabalho,
demandam que se explique a sua relação com a espécie de análise aqui empreendida. A
referência a certos aspectos da produção artística do povo egípcio, aqui tomado,
didaticamente, como exemplar, mais ou menos distinto, de outras civilizações também
antigas, se deve à minha intenção de mostrar o seu valor documental como uma das
fontes da maior valia para a reconstituição do quadro histórico, econômico, político e
sociocultural próprio à época considerada como de maior apogeu de sua civilização. E
mais: nesse legado e, por meio dele, tomamos ciência do emprego de, pelo menos,
algumas das técnicas publicitárias de que se valiam, com vistas a obter e/ou a firmar a
adesão, a anuência, o respeito do povo em relação a aos interesses próprios do Estado
ou de sua crença e prática religiosas, em especial, aquelas que se mostravam
concentradas em seres expoentes dessas e de outras instituições então em vigor.
Mais antiga do que se podia imaginar, a operação publicitária de ordem pessoal
resguardadas as diferenças originadas doa avanços tecnológicos em nossos dias, vem
fazendo entoar, na pluralidade de suas artes, o seu “canto de sereia” para me valer da
feliz expressão com que foi designada, no título de um de seus livros, por Campos
(1987), a partir do recurso a um jogo sortido de artifícios incidentes sobre as diferentes
faces integrantes de cada uma delas. No que toca à linguagem verbal, por exemplo, foco
central do estudo do presente trabalho, as estratégias destinadas à persuasão do receptor
envolvem desde os componentes lexical, semântico e gramatical (fonológico,
morfológico, sintático), até os discursivos e textuais. Nesse código, poderíamos dizer
que figuras como a hipérbole, de grande força publicitária, seria um dos
correspondentes lingüísticos da amplificação do tamanho das figuras, ilustrada,
conforme visto, na pintura e escultura egípcias. A par da adjetivação avaliativa que
serve para “exagerar” as qualidades do objeto/pessoa enfocado(a), encontra-se cada vez
mais em voga entre nós a atribuição de apelidos que resumem, iconicamente, o atributo
que lhes é peculiar. De origem anônima, ou institucional, os alcunhas predicadores, num
país como nosso, devotado ao futebol, chegam a substituir o nome de batismo dos
jogadores, que, como “Dario Peito de Aço”, ou “Dadá Jaca”, por exemplo, fazem
questão de assumi-lo. O mais interessante é que os alcunhas advêm de campos lexicais
distintos, caso de “Dadá Jaca”, no qual, o núcleo hipocorístico do novo antropônimo é
acrescido do nome de uma fruta asiática extremamente difundida no Brasil. Dessa sorte,
se, por um lado, tivemos um “Fio Maravilha”, que deu título a uma das músicas
vencedoras do célebre Festival da Record, por outro, tivemos Leônidas, que, artilheiro
da seleção brasileira na Copa de 1938, teve reconhecido o seu valor, na esfera da
culinária, dando nome a um dos tipos de chocolate fabricado: o famoso “Diamante
Negro”, numa referência dúplice à sua habilidade de goleador e à sua cor africana.
No caso da instituição política, esse processo de renovação denominal por
substituição total ou parcial, acréscimo, ou redução vocabulares acabou determinando
uma alteração no regimento eleitoral, que, para evitar anulações injustas de votos,
passou a exigir dos candidatos portadores de apelidos a sua incorporação oficial ao
nome constante em seu registro originário. Daí Luiz Inácio da Silva, atual Presidente do
Brasil, ter passado a se chamar Luiz Inácio Lula da Silva, promovendo, com isso, o seu
apelido, Lula, de hipocorístico a sobrenome.
Um fato digno de nota, nessa renovação antroponômica no quadro político, é
que os apelidos incorporados ao novo nome do candidato costumam apresentar uma
certa dose de humor, que, não raras vezes, repercute favoravelmente junto ao eleitorado
brasileiro, conhecido por sua gaiatice mesmo diante de situações sérias. Semântica e
pragmaticamente diversificados, certos “alcunhas políticos” configuram-se como
verdadeiros traços identificadores de quem os porta, traços esses que ora nos remetem a
aspectos físicos, ora ao comportamento próprio do candidato, ora à sua profissão, etc.
Não é de estranhar, pois, que o ex-prefeito e ex-deputado “Chico Ferramenta”,
representante político da região do Vale do Aço mineiro, apresente, na segunda parte de
seu alcunha, um termo relativo à profissão que exercia anteriormente, de funcionário da
USIMINAS.
Paralelamente aos mundos desportivo e político (e outros mais, aqui não
mencionados), lembremo-nos, por fim, de outro mais afinado com o estudo aqui
desenvolvido. Trata-se, no caso, da operação publicitária centrada nos santos, ou figuras
similares, reverenciados nas religiões que defendem, no plano da fé, a existência de uma
intermediação entre o sagrado e o profano, entre o céu e a terra. De criação profícua, os
termos alusivos a esses “intercessores” dos homens junto a Deus atuam, de um modo
geral, como verdadeiros índices funcionais, que servem para identificar cada um dos
santos, a partir de qualidades próprias, quase sempre relativas ao tipo de socorro
(milagre) físico, emocional, intelectual, mental, espiritual, financeiro, etc. que lhes
cabe prestar a seus devotos. Essa variação “funcional” no plano do imaginário repercute
no nível da expressão lingüística através de uma terminologia diferenciada de epítetos
e/ou antonomásias que traduzem as aptidões miraculosas dos membros dessa categoria.
No âmbito do catolicismo, por exemplo, que, nos primórdios da Alta Idade Média,
introduziu e incentivou esse tipo de culto em sua prática litúrgica, encontramos relações
atributivas como as seguintes: Santo Antônio de Pádua é tido como o “Santo
Casamenteiro” ou “Recuperador de Coisas Perdidas”; Santa Edwiges, como “Protetora
dos Endividados”; Santa Rita, como “Advogada das Causas Perdidas”; Santa Cecília,
como a “Padroeira dos Músicos”, São Cristóvão, como o “Guia dos Motoristas”, São
José, como “Patrono dos Marceneiros”, embora, na verdade, tenha exercido o ofício de
construtor, etc.
Essa “publicidade” é selada de um modo mais concreto com a construção de
igrejas, capelas, ermidas, dedicadas especificamente a um dos Santos, o raras vezes,
eleito padroeiro da localidade (centro citadino, estado, país ou, até mesmo continente).
E mais: a devoção dos fiéis a “seu” Santo costuma atingir proporções tais que chega a
provocar rivalidade e cisão entre os que, pelo menos em princípio, são praticantes de
uma mesma religião.
Nesse entrevero intra-religioso, não se costuma poupar nem mesmo a figura de
Nossa Senhora, considerada, desde o século XI, Advogada Maior dos homens junto a
Deus. Embora, diferentemente dos Santos, Ela se constitua numa figura singular, é
ampla e diversificada a adjetivação que lhe é atribuída, seja com o fito de salientar-Lhe
as qualidades e/ou habilidades miraculosas, seja de rememorar-lhe, em intertextualidade
com a Bíblia, a história de vida, seja de identificar o sítio onde se manifestou na Terra,
ou onde é venerada como padroeira. Do primeiro grupo, fazem parte designações como
“Nossa Senhora do Bom Parto”, “das Mercês”, “do Perpétuo Socorro”, “da Boa
Viagem“, “do Desterro”, “das Graças”, “da Piedade”, “da Paz“, “da Consolação”, e, até
mesmo, Nossa Senhora Desatadora de Nós”, de criação mais recente; do segundo,
títulos como Nossa Senhora “de Nazaré”, “da Natividade”, “da Anunciação”, “das
Dores”, “da Soledade”, “da Boa Morte”, “da Assunção”, etc.; do terceiro, referências
toponímicas como Nossa Senhora “de tima”, “de Lourdes”, “do Carmo”, “do Monte
Sião”, “de Schœnstatt”, “de Guadalupe”, “de Macarena”, “de Czestochowa”, etc.
Centrado, justamente, na figura de Maria, o presente trabalho procura delinear
um quadro que nos revele alguns dos procedimentos utilizados pela cristandade, na
Baixa Idade Média, com o intuito de fortificar e expandir o culto à Figura Feminina
maior da Igreja, culto esse ainda insípido na Alta Idade Média mesmo com o
reconhecimento oficial de Sua maternidade, no Concílio de Nicéia (século IV), e
superado pelo dos Santos, conforme notificado por autores como Fidalgo, no primeiro
capítulo de sua obra As Cantigas de Santa Maria (2002, p. 15-18). No breve
rastreamento que faz da passio latina ao milagre literário românico”, a autora arrola e
justifica as três grandes etapas que nortearam a vida dos primeiros cristãos: a primeira,
dita dradas no desejo de imitar Cristo e seus seguidores. Para tanto, elegeu-se como
objeto de estudo, um dos cancioneiros dedicados à “Virgen Santa Maria, piadosa e sen
sanna”, nos termos de seu autor (cantiga 55, v. 6), D. Afonso X, o Sábio.
3
Denominado Cantigas de Santa Maria e escrito, com algumas interrupções, durante o
período de 1270 a 1282, de acordo com Walter Mettmann (1986), responsável pelas
edições aqui seguidas: de 1959-1972, em quatro volumes (três concernentes ao
repertório poemático e um, ao glossário de sua autoria) e de 1986-1989, em três
volumes.
Constituído de um total de 427 cantigas (sendo sete delas repetidas), a coletânea
mariana afonsina sofreu um recorte para que se compusesse um corpus por amostragem,
uma vez que, por meus limites próprios e pelo tempo estipulado pela CAPES para a
realização do Mestrado, seria impossível analisar com a devida profundidade todas
elas. Em razão disso, procuramos, em princípio, concentrar a nossa atenção no conjunto
formado pelos Prólogos A e B e pelas primeiras cem cantigas que os sucedem, conjunto
3
O problema da autoria das Cantigas tem sido, ainda, objeto de polêmica entre os estudiosos. Para
alguns, ele seria o autor único, para outros o principal e para outros, apenas o mentor. Em face de
pesquisas abalizadas como a do próprio Mettmann (1959, 1986), editor aqui seguido, em torno dos traços
lingüísticos, estilísticos, rítmicos e outros, de trabalhos como os de Canedo (2005) e, até mesmo, do
pouco que nos foi dado observar, somos da opinião de que o Rei Sábio, embora tenha sido coadjuvado
por seus auxiliares da famosa oficina de Toledo, não foi o grande mentor da obra como escreveu boa
esse que, enfeixado por uma Petiçon (cantiga 401), constitui, segundo demonstrado
por Canedo (2005), o projeto inicial do rei. Nesses poemas, assim como nos restantes da
coletânea, causa-nos surpresa, tanto no que toca ao número quanto à variabilidade
funcional, o aparato epitético usado pelo rei-trovador em sua missão auto-imposta de
difundir o culto mariano entre a gente de sua época. De cunho publicitário, naturalmente
essa empresa não se restringe ao plano puramente lexical, mas envolve toda uma série
de operações lingüísticas gramaticais, semânticas, pragmáticas, discursivas, textuais,
que, aliadas às da composição poética, pictórica e musical, nos revelam uma riqueza
tipológica nem sempre reconhecida pelos estudiosos das Cantigas, além de espécies e
graus distintos de envolvimento (subjetividade) do autor no processamento da ação
enunciativa, levada a termo tanto nas cantigas de loor quanto nas de miragre. Os dados
transcritos abaixo nos dão uma idéia (antecipada) das possibilidades supramencionadas:
(1)
A Virgen mui groriosa
Rea espirital,
dos que ama é ceosa,
ca non quer que façan mal.
Dest’ un miragre fremoso, ond’ averedes
sabor,
vos direy, que fez a Virgen, Madre de
Nostro Sennor
per que tirou de gran falta a un mui falss’
amador
que amude cambiava seus amores dun en al.”
(Cant. 42, refrão e 1ª estrofe; grifos nossos.)
(‘A Virgem mui gloriosa,
Rainha espiritual,
é ciosa daqueles que ama e,
por isso não quer que
cometam o mal.
A respeito disso, vos contarei
um milagre formoso, do qual
vos agradareis, que a Virgem,
Mãe de Nosso Senhor, fez, ao
livrar do pecado um falso
amante,
que, sem mais nem menos,
trocava seus amores.de um para
outro’)
Obviamente, o “agigantamento” da figura de Maria é expresso nos dois outros
códigos usados pelo monarca em sua obra, o pictórico e o musical. Nas iluminuras que
ilustram os diferentes poemas, por exemplo, a mesma localização num plano superior
observada nas pinturas egípcias mostradas acima é registrada nas Cantigas, nas quais,
conforme se pode constatar no quadro a seguir, terceiro dos quatro relativos à Cantiga
de louvor 10, cujo refrão contém uma seqüência gradual de superlativos usada por D.
Afonso para se referir a Nossa Senhora (“Sennor das Sennores”).
parte de seus poemas. Dessa sorte, optamos por designa-lo, em toda a dissertação, com o título
metonímico de “autor”.
Iluminura 1: Cantiga de louvor nº 10, vinheta 4
Quanto à idéia de estudar o discurso publicitário conhecido como “de pessoa”,
construído, na Idade Média, por D. Afonso X, então apoiado por seus colaboradores do
scriptorium de Toledo, em torno de Nossa Senhora, figura sagrada mais representativa
do gênero feminino, se justifica por várias razões: uma delas, a intenção de mostrar a
constância de seu uso entre nós, seja em termos institucionais, seja em termos pessoais,
através da emissão de juízos de valor positivos ou negativos relativamente a
determinados indivíduos-alvo; outra, o interesse em deixar clara a sua longevidade,
conforme nos comprovam as diferentes formas de expressão artística de civilizações
antigas como a egípcia, acima referida, e, no que tange à Idade Média, alvo maior de
nossa atenção, obras como as Actas, que procuravam sensibilizar os cristãos e
arrebanhar novos adeptos, narrando os suplícios impingidos aos primeiros mártires
(séculos I a IV), dando origem, posteriormente, a material hagiográfico constituído de
novos gêneros literários como as paixões, lendas e vidas de mártires e de santos
(séculos IV a VIII), numa reorientação de vida que, num primeiro momento, procurava
substituir o sentimento de compaixão pelo desejo de imitar as pessoas consideradas
modelares, isto é, santas (Legendas e Vitae), e este, posteriormente, pela valorização da
espetacularidade dos milagres operados pelo santos, para nos restringirmos ao campo da
produção literária; outra, ainda, o interesse em descobrir e mostrar a utilização, ou não,
nesse tipo de “fazer publicitário”, de estratégias que lhe fossem peculiares, e, por
conseguinte, diversas das que são exploradas na publicidade estritamente comercial.
Além desses motivos de abrangência maior, cumpre-nos mencionar os que se associam,
mais especificamente, com a operação laudatória efetuada por D. Afonso X, na
qualidade de trobador da “Virgen, Madre de Nostro Sennor, / Santa Maria” (Prólogo B,
v. 16-17), quais sejam: demonstrar, mesmo que parcialmente, o teor publicitário e
proselitista comum aos dois tipos básicos de cantigas constantes de seu cancioneiro, as
de loor e as de miragre; detectar e analisar alguns dos artifícios coincidentes, ou não,
nos dois gêneros de poemas empregados pelo autor com vistas a obter o sucesso
almejado, na empresa que abraçou, de persuadir as pessoas a cultuar Nossa Senhora;
tentar contribuir para a divulgação dessa coletânea lírico-religiosa que, embora nos
apresente um quadro histórico, político, econômico e social do medievo ibérico, traçado
a partir de um diálogo intersemiótico entre três formas de expressão artística literária,
pictórica e musical, continua sem merecer o justo reconhecimento de seu valor como
fonte documental da maior importância para o conhecimento e redefinição de um
período injustamente classificado como “sombrio”.
De minha parte, mesmo na qualidade de iniciante, compartilho da opinião de
autores abalizados como Rübecamp (1932, 1933), Solalinde (1943), Peña (1973), Lapa
(1981), Mettmann (1959-1972; 1986-1999), Montoya (1988; 1999), Parkinson (1988,
2000), Fidalgo (2002a; 2002b; 2004), Snow (1987, 1992, 1999), Scarbrough (1987)
4
,
Leão (2007)
5
, e outros mais, para quem as Cantigas de Santa Maria constituem o mais
vultoso, rico e completo cancioneiro religioso do período medieval. Com seu repertório
de 427 cantigas (das quais, sete são apenas repetições), distribuídas em dois
macrogêneros, de loor e de miragres, que, por sua vez, apresentam novos tipos de
desdobramentos genológicos próprios a cada um deles, o cancioneiro mariano afonsino
4
A Prof.ª Dr.ª Connie I. Scarborough, da Universidade de Cincinnati (Ohio, - Estados Unidos) é uma
principais responsáveis pela edição do Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria, único, no mundo,
dedicado exclusivamente à publicação de estudos sobre o cancioneiro mariano de D. Afonso X, o Sábio.
5
L Lançada durante a realização do VII ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS
(VII EIEM), realizado na Universidade Federal do Ceará, em julho do corrente ano, essa obra da Prof.ª
Dr.ª Ângela Vaz Leão, fundadora e Coordenadora Geral do Grupo de Pesquisa de “Cantigueiros de Santa
Maria”, da PUC Minas, reúne os diferentes trabalhos por ela apresentados em congressos/encontros de
nível nacional e internacional.
constitui por si mesmo a estratégia-mor da ação publicitária levada a efeito pelo rei
Sábio em honra de sua Dama Celeste. Os versos abaixo transcritos, ilustrativos,
respectivamente, desses dois subgêneros de poema, nos fornecem uma idéia de sua
força e efeito publicitários:
(2)
Cantigas de Louvor
a
- “Loemos muit’ a Virgen Santa Maria,
Madre de Jesu-Crist’, a noit’ e o dia.
Devemos-lhe dar mais de cen mil loores,
pois que a Deus progue, Sennor das
sennores,
que dela pres carn’ e as nossas doores
en ssy quis soffrer, como diss’ Ysaia.
[...]
Esta nos quis dar Deus por noss’
[a]vogada
quando fez dela Madr’ e Filla juntada;
e poren deve seer de nos loada,
a atal Sennor, quen-na non loaria?”
(Cant. 370, refrão e estrofes 1 e 3; grifos
nossos)
(‘Louvemos muito, noite e dia,
a Virgem Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo.
Devemos dar-lhe mais de cem mil louvores,
pois que a Deus prouve, Se
pois que prouve a Deus, nela, Senhora das
senhoras,
se encarnar e em si sofrer as nossas dores,
conforme predito por Isaías.
[...]
Deus quis nos dá-la como advogada,
quando tornou-a Mãe e Filha, ao mesmo
tempo.
Por isso tal Senhora deve ser louvada
por nós, quem não a louvaria?’)
b-
De graça cha e d’ amor (‘Acorre-nos, Senhora,
de Deus, acorre-nos, Senhor. cheia de graça e do amor de
Deus.’)
[...] [...]
Punna, Sennor, de nos salvar, Empenha-te, Senhora, em nos
salvar,
pois Deus por ti quer perdoar pois Deus, por ti, aceita
perdoar
mil vegadas, se mil errar o pecador mil vezes, mesmo
que
eno dia o pecador.” ele peque mil vezes por
dia.’)
(Cant. 80, refrão, v. 24-27; grifos nossos)
(3) Cantigas de Milagre
a)
Miragres fremosos
faz por nos Santa Maria
e maravilhosos.
Fremosos miragres faz que en Deus
(‘Santa Maria faz por nós
milagres formosos
e maravilhosos.
[Ela] opera milagres formosos para que
creiamos em Deus;
creamos,
e maravillosos, por que mais o temamos;
porend’ un daquestes é ben que vos
digamos,
dos mais piadosos.
Est’ avo na terra que chaman Berria,
dun ome coytado a que o pe ardia,
e na ssa eigreja ant’ o altar jazia
entr’ outros coitosos.”
(Cant. 37, refrão e estrofes 1 e 2; grifos
nossos)
e maravilhosos para que mais o respei-
temos
Por isso, é importante que vos contemos
um deles, dos mais piedosos.
Este aconteceu na terra a que chamam
Berria,
em favor de um pobre homem cujo pé
ardia
e que jazia na sua igreja, diante do altar,
entre outros que tamm sofriam.’)
b)
A Madre de Deus onrrada
chega sen tardada
u é con fé chamada.
E un miragre disto
direi que fez a groriosa
Madre de Jhesu Cristo,
a Re mui piadosa,
por hũa jude’ astrosa
que era coitada
e a morte chegada.
(Cant. 89, refrão e estrofe 1; grifos
nossos)
(‘A Mãe de Deus honrada
chega sem demora
onde é chamada com fé.
E a esse respeito contarei
um milagre que a gloriosa
Mãe de Jesus Cristo,
a Rainha mui piedosa,
fez em favor de uma judia infeliz,
que se encontrava doente
e em vias de morrer.’)
Não obstante sua singeleza, a amostra apresentada acima não deixa nos dar uma
primeira e breve idéia acerca do grau de excelência e de variabilidade dos
procedimentos utilizados por D. Afonso X, em sua operação publicitária efetuada em
honra da Virgen, Madre de Nostro Sennor, / Santa Maria(Prólogo B, v. 16-17), com
o fito de expandir a Sua devoção pelo mundo então conhecido. Com um
empreendimento de tal porte, o rei Sábio, com toda certeza, pôde atenuar a sua
inaptidão administrativa e, quem sabe, redimir-se, ainda que parcialmente, do desastre
que foi o seu governo, segundo opinião corrente em sua própria época, assim resumida,
no sarcasmo dos seguintes versos:
De tanto mirar al cielo
se le cayó la corona.” (cf. SOLALINDE, 1943, p. 16)
Dito isso, esperamos que, mesmo sob o peso da responsabilidade da missão aqui
assumida, compor o grupo de “marqueteiros” das Cantigas de Santa Maria e de seu
mentor, D. Afonso X, o Sábio, tenhamos revelado, condignamente, a habilidade
incontestável desse rei mecenas em sua função de “trovador publicitário” de Santa
Maria. Afinal, por que non loar o responsável por uma façanha que, além de sobrepujar
a de outros autores de sua época como Adgar , Gautier de Coincy (Miracles de Nostre
Dame, século XIII), Gonzalo de Berceo (Milagros de Nuestra Señora, 1240-1250),
nada fica a dever, conforme procuramos mostrar, à arte publicitária contemporânea,
com todo o seu aparato tecnológico e o preparo específico de seus produtores?
3 OBJETIVOS
Embora se tenha dado, nas considerações acima, uma idéia do alvo que se
tinha em mente na realização do presente trabalho, propomo-nos aqui ratifica-lo,
pontuando, como é de praxe, os seus desdobramentos.
Dessa sorte, o objetivo maior que norteou os demais foi o de revelar, ainda que
parcialmente, a forma como D. Afonso X, rei de Leão e Castela, agraciado com o título
de “Sábio”, conduziu, no plano da expressão verbal correspondente, no caso, à
língua galego-portuguesa o seu projeto publicitário-proselitista de estender a outras
terras e gentes o culto à Virgem Maria, fazendo-se, para tanto, Seu trovador, no segundo
Prólogo que serve de abertura à sua coletânea.
Incorporados a essa empresa de caráter mais amplo, alistem-se os seguintes
objetivos específicos que procuramos atingir:
a) apontar algumas das técnicas empregadas por D. Afonso X, na construção de
seu discurso publicitário concentrado na “pessoa” de Nossa Senhora (“ groriosa Rea
Maria, / lume dos Santos fremosa / e dos Ceos Via cant. 40, v, 4-6 do refrão),
examinando-as sob duas perspectivas: a de sua produção e a do seu efeito de sentido;
b) identificar, no nível da produção discursiva, o espaço e o tratamento
conferidos a Nossa Senhora nos planos da organização macroestrutural da obra e no da
sua constituição genológica, considerada em termos amplos e restritos;
c) depreender e analisar, no nível do componente lexical, os inúmeros recursos
(e seu efeito de sentido) empregados pelo rei-poeta com o fito de louvar sua Dama do
Céu, em suas diversas funções e atributos de figura intermediária entre os mundos
terrestre e divino;
d) demonstrar, numa operação de confronto entre dois recortes temporais
distintos o medieval e o contemporâneo, que o progresso tecnológico observado nesse
interstício temporal, e, sobretudo, nos últimos anos, não implicou uma renovação
radical das técnicas de marketing usadas com tanta habilidade pelo Rei Sábio;
e) contribuir para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem de
disciplinas de diferentes áreas, dentre as quais as relacionadas com o estudo da
linguagem, levando os professores a reconhecer o quanto o seu trabalho didático pode
ser beneficiado com o uso adequado de textos produzidos no passado.
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
4.1 Relativos à constituição do corpus e à apresentação dos dados
Conforme aludido anteriormente, o material aqui examinado foi extraído de
um corpus composto, básica, mas não estritamente, dos cem primeiros poemas que
integram o conjunto total dos 427 constitutivos da coletânea religiosa do rei D. Afonso
X, tal como apresentado em edição crítica por Walter Mettmann, tomada em suas duas
versões mais conhecidas: a de 1959-1972, publicada, em quatro volumes (sendo o
quarto um glossário de autoria desse editor), por ordem da Universidade de Coimbra, e
a de 1986-1989, publicada pela Editora Clásicos Castalia, da cidade de Madri, edição
essa, aqui seguida mais de perto, por razões de homogeneidade na transcrição e análise
dos dados. Ambas as edições, cumpre dizer, embora levem em conta os três códices
remanescentes das Cantigas (arrolados no Quadro abaixo, reproduzido de Bittencourt
(2003a), datados todos eles do século XIII, na verdade, têm como texto-base o códice E,
da Biblioteca do Escorial, que apresenta um maior número de cantigas):
CANTIGAS DE SANTA MARIA: MANUSCRITOS REMANESCENTES
Nome do Códice Localização Atual Número de
Cantigas
1- “De Toledo”: To
(Situado, anteriormente, na
Biblioteca da Igreja de Toledo)
Biblioteca Nacional de
Madri
123
2- “Escurialense I”: E
Biblioteca do Escorial 402
“Escurialense II”: T
Biblioteca do Escorial 200
304
3- “Códice Rico”
ou
“Códices
Gêmeos”
“Florentino”: F
Biblioteca Nacional de
Florença
104
Quadro 1: Códices remanescentes das Cantigas de Santa Maria
Fontes: Direta – Mettmann (1986, p. 25-34)
Indireta – Bittencourt (2003, p.3)
Para o devido apuro filológico na apresentação e exame das cantigas
selecionadas para exame, procuramos, sempre que necessário, nos valer da edição fac-
similar do chamado códice rico, composto, como se pode ver no Quadro acima, de dois
códices complementares entre si, segundo hipótese defendida por Nella Aita, em cinco
números da Revista de Língua Portuguesa, publicados no período que vai de setembro
de 1921 a julho de 1922). Isso só foi possível, uma vez que a PUC Minas, por
solicitação da Prof.ª Ângela Vaz Leão, primeira a implantar, em Minas Gerais, o estudo
das Cantigas, fundando o Grupo de Pesquisa conhecido como de “Cantigueiros de
Santa Maria”, que, há mais de doze anos, vem produzindo trabalhos teses, dissertações,
artigos de revista, textos a serem apresentados em eventos, etc. De temas e linhas
teóricas diferenciadas, esses trabalhos se configuram como verdadeiras técnicas de
marketing, colaborando, assim, para a difusão de uma obra ímpar, que, em seu diálogo
intersemiótico tríplice, nos mostra uma Idade Média plena de luzes, contrariando, assim,
uma avaliação preconceituosa, que a via como uma idade de trevas.
No que toca à escolha das cantigas integrantes da “amostra” composta pelas cem
primeiras constitutivas selecionadas para compor o corpus, buscamos nos pautar por
critérios como: levar em conta os dois Prólogos que abrem a coletânea e as duas
espécies básicas laudatória e narrativa de cantiga nela exploradas, o que, em termos
quantitativos, redunda num quadro assimétrico composto de 89 poemas de milagre e 10
de loor, uma vez que a cantiga 1, na verdade, segundo anunciado em seu tulo-
ementa, serve para ementar os VII goyos que [Maria] ouve de seu Fillo”; a
sobrelevância numérica e o grau de variação das cantigas de miragre diversificadas em
termos de personagens beneficiados, espécies de problemas envolvidos, modos e
resultados da intervenção da Virgem, operação narrativa, grau de participação do
narrador, etc.); o conjunto formado pelas cem primeiras cantigas, considerado por
autores como o Mettmann (1986), Montoya (1988), Canedo (2003, 2005), etc. como
correspondente ao projeto inicial do rei, fato que, de acordo com esse último, já referido
nesta Introdução, pode ser comprovado por evidências encontradas, pelo menos, nos
dois planos de expressão artística por ele examinados e confrontados de um modo
específico em sua tese, datada de 2005: o literário e o musical. Para a devida
comprovação de sua hipótese, ele se atém, basicamente, aos cantares de miragre,
tomando como ponto de referência, o primeiro, de criação literária, considerado em três
grandes aspectos: a sua temática, a sua estruturação narrativa e o seu status poético
métrica, versificação e rima. A seguir, procedendo ao confronto pretendido, esse autor-
musicista busca mostrar algumas das inter-relações observadas entre a métrica,
versificação e rima dos refrães e células estróficas iniciais dos poemas, e constituição
das células frásicas no plano da composição musical.
Obviamente, ressalve-se aqui, essa concentração no primeiro bloco centenário
das Cantigas de Santa Maria não teve um caráter restritivo absoluto, pois que, no
exame do seu plano geral, foi necessário que levássemos em conta todos os 427 poemas
que a integram, o que significa que o corpus, composto por amostragem, dos cem
primeiros serviu de fonte documental para o estudo, no Capítulo 3, dos títulos e
qualificações atribuídos a Nossa Senhora por seu trovador real ou por personagens dos
milagres narrados.
Quanto ao modo de transcrição dos dados selecionados do corpus, procuramos
adotar procedimentos que facilitassem o mais possível a compreensão do leitor
contemporâneo, que, em geral, não tem o domínio da língua galego-portuguesa,
modalidade utilizada por D. Afonso X na redação de sua poesia lírico-religiosa. Assim
sendo, no corpo do trabalho, à direita dos exemplos lavrados em português arcaico,
apresentamos uma tradução parafrástica mais ou menos livre, ou seja, sem a
preocupação de manter o padrão métrico, rítmico e rimático explorado com tanto
esmero por esse trobador da Virgem. O mesmo tipo de cuidado nos levou a transcrever
os dados em ordem numérica, reiniciada a cada novo capítulo, bem como a observar os
mesmos padrões de digitação usados nas edições de Walter Mettmann (1959-1972 e
1986-1989) que subsidiaram a nossa pesquisa, apresentando o TÍTULO designado
como “ementa” por Mettman (1986) e como “rótulo” por Fidalgo das cantigas em
caixa alta, o refrão, em itálico e o conjunto estrófico, em fonte comum. Quanto aos
termos, expressões perifrásticas, orações e conjuntos oracionais/estróficos ilustrativos
dos fatos estudados, aparecem destacados por meio de grifos (negrito, itálico,
sublinhado, etc.), variados de acordo com o tipo de marcação desejada.
Como, de um modo geral, os exemplos fornecidos no corpo da
dissertação nada mais são do que meros recortes, mais ou menos extensos, das cantigas
analisadas ou mesmo referidas , procuramos reproduzi-las em sua forma integral, na
parte dos ANEXOS, destinada a abrigar esse tipo de material. Para tanto, optamos por
uma distribuição funcional, capaz de mostrar de um modo mais efetivo a relação entre
os exemplos fornecidos no correr do texto e a sua fonte originária, quais sejam, as
cantigas de onde foram retirados.
4.2 Relativos ao suporte teórico
A nossa aspiração, neste trabalho, se disse aqui várias vezes, foi conhecer,
apontar e analisar, ainda que de uma forma fragmentária, a maneira como D. Afonso X,
rei de Leão e Castela, construiu o seu discurso panegírico em honra de Maria, motivado,
no plano pessoal, pelo sentimento de devoção que Lhe dedicava, e, no coletivo, pelo
desejo de estendê-lo a outras gentes, colaborando, assim, junto à Igreja, para a fixação
definitiva de Seu culto, no Ocidente Medieval.
O próprio modo como o monarca procurou levar a termo o seu “ofício” de
trobador da “Reynna groriosa” por si nos orientou na escolha do caminho de análise
a seguir, movendo-nos a descobrir, na materialidade lingüística de seus cantares
marianos, o processo que determinou a sua produção como um discurso literário lírico-
religioso de cunho publicitário.
Valendo-se de dispositivos variados, para “dizer loor à Virgen, Madre de Nostro
Sennor, Santa Maria”, mostrando dos miragres que ela fez” (Prólogo B), ou, então, de
narrar-Lhe “miragres preçados”, com o fito de louvá-La, D. Afonso constrói sua
armadilha publicitária e proselitista, a partir, da manipulação criativa de dois gêneros
discursivos, acima referidos: um, de louvação propriamente dita, e outro, de narração de
feitos espetaculares de Maria em prol de seus devotos. A esse alicerce de dupla face,
que norteia a estruturação geral de sua obra, o trovador de Maria incorpora outros
gêneros, que, apesar de lhe conferirem um toque de mescla e de hibridismo, não
comprometem o caráter funcional dos dois gêneros que a sustentam.
A propósito, vale dizer que a configuração estrutural do cancioneiro,
estabelecida a partir da distribuição desses dois gêneros de cantiga de loor e de miragre
é reforçada por outro tipo de estratégia empregada pelo rei: a da referenciação, tal como
voltada, no caso em pauta, para a figura de Nossa Senhora. Dessa sorte, conforme
tivemos a oportunidade de mostrar aqui, o panorama “referencial” delineado nas
cantigas de louvor é bem diferente do que nos é apresentado nas cantigas de milagre.
Em coerência, pois, com as categorias (estratégias publcitárias) selecionadas
para análise status configuracional da obra, nos moldes da tipologia basilar das cantigas
e modos de referenciação a Nossa Senhora, com a preocupação do autor em deixar
clara, através de operação metalingüística, a dinâmica observada na produção de seus
cantares e sões, bem como com os novos ângulo de olhar da Lingüística Moderna,
buscamos desenvolver uma análise que se norteasse por uma concepção interacional, ou
dialógica) da língua, na qual os seus usuários se configuram como atores/construtores
sociais. Endossando as palavras de Ingedore Koch, uma de nossas figuras mais
renomadas no campo da Lingüística Textual, diríamos que a língua é:
uma atividad einterativa altamente complexa de produção de sentidos, que se
realiza, evidentemente, com base nos elementos lingüísticos presentes na
superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de
um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrução deste no
interior do evento comunicativo. (KOCH, 2002, p. 17; grifos da autora).
Assim sendo, à luz dessa linha geral de pensamento, empreendemos o estudo do
“fazer publicitário” de D. Afonso em torno da figura de Nossa Senhora,
fundamentando-nos em autores de competência reconhecida, assim distribuídos de
acordo com a sua área de atuação e com o nosso foco de interesse:
a) quanto à estruturação geral da obra e da narrativa: Aristóteles (ed. bras.
datada de 1964), Labov (1972), Bronckart (1999), Paredes e Garcia (1998), Reis e
Lopes (2002), Reuter (2002), Bittencourt (2003a, 2003b, 2006), etc., sendo esses dois
últimos centrados, respectivamente, na narrativa medieval e nas Cantigas afonsinas;
b) quanto à definição, caracterização, tipologia e funções dos gêneros e tipos
discursivos em geral: Bakhtin (1979/1987), Ribeiro e Madureira (1997), Maingueneau
(1997, 2002, 2004, 2006), Marcuschi (2000, 2002), Bonini (2002), Meurer e Motta-
Roth (2002), Dooley e Levinsohn (2003), Mari e Silveira (2004), Machado e Mello
(Org., 2004), etc.
c) quanto ao estatuto específico do discurso publicitário: Campos (1987),
Chabrol e Charaudeau (1989), Carneiro (1996), Adam e Bonhomme (1997), Ferrer
(2002), Carvalho (2003), Gregolin (Org., 2001), Sandmann (2003), Meurer, Bonini e
Motta-Roth (Org., 2005), etc.;
d) quanto aos processos designativo, identificatório, figurativo e argumentativo:
gramáticas normativas como as de Rocha Lima (1967, 1994), Bechara (1999), Cunha e
Cintra (2001), de gramáticas/estudos funcionalistas como as de Neves (2000), Jubran
(1985), Aquino (2001), de obras comprometidas com os estudos retóricos como os de
Aristóteles (versão brasileira de 1964), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) e Reboul
(1998), etc., bem como com a teoria da literatura, como os de Moisés (1997) e Tavares
(1967).
Em face da distância temporal e espacial do corpus aqui examinado século XIII,
Medievo ibérico, que nos remete a um panorama histórico, político, econômico, social e
cultural completamente distinto do nosso, o quadro teórico aqui estabelecido a partir das
lições dos autores acima arrolados foi, na medida do possível, adaptado ao recorte
temporal aqui examinado, o que resultou não na ampliação do nosso olhar sobre as
Cantigas tomadas em seu contexto externo, mas, também, na certeza de seu valor como
fonte documental a ser explorada por outras áreas de estudo, mais ou menos ligadas à
nossa.
5 ESTRUTURA DO TRABALHO
Em coerência com a própria divisão das categorias de análise em duas
dimensões lingüísticas de alcance distinto, embora, é claro, inter-relacionadas entre si,
o estudo do discurso publicitário produzido por D. Afonso X como preito à sua Dama
Celeste se pautou pelo seguinte fio condutor:
a) a apresentação desta parte introdutória, em que se buscou delimitar o objeto
de estudo categorias de análise e corpus , justificar o tipo de pesquisa aqui efetuado;
arrolar os objetivos pretendidos e fornecer uma idéia dos procedimentos metodológicos
adotados na constituição do corpus e na definição do caminho teórico norteador da
análise;
b) o desenvolvimento da análise propriamente dita é feito em dois capítulos (2 e
3), distribuídos e dispostos de acordo com a natureza das duas estratégias escolhidas
para exame: uma, relacionada com o plano macroestrutural da obra, considerado em
seus componentes genológicos de base, e outro, com os processos de identificação,
nomeação, designação aproveitados, em suas diferentes formas e funções, pelo rei-
trovador com o fito de prestar louvores a Maria e, principalmente, de levar outras gentes
a fazer o mesmo, contribuindo, assim, com a Igreja Cristã, para a difusão de Seu culto
no medievo ocidental. Essa análise, vale ressaltar, é precedida, em ambos os casos, de
considerações preliminares acerca do aparato teórico que a sustentou;
c) a exposição, à guisa de um balanço final, dos procedimentos de “marketing
utilizados preferencialmente por D. Afonso, vistos em sua gama de variação e nas
diferentes funções que lhe foram atribuídas pelo autor, no intento de persuadir o seu
público (ouvintes de ontem e leitores de hoje) a ter em Santa Maria sua advogada junto
a Deus.
d) finalmente, a relação, nas Referências, das edições (completas e parciais) das
Cantigas aqui utilizadas, bem como dos demais tipos de obra que subsidiaram a análise
do corpus, e, nos Anexos, das cantigas (reproduzidas em sua íntegra) das quais se
transcreveram os dados ilustrativos presentes no corpo da dissertação.
Vejamos, a seguir, as “artes” feitas por D. Afonso, no intento de cumprir o que
afirma no seguinte refrão de um de seus cantares à Virgem Maria:
Sabor á Santa Maria, de que Deus por nos foi nado,
que seu nome pelas terras seja sempre nomeado.”
(Cant. 328, refrão)
Iluminura 2:
Cantiga de milagre nº 58, vinheta 4
2 “E O QUE QUERO É DIZER LOOR DA VIRGEN, [...] CA PER EL
QUER EU MOSTRAR DOS MIRAGRES QUE ELA FEZ”:
“ARTES PUBLICITÁRIAS” DE D. AFONSO NA ESTRUTURAÇÃO
DO SEU TROVAR À VIRGEM MARIA
“Onde lle rogo, se ela quiser,
que lhe praza do que dela disser
en meus cantares e, se ll’ aprouguer,
que me dé gualardon com’ ela dá
aos que ama; e queno souber,
por ela mais de grado trobará.
(D. Afonso X
Prólogo B, versos 39-44)
2.1 Introdução
Em sua condição singular de trobador interposto entre a terra e o céu, isto é,
entre o habitat dos coytados e menguadosos e o da Dama que Deus foi meter entre nós
e ssi(Cantiga 30, v. 16-17), D. Afonso X, rei de Leão e Castela, não se limitou a
realizar num código único a sua empresa publicitária de propalar entre a gente do
medievo o culto à Virgem Maria. Ao contrário, coadjuvado por sua equipe de eruditos
da oficina de Toledo, procurou levá-la a termo, através de uma combinação harmônica
entre três modos de expressão artística: a poética, a musical e a pictórica. Munido desse
instrumental tríplice, que ele dominava como ninguém, o rei poeta, acreditamos nós,
conseguiu projetar, nos seus cantares e sões em honra de Nossa Senhora, a sua própria
imagem, obscurecida pela sua inabilidade administrativa. Para tanto, fez sua gente
percorrer terras mais ou menos distantes da Europa e chegar até a Ásia, na tentativa de
recuperar, via tradição oral e escrita, os milagres que, atravessando as fronteiras do
espaço e do tempo, constituíam, por si mesmos, uma prova cabal do poder
misericordioso de sua Dama do Céu. De posse desse material, ao qual se acrescentaram
os milagres de que ele próprio foi beneficiário direto ou indireto, D. Afonso de Leão e
Castela lapidou-o com tal “engenho e arte”, que fez dele o mais extenso, grandioso e
requintado cancioneiro mariano produzido no período medieval. Com tal nível de
excelência manifestado em tríade artística , o trovador da Virgem nos presenteou com
uma obra que reflete, tanto em sua forma lingüística e poética quanto em seu conteúdo,
a maravilla quamanha Sua dama onrrada, Sennor, que coitas nos toll’ e
tempestades(Cantiga 36). Infere-se daí, naturalmente, que as Cantigas de Santa
Maria constituem, por si mesmas, uma das maiores armas publicitárias criadas, no
mundo terrestre, por D. A fonso X, em reverência Àquela que, sacralizada por Deus,
que nella quis carne fillar”, tornara-se a nossa defensora junto ao mundo celeste.
Refinada e estilizada, segundo os parâmetros vigentes no medievo ibérico e a
criatividade de D. Afonso e seus auxiliares, essa arma foi montada a partir de matéria
recolhida da tradição oral e escrita de narrativas de um sem-número e diferentes tipos de
milagres operados pela Mãe de Deus, que iam sendo propagados de geração em geração
o que, em última instância, significa que a campanha publicitária levada a efeito pelo
Rei Sábio, na verdade, ecoava outra, efetuada através de outros tipos de veículo.
Tendo sempre em mente essa superposição, tornada arte tríplice em mãos
afonsinas, no presente capítulo, procuramos examinar um dos recursos empregados pelo
rei-poeta com vistas a render graças a Nossa Senhora, e, por intermédio delas, na
qualidade de porta-voz de si mesmo e da Igreja Cristã, persuadir a gente do medievo a
fazer mesmo, servindo-A con mui gran sabor. Trata-se, no caso, da estruturação da
coletânea como um todo, tal como regida pela distribuição dos dois gêneros básicos de
poemas que a compõem, de loor e de miragre, que, por sua vez, aparecem encaixados
entre dois tipos de conjuntos poemáticos genologicamente distintos: um primeiro
formado pelos Prólogos A e B e um segundo, por “cantigas de festas” promovidas pela
Igreja em homenagem a Maria e a Jesus.
Para demonstrar com a devida objetividade a força publicitária desse expediente
de cunho organizacional, procuramos nos pautar pelo seguinte esquema: a) numa
primeira seção, procedemos a uma reflexão teórica acerca das noções pertinentes para a
condução da análise, de um modo especial, as que dizem respeito à questão da
estruturalidade da obra literária e de sua variabilidade genológica, levando em conta o
recorte temporal aqui focalizado; b) numa segunda, passamos à análise propriamente
dita, cumprindo duas tarefas básicas: uma, de demonstração do caráter publicitário do
cancioneiro afonsino, que, à semelhança de anúncios comerciais, mostra Santa Maria
como Aquela que, maior advogada nossa junto a Deus, de muitas guisas nos guarda de
mal / [...] tan muito é leal (Cantiga 58, refrão); outra, de comprovação da eficácia
publicitária decorrente do plano organizacional observado por D. Afonso na distribuição
dos 427 poemas que integram as suas Cantigas de Santa Maria estruturação
macroestruturação; finalmente, num terceiro tempo, de encerramento do capítulo,
apresentamos, à guisa de síntese, os resultados da investigação aqui realizada, indicando
os procedimentos priorizados pelo rei-trovador, em sua condução, capciosa e sagaz, de
um processo de marketing, para usar um termo do mundo capitalista de hoje, que tirou
do silencio da Bíblia a figura de Maria, dando-Lhe voz nos relatos dos milagres por Ela
operados.
2.2 Embasamento teórico
2.2.1 Questões de planificação textual
A partir do significado etimológico do termo estrutura, proveniente do latim
structura, palavra derivada do verbo struere”, construir’, Reis e Lopes apresentam,
em seu Dicionário de narratologia (2001), um breve estudo de sua gênese e
progressão, tanto no domínio dos estudos literários quanto no dos lingüísticos.
Resguardada, até o século XVII, a sua acepção originária de “uma construção,
propriamente arquitectural” (REIS; LOPES, 2001, p. 145), esse lexema, segundo os
dois autores, sofreu, posteriormente, diversas extensões de significado, tanto numa área
quanto em outra. Embora, ao longo do século XX, tenha predominado uma análise
estrutural da obra literária com base numa visão imanentista, que a concebe em termos
de uma forma verbal integrada por tipos diferentes de elementos correlacionados entre
si, os estudiosos supracitados reconhecem que foi no âmbito dos estudos lingüísticos
que o conceito de estrutura adquiriu maior status de cientificidade, com as propostas
teóricas de Saussure, reunidas por dois de seus alunos Charles Bally e Albert
Sechehaye, no famoso Cours de linguistique general (1915/1962).
Embora polêmico e fonte de criação de correntes de estudo variadas, o conceito
de estrutura, segundo nos atesta a literatura específica e os próprios autores acima
referidos, oscila, de um modo geral, entre dois modos de visão, que têm conseqüências
para o tipo de análise aqui empreendido: um relacionado de caráter ontológico e outro,
operatório. No primeiro caso, a obra (ou o texto) é vista como um objeto dotado de uma
organização interna própria que a caracteriza como um todo; no segundo, ela é
concebida como a atualização de um modelo, ou seja, de um esquema abstrato
invariante, comum a várias outras. Naturalmente, esses dois tipos conceituais implicam
dois tipos de abordagem do texto literário, ou de qualquer outro de gênero diferente. Ao
analista “ontológico”, caberá a tarefa de descrever as unidades formantes de obras
consideradas individualmente, e ao operatório, a de estabelecer o modelo geral
subjacente à variação constante das obras vistas em sua singularidade.
Estendendo, nas trilhas de Reis e Lopes (2001), as virtualidades da noção de
estrutura ao campo narratológico, que também são pertinentes para o estudo aqui
efetuado, constatamos que, em seu trabalho pioneiro sobre a estrutura do conto
maravilhoso, Propp ( o segundo tipo de análise, procurando reconstituir, com base na
categoria tempo, a matriz, ou modelo, invariante e abstrata, que subjazia aos todos eles,
optando, assim, por um novo modo de conceber a estruturação dos textos narrativos.
Em tempos mais recentes, essa “sintaxe narrativa” foi revista e ampliada por
outros investigadores inseridos nessa linha de estudo, que, em princípio, podem ser
distribuídos em duas alas distintas: uma
representada por autores como Barthes
(1966), Greimas (1973), Todorov (1966), Brémond (1973), etc, de orientação mais
teórica, cujo propósito é reconstruir, através de categorias e regras combinatórias, uma
“língua universal das narrativas; outra constituída de nomes como Genette (s/d), Eco
(1979), Reuter (2002), etc., de espírito mais particularizante, cuja pretensão é examinar
a organização específica de cada texto narrativo.
Diferentemente desses tipos de propostas analíticas alicerçadas em parâmetros
como o da temporalidade, da lógica, consecução e conseqüência, vão surgindo outras,
que vêem sob nova ótica o modo de composição da obra literária. Dentre elas,
mencione-se, aqui, mesmo que de um modo breve, a de Doleel (1973), que rejeita a
teoria da sintaxe narrativa, ao considerar que os eventos, os episódios, os fatos de uma
história se conectam uns aos outros em termos de relações modais, passíveis de inseri-
los num mundo possível. Numa operação taxonômica, ele identifica quanto tipos de
narrativas determinados por quatro espécies distintas do que ele chama de “histórias
atômicas”: as narrativas aléticas, conectadas às idéias de possibilidade, impossibilidade
e necessidade; as deônticas, associadas à permissão, proibição e negação; as
axiológicas, ligadas à questão da bondade, maldade e indiferença, e, por fim, as
epistêmicas, vinculadas a noções como conhecimento, ignorância e convicção.
Sem deixar de reconhecer a procedência e o ineditismo do modelo defendido por
esse último pesquisador, na presente dissertação, preferimos deixar que o próprio
corpus “falasse por nós”, ajudando-nos a escolher o prisma teórico que melhor revelasse
a empresa, de tríplice arte, realizada por D. Afonso X, com vistas a enaltecer a figura de
Nossa Senhora e, com isso, contribuir para fixar de uma vez por todas o seu espaço de
figura feminina de maior relevo do mundo da cristandade. Levando, pois, em
consideração, aspectos como: a disposição seqüencial das células poemáticas
(decenárias) componentes do miolo da coletânea mariana como um todo; a distribuição
linear dessas células em três grandes planos subseqüentes uns aos outros Exórdio,
Núcleo Poemático Central e Epílogo apenso ; o perfil genológico mais ou menos fixo
do conjunto formado por elas; a progressão intrapoemática do enredo/relato e, ainda, o
afunilamento espacial das cantigas de milagre ao longo do cancioneiro, que, tal como
demonstrado por Mettmann (1969, p. 12), sofreram um deslocamento progressivo do
nível internacional (regiões da Europa e Ásia), para o nacional (Península Ibérica) e
local ou pessoal (santuários dedicados à Virgem Maria), pareceu-nos mais adequado e
pertinente focalizar o seu plano organizacional à luz de um caminho teórico que nos
permitisse mostrar a eficiência publicitária das escolhas feitas pelo trovador da Virgem.
Com isso, acreditamos, seguimos de perto o pensamento abalizado de
pesquisadores como Costa Marques, para quem:
Não pode haver [...] um modelo, um método único de análise literária, mas
apenas uma idêntica atitude de espírito. A natureza do texto e do seu conteúdo
determinará a orientação mais favorável, e ela própria limitará o grau das
nossas pesquisas, impedindo-nos de procurar no trecho analisado aquilo que
este não pode dar-nos. (MARQUES, 1968, p. 40; grifos nossos).
Acresça-se a essas observações, outra que também influenciou na eleição dos
rumos teóricos que deveríamos tomar: a da harmonia com a época e com o gênero da
obra no caso, o cancioneiro mariano de D. Afonso X, escrito, pelo que tudo indica,
entre os anos de 1270 e 1282 a ser examinado, harmonia essa assim recomendada
pelo autor supracitado:
Forçoso é [...] resolver [...] problemas de harmonia com a época e natureza
do texto e desenvolver um esforço de penetração e intuição histórica, sempre
que haja entre s e o escritor um lapso de tempo bastante sensível. [...] Para
os textos de tempos sensivelmente anteriores aos nossos, a dificuldade é
maior, e são necessárias informações históricas e lingüísticas para a resolver
satisfatoriamentes. [...] nas Boas Letras um fundo permanente susceptível
de impressionar com igual intensidade, embora sem os mesmos efeitos, os
leitores contemporâneos, passados e futuros. Mas há também nelas aspectos
particulares, ideológicos, sentimentais e estéticos, que não têm hoje o mesmo
valor, porque se repercutem em s através de um ambiente diferente. [...]
(MARQUES, 1968, p. 52, 53, 54; grifos nossos)
Em outras palavras, na esteira do autor acima, preferimos aplicar, na medida do
possível, a célebre frase de Renan, que, em sua experiência de historiador, nos ensinou
que a admiração deve ser histórica para não ser cega” (RENAN, apud MARQUES,
1968, p. 55).
Em face do exposto, esperamos ter deixado claro que o exame do plano
estrutural das Cantigas vista, sobretudo, em seu conjunto poemático global, como um
dos expedientes publicitários utilizados por seu autor em torno da figura de Nossa
Senhora foi realizado nos termos de uma linha de abordagem de caráter particularizante,
que leva em consideração aspectos como a temporalidade tal como manifestada na
seqüenciação, na progressão, na linearidade das partes componentes de uma obra
literária, de um modo específico, a que envolve uma operação textual sobre o real,
assumida por uma narrativa levada a efeito por um ou vários narradores.
Tendo em vista que o ponto de referência fulcral para o exame da organização
da obra mariana afonsina incidiu sobre a sua constituição genológica bipartida cantigas
de loor e de miragre, por nova imposição do corpus recorremos a ingredientes teóricos
passíveis de subsidiar a análise pretendida, apelando, dessa vez, para a linha teórica da
Análise do Discurso, com suas investigações acerca da definição, caracterização,
funções e distribuição tipológica dos gêneros e tipos textuais, a serem considerados na
seção subseqüente a esta.
2.2.2 Questões de especiologia textual
2.2.2.1 Panorama contemporâneo
Verdadeiros desafios para quem se “aventura” a delimitar-lhes os traços
definidores, a funcionalidade, as determinações sociais, ou, então, a agrupá-los em
categorias de maior abrangência de acordo com as características comuns que os
aproximam, os gêneros textuais têm merecido hoje uma atenção especial de estudiosos
das diferentes linhas teóricas que integram a Análise do Discurso. Em seu Discurso das
mídias, Charaudeau assim se refere a essa atenção, iniciada em tempos antigos e
persistente, mais do que nunca, em tempos hodiernos:
A noção de gênero e de tipologia que lhe é correlata, vem sendo bastante
debatida algum tempo e se refere a aspectos da atividade linguageira
bastante diferentes uns dos outros. Originária da retórica antiga e clássica,
abundantemente utilizada pela análise literária com múltiplos critérios,
retomada pela lingüística do discurso a propósito de textos não literários, essa
noção está presente na análise das mídias {...].
(CHARAUDEAU, 2006, p.
203; grifos do autor).
No tocante à Antigüidade Clássica, os primeiros estudos a respeito do assunto
nos vieram de Platão e Aristóteles, em suas obras República e Poética,
respectivamente, e se restringiram, como era de esperar, à esfera da literatura. Para o
primeiro, por exemplo, a produção literária compreendia uma divisão tripartite,
representada, de um lado, pelo teatro tragédia e a comédia, de outro, pela poesia lírica
(ditirambo), e, de outro, ainda, pela poesia épica. Para o segundo, a par da epopéia,
tragédia, comédia e ditirambo, duas outras espécies literárias deveriam ser ser levadas
em consideração: a aulética e a citarística.
No território específico da Lingüística, a polêmica em torno dessa noção tomou
vulto sobretudo a partir das idéias propugnadas por Bakhtin (1979/ 1997), encontrando
um terreno fértil para o seu acirramento na “arena” da Análise do Discurso,
representada, dentre os vários autores estrangeiros, por J. M. Adam (1994), J. M. Adam
et I. Bonhomme; Dominique Maingueneau (1989, 1997, 2002, 2004, 2006), Authier-
Revuz (1984), Patrick Charaudeau (1994, 2006), Jean-Paul Bronckart (1999), etc.,
adeptos de linhas distintas da chamada “vertente francesa” (ou franco-suíça), e, dentre
os lingüistas brasileiros, por Luiz Antônio Marcuschi (2000, 2002, 2005); José Luiz
Fiorin (1986); Adair Bonini (2002); Eni Orlandi (1987, 2003); José Luiz Meurer e
Désirée Motta-Both (2002); J. L. Meurer, Adair Bonini e Désirée-Motta-Roth (2005);
Alcir Pécora (2001), etc., diferenciados entre si, do mesmo modo que os primeiros,
segundo a corrente teórica abraçada.
No que tange ao conceito e a importãnica dos gêneros textuais, reproduzimos
abaixo o pensamento de um dos lingüistas mais renomados entre nós, Luiz Antônio
Marcuschi, que, do mesmo modo que outros, assim se manifesta a esse respeito:
se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais o fenômenos
históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de
trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as
atividades comunicativas do dia-a-dia. o entidades sócio-discursivas e
formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.
[...] Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e
plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais,
bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente
perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes
em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita. (MARCUSCHI,
2002, p. 19; grifos nossos)
Nesse mesmo texto, Marcuschi faz o seguinte comentário de grande interesse
para nós, que nos ativemos, no presente trabalho, a material lingüístico de sincronia tão
distante: “Já se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais são fenômenos
históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social (MARCUSCHI,
2002, p. 19; grifos nossos). “Fruto de trabalho coletivo”, prossegue ele, “os gêneros
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”,
caracterizando-se, pois, como “entidades sócio-discursivas e formas de ação social
incontornáveis em qualquer situação comunicativa” (MARCUSCHI, 2002, p. 19).
Quanto à riqueza e variedade dos gêneros, esse autor, assim como outros
adeptos, ou não, da Análise do Discurso, compartilham do pensamento de Bakhtin
(1997, p. 279), que assim as vê e justifica:
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade
virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade
comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e
ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa. [...] Ficaríamos tentados a pensar que a diversidade dos gêneros do
discurso é tamanha que não e não poderia haver um terreno comum para o
seu estudo: com efeito, como colocar no mesmo terreno de estudo fenômenos
tão díspares como a réplica cotidiana (que pode reduzir-se a uma única
palavra) e o romance (em vários tomos), a ordem padronizada que é
imperativa por sua entonação e a obra lírica profundamente individual,
etc.? (BAKHTIN, 1979/1997, p. 280).
De volta ao texto de Marcuschi (2002, p. 19), chamamos a atenção para as
informações de ordem contextual, que ele tem o cuidado de registrar, em sua breve
viagem por diferentes períodos de nossa história. No rastreamento que faz, o autor
insiste em mostrar a existência de uma relação entre o quadro sociocultural das
diferentes sociedades das diferentes épocas e o número e especiologia dos gêneros nelas
cultivados. Assim é que à “sobriedade” da taxonomia dos gêneros textuais encontrados
em comunidades ágrafas contrapõe-se a opulência do panorama vigorante nos tempos
de hoje, em decorrência natural de um desenvolvimento cada vez mais célere e apurado
da tecnologia eletrônico-digital que passou a fazer parte da nossa vida diária.
No que tange à caracterização/identificação das diferentes espécies de neros
cada vez mais prolíferos nesses nossos tempos de avanço tecnológico desenfreado,
persiste a mesma nebulosidade apontada acima, uma vez que, além de apresentarem
traços convergentes entre si como, por exemplo, a narratividade própria aos contos,
“causos”, novelas, fábulas, romances, etc., o que impede uma delimitação rígida entre
suas fronteiras, não são suscetíveis a uma secção rígida. Justificam tal impossibilidade,
dentre outras razões, a constância de diálogos entre as instituições sociais, responsáveis
pela determinação dos gêneros, e a similaridade de papéis que lhes cabe exercer. Isso
sem falar na própria multiplicidade, diversificação e nível de atualização dos quadros
classificatórios apresentados pelos analistas do discurso em nossos dias, que, de certo
modo, corroboram, numa dimensão externa, esse fato, numa espécie de reflexo
especular da essência mesma dos gêneros e do uso que deles fazemos.
Cientes do problema, estudiosos como Hugo Mari e José Carlos C. Silveira, que
assim manifestam a sua inquietação a respeito da operacionalidade do conceito de
“gênero” per se, tal como defendido por três grandes peritos no assunto: Marcuschi,
Bakhtin e Maingueneau:
Todavia, o modo pelo qual o gênero aparece instrumentalizado nas práticas
sociais, através da linguagem, ainda ressoa como objeto de muita
discordância: para Marcuschi, prevalecem propriedades funcionais, estilo e
composição característica; para Bakhtin, o gênero se constrói, através de
tipos relativamente estáveis de enunciados; por sua vez, Maingueneau
compreende que gêneros do discurso não podem ser considerados como
formas que se encontram à disposição do locutor. (MARI; SILVEIRA, 2004,
p. 64; negrito dos autores)
Em seu conjunto de 427 cantigas (sete das quais repetidas), as Cantigas de
Santa Maria, de D. Afonso X, não fogem à regra, uma vez que, além de sua divisão
basilar em dois macrogêneros de loor e de miragre , contam com conjuntos, mais ou
menos extensos, de gêneros outros, como o relacionado com as festas comemorativas de
passagens da vida de Nossa Senhora (cantigas 410 a 420) e de Seu Filho, Jesus
(cantigas 423 a 427), aqui já referidas.
A propósito dessa obra, vale lembrar que se enquadra no “discurso literário”
(no caso, concernente a um período distante do nosso), que, no modo de ver de
Maingueneau (2006, p. 9), é uma noção problemática e ambígua, pois, “parece
pressupor que, por proximidade de gênero e diferença específica, haveria uma categoria
correspondente a um subconjunto bem definido da produção literária de uma dada
sociedade [...]”. De qualquer modo, causa surpresa a esse lingüista, o fato de que, “ainda
hoje, a maior parte dos especialistas da literatura ignore tudo que é feito sobre este tema
[gêneros textuais] nos trabalhos sobre o discurso, e que a maior parte dos pesquisadores
sobre o discurso evite levar em conta categorizações advindas dos estudos literários”
(MAINGUENEAU, 2004, p. 43-44).
De nossa parte, evitamos perpetuar essa cisão, a partir da própria escolha de
nosso objeto de estudo, comprometido não com sincronias distintas Idade Média e
período hodierno, mas, também, com um gênero textual incorporado a outro, que, por
sua vez, também aparece incluído em outro, a saber: gênero publicitário < gênero
religioso < gênero literário. Embora reconheçamos os desafios a serem enfrentados
pelo analista quanto à definição, distinção e distribuição tipológica dos gêneros, para
um tratamento mais adequado do gênero aqui em apreço, qual seja, o publicitário, tal
como produzido nos cantares e sões feitos por D. Afonso X em seu preito a Nossa
Senhora, procuramos nos guiar pela orientação contida na seguinte definição adotada de
Dominique Maingueneau (2004):
Um texto publicitário não é estudado exclusivamente como um tipo de
estrutura textual, uma seqüência coesa, coerente de signos verbais, nem
como um dos elementos da estratégia de marketing, mas como uma
atividade enunciativa ligada a um gênero do discurso..(MAINGUENEAU,
2004, p. 25)
No caso específico das Cantigas de Santa Maria, aqui enfocada em seus cem
primeiros poemas, esse discurso publicitário, se disse, encontra-se “hospedado” em
outro, do domínio religioso cristão. Uma das estudiosas desse gênero, Eni Orlandi
assim o caracteriza:
“A religião, sendo vista enquanto discurso, leva a apreender um dos lugares
de sua constituição: o discurso religioso como a territorialização da
espiritualidade do homem. É onde ele a constrói e se expressa. [...] Negação
da vontade de viver, código ético de convivência humana, freio dos
instintos, ou superação dos limites de nossa estreita condição humana. São
muitas as funções que se atribuem à religião. Sob uma ou outra forma e
função, ela é omnipresente em nossa cultura. Esse atravessamento da
religião eu ousaria dizer sob a forma paradigmática do cristianimo
atua em todas as nossas formas culturais. Não é por acaso que a primeira
obra impressa foi a Bíblia.” (ORLANDI, 1987, p. 8-9).
Em seu cancioneiro místico, D. Afonso se mostra empenhado numa ação
proselitista que contém todo um código ético destinado não a prestar homenagem a
Maria, mas a “freiar os instintos” de Seus devotos, “superar sua estreita condição
humana”, fazendo-se, assim, porta-voz dos ensinamentos da Igreja Cristã, senhora da
Idade Média. Que falem por nós exemplos como:
(1) a- “Maçar ome por folia
aginna caer
pod’ en pecado,
do ben de Santa Maria
non dev’ a seer
desasperado
.
(Cant. 11, refrão)
(Embora o homem possa,
por sua loucura,
cair, de repente,
em pecado,
não deve deixar
de esperar
a graça de Santa Maria.’)
b-
Gran sandece faz quen se por mal
filla
cona que de Deus é Madre e
Filha.”
(‘Comete uma grande loucura
aquele que se indispuser
com a que é Mãe e Filha de Deus.’)
(Cant. 19, refrão).
Do mesmo modo que os gêneros, a variabilidade atinge os chamados tipos
textuais, categoria que Marcuschi (2000, 2002), assim como Adam (1990), Swales
(1990), Bronckart (1999) e outros especialistas mais, considera distinta de gênero” e
define nos seguintes termos:
[...] Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção
teórica definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos
textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como:
narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. (MARCUSCHI,
2002, p. 22; grifos do autor).
Contudo, não se pode deixar de reconhecer que a diferença entre os tipos
textuais é suscetível de colaborar para a delimitação dos gêneros, uma vez que muitos
destes têm um daqueles como um de seus traços peculiares. Assim, há, por exemplo, em
princípio, uma associação natural entre o discurso jurídico e o tipo textual
argumentativo, explorado em suas diferentes estratégias pelos defensores/acusadores de
partes litigantes, com vistas a influenciar no veredicto do juiz. Do mesmo modo,
gêneros como o romance, a novela, o conto, o “causo”, a anedota, a piada, o diário, etc.
primam pela proeminência que conferem ao tipo textual narrativo, em relação a outros
como a descrição, a exposição, ou, até mesmo, a argumentação, que também ocupam,
em maior ou menor escala, um espaço próprio no processo narrativo.
Numa antecipação da análise do corpus literário aqui em apreço, efetuada em
seção subseqüente a esta, pode-se afirmar que os dois gêneros básicos de poema de
loor e de miragre que a integram apresentam um quadro especiológico de tipo textual
diverso um do outro. Se, por um lado, os cantares de milagre têm, como era de prever,
na narração, o seu processo básico de textualização, os de louvor exibem um quadro
mais complexo, de variação do tipo textual mais relevante, que, de um modo geral, fica
entre o argumentativo e o injuntivo. Os dados abaixo, relativos aos dos gêneros de
cantiga, ilustram essa distinção na preferência de uso da categoria “tipo textual”:
(2) Cantiga de milagre
“ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ NACER AS CINCO ROSAS NA BOCA
DO MONGE DEPOIS SSA MORTE, POLOS CINCO SALMOS QUE DIZIA A
ONRRA DAS CINCO LETERAS QUE Á NO SEU NOME.”
(Cant. 56, EMENTA).
(‘ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ NASCER CINCO ROSAS NA BOCA
DO MONGE QUE MORRERA, POR CAUSA DOS CINCO SALMOS QUE ELE
REZAVA EM HOMENAGEM ÀS CINCO LETRAS QUE FORMAM O SEU
NOME.’)
(3) Cantigas de louvor
a-
Deus te salve, groriosa
Rea Maria,
Lume dos Santos fremosa
e dos Ceos Via
.
(Cant. nº 40, refrão)
b- “
Non deve null’ ome desto per ren dultar
que Deus ena Virgen vo carne fillar
E dultar non deve, por quanto vos direi,.
porque, se non foss’ esto, non viramos Rei
que corpos e almas nos julgass’, eu o sei
como
Jeso-Cristo nos verra jolgar.
(Cant. 50, refrão e 1ª estrofe)
(‘a-
‘Deus te salve, gloriosa
Rainha Maria,
Lume dos Santos, formosa,
e Caminho para os Céus.’)
(b-“
Ninguém deve, de modo
nenhum,, duvidar
de que Deus veio na Virgem
se encarnar.
.
E duvidar não deve, conforme
vos explicarei,
porque, se não fosse isso, não
veríamos o Rei
que nos viesse co
rpos e almas
julgar, eu o sei,
como Jesus Cristo nos virá
julgar.’)
Embora concernentes aos gêneros nossos dos dias atuais, as considerações
teóricas feitas acima tiveram o mérito de nortear o estudo que procuramos desenvolver a
respeito do quadro genológico relativo à primeira fase de produção poética da literatura
portuguesa, que tem a sorte de contar com uma obra do porte das Cantigas de Santa
Maria, escritas em galego-português por D. Afonso X, então rei de Leão e Castela.
2.2.2.2 Panorama medieval
2.2.2.2.1 Considerações gerais
Embora afirme que, “durante a Idade Média”, mercê das várias circunstâncias
históricas pouco favoráveis aos estudos teóricos, o problema dos gêneros entra em
declínio” (MOISÉS, 2001, p. 47), o autor de A criação literária é incisivo ao afirmar
que, no curso desse período, “a relativa pobreza doutrinária em matéria literária [...] é
compensada com a criação de novas modalidades formais e de novos gêneros. Dentre as
primeiras, ele arrola, no campo da “poesia lírica, ‘as formas estróficas tão sábias, tão
musicais e tão puras; o verso silábico em todos os metros e cortes, o emprego
generalizado da rima, sem mesmo excluir a alternância”; dentre os segundos, o
surgimento do “romance em prosa, e o teatro moderno, o fabliau, a fatrasie, a resverie,
etc.” (MOISÉS, 2001, p. 49). Com base nessas inovações, esse especialista endossa os
comentários feitos por Albert Pauphilet em relação às idéias defendidas por Cohen
(1940), segundo as quais, os escritores medievais, “malgrado a ausência de escritos
teóricos, tiveram a consciência de certos modelos aos quais se esforçavam por se
assemelhar o que representa bem a própria noção de gênero (PAUPHILET, 1940, p.
134, apud MOISÉS, 2001, p. 49).
Testemunha-se, aqui, pois, a importância conferida à questão do gênero,
corroborada, em tempos atuais, por estudiosos como Américo Antônio L. Diogo, que
em trabalho datado de 1997, reconhece a pertinência inegável do conceito de gênero
literário para a Idade Média, questão essa que, segundo Moisés (2001, p. 45) “está longe
de se considerar esgotada, e, da mesma forma que outros problemas literários, continua
viva e em pauta”.
Segundo nos mostra a literatura corrente, o mesmo se pode dizer dos quadros
taxonômicos relativos aos gêneros literários produzidos nesse período de nossa História.
Diogo (1997), supracitado, assim reclama contra o ideal monolítico subjacente às
inúmeras propostas defendidas por alguns pesquisadores, bem como contra a infinidade
de desdobramentos de tipos e subtipos nelas constantes:
[...] todas as tenteativas de defender a especificidade do texto medieval contra
a genologia neste âmbito ou o demasiado longe (aprestam-se a perder a
conceituação para que o Objecto seja) ou não vão muito: onde chegam,
acabam por reafirmar, com intenção ou sem ela, as distinções genéricas mais
tradicionais. [...] Estudos de tipologia textual não fazem sentido fora da
armação das distinções genológicas comuns; e as necessidades hermenêuticas
de quem as tem porque trabalha em interpretação textual o me parece que
possam satisfazer-se com a proliferação de tipos e subtipos que, a ser
inteiramente conseqüente, conduziria a um empirismo cego. (DIOGO, 1997,
p. 29; grifo do autor).
Esse estado de coisas deixa claro para nós que as oscilações e hesitações na
definição, identificação e distribuição dos gêneros não são uma prerrogativa da
lingüística contemporânea, que atesta uma proliferação inimaginável de gêneros textuais
que coocorrem com outros, nem sempre em vias de desaparecimento. Também na Idade
Média, período-alvo da investigação aqui efetuada, assim como em outros períodos da
nossa História, a situação se mostra igualmente obscura, a despeito da exigüidade
numérica dos gêneros então vigorantes. Que o digam as pesquisas realizadas em torno
da questão por figuras renomadas como Rodrigues Lapa (1981), Saraiva e Lopes
(1982), Tavani (1993, 2002), Amado (1997), Diogo (1997), Spina (2001, 2002), Moisés
(2001) e tantos outros, desejosos de estabelecer um quadro distributivo sistemático e
fidedigno dos gêneros em voga no medievo lusitano.
Apesar dessa boa intenção, na verdade, o que vemos, na maioria de nossos
manuais de História da Literatura Portuguesa, é uma repetição sem fim das lições que
nos foram transmitidas por tratados doutrinários da época, dentre os quais, nos interessa
mais de perto a “Arte de Trovar”, ou “Poética Fragmentária”, encontrada apensa ao
Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (antigo Colocci-Brancuti).
6
Desprovida de duas partes introdutórias e três capítulos iniciais e escrita, pelo que tudo
indica, na primeira metade do século XIV, ela não é bem-vista por Rodrigues Lapa, que
a considera “um produto da decadência do nosso lirismo, como o são geralmente todos
os manuais didácticos” (LAPA, 1981, p. 205). Relevado o exagero desse juízo, não se
pode deixar de registrar aqui o fato de que é corrente entre os pesquisadores a queixa de
que, mesmo a sua eloqüente parte teórica destinada à poesia não é de todo confiável,
pois que revela equívocos concernentes à própria concepção/definição de gênero”.
Confirme-se tal tipo de avaliação, na leitura que Teresa Amado fez desse doutrinário:
A questão é antiga e tem oposto, tanto como críticos a críticos, críticos a
autores literários. Quer dizer: a arte poética do Cancioneiro da Biblioteca
Nacional o é apenas omissa nas partes do texto que dele constavam
inicialmente e depois se perderam, é-o também em variedades de composição
que resultaram de experiências pouco numerosas com alguns modelos de uso
mais específico e restrito, certamente a requerem para ser notadas uma leitura
mais ágil e menos obcecada com um cânon, e é-o, sobretudo, acrescento
agora, no produto da invenção poética que trabalha a misturar temas e
motivos de proveniências genológicas distintas nas mais diversas combinações
e correspondentes, desta vez, a um número abundante de cantigas. (AMADO,
1997, p. 10-11).
De nossa parte, preferimos acatar a opinião abalizada de estudiosos da literatura
medieval como Giuseppe Tavani (1993), que, conquanto reconheça que a “Arte de
Trovar” desconsidera o ponto de vista temático na listagem e identificação das
modalidades literárias da época em favor da semelhança formal, que leva à diluição dos
diferentes gêneros nos neros principais, nos alerta contra a leitura do manual feita
por alguns estudiosos. Segundo ele, ao insistir em apontar os defeitos da “Arte de
Trovar”, eles acabam enviesando a interpretação que lhe é devida, de compêndio que
não se caracteriza como um “guia de autores”, mas como um “guia de leitores”.
Como tal, a obra é organizada a partir do geral para o particular, conforme
observa Moisés (1997, p. 28), começando, exatamente, por arrolar os “gêneros” de
cantigas, a contar das mais básicas: cantiga d’ amigo, cantiga d’ amor e cantiga
d’escarneo e de maldizer, além das tenções, cantigas de vilão e cantiga de seguir.
Apesar de toda a crítica contra essa divisão, os manuais de literatura portuguesa que
sucederam a “Arte de Trovar”, de um modo geral, não fogem à sua divisão tripartite de
base, tomando-as como ponto de referência para desdobramentos tipológicos
alicerçados em critérios variados, nem sempre fáceis de identificar. Numa leitura
atualizada e totalizada dos gêneros arrolados nesse compêndio, Diogo (1997, p. 29)
procura redistribuí-los a partir da natureza intrínseca ou extrínseca de sua classe. Numa
síntese e interpretação próprias das espécies mencionadas por esse autor, diríamos que,
na classe dos extrínsecos, encontramos os gêneros aristocráticos x gêneros não-
aristocráticos, bem como os gêneros congêneres de certas classes sociais x gêneros
interditos a outras; por sua vez, na classe dos intrínsecos contaríamos com os gêneros da
masculinidade (“cantigas de amor”, por exemplo) x gêneros da feminilidade (“cantigas
de amigo”).
A propósito dessa iniciativa de atualização do quadro genológico da literatura
poética medieval, cumpre-nos lembrar mais uma vez que não é o procedimento comum
entre os compendiadores que lidam nessa área. Assim, a despeito da maior ou menor
extensão da tipologia apresentada pela maioria deles, com raras exceções, os gêneros
centrais da poesia medieval portuguesa por eles arrolados coincidem com os três
mencionados na “Arte de Trovar”. Uma implicação disso, que repercute diretamente no
estudo aqui empreendido, é que obras como as Cantigas de Santa Maria,
genologicamente híbrida, pois que de caráter lírico e religioso, fica à margem dessa
6
Para uma visão mais completa desse tipo de material, consultem-se estudos como o de Faral (1924), que
procurou coletar e examinar as “artes poéticas” referentes aos séculos XII e XIII e Moisés (1997).
classificação. Comprovam-nos tal omissão manuais como o de Saraiva e Lopes (1982,
p. 45-76), que se limitam a arrolá-la somente na bibliografia que encerra o seu capítulo
II, intitulado “A poesia dos cancioneiros”.
Por outro lado, no Capítulo 2
intitulado “El desarollo de la lírica religiosa”
constante de sua obra La lírica en la Edade Media (versão espanhola datada de 1978),
Peter Dronke procura rastrear todo o período de produção de uma lírica em forma
estrófica, começando pelos poemas escritos em latim por Gottschalk (869), Notker,
Venâncio Fortunato, Hermann o Coxo, São Pedro Damião, Pedro Abelardo, São
Francisco de Assis e outros, que retinham, em maior ou menor grau, os hinos compostos
por Santo Hilário e Santo Ambrósio, no século IV. Depois de suas “andanças” pelos
séculos X e XI, de predominância da língua latina, Dronke chega aos séculos XII e XIII,
nos quais se depara com textos líricos lavrados em língua vulgar francês, provençal,
italiano, português, espanhol, além do inglês e do alemão. No que tange ao português,
Em anuência com a caracterização advogada por esses estudiosos e em
conseqüência dela, de nossa parte, inspirada no título dado pelo autor supracitado ao seu
Capítulo 2, sugeriríamos o seguinte quadro tipológico, que, certamente, retrata com
mais fidedignidade a situação genérica real da produção poética galego-portuguesa, uma
vez que passa a incluir o gênero híbrido lírico e religioso peculiar às Cantigas de D.
Afonso X. Conseqüentemente a isso, faz-se justiça ao próprio cancioneiro, visto por
Pimpão (1943, p. 167), como o testemunho mais evidente da importância assumida
pelo lirismo galego-português, fora da sua pátria de origem”, uma vez que escrita por
um autor espanhol, que, criado na Galícia, era o rei de Leão e Castela. Abaixo,
apresentamos, de uma forma esquemática, a nova taxonomia aqui defendida:
GÊNEROS DA POESIA GALEGO-PORTUGUESA
7
Lírica Satírica
Profana Religiosa De Escárnio De Maldizer
7
Conforme esclarecido acima, constam do Esquema 1 apenas os gêneros basilares (ou “maiores”, nos
termos dos compêndios, mais ou menos antigos, que abordam a questão), ficando, pois, à parte, os seus
desdobramentos tipológicos e subtipológicos, variáveis segundo o critério que os norteia.
Cantigas Cantigas
de de
Amor Amigo
Esquema 1: Gêneros primordiais da poesia medieval portuguesa
Fonte (complementada): Compêndios de História da Literatura Portuguesa
Sintetizado o quadro genológico poético nuclear da literatura medieval
portuguesa, atentemo-nos, a seguir, para a situação específica das Cantigas de Santa
Maria, tal como vista por alguns dos autores que se têm “dado à extravagância” de
examiná-las..
2.2.2.2.2 Considerações específicas ao cancioneiro mariano afonsino
Em encerramento a um de seus primeiros artigos a respeito da coletânea mariana
de D. Afonso X, a Prof.ª Ângela Vaz Leão assim exprime o seu lamento quanto ao
injusto desapreço que tem recebido no âmbito dos estudos acadêmicos: “Nada mais
desejamos do que ter despertado o interesse de algum aluno por essa obra tão
importante e tão injustamente relegada ao silêncio em muitos dos manuais de história da
Literatura Portuguesa” (LEÃO, 1997, p. 37).
8
Mesmo Álvaro da Costa Pimpão (1947), que classifica as Cantigas como de
gênero lírico, não faz nenhuma menção a elas no Capítulo I, destinado especificamente
ao estudo do “Cancioneiro galego-português”, preferindo trata-las em capítulo à parte
(Capítulo V), intitulado “As lutas com os mouros e a confraternidade poética. Afonso
X, trovador da Virgem.” (PIMPÃO, 1947, p. 167-174).
No grupo dos pesquisadores atuais, Giuseppe Tavani (1991), assim justifica a
sua posição de separar dos demais gêneros da poesia rica galego-portuguesa a
produção mariana do Rei Sábio, considerada tanto em seus poemas narrativos quanto
nos de louvor à Virgem:
Por um lado, a prática estabelecida desde muito tempo de estudar
separadamente, apesar de sua fundamental homogeneidade lingüística, as
poesias profanas galego-portuguesas e o cancioneiro mariano do rei sábio,
justifica-se pela organicidade da coerência temática e pela notável autonomia
8
Esse trabalho encontra-se, revisto e ampliado, no livro lançado, neste ano de 2007, pela referida
Professora.
formal que cada um dos dois conjuntos de textos apresentam, em oposição um
ao outro, por causa de sua distinta ascendência sociocultural: com efeito, as
‘cantigas’ destinadas a render louvores a Maria ou a narrar-Lhe os milagres
remontam às convenções corteses vigentes no cenáculo presidido pelo próprio
D. Afonso [...]. (TAVANI, 1991, p. 7; grifos e tradução nossos).
9
Diferentemente, autores que, conferindo em seus estudos o devido espaço a
essa coletânea, alocam-na no grupo das cantigas líricas, constituído, em seu ramo
profano, das cantigas de amor e de amigo. Dentre eles, destaquem-se, aqui, os nomes de
Manuel Rodrigues Lapa, em suas Lições de literatura portuguesa; época medieval
(1981), e Peter Dronke, em seu livro La lírica en la Edad Media (1978), tradução
espanhola do original The medieval lyric (1968). Em ntese, em termos de sua
caracterização genológica, ambos os especialistas, assim como Mettmann (1986),
Montoya (1988), Solalinde (1943), Snow (1987, 1992, 1999), Fidalgo (2002a, 2002b,
2004), Parkinson (1998) e outros mais, classificam as Cantigas de Santa Maria como
de gênero rico-religioso, alocando-o, pois, tanto no quadro da produção poética
galego-portuguesa lírica quanto no da religiosa cristã.
Em seu estudo, acima mencionado, sobre o percurso evolutivo da lírica religiosa
cristã na Idade Média, Dronke (1978), ao focalizar a fase românica, confere relevo
especial ao cancioneiro mariano de D. Afonso X. Em razão do grande número de suas
partituras musicais que chegaram até nós, ele o tem como, praticamente, “a única fonte
que nos permite saber como se cantava a rica peninsular” no medievo. Do mesmo
modo, o autor nos chama a atenção para o tipo de “prática religiosa” nele contida,
segundo a qual, Maria, “refúgio dos pecadores” ajuda os seus devotos a assumir um
compromisso capaz de satisfazer tanto as exigências de Deus como as da vida cotidiana,
com seus atrativos. A propósito do caráter de comprometimento” da religião cristã
apregoada por D. Afonso X, diz-nos esse pesquisador:
Em tempos e espaços variados, a existência de uma religião de compromisso
de tal monta, ainda que fosse a mais popular, passa sem deixar rastro. Nós a
vislumbramos, sem dúvida a miúdo, como uma realidade viva, nas melhores
9
Por unha banda, a práctica estabelecida desde hai tempo de estudiar ppor separado, a pesar da súa
fundamental homoxeneidade lingüística, as poesias profanas galego-portuguesas e o cancioneiro mariano
do rei sabio xustificase pola orgánica coherencia temática e a notable autonomia formal que cada un dos
dous conxuntos de textos opón ó outro, a causa da súa distinta ascendencia sócio-cultural : en efecto, as
‘cantigas’ destinadas a celebra-los loores ou a conta-los milagres de Maria eluden as convencións corteses
vixentes no cenáculo presidido polo propio Afonso [...]
cantigas [do cancioneiro afonsino], que têm algo do entretenimento e da leveza
das novelle de Boccaccio [...] (DRONKE, 1978, p. 89, tradução nossa)
10
De posse dessas informações de ordem geral e contextual, ocupamo-nos, a
seguir, da análise propriamente dita do contingente publicitário construído por D.
Afonso X, Áquela “de que Deus foi nado” (Cant. 99, refrão, último verso).
2.3 O “trovar publicitário” de D. Afonso X em honra de sua Dama Celeste
Nas palavras de Campos (1987, p. 56), “mais que todos os outros, o discurso
publicitário busca, através de um engenhoso trabalho sobre os diversos signos de que se
constitui, a criação de um efeito encantatório sobre o receptor”, no qual, “a criatividade
e a beleza não são valores válidos por si; estão, antes, a serviço de algo que os
transcende”. Numa reunião dessas duas categorias, a lírica amorosa medieval acaba se
deslocando da figura cortês da Dama para celebrar a mais perfeita das mulheres,
assumindo, desse modo, um tom edificante, conforme observação de Fidalgo (2002a, p.
26). Dessa forma, nos diz a autora, o tema da Virgem, assim como o da Morte, da
Fortuna, do Amante, etc., converte-se numa das marcas identificadoras dessa época,
que, situada entre os séculos X e XIII, proliferar, sobretudo em seu apogeu (séculos
XI e XII), as coletâneas de milagres, lavrados, inicialmente, em latim, e, depois em
língua vernácula.
Entre os estudiosos do assunto, é praticamente unânime a opinião de que a mais
rica, a mais bem elaborada (em seus três códigos, literário, pictórico e musical) nos veio
de um monarca castelhano, D. Afonso X, cognominado, com toda a justiça, “O Sábio”,
conforme nos comprova a sua habilidade de estrategista publicitário da Virgem Maria,
posta à prova a seguir.
2.3.1 Configuração macroestrutural das Cantigas
10
En muchos tiempos y lugares la existencia de uma religión de compromiso de tal clase, aun siendo la
más popular, pasa sin dejar huella. La vislumbramos sin embargo a menudo como uma viva realidad en
Conforme mencionado repetidas vezes neste trabalho, a coletânea mariana de D.
Afonso X compreende um total de 427 cantigas, dentre as quais, sete são repetidas: 373
= 267; 387 = 349; 388 = 295; 394 = 187; 395 = 165; 396 = 289; 397 = 192 o que não
chega a perturbar a sua distribuição e seqüencia genológicas, cuja organicidade se
manifesta sob vários pontos de vista, todos no sentido do agigantamento (publicidade)
da figura de Nossa Senhora.
Assim, por exemplo, do ponto de vista do tipo textual predominante, o
cancioneiro se mostra dividido em dois grandes grupos: um, de caráter narrativo, que,
concernente às cantigas de milagre, se configura como argumento por prova e/ou
testemunho; outro, de caráter não-narrativo, que, abarcando as demais cantigas, se
desdobra em subtipos como: exordial, injuntivo, invocativo, argumentativo,
dissertativo, aclamativo, perorador, etc., englobando dois Prólogos (A e B), cerca de
quarenta cantigas de louvor, uma cantiga de petiçon e cantigas de festa. nas quais
podemos vê-las em coocorrência. Essa tipologia, repita-se, não significa o uso exclusivo
de um tipo textual, mas a proeminência de um ou alguns deles sobre os demais,
conforme ilustrado no exemplo 5 abaixo, no qual coocorrem os tipos injuntivo e
argumentativo:
(4) Cantiga de caráter narrativo
“COMO SANTA MARIA LIVROU A MOLLER PRENNE QUE NON
MORRESSE NO MAR E FEZ-LLE AVER FILLO DENTRO DAS ONDAS.
“(Cant. 86, EMENTA)
(‘COMO SANTA MARIA IMPEDIU QUE UMA MULHER GRÁVIDA
MORRESSE NO MAR E FÊ-LA PARIR NO MEIO DAS ONDAS’)
(5) Cantiga de caráter não narrativo injuntivo e argumentativo
Quantos me creveren loarán
a Virgen que nos manten.
[...]
Ca en ela sempre acharán
Quantos me creveren loarán...
mercee mui grand’ e bon talan,
Quantos me creveren loarán...
per que atan pagados serán
Quantos me creveren loarán...
que nunca desejarán al ren.
(‘Todos quantos crerem em mim louvarão
a Virgem que nos protege.
[...]
Pois nela sempre encontrarão
Todos quantos crerem em mim louvarão...
grandes favores e clemência,
Todos quantos crerem em mim louvarão...
pelo que tão satisfeitos ficarão,
Todos quantos crerem em mim louvarão...
que nada mais desejarão.
las mejores cantigas, que tienen algo del desenfado y la ligereza de las novelle de Boccaccio [...].
Quantos me creveren loarán...”
(Cant. 120, refrão e terceira estrofe)
Todos quantos crerem em mim
louvarão...’)
Nesse mesmo exemplo 5, chama-nos a atenção o entusiasmo demonstrado
por D. Afonso ao convocar os fiéis para que louvem a Mãe de Deus, valendo-se, para
tanto, do recurso a uma interlocução indireta e indefinida com eles (“Quantos me
creverem”), bem como da técnica da repetição com a inserção do refrão não apenas no
espaço intervalar entre as estrofes, procedimento mais comum, mas, ainda, entre os
próprios versos internos a cada uma das estrofes.
Temos, aqui, pois, uma primeira idéia da ão publicitária do trovador da
Virgem, efetuada em termos do processo de estruturação de sua coletânea, que ora
passamos a examinar à luz da distribuição genológica de seus poemas, distribuição essa
que também leva em conta aspectos de ordem funcional, seqüencial e quantitativa.
2.3.1.1 Paradigma dominante
Numa visão global da obra, aqui vislumbrada, é possível constatar, do ponto
de vista genérico, o seu desmembramento em três grandes blocos introdutório, nuclear
e final, que se encontram ligados um ao outro por uma espécie de cantiga-ponte, que
impede a ocorrência de rupturas bruscas entre um e outro, funcionando, ao mesmo
tempo, como fecho de um e começo de outro, conforme será mostrado a seguir.
A- Primeira Parte: Introdução ou Exórdio
A parte introdutória das Cantigas de Santa Maria é constituída de dois
prólogos, funcional e formalmente distintos, que são separados da segunda seqüência de
cantares (parte 2), por uma cantiga caracterizada, no título, como de louvor, que, tal
como esses, é desprovida de refrão. Consideremos, separadamente, cada um desses
poemas.
a- Prólogo A
Escrito, provavelmente, por um dos colaboradores integrantes do scriptorium
criado e mantido em Toledo por D. Afonso, compreende um ato de apresentação do
monarca e de seu cancioneiro, realizado em interlocução direta com o receptor, dando-
lhe a entender que não havia pessoa mais indicada que o rei para fazer “cantares e sões,
/ saborosos de cantar”, em honra da Virgem Maria:
(6) “
Don Affonso de Castela,
de Toledo e de Leon,
Rey e ben des Compostela
ta o reyno d’ Aragon.
[...]
este livro, com achei,
fez a onrr’ e a loor
da Virgen Santa Maria,
que éste Madre de Deus,
en que ele muito fia.
Poren dos miragres seus
fezo cantares e sões
saborosos de cantar,
todos de sennas razões,
com’ y podedes achar.”
(Prólogo A, v. 1-4 e 19-28)
(‘Dom Afonso de Castela,
de Toledo e de Leão,
[que reina desde Compostela
até o reino de Aragão
[...]
este livro, como achamos,
fez em honra e em louvor
da Virgem Santa Maria,
que é a mãe de Deus,
em quem ele muito confia.
Por isso, dos milagres seus
fiz músicas e poemas,
agradáveis de cantar,
com seus singulares temas
como aí podeis achar.’)
11
b- Prólogo B
Enunciado pelo monarca, o segundo Prólogo do exórdio propicia a sua
instauração como “trovador da Virgem”, o que se dá por meio do recurso a dois grandes
artifícios literários, interligados um ao outro: o da invocatio e o da captatio
benevolentiae. Ao suplicar à Virgem que o aceite como Seu trovador, D. Afonso busca
captar a boa vontade de seus interlocutores, “fingindo-se” indigno e desprovido das
qualidades necessárias domínio do assunto e competência para desenvolvê-lo da
melhor forma possível para fazê-lo nos moldes exigidos pela situação e pelas regras
poéticas da época. Assumindo sua missão, ele anuncia, metalingüisticamente, o
encontro dos dois gêneros poéticos que constituirão o seu trovar: o de loor e o de
miragre, trovar esse selado por sua autoridade de monarca e de um grande poeta. Os
dois movimentos de “pretensa humildade’ mencionados atrás aparecem explícitos no
excerto abaixo:
(7) “E macar eu estas duas no ey
com’ eu querria, pero provarei
a mostrar ende un pouco que sei
(‘E embora eu não tenhas essas duas
qualidades [razón e entendimento]
como eu desejarai, tentarei
11
Versão para o português atual de Leão (2007, p. 23).
confiand’ en Deus, onde o saber ven.
[...]
E o que quero é dizer loor
da Virgen Madre de Nostro Sennor,
Santa Maria, que ést’ a mellor
cousa que el fez; e por aquest’ eu
quero seer oy mais seu trobador,
e rogo-lle que me queira por seu
Trobador e que queira meu trobar
receber, ca per el quer’ eu mostrar
dos miragres que ela fez [...]”
(Prólogo B, v. 9-12 e 15-23)
mostrar o pouco que sei delas,
confiando em Deus, do qual nos vem o
saber.
[...]
E o que quer é cantar louvores
à Virgem Mãe de Nosso Senhor,
Santa Maria, que é a melhor
coisa que ele fez; e por isso eu
quero, de hoje em diante, ser seu trovador.
E rogo-lhe que me queira por seu
Trovador e que queira aceitar
meu trovar, pois, por ela, quero mostrar
os milagres que ela fez [...]’)
Parte Intermediária I
Como início propriamente dito de seus cantares à Virgem, D. Afonso nos
apresenta a sua Cantiga nº 1, cuja primeira estrofe é a seguinte:
(8)
“ESTA É A PRIMEIRA CANTIGA DE LOOR DE SANTA MARIA,
EMENTANDO OS VII GOYOS QUE OUVE DE SEU FILLO.”
(‘ESTA É A PRIMEIRA CANTIGA DE LOUVOR DE SANTA MARIA, QUE
NOS MOSTRA OS VII GOZOS QUE O SEU FILHO LHE PROPORCIONOU.’)
Des oge mais quer’ eu trobar
pola Sennor onrrada,
en que Deus quis carne fillar
beyta e sagrada,
por nos dar gran soldada
no seu reyno e nos erdar
por seus de sa masnada
de vida perlongada,
sen avermos pois a passar
per mort’ outra vegada.”
(Cant. 1, EMENTA e 1ª estrofe)
De hoje em diante, quero trovar
em prol da Senhora honrada,
bendita e sagrada,
em que Deus quis encarnar,
para nos dar uma grande recompensa
no seu reino e nos fazer herdeiros
seus, de seu rebanho
de vida dilatada,
sem termos, pois, que passar
de novo pela condenação.
Embora apareça classificada, genologicamente, no próprio título, como de loor ,
conforme aludido acima, na verdade, ela foge ao padrão típico dessa espécie e, até
mesmo às suas variantes, uma vez que contém o relato blico dos sete gozos
vivenciados por Nossa Senhora, em Sua estada na Terra, gozos esses lembrados em
estrofes diferentes, cuja seqüência reflete a própria linha evolutiva de Sua vida entre
nós, a saber:
a Anunciação do Anjo Gabriel;
o Nascimento de Jesus;
a visita dos três Reis Magos;
a notícia da Ressurreição de Cristo;
o acompanhamento da Ascensão de Cristo ao Céu;
a recepção do Espírito Santo (Pentecostes), no cenáculo, juntamente com os
Apóstolos;
a Assunção aos Céus e Coroação de Maria como sua Rainha.
B- Segunda Parte: Conjunto Poemático Nuclear
O grupo poemático central do cancioneiro é composto de quarenta células
poemáticas de dez versos, subseqüentes umas às outras e constituídas, em princípio, de
dois grandes gêneros distintos de cantigas, cuja distribuição é feita, em termos
quantitativos, de um modo assimétrico, a saber:
9 cantigas de miragre + 1 cantiga de loor
O uso da expressão em princípio”, no parágrafo acima, justifica-se pela
ocorrência, em várias células, de cantigas cujo estatuto genérico não corresponde ao que
aparece anunciado em seu título-ementa. A cantiga de louvor 60, por exemplo, de
que reproduzimos abaixo o título, o refrão e uma parte da primeira estrofe, na verdade,
encerra uma peça argumentativa em que o autor, num ato comparativo (corrente, na
época) entre Nossa Senhora (Ave) e Eva, exalta as qualidades e as boas ações da
Primeira:
(9) “ESTA É DE LOOR DE SANTA
MARIA, DO DEPARTIMENTO QUE Á
ENTRE AVE E EVA.
Entr’ Av’ e Eva
gran departiment’ á.
Ca Eva nos tolleu
o Parays’ e Deus,
Ave nos y meteu [...]”
(Cant. 60, EMENTA, refrão e v. 5-7)
(‘ESTA É DE LOUVOR A SANTA
MARIA, MOSTRANDO A DISTÂNCIA
QUE HÁ ENTRE AVE E EVA.
Entre Ave e Eva,
há uma grande diferença.
Pois Eva nos tirou
o Paraíso e Deus,
Ave nele nos instalou [...]’
Logicamente, a assimetria numérica acima referida, que privilegia as narrativas
de milagre, implica outra de maior âmbito, se pensarmos no total dos poemas
pertencentes a um ou outro desses gêneros de cantiga explorados por D. Afonso. Assim,
dos 400 poemas integrantes das 40 células que compõem a parte central das Cantigas,
356 aparecem rotuladas como do gênero miragre e 41 do gênero loor, segundo visto.
Naturalmente, essa distribuição não é gratuita, pois que privilegia um gênero que, dentre
outras coisas, se caracteriza, do ponto de vista retórico, como um argumento baseado
não só em prova concreta no universo da e do imaginário próprios ao medievo ,
como, também, no testemunho de terceiros, ou do próprio monarca e na sua própria
autoridade de narrador régio. Além disso, não satisfeito com essa força argumentativa
tríplice, o Rei Sábio trata de reforça-la em todas as cantigas, por mais de uma vez,
expondo-a, metalingüisticamente, ao receptor, conforme nos comprovam passagens
como a seguinte:
(10) “Gra
n poder á de mandar
o mar e todo-los ventos
a Madre daquel que fez
todo-los quatr’ elementos.
Desto vos quero contar
un miragre que achar
ouv’ en un livr’, e tirar
o fui ben d’ ontre trezentos,
que fez a Virgen sen par,
por nos a todos mostrar
que seus sson os mandamentos.”
(Cant. 33, refrão e 1ª estrofe)
(‘A Mãe daquele que fez
todos os quatro elementos
tem o grande pode de mandar
o mar e todos os ventos.
A respeito disso, vos quero contar
um milagre que achei
num livro, do qual tirei este
dentre trezentos
que fez a Virgem sem par
para mostrar a todos nós
que os mandamentos são seus.’)
Pelo que se pode ver, superpõem-se aqui dois grandes tipos de argumento: um
de natureza factual sob a perspectiva da fé, qual seja, o milagre em si mesmo, prova
concreta do poder e da misericórdia de Maria; o que lhe confere o status de elemento
comprobatório da existência de uma intermediação entre os planos divino e terrestre;
outro formulado por seu narrador, que, em seu relato procura garantir sua veracidade,
valendo-se, para tanto de estratégias diferenciadas, dentre as quais a menção (insistente)
da fonte escrita ou oral de onde o milagre foi recolhido; a ilustração, que, nas
palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 407), tem “a função de reforçar uma
regra reconhecida e aceita, fornecendo casos particulares que esclarecem o enunciado
geral”; o recurso a um modelo que funciona como ilustração de regras de conduta a
serem imitadas pelo receptor, etc. Dentre esses e outros artifícios mais empregados pelo
rei-trovador, merece especial atenção o testemunho, pessoal ou não, que ele, na
qualidade de narrador-mor, busca dar aos fiéis, contando os feitos miraculosos da
Virgem, bem como o seu ecoar consolidador na voz do beneficiado, de algum outro
personagem, ou, até mesmo da gente do entorno que os tenha testemunhado ou deles
ouviu falar. Todos esses ingredientes e outros mais compõem uma verdadeira rede
propagandística centrada na figura da Mãe de Deus. Esse “reconto” dos milagres pelo
povo tem espaço próprio nos poemas, situando-se, de um modo geral, na última estrofe,
conforme nos ilustram a Cantiga 31, na qual Santa Maria tomou para Si o boi de um
lavrador que, embora tivesse prometido presenteá-La com ele, não o fizera, e a Cantiga
nº 38, que relata como Santa Maria recuperou (por enxerto) o pé de um de seus devotos,
que, portador da doença do fogo selvagem, não resistindo à dor que sentia, resolveu
decepá-lo:
(11) “O lavrador que pós ele a mui gran
pressa vera,
poi-lo vyu en Vila-Sirga, ouv’ en
maravilha fera;
e fez chamar a pregon,
e gentes foron vudas,
a que das cousas sermon
fez que ll’ eran conteçudas.
(Cant. 31, última estrofe; grifos nossos)
(‘O lavrador, que viera atrás dele [o
boi] na maior pressa,
depois que o viu em Vila-Sirga,
ficou completamente maravilhado,
e fez chamar a todos com um
pregão;
e às pessoas que foram chegando,
ele fez um discurso a respeito do que
lhe havia acontecido.’)
(12)
Quantos aquest’ oyron, log ali
veron
e aa Virgen santa graça ende deron,
e os seus miragres ontr’ os outros
teveron
por mais groriosos.”
(Cant. 37, última estrofe)
(‘Todos quantos ouviram o milagre
vieram logo ali
e deram santa graça à Virgem por ele
e consideraram os seus milagres
mais gloriosos, dentre os outros.’)
A propósito dos milagres, vale ainda lembrar, com Lanciani e Tavani (1993, p.
459), que o seu relato atuava de um modo singular junto ao povo do medievo europeu,
que, “não dando prioridade à nota de derrogação das leis da natureza”, acentuava “o seu
caráter hierofânico […], de ação ou acontecimento extraordinário, capaz de maravilhar,
e que em contexto religioso” era “interpretável como sinal de intervenção divina junto
de alguém”. Peça publicitária por excelência, os milagres comprovavam à gente de
então a existência de uma Mãe de Deus medianeira e advogada do homem junto a Deus.
Com toda certeza, a força de uma ação miraculosa ilustração, exemplo e
prova agia (e ainda age) com maior intensidade de convencimento sobre o receptor,
superando a força da palavra própria às cantigas de louvor, mesmo consideradas em
suas variantes: invocatória, encomiástica, admoestativa, injuntiva, promissiva,
ameaçadora, etc., dirigidas pelo rei-poeta a Nossa Senhora e/ou aos Seus devotos.
Uma última estratégia de implicações publicitárias a mencionar é a da
multiplicação de milagres num mesmo poema. Um dos exemplos mais sugestivos desse
recurso nos é fornecido pela Cantiga 21, na qual, Santa Maria, além de conceder a
uma mulher estéril a graça de engravidar, ainda ressuscitou-lhe o filho, fazendo-o “no
leit’ u jazia bulir” (v. 53).
Isso posto, atentemo-nos, em seguida, para a parte final da coletânea mariana
aqui investigada, parte essa separada da segunda pela Cantiga 401, de petiçon, que,
de certa forma, se vê estendida na de nº 402.
Parte Intermediária II
Diferentemente da primeira Parte intermediária (Cantiga 1), a segunda,
composta de 9 cantigas, contém material de gênero e de funções distintas umas das
outras, caracterizando-se, pois, como de cunho mesclado, conforme mostrado abaixo:
Cantigas rogatórias: 401 e 402;
Cantiga de relato rememorativo bíblico: 403
Cantigas de miragre: 404, 405, 407 e 408
Cantiga de boas-vindas às Mayas: 406
Cantiga de loor convocatória: 409
Esse grupo, de plano composicional mais caótico, é aberto pela famosa
Cantiga nº 401, de petiçono que a situa no grupo das rogatórias, de que fazem parte
os poemas de loor 80, 100, 250 e 350 e de cunho pessoal. Fecho “oficial” da
segunda parte das Cantigas de Santa Maria, ela atua, simultaneamente, como
introdutora dessa Parte Iintermediária II e expressa uma interpelação direta de D.
Afonso (locutor) a Nossa Senhora (alocutária). Em operação metalingüística efetuada na
primeira estrofe, o monarca deixa claro que está encerrando os cantares e sões que fez
em Sua honra, deixando explícita o Seu papel de Advogada dos homens junto a Deus,
de Medianeira entre o Céu e a Terra, uma vez que Lhe roga que peça a Deus por ele
o que implica um alto grau de subjetividade. Como ilustração, temos, abaixo, a
reprodução da primeira estrofe das dez (com dez versos cada uma) que a compõem:
(13) “Macar poucos cantares acabei e con son,
Virgen, dos teus miragres, peço-ch’ ora
(‘Embora tenha escrito poucas letras
e música, a respeito de teus milagres,
por don
que rogues a teu Fillo Deus que el me
perdon
os pecados que lle fige, pero que muitos
son,
e do seu parayso non me diga de non,
nen eno gran juyzio entre mil’ en razon,
nen que polos meus erros se mostre
felon;
e tu, mia Sennor, roga-ll’ agora e enton
muit’ afficadamente por mi de coraçon
e por este serviço dá-m’ este galardon.”
(Cant. 401, 1ª estrofe)
Virgem, peço-te agora por graça
que rogues a teu Filho Deus que me
perdoe
os pecados que cometi contra ele,
embora sejam muitos,
e que não me negue o seu paraíso,
nem, no juízo final, entre em
contenda comigo.
e nem que fique irado com os meus
erros;
E tu, minha Senhora, roga-lhe, com
muito empenho, agora e então, por
mim, de coração,
e por esse serviço [cantares e sões]
dá-me essa recompensa.’)
Desprovida de refrão como a Cantiga nº 1, ela se vê prolongada, temática,
funcional e tipologicamente, na Cantiga subseqüente, de 402, que, a despeito dessa
convergência tríplice, dela difere por conter refrão e por apresentar um ato
interlocutório em que o pedido real é feito, por meio da negação repetida do verbo catar
(‘olhar’, ‘levar em consideração’), diretamente à Virgem e, não, a Deus, intermediado
por Ela, conforme mostrado a seguir:
(14) “
Santa Maria, nenbre-vos de mi
e daquele pouco que vos servi.
[...]
Non catedes como pequey assaz
mais catad’ o gran bem que en vos jaz;
ca vos me fezestes como quen faz
sa cousa quita toda pera ssi.”
(Cant. 402, refrão e segunda estrofe)
(‘Santa Maria, lembrai-vos de mim
e daquele pouco com que vos servi.
[...]
Não olheis o quanto pequei,
mas olhai o grande bem que há em
vós;
pois me fizestes como quem faz
sua obra livre, inteira para si.’)
Por sua vez, a Cantiga 403, similarmente à de 1, arrola os acontecimentos
que a Bíblia registra da vida de Maria, relacionando, dessa vez, os que A fizeram sofrer
por Seu Filho, quais sejam:
Fuga com a família para o Egito;
Desaparecimento do Menino Jesus, no templo;
Prisão de Jesus pelos soldados romanos;
Encontros com o Filho que, com a cruz nas costas, seguia a caminho do
Calvário;
Morte de Jesus e sorteio de Suas vestes entre os soldados;
Sepultamento de Jesus;
Separação Dele, que, depois da ressurreição, ascendeu aos céus.
Subseqüentemente a esse poema, temos uma série composta por 4 cantigas de
milagre, assim caracterizadas:
Cantiga nº 404: Santa Maria cura um clérigo com o Seu leite;
12
Cantiga 405: Santa Maria permite que, uma vez por ano, seja retirado o véu
que encobre a Sua imagem, na igreja de Luzerna.
Cantiga nº 407: Santa Maria cura um homem cego.
Cantiga nº 408: Santa Maria sara, com ervas, as costas de um escudeiro que fora
flechado.
Quanto à Cantiga 406, em que o autor saúda o mês de Maio, é identificada na
literatura corrente (METTMANN,1986; MONTOYA, 1988, 1999), como um dos
reminiscentes da poesia tradicional, pagã, uma vez que explora motivos da canção
primaveril e apresenta um refrão na forma de conductus. À guisa de ilustração,
transcrevemos, abaixo, a sua oitava estrofe, que faz referência ao movimento histórico
da Reconquista pelos hispânicos de terras ocupadas pelos árabes:
(15) “
Ben vennas, Mayo, alegr’ e sen sanna;
e nos roguemos a quen nos gaana
ben de seu Fillo, que nos dé tamanna
força, que sayan os mouros d’ Espanna.”
(Cant. 406, 8ª estrofe)
(‘Bem-vindo, Maio, alegre e sem
rancor;
e nós roguemos àquela que consegue
o bem
de seu Filho para nós, que nos dê tal
força, que os mouros saiam da
Espanha.’)
Finalmente, encerrando essa série poemática intermediária, temos uma cantiga
de loor , 109, na qual o rei-poeta convoca, em tom desiderativo e injuntivo (expresso
pelo verbo dever) todas as gentes, de todas as classes, profissões, faixa etária, gênero,
etc. a louvar Nossa Senhora:
12
A propósito do “leite de Santa Maria”, consulte-se o trabalho de Leão (2007, p. 117-134), que tanto
emocionou o auditório, quando ela o apresentou no V Congresso Internacional da ABREM, realizado no
ano de 2000, em Salvador, Bahia.
Se, a partir do que aqui se mostrou, procedermos a um balanço da arte
publicitária empregada por D. Afonso nesse grupo de cantigas, percebemos, na
mesclagem genológica que o caracteriza, o seguinte: uma certa proeminência das
narrativas de milagre (quatro em nove), que perfazem quase 50% de seu total o que
determina a fortificação dos argumentos de prova, exemplo e ilustração do poder
miraculoso de Maria, que aos seus / sempre mui ben os ampara (Cant. 51, versos finais
do refrão); o reforço do “exemplo”, nas duas cantigas rogatórias (nº 401 e 402), nas
quais o próprio rei se revela uma figura exemplar para os fiéis cristãos, ao reconhecer,
publicamente, a sua condição humana de pecador, bem como ao solicitar à sua Dama do
Céu que obtenha de Deus o perdão para tantas faltas que comete; a remissão à Bíblia
(“Novo Testamento”), feita na Cantiga 403, com a rememoração das “sete dores” de
Nossa Senhora, autoridade maior da religião cristã, pois que portadora da palavra de
Deus, ou por Ele inspirada; o ato convocatório do autor dirigido, por sinal, em
terceira pessoa a reis, imperadores, oradores, religiosos, cavaleiros, mulheres
honradas, donzelas, escudeiros, burgueses, cidadãos, camponeses, etc., que, além de
trazer em si a força da interpelação ao outro, instaura-o como personagem ativo da cena
enunciativa, numa possível expressão metonímica da relação entre a Igreja e seus
seguidores em tempos medievais; a justificativa dissertativo-argumentativa que o rei
procura fornecer a seus interpelados para a sua conclamação, apontando, para tanto, as
qualidades e o status de Mãe de Deus da Virgem Maria.
(16) “
Cantando e con dança
seja por nós loada
a Virgen coroada
que é noss’ esperança.
[...]
Donzelas, escudeiros,
burgeses, cidadãos,
outrossi aldeãos,
mesterais, ruãos,
des i os mercadeiros
non deven postremeiros
seer; mais com’ irmãaos,
todos alçand’ as mãos,
con corações sãos,
en esto companneiros
deven ser obreiros,
loand’ a Virgen santa,
que o demo quebranta
por nossa amparança.”
(Cant. 409, refrão e última estrofe)
(‘Com cantos e com danças,
seja por nós louvada
a Virgem coroada
que é nossa esperança.’)
[...]
Donzelas, escudeiros,
burgueses, cidadãos,
e também aldeãos,
artesãos, plebeus,
assim como os mercadores
não devem ser os últimos;
mas como irmãos,
todos levantando as mãos,
com os corações puros,
devem ser nisso companheiros
e obreiros,
louvando a Virgem santa
que quebranta o demônio
para nos amparar.
Dito isso, focalizemos a parte final do cancioneiro mariano afonsino, que, apesar
de bem diferente das anteriores, em vários aspectos, não deixa de revelar a destreza
publicitária de seu autor.
C- Terceira Parte: Conjunto Poemático Final
As Cantigas de Santa Maria são encerradas por um conjugado de 27 cantigas,
sendo duas delas (412 e 416) repetidas de outras anteriores (340 e 210,
respectivamente). O seu ponto de divergência em relação às partes anteriores, quer
básicas, quer intermediárias, é que ele nos desloca do espaço afonsino em si para o
espaço da Igreja, com o espaço litúrgico que confere, em seu calendário, a Maria e a
Jesus. A sua distribuição genológica e funcional —, abaixo esquematizada não
retrata o seu perfil estrutural como nos revela uma célula que, tal como a central, tem
como subpartes formantes uma cantiga introdutória, uma seqüência poemática central e
duas cantigas de arremate:
a- Parte introdutória: constituída da Cantiga 410, designada pelo próprio
autor como “Prólogo das cinco festas de Nossa Senhora”;
b- Parte central: constituída de dois subgrupos de cantigas de festas da Igreja,
diferenciadas umas das outras pela Figura-alvo da homenagem: um subgrupo referente
às festas de Nossa Senhora e outro, às festas de Nosso Senhor. Esse conjugado é assim
distribuído:
i- Festas dedicadas a Nossa Senhora
13
Cantiga nº 411: Nascimento de Santa Maria (8 de setembro);
Cantiga nº 413: Virgindade de Santa Maria (8 de dezembro);
Cantiga nº 414: Virgindade de Santa Maria (reforço da nº 413;
Cantiga nº 415: Anunciação do Anjo a Santa Maria (25 de março);
Cantiga nº 417: Apresentação do Menino Jesus no Templo (mês de fevereiro)
Subparte intermediária
Cantiga nº 418: Menção dos sete dons concedidos por Deus à Sua Mãe
Cantiga nº 419: Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto)
Cantiga 420: Recepção a Nossa Senhora no Paraíso e Sua coroação como
Rainha de Céu e da Terra.
Parte Intermediária Propriamente Dita
13
Não foram alistadas aqui as cantigas 412 e 416, por equivalerem, respectivamente aos poemas 340 e
210. Quanto à cantiga de nº 418 não se configura como de festa, mas como de apresentação dos sete dons
concedidos à Virgem Maria pelo Espírito Santo.
Como ponte entre os poemas relativos às festas de Nossa Senhora e os
concernentes às festas de Nosso Senhor, temos duas cantigas coligadas, na verdade,
com a parte central da obra como um todo, uma vez que de cunho rogatório. Contudo, o
tipo de rogo, agora, é distinto dos anteriores, pois que faz referência ao Juízo Final. São
elas:
Cantiga 421, em que D. Afonso suplica a Nossa Senhora que “lhe venha
enmente de nos ao dia do juizio e rogue ao seu Fillo que nos aja merçee”
(ementa), lembrando-Lhe, para tanto, de que é nossa Advogada:
(17) “Nembre-sse-te, Madre
de Deus, Maria,
que a el, teu Padre,
rogues todavia,
pois estás em sa compania
e és aquela que nos guia.”
[...]
(Cant. 421, v. 4-9)
(‘Lembra-te, Maria,
Mãe de Deus,
de rogar a ele, teu Pai,
sempre,
pois estas em sua companhia
e és aquela que nos guia. [...]’)
Cantiga nº 422, em que o monarca reforça o pedido feito na Cantiga nº 421,
a partir de três grandes operações conjugadas umas às outras: uma de
pedido à Santa Maria que interceda por nós junto ao seu Filho, no dia do
Juízo Final; outra de descrição do cenário que nos espera; outra, ainda, de
apresentação de um arrazoado que justifica a solicitação feita, arrazoado
esse fundamentado nas dores que Ela suportou quando esteve entre nós:
(18) Madre de Deus, ora por nos teu
Fillo
ess’ ora.
[...]
U ao juizio todos, per com’é
escrito,
Verrán, i-lli como con el fugisti a
Egito.
(Cant. 422, refrão e v. 16-17)
(‘Mãe de Deus, roga por nós a teu
Filho, nessa hora.
[...]
Quando todos vierem ao juízo,
conforme
está escrito,
lembre-lhe que fugiste com ele para
o Egito.’)
ii- Festas dedicadas a Nosso Senhor ( cantigas de nº 423 a 427)
O cancioneiro místico de D. Afonso X tem como fecho os poemas que nos falam
das festas promovidas pela Igreja em homenagem a Jesus Cristo. Embora não contenha
um Prólogo específico como o das cantigas de festa em honra de Nossa Senhora
(Cantiga 410), de certo modo, eles são introduzidos por uma cantiga diferente das
que lhe seguem, pois que de agradecimento a Deus pela criação do mundo, assim
anunciada na EMENTA: “ESTA PRIMEIRA É DE COM’ EL FEZ O ÇEO E O MAR E
O SOL E A LŨA E AS ESTRELAS E TODA-LAS OUTRAS COUSAS QUE SON, E
COMO FEZ O OME A SA SEMELHANÇA”. Classificando-a dessa maneira e levando
em conta que a última estrofe da última cantiga de festa de Nosso Senhor e, também, de
toda a coletânea, contém uma súplica do rei a Santa Maria, podemos estabelecer a
seguinte seqüência:
Cantiga introdutória
Nº 423: Criação do mundo.
Conjunto central
Cantiga nº 424: apresentação do Menino Jesus no Templo;
Cantiga 425: Ressurreição de Jesus e Seu aparecimento para os
apóstolos e para as três Marias;
Cantiga nº 426: Ascensão de Nosso Senhor aos Céus;
Cantiga nº 427: Aparecimento do Espírito Santo (Pentecostes)
Cantiga final (coda)
Última estrofe da Cantiga 427, na qual, o rei-trovador roga à sua Dama
Celeste que nos permita receber, do mesmo modo que Ela e os apóstolos, as luzes do
Espírito Santo:
(19) “E nos roguemos a que gran prazer
viu de seu Fillo quando a põer
foi enos çeos a par de ssi, que aver
nos faça del o Sant’ Espirito, pois
dela naçeu.”
(Cant. 427, última estrofe)
(‘E nós roguemos à que sentiu o
grande prazer que lhe deu seu
Filho,
quando a levou para o céu, para
perto
de si, que dele nos faça receber
o Espírito Santo, pois que dela
nasceu.’)
Atentando-nos para o aparato publicitário desse conjugado final, percebemos
que, independentemente de algumas variações, ele forma um todo genérico coeso, uma
vez que composto, predominantemente, de cantigas paralitúrgicas, que nos remetem a
um espaço externo e mais amplo: o da Igreja, com o seu calendário de festas em honra
de Nossa Senhora e de Nosso Senhor. À enumeração das festas promovidas em prol de
Ambos veículo propagandístico em si mesmas —, subjazem a rememoração de fatos
bíblicos, estratégia política usada por D. Afonso, para mostrar seu bom entendimento a
Igreja, e um convite aos fiéis para que participem desses atos oficiais de vassalagem
Àqueles que, lá do Céu, velam por nós, na Terra.
Como reforço a essa parte da ação publicitária do monarca, temos, no elenco das
cantigas de festas da Virgem Maria, um poema de passagem, arrolado sob o número
418. Elemento divisor desse conjunto, então repartido em dois subgrupos, ele contém
uma homenagem especial à Mãe de Deus, ao alistar, em ato encomiástico, os sete dons
que Lhe foram concedidos pelo Espírito Santo o que, novamente, traz à tona um
diálogo com o texto bíblico, voz intertextual soberana na produção literária religiosa.
Igualmente, no que toca ao subconjunto das cantigas de festas em honra de
Jesus, temos um encontro com o texto bíblico, também em seu “Novo Testamento, com
a lembrança de passagens prazerosas de Sua vida. Como fortificante publicitário,
contamos, também, com uma cantiga de abertura, de 423, que, diferentemente do
que ocorre com as demais desse subgrupo assim como com o dedicado a Maria, nos traz
até nos o “Antigo Testamento”, com o seu “Livro do Gênesis”.
Em síntese, pode-se concluir que a Parte Final das Cantigas de Santa Maria
tem como chancela uma voz mais concentrada na Bíblia, que, irrefutável em seu dictum,
confere aos escritos de D. Afonso um grau maior de credibilidade.
Como síntese do que aqui se expôs, apresentamos no Quadro abaixo uma visão
mais concentrada do esquema organizacional básico do cancioneiro lírico-religioso aqui
examinado:
Quadro 2: Configuração macroestrutural das Cantigas de Santa Maria
segundo sua constituição e distribuição genológicas.
Fonte: Bittencourt (2003a, 2003b, 2006) e dados da pesquisa
Como fecho da análise aqui empreendida, vejamos, ainda que brevemente,
algumas das variantes que, embora rompam com os cânones do padrão exposto acima,
além de não perturbar sua organicidade e funcionalidade, nos revelam um quadro
similar ao que costumamos ver hoje, nos textos publicitários stricto e lato sensu.
2.3.1.2 Hibridismo genológico
Embora caracterizado como modelar, o esquema configuracional das Cantigas
de Santa Maria acima descrito apresenta, do mesmo modo que a constituição estrófica,
a métrica, o ritmo, a rima, uma série de modulações de natureza variada, que perpassam
por toda a obra. Embora o compromisso aqui assumido se limite ao exame da estrutura
de base do cancioneiro, não poderíamos deixar de apontar algumas de suas variações,
pois que, afinal de contas, têm o mérito de nos revelar o aparato publicitário construído
pelo maior poeta da Virgem.
PRIMEIRA
PARTE:
INTRODUÇÃO
PARTE
INTER
MEDI-
ÁRIA
SEGUNDA
PARTE:
CONJUNTO
POEMÁTICO
CENTRAL
PARTE
INTERME-
DIÁRIA
TERCEIRA PARTE:
FINAL
PRÓLOGOS
CAN-
TIGA
Nº 1
SEQÜÊNCIA DE 40
CÉLULAS
CANTIGAS DE
PETIÇON
INTRO-
DUÇÃO
CANTIGAS
PARALITÚR-
GICAS
Festas Promovidas
pela Igreja
Conjuntos
Nonários
Poemas
Decenais
401
Principal
402
Subsidi-
Ária
Menção das
Sete Dores
de Nossa
Senhora
Em
honra de
María
Em
honra de
Jesus
Prólogo
(410)
Duas Cantigas
de Milagre
(404, 405)
Introdu-
ção
(423)
Uma Cantiga
de Saudação
às Maias
(406)
Passagens
da vida de
Maria (411,
(413, 414,
415, 417)
Remissão
aos 7 Dons
do Espírito
to Santo
(418)
A
Apresentação
(por parte de
um terceiro),
de D. Afonso
como autor da
obra.
B
Invitatio:
auto-
instauração de
D. Afonso
como trovador
da Virgem.
Remis-
são aos
Sete
Gozos
de
Nossa
Senhora
Cantigas
de
Miragre
352
ocorrências
Cantigas
de
Loor
41
ocorrên-
cias
Pedido
do rei
a Santa
Maria,
para que
rogue a
Deus que
lhe perdoe
os
pecados.
Pedido
do rei
a Santa
Maria,
para que
não o veja
como
pecador,
mas, sim,
como Seu
servidor
Duas Cantigas
de Milagre
(407 e 408)
Passagnes
da vida de
Maria
(419 e 420)
Passa-
gens da
vida de
Jesus
(424-427
Fixando-nos apenas em algumas delas, começamos pelo entrelaçamento inter
e/ou intra-genológico, próprio ao fenômeno do hibridismo, explorado por D. Afonso,
em maior ou menor grau de intensidade e de ineditismo, em todas elas, de um modo
particular, nas de relato de milagres. O primeiro deles, de maior porte, tem a ver com a
intenção do autor ao fazer “cantares e sões saborosos de cantar” como preito à Virgem
Maria, segundo consta no Prólogo A, v. 25-26). A resposta nos vem do próprio autor,
quando afirma, no Prólogo B (v. 15-17 e 22-23), tantas vezes aqui referido: “E o que
quero é dizer loor / da Virgen, Madre de Nostro Sennor, Santa Maria” [...] “ca per el
quer’ eu mostrar dos miragres que ela fez”. Como não poderia deixar de ser, isso
significa que, na verdade, as narrativas de milagre, que com tanta eficácia e vigor
demonstram o poder de Maria, configuram-se, dentre outras coisas, como estratégias de
louvação, expressas de um modo mais imediato nas cantigas de loor, sobretudo, de
natureza encomiástica. Em vista disso, podemos afirmar que o primeiro tipo de
hibridismo manifestado no cancioneiro mariano afonsino decorre da confluência entre
os dois gêneros textuais em que se alicerça: o laudatório e o miraculístico.
Num âmbito mais restrito, interno às cantigas, temos uma nova espécie de
combinação entre eles, resultante, dessa vez, da “hospedagem” de loores nos miragres
ou de miragres nos loores, numa proporção que favorece de longe a primeira
possibilidade. Uma das evidências disso é a alocação mais ou menos fixa dos atos de
louvor em determinados espaços das cantigas de milagre, dentre os quais, o refrão
componente responsável pela apresentação do tema, no qual se mostram em toda a
plenitude de sua variação, que vai desde o encomiasmo à admoestação. Os refrães
transcritos abaixo, por exemplo, nos remetem a cinco tipos diferentes de atos de fala
realizados pelo autor:
(20) Encomiástico
A Virgen mui groriosa,
Rea espirital,
dos que ama é ceosa,
ca non quer que façan mal.”(Cant. 42,
refrão)
(‘A Virgem mui gloriosa,
Rainha espiritual
cuida bem dos que ama,
pois não quer que cometam
pecado.’)
(21) Injuntivo
A Virgen Santa Maria
todos a loar devemos,
‘(A Virgem Santa Maria,
todos quantos esperamos
cantand’ e con alegria,
quantos seu ben atendemos.”
(Cant. 8, refrão)
sua graça devemos louva-la,
cantando com alegria’)
(22) Comparativo
Par Deus, muit’ é gran razon
de poder Santa Maria mais de
quantos Santos son..”
(Cant. 14, refrão)
(‘Por Deus, há um grande motivo
para que Santa Maria tenha mais
poder que os outros Santos.’)
(23) Opinativo
Por que nos ajamos
senpre, noit’ e dia,
dela renenbrança,
en Domas achamos
que Santa Maria
fez gran demonstrança..
(Cant. 9, refrão)
(‘Para que nós tenhamos
sempre, lembrança dela,
noite e dia,
achamos que Santa Maria
fez um grande milagre
em Damasco.’)
(24) Narrativo-demonstrativo
A Madre do que livrou
dos leões Daniel,
essa do fogo guardou
un meno d’ Irrael.”
(Cant. 9, refrão)
(‘A Mãe daquele que livrou
Daniel dos leões,
essa livrou do fogo
um menino de Israel.’)
Diferentemente, conforme já referido, no segundo tipo “hospedagem”, de
milagres nas cantigas de louvor, o processo de hibridismo se mostra não muito mais
quantitativamente reduzido como, também, lingüisticamente expresso de um modo
menos perceptível. É o que ocorre, por exemplo, nas cantigas de 20, 50 e 80, nas
quais, D. Afonso faz alusão ao tipo e ao resultado de alguns dos milagres operados por
Maria, justifica, por meio deles, o convite que faz aos fiéis para que a amem e louvem,
solicita-Lhe que obtenha de Deus a nossa salvação, e mostra-A como Vencedora do
demônio, respectivamente. Delas reproduzimos, abaixo, os excertos ilustrativos da
mesclagem em questão milagre no loor.
(25) “Miragres fremosos
vas por nos fazendo
e maravillosos,
per quant’ eu entendo,
e corregendo
muit’ e soffrendo,
ca non nos escaeces,
e, contendendo,
nos defendendo
do demo, que sterreces.
[...]
(‘Milagres formosos
e maravilhosos
pelo que sei,
fazes por nós,
corrigindo
muito e sofrendo,
pois não nos esqueces.
E, ainda, lutando,
em nossa defesa,
contra o demônio que aterrorizas.
[...]
Aos soberviosos
d’ alto vas decendo,
e os omildosos
en onrra crecendo,
e enadendo
e provezendo
tan santas grãadeces.”
(Cant. 20, v. 30-47)
Os soberbos
desces de sua superioridade
e dos humildes
aumentas a honra,
acrescentando-lhes
e outorgando-lhes
qualidades tão santas .’)
(26) “E a Santa Virgen, en que ss’ el
[Deus] ensserrou,
de que prendeu carne e por madre
fillou,
muit’ amar devemos, ca per ela
mostrou
todas estas cousas que vos fui
ja contar.”
(Cant. 50, EMENTA e v. 30-33)
(‘E a Santa Virgem em quem ele se
encerrou,
em quem se encarnou e tomou como
mãe,
devemos amar muito, pois por ela
mostrou
todas essas coisas [milagres] que vos
contei.’)
(27) “De graça cha e d’ amor
de Deus, acorre-nos, Sennor.
[...]
Punna, Sennor, de nos salvar
pois Deus por ti quer perdoar
mil vegadas, se mil errar
eno dia o pecador.”
(Cant. 80, refrão e 24-27)
(‘Cheia de graça e de amor
a Deus, socorre-nos, Senhora.
[...]
Luta, Senhora, para nos salvar,
Pois Deus por ti se dispõe a perdoar
mil vezes, se mil errar,
num só dia o pecador.’)
(28) “Sola fusti, senlleyra,
en seer de Deus ama,
e ar sen companneyra
en valer quen te chama;
e per essa maneyra
jaz o demo na lama.”
(Cant. 90, v. 32-37)
(‘Foste a única, [criatura] singular,
em ser ama de Deus,
e também única
em valer quem te chama;
e, por esse motivo,
o demo jaz na lama.’)
Essa conjugação interna dos dois gêneros basilares da coletânea não deve ser
visto apenas como um eco ao procedimento global utilizado pelo autor, conforme
mostrado acima, em prestar louvor à sua Dama, narrando-Lhe os milagres provas
concretas de seu poder e misericórdia, mas ajudam a reforça-lo e a conferir-lhe
modulações diferenciadas, quais sejam, de concentração dos milagres em dois que
dizem respeito à diferença socioeconômica entre ricos e pobres, em 20; de remissão aos
milagres relatados até então, em 50; de tratamento de Maria como nossa Advogada, na
invocação que Lhe faz em prol da nossa salvação, em 80, e, finalmente, a defesa da
superioridade de Maria em relação aos demais intermediários entre nós e Deus, em 90.
Embora de menor fôlego, esse hibridismo não deixa de nos mostrar, tal como os
expedientes de maior monta, os dons publicitários do monarca no cumprimento de seu
papel de propagador do culto de Nossa Senhora e de doutrinamento dos cristãos.
Por fim, nos moldes desse mesmo critério de inter-relação entre louvor e
milagre, apontamos outra tática, de caráter modalizador, peculiar, no caso, às cantigas
de milagre, nas quais tem espaço fixo, já que se aloca nas primeiras estrofes, cuja
função é apresentar o milagre a ser relatado. Tal modalização se manifesta nas idéias,
sentimentos, opiniões do autor em relação à Virgem, no intuito de incitar os fiéis a
prestar-Lhe a preitesia merecida. Confirmam-nos isso exemplos como os seguintes:
(29) “
Fremosos miragres faz en que Deus
creamos,
e maravilhosos, por que o mais
temamos;
porend’ un daquestes é ben que vos
digamos,
dos mais piadosos.”
(Cant. 37, v. 6-9)
(‘
Milagres formosos [ela] faz, para que
creiamos em Deus,
e maravilhosos, para que o temamos
mais;
por isso, é bom que vos narremos um
deles,
que é dos mais piedosos.’)
(30)
E dest’ un m
iragre, se Deus m’
ampar,
mui fremoso, vos quer’ ora contar,
que quiso mui grand’ a Groriosa
mostrar;
oyde-mio, se ouçades prazer.”
(Cant. 52, v. 5-8)
(‘E a respeito disso, quero vos contar,
que Deus me ajude,
um milagre mui formoso e mui grande
que a Gloriosa operou;
ouvide-o de mim, se tiverdes prazer
em escuta-lo.’)
2.4 Conclusão
Em suas considerações a respeito da organização estrutural de um dos mais
ricos cancioneiros lírico-religiosos de que se tem notícia, Elvira Fidalgo resume, como
ninguém, o quadro delineado no presente capítulo, no qual tentamos mostrar quão longe
foi o rei D. Afonso, no território da publicidade, ao dar à sua obra um feitio
composicional tão simétrico, a partir da conjugação de tantas assimetrias:
Independentemente do critério escolhido, é evidente o desejo [de D. Afonso X]
de ordenação das composições com a intenção de elaborar uma obra acabada,
inclusive na sua globalidade, criando um cancioneiro que ultrapassa o
conceito de mero “deposito de textos poéticos”, e que é perfeito do ponto de
vista do que se entende por um livro. Estamos diante de “um cancioneiro
‘perfeito’ no sentido etimológico , que um cancioneiro que se
enquadra nessa categoria é “aquele que tem um princípio e um fim, marcados
respectivamente por uma rubrica-título que informações sobre o nome do
autor e o conteúdo do livro, e um epílogo que desempenha a função de
encerramento; no seu interior deve existir uma rede de conexões, seja do tipo
que for, que pode ser completada com um número de ordem”. (FIDALGO,
2002a, p. 71; tradução nossa)
14
Em sua divisão trinitária, as Cantigas não só revelam a sua organicidade interna,
como nos remetem a uma Trindade externa que, situada no plano da fé, nos foge à
compreensão. A propósito dessa tripartição
fundamentada nos números 10,
correspondente à configuração das células poemáticas que se sucedem em forma de um
rosário, e 100, equivalente às quatro centenas de cantigas que integram a parte nuclear
do cancioneiro
lembra-nos Montoya (1988, p. 44-45) que se trata de uma tradição
originada da literatura latina e mantida entre os medievais. O número 3, assim como 10
e 100, é considerado o símbolo da perfeição, o que nos faz entender melhor o cuidado, a
meticulosidade de D. Afonso em relação a eles.
De nossa parte, procuramos conduzir nossas investigações nessa dimensão, de
esquema composicional da obra, à luz do critério de sua caracterização genológica, que,
pelo que temos podido observar nos dias de hoje, constitui-se numa das fontes
exploradas com sucesso na produção do discurso publicitário. Esse sucesso,
acreditamos, foi, sem dúvida nenhuma, obtido pelo trovador da Virgem, que, alicerçado
em dois gêneros basilares laudatório e miraculístico conseguiu tecer uma trama
multifacetada, a partir de conjugações diferentes de seus fios-suporte, como da
incorporação de outros gêneros mais. Assim, instaurado como trovador de uma Dama
especial e, de certo modo, como porta-voz da própria Igreja, montou ele um verdadeiro
arsenal de armas com a finalidade de convencer a gente do medievo a prestigiar a figura
de Nossa Senhora. Para tanto, valeu-se de diferentes tipos de arma, dentre as quais, a
enumeração das qualidades de que era dotada, a referência à Sua misericórdia para com
Seus devotos e, de um modo particular, a revelação de seus poderes miraculosos, que o
levaram a compor 356 narrativas passíveis de comprovar o quanto assumira o Seu papel
de Advogada nossa junto a Deus.
Obviamente, esse número prodigioso nos leva a concluir que a estratégia
publicitária genológica de maior proeminência no cancioneiro mariano afonsino é a do
14
Qualquiera que fose o critério elixido, é evidente o desexo de ordenación das composicións côa
intención de elaborar unha obra acabada, incluso na a globalidade, creando un cancioneiro que
sobrepasa o concepto de mero “depósito de textos poéticos”, e que é perfecto desde o punto de vista do
libro. Estamos diante de “um cancioneiro ‘perfeito’ no sentido etimológico ”, xa que un cancioneiro
encadrable nesta categoría “é todo aquele que tem um princípio e um fim, marcados respectivamente por
uma rubrica-título que informa sobre o nome do autor e o conteúdo do livro, e um epílogo que
desempenha a função de encerramento; no seu interior deve existir uma rede de conexões seja de tipo que
relato das façanhas de Maria em prol dos fiéis que Nela buscavam socorro. Todavia,
pelo que pudemos observar e mostrar, essa pode ser uma conclusão que acaba
simplificando um quadro muito mais complexo do que se pode imaginar. Conforme
visto acima, os relatos de milagre configuram-se como instrumento (ou arma)
empregado por D. Afonso a serviço de um ideal mais elevado, que era o de prestar
vassalagem à sua “Sennor”, por Quem abandonara todas as outras donas. Esse
instrumento, vale dizer, é, por si só, de caráter miscigenado, uma vez que apresenta
ingredientes comuns a outros gêneros correntes na literatura medieval, dentre os quais, o
hagiográfico, o doutrinário e o “exemplar”. Daí a preocupação do monarca em
“agigantar” o poder miraculoso de Maria, assim se expressando a respeito dos milagres
(“exempla”) narrados:
“E dest’ un miragre, se Deus m’anpar,
mui fremoso vos quer’ ora contar,
que quiso mui grand a Groriosa mostrar;
oyde-mio, se ouçades prazer.”
(Cant. 52, v. 5-8)
for, que pode ser completada com um mero de ordem” (Citação de BREA, M. Dicionário da
literatura medieval).
Iluminura
3:
Cantiga de louvor nº 10, vinheta 1
3ROSA DAS ROSAS E FROR DAS FRORES,
DONA DAS DONAS, SENNOR DAS SENNORES”:
“ARTES PUBLICITÁRIAS” DE D. AFONSO X EM SUA AÇÃO
DESIGNATIVO-ATRIBUTIVA EM HONRA DA VIRGEM MARIA
Rosa de beldad’ e de parecer:
e Fror d’ alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.
(D. Afonso X,
Cantiga nº 10, versos 4-7)
3.1 Introdução
No capítulo anterior, pôde-se constatar o talento publicitário de D. Afonso
revelado no esquema estrutural em que procurou enquadrar os 427 poemas que compôs
com vistas a divulgar o culto à Virgem Maria. Num jogo de sucessão e incorporação de
dois “macrogêneros” laudatório e miraculístico, ele distribuiu e dispôs de tal modo os
seus cantares marianos, que acabou nos presenteando com uma obra trinitária em sua
composição e funcional na assimetria numérica verificada no uso dos dois gêneros, que
privilegiou as narrativas de milagre, de maior força argumentativa.
A par desse procedimento, de ordem estrutural, chama-nos a atenção um outro,
de dimensão diferente, que é o modo como o monarca se dirige e/ou faz referência à
Virgem Maria. Dentre um sem-número de possibilidades detectadas, releve-se aqui o
recurso a formas epitéticas, dentre as quais, a antonomásia, que, juntamente com outras
figuras que lhe são próximas, confere uma força retórica especial à interlocução
desenvolvida pelo autor (enunciador), ao se dirigir a Nossa Senhora (enunciatária
virtual), ou ao ouvinte/leitor (enunciatário real). Os exemplos abaixo arrolados nos
mostram, numa antecipação propositada, a variação a que está sujeito esse expediente
figurativo, que, em (1a). tem valor encomiástico, e, em (1b), bíblico:
15
(1) a- “
E desto vos quero contar
un gran miragre que mostrar
quis a Virgen que non á par,
na çidad’ de Pavia.
[...]
Un crerigo ouv’ i sabedor
de todo ben e servidor
desta groriosa Sennor
quanto mais ele podia.”
(Cant. 87, v. 5-8 e 10-13)
(‘
E a respeito disso vos quero contar
un grande milagre que a Virgem sem
igual
quis operar na cidade de Pavia.
[...]
Havia aí um clérigo conhecedor
de todo bem e servidor,
o quanto mais podia,
dessa gloriosa Senhora.’)
15
Alguns dos exemplos fornecidos nesta parte da análise, aparecem repetidos, com nova numeração, de
outros já vistos anteriormente.
b- “
Desto mostrou un miragre a que é
chamada Virga
de Jesse, na ssa eigreja que éste en
Vila-
Sirga.”
(Cant. 31, v. 7-8)
16
(‘A propósito disso, a que é chamada
Virgem de Jessé operou um milagre
na sua igreja situada em Vila-Sirga.’)
Relacionados com o processo de identificação, designação, referenciação
pessoais e com a linguagem figurada, procedimentos como esses, comuns no discurso
publicitário, são empregados por D. Afonso com intenções distintas, que, no final, se
afunilam numa principal, que é a de atrair adeptos para a sua causa.
No presente capítulo, buscamos nos concentrar nesse tipo de técnica adjetival
qualificadora, classificatória, modalizadora, identificatória, que D. Afonso sabe manejar
como ninguém, no intento de enaltecer a figura de Nossa Senhora, e, conseqüentemente,
captar a adesão de novos fiéis a um culto que ele tão bem sabia prestar.
Para um desenvolvimento mais orgânico do capítulo, procuramos observar o
seguinte roteiro, similar ao adotado no capítulo anterior, a saber: na seção subseqüente a
esta, apresentamos e discutimos as bases teóricas que subsidiaram a análise do corpus; a
seguir, procedemos à análise propriamente dita, levando em conta, num primeiro passo,
o perfil configuracional dos termos, expressões, orações, períodos e, no caso em
questão, até mesmo de estrofes e/ou cantigas inteiras, utilizados pelo autor como
epítetos, apostos ou antonomásias de força ilocutória, e, num segundo, o seu estatuto
semântico-pragmático, de intensa ligação intertextual com a Bíblia (Novo Testamento);
finalmente, na seção conclusiva, num balanço do que foi visto, pontuamos as armas
publicitárias que se mostraram preferidas pelo autor, na dimensão lingüístico-estilística
aqui considerada, buscando, na medida do possível, inferir as razões dessa preferência.
3.2 Considerações teóricas
3.2.1 Linguagem figurada e publicidade
Em seu trabalho a respeito do anúncio comercial, Maria Helena R. Campos
afirma que:
16
Aplicando o mesmo procedimento adotado nos capítulos anteriores, destacamos em negrito, itálico,
sublinhado, etc. (grifos) o material interno aos exemplos correspondentes aos fatos em exame.
A fim de melhor promover o produto, o anúncio passa da informação à
persuasão. A descrição das características objetivas do produto se anula
cedendo lugar a mecanismos de persuasão. Há, dessa forma, na estruturação
da mensagem, um deslocamento da ênfase do produto para o destinatário. O
anúncio se coloca do ponto de vista do receptor, visando a exercer sobre ele
um efeito persuasivo e obtendo, na maior parte das vezes, um consenso
emotivo. (CAMPOS, 1987, p. 49)
Todavia, no caso do tipo de texto aqui examinado, já se pôde perceber, o
envolvimento do autor com o “Objeto” de seu “fazer publicitário” é de tal monta que
pode não apenas ser visto, por si mesmo, como parte de seu arsenal propagandístico,
mas, também, como um exemplo vivo, concreto, para o público por ele incitado a
cultuar a Virgem Maria.
Esse envolvimento, que implica alto grau de subjetividade, nos é revelado de
várias maneiras, dentre as quais, se destacam a forma de tratamento que o rei confere à
sua Dama, nos inúmeros e variados tipos de interlocução (virtual) que procura
estabelecer com Ela e o modo como faz referência a Ela, nas interlocuções com o seu
público, ouvinte/ leitor, conforme mostrado abaixo:
(2) a- “Santa Maria,
Strela do dia,
mostra-nos via
pera Deus e nos guia.
(Cant. 100, refrão)
b- A Reynna groriosa tant’ é de
gran
santidade,
que con esto nos defende do dem’
e da sa mal dade.
(Cant. 67, refrão)
(‘Santa Maria,
Estrela do dia,
mostra-nos o caminho
para Deus e nos guia.)
(‘A Rainha gloriosa, é dotada de tal
santidade
que por isso nos defende do demônio e de
sua
maldade’)
Não obstante reconhecermos a pluralidade e a multifuncionalidade das
estratégias empregadas nesse território, por razões conhecidas, procuramos nos
concentrar aqui em duas delas, o epíteto e a antonomásia, que, embora diferentes quanto
ao grau de conexão sintática e semântica com o seu elemento referido, podem ser
caracterizadas, a nosso ver, como manifestações distintas de um mesmo processo de
identificação e distinção de pessoas e coisas.
Com base em lições de gramáticas de linha tradicional e funcionalista, bem
como em compêndios de estilística e retórica, procuramos definir, abaixo, algumas das
propriedades dessas construções, tão bem aproveitadas por D. Afonso X no seu trovar à
Virgem Maria.
3.2.2 Linguagem figurada: o epíteto e a antonomásias
3.2.2.1 Problemas de definição
As consultas que fizemos aos compêndios de retórica, de gramática e de teoria
da literatura confirmaram, no que tange a essas duas figuras, bem como outras próximas
a elas como a perífrase e ao aposto, a constatação geral de Moisés (1999, p. 502-503)
de que “ao longo dos séculos, nem sempre os teóricos concordam no tocante à distinção
entre umas [figuras de linguagem] e outros [tropos], e por vezes chegam a confundi-
las”.
No caso em pauta, uma evidência desse desencontro nos vem da própria
inclusão, ou não, do epíteto e da antonomásia, nas listagens de figuras e/ou tropos
apresentadas pelos autores, ou, então, por um mesmo autor. É o que acontece, por
exemplo, com Rocha Lima, que, na 12ª edição (1967) de sua Gramática normativa da
língua portuguesa, arrola o epíteto, mas desconsidera a antonomásia, procedendo de
maneira contrária, na sua 35ª edição, “retocada e enriquecida”, datada de 1998, na qual,
estuda a antonomásia, mas não faz nenhuma alusão ao epíteto. Na área da teoria da
literatura, mencione-se Moisés (1999), que apresenta, em seu Dicionário de termos
literários, um verbete especial para a antonomásia, mas sequer faz referência ao epíteto.
Mais perturbador, ainda, é o problema da definição dessas figuras. Autores
que a vêem como variante da metonímia; outros como da perífrase; outros, ainda,
como da sinédoque. Tavares (1968, p. 391) vai mais adiante, considerando-a como “um
caso especial de metonímia”, que “consiste na substituição de um nome próprio por uma
circunstância ou qualidade que a êle se refere intrinsecamente como um epíteto” (grifo
do autor). Esse tipo de definição de ordem semântica é, por sinal, o que predomina na
literatura, a par de outras que nos remetem ao efeito retórico produzido pelas figuras.
Assim é que, para Rocha Lima (1967, p. 564), epíteto “é o relêvo dado a uma qualidade
intrínseca do substantivo” (grifo nosso).
Diante desse quadro, poderíamos deduzir que tal nebulosidade adviria da má
compreensão dos dois processos por parte dos estudiosos, o que seria uma conclusão
apressada e injusta. De fato, a complexidade se deve aos processos em si, que não
envolvem aspectos de diferente natureza lexicais, formais, semânticos, pragmáticos,
retóricos, discursivos, etc., como um entrelaçamento entre si.
De nossa parte, tentamos diminuir a confusão, examinando, separadamente,
alguns dos fatores supracitados, procedendo, para tanto, a uma conjugação entre as
lições da Gramática Tradicional (de um modo particular, Rocha Lima, 1967 e 1998); e
da Gramática Funcionalista (em especial a Gramática de usos do português, de Maria
Helena de Moura Neves, 2000), que nos pareceram mais esclarecedoras da questão.
Comecemos pela caracterização formal.
3.2.2.2 Problemas de caracterização
Sem nenhuma preocupação (e obrigação) de esgotar o assunto, mas, de apenas
apresentar um esboço das propriedades básicas das figuras aqui consideradas,
procuramos, a seguir, determinar o seu perfil configuracional e alguns de seus valores
semânticos e discursivo-funcionais, passíveis de nos fazer compreender melhor o seu
efeito de sentido e de estilo. Para sanar a lacuna observada com a ausência desse tipo de
estudo nos compêndios especializados, ousamos faze-lo, mesmo que de um modo
provisório e breve, a partir das lições que nos são fornecidas por gramáticos de linha
tradicional, como, dentre outros, Rocha Lima (1967, 1998), Cunha e Cintra (2001),
Bechara (1999); por adeptos do Funcionalismo, como, por exemplo, Neves (2000),
Cunha, Oliveira e Martelotta (2003) e Aquino (2001); por por compêndios de teoria da
literatura, como os de Moisés (1999), Tavares (1968), bem como por manuais de
retórica, dentre os quais, os de Perelman e Tyteca (1996) e de Reboul (1998). Tal
iniciativa se justifica pelo fato de que a literatura específica é unânime em reconhecer a
natureza adjetival dessas figuras epíteto e antonomásia, diferenciando-as, conforme
visto acima, segundo critérios distintos, de cunho formal, semântico, discursivo, ou, por
seu efeito estilístico. O recurso indiscriminado a essas categorias, vale dizer, tem sido
um dos fatores que vêm contribuindo para gerar confusão entre os especialistas, que
costumam misturar os níveis de que se valem para defini-los a contento. Como reforço
aos enganos acima mencionados, lembre-se aqui, por exemplo, que estudiosos como
Cherubim (1989) chegam a identificar, sem a devida explicação, o epíteto com o
pleonasmo, com a ressalva de que o primeiro se situa na área do pensamento e o
segundo, na da língua.
Na qualidade de componentes de relações como a de identificação, designação,
modalização, etc., os adjetivos assumem, formalmente, em nossa língua, configurações
estruturais como as seguintes:
a- simples: Modificador + Modificado / Modificado + Modificador
Exemplos: (i) “O diabo malvado tentou a monja até convencê-la a fugir do convento
com o amante.” (Valor epitético)
(ii) “’Fio Maravilha virou música e até ganhou festivais.” (Valor
antonomástico)
b- composta: [Modificador + Modificador]
Exemplos: (i) “O diabo astuto e malvado conseguiu firmar um pacto com São
Teófilo.” (Valor epitético)
(ii) A desavergonhada, a ambiciosa levou tudo que eu tinha.” (Valor
antonomástico)
c- perifrástica: Modificador constituído de preposições como de/ em/ a/sem (seguida,
ou não, de nem) + substantivo + Modificado.
Exemplos: (i) “O pode até ser um bom jogador, mas é um cara sem-caráter.” (Valor
epitético)
(ii) “Com certeza, os sem-escrúpulo, um dia acabam levando a pior.
(Valor antonomástico)
d- oracional Modificador constituído de uma oração relacionada com algum termo
antecedente no texto, ou com alguém/algo conhecido do interlocutor.
Exemplos: (i) “O Ronaldo, que é mesmo um fenômeno, deu a volta por cima e está
brilhando na Itália.” (Valor epitético - apositivo)
(ii) “Se, de um lado, temos os que não sabem de nada, de outro, temos
os que sabem demais.” (Valor antonomástico)
e- multioracional – Modificador constituído de período ou parágrafo + Modificado
Exemplos: (i) “São Teófilo, que se mostrou tão ingênuo diante do diabo, que, por sua
vez, não é um ser confiável, arrependeu-se e foi pedir socorro à Virgem
Maria.”
(Seqüência epitética)
(ii) Os que pagam com o mal aos que lhes fazem bem acabam sendo
punidos pela própria vida.” (Seqüência antonomástica)
No que toca aos dois últimos tipos de configuração, correspondente às orações
relativas ou adjetivas, cumpre lembrar aqui a ocorrência, na nossa língua, de, pelo
menos, dois grandes tipos, desdobráveis, por sua vez, em outros: o das restritivas e o
das explicativas.
Diante do maior ou menor grau de “soldadura” que apresentam relativamente à oração
a que se ligam, os funcionalistas classificam as primeiras como subordinadas, e as
segundas como hipotáticas, à semelhança das adverbiais. Por seu turno, essa última
espécie, das explicativas, se desdobra em dois tipos distintos em sua conformação
estrutural: as que se associam a antecedentes referidos no texto ou identificáveis no
mundo externo explicativas propriamente ditas (“Wagner Moura, que não é de
jogar fora, anda brilhando no cinema e na televisão.”) e as que têm como antecedente
um elemento pronominal de acepção neutra explicativas associativas ou “sem
cabeça” (“O Lula fala demais, o que compromete a sua figura de Presidente.”)
No que toca aos valores semânticos das duas figuras, a Gramática Funcional,
aqui representada principalmente por Neves (2000), os adjetivos de um modo geral, em
dois grandes grupos: o dos qualificadores (ou qualificativos) e o dos classificadores. Os
primeiros indicam uma propriedade que não necessariamente compõe o feixe de traços
do elemento referente a que se ligam (“Ela é a mulher ideal para o meu filho.”), ao
passo que os últimos assumem tanto valores numéricos (“Esse capitalismo
multinacional fere a nossa própria identidade.”), como adverbiais (“Eu sempre optei por
matricular meus filhos em escolas próximas à nossa casa.”). Esses dois grupos, por sua
vez, se desdobram em outras espécies, abaixo arroladas e exemplificadas:
A- Adjetivos Qualificadores
a) De modalização (exprimem conhecimento ou opinião do falante)
Epistêmica De asseveração: “Estou certa de que o ‘Caso
Renan’ vai dar em pizza.”
De eventualidade: “È possível que eu
conhecer a Europa nas
próximas férias.”
Deôntica (exprimem consideração de necessidade, obrigatoriedade, por parte
do falante.)
Exemplo: “Para vencer, é necessário ter espírito de luta.”
b) De avaliação (exprimem propriedades do elemento Modificado).
Psicológica: “Que imagem fantástica esta da nossa casa em Betim!”
Intensional Eufórica: “Bonito, pra mim, é o Bruno Gagliasso.”
Disfórica: “Como é feia essa tal de Grazzi
Massafera!”
c) De atenuação (indicam abrandamento, redução da gravidade de algum fato
ou acontecimento, por parte do emissor)
Exemplo: “A relativa facilidade com que o pessoal de Governador Valadares
consegue entrar nos Estados Unidos ainda assusta qualquer um.”
d) De definição (de natureza quantitativa, referem-se ao modo ou à qualidade de
um estado de coisas.)
Exemplo: ‘Todos nós estamos sentindo este aumento brusco da temperatura
aqui em Belo Horizonte.”
B- Adjetivos Classificadores
Diferentemente dos adjetivos qualificadores, os classificadores expressos,
em geral, por meio de perífrases compostas de de + nome servem para determinar a
categoria a que pertencem o(s) elemento(s) que modificam, conforme ilustrado acima.
De caráter menos subjetivo que os primeiros, eles encerram aspectos semânticos,
funcionais e discursivos variados, dentre os quais, os de:
a) Valor numérico: “Trata-se de um instrumento monocórdio, muito usado na
Idade Média.”
b) Valor antroponímico (próprio de derivados de nomes próprios): “ Este,
sim, é que é o jetio machadiano de escrever.”
c) Valor híbrido ou adverbial (de delimitação ou circunscrição de seu
Modificado)
Nesse papel, de advérbio, os adjetivos se distribuem, basicamente, em três
grupos: o dos delimitadores (do domínio de extensão daquilo que é referido pelo nome,
do domínio do conhecimento, de um ponto de vista pessoal), o dos localizadores
(espacial e temporal) e o dos indiciadores (de idade, aspecto – pontual, durativo,
freqüentativo), conforme detalhado e exemplificado a seguir.
(i) Delimitadores
do domínio de extensão daquilo que é referido pelo nome
Exemplo: “O ofício literário não é para qualquer um.”
(ii) Localizadores
do espaço
absoluto
Exemplo: “As gafes do Bush e do Lula têm tido repercussão
internacional.”
de localização relativo
Exemplo: “A biblioteca da escola fica no andar superior.”
do tempo
endofórico: “E pensar que, no ano passado, eu ainda estava casada.”
exofórico “No inverno anterior ao deste ano, o comércio vendeu
muito
mais.”
(iii) Indiciadores
de quantidade de tempo decorrido
definida: “Quem nunca ouviu essa lenda milenar?
indefinida: “Até vovó, que é uma senhora idosa, está usando esmalte
vermelho.”
de aspecto: “Em seu silêncio habitual, ele acaba dizendo muito mais do
que
todos nós.”
Apesar do muito que o quadro acima exposto ficou a dever, permitiu, com a sua
organicidade e sistematização, que desenvolvêssemos com mais propriedade e garantia
uma análise que empreendemos a seguir do corpus aqui apreciado. A partir dele, assim
entendemos as duas estratégias aqui levadas em conta:
Epíteto elemento da linguagem figurativa que, de conformação estrutural simples,
conjugada, perifrástica ou oracional, assume, seja como qualificador, seja como
delimitador, valores semânticos distintos, que, suscetíveis de atuar como modalizadores,
codificam propriedades que o locutor/autor deseja atribuir ou salientar em relação ao
referente expresso por seu Modificado.
Antonomásia elemento da linguagem figurativa que, de conformação estrutural
simples ou complexa perifrástica, oracional ou multioracional
, substitui, seja como
qualificador, seja como delimitador, o nome de seu Modificado, identificando-o por
meio de atributos que, suscetíveis de atuar como modalizadores, o locutor/autor deseja
mostrar ou salientar em relação ao constituinte substituído.
3.3 O “fazer publicitário” de D. Afonso nas referências feitas à sua Dama
Antes de proceder à análise propriamente dita, cumpre-nos fazer algumas
observações. A primeira diz respeito ao corpus, que, se informou, consta das cem
primeiras cantigas que compõem o cancioneiro místico de D. Afonso X. Por sua vez, a
segunda tem a ver com comentários como o de abaixo, feito por Mettmann, na sua
edição publicada pela Editora Clásicos Castalia:
Todos os temas das cantigas de louvor afonsinas, todos os epítetos, imagens e
comparações têm precedentes ou paralelos na literatura mariana anterior e
contemporânea, em cujo tesouro o Rei e seus colaboradores podiam inspirar-
se sem seguir modelos específicos. (METTMANN, 1986, p. 14, tradução
nossa)
17
Contudo, pelo que pudemos observar, essa repetição não compromete o valor da obra
mariana do Rei Sábio, que, sem dúvida nenhuma, soube não apenas tratar o material
com a criatividade que lhe era própria, como, ainda, complementa-lo com ingredientes
inéditos. Finalmente, a terceira, interna às cantigas, concerne aos títulos conferidos a
Nossa Senhora pelo Seu trovador real, alguns dos quais, a nosso ver, aparecem no texto
já cristalizados como nomes próprios e não mais como antonomásias ou epítetos.
Assim, não computamos, dentre essas estratégias, formas como: “a Virgen”, “a
Sennor”, “Nossa Sennor”, que apresentam um status de SN antroponímico, sendo
tomadas como sinônimas anafóricas, ou não do nome próprio “Santa Maria”. Uma
das evidências desse uso pode ser encontrada nas diversas cantigas, dentre as quais, a de
número 96, em que, depois da primeira referência a Nossa Senhora por meio do
sintagma nominal (SN) “Santa Maria”, seguem-se três anáforas lexicais expressas pelo
SN “a Virgen”, na segunda, terceira, e décima quarta (última) estrofe:.
(3)
“Aquesto dig’ eu por Santa Maria,
a que muito pesa de quen folia
faz [...]
(‘Eu digo isso a respeito de Santa Maria,
a quem causa muito pesar os que cometem
pecado. [...]
17
Todos los temas de las cantigas de loor alfonsinas, todos os epítetos, imágenes y comparaciones tienen
antecedentes o paralelos em la literatura mariana anterior y contemporánea, en cuyo tesoro el Rey y sus
colaboradores podían inspirarse sin seguir modelos determinados.
Dest’ un miragre vos darei recado,
que a Virgen fez fremos’ e
preçado;
[...]
Esto foi dun ome que feit’ ouvera
prazer aa Virgen quant’ el podera
[...]
e os omees, pois viron tal preito,
aa Virgen deron poren gran loor.”
(Cant. 96, v. 6-8, 11-12;
A respeito disso, vos contarei um milagre,
formoso e importante, que a Virgem operou;
[...]
Es
se foi a favor de um homem que agradara
à Virgem o tanto que pôde;
[...]
e, depois que presenciaram tal tal fato,
os homens deram grandes louvores à
Virgem.’)
3.3.1 De epítetos e antonomásias referentes a Santa Maria
Na qualidade de “trovador” da Virgem, D. Afonso X assume, explícita e
metadiscursivamente, no seu Prólogo B, dois papéis-chave nos cantares que faz à sua
Dama do Céu: o de louvador e o de narrador de Seus milagres. Em ambos os casos, ele
revela a si próprio como um grande devoto de Maria, um servidor de sua “Suserana”,
valendo-se, dentre um sem-número de artifícios de natureza e efeitos de sentido
variados, da atribuição de títulos que deixam clara a sua missão publicitária, proselitista,
doutrinária e pedagógica. Com isso, o ouvinte/leitor passar diante de si, ao longo da
obra, uma ladainha mariana muito mais longa e diversificada que a utilizada em rituais
católicos. A “Nossa Senhora” de D. Afonso não é apenas “Virgem”, “Santa” ou “Madre
de Deus”; Ela é, sim, “a Strela Matutina”, “a Strela Guia”, a “Vencedora”, “A que
Nunca Erra”, “A Misericordiosa”, “A Nossa Advogada”, e tantas outras belezas mais.
Não satisfeito em enunciar os títulos, o rei-poeta os põe também na boca dos
personagens, beneficiados ou não, de suas narrativas de milagre. Daí a ocorrência de
passagens como as de abaixo, em que os socorridos por Maria assim se manifestam a
Ela ou a respeito Dela:
(4) a-
[...] “Ay, Virgen, tu que es escudo (‘Ai, Virgem, tu que sempre és
escudo
sempre dos coitados, queras que acorrudo dos sofredores, aceite me
socorrer.’)
seja por ti [...]”
(Cant. 37, v. 26-28)
b- “[...]
ca sei que Santa Mari’ , en que todo ben jaz, (‘pois sei que Santa
Maria,
vos guardou. [...]” . dotada de todo o bem,
vos
(Cant. 64, v. 93-94) protegeu.’)
c- “
O cavaleiro disse: «Sennor, Madre de Deus, (‘O cavaleiro disse:
‘Senhora,
tu es a mais fremosa cousa que estes meus tu és a coisa mais
formosa que
ollos nunca viron; poren seja eu dos teus esses meus olhos já
viram; por
servos que tu amas, e quer' a outra leixar.» isso, que ser um dos
servos que
( Cant. 16, v. 70-74) tu amas, e que quer a outra
abandonar.’)
A seguir, procedemos à análise formal, semântica e discursivo-funcional dos
dois tipos de figura de linguagem mais explorados por D. Afonso como forma de
tratamento ou de referência a Nossa Senhora.
3.3.1.1 Estatuto configuracional
Como era de esperar, encontramos nas Cantigas todos os tipos formais
arrolados na parte de discussão teórica, relativa, no caso à classe dos adjetivos.
Confirma-nos isso o material abaixo, exposto em forma de esquema:
18
(5) Estruturas simples
a- Epitética (apositiva):
“[...] achou un' ermida que estava senlleira (‘[...] achou, isolada, uma ermida
u dizian missa ben de mui gran maneira onde estava sendo celebrada uma
missa
de Santa Maria, a Virgen preciosa.” solene, em honra de Santa
Maria, a
(Cant. 78, v. 48) Virgem preciosa.’)
b- Antonomástica:
Quen dona fremosa e bõa quiser amar, (‘Quem quiser amar uma
mulher
am’a Groriosa e non poderá errar. formosa e boa, ame a Gloriosa,
(Cant. 16, refrão) que, assim, não se enganará.’)
(6) Estruturas compostas
a- Epitéticas:
18
As paráfrases aqui apresentadas se restringem aos casos de interpretação menos óbvia.
(i)
“Porque é Santa Maria leal e mui verdadeira, (‘Como Santa Maria é
muito
poren muito ll’ avorrece da paravla mentireira” leal e verdadeira,a
mentira
(Cant. 43, refrão) muito a entristece.’)
(ii) “Quen dona fremosa e bõa quiser amar...”
( Cantiga 16, v. 70-74)
b- Antonomásticas:
(i) “Deus te salve, groriosa (‘Deus te salve, gloriosa
Reyna Maria, Rainha Maria,
Lume dos Santos fremosa Lume dos Santos, formosa,
e dos Ceos Via.” e caminho para o Céu.’)
(Cant. 40, refrão)
(ii) “
Quando esto ouve dito, logo a Madre Espirital
resurgi-o dela.”
(Cant. 76, v. 32)
(7) Estruturas perifrásticas
a- Epitéticas:
(i)
“Aa Virgen groriosa,
Madre de Deus, piadosa, (Adjunto Adnominal)
porque sempr’ é poderosa
d’ acorrer aos coitados.” (Complemento Nominal Oracional)
(Cant. 83, v. 70-73)
(ii) “ESTA É COMO O CAVALEIRO QUE PERDERA SEU AÇOR FOY-O
PEDIR A SANTA MARIA DE SALAS; E ESTANDO NA EIGREJA,
POSOU-LLE NA MÃO.” (Cant. 44, EMENTA) – Locativa
(‘ESTA CONTA COMO O CAVALEIRO QUE PERDERA O SEU AÇOR
FOI PEDI-LO DE VOLTA À SANTA MARIA DE SALAS, E, QUANDO
ESTAVA NA IGREJA, [O AÇOR] POUSOU-LHE NA MÃO.’)
b- Antonomásticas:
(i) “E daquest’ un gran miragre vos quer’ eu ora contar
que a Reinna do Ceo / quis en Toledo mostrar.”
(Cant. 11, versos 6-7)
(ii) “Non devemos por maravilla ter
d’ a Madre do Vencedor sempre vencer.
(Cant. 27; refrão)
(8) Estruturas mono-oracionais
a- Epitéticas:
(i)
“Este [o monge] sabia leer (‘Este sabia ler
pouco com’ oy contar, pouco, conforme ouvi contar,
mas sabia ben querer mas queria muito bem
a Virgen que non á par.” à Virgem sem igual.’)
(Cant. 56, v. 17-20)
(ii) “A Virgen que é de bon prez.” (‘A Virgem que tem muito valor.’)
(Cant. 92, v. 49.)
b- Antonomásticas
(i) “ E mais vos rogamos (‘E mais vos rogamos
que, sse vos prazia, que, se vos prouver,
hua semellança que, de lá [Jerusalém], recebamos
que dalá vejamos da que sempre guia uma imagem daquela que sempre
guia
os seus sen errança.” os seus, sem falta.’)
(Cant. 9, v.37-41)
(ii)
“Via, via (‘Venham, venham
o gran miragre catar ver o grande milagre
que fez a que nos guia.” operado por aquela que nos
guia.’)
(Cant. v. 67-69)
(9) Estruturas multioracionais
a- Epitéticas:
(i) “E a Santa Virgen, en que ss’ el ensserrou, (‘E devemos amar muito a Santa
de que prendeu carne e por madre fillou, Virgem, em quem ele se
encerrou,
muit’ amar devemos [...]” em quem ele se encarnou e
tomou
(Cant. 50, v. 30-32) por mãe.’)
(ii) “Senon a esta, que é Sennor Espirital, (‘Senão a esta, que é Senhora
que vos pode ben guardar de posfaz e de mal.” Espiritual, que vos pode tão
bem
(Cant. 64, v. 41-41) livrar da maledicência e do
mal.’)
b- Antonomásticas:
(i) “Vencer dev’ a Madre daquel que deitou (‘A Mãe daquele que
arremessou
Locifer do Ceo, e depois britou Lúcifer do Céu e depois
o infern’ e os santos dele sacou.” destruiu o inferno, tirando
os
(Cant. 27, v. 5-7) santos de lá.’)
(ii) “Na que Deus seu Sant’ Esperit’ enviou, (‘Aquela a que Deus enviou
seu
e que forma d’ ome en ela fillou, Espírito Santo e nela se
encarnou
non é maravilla se del gaannou não é de admirar que dele
tenha
vertude per que podess’ esto comprir.” recebido a graça para que
isso se
(Cant. 21; v. 5-8) cumprisse.’)
Como era de supor, essa tipologia de ordem formal é enriquecida pelo rei-autor
com variações de padrões como os de acima e com a criação de outros, mais ou menos
complexos e sofisticados, conforme veremos a seguir.
A- Variações e Criações
(10) Estruturas simples
a- Epitética (com Modificador interno):
“Pois viu que lle non prestava nulla meezinha, (‘Depois que viu que
nenhum
tornou-ss’ a Santa Maria, a nobre Reynna.” remédio o curava,
procurou
(Cant. 77, v. 15-16) Santa Maria, a nobre
Rainha.’)
b- Antonomástica (relacionada com outra antonomásia)
“[...] mais amava Jesu-Christo e a ssa Madre, a Rea.”
(Cant. 75, v. 20)
(11) Estruturas perifrásticas
a- Epitéticas
(i) Com Modificador expresso por preposição + substantivo adjetivado:
Sola fuisti, senlleira, (‘Virgem, ficaste sozinha,
solitária,
Virgen, sen companneira sem companheira.’)
(Cant. 90, refrão)
(ii) Com Modificador comparativo:
“Mas non quis a Virgen, das outras melhor. (‘Mas não o quis a Virgem,
melhor
(Cant. 96, v. 54) que as outras mulheres.’)
b- Antonomásticas
(i) Com Preposição + [Advérbio Intensificador + Adjetivo] + Substantivo
“A do mui bon talan” (Cant. 3, v. 12)
(ii) Com [Preposição + Substantivo] + Adjetivo intensificador
“A
de ben comprida” (Cant. 75, v. 173)
(12)
Estruturas mono-oracionais
Antonomásticas:
(i) Com verbo não-ativo: “Da que non á par.” (Cant. 26, v. 86)
(ii) Com verbo ativo: “Da que sempre guia os seus sen errança.” (Cant. 9, v. 40-
41)
(13) Estruturas multioracionais
a- De constituição homogênea
(i) Epitética + Epitética
“Mas que fez Santa Maria, a Sennor de gran vertude
que dá aos mortos vida e a enfermos saúde?
(Cant. 45, v. 65-66)
(ii) Antonomástica + Antonomástica
(ii.i) Por coordenação:
“Mas a que non erra d’acoller a seus amigos nen lles porta serra [...]”
(Cant. 95, v. 43-44)
(ii.ii) Por encaixamento:
Non é gran cousa [se sabe [bon joyzo dar]
a Madre do [que o mundo tod’ á de jolgar.]]”
(Cant. 26, refrão)
(ii.iii) Por retomada anafórica pronominal da oração antonomástica
A madre do que livrou (‘A mãe daquele que livrou
dos leões Daniel, Daniel dos leões
essa do fogo guardou essa livrou do fogo
un meno d’Irrael”. um menino judeu.’)
(Cantiga 4; refrão)
“Ca de lume á gran poder (‘Pois tem grande poder de dar a luz
a que o lum’ en si trager aquela que trouxe a luz em si
foi [...]
E esta Virgen santa deu Assim, essa Virgem santa deu
pois o lume a un crerigo seu.” a luz a um devoto seu.’)
(Cant. 92, v.9-10)
b- De constituição heterogênea
(i) Antonomástica + Epitética
(i.i) “D’est’ un miragre mostrar
en ’ abadia quis a Reynna sen par,
santa, que nos guia.”
(Cant. 94; v. 13-16)
(i.ii) “Poren a mui comprida (‘Por isso, a mais perfeita
Rea das outras reas, Rainha dentre todas as outras rainhas,
acorredor das mesquinnas [...]” socorro das sofredoras [...]’)
(Cant. 89, v. 32-34)
(14) Estruturas multioracionais integradas por outros tipos de sentença
a- Antonomásia + Oração Causal + Completiva Nominal
“[...]
e muitos loores dados
Aa Virgen groriosa,
Madre de Deus piadosa,,
[porque sempr’ é poderosa
[d’ acorrer aos coitados.] ]”
(Cant. 83, v. 69-73)
(‘[...]
e dados muito louvores
à Virgem gloriosa,
Mãe de Deus, piedosa,
porque sempre tem o poder
de socorrer os coitados.’)
(15) Estruturas descontínuas por inserção de material lingüístico variado
a-
Epitéticas
“E desto vos quer' eu ora contar, segund' a letra diz, (‘E a respeito disso vos quero
agora
un mui gran miragre que fazer quis pola Enperadriz contar, conforme achei escrito,
de Roma, segund' eu contar oý, per nome Beatriz, um grande milagre, do qual fiz
este
Santa Maria, a Madre de Deus, [ond' este cantar fiz], cantar, que fez, em favor da
Impera-
que a guardou do mundo, que lle foi mal joyz, triz de Roma, chamada Beatriz,
e do demo que, por tentar, a cuydou vencer.” segundo ouvi contar, Santa
Maria,
(Cant. 5, v. 5-10) a Mãe de Deus, que a livrou do
mundo, que dela foi mau juiz,
e do demônio, que, ao tentá-la,
julgou que podia vence-la.’)
b- Antonomásticas
(i) “Des oge mais quer’ eu trobar
pola Sennor onrrada,
[en que Deus quis carne fillar]
beyta e sagrada [...]”
(Cant. 1, versos 3-6)
(ii) “E u o viu seu millo debullar (‘E quando o viu na eira,
debulhando
na eira, mandou-lle lançadas dar; o seu milho, mandou golpeá-lo
com
mas el começou a Madr [a chamar] lanças, mas ele começou [a
chamar]
do que na cruz mataron os judeus.” pela Mãe daquele que os judeus
(Cant.22, v. 15-18) mataram na cruz.’)
(16) Estruturas descontínuas interestróficas
“[...] lle diss' ha voz que chamasse
de coraçon e rogasse
a santivigada
a benaventurada
{A Madre de Deus onrrada...}
Madre de Deus {con rogo},
que é cha de gran vertude.”
(Cant. 89, v. 41- 44)
Como fecho a essa variedade de ocorrências e a outras mais presentes em todos
os cantares de D. Afonso com vistas a reverenciar a sua Dama, chamaram-nos especial
atenção as formas antonomásticas exploradas em duas cantigas integrantes do corpus,
que, enfeixando outros tipos de expressão figurada, se vêem reforçadas pelo tanto que
são repetidas. Uma delas é a Cantiga de Louvor 10, tão bem analisada pela Prof.ª
Ângela Vaz Leão (2007), cujo refrão apresenta uma série gradativa e hiperbólica de
quatro antonomásias metafóricas, caracterizadas como de superlativo blico, que são
retomadas e desenvolvidas, uma por uma, na primeira estrofe que o sucede:
(17) “
[ [Rosa das rosas] e [fror das frores],
[Dona das donas] , [Sennor das Sennores.] ]
Rosa de beldad’ e de parecer
e Fror d’alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.”
( Cant. 10, refrão e versos 4-7)
Outra é a Cantiga de Milagre 41, que narra como Santa Maria curou um
cambista, de nome Garin, que enlouquecera com o pavor que lhe causava o demônio.
De certa forma, esse estado de loucura se reflete na repetição contínua do primeiro
verso do refrão, que, antonomástico e constituído de um aposto, intercepta, qual novo
refrão, os dois primeiros versos das três estrofes do poema, de que apresentamos
abaixo, um fragmento devidamente representativo:
(18)
A Virgen, Madre de Nostro
Sennor,
('A Virgem, Mãe de Nosso Senhor,
pode muito bem devolver o juízo
ben pode dar seu siso
ao sandeu, pois ao pecador
faz aver Parayso.
En Seixons fez a Garin cambiador
A Virgen, Madre de Nostro Sennor,
Que tant’ ouve de o tirar sabor
A Virgen, Madre de Nostro Sennor
do poder do demo, ca de pavor
del perdera o siso;
mas ela tolleu-ll’ aquesta door
e deu-lle Parayso.
A Virgen, Madre de Nostro
Sennor...”
(Cant. 41, refrão e v. 6-14)
ao insano, pois faz que o pecador
alcance o Paraíso.
Em Seixon fez isso com um cambista,
Garin,
A Virgem, Mãe de Nosso Senhor,
e teve o maior prazer de livra-lo
A Virgem, Mãe de Nosso Senhor,
do poder do demônio, pois de pavor
dele enlouquecera;
mas ela curou-o dessa doença
e concedeu-lhe o Paraíso.
A Virgem, Mãe de Nosso Senhor...”
Na esperança de que a descrição do perfil estrutural de algumas das ocorrências
de epítetos e antonomásias, apresentada nesta seção, tenha fornecido, pelo menos, uma
idéia da riqueza lingüística do cancioneiro aqui examinado e da versatilidade do seu
autor, procuramos, a seguir, investigar aspectos de seu perfil semântico e discursivo-
funcional.
3.3.1.2 Estatuto semântico-funcional
De caráter mais, ou menos, subjetivo, os epítetos e antonomásias utilizados por
D. Afonso como referência e/ou reverência à sua Dama do Céu nos remetem a uma
situação similar à de seu estatuto formal, acima descrito, em que se observam diversos
tipos de interseção que envolvem as duas figuras, seja na relação de uma com a outra,
seja na relação de cada uma delas, ou de ambas, com outras espécies diversificadas.
No intuito de distinguir com a maior certeza possível os valores semânticos e as
funções comunicativas que lhe são atribuídas no contexto de um discurso publicitário de
cunho religioso, produzido em linguagem poética, buscamos desenvolver a análise
desses elementos estilísticos de força retórica, tomando como ponto de referência o
mesmo caminho teórico seguido acima, no qual procuramos conjugar lições da
Gramática Tradicional e do Funcionalismo, relativas às formas adjetivais.
A- Designações Qualificadoras
Nesta função, encontramos termos, expressões, orações e períodos epitéticos e
antonomásticos portadores de maior carga de subjetividade, uma vez que implicam
maior envolvimento do rei-poeta com a sua “Sennor”, caracterizada, no plano da ação
enunciativa, ora como interlocutora, ora como ser referido:
(19) a- “
Deus te salve groriosa (‘Deus te salve, gloriosa
Reyna Maria, Lume dos Santos fremosa Rainha Maria, Lume dos Santos,
formosa,
e dos Ceos Via. e caminho para o Céu.)
(Cant. 40, refrão)
b-
“Toda a noite ardeu a perfia (‘Durante toda a noite o fogo ali
ardeu
ali o fog’ e queimou quant’ avia sem parar e queimou tudo quanto
havia
na eigreja, mas non foi u siia na igreja, mas não chegou até onde
jazia
a omagem da que foi Virgen pura.” a imagem daquela que foi Virgem
pura.’)
(Cant. 39, v. 10-13)
Essa função, se pôde ver, abarca tipos variados de atributos, a que o autor
confere maior ou menor grau de intensidade, por meio de recursos lingüísticos
diferenciados. Nas Cantigas, eles se distribuem em duas grandes espécies: a dos
modalizadores, que nos desvelam as emoções, as crenças, o conhecimento do autor, e a
dos avaliativos, que nos mostram os valores que ele atribui ao referente (no caso, Nossa
Senhora). Exemplos:
(20)
“Entonçe se tornou logo aa choça u leixara
a vella, e viu a Virgen tan fremosa e tan crara.” (Cant. 75, v. 133-134)
(21) “Par Deus,tal sennor mui val
que toda door toll’ e mal.(Cant. 81, refrão)
19
Num segundo nível de desdobramento semântico e discursivo-funcional,
encontramos, no que tange aos modalizadores, duas classes distintas: a dos epítetos e
antonomásias epistêmicos, que exprimem conhecimento ou opinião do autor, e a dos
deônticos, que, situados, de um modo geral, nos refrães, expressam consideração, por
parte do locutor/autor, de necessidade, obrigatoriedade, conforme ilustrado a seguir:
19
No caso, o sentido de ‘garantia’, de ‘certeza’, é expresso pela locução interjetiva “Par Deus” e
reforçado pela última oração, passível de ser interpretada como relativa, explicativa e conclusiva.
(22
) “E o que quero é dizer loor
da Virgen, Madre de Nostro Sennor,
Santa Maria, que est’ a mellor
cousa que el fez [...](Prólogo B, v.15-18)
(23)
Quen dona fremosa e bõa quiser amar,
am’ a Groriosa e non poderá errar.” (Cant. 16, refrão)
Quanto à classe dos avaliativos, registram-se ocorrências de dois tipos básicos:
o dos avaliativos psicológicos, que exprimem propriedades do referente, em sua relação
com o autor, e o dos intensionais que, como não podia deixar de ser, se caracterizam
como eufóricos, indiciando os aspectos positivos da figura de Nossa Senhora. Os dados
exibidos abaixo constituem, respectivamente, exemplos desses subgrupos:
(24)
Non é gran cousa se sabe bon joyzo dar (Não é de admirar que saiba
nos dar
a Madre do que do mundo tod’ á de joigar.” juízo a Mãe daquele que há de
julgar
(Cant. 26, refrão) o mundo todo.’)
(25)
A Reynna groriosa tant’ é de gran santidade, (‘A Rainha gloriosa tem
tamanha
que con esto nos defende do dem’ e da sa maldade.
santidade
(Cant. 67, refrão) que com isso nos
defende do
demônio e de sua
maldade.’)
Tomada, aqui, como modelar, essa taxonomia das formas qualificadoras
apresenta uma variação que compreende dados de natureza diferenciada, dentre os
quais, os históricos, os teológicos, os intrínsecos aos Santos, os peculiares à e de
Deus, os relativos à Advogada dos homens junto aos Céus, etc., conforme se ve
depois do estudo da classe de epítetos e antonomásias caracterizados como
classificadores.
B- Designações Classificadoras
Não obstante apresentarem um valor mesclado de qualificação positiva da figura
de Maria, os termos, expressões, orações e períodos classificadores formam uma classe
à parte, devido à sua função primordial, de delimitação. Uma delas, conferida, no plano
da fé, pelos “coitados”, é a de Advogada nossa. Como tal, Nossa Senhora tem
delimitados alguns papéis típicos dessa missão, tais como, o de rogadora, defensora,
auxiliadora, protetora, guia, etc. Como exemplos, arrolamos os seguintes:
(26) Na qualidade de Advogada
a-
“[...] e poren nos dev’ ajudar, (‘E por isso [Santa Maria] deve
ajudar-nos,
ca x’ é nossa’ avogada.” pois é nossa advogada.’)
(Cant. 1, v. 81-82)
b- “
Sempre seja beita e loada (‘Bendita e louvada seja sempre
Santa Maria, a nossa advogada.” Santa Maria, a nossa
advogada.’)
(Cant. 17, refrão)
c-Muit’ amor devemos en nossas voontades (‘Muito amor devemos, por
vontade
a Sennor, que coitas nos toll’ e tempestades.” própria,
(Cant. 36, refrão) à Senhora, que nos livra do
sofrimen-
to e das calamidades.’)
d- “E porend’ un miragre vos quero dizer ora (‘E por isso vos quero contar,
que fez Santa Maria, a que nunca demora agora, um milagre operado
por
a buscar-nos carreiras que non fiquemos fora Santa Maria, a que nunca se
detém
do reyno de seu Fillo, mais per que y entremos.” em arranjar os meios para
que não
fiquemos fora do reino de
seu Filho,
mas nele entremos.’)
Outro tipo de delimitação encontrado nas Cantigas é o que serve para conferir-
lhe um título locativo, que remonta aos santuários, igrejas, capelas, ermidas, etc.
construídas em Sua homenagem procedimento que, lembrado na Introdução, persiste
até os dias de hoje. No cancioneiro afonsino, esse tipo de designação ocupa um lugar
mais ou menos fixo, qual seja, no interior das EMENTAS, chegando, por vezes, a ter o
local incorporado ao seu nome o que faz de todo o sintagama um antropônimo.
Exemplos:
(27) Na qualidade de Padroeira de santuários, igrejas, capelas, etc.
a- ESTA É COMO O CAVALEIRO QUE PERDERA SEU AÇOR FOY-O
PEDIR A SANTA MARIA DE SALAS; E ESTANDO NA EIGREJA,
POSOU-LLE NA MÃO.” (Cant. 44, EMENTA)
b-
“COMO HŨA MOLLER QUIS ENTRAR EM SANTA MARIA DE
VALVERDE E NON PUDE ABRIR AS PORTAS ATEN QUE SE
MANIFESTOU.”
(Cant. 98, EMENTA)
c- “E desto Santa Maria
de Sopetran fez un dia
miragr’ en Andaluzia.”
20
(Cant. 83, v. 10-12)
De ordem diferente são os delimitadores que, a nosso ver, se manifestam no
grupo dos qualificativos, restringindo as designações ou atributos de Nossa Senhora a
uma determinada categoria. Explicando melhor, D. Afonso se refere à sua Dama, a
partir de algum dos títulos que Lhe são atribuídos, ou do status que a Igreja Lhe
conferiu, tais como: Rainha, Mãe de Deus, Santa, Virgem, etc. Dentre os vários tipos de
ocorrência dessa natureza, mencionem-se, aqui, os seguintes:
(28) a- “
Chorando dos olhos seus (‘Chorando muito, de derramar
lágrimas,
muito, [Theophilo] foy perdon pedir, [Teófilo] foi pedir perdão,
u vyu da Madre de Deus quando viu a imagem da Mãe de
Deus.’)
a omagen [...]
(Cant. 3, v. 34-37)
b- “
Porende vos contarey (‘A respeito disso vos contarei
un miragre que achei um milagre que encontrei,
que por hũa badessa que a Mãe do grande Rei
fez a Madre do gran Rei.” fez em favor de uma
abadessa.’)
(Cant. 7, v. 9-12)
(29) a- “
Quen dona fremosa e boa quiser amar, (‘Quem quiser amar uma dona
formosa e boa
am’a Groriosa e non poderá errar. ame a Gloriosa e não errará.’)
(Cant. 16, refrão)
b-
Tanto son da Groriosa seus feitos mui (‘Os feitos da Gloriosa o tão
compassivos,
piadosos, que [Ela] tira dos que têm muito, e
dá aos
que fill’ aos que an muyto e dá aos que têm pouco.’)
20
Trata-se da abadia de Sopetrán, que fica perto de Hita.
menguados.”
(Cant. 48, refrão)
Paralelamente a esse quadro de base, aqui esboçado, encontramos não outras
formas utilizadas pelo rei com vistas a identificar, nomear, enaltecer Nossa Senhora,
“ontre as outras molleres beita” (Cant. 80, v. 14-15), como um sem-número de
variantes de algumas delas e/ou coocorrência de umas juntamente a outras. É o que
procuramos mostrar a seguir.
C- Designações Modulantes
Quando levamos em conta os títulos oficiais, ou, então, enquadrados em outros
campos semânticos, podemos comprovar, de um modo incontestável, a versatilidade de
D. Afonso X, tanto em sua missão de trovador, como em seu papel de agente
publicitário de Santa Maria, versatilidade essa manifestada em forma de variantes
parafrásticas e/ou de seqüência de epítetos e/ou antonomásias. Em decorrência disso,
temos, diante de nós, uma extensão do quadro distributivo global acima apresentado, em
que temos, de um lado, os títulos de caráter oficial a Ela atribuídos, e, de outro, os de
caráter extra-oficial, originados da camada popular ou de pessoas individuais.
a- Reminiscentes da tradição
Nesta sub-seção, cumpre-nos examinar a primeira espécie de extensão
terminológica, que nos põe diante de uma Nossa Senhora vista como Ser Bíblico, e
como Ser da Igreja. No primeiro caso, a grande fonte documental fundadora é a Bíblia,
de um modo particular, o “Evangelho de São Lucas (Novo Testamento), que, seguido de
perto por São Mateus, nos fornece maiores informações acerca da vida de Maria entre
nós, conforme reconhece o próprio D. Afonso, na penúltima estrofe da Cantiga nº 59:
(30)
“Do grand’ erro que [uma monja] quisera (‘Do grande pecado que quisera
fazer, mais que non quis Deus cometer, mas que não o permitiram
nena sa Madre, que fera- nem Deus, nem sua Mãe, que procura
mente quer guarda-los seus, guardar os seus com veemência,
segun Lucas e Matheus segundo escreveram Lucas, Mateus
e os outros escrivir e os outros.
foron [...]”
(Cant. 59, v. 89-94)
No segundo, os documentos fundantes são os que se referem aos dogmas
prescritos pela Igreja, em diferentes Concílios, realizados em diferentes espaços e
épocas, bem como a remissões a passagens blicas, bem como a festas e práticas
ritualistíscas (jubileus, procissões, orações, etc.), previstas em sua liturgia.
Como Ser-Bíblico, a par de Cantigas como 1, 40 e 403, que nos relembram as
alegrias e as dores vividas por Maria, durante a Sua vida na Terra, D. Afonso se refere a
Ela ora como “Mãe de Deus” ou “Mãe de Jesus Salvador”, ora como “Membro da casa
do rei Davi”, “Descendente do Ramo de Jessé”, ou “Prima de Santa Isabel”, ora como
“Reminiscente de Jesus na Terra” (cidade de Monte Sião), depois de Sua Ascensão aos
Céus. Como exemplos, mencionem-se os seguintes:
(31) Maria como “Mãe de Deus / de Jesus
a- “
Mui gran poder á a Madre de Deus
de deffender e ampara-los seus.”
(Cant. 22, refrão)
b- “
E por aquest’ un miragre vos direi, de que sabor
averedes poy-l’ oirdes, que fez en Rocamador
a Virgen Santa Maria, Madre de Nostro Sennor”
(Cant. 8, v. 7-9)
(32) Maria como membro “Descendente da Casa de Davi”
A que do bon rey Davi
de seu linnage decende,
nembra-lle, creed’ a mi,
de quen por ela mal prende.
(Cant. 6, refrão)
“Aquela que descende
da linhagem do bom rei Davi,
não se esquece, crede em mim,
de quem por Ela sofre algum mal.”
(33) Maria como membro “Descendente do Ramo de Jessé”
Virga de Jesse,
quem te soubesse
loar como mereces [...]”
(Cant. 20, refrão)
(34) Maria como “prima de Santa Isabel”
u viu a preto do altar seendo
a Virgen, d’ Elisabet coirmã.”
(Cant. 69, v. 87-88)
(35) Maria como “Moradora na Comunidade de Sião”
“Os Apóstolos log’ a Monte Syon
foron, u a Virgen morava enton
Santa Maria [...]”
(Cant. 27, v. 35-37)
21
Por seu turno, como Ser-da-Igreja, mostrado, com maior fôlego pelo autor, no
conjunto de cantigas de festas que dão fecho à coletânea, Maria é reverenciada por ele,
por intermédio de duas ações basilares, expressas, no caso, em forma de epítetos e de
antonomásias, aqui em estudo: a do acatamento e propagação dos diferentes dogmas
promulgados pela Igreja a Seu favor, e a referência aos ritos promovidos pela Igreja em
Sua homenagem. Dos primeiros, registram-se, em poemas variados, de uma forma
direta ou indireta, o da Sua concepção sem pecado original (Bula Ineffabilis Deus,
promulgada pelo Papa Pio IX, no dia 8 de dezembro de 1854), o da Sua maternidade
divina (proclamada no Concílio de Éfeso, 431 d.C, com o aval do Papa Celestino I), o
da Sua virgindade (oficializada juntamente com o Seu título de “Imaculada Conceição”,
pelo Papa Pio IX, supracitado), o da Sua Assunção aos Céus; o da Sua coroação como
Rainha do Céu e da Terra. Nas passagens abaixo, encontram-se referências a toda essa
titulação de cunho dogmático:
(36) Maria como Ser Concebido sem Pecado (Imaculada Conceição):
a-
“Toda a noite ardeu a perfia (‘Durante toda a noite o fogo ali
ardeu
ali o fog’ e queimou quant’ avia sem parar e queimou tudo quanto
havia
na eigreja, mas non foi u siia na igreja, mas não chegou até onde
jazia
a omagem da que foi Virgen pura.” a imagem daquela que foi Virgem
pura.’)
(Cant. 39, v. 10-13; repetição de 19b)
b- “
Onde direi un miragre que en Englaterra (‘Pelo que contarei um milagre que
demonstrou Santa Maria, a que nunca erra Santa Maria, a que nunca comete
pecados operou na Inglaterra.’))
[...]”
(Cant. 85, v. 8-9)
(37) Maria como Virgem (pura, Santa)
a-
“Toda a noite ardeu a perfia (‘Durante toda a noite o fogo ali
ardeu
21
Em sub-seção posterior a esta, são apresentadas algumas variantes portadoras de outras informações
bíblicas.
ali o fog’ e queimou quant’ avia sem parar e queimou tudo quanto
havia
na eigreja, mas non foi u siia na igreja, mas não chegou até onde
jazia
a omagem da que foi Virgen pura.” a imagem daquela que foi Virgem
pura.’)
(Cant. 39, v. 10-13; excerto repetido de 19b)
b-
“E desto vos quero contar (‘E a respeito disso, vos quero contar
un gran miragre que mostrar um grande milagre que a Virgem
sem par
quis a Virgen que non á par operou na cidade de Pávia.’)
na çidad’ de Pavia.”
(Cant. 87, v. 5-8)
(38) Maria como Ser Elevado aos Céus (Assunção)
a- “Disso Maestro Bernaldo: ‘Esto mui gran dereit’ é
de vos nenbrar das relicas da Virgen que con Deus ssé [...]
(Cant. 36, v. 130-131; manifestação de um dos personagens)
b-Omildade con pobreza
quer a Virgen corõada
(Cantiga 75, v. 4-5 do refrão)
(39) Maria como “Rainha do Céu” (Coroada por Deus)
a-
“E daquest’ un gran miragre vos quer’ eu ora contar
que a Reinna do Ceo quis en Toledo mostrar.”
(Cant. 12, v. 6-7)
b-
Omildade con pobreza (A Virgem coroada/rainha
quer a Virgen coroada, preza a humildade e a pobreza,
mais d’ orgullo con requeza assim, ela despreza
é ela mui despagada.” (Cant. 75, refrão) o orgulho ea riqueza.)
A par das cantigas de reverência denominativa oficial, encontram-se outras
relativas a práticas litúrgicas promovidas pela Igreja em honra Nossa Senhora. Algumas
nos falam das celebrações próprias aos dias consagrados a Ela, ou das romarias a
santuários construídos em Sua homenagem; outras nos apresentam, ou apenas
mencionam, de passagem, hinos cantos dedicados a Ela, assim como orações
destinadas a louvá-La, agradecer-Lhe e/ou rogar-Lhe favores, etc. Os dados transcritos
abaixo nos mostram esse tipo de material incluído aproveitado, com a devida habilidade
e criatividade, por D. Afonso em seu preito, publicidade e doutrinamento, em prol de
sua Dama, Santa Maria:
(40) Celebração da Festa da Assunção (celebrada no dia 15 de Agosto)
“E daquest’ un gran miragre vos quer’ eu ora contar (‘E a respeito disso vos quero
contar
que a Reinna do Ceo quis en Toledo mostrar. um milagre que a Rainha do
Céu
eno dia en que a Deus foi coroar operou em Toledo, no dia
de sua
na sa festa que no mes d’Agosto jaz.” festa, que caída no mês de
Agosto,
(Cant. 12, v. 6-9) é celebrada a sua coroação
por
Deus.’)
(41) Menção de um dos Santuários Consagrados a Maria
“Desto mostrou un miragre a que é chamada Virga (‘A propósito disso, a que é
chamada
de Jessé na ssa eigreja que éste en Vila-Sirga, Verga de Jessé operou um
milagre
que preto de Carron em sua Igreja de Vila-Sirga,
é duas léguas sabudas, que fica perto de Carrón, ou
seja,
u van fazer oraçon cerca de duas léguas,
gentes grandes e miúdas. e onde tanto a gente rica
quanto a
(Cant. 31, v. 7-12) pobre vão fazer suas orações.’
(42) Alusão a um dos Hinos Composto em Honra de Maria
O menyo’ enton da fossa, en que o soterrara (‘O menino, então, da
fossa, onde
o judeu, começou logo en voz alta e clara fora enterrado pelo judeu,
come-
a cantar ‘Gaude Maria’, que nunca tan ben cantara, çou logo a cantar, em voz
alta e
por prazer da Groriosa, que seus servos defende.” límpida, como nunca o
fizera,
(Cant. 6, v. 67-70) Gaude Maria”, para
agradar a
Gloriosa, que defende os
seus
servos.”
(43) Referência a uma das Orações incorporadas pela Igreja em honra de Maria
“E direi da monja que en un mõesteiro (‘E vos contarei a respeito de uma
monja,
ouve, de santa vida, e fillava lazeiro que levava, num mosteiro, uma vida
santa
en loar muit’ a Virgen [...] e tinha o maior gosto em louvar a
Virgem
[…]
E sen esto rezava ben mil Ave-Marias, E, além disso, rezava mil Ave-
por que veer podesse a Madre do Messias
, Marias, a fim de que pudesse ver a
Mãe do
que os judeus atenden e que nos avemos.” Messias, que os judeus ainda
esperam e
(Cant. 71, v. 10-12 e 16) que já veio até nós.’)
Ainda como Ser-da-Igreja, Nossa Senhora costuma ser cultuada a partir de sua
imagem, de um modo particular aquela em que se acha assentada com o Menino Jesus
no colo, nos braços, de encontro ao peito, etc. Trata-se da sua figura como Sede
Sapientiae, designada nas Cantigas como Majestade”/”Majestade, termo, então,
categorizado como termo designativo desse tipo de imagem, conforme atestado em duas
passagens da Cantiga 9, que nos relata como uma pintura de Nossa Senhora se fez
carne e emanou óleo:
(44) a- “Pois que foi o monje na santa cidade,
u Deus por nos morte ena cruz prendera,
comprido seu feito, ren da magestade
non lle veo a mente […]”
(Cant. 9, v. 43-46)
b
-
Pois na majestade viu tan gran vertude,
o mong' enton disse: «Como quer que seja,
bõa será esta, asse Deus m'ajude,
en Costantinoble na nossa eigreja”
(Cant. 9, v. 109-112)
b- Correntes entre os cristãos
Na qualidade de agente publicitário” da maior eficiência, D. Afonso não se
limita a dignificar sua Dama apenas com material emprestado à Bíblia ou à liturgia
cristã. Num passo além, ele se vale de epítetos e antonomásias correntes entre a gente
comum, alguns dos quais resultantes da popularização de termos criados/usados pela
Igreja. Nessa apropriação, tal como nas demais, fica evidente o entusiasmo devocionista
do rei, que mal se contém na enumeração e na complementação de cunho pessoal dos
diferentes atributos de Nossa Senhora. Metafóricos uns, metonímicos outros,
hiperbólicos outros tantos, relevem-se, aqui, os seguintes, mais a gosto do monarca :
(i) Relativos ao valor/mérito de Nossa Senhora
A Virgen de prez”/ “de gran prez”/ “de bon prez” / “mui de prez”, etc.
(Cantigas 15, v.154; 16, v. 75; 35, v. 11; 43, v. 65; 73, v. 57; 76, v. 42;
86,
v.50; 92, v. 49; 94, v. 54, etc.)
A Virgen que non á par / “A Virgen sen par(comparação implícita) / “A
melhor cousa que el [Deus] fez”, etc.
(Cantigas nº 18, v. 23; 25, v. 7; 28, v.9; 46, v. 28; 56, v. 20; 87, v.7, Prólogo
B, v.
17, etc.)
(ii) Relativos à Sua misericórdia/piedade/bondade
“Sennor piadosa”/ “de piedade”/”de bon talan” / “de caridade” / “de ben
comprida” / “que nos guia”, “dos coitados espital”, etc.
(Cantigas nº 2, v.5-6; 9, v. 38; 18, v. 69; 36, v.4 e 27; 40, v. 6; 49, v. 4; 51,
v. 23; 67, v. 99; 69, v. 53; 71, v. 19; 74, v. 52-53; 76, v. 173; 82, v. 32-33;
87, v. 21; 92, v. 16-17; 95, v. 15-16, etc.)
(iii) Relativos ao Seu poder miraculoso:
“Sennor en toller coitas e doores” / “A Sennor que coita nos toll’ e
tempestades”
(Cantigas nº 10, v. 4-7; 36, v. 4; etc.)
(iv) Relativos à Sua beleza e luminosidade:
“Rosa de beldade e de parecer”; “Virgen tan fremosa” /
“mais fremosa que
o
sol”; “Estrela Madodĩa”, “Rosa”, “Fror”, etc.
(Cantigas nº 10, v. 2, 4 e 5; 16, v. 62-63; 40, v. 5; 54, v. 78; 75, v. 134;
85,
v. 23-24, etc.)
Esses e outros atributos mais lealdade, pureza, mesura, infalibilidade, etc. —,
que acabam se interconectando semanticamente, costumam vir ligados uns aos outros,
aos borbotões, dando origem a seqüências híbridas, nas quais podem coocorrer
elementos das três grandes fontes terminológicas aqui apontadas: a da Bíblia, a da
Igreja, a dos Devotos de Maria. Atestam-nos tal possibilidade dados como os de abaixo:
(i) Reinna esperital, tan fremos’ e crara que a non pod’ el catar”
(Cant. 16, v.62-63)
(ii)Madre de Deus [...] / que é cha de gran vertude.
(Cant. 43, v. 65)
(iii) “
Sennor onrrada, en que Deus quis carne fillar, beyta e sagrada.”
(Cant. 1, versos 3-6)
(iv) “Virgen, Madre de Nostro Sennor, Santa Maria, que est’ a mellor cousa
que el
fez.
(Prólogo B, v. 15-18)
(v) “Groriosa Reyna Maria, Lume dos Santos fremosa e dos Ceos Via.
(Cant. 40, refrão)
(vi) A que o lum’ en si trager foi, que nos fez a Deus veer, que per al non viramos já.”
(Cant. 92, v. 5-7)
(vii) A groriosa / Madre de Jhesu Cristo, / a Rea mui piadosa.”
(Cant. 89, v. 7-9)
(viii) “Rosa de beldad’ e de parecer
E Fror d’alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.”
(Cant. 10, v. 4-7)
Para finalizar o estudo aqui empreendido acerca da trama urdida por D. Afonso a
partir de fios lingüísticos feitos de títulos, designações e atributos relacionados com a
figura da Virgem Maria, não poderíamos deixar de levar em conta mais um dos
procedimentos que dele receberam um “toque pessoal”, qual seja, o da repetição
parafrástica, que ora passamos a examinar.
D- VARIAÇÕES PARAFRÁSTICAS
Dentre as repetições de material bíblico, teológico, ritualístico e corrente entre o
povo, salientamos, aqui, as formas parafrásticas relativas à maternidade divina de Nossa
Senhora, não pela sua alta taxa de emprego como pela sua variação formal,
semântica e funcional. Tomando-as em seu conjunto global, percebemos que elas
costumam trazer, misturadas, em seu bojo, informações e lições encontradas no texto
bíblico, dos compêndios de teologia cristã, da liturgia da Igreja e, até mesmo, da voz
popular. De nossa parte, procuramos apresentar, aqui, algumas dessas paráfrases,
organizando-as em seqüências diferenciadas, de acordo com o seu estatuto
configuracional (mais, ou menos, simples), e com o tipo de informação e/ou de
doutrinamento nelas contido:
a- Designações canônicas
(i) “(A) Madre de Deus
(Cantigas nº 3, v. 36; 8, v. 42; 16, v. 7;
(ii) “(A) Madre de Jhesu Cristo
(Cantiga 89, v. 8)
(iii)la Madre do Sennor
(Cant. 94, v. 98)
(iv) “(A) Madre de Nostro Sennor.”
(Cantiga 8, v.9; )
(v)Santa Maria a Virgen, Madre / de Jeso-Cristo, Nostro Sennor.
(Cantiga 15, v. 4; )
(vi)da Virgen, Madre do Salvador.
(Cantigas 15, v. 66; 59, v. 64)
(vii) Variantes:
a Virgen, Madre de Nostro Sennor
(Cantiga 42, v. 8)
da Virgen, Madre de Nostro Sennor, Santa Maria
(Prólogo B, v. 15)
Madre do Vell’ e Menĩo
(Cantiga 23, v. 23)
Santa Maria Virgen, de Deus Madre e Filla.”
(Cantiga 75, v. 69)
“con a que de Deus é Madre e Filla.”
(Cantiga 19, v. 4
b- Designações especiais
(i) Com exaltações a Nossa Senhora e/ou referência a passagens de Sua vida
a ssa Madre, a Rea
(Cant. 75, v. 20).
A Virgen groriosa, / Madre de Deus piadosa.
(Cant. 83, v. 68)
a santa Madre de Nostro Sennhor.”
(Cant. 86, v. 12)
a Madre de Deus [...], que é cha de gran vertude.”
(Cant. 89, v. 46-47
Santa Maria, de que Deus quis nascer
.”
(Cant. 52, v. 4)
“a Santa Maria, de que Deus quis carne fillar”
“a Sennor onrrada, / en que Deus quis carne fillar
(Cant. 1, v. 4-5)
[...] a Virgen sen par,
Madre do gran Rei grorioso
(Cant. 25, v. 7-8)
Virgen Santa, Madre de piedade.”
(Cant. 36, v. 27)
“Non porque de Nostro Sennor
disse mal, mais que da Flor,
sa Madre, disse peor.”
(Cant. 72, v. 42-43)
A Virgen groriosa, / Madre de Deus piadosa / porque sempre é
poderosa d’ acorrer os coitados.”
(Cant. 83, v. 70-73)
“da Virgen, Madre de Nostro Sennor,
Santa Maria, que est’ a mellor
cousa que el fez;
(Prólogo B, v. 15-18)
(ii) Com exaltações a Nosso Senhor
“A Madre do gran Rei
(Cantiga 7, v. 12)
A Madre do Rei Grorioso
(Cant. 19, v. 6)
a Madre do Vencedor
(Cant. 27, v. 4)
A Virgen de que nascer quis por nos Deus grorioso.”
(Cant. 56, v. 6-7)
“[...] da Madre do que ten o mundo en poder.”
(Cant. 76, v. 22-23)
Madre do muito alto Rey
(Cant. 35, v. 100)
(iii) Com referências a passagens do Velho e Novo Testamento relacionadas
com
Deus e com Seu Filho
A Madre de quem o mundo fez.”
(Cant. 32, v. 5-6)
a Madre daquel que fez
todo-los quatr’ elementos.”
(Cantiga 33, v. 5-6)
“Madre do que tem o mundo en poder.”
(Cant. 76, v. 22-23)
“Madre do que se non paga de torto nen de peleja.”
(Cant. 71, v. 85)
“A Madre daquel que deitou
Locifer do Ceo, e depois britou
o infern’ e os santos dele sacou”
(Cant. versos 5-7)
A Madre do que o mundo tod’ á de julgar.”
“A madre do que livrou
dos leões Daniel,
(Cantiga 4, v. 3-4)
A Madre [...] / do que na cruz mataron os judeus.”
(Cantiga 22, v. 17-18)
“A Madre do Messias, / que os judeus atenden e que nos já avemos.”
(Cantiga 71, v. 17-18)
A Madre do que morrer quis por nos crucifigado.”
(Cant. 99, v. 38-39)
Santa Maria, a Madre de Deus [...] que a guardou do mundo, que lle foi
mal joyz, e do demo que, por tentar, a cuydou vencer.
(Cant.5, v. 8-10)
(iv) Variantes (com núcleo pronominal)
“aa de que Deus foi nado.
(Cant. 99, v. 7)
a
que o troux’ en seu corpo, e depois nos braços seus o trouxe muitas
vegadas, e con pavor dos judeus fugiu con el a Egipto, terra do rey
Faraon.”
(Cant. 14, v. 7-9)
Na que Deus seu Sant’ Esperit’ enviou, e que forma d’ ome en ela
fillou.”
(Cant. 21, v. 5-6)
Na que Deus seu Sant' Esperit' enviou, / e que forma d'ome en ela
fillou,”
( Cantiga 21, 1ª estrofe)
que Deus troux’ en seu corp’ e de seu peito
mamentou, e del despeito nunca foi fillar.”
(Cant. 26, v. 5 e 7-9)
Diante do que aqui se pôde mostrar, fica patente, acreditamos, a idéia de que D.
Afonso X, Rei de Leão e Castela, merece ser consagrado não só como o “maior
trovador de Santa Maria”, mas, também, como um de Seus melhores agentes
publicitários. Prova disso são a sua versatilidade e capacidade criadora em promover o
rearranjo de três grandes camadas lexicais compostas de designações identificadoras ou
enaltecedoras da figura de sua Dama Celestial: uma originada da Bíblia, outra advinda
da Igreja Católica, e outra, ainda, encontrada na boca de Seus devotos. Com os retoques
do monarca, as três deixaram para trás a poeira do tempo, servindo, igualitariamente,
como recursos eficazes de louvação e propagação do culto da Virgem, bem como de
doutrinamento dos cristãos.
3.4 Conclusão
No estudo que faz acerca da propaganda de cunho comercial, Sandmann assim
caracteriza a linguagem que a codifica:
A linguagem da propaganda se distingue [...], como a literária, pela
criatividade, pela busca de recursos expressivos que chamem a atenção do
leitor, que o façam parar e ler ou escutar a mensagem que lhe é dirigida, nem
que para isso se infrinjam as normas da linguagem padrão ou se passe por
cima das convenções da gramática normativa tradicional e, em certo sentido,
da competência lingüística abstrata geralmente aceita. (
SANDMANN,1993, p. 12)
Examinando a obra literário-religiosa de D. Afonso X, pelo viés desse gênero de
discurso no caso em pauta, de ordem pessoal, pois que destinado a enaltecer a figura
da Virgem Maria , percebemos um jogo entre a retenção e o rompimento com a
tradição. Extremamente criativo, o trovador de Maria explorou, como nenhum outro de
sua época, os títulos, os epítetos, as imagens, os encômios destinados a engrandecê-La
diante do povo, fazendo, assim, de sua voz, um clamor metonímico da instituição
eclesiástica católica, então interessada em divulgar-Lhe o culto, suplantado, até certa
época, pelo dos Santos.
Esses títulos, esses epítetos foram renovados com a tipologia selecionada pelo
rei, com a variação formal das construções por ele exploradas, com a distribuição que
lhes foi conferida nos dois grandes gêneros poéticos basilares das Cantigas, com o
envolvimento e testemunho pessoais do rei ao enuncia-los, com o modo utilizado na
persuasão dos fiéis destinatários, etc.
Certamente, todo esse vigor criativo teve reflexos na análise aqui empreendida,
dificultando o nosso trabalho de identificação demarcativa dos dois recursos estilístico-
retóricos escolhidos para estudo: o epíteto e a antonomásia, que ora se confundem, em
sua forma e ou função sintática na sentença, com a perífrase e/ou com as construções
apositivas, ou, então, se revestem de valor metafórico, metonímico de maior ou menor
grau hiperbólico, decorrente, dentre outras coisas, do processo de repetição.
E mais: em diálogo com o texto bíblico, com os ritos marianos da Igreja
Católica, com o sem-número de igrejas construídas em homenagem a Maria, com as
narrativas de milagre que lhe foram passadas via escrita ou oral, com os feitos
miraculosos que testemunhara, com os socorros recebidos por ele próprio e pelos seus
familiares e serviçais, D. Afonso acaba nos revelando diferentes faces de sua Dama,
visualizada por ele ora em sua condição humana, ora em sua essência divina, ora na
conjunção das duas, em Seu papel de Advogada dos homens junto a Deus.
Assim procedendo, o rei-trovador nos põe face a face com uma Santa Maria-ser
histórico, ser-bíblico, ser-virtual/ser celestial, ser-da-Igreja, ser-terrestre, ser-santo, etc.
que busca identifica-La e reverenciá-la tanto por meio de dogmas, quanto de
celebrações litúrgicas.
Nessa esfera de denominações honoríficas variadas, o trovador de Maria opta
por encerrar as suas cem primeiras cantigas, dirigindo-se a Ela como figura do Céu
(visto em suas duas acepções de firmamento metáfora Strela do Dia e como
paraíso), da Terra e como Intermediária (Advogada), e dos homens junto a Deus, no
plano da :
Santa Maria,
Strela do dia,
mostra-nos via
pera Deus e nos guia.
[...]
Guiar ben nos pod’ o teu siso
mais ca ren pera Parayso
u Deus ten sempre goy e riso
(‘Santa Maria,
Estrela do dia,
mostra-nos o caminho
para Deus e nos guia.
[...]
O teu bom senso pode,
mais que qualquer coisa,
nos guiar bem para o
pora quen en el creer quiso
e prazer-m-ia
se te prazia
que foss’ a mia
alm’ en tal compannia.”
(Cant. 100, refrão e v. 24-31)
Paraíso,
onde Deus sempre se
compraz no gozo e no riso.
E me agradaria,
se te agradasse
que a minha alma
pudesse estar em tal
companhia.’)
Iluminura 4: Santa Maria e os trovadores
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
MUIT’ AMAR DEVEMOS EN NOSSAS VOONTADES A SENNOR.”
“Macar poucos cantares acabei e con son,
Virgen, dos teus miragres, peço-ch’ ora por
don
que rogues a teu Fillo Deus que el me
perdon
os pecados que fige, pero que muitos son,
e do seu parayso non me diga de non,
nen eno gran juyzo entre migu’ en razon,
nen que polos meus erros se me mostre
felon:
e tu, mia Sennor, roga-lle agora e enton
muit’ afficadamente por mi de coraçon
e por este serviço dá-m’ este galardon.
(D. Afonso X,
Cantiga nº 401, versos 2-11)
“Santa Maria, rogai por nós.
Santa Mãe de Deus, rogai por nós.
Santa Virgem das Virgens, rogai por nós.
Mãe de Jesus Cristo, rogai por nós. [...]
Mãe imaculada, rogai por nós.
Mãe intacta, rogai por nós. [...]
Rainha concebida sem pecado original, rogai por nós.
Rainha assunta ao céu, Mãe imaculada, rogai por nós.
Mãe intacta, rogai por nós.
Mãe puríssima, rogai por nós.
Mãe castíssima, rogai por nós
Mãe amável, rogai por nós. [...]
Virgem prudentíssima, Mãe imaculada, rogai por nós.
Mãe intacta, rogai por nós. [...]
Refúgio dos pecadores, Mãe imaculada, rogai por nós.
Consoladora dos aflitos, rogai por nós.
Auxílio dos cristãos, rogai por nós. [...]”
(Ladainha de Nossa Senhora)
Chegada “a hora e a vez” de concluir este trabalho, veio-me à mente e ao
coração que, na verdade, agora é que eu deveria começa-lo. Como deixar, por exemplo,
de explorar, no estudo dos títulos epitéticos e antonomásticos, os que remontam à
oração da ladainha, criada e utilizada pela Igreja com vistas a cultuar sua Figura
Feminina Maior, e que perpassam por toda a obra mariana de D. Afonso X? Como não
associar os seus vocativos antonomásticos aos dogmas promulgados pela Igreja, que nos
levam a acreditar na concepção imaculada, na maternidade divina, na virgindade, na
santidade e na assunção de Nossa Senhora aos céus? Como não relacionar o sem-
número de alusões feitas nas Cantigas ao zelo e misericórdia de Maria ao papel de
“consoladora dos aflitos’, de “auxílio dos cristãos”, arrolado na ladainha, que, afinal de
contas, também tem a sua face publicitária?
Ao fazê-lo, mesmo que de passagem, neste capítulo conclusivo, aproveitamos
para proceder a um balanço geral do modo como um rei construiu, no interior de seus
427 cantares e sões à Virgem Maria, um verdadeiro aparato publicitário, no qual
soube renovar, como ninguém, com sua destreza e criatividade, toda uma tradição
iniciada, no culo V d. C., com o reconhecimento, por parte da Igreja, da maternidade
divina.
Daquela que dera à luz a Jesus Cristo.
Neste balanço, chamamos a atenção, antes de mais nada, para o caráter
tridimensional do discurso publicitário que, além de se manifestar,
intersemioticamente, nas três artes literária, pictórica e musical — utilizadas na
composição das Cantigas, perpassa por todo o seu código lingüístico, numa espécie de
continuidade a uma tradição tida pelos entendidos como milenar. Cabalístico, o número
3, subjaz tanto na organização geral das Cantigas em sua totalidade quanto no aparato
referencial-denominativo epitético e onomástico engendrado pelo monarca no
desempenho de seu papel de “trovador da Virgem” e de propalador do Seu culto. A
propósito desse tipo de interpretação, vale registrar aqui as seguintes observações de
Jaroslav Pelikan (cuja obra foi da maior importância para nós), acerca do “método
trinitário” de interpretação bíblica:
Por terem desenvolvido fora das Escrituras, as perspectivas se tornaram um
caminho ou talvez o caminho para a interpretação da Bíblia. Como foi
sistematizado principalmente por Agostinho, pelo menos no Ocidente, esse
método de interpretação bíblica foi difundido na forma de “regra canônica”
[canônica regula]. As várias passagens da Bíblia que pareciam
consubstanciar diretamente o dogma da Trindade como, por exemplo, o
preceito do batismo ao final do Evangelho segundo Mateus e o prólogo sobre
a divindade do Logos no início do Evangelho segundo João reforçavam-se
mutuamente para provar biblicamente os preceitos da Igreja. (PELIKAN,
2000, p. 27-28; grifos do autor)
No que tange ao primeiro procedimento, concernente ao nível macroestrutural
do cancioneiro em sua totalidade, a triplicidade se revela, conforme visto no capítulo
anterior, em várias dimensões. A primeira, de âmbito mais amplo, se manifesta no
próprio plano organizacional que rege a distribuição dos 427 poemas (sete dos quais,
repetidos) constantes da coletânea, a saber:
A- uma parte introdutória, destinada à apresentação do autor — por um terceiro
(Prólogo A) e por ele mesmo (Prólogo B) como Ser-da-Terra em busca de um
contato com o universo celeste, e, de certa maneira, de Santa Maria, por meio da
Cantiga 1, que, ao mesmo tempo, serve para dar fecho ao primeiro conjunto
poemático e abrir o segundo;
B- uma parte central introduzida pela mesma Cantiga 1, que, nos mostra
uma Nossa Senhora vista como Ser-da-Bíblia, que tem lembrada, complementada e
comentada as principais passagens de sua vida na terra, tal como narrada nos
Evangelhos de São Lucas (capítulos 1 e 2) e São Mateus (capítulo ), cantiga essa a que
se segue o bloco medial mais extenso e genologicamente distinto formado por 40
células compostas, em sua grande maioria, de 9 cantigas de milagre e uma de louvor,
destinados ambos os tipos a prestar loas a Maria, por intermédio de uma conjugação
harmoniosa entre dois gêneros poéticos diferentes, dispostos em forma de “rosário”;
C- uma parte final associada à segunda através de duas cantigas de cunho
pessoal, caracterizadas como de petiçon, bem como de algumas outras de conteúdo
laudatório e miraculoso, e seguida de um terceiro gênero de poemas correspondentes, no
caso, às festas promovidas pela Igreja, em homenagem à Virgem Maria e ao seu Filho,
Jesus.
Num segundo nível correspondente às células poemáticas consideradas
individualmente, a trindade se manifesta em dose tríplice nas 9 cantigas de milagres que
as integram, juntamente com a última, de loor. Afinal, o número 9 nada mais é que o
resultado da soma trinitária de 3 + 3 + 3.
Da mesma forma, num terceiro nível hierárquico a seguir, o comando do
número 3 é visível em cada um dos subgrupos genéricos básicos de milagre
(principalmente) e de louvor formadores das células mediais do cancioneiro. Assim,
por exemplo, se levarmos em consideração a divisão triádica própria à ação enunciativa,
constituída, de um lado, dos elementos actantes do discurso — enunciador (EU) e
enunciatário (TU) e, de outro, do referido (ELE), detectamos o seguinte quadro: um
primeiro, situado no espaço terrestre, profano (a ser coligado aos Céus), que tem como
protagonista D. Afonso, autor-enunciador; um segundo, localizado no espaço sagrado,
que tem como protagonita, no plano virtual, sagrado, a Virgem Maria, ouvinte-
enunciatária, que, por vezes, se manifesta como locutora-enunciadora aos beneficiários
do milagre ou a algum outro devoto Seu. Além disso, na qualidade de figura central do
cancioneiro afonsino, Santa Maria, por sua vez, é a grande ocupante do espaço
discursivo não-actorial, qual seja, do referido, ou delocutário — o que implica dizer que
o autor, seja investido do papel de narrador, seja de louvador stricto sensu, tanto dialoga
diretamente (no plano da fé) com a sua Dama Celeste, quanto fala a Seu respeito,
contando-Lhe os milagres ou alistando os Seus atributos aos ouvintes/leitores a quem
busca persuadir e doutrinar.
O esquema exposto abaixo fornece uma visão da leitura aqui feita a respeito da
importância do número 3considerado, “entre todos os povos, como número de modo
especial excelente”, no qual começo, meio e fim se acham resumidos, segundo nos
lembra Lurker (1993, p. 243) —, no “fazer publicitário” de D. Afonso em torno de sua
Advogada Celeste:
CONFIGURAÇÃO ESTRUTURAL DAS CANTIGAS
Introdução Seqüência Poemática Seqüência Poemática
Central Final
(Dimensão Autoral) (Dimensão Virtual (Dimensão Eclesial:
Fantástica) teológica e litúrgica)
Prólogo A Prólogo B (Cant. 1) Quarenta células
Cantigas de
Cantigas de
FESTAS
Apresentação Auto-apresentação poemáticos decimais Petiçon 1e 2
de D. Afonso de D. Afonso como
[ 3 + 3 + 3 de milagres + 1 de louvor]
Milagres
como autor “trobador” da Louvor
de Maria de Jesus
das Cantigas Virgem
Esquema 3: Caráter tríplice do plano estrutural das Cantigas de Santa Maria
Fonte: Bittencourt (2007) e dados da pesquisa
Igualmente tríplice é a distribuição tipológica dos epítetos e antonomásias,
outro recurso publicitário empregado por D. Afonso em referência à sua Dama do Céu,
sejam eles do grupo dos qualitativos, sejam do grupo dos classificatórios. Tomadas em
conjunto, essas duas espécies se dividem, nas Cantigas, em três grandes subtipos,
equivalentes, muitas vezes, a camadas temporais distintas:
A- os de remissão bíblica (de inspiração divina), que nos remetem a episódios
da vida de Maria, relatados, principalmente, por São Lucas (Capítulos 1 e 2), que assim
nos notifica, por exemplo, da Anunciação do nascimento de Jesus:
26
No sexto mês (de gestação de Isabel], o anjo Gabriel foi enviado por Deus
27
a
uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um
homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria.
28
Entrando o anjo, disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.
(EVANGELHO segundo são Lucas, cap. I, v. 26-28; grifos nossos).
B- os de origem eclesiástica, seja de caráter teológico, isto é, instituídos como
dogmas de pela Igreja Católica, seja de cunho ritualístico, muitos dos quais
reminiscentes de cerimônias e crenças comuns à tradição milenar de religiões
primitivas;
C- os de ordem leiga, introduzidos e/ou propalados pelo próprio rei ou pela
gente devota, como ele, de Nossa Senhora.
Por seu turno, num segundo nível dessa verdadeira escala hierárquica, cada uma
dessas três camadas terminológicas apresenta repartições próprias, também
configuradas como tridimensionais. Do texto bíblico, temos três grandes tipos de
referência a Maria: a de nascida da casa de Davi, a de escolhida e tornada Mãe do Filho
de Deus, a de auto-proclamada como Sua Serva; da Igreja, três grandes dogmas: o de
Mãe de Deus e, por conseguinte, concebida sem pecado original e rainha do céu —,
o de Sua Virgindade — e, por conseguinte, Santificada — e o de Assunta aos Céus, com
Sua alma e corpo físico; finalmente, da comunidade leiga, a realização de três grandes
atos dirigidos, em forma de oração, a Nossa Senhora: os de glorificação, os de súplica e
os de agradecimento.
Toda essa distribuição (que merece ser completada) acima exposta pode ser
depreendida em sua integralidade no Esquema abaixo apresentado:
ESTRATO DESIGNATIVO-ENCOMIÁSTICO
Originado da Instituído pela Conferido e/ou
Propalado
Bíblia Igreja pelos Fiéis
De Caráter De Caráter De Emprego De
Emprego
Teológico Litúrgico Individual
Geral
(Dogmas) (Tradição
Ritualística)
D. Afonso Algum Teste-
Outras
Personagem munhas
Gentes
do
Milagre
Esquema 4: Caráter tríplice da distribuição dos epítetos e antonomásias alusivos a Nossa
Senhora
Fonte: Bittencourt (2007) e dados da pesquisa
Igualmente tripartido é o conjunto de atos produzidos, em forma de oração à
Virgem Maria, por D. Afonso, nas cantigas de loor e de miragre, e pelos personagens
beneficiados e testemunhas dos milagres relatados. Tanto de uma parte quanto de
outra, predominam três atitudes em relação a Nossa Senhora: de rogo (mais freqüente e
contundente), de enaltecimento e de agradecimento pelos favores recebidos, sendo
que todas as três apresentam variação na forma como são expressas, tanto em termos
lingüísticos quanto em termos discursivos. No refrão e a primeira estrofe da cantiga de
louvor nº 10, encontramos reunidos esses três modos básicos de interlocução com a Mãe
de Deus:
Virga de Jesse, (‘Ramo de Jessé,
quen te soubesse quem dera saber
loar como mereces, louvar-te como mereces,
e sen ouvesse e ter o bom senso
per que dissesse para reconhecer
quanto por nos padeces! o quanto padeces por nós!
Ca tu noit’ e dia
Pois tu, dia e noite,
senpr’ estás rogando sempre estás rogando
teu Fillo, ai Maria, a teu Filho, por nós,
por nos que, andando ai, Maria, que vivemos
aqui peccando aqui, pecando e praticando o mal
e mal obrand’ — o que
— o que muito te aborrece [...]’)
tu muit’ avorreces [...]”
(Cant. 20, v. 2-14)
Por fim, não podemos deixar de mencionar os desdobramentos triádicos que se
observam no próprio espaço enunciativo reservado ao autor, que, ora se revela como
tal, ora como narrador propriamente dito, ora como ser empírico, posto no qual
exerce três papéis de base: o de devoto, o de testemunha e o de beneficiado direto
ou indireto (caso das pessoas ligadas a ele) — dos milagres operados por sua “Sennor”.
Nessa última condição, o ápice da confiança de D. Afonso em Santa Maria é atingido
quando, ao se ver acometido de doença mortal, que nenhum médico conseguia curar,
pediu à sua gente que lhe pusesse sobre o corpo o seu Livro de Cantigas, “meezinha”
sagrada, que livrou-o, finalmente, da doença:
Poren vos direi o que passou per mi, (‘Por isso vos direi o que se passou
comigo
jazend’ en Bitoira enfermo assi quando me achava em Vitória, tão doente
que todos cuidavan que morress’ ali que todas as pessoas achavam que eu
morreria
e non atendian de mi bon solaz. ali, e não esperavam de mim nenhum
alívio.
Ca hũa door me fillou [y] atal Pois uma doença me atacou de tal
maneira,
que eu ben cuidava que era mortal, que eu imaginava que fosse mortal.
e braadava: ‘Santa Maria, val, E, então, bradava: ‘Santa Maria, ajuda-
me,
e por ta vertud’ aqueste mal desfaz.’ e, com o teu poder, livra-me deste mal.”
E os físicos mandavan-me põer E embora os médicos mandavam pôr
sobre
panos caentes, mas nono quix fazer, mim panos aquecidos, eu não permiti
que o
mas mandei o Livro dela aduzer ; fizessem, mas mandei trazer o Livro
dela.
e poseron-mio, e logo jouv’ en paz, Quando o puseram sobre mim, senti,
logo, um
alívio tal,
Que non braadei nen senti nulla ren que não gritei nem senti mais dor
nenhuma,
da door, mas senti-me logo mui ben” mas senti-me muito bem.’)
(Cant. 209, v. 17-33)
Para finalizar, nas trilhas do rei-torvador, expresso aqui o meu lamento pelo
tanto que não pude e nem soube dizer a respeito dessa obra fenomenal, que, queiramos
ou não, faz de nós presa fácil da publicidade construída, em plena Idade Média, por um
rei que não se contentava em ser o único a amar e louvar sua “Sennor”.
REFERÊNCIAS
A- RELATIVAS AO CORPUS
AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann.
Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1959-1972. 4 v.
ALFONSO X, el Sábio. Cantigas de Santa María. Edición crítica de Walter
Mettmann. Madrid: Castalia, 1986-1989. 3 v. (Clásicos Castalia).
ALFONSO X, el Sabio. Cantigas de Santa María. Edición facsímil del Códice T.I.1
de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de El Escorial Siglo XIII. Madrid: Edilán,
1979. Exemplar 1452.
B- RELATIVAS ÀOS DEMAIS TIPOS DE OBRAS
ADAM, Jean.-Marie. Les textes; types et prototypes. Paris: Nathan-Université, 1994.
ADAM, Jean-Marie.; BONHOMME, I. L’ argumentation publicitaire; rhétorique de
l’ éloge et de la persuasion. Paris: Nathan, 1997.
AITA, Nella. O códice florentino das cantigas do rey Affonso, o Sábio. Revista de
Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, n.13, set. 1921, p. 187-200; n. 14, nov. 1921, p.
105-128; n. 15, jan. 1922, p. 169-176; n. 16, mar. 1922, 181-188; n. 18, jul. 1923, p.
153-160.
ALFONSO el Sábio. Cantigas. Edición de Jesús Montoya. Madrid: Cátedra: 1988.
ALFONSO el Sábio. Antologia. Estudio preliminar de Margarita Pena y vocabulário.
México: Editorial Porrua, 1973.
AMADO, Teresa. Os gêneros e o trabalho textual. In: RIBEIRO, Cristina Almeida;
MADUREIRA Margarida (Org.). O gênero do texto medieval. Lisboa: Cosmos, 1997.
p. 9- 28.
AQUINO, Lucília Castanheira de. A cláusula apositiva: estrutura articuladora do
discurso. 2001. 148 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.
ARISTÓTELES. Arte retórica e poética. Trad. de Antônio Pinto de Carvalho. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
ARTE de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. Ed. crit. com intr.
e fac-simil de Giuseppe Tavani. Lisboa: Colibri, 1999.
AUSTIN, John Langshaw (1962). Quando dizer é fazer. Tradução Danilo Marcondes
de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogéneité montrée et hétérogenéité construtive: éléments
pour une approche de l’autre dans le discours. Paris, DRLAV, n. 26, p. 91-151, 1982.
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogéneité(s) énontiative(s). Langages, n. 73, p. 98-111,
1984.
AZEVEDO, Narciso de. A arte literária na Idade Média. Porto: Figueirinhas, [s.d.].
BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1929/1979.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão G.
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1979/1997.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1972/1981.
BARTHES, Roland. Introduction à l’ analyse structurale des récits. Communications,
Paris, n. 8, p. 1-27, 1966.
BASTOS, Liliana Cabral. Narrativa e vida cotidiana. Scripta, Belo Horizonte, v. 7,
n.14, p. 118-127, 1º sem. 2004.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e aum. Rio de
Janeiro: Lucerna, 1991.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et
al. Campinas: Pontes, 1999.
BERCEO, Gonzalo de (1246-1252). Milagros de Nuestra Señora. Edición,
introducción y notas de Vicente Beltrán. Barcelona: Planeta, 1990.
BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: contendo o velho e o novo testamento.
Tradução dos originais mediante a versão dos Monges de Maredsous (Bélgica) pelo
Centro Bíblico Católico. São Paulo: Editora “AVE MARIA”, 1992.
BITTENCOURT, Vanda de Oliveira. Do processamento da operação narrativa nas
Cantigas de Santa Maria. Comunicação apresentada no I SIMPÓSIO DE LÍNGUA
PORTUGUESA E LITERATURA: INTERSEÇÕES, Belo Horizonte, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, out. 2003a. Inédito.
BITTENCOURT, Vanda de Oliveira. De como se ementam as Cantigas de Santa
Maria. Trabalho apresentado no V ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS
MEDIEVAIS, Salvador: Universidade Federal da Bahia, jul. de 2003b. Inédito.
BITTENCOURT, Vanda de Oliveira. Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso X: da
multifuncionalidade dos títulos-ementa na estruturação das narrativas de milagre. Belo
Horizonte: PUC Minas, 2006. Inédito.
BONINI, Adair. Gêneros textuais e cognição; um estudo sobre a organização cognitiva
da identidade dos textos. Florianópolis: Insular, 2002.
BRÉMOND, C. Logique du récit. Paris: Seuil, 1973.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos; por um
interacionismo socio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São
Paulo: Educ, 1999.
BROWN, R. (Org.). Maria no Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1985.
BULLETIN of the Cantigueiros de Santa Maria. University of Cincinnati:
Departmente of Romance Languages. v. 1 a 15.
CALIMAN, C. (Org.). Teologia e devoção mariana no Brasil. São Paulo: Paulinas,
1989.
CAMPOS, Maria Helena Rabelo. O canto da sereia; uma análise do discurso
publicitário. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1987.
CANEDO, Sérgio Antônio. Narração, metro e música nas Cantigas de Santa Maria.
2000. Dissertação (Mestrado em Letras) Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte.
CANEDO, Sérgio Antônio. Formas e fórmulas de composição nas Cantigas de Santa
Maria. 2005. Tese (Doutorado em Letras) Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte.
CARNEIRO, Agostinho Dias (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do
Autor, 1996. (Investigações lingüísticas).
CHARAUDEAU, Patrick. Le discours publicitaire discoursif. Mscope, CRDP
Versailles, n.8, septembre 1994.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Ângela S. M. Corrêa. São
Paulo: Contexto, 2006.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique (Dir.). Dictionnaire d’
analyse du discourse. Paris: Seuil, 2002.
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 1999.
CLARKE, Doroty Clotelle. Alfonso X: Questions on Poetics. Bulletin of the
Cantigueiros de Santa Maria. Berkeley: University of California, v. 1, n. 1, p.11-14,
1987.
COINCY, Gautier de. Les miracles de Nostre Dame. Publié par V. Frederic Koegenic.
Genève: Droz, 1970.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Figuras de sintaxe. In: CUNHA, Celso; CINTRA,
Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. rev. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. Cap. 19, p. 619-634.
CUNHA, Maria Angélica Furtado; OLIVEIRA, Mariângela Rios de; MARTELOTTA,
Mário Eduardo (Org.). Lingüística funcional; teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
DIOGO, Américo António Lindeza. Lírica galego-portuguesa. Genologia e
generalização. In: RIBEIRO, Cristina Almeida; MADUREIRA Margarida (Org.). O
gênero do texto medieval. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 29-41.
DOLOEL, L. Narratives modes in czech literature. Toronto: The University of
Toronto Press, 1973.
DOOLEY, Robert A.; LEVINSOHN, Stephen. Análise do discurso; conceitos básicos
em lingüística. Petrópolis: Vozes, 2003.
DRONKE, Peter. El desarollho de la lírica religiosa. In: DRONKE, Peter. La lírica em
la Edad Media. Barcelona: Seix Barral, 1978. p. 39-106.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
ECO, Umberto. Lector in fabula.
FARAL, Edmond. Les arts poétiques du XIIe et XIIIe siècles: recherches et
documents sur la technique littéraire du Moyen Âge. Paris: Ancienne Honoré
Champion/Edouard Champion, 1924.
FERRER, Eulálio. Publicidad y comunicación. México: FCE, 2002.
FIDALGO, Elvira. As Cantigas de Santa María. Santiago de Compostela: Edicións
Xerais de Galicia, 2002a. (Universitária).
FIDALGO, Elvira. História crítica da literatura medieval: as Cantigas de Santa
Maria. Salamanca: Xerais, 2002b.
FIDALGO, Elvira. As cantigas de loor de Santa Maria. Santiago de Compostela:
Xunta de Galicia / Grafisanti, 2004.
FIORIN, José Luiz. Astúcias da enunciação ; as categorias de pessoa, espaço e
tempo.São Paulo: Ática, 1996.
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à lingüística da
enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
FUNCK, Susana Bornéo; WIDHOLZER, Nara (Org.). Gênero em discursos da mídia.
Florianópolis / Santa Cruz do Sul: Ed. Mulheres e EDUNISC, 2005.
GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Tradução Fernando Cabral Martins.
Lisboa: Veja, [s/d0.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: LTC, 1999.
GREGOLIN, Maria do Rosário; BARONAS, Roberto (Org.). Análise do discurso: as
materialidades do sentido. São Paulo: Claraluz, 2001. (Coleção olhares oblíquos).
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. Tradução Haquira Osakabe e Izidoro
Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1973.
JAKOBSON, Roman A. Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José
Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971.
JUBRAN, Clélia A S A metáfora e a metonímia na linguagem da propaganda. In:
SEMINÁRIO DO GEL, X, 1984. Bauru. Anais... Bauru, 1985.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 4.ª edição São Paulo:
Cortez, 2002.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo:
Contexto, 1997.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez,
2002.
LABOV, William. Language in the inner city. Philadelphia: Philadelphia University
Press, 1972.
LANCIANI, Giulia, TAVANI, Giuseppe (Coord.). Dicionário da literatura medieval
galega e portuguesa. Tradução José Colaço Barreiros e Artur Guerra. Lisboa:
Caminho, 1993.
LAPA, M. Rodrigues. D. Afonso X e as Cantigas de Santa Maria. In: LAPA, M.
Rodrigues. Lições de literatura portuguesa; época medieval. Coimbra: Coimbra
Editora, 1981.
LEÃO, Ângela Vaz. As Cantigas de Santa Maria. Extensão, Belo Horizonte, v. 7,
n.23, p. 27-42, ago. 1997.
LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio; aspectos
culturais e literários. São Paulo/Belo Horizonte: Linear B/ Veredas & Cenários, 2007.
(Obras em dobras).
LE GOFF, Jaacques. O imaginário medieval. Tradução Manuel Ruas. Lisboa:
Editorial Estampa, 1994.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e mbolos bíblicos. São Paulo: Paulos,
1993.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências da análise do discurso. Tradução
Freda Indursky. Campinas: Pontes/Editora da UNICAMP, 1989.
MAINGUENEAU, Dominique. Os termos-chave da análise do discurso. Tradução
Maria Adelaide P. P. Coelho da Silva. Lisboa: Gradiva, 1997.
MAINGUENEAU, Dominique. Diversidade dos gêneros do discurso. In: MACHADO,
Ida Lúcia; MELLO, Renato (Org.). Gêneros e reflexões em análise do discurso. Belo
Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso / Faculdade de Letras da UFMG, 2002. p.31-
57.?
MAINGUENEAU, Dominique. Diversidade dos gêneros de discurso. In: MACHADO,
Ida Lúcia; MELLO, Renato (Org.). Gêneros: reflexões em análise do discurso. Belo
Horizonte: Núcleo em Análise do Discurso/Programa de Pós-graduação em Estudos
Lingüísticos/Faculdade de Letras da UFMG, 2004. p. 43-58.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Tradução Adail Sobral. São Paulo:
Contexto, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: o que são e como se classificam?
Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2000. Inédito.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONÍSIO, Ângela Paiva et al. (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2002. p. 19-36.
MARI, Hugo; SILVEIRA, José Carlos Cavalheiro. Sobre a importância dos gêneros
discursivo. In: Machado, Ida Lúcia; MELLO, Renato de (Org.). Gêneros: reflexões em
análise do discurso. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso, Programa de Pós-
graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da UFMG, 2004. p. 59-86.
MARQUES, F. Costa. A análise literária. Coimbra: Almedina, 1968.
MEURER, José Luiz; MOTTA-ROTH, Désirée (Org.). Gêneros textuais. Bauru:
EDUSC, 2002.
MEURER, J. L.; BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée (Org.). Gêneros; teorias,
métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005.
METTMANN, Walter. Introdução. In: AFONSO X. Cantigas de Santa Maria.
Madrid: Clásicos Castalia, 1986. p. 7-42.
METTMANN, Walter. Glossário. In: AFONSO X. Cantigas de Santa Maria.
Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1972. v. IV.
MOISÉS, Massaud. As estéticas literárias em Portugal; séculos XIV a XVIII. Lisboa:
Massaud. A criação literária; poesia. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
MONTOYA MARTÍNEZ, Jesús. Composición, estructura y contenido del cancionero
marial de Alfonso X. Murcia: Real Academia, 1999.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo :
Editora da UNESP, 2000.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento; as formas do discurso.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
ORLANDI, Eni Pulcinelli ; GUIMARÃES, Eduardo. Discurso e leitura. São Paulo :
Cortez, 1988.
ORLANDI, Eni Pulcinelli (Org.). Palavra, fé e poder. Campinas: Pontes, 1987.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso ; princípios e procedimentos.
Campinas : Pontes, 2003.
PAREDES, J.; GRACIA, P. Tipología de las formas narrativas breves românicas
medievales. Granada: Universidad de Granada, 1998.
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos; seu papel na história da cultura.
Tradução Vera Camargo Guarnieri. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação; a
Nova Retórica. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa. História da literatura portuguesa. Coimbra:
Quadrante, 1947.
PINKUS, Lucius. O mito de Maria: uma abordagem simbólica. São Paulo: Paulinas,
1991.
PINTO, Júlio; SERELLE, Márcio (Org.) . Interações midiáticas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
PROPP, Vladimir. I. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução Jasna Paravich
Sarthan. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1969/1984.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. Ed. Porto:
Almedina, 2000.
REUTER, Yves. A análise da narrativa; o texto, a ficção e a narração. Tradução
Mário Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
RIBEIRO, Cristina Almeida, MADUREIRA, Margarida (Coord.). O gênero do texto
medieval. Lisboa: Cosmos, 1997.
ROCHA LIMA. Elegâncias de linguagem. In: ROCHA LIMA. Gramática normativa
da língua portuguesa. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1967. p. 560-577.
ROCHA LIMA. Rudimentos de estilística e poética. In: ROCHA LIMA. Gramática
normativa da língua portuguesa. 35. ed. (retocada. e enriquecida.)Rio de Janeiro: José
Olympio, 1998. p. 475-520.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias de comunicação. Lisboa: Editorial
Presença, 2001.
RÜBECAMP, Rudolf. A linguagem das Cantigas de Santa Maria. Boletim de
Filologia, Lisboa, tomo I, p. 273-355, 1932; tomo II, p. 141-151, 1933.
SANDMANN, Antônio. A linguagem da propaganda. São Paulo: Contexto, 1993.
SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 12. ed.
corr. e act. Porto: Porto Editora, 1982.
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Publié par Charles Bally
et Albert Sechehaye. Paris: Payot, 1915/1962.
SCARBOROUGH, Connie I. A summury of the research on the miniatures of the
Cantigas de Santa Maria. Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria, Lexington,
v. 1, n.1, p. 41-50, fall 1987.
SNOW, Joseph Thomas. Current status of “Cantigas” studies. In: KATZ, Israel J.;
KELLER, John E.; ARMISTEAD, Samuel G.; SNOW, Joseph T. (Org.). Cantigas de
Santa Maria: arts, music and poetry. Madison: Madison University Press, 1987. p. 475-
486.
SNOW, Joseph Thomas. Alfonso as troubador: the fact and the fiction. In:
VALDIVIESO, Teresa L; VALDIVIESO, Jorge H. (Org.). Studia Hispanica
Medievalia. I / II Jornadas de Literatura Española Medieval. Buenos Aires:
Universidad Católica Argentina, 1992. p. 126-140.
SNOW, Joseph Thomas. Alfonso X y las “Cantigas”: documento personal y poesia
colectiva. In: MONTOYA MARTINEZ, Jesús; DOMÍNGUEZ RODRÍGUEZ, Ana
(Org.). Madrid: Editorial Complutense, 1999. p. 158-172.
SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto:
Porto Editora, 1982.
SCARBROUGH, Connie I. Resenha. KELLER, John E.; CASH, Annette Grant. Daily
life depicted in the Cantigas de Santa Maria. Studies in Romance Languages,
Lexington, n. 44, 1988.
SCARBROUGH, Connie I. Resenha. KELLER, John E.; CASH, Annette Grant. Daily
life depicted in the Cantigas de Santa Maria. Studies in Romance Languages,
Lexington, n. 44, 1988.
SCHULZ, Régine; SEIDEL, Matthias. (Ed.). Egipto; o mundo dos faraós. Tradução
Luís Anjos et al. Colônia: Könemann, 1997.
SOLALINDE, Antonio G. Antología de Alfonso X el Sabio. Buenos Aires: Espasa-
Calpe, 1943.
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1991.
SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. Cotia: Ateliê Editorial,
2002.
TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis: introdução à poesia medieval galego-
portuguesa. Lisboa: Caminho, 2002.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1967.
TODOROV, T. Les catégories du récit littéraire. Communications, Paris, n. 8, p. 125-
151, 1966.
VALVERDE, Xosé Filgueira. Poesia de santuarios. In: VALVERDE, Xosé Filgueira.
Estudios sobre lítica medieval; trabalhos dispersos (1925 – 1987). Vigo: Galaxia,
1992. Cap. III, p. 53-59.
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Tradução Carlota Boto. Bauru:
EDUSC, 1999.
C- RELATIVAS ÀS GRAVURAS
GRAVURA 1: D. Afonso e sua corte
Disponível em <www.universal.pt>. Acesso em: 28 ago. 2007.
GRAVURA 2: Uma rainha egípcia e sua serviçal (1360 a.C.)
GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: LTC, 1999. p. 64.
GRAVURA 3: Tutankhamon e sua esposa (1330 a.C.)
GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16. ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: LTC, 1999. p. 68.
D- RELATIVAS ÀS ILUMINURAS DAS CANTIGAS DE SANTA MARIA
ILUMINURA 1: Cantiga de louvor nº 10, vinheta 4.
In: ALFONSO X, el Sabio. Cantigas de Santa María. Edición facsimil del Códice
T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de El Escorial Siglo XIII. Madrid:
Edilán, 1979. v. I.
ILUMINURA 2: Cantiga de milagre nº 58, vinheta 4.
In: ALFONSO X, el Sabio. Cantigas de Santa María. Edición facsimil del Códice
T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de El Escorial Siglo XIII. Madrid:
Edilán, 1979. v. I.
ILUMINURA 3: Cantiga de louvor nº 10, vinheta 1.
In: ALFONSO X, el Sabio. Cantigas de Santa María. Edición facsimil del Códice
T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de El Escorial Siglo XIII. Madrid:
Edilán, 1979. v. II.
ILUMINURA 4: Santa Maria e os trovadores.
Disponível em: www.arlindo-correia.com (Códice Rico) Acesso em: 28 ago. 2007.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
LOORES”E“MIRAGRES”:
DA OPERAÇÃO PUBLICITÁRIA DE D. AFONSO X, O SÁBIO, EM
HONRA DE SANTA MARIA
ANEXOS
Érica Patrícia Moreira de Freitas
BELO HORIZONTE
2007
SUMÁRIO
Prólogo A ................................................................................................................... 04
Prólogo B ................................................................................................................... 04
Cantiga 1 .................................................................................................................... 05
Cantiga 3 .................................................................................................................... 06
Cantiga 4 .................................................................................................................... 06
Cantiga 5 .................................................................................................................... 07
Cantiga 6 .................................................................................................................... 10
Cantiga 7 .................................................................................................................... 12
Cantiga 8 .................................................................................................................... 13
Cantiga 9 .................................................................................................................... 14
Cantiga 10 .................................................................................................................... 15
Cantiga 11 .................................................................................................................... 16
Cantiga 12 .................................................................................................................... 17
Cantiga 14 .................................................................................................................... 17
Cantiga 16 .................................................................................................................... 18
Cantiga 17 .................................................................................................................... 20
Cantiga 19 .................................................................................................................... 21
Cantiga 20 .................................................................................................................... 21
Cantiga 21 .................................................................................................................... 22
Cantiga 22 .................................................................................................................... 22
Cantiga 26 .................................................................................................................... 23
Cantiga 27 .................................................................................................................... 24
Cantiga 31 .................................................................................................................... 25
Cantiga 33 .................................................................................................................... 26
Cantiga 36 .................................................................................................................... 27
Cantiga 37 .................................................................................................................... 28
Cantiga 39 .................................................................................................................... 29
Cantiga 40 .................................................................................................................... 29
Cantiga 41 .................................................................................................................... 30
Cantiga 42 .................................................................................................................... 30
Cantiga 43 .................................................................................................................... 32
Cantiga 44 .................................................................................................................... 33
Cantiga 45 .................................................................................................................... 34
Cantiga 48 .................................................................................................................... 36
Cantiga 50 .................................................................................................................... 37
Cantiga 52 .................................................................................................................... 37
Cantiga 59 .................................................................................................................... 38
Cantiga 60 .................................................................................................................... 39
Cantiga 64 .................................................................................................................... 39
Cantiga 71 .................................................................................................................... 41
Cantiga 75 .................................................................................................................... 42
Cantiga 76 .................................................................................................................... 45
Cantiga 77 .................................................................................................................... 46
Cantiga 78 .................................................................................................................... 47
Cantiga 80 .................................................................................................................... 48
Cantiga 81 .................................................................................................................... 49
Cantiga 83 .................................................................................................................... 49
Cantiga 85 .................................................................................................................... 50
Cantiga 86 .................................................................................................................... 51
Cantiga 87 .................................................................................................................... 52
Cantiga 89 .................................................................................................................... 53
Cantiga 90 .................................................................................................................... 54
Cantiga 92 .................................................................................................................... 54
Cantiga 94 .................................................................................................................... 55
Cantiga 95 .................................................................................................................... 56
Cantiga 96 .................................................................................................................... 58
Cantiga 98 .................................................................................................................... 59
Cantiga 100 .................................................................................................................... 59
Cantiga 120 .................................................................................................................... 60
Cantiga 209 .................................................................................................................... 60
Cantiga 328 .................................................................................................................... 61
Cantiga 370 .................................................................................................................... 63
Cantiga 401 .................................................................................................................... 63
Cantiga 402 .................................................................................................................... 65
Cantiga 406 .................................................................................................................... 65
Cantiga 409 .................................................................................................................... 66
Cantiga 421 .................................................................................................................... 67
Cantiga 422 .................................................................................................................... 67
Cantiga 427 .................................................................................................................... 68
Tanto é Santa Maria de ben mui conprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
E como pode per lingua seer loada
a que fez porque Deus a ssa carne sagrada
quis fillar e ser ome, per que foi mostrada
sa deidad’ en carne, vista e oyda?”
(Afonso X, Cantigas de Santa Maria, n.º
110.)
PRÓLOGO A -
I
Don Affonso de Castela,
de Toledo, de Leon
Rey e ben des Conpostela
ta o reyno d'Aragon,
II
De Cordova, de Jahen,
de Sevilla outrossi,
e de Murça, u gran ben
lle fez Deus, com' aprendi,
III
Do Algarve, que gãou
de mouros e nossa ffe
meteu y, e ar pobrou
Badallouz, que reyno é
IV
Muit' antigu', e que tolleu
a mouros Nevl' e Xerez,
Beger, Medina prendeu
e Alcala d'outra vez,
V
E que dos Romãos Rey
é per dereit' e Sennor,
este livro, com' achei,
fez a onrr' e a loor
VI
Da Virgen Santa Maria,
que éste Madre de Deus,
en que ele muito fia.
Poren dos miragres seus
VII
Fezo cantares e sões,
saborosos de cantar,
todos de sennas razões,
com' y podedes achar.
PRÓLOGO B
ESTE É O PROLOGO DAS CANTIGAS DE
SANTA MARIA, EMENTANDO AS
COUSAS QUE Á MESTER ENO TROBAR
Porque trobar é cousa en que jaz
entendimento, poren queno faz
á-o d'aver e de razon assaz,
per que entenda e sábia dizer
o que entend' e de dizer lle praz,
ca ben trobar assi s'á de ffazer.
E macar eu estas duas non ey
com' eu querria, pero provarei
a mostrar ende un pouco que sei,
confiand' en Deus, ond' o saber ven;
ca per ele tenno que poderei
mostrar do que quero alga ren.
E o que quero é dizer loor
da Virgen, Madre de Nostro Sennor,
Santa Maria, que ést' a mellor
cousa que el fez; e por aquest' eu
quero seer oy mais seu trobador,
e rogo-lle que me queira por seu
Trobador e que queira meu trobar
receber, ca per el quer' eu mostrar
dos miragres que ela fez; e ar
querrei-me leixar de trobar des i
por outra dona, e cuid' a cobrar
per esta quant' enas outras perdi.
Ca o amor desta Sen[n]or é tal,
que queno á sempre per i mais val;
e poi-lo gaannad' á, non lle fal,
senon se é per sa grand' ocajon,
querendo leixar ben e fazer mal,
ca per esto o perd' e per al non.
Poren dela non me quer' eu partir,
ca sei de pran que, se a ben servir,
que non poderei en seu ben falir
de o aver, ca nunca y faliu
quen llo soube con merçee pedir,
ca tal rogo sempr' ela ben oyu.
Onde lle rogo, se ela quiser,
que lle praza do que dela disser
en meus cantares e, se ll'aprouguer,
que me dé gualardon com' ela
aos que ama; e queno souber,
por ela mais de grado trobará.
CANTIGA 1
ESTA É A PRIMEIRA CANTIGA DE LOOR
DE SANTA MARIA, EMENTANDO OS VII
GOYOS QUE OUVE DE SEU FILLO.
I
Des oge mais quer' eu trobar
pola Sennor onrrada,
en que Deus quis carne fillar
bêeyta e sagrada,
por nos dar gran soldada
no seu reyno e nos erdar
por seus de sa masnada
de vida perlongada,
sen avermos pois a passar
per mort' outra vegada.
II
E poren quero começar
como foy saudada
de Gabriel, u lle chamar
foy: «Benaventurada
Virgen, de Deus amada:
do que o mund' á de salvar
ficas ora prennada;
e demais ta cunnada
Elisabeth, que foi dultar,
é end' envergonnada».
III
E demais quero-ll' enmentar
como chegou canssada
a Beleem e foy pousar
no portal da entrada,
u paryu sen tardada
Jesu-Crist', e foy-o deytar,
como moller menguada,
u deytan a cevada,
no presev', e apousentar
ontre bestias d'arada.
IV
E non ar quero obridar
com' angeos cantada
loor a Deus foron cantar
e «paz en terra dada»;
nen como a contrada
aos tres Reis en Ultramar
ouv' a strela mostrada,
por que sen demorada
veron sa offerta dar
estranna e preçada.
V
Outra razon quero contar
que ll' ouve pois contada
a Madalena: com' estar
vyu a pedr' entornada
do sepulcr' e guardada
do angeo, que lle falar
foy e disse: «Coytada
moller, sey confortada,
ca Jesu, que ves buscar,
resurgiu madurgada.»
VI
E ar quero-vos demostrar
gran lediç' aficada
que ouv' ela, u vyu alçar
a nuv' enlumada
seu Fill'; e poys alçada
foi, viron angeos andar
ontr' a gent' assada,
muy desaconsellada,
dizend': Assi verrá juygar,
est' é cousa provada.»
VII
Nen quero de dizer leixar
de como foy chegada
a graça que Deus enviar
lle quis, atan grãada,
que por el esforçada
foy a companna que juntar
fez Deus, e enssinada,
de Spirit' avondada,
por que souberon preegar
logo sen alongada.
VIII
E, par Deus, non é de calar
como foy corõada,
quando seu Fillo a levar
quis, des que foy passada
deste mund' e juntada
con el no ceo, par a par,
e Reya chamada,
Filla, Madr' e Criada;
e poren nos dev' ajudar,
ca x' é noss' avogada.
CANTIGA 3
ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ
COBRAR A THEOPHILO A CARTA QUE
FEZERA CONO DEMO, U SE TORNOU
SEU VASSALO.
Mais nos faz Santa Maria
a seu Fillo perdõar,
que nos per nossa folia
ll' imos falir e errar.
I
Por ela nos perdõou
Deus o pecado d'Adam
da maçãa que gostou,
per que soffreu muit' affan
e no inferno entrou;
mais a do mui bon talan
tant' a seu Fillo rogou,
que o foi end' el sacar.
Mais nos faz Santa Maria...
II
Pois ar fez perdon aver
a Theophilo, un seu
servo, que fora fazer
per conssello dun judeu
carta por gãar poder
cono demo, e lla deu;
e fez-ll' en Deus descreer,
des i a ela negar.
Mais nos faz Santa Maria...
III
Pois Theophilo assi
fez aquesta trayçon,
per quant' end' eu aprendi,
foy do demo gran sazon;
mais depoys, segund' oý,
repentiu-ss' e foy perdon
pedir logo, ben aly
u peccador sol achar.
Mais nos faz Santa Maria...
IV
Chorando dos ollos seus
muito, foy perdon pedir,
u vyu da Madre de Deus
a omagen; sen falir
lle diss': «Os peccados meus
son tan muitos, sen mentir,
que, se non per rogos teus,
non poss' eu perdon gãar.»
Mais nos faz Santa Maria...
V
Theophilo dessa vez
chorou tant' e non fez al,
trões u a que de prez
todas outras donas val,
ao demo mais ca pez
negro do fog' infernal
a carta trager-lle fez,
e deu-lla ant' o altar.
Mais nos faz Santa Maria...
CANTIGA 4
ESTA É COMO SANTA MARIA GUARDOU
AO FILLO DO JUDEU QUE NON
ARDESSE, QUE SEU PADRE DEITARA NO
FORNO.
A Madre do que livrou
dos leões Daniel
essa do fogo guardou
un menÿo d'Irrael.
I
En Beorges un judeu
ouve que fazer sabia
vidro, e un fillo seu
-ca el en mais non avia,
per quant' end' aprendi eu-
ontr' os crischãos liya
na escol'; e era greu
a seu padre Samuel.
A Madre do que livrou...
II
O menÿo o mellor
leeu que leer podia
e d'aprender gran sabor
ouve de quanto oya;
e por esto tal amor
con esses moços collia,
con que era leedor,
que ya en seu tropel.
A Madre do que livrou...
III
Poren vos quero contar
o que ll' avêo un dia
de Pascoa, que foi entrar
na eygreja, u viia
o abad' ant' o altar,
e aos moços dand' ya
ostias de comungar
e vy' en un calez bel.
A Madre do que livrou...
IV
O judeucÿo prazer
ouve, ca lle parecia
que ostias a comer
lles dava Santa Maria,
que viia resprandecer
eno altar u siia
e enos braços ter
seu Fillo Hemanuel.
A Madre do que livrou...
V
Quand' o m' esta vison
vyu, tan muito lle prazia,
que por fillar seu quinnon
ant' os outros se metia.
Santa Maria enton
a mão lle porregia,
e deu-lle tal comuyon
que foi mais doce ca mel.
A Madre do que livrou...
VI
Poi-la comuyon fillou,
logo dali se partia
e en cas seu padr' entrou
como xe fazer soya;
e ele lle preguntou
que fezera. El dizia:
«A dona me comungou
que vi s(ô)o chapitel.»
A Madre do que livrou...
V
O padre, quand' est' oyu,
creceu-lli tal felonia,
que de seu siso sayu;
e seu fill' enton prendia,
e u o forn' arder vyu
meté-o dentr' e choya
o forn', e mui mal falyu
como traedor cruel.
A Madre do que livrou...
VI
Rachel, sa madre, que ben
grand' a seu fillo queria,
cuidando sen outra ren
que lle no forno ardia,
deu grandes vozes poren
e ena rua saya;
e aque a gente ven
ao doo de Rachel.
A Madre do que livrou...
VII
Pois souberon sen mentir
o por que ela carpia,
foron log' o forn' abrir
en que o moço jazia,
que a Virgen quis guarir
Deus, seu fill', e sen falir
Azari' e Misahel.
A Madre do que livrou...
VIII
O moço logo dali
sacaron con alegria
e preguntaron-ll' assi
se sse d'algun mal sentia.
Diss' el: «Non, ca eu cobri
o que a dona cobria
que sobelo altar vi
con seu Fillo, bon donzel.»
A Madre do que livrou...
IX
Por este miragr' atal
log' a judea criya,
e o menÿo sen al
o batismo recebia;
fezera per sa folia,
deron-ll' enton morte qual
quis dar a seu fill' Abel.
A Madre do que livrou...
CANTIGA 5
ESTA É COMO SANTA MARIA AJUDOU A
EMPERADRIZ DE ROMA A SOFRE-LAS
GRANDES COITAS PER QUE PASSOU.
Quenas coitas deste mundo ben quiser soffrer,
Santa Maria deve sempr'ante si põer.
I
E desto vos quer' eu ora contar, segund' a letra
diz,
un mui gran miragre que fazer quis pola
Enperadriz
de Roma, segund' eu contar oý, per nome
Beatriz,
Santa Maria, a Madre de Deus, ond' este cantar
fiz,
que a guardou do mundo, que lle foi mal joyz,
e do demo que, por tentar, a cuydou vencer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser sofrer...
II
Esta dona, de que vos disse ja, foi dun
Emperador
moller; mas pero del nome non sei, foi de
Roma sennor
e, per quant' eu de seu feit' aprendi, foi de mui
gran valor.
Mas a dona tant' era fremosa, que foi das belas
flor
e servidor de Deus e de sa ley amador,
e soube Santa Maria mays d'al ben querer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
III
Aquest' Emperador a sa moller queria mui gran
ben,
e ela outrossi a el amava mais que outra ren;
mas por servir Deus o Enperador, com' ome de
bon sen,
cruzou-ss' e passou o mar e foi romeu a
Jherusalen.
Mas, quando moveu de Roma por passar alen,
leyxou seu irmão e fez y gran seu prazer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser sofrer...
IV
Quando ss'ouv' a ir o Emperador, aquel irmão
seu,
de que vos ja diss', a ssa moller a Emperadriz o
deu,
dizend': «Este meu irmão receb' oi mais por
fillo meu,
e vos seede-ll' en logar de madre poren, vos
rogu' eu,
e de o castigardes ben non vos seja greu;
en esto me podedes muy grand' amor fazer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
V
Depoi-lo Emperador se foi. A mui pouca de
sazon
catou seu irmão a ssa moller e namorou-s'
enton
dela, e disse-lle que a amava mui de coraçon;
mai-la santa dona, quando ll' oyu dizer tal
trayçon,
en ha torre o meteu en muy gran prijon,
jurando muyto que o faria y morrer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
VI
O Emperador dous anos e meyo en Acre morou
e tod'a terra de Jerussalem muitas vezes andou;
e pois que tod' est' ouve feito, pera Roma se
tornou;
mas ante que d'Ultramar se partisse, mandad'
enviou
a sa moller, e ela logo soltar mandou
o seu irmão muy falsso, que a foy traer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
VII
Quando o irmão do Emperador de prijon sayu,
barva non fez nen cercou cabelos, e mal se
vestiu;
a seu irmão foi e da Emperadriz non s'espedyu;
mas o Emperador, quando o atan mal parado
vyu,
preguntou-lli que fora, e el lle recodyu:
«En poridade vos quer' eu aquesto dizer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
VIII
Quando foron ambos a ha parte, fillou-s' a
chorar
o irmão do Emperador e muito xe lle queixar
de sa moller, que, porque non quisera con ela
errar,
que o fezera porende tan tost' en un carcer
deitar.
Quand' o Emperador oyu, ouv' en tal pesar,
que se leixou do palaffren en terra caer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser sofrer...
IX
Quand' o Emperador de terra s'ergeu, logo, sen
mentir,
cavalgou e quanto mais pod' a Roma começou
de ss'ir;
e a pouca d'ora vyu a Emperadriz a ssi vir,
e logo que a vyu, mui sannudo a ela leixou-ss'
ir
e deu-lle gran punnada no rostro, sen falir,
e mandou-a matar sen a verdade saber.
Quenas coytas deste mundo ben quiser
soffrer...
X
Dous monteiros, a que esto mandou, fillárona
des i
e rastrand' a un monte a levaron mui preto dali;
e quando a no monte teveron, falaron ontre si
que jouvessen con ela per força, segund' eu
aprendi.
Mas ela chamando Santa Maria, log' y
chegou un Conde, que lla foy das mãos toller.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XI
O Conde, poi-la livrou dos vilãos, disse-lle:
«Senner,
dizede-m' ora quen sodes ou dond'.» Ela
respos: «Moller
sõo mui pobr' e coitada, e de vosso ben ei
mester.»
«Par Deus», diss' el Conde, «aqueste rogo farei
volonter,
ca mia companneira tal come vos muito quer
que criedes nosso fill' e façedes crecer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XII
Pois que o Cond' aquesto diss', enton atan
toste, sen al,
a levou consigo aa Condessa e disse-ll' atal:
«Aquesta moller pera criar nosso fillo muito
val,
ca vejo-a mui fremosa, demais, semella-me sen
mal;
e poren tenno que seja contra nos leal,
e metamos-lle des oi mais o moç' en poder.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XIII
Pois que a santa dona o fillo do Conde recebeu,
90 de o criar muit' apost' e mui ben muito sse
trameteu;
mas un irmão que o Cond' avia, mui falss' e
sandeu,
Pediu-lle seu amor; e porque ela mal llo
acolleu,
degolou-ll' o meno ha noit' e meteu
ll' o cuitelo na mão pola fazer perder.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XIV
Pois desta guisa pres mort' o meno, como vos
dit' ei,
a santa dona, que o sentiu morto, diss': «Ai,
que farei?»
O Cond' e a Condessa lle disseron: «Que ás?»
Diz: «Eu ey
pesar e coita por meu criado, que ora mort'
achey.»
Diss' o irmão do Conde: «Eu o vingarey
de ti, que o matar foste por nos cofonder.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XV
Pois a dona foi ferida mal daquel, peyor que
tafur,
e non via quen lla das mãos sacasse de nenllur
senon a Condessa, que lla fillou, mas esto muit'
adur;
us dizian: «Quéimena!» e outros: «Moira con
segur!»
Mas poi-la deron a un mareiro de Sur,
que a fezesse mui longe no mar somerger.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XVI
O mareiro, poi-la ena barca meteu, ben come
fol
disse-lle que fezesse seu talan, e seria sa prol;
mas ela diss' enton: «Santa Maria, de mi non te
dol,
neno teu Fillo de mi non se nenbra, como fazer
sol?»
Enton vêo voz de ceo, que lle disse: «Tol
tas mãos dela, se non, farey-te perecer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XVII
Os mareiros disseron enton: «Pois est' a Deus
non praz,
leixemo-la sobr' aquesta pena, u pod' aver
assaz
de coita e d'affan e pois morte, u outra ren non
jaz,
ca, se o non fezermos, en mal ponto vimos seu
solaz.
E pois foy feyto, o mar nona leixou en paz,
ante a vo con grandes ondas combater.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XVIII
A Emperadriz, que non vos era de coraçon
rafez,
com' aquela que tanto mal sofrera e non ha vez,
tornou, con coita do mar e de fame, negra
come pez;
mas en dormindo a Madre de Deus direi-vos
que lle fez:
tolleu-ll' a fam' e deu-ll' ha erva de tal prez,
con que podesse os gaffos todos guarecer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XIX
A santa dona, pois que ss' espertou, non sentiu
null' afan
nen fame, come se senpr' ouvesse comudo
carn' e pan;
e a erva achou so sa cabeça e disse de pran:
«bêeitos son os que en ti fyuza an,
ca na ta gran mercee nunca falecerán
enquanto a souberen guardar e gradecer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XX
Dizend' aquesto, a Emperadriz, muit' amiga de
Deus,
vyu vir ha nave preto de si, cha de romeus,
de bõa gente, que non avia y mouros nen
judeus.
Pois chegaron, rogou-lles muito chorando dos
ollos seus,
dizendo: «Levade-me vosc', ay, amigos meus!»
E eles logo conssigo a foron coller.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XXI
Pois a nav' u a Emperadriz ya aportou na foz
de Roma, logo baixaron a vea, chamando:
«Ayoz
E o maestre da nave diss' a un seu ome: «Vai,
coz
carn' e pescado do meu aver, que te non cost'
ha noz.»
E a Emperadriz guaryu un gaf', e a voz
foy end', e muitos gafos fezeron ss' y trager.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XXII
Ontr' os gafos que a dona guariu, que foron
mais ca mil,
foi guarecer o irmão de Conde eno mes d'abril;
mas ant' ouv' el a dizer seu pecado, que fez
come vil.
Enton a Condessa e el Conde changian a gentil
dona, que perderan por trayçon mui sotil
que ll' aquel gaffo traedor fora bastecer.
Quenas coytas deste mundo ben quiser sofrer...
XXIII
Muitos gafos sãou a Emperadriz en aquele
mes;
mas de grand' algo que poren lle davan ela ren
non pres,
mas andou en muitas romarias, e depois ben a
tres
meses entrou na cidade de Roma, u er' o cortes
Emperador, que a chamou e disso-lle: «Ves?
Guari-m' est' irmão gaff', e dar-ch-ei grand'
aver.»
Quenas coytas deste mundo ben quiser
soffrer...
XXIV
A dona diss' ao Emperador: «Voss' irmão
guarrá;
mas ante que eu en el faça ren, seus pecados
dirá
ant' o Apostolig' e ante vos, como os feitos á.»
E pois foi feito, o Emperador diss': «Ai Deus,
que será?
Nunca mayor trayçon desta om' oyrá.»
E con pesar seus panos se fillou a ronper.
Quenas coytas deste mundo ben quiser
soffrer...
XXV
A Emperadriz fillou-s' a chorar e diss': «A mi
non nuz
en vos saberdes que soon essa, par Deus de
vera cruz,
a que vos fezestes atan gran torto, com' agor'
aduz
voss' irmão a mãefesto, tan feo come estruz;
mas des oi mais a Santa Maria, que é luz,
quero servir, que me nunca á de falecer.
Quenas coitas deste mundo ben quiser
soffrer...
XXVI
Per nulla ren que ll' o Emperador dissesse,
nunca quis
a dona tornar a el; ante lle disse que fosse fis
que ao segre non ficaria nunca, par San Denis,
nen ar vestiria pano de seda nen pena de gris,
mas ha cela faria d'obra de Paris,
u se metesse por mays o mund' avorrecer.
Quenas coytas deste mundo ben quiser
soffrer...
CANTIGA 6
ESTA É COMO SANTA MARIA
RESSUCITOU AO MENŸO QUE O JUDEU
MATARA PORQUE CANTAVA «GAUDE
VIRGO MARIA».
A que do bon rey Davi
de seu linnage decende,
nenbra-lle, creed' a mi,
de quen por ela mal prende.
I
Porend' a Sant' Escritura, | que non mente nen
erra,
nos conta un gran miragre | que fez en
Engraterra
a Virgen Santa Maria, | con que judeus an gran
guerra
porque naceu Jesu-Cristo | dela, que os
reprende.
A que do bon rei Davi...
II
Avia en Engraterra | ha moller menguada,
a que morreu o marido, | con que era casada;
mas ficou-lle del un fillo, | con que foi mui
confortada,
e log' a Santa Maria | o offereu porende.
A que do bon rei Davi...
III
O men' a maravilla | er' apost' e fremoso,
e d' aprender quant' oya | era muit' engoso;
e demais tan ben cantava, | tan manss' e tan
saboroso,
que vencia quantos eran | en ssa terr' e alende.
A que do bon rei Davi...
IV
E o cantar que o moço | mais aposto dizia,
e de que sse mais pagava | quen quer que o
oya,
era un cantar en que diz: «Gaude Virgo
Maria»;
e pois diz mal do judeu, que sobr' aquesto
contende.
A que do bon rei Davi...
V
Este cantar o menÿo | atan ben o cantava,
que qualquer que o oya | tan toste o fillava
e por leva-lo consigo | conos outros barallava,
dizend': «Eu dar-ll-ei que jante, | e demais que
merende.»
A que do bon rei Davi...
VI
Sobr' esto diss' o menÿo: | «Madre, fe que
devedes,
des oge mais vos consello | que o pedir
leixedes,
pois vos dá Santa Maria | por mi quanto vos
queredes,
e leixad' ela despenda, | pois que tan ben
despende.»
A que do bon rei Davi...
VII
Depois, un dia de festa, | en que foron juntados
muitos judeus e crischãos | e que jogavan
dados,
enton cantou o menÿo; | e foron en mui
pagados
todos, senon un judeu que lle quis gran mal des
ende.
A que do bon rei Davi...
VIII
No que o moço cantava | o judeu meteu
mentes,
e levó-o a ssa casa, | pois se foron as gentes;
e deu-lle tal da acha, | que ben atro enos dentes
o fendeu bes assi, ben como quen lenna fende.
A que do bon rei Davi...
IX
Poi-lo menÿo lo morto, | o judeu muit' aga
soterró-o na adega, | u sas cubas tya;
mas deu mui maa noite | a sa madre, a mesqa,
que o andava buscando | e dalend' e daquende.
A que do bon rei Davi...
X
A coitada por seu fillo | ya muito chorando
e a quantos ela viia, | a todos preguntando
se o viran; o un ome | lle diss'; «Eu o vi ben
quando
un judeu o levou sigo, | que os panos revende.»
A que do bon rei Davi...
XI
As gentes, quand' est' oiron, | foron alá
correndo,
e a madre do meno | braadand' e dizendo:
«Di-me que fazes, meu fillo, | ou, que estás
atendendo,
que non vees a ta madre, | que ja sa mort'
entende.»
A que do bon rei Davi...
XII
Pois diss': «Ai, Santa Maria, | Sennor, tu que es
porto
u ar[r]iban os coytados, | dá-me meu fillo
morto
ou viv' ou qual quer que seja; | se non, farás-me
gran torto,
e direi que mui mal erra | queno teu ben
atende.»
A que do bon rei Davi...
XIII
O men' enton da fossa, | en que o soterrara
o judeu, começou logo | en voz alta e clara
a cantar «Gaude Maria», | que nunca tan ben
cantara,
por prazer da Gloriosa, | que seus servos
defende.
A que do bon rei Davi...
XIV
Enton tod' aquela gente | que y juntada era
foron corrend' aa casa | ond' essa voz vera,
e sacaron o meno | du o judeu o posera
viv' e são, e dizian | todos: Que ben recende!»
A que do bon rey Davi...
XV
A madr' enton a seu fillo | preguntou que
sentira;
e ele lle contou como | o judeu o ferira,
e que ouvera tal sono | que sempre depois
dormira,
ata que Santa Maria | lle disse: «Leva-t' ende;
A que do bon rey Davi..
XVI
Ca muito per ás dormido, | dormidor te feziste,
e o cantar que dizias | meu ja escaeciste;
mas leva-t' e di-o logo | mellor que nunca
dissiste,
assi que achar non possa | null'om' y que
emende.»
A que do bon rey Davi...
XVII
Quand' esto diss' o meno, | quantos s'y
acertaron
aos judeus foron logo | e todo-los mataron;
e aquel que o ferira | eno fogo o queimaron,
dizendo: «Quen faz tal feito, | desta guisa o
rende.»
A que do bon rey Davi...
CANTIGA 7
ESTA É COMO SANTA MARIA LIVROU A
ABADESSA PRENNE, QUE
ADORMECERA ANT' O SEU ALTAR
CHORANDO.
Santa Maria amar
devemos muit' e rogar
que a ssa graça ponna
sobre nos, por que errar
non nos faça, nen peccar,
o demo sen vergonna.
I
Porende vos contarey
un miragre que achei
que por ha badessa
fez a Madre do gran Rei,
ca, per com' eu apres' ei,
era-xe sua essa.
Mas o demo enartar
a foi, por que emprennnar
s' ouve dun de Bolonna,
ome que de recadar
avia e de guardar
seu feit' e sa besonna.
Santa Maria amar...
II
As monjas, pois entender
foron esto e saber,
ouveron gran lediça;
ca, porque lles non sofrer
quería de mal fazer,
avian-lle mayça.
E fórona acusar
ao Bispo do logar,
e el ben de Colonna
chegou y; e pois chamar
a fez, vo sen vagar,
leda e mui risonna.
Santa Maria amar...
III
O Bispo lle diss' assi:
«Dona, per quant' aprendi,
mui mal vossa fazenda
fezestes; e vin aqui
por esto, que ante mi
façades end' emenda.»
Mas a dona sen tardar
a Madre de Deus rogar
foi; e, come quen sonna,
Santa Maria tirar
lle fez o fill' e criar
lo mandou en Sanssonna.
Santa Maria amar...
IV
Pois s' a dona espertou
e se guarida achou,
log' ant' o Bispo vo;
e el muito a catou
e desnua-la mandou;
e pois lle vyu o so,
começou Deus a loar
e as donas a brasmar,
que eran d'ordin d'Onna,
dizendo: «Se Deus m'anpar,
por salva poss' esta dar,
que non sei que ll'aponna.»
Santa Maria amar...
CANTIGA 8
ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ EN
ROCAMADOR DECENDER HÛA CANDEA
NA VIOLA DO JOGRAR QUE CANTAVA
ANT' ELA.
A Virgen Santa Maria
todos a loar devemos,
cantand' e con alegria,
quantos seu ben atendemos.
I
E por aquest' un miragre | vos direi, de que
sabor
veredes poy-l' oirdes, | que fez en Rocamador
a Virgen Santa Maria, | Madre de Nostro
Sennor;(yxz 8-v.9/
ora oyd' o miragre, | e nos contar-vo-lo-emos.
A Virgen Santa Maria...
Un jograr, de que seu nome | era Pedro de
Sigrar,
que mui ben cantar sabia | e mui mellor violar,
e en toda-las eigrejas | da Virgen que non á par
un seu lais senpre dizia, | per quant' en nos
aprendemos.
A Virgen Santa Maria...
O lais que ele cantava | era da Madre de
Deus,
estand' ant' a sa omagen, | chorando dos ollos
seus;
e pois diss': «Ai, Groriosa, | se vos prazen estes
meus
cantares, hûa candea | nos dade a que cemos.»
A Virgen Santa Maria...
De com' o jograr cantava | Santa Maria prazer
ouv', e fez-lle na viola | hûa candea decer;
may-lo monge tesoureiro | foi-lla da mão toller,
dizend': «Encantador sodes, | e non vo-la
leixaremos.
A Virgen Santa Maria...
Mas o jograr, que na Virgen | tîia seu coraçon,
non quis leixar seus cantares, | e a candea enton
ar pousou-lle na viola; | mas o frade mui felon
tolleu-lla outra vegada | mais toste ca vos
dizemos.
A Virgen Santa Maria...
Pois a candea fillada | ouv' aquel monge des i
ao jograr da viola, | foy-a põer ben ali
u x' ant' estav', e atou-a | mui de rrig' e diss'
assi:
«Don jograr, se a levardes, | por sabedor vos
terremos.»
A Virgen Santa Maria...
O jograr por tod' aquesto | non deu ren, mas
violou
como x' ante violava, | e a candea pousou
outra vez ena vyola; | mas o monge lla cuidou
fillar, mas disse-ll' a gente: | «Esto vos non
sofreremos.»
A Virgen Santa Maria...
Poi-lo monge perfiado | aqueste miragre vyu,
entendeu que muit' errara, | e logo ss'
arrepentiu;
e ant' o jograr en terra | se deitou e lle pedyu
perdon por Santa Maria, | en que vos e nos
creemos.
A Virgen Santa Maria...
Poy-la Virgen groriosa | fez este miragr' atal,
que deu ao jograr dõa | e converteu o negral
monge, dali adeante | cad' an' un grand' estadal
le trouxe a ssa eigreja | o jograr que dit'
avemos.
A Virgen Santa Maria...
CANTIGA 9
Esta é como Santa Maria fez en Sardonay,
preto de domas, que a ssa omagen, que era
pintada en ha tavoa, sse fezesse carne e
manass' oyo.
Por que nos ajamos
senpre, noit' e dia,
dela renenbrança,
en Domas achamos
fez gran demostrança.
I
En esta cidade, | que vos ei ja dita, ouv'
y hûa dona | de mui santa vida, mui
fazedor d'algu' e | de todo mal quita, rica e mui
nobre | e de ben comprida
Mas, por que sabiámos
como non queria
do mundo gabança,
como fez digamos
hû' albergaria,
u fillou morança.
Por que nos ajamos...
II
E ali morand' e | muito ben fazendo
a toda-las gentes | que per y passavan,
vo y un monge, | segund' eu aprendo,
que pousou con ela, | com' outros
pousavan.
Diss' ela: «Ouçamos
u tedes via,
se ides a França.»
Diss' el: «Mas cuidamos
dereit' a Suria
og' ir sen tardança.»
Por que nos ajamos...
III
Log' enton a dona, | chorando dos ollos,
muito lle rogava | que per y tornasse,
des que el ouvesse | fito-los gollos
ant' o San Sepulcro | e en el beijasse.
«E mais vos rogamos
que, sse vos prazia,
ha semellança
que dalá vejamos
da que sempre guia
os seus sen errança.»
Por que nos ajamos...
IV
Pois que foi o monge | na santa cidade,
u Deus por nos morte | ena cruz prendera,
comprido seu feito, | ren da magestade
non lle veo a mente, | que el prometera;
mas disse: «Movamos,»
a sa conpania,
«que gran demorança
aqui u estamos
bõa non seria
sen aver pitança.»
Por que nos ajamos...
V
Quand' est' ouve dito, | cuidou-ss' ir sen
falla;
55 mas a voz do ceo | lle disse: «Mesqyo,
e como non levas, | asse Deus te valla,
a omagen tigo | e vas teu camo?
Esto non loamos;
ca mal ch'estaria
que, per obridança,
se a que amamos
monja non avia
da Virgen senbrança.»
Por que nos ajamos...
VI
,Mantenent' o frade | os que con el yan
leixou ir, e logo | tornou sen tardada
e foi buscar u as | omages vendian,
e comprou end' a, | a mellor pintada.
Diss' el: «Ben mercamos;
e quen poderia
a esta osmança
põer? E vaamos
a noss' abadia
con esta gaança.»
Por que nos ajamos...
V
E pois que o monge | aquesto feit' ouve,
foi-ss' enton sa vi', a | omagen no so.
E log' y a preto | un leon, u jouve,
achou, que correndo | pera ele vo
80 de so us ramos,
non con felonia,
mas con omildança;
por que ben creamos
que Deus o queria
85 guardar, sen dultança.
Por que nos ajamos...
VI
Des quando o monge | do leon foi quito,
que, macar se fora, | non perdera medo
del, a pouca d'ora | un ladron maldito,
90 que romeus roubava, | diss' aos seus
quedo:
«Por que non matamos
este, pois desvia?
Dar-ll-ei con mia lança,
e o seu partamos,
95 logo sen perfia
todos per iguança.»
Por que nos ajamos...
VII
Quand' est' ouve dito, | quis en el dar salto,
dizendo: «Matemo- | lo ora, irmãos.»
100 Mas a voz do ceo | lles disse mui
d'alto:
«Sandeus, non ponnades | en ele as mãos;
ca nos lo guardamos
de malfeitoria
e de malandança,
105 e ben vos mostramos
que Deus prenderia
de vos gran vingança.»
Por que nos ajamos...
VIII
Pois na majestade | viu tan gran vertude,
110 o mong' enton disse: | «Como quer que
seja,
bõa será esta, | asse Deus m'ajude,
en Costantinoble | na nossa eigreja;
ca, se a levamos
allur, bavequia
115 e gran malestança
serán, non erramos.»
E ao mar s' ya
con tal acordança.
Por que nos ajamos...
120 E en ha nave | con outra gran gente
entrou, e gran peça | pelo mar singraron;
mas ha tormenta | vo mantenente,
que do que tragian | muit' en mar deitaron,
por guarir, osmamos.
125 E ele prendia
con desasperança
a que aoramos,
que sigo tragia
por sa delivrança,
130 Por que nos ajamos...
Por no mar deita-la. | Que a non deitasse
ha voz lle disse, | ca era peccado,
mas contra o ceo | suso a alçasse,
e o tempo forte | seria quedado.
135 Diz: «Prestes estamos.»
Enton a ergia
e diz con fiança:
«A ti graças damos
que es alegria
140 noss' e amparança.»
Por que nos ajamos...
E log' a tormenta | quedou essa ora,
e a nav' a Acre | enton foi tornada;
e con ssa omagen | o monge foi fora
145 e foi-sse a casa | da dona onrrada.
Ora retrayamos
quan grand' arteria
fez per antollança;
mas, como penssamos,
150 tanto lle valrria
com' ha garvança,
Por que nos ajamos...
O monge da dona | non foi connoçudo,
onde prazer ouve, | e ir-se quisera;
155 logo da capela | u era metudo
non viu end' a porta | nen per u vera.
«Por que non leixamos.»
contra ssi dizia,
«e sen demorança,
160 esta que conpramos,
e Deus tiraria
nos desta balança
Por que nos ajamos...
El esto penssando, | viu a port' aberta
165 e foi aa dona | contar ssa fazenda,
e deu-ll' a omagen, | ond' ela foi certa,
e sobelo altar | a pos por emenda.
Carne, non dultamos,
se fez e saya
170 dela, mas non rança,
grossain, e sejamos
certos que corria
e corr' avondança.
Por que nos ajamos...
CANTIGA 10
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA,
COM' É FREMOSA E BÕA E Á GRAN
PODER.
Rosas das rosas e Fror das frores,
Dona das donas, Sennor das sennores.
Rosa de beldad' e de parecer
5 e Fror d'alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.
Rosa das rosas e Fror das frores...
Atal Sennor dev' ome muit' amar,
10 que de todo mal o pode guardar;
e pode-ll' os peccados perdõar,
que faz no mundo per maos sabores.
Rosa das rosas e Fror das frores...
Devemo-la muit' amar e servir,
15 ca punna de nos guardar de falir;
des i dos erros nos faz repentir,
que nos fazemos come pecadores.
Rosa das rosas e Fror das frores...
Esta dona que tenno por Sennor
20 e de que quero seer trobador,
se eu per ren poss' aver seu amor,
dou ao demo os outros amores.
Rosa das rosas e Fror das frores...
CANTIGA 11
ESTA É DE COMO SANTA MARIA
TOLLEU A ALMA DO MONGE QUE SS'
AFFOGARA NO RIO AO DEMO, E FEZE-O
RESSOCITAR.
Macar ome per folia
aginna caer
5 pod' en pecado,
do ben de Santa Maria
non dev' a seer
desasperado.
I
Poren direi todavia
10 com' en hûa abadia
un tesoureiro avia,
monge que trager
con mal recado
a ssa fazenda sabia,
15 por a Deus perder,
o malfadado.
Macar ome per folia...
II
Sen muito mal que fazia,
cada noyt' en drudaria
20 a hua sa druda ya
con ela ter
seu gasallado;
pero ant' «Ave Maria»
sempr' ya dizer
25 de mui bon grado.
Macar ome per folia...
III
Quand' esto fazer queria,
nunca os sinos tangia,
e log' as portas abria
30 por ir a fazer
o desguisado;
mas no ryo que soya
passar foi morrer
dentr' afogado.
35 Macar ome per folia...
IV
E u ll' a alma saya,
log' o demo a prendia
e con muy grand' alegria
foi pola põer
40 no fog' irado;
mas d' angeos conpania
pola socorrer
vo privado.
Macar ome per folia...
V
45 Gran refferta y crecia,
ca o demo lles dizia:
«Ide daqui vossa via,
que dest' alm' aver
é juigado,
50 ca fez obras noit' e dia
senpr' a meu prazer
e meu mandado.»
Macar ome per folia...
VI
Quando est' a conpann' oya
55 dos angeos, sse partia
dali triste, pois viya
o demo seer
ben rezõado;
mas a Virgen que nos guía
60 non quis falecer
a seu chamado.
Macar ome per folia...
VII
E pois chegou, lles movía
ssa razon con preitesia
65 que per ali lles faria
a alma toller
do frad' errado,
dizendo-lles: «Ousadia
foi d'irdes tanger
70 meu comendado.»
Macar ome per folia...
O demo, quand' entendía
esto, con pavor fugia;
mas un angeo corria
75 a alma prender,
led' afícado,
e no corpo a metia
e fez-lo erger
ressucitado.
80 Macar ome per folia...
O convento atendia
o syno a que ss' ergia,
ca des peça non durmia;
poren sen lezer
85 ao sagrado
foron, e à agua ffria,
u viron jazer
o mui culpado.
Macar ome per folia...
90 Tod' aquela crerezia
dos monges logo liia
sobr' ele a ledania,
polo defender
do denodado
95 demo; mas a Deus prazia,
e logo viver
fez o passado.
Macar ome per folia...
CANTIGA 12
ESTA É COMO SANTA MARIA SE
QUEIXOU EN TOLEDO ENO DIA DE SSA
FESTA DE AGOSTO, PORQUE OS JUDEUS
CRUCIFIGAVAN A OMAGEN DE CERA, A
SEMELLANÇA DE SEU FILLO.
O que a Santa Maria mais despraz,
5 é de quen ao seu Fillo pesar faz.
I
E daquest' un gran miragre | vos quer' eu
ora contar,
que a Reinna do Ceo | quis en Toledo
mostrar
eno dia que a Deus foi corõar,
na sa festa que no mes d'Agosto jaz.
Situação espacio-temporal delimitada
O que a Santa Maria mais despraz...
II
O Arcebispo aquel dia | a gran missa ben
cantou; Momento da Manifestação
e quand' entrou na segreda | e a gente se
calou,
oyron voz de dona, que lles falou
piadosa e doorida assaz.
O que a Santa Maria mais despraz...
III
E a voz, come chorando, | dizia: «Ay Deus,
ai Deus,
com' é mui grand' e provada | a perfia dos
judeus A manifestação direta
que meu Fillo mataron, seendo seus,
e aynda non queren conosco paz.»
O que a Santa Maria mais despraz...
IV
Poi-la missa foi cantada, | o
Arcebispo sayu
da eigreja e a todos | diss' o que da voz oyu;
A conseqÜencia da manifestação
e toda a gent' assi lle recodyu:
reação
«Esto fez o poblo dos judeus malvaz.»
O que a Santa Maria mais despraz...
V
Enton todos mui correndo | começaron logo
d'ir
dereit' aa judaria, | e acharon, sen mentir,
Encontraram fato relacionável
omagen de Jeso-Crist', a que ferir
à queixa.
yan os judeus e cospir-lle na faz.
O que a Santa Maria mais despraz...
VI
E sen aquest', os judeus | fezeran a cruz
fazer
en que aquela omagen | querian logo põer.
E por est' ouveron todos de morrer,
e tornou-xe-lles en doo seu solaz.
O que a Santa Maria mais despraz...
CANTIGA 14
Esta é como Santa Maria rogou a seu fillo
pola alma do monge de San Pedro, por que
rogaran todo-los santos,e o non quis fazer
senon por ela.
Par Deus, muit'é gran razon
de poder Santa Maria | mais de quantos
Santos son.
I
E muit' é cousa guysada | de poder muito
con Deus
a que o troux' en seu corpo, | e depois nos
braços seus
o trouxe muitas vegadas, | e con pavor dos
judeus
fugiu con el a Egipto, | terra de rey Faraon.
Par Deus, muit' é gran razon...
II
Esta Sennor groriosa | quis gran miragre
mostrar
en un mõesteir' antigo, | que soya pret' estar
da cidade de Colonna, | u soyan a morar
monges e que de San Pedro | avian a
vocaçon.
Par Deus, muit' é gran razón...
III
Entr' aqueles bõos frades | avia un frad'
atal,
que dos sabores do mundo | mais ca da
celestial
vida gran sabor avia; | mas por se guardar
de mal
beveu ha meeza, | e morreu sen confisson.
Par Deus, muit' é gran razon...
IV
E tan toste que foi morto, | o dem' a alma
fillou
dele e con gran lediça | logo a levar cuidou;
mas defendeu-llo San Pedro, | e a Deus por
el rogou
que a alma do seu monge | por el ouvesse
perdon.
Par Deus, muit' é gran razon...
V
Pois que San Pedr' esto disse | a Deus,
respos-ll' el assi:
«Non sabes la profecia | que diss' o bon rei
Davi,
que o ome con mazela | de peccado ante mi
non verrá, nen de mia casa | nunca será
conpannon?»
Par Deus, muit' é gran razon...
VI
Mui triste ficou San Pedro | quand' esta
razon oyu,
e chamou todo-los Santos | ali u os estar
vyu,
e rogaron polo frade | a Deus; mas el
recodiu
ben com' a el recodira, | e en outra guisa
non.
Par Deus, muit' é gran razon...
VII
Quando viu San Pedr' os Santos | que assi
foran falir,
enton a Santa Maria | mercee lle foi pedir
que rogass' ao seu Fillo | que non quisess'
consentir
que a alma do seu frade | tevess' o dem' en
prijon.
Par Deus, muit' é gran razon...
VIII
Log' enton Santa Maria | a seu Fill' o
Salvador
foi rogar que aquel frade | ouvesse por seu
amor
perdon. E diss' el: «farey-o | pois end'
avedes sabor;
mas torn' a alma no corpo, | e compra ssa
profisson.»
Par Deus, muit' é gran razon...
IX
U Deus por Santa Maria | este rogo foi
fazer,
o frade que era morto | foi-ss' en pees log'
erger,
e contou ao convento | como ss' ouver' a
perder,
se non por Santa Maria, | a que Deus lo deu
en don.
Par Deus, muit' é gran razon...
CANTIGA 16
ESTA É COMO SANTA MARIA
CONVERTEU UN CAVALEIRO
NAMORADO, QUE SS' OUVER' A
DESASPERAR PORQUE NON PODIA
AVER SA AMIGA.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar,
am' a Groriosa e non poderá errar.
5 E desta razon vos quer' eu agora dizer
fremoso miragre, que foi en França fazer
a Madre de Deus, que non quiso leixar
perder
un namorado que ss' ouver' a desasperar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
10 Este namorado foi cavaleiro de gran
prez d'armas, e mui fremos' e apost' e muy
fran;
mas tal amor ouv' a ha dona, que de pran
cuidou a morrer por ela ou sandeu tornar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
15 E pola aver fazia o que vos direi:
non leixava guerra nen lide nen bon tornei,
u se non provasse tan ben, que conde nen
rey
polo que fazia o non ouvess' a preçar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
20 E, con tod' aquesto, dava seu aver tan ben
e tan francamente, que lle non ficava ren;
mas quando dizia aa dona que o sen
perdia por ela, non llo queri' ascoitar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
25 Macar o cavaleir' assi despreçar se viu
da que el amava, e seu desamor sentiu,
pero, con tod' esto, o coraçon non partiu
de querer seu ben e de o mais d'al cobiiçar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
30 Mas con coita grande que tia no coraçon,
com' ome fora de seu siso, se foi enton
a un sant' abade e disse-ll' en confisson
que a Deus rogasse que lla fezesse gãar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
35 O sant' abade, que o cavaleiro sandeu
vyu con amores, atan toste ss' apercebeu
que pelo dem' era; e poren se trameteu
de buscar carreira pera o ende tirar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
40 E poren lle disse: «Amigo, creed' a mi,
se esta dona vos queredes, fazed' assi:
a Santa Maria a pedide des aqui,
que é poderosa e vo-la poderá dar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
45 E a maneyra en que lla devedes pedir
é que duzentas vezes digades, sen mentir,
«Ave Maria, d'oj' a un ano, sen falir,
cada dia, en gollos ant' o seu altar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
50 O cavaleiro fez todo quanto ll' el mandou
e tod' ess' ano sas Aves-Marias rezou,
senon poucos dias que na cima en leixou
con coita das gentes que yan con el falar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
55 Mas o cavaleiro tant' avia gran sabor
de comprir o ano, cuidand' aver sa sennor,
que en un' ermida da Madre do Salvador
foi conprir aquelo que fora ant' obridar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
60 E u el estava en aqueste preit' atal,
mostrand' a Santa Maria ssa coit' e seu mal,
pareceu-lle log' a Reinna esperital,(yxz 16-
v.62/
tan fremos' e crara que a non pod' el catar;
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
65 E disse-ll' assi: «Toll' as mãos dante ta faz
e para-mi mentes, ca eu non tenno anfaz;
de mi e da outra dona, a que te mais praz
filla qual quiseres, segundo teu semellar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
70 O cavaleiro disse: «Sennor, Madre de
Deus,
tu es a mais fremosa cousa que estes meus
ollos nunca viron; poren seja eu dos teus
servos que tu amas, e quer' a outra leixar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
75 E enton lle disse a Sennor do mui bon prez:
«Se me por amiga queres aver, mais rafez,
tanto que est' ano rezes por mi outra vez
quanto pola outra antano fuste rezar.»
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
80 Poi-la Groriosa o cavaleiro por seu
fillou, des ali rezou el, e non lle foi greu,
quanto lle mandara ela; e, com' oý eu,
na cima do ano foy-o consigo levar.
Quen dona fremosa e bõa quiser amar...
CANTIGA 17
ESTA É DE COMO SANTA MARIA
GUARDOU DE MORTE A ONRRADA
DONA DE ROMA A QUE O DEMO
ACUSOU POLA FAZER QUEIMAR.
Sempre seja bêeita e loada
Santa Maria, a noss' avogada.
5 Maravilloso miragre d'oir
vos quer' eu ora contar sen mentir,
de como fez o diabre fogir
de Roma a Virgen de Deus amada.
Sempre seja beita e loada...
En Roma foi, ja ouve tal sazon,
que hûa dona mui de coraçon
amou a Madre de Deus; mas enton
soffreu que fosse do demo tentada.
Sempre seja beita e loada...
A dona mui bon marido perdeu,
e con pesar del per poucas morreu;
mas mal conorto dun fillo prendeu
que del avia, que a fez prennada.
Sempre seja beita e loada...
A dona, pois que prenne se sentiu,
gran pesar ouve; mas depois pariu
un fill', e u a nengu non viu
mató-o dentr' en sa cas' ensserrada.
Sempre seja beita e loada...
En aquel tenpo o demo mayor
tornou-ss' en forma d' ome sabedor,
e mostrando-sse por devador,
o Emperador lle fez dar soldada.
Sempre seja beita e loada...
E ontr' o al que soub' adevyar,
foy o feito da dona mesturar;
e disse que llo queria provar,
en tal que fosse log' ela queimada.
Sempre seja beita e loada...
E pero ll' o Emperador dizer
oyu, ja per ren non llo quis creer;
mas fez a dona ante ssi trager,
e ela vo ben aconpannada.
Sempre seja beita e loada...
Poi-lo Emperador chamar m[a]ndou
a dona, logo o dem' ar chamou,
que lle foi dizer per quanto passou,
de que foi ela mui maravillada.
Sempre seja beita e loada...
O Emperador lle disse: «Moller
bõa, de responder vos é mester.»
«O ben», diss' ela, «se prazo ouver
en que eu possa seer conssellada.»
Sempre seja beita e loada...
O emperador lles pos praz' atal:
«D'oj'a tres dias, u non aja al,
venna provar o maestr' este mal;
se non, a testa lle seja tallada.»
Sempre seja beita e loada...
A bõa dona se foi ben dali
a un' eigreja, per quant' aprendi,
de Santa Maria, e diss' assi:
«Sennor, acorre a tua coitada.»
Sempre seja beita e loada...
Santa Maria lle diss': «Est' affan
e esta coita que tu ás de pran
faz o maestre; mas mos que can
o ten en vil, e sei ben esforçada.»
Sempre seja beita e loada...
A bõa dona sen niun desden
ant' o Emperador aque-a ven;
mas o demo enton per nulla ren
nona connoceu nen lle disse nada.
Sempre seja beita e loada...
Diss' o Emperador: «Par San Martin,
maestre, mui pret' é a vossa fin.»
Mas foi-ss' o demo e fez-ll' o bocin,
e derribou do teit' ha braçada.
Sempre seja beita e loada...
CANTIGA 19
Esta é como Santa Maria fillou vingança dos
tres cavaleiros que mataron seu emigo ant' o
seu altar.
Gran sandece faz quen se por mal filla
cona que de Deus é Madre e Filla.
Desto vos direi un miragre fremoso,
que mostrou a Madre do Rei grorioso
contra un ric-ome fol e sobervioso,
e contar-vos-ei end' a gran maravilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
El [e] e outros dous un dia acharon
un seu emig', e pos el derranjaron
e en ha eigreja o ensserraron
por prazer do demo, que os seus aguilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
O enserrado teve que lle valrria
aquela eigreja de Santa Maria;
mas ant' o altar con ssa gran felonia
peças del fezeron per ssa pecadilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
E pois que o eles peças feit' ouveron,
logo da eigreja sayr-sse quiseron;
mas aquesto per ren fazer non poderon,
ca Deus os trillou, o que os maos trilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
Non foi quen podesse arma nen escudo
ter niun deles, assi foi perdudo
do fogo do ceo, ca tod' encendudo
foi ben da cabeça tro ena verilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
Poi-los malapresos arder-s' assi viron,
logo por culpados muito se sentiron;
a Santa Maria mercee pediron (yxz 19-
v.32/*
que os non metesse o dem' en sa pilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
Pois sse repentiron, foron mellorados
e dun santo bispo mui ben confessados,
que lles mandou, por remir seus pecados,
que fossen da terra como quen ss' eixilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
Demais lles mandou que aquelas espadas
con que o mataran fossen pecejadas
e cintas en feitas, con que apertadas
trouxessen as carnes per toda Cezilla.
Gran sandece faz quen se por mal filla...
CANTIGA 20
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA,
POR QUANTAS MERCEES NOS FAZ
Virga de Jesse,
quen te soubesse
loar como mereces,
5 e sen ouvesse
per que dissesse
quanto por nos padeces!
Ca tu noit' e dia
senpr' estás rogando
10 teu Fill', ai Maria,
por nos que, andando
aqui peccando
e mal obrand' -o
que tu muit' avorreces-
15 non quera, quando
sever julgando,
catar nossas sandeces.
Virga de Jesse...
E ar todavia
20 sempr' estás lidando
por nos a perfia
o dem' arrancando,
que, sossacando,
nos vai tentando
25 con sabores rafeces;
mas tu guardando
e anparando
nos vas, poi-lo couseces.
Virga de Jesse...
30 Miragres fremosos
vas por nos fazendo
e maravillosos,
per quant' eu entendo,
e corregendo
35 muit' e soffrendo,
ca non nos escaeces,
e, contendendo,
nos defendendo
do demo, que sterreces.
40 Virga de Jesse...
Aos soberviosos
d'alto vas decendo,
e os omildosos
en onrra crecendo,
45 e enadendo
e provezendo
tan santas grãadeces.
Poren m' acomendo
a ti e rendo,
50 que os teus non faleces.
Virga de Jesse...
CANTIGA 21
ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ AVER
FILLO A HA MOLLER MANŸA, E DEPOIS
MORREU-LLE, E RESSOCITOU-LLO.
Santa Maria pod' enfermos guarir
quando xe quiser, e mortos resorgir.
Na que Deus seu Sant' Esperit' enviou,
e que forma d'ome en ela fillou,
non é maravilla se del gaannou
vertude per que podess' esto comprir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Porend' un miragr' aquesta Reÿa
santa fez mui grand' a ha mesqya
moller, que con coita de que manÿa
era, foi a ela un fillo pedir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Chorando dos ollos mui de coraçon,
lle diss': «Ai Sennor, oe mia oraçon,
e por ta mercee un fillo baron
me dá, con que goy' e te possa servir.»
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Log' o que pediu lle foi outorgado,
e pois a seu tenp' aquel fillo nado
que a Santa Maria demandado
ouve, calle non quis eno don falir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Mas o men', a pouco pois que naceu,
da forte fever mui cedo morreu;
mas a madre per poucas ensandeceu
por el, e sas faces fillou-ss' a carpir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Enton a cativa con gran quebranto
ao mõesteir'o levou e ant' o
altar o pos, fazendo tan gran chanto,
que toda-las gentes fez a ssi vir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
E braandando começou a dizer:
«Santa Maria, que me fuste fazer
en dar-m' este fill' e logo mio toller,
por que non podesse con ele goyr?
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Sennor, que de madre nome me déste,
en toller-mio logo mal me fezeste;
mas polo prazer que do teu ouveste
Fillo, dá-m' este meu que veja riir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Ca tu soa es a que mio podes dar,
e porend' a ti o venno demandar;
onde, groriosa Sennor, sen tardar
dá-mio vivo, que aja que ti gracir.»
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Log' a oraçon da moller oyda
foi, e o meno tornou en vida
por prazer da Virgen santa conprida,
que o fez no leit' u jazia bolir.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
Quand' esto viu a moller, ouve pavor
da primeir', e pois tornou-sse-l' en sabor;
e deu poren graças a Nostro Sennor
e a ssa Madre, porque a quis oyr.
Santa Maria pod' enfermos guarir...
CANTIGA 22
ESTA É COMO SANTA MARIA
GUARDOU A UN LAVRADOR QUE NON
MORRESSE DAS FERIDAS QUE LLE
DAVA UN CAVALEIRO E SEUS OMEES.
Mui gran poder á a Madre de Deus
de deffender e ampara-los seus.
Gran poder á, ca sseu Fillo llo deu,
en deffender quen se chamar por seu;
e dest' un miragre vos direi eu
que ela fez grande nos dias meus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
En Armenteira foi un lavrador,
que un cavaleiro, por desamor
mui grande que avi' a seu sennor,
foi polo matar, per nome Mateus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
E u o viu seu millo debullar
na eira, mandou-lle lançadas dar;
mas el começou a Madr' a chamar
do que na cruz mataron os judeus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
Duas lançadas lle deu un peon,
mas non ll' entraron; e escantaçon
cuidou que era o coteif', enton
mais bravo foi que Judas Macabeus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
Enton a ssa azca lle lançou
e feriu-o, pero nono chagou;
ca el a Santa Maria chamou:
«Sennor, val-me como vales os teus,
Mui gran poder á a Madre de Deus...
E non moira, ca non mereci mal.»
Eles, pois viron o miragr' atal
que fez a Reynna esperital,
creveron ben, ca ant' eran encreus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
E fillaron-sse log' a repentir
e ao lavrador perdon pedir,
e deron-ll' algu'; e el punnou de ss' ir
a Rocamador con outros romeus.
Mui gran poder á a Madre de Deus...
CANTIGA 26
ESTA É COMO SANTA MARIA JUIGOU A
ALMA DO ROMEU QUE YA A
SANTIAGO, QUE SSE MATOU NA
CARREIRA POR ENGANO DO DIABO,
QUE TORNASS' AO CORPO E FEZESSE
PEDENÇA.
Non é gran cousa se sabe | bon joyzo dar
a Madre do que o mundo | tod' á de joigar.
Mui gran razon é que sábia dereito
que Deus troux' en seu corp' e de seu peito
mamentou, e del despeito
nunca foi fillar;
poren de sen me sospeito
que a quis avondar.
Non é gran cousa se sabe | bon joyzo dar...
Sobr' esto, se m' oissedes, diria
dun joyzo que deu Santa Maria
por un que cad' ano ya,
com' oý contar,
a San Jam' en romaria,
porque se foi matar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Este romeu con bõa voontade
ya a Santiago de verdade;
pero desto fez maldade
que ant' albergar
foi con moller sen bondade,
sen con ela casar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Pois esto fez, meteu-ss' ao camo,
e non sse mãefestou o mesqo;
e o demo mui festo
se le foi mostrar
mais branco que un armo,
polo tost' enganar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Semellança fillou de Santiago
e disse: «Macar m' eu de ti despago,
a salvaçon eu cha trago
do que fust' errar,
por que non cáias no lago
d' iferno, sen dultar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Mas ante farás esto que te digo,
se sabor ás de seer meu amigo:
talla o que trages tigo
que te foi deytar
en poder do emigo,
e vai-te degolar.»
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
O romeu, que ssen dovida cuidava
que Santiag' aquelo lle mandava,
quanto lle mandou tallava;
poi-lo foi tallar,
log' enton se degolava,
cuidando ben obrar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Seus companneiros, poi-lo mort' acharon,
por non lles apõer que o mataron,
foron-ss'; e logo chegaron
a alma tomar
demões, que a levaron
mui toste sen tardar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
E u passavan ant' ha capela
de San Pedro, muit' aposta e bela,
San James de Conpostela
dela foi travar,
dizend': «Ai, falss' alcavela,
non podedes levar
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
A alma do meu romeu que fillastes,
ca por razon de mi o enganastes;
gran traiçon y penssastes,
e, se Deus m' anpar,
pois falssament' a gãastes,
non vos pode durar.»
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Responderon os demões louçãos:
«Cuja est' alma foi fez feitos vãos,
por que somos ben certãos
que non dev' entrar
ante Deus, pois con sas mãos
se foi desperentar.»
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Santiago diss': «Atanto façamos:
pois nos e vos est' assi rezõamos,
ao joyzo vaamos
da que non á par,
e o que julgar façamos
logo sen alongar.»
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Log' ante Santa Maria veron
e rezõaron quanto mais poderon.
Dela tal joiz' ouveron:
que fosse tornar
a alma onde a trouxeron,
por se depois salvar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar...
Este joyzo logo foi comprido,
e o romeu morto foi resorgido,
de que foi pois Deus servido;
mas nunca cobrar
pod' o de que foi falido,
con que fora pecar.
Non é gran cousa se sabe | bon joizo dar.
CANTIGA 27
ESTA É COMO SANTA MARIA FILLOU A
SINAGOGA DOS JUDEUS E FEZ DELA
EIGREJA.
Non devemos por maravilla ter
d' a Madre do Vencedor sempre vencer.
5 Vencer dev' a Madre daquel que deitou
Locifer do Ceo, e depois britou
o ifern' e os santos dele sacou,
e venceu a mort' u por nos foi morrer.
Non devemos por maravilla ter...
10 Porend' un miragre a Madre de Deus
fez na sinagoga que foi dos judeus
e que os Apostolos, amigos seus,
compraran e foran eigreja fazer.
Non devemos por maravilla ter...
Os judeus ouveron desto gran pesar,
e a Cesar se foron ende queixar,
dizendo que o aver querian dar
que pola venda foran en receber.
Non devemos por maravilla ter...
O Emperador fez chamar ante ssi
os Apostolos, e disse-lles assi:
«Contra tal querela que or' ante mi
os judeus fezeron, que ides dizer?»
Non devemos por maravilla ter...
Os Apostolos, com' omees de bon sen,
responderon: «Sennor, nos fezemos ben,
pois que lla compramos e fezemos en
eigreja da que virgen foi conceber.»
Non devemos por maravilla ter...
Sobr' esto deu Cesar seu joyz' atal:
«Serren a eigreja, u non aja al,
e a quaraenta dias, qual sinal
de lei y acharen, tal a dev' aver.
Non devemos por maravilla ter...
Os Apostolos log' a Monte Syon
foron, u a Virgen morava enton
Santa Maria, e muy de coraçon
a rogaron que os vess' acorrer.
Non devemos por maravilla ter...
Assi lles respos a mui santa Sennor:
«Daqueste preito non ajades pavor,
ca eu vos serei y tal ajudador
per que a os judeus ajan de perder.»
Non devemos por maravilla ter...
E pois que o prazo chegou, sen falir,
mandou enton Cesar as portas abrir,
e amba-las partes fez log' alá ir
e dos seus que fossen a prova veer.
Non devemos por maravilla ter...
Des que foron dentr', assi lles conteceu
que logo San Pedr' ant' o altar varreu,
e aos judeus tan tost' appareceu
omagen da Virgen pintada seer. (yxz 27-
v.53/
Non devemos por maravilla ter...
Os judeus disseron: «Pois que a Deus praz
que esta omagen a Maria faz,
leixemos-ll' aqueste seu logar en paz
e non queramos con ela contender.»
Non devemos por maravilla ter...
Foron-ss' os judeus, e gãou dessa vez
aquela eigreja a Sennor de prez,
que foi a primeira que sse nunca fez
en seu nome dela, sen dulta prender.
Non devemos por maravilla ter...
Depois Juyão, emperador cruel,
que a Santa Maria non foi fiel,
mandou ao poboo dos d' Irrael
que ll' aquela omagen fossen trager.
Non devemos por maravilla ter...
E os judeus, que sempr' acostumad' an
de querer gran mal à do mui bon talan,
foron y; e assi os catou de pran
que a non ousaron per ren sol tanger.
Non devemos por maravilla ter...
CANTIGA 31
ESTA É COMO SANTA MARIA LEVOU O
BOI DO ALDEÃO DE SEGOVIA QUE LL'
AVIA PROMETUDO E NON LLO QUERIA
DAR.
Tanto, se Deus me perdon,
son da Virgen connoçudas
sas mercees, que quinnon
queren end' as bestias mudas.
Desto mostrou un miragre | a que é
chamada Virga
de Jesse na ssa eigreja | que éste en Vila-
Sirga,
que a preto de Carron
é duas leguas sabudas,
u van fazer oraçon
gentes grandes e miudas.
Tanto, se Deus me perdon...
Ali van muitos enfermos, | que receben
sãydade,
e ar van-x'i muitos sãos, | que dan y ssa
caridade;
e per aquesta razon
sson as gentes tan movudas,
que van y de coraçon
ou envian sas ajudas.
Tanto, se Deus me perdon...
E porend' un aldeão | de Segovia, que
morava
na aldea, ha vaca | perdera que muit'
amava;
e en aquela ssazon
foran y outras perdudas,
e de lobos log' enton
comestas ou mal mordudas.
Tanto, se Deus me perdon...
E porque o aldeão | desto muito se temia,
ante sa moller estando, | diss' assi: «Santa
Maria,
dar-t-ei o que trag', en don,
a vaca, se ben m' ajudas
que de lob' e de ladron
mia guardes; ca defendudas
Tanto, se Deus me perdon...
Son as cousas que tu queres; | e por aquesto
te rogo
que mi aquesta vaca guardes.» | E a vaca vo
logo
sen dan' e sen ocajon,
con ssas orellas merjudas,
e fez fillo sen lijon
con sinaes pareçudas.
Tanto, se Deus me perdon...
Pois creceu aquel bezerro | e foi almall'
arrizado,
a ssa moller o vilão | diss': «Irey cras a
mercado;
mas este novelo non
yrá nas offereçudas
bestias qu' en offereçon
sson aos Santos rendudas.»
Tanto, se Deus me perdon...
Dizend' esto aa noyte, | outro dia o vilão
quis ir vende-lo almallo; | mas el sayu-lle
de mão,
e correndo de randon
foi a jornadas tendudas,
come sse con aguillon
o levassen de corrudas.
Tanto, se Deus me perdon...
Pois foi en Santa Maria, | mostrou-sse por
bestia sage:
meteu-sse na ssa eigreja | e parou-ss' ant' a
omage;
e por aver ssa raçon
foi u as bestias metudas
eran, que ena maison
foran dadas ou vendudas.
Tanto, se Deus me perdon...
E des ali adeante | non ouv' y boi nen
almallo
que tan ben tirar podesse | o carr' e soffrer
traballo,
de quantas bestias y son
que an as unnas fendudas,
sen feri-lo de baston
nen d' aguillon a 'scodudas.
Tanto, se Deus me perdon...
O lavrador que pos ele | a mui gran pressa
vera,
poi-lo vyu en Vila-Sirga, | ouv' en
maravilla fera;
e fez chamar a pregon,
e gentes foron vudas,
a que das cousas sermon
fez que ll'eran conteçudas.
Tanto, se Deus me perdon...
CANTIGA 33
ESTA É COMO SANTA MARIA LEVOU EN
SALVO O ROMEU QUE CAERA NO MAR,
E O GUYOU PER SO A AGUA AO PORTO
ANTE QUE CHEGASS' O BATEL.
Gran poder á de mandar
o mar e todo-los ventos
a Madre daquel que fez
todo-los quatr' elementos.
Desto vos quero contar
un miragre, que achar
ouv' en un livr', e tirar
o fui ben d' ontre trezentos,
que fez a Virgen sen par
por nos a todos mostrar
que seus sson os mandamentos.
Gran poder á de mandar...
Ha nav' ya per mar,
cuidand' en Acre portar;
mas tormenta levantar
se foi, que os bastimentos
da nave ouv' a britar,
e começou-ss' afondar
con romeus mais d' oitocentos.
Gran poder á de mandar...
Un Bispo fora entrar
y, que cuidava passar
con eles; e pois torvar
o mar viu, seus penssamentos
foron dali escapar;
e poren se foi cambiar
no batel ben con duzentos
Gran poder á de mandar...
Omes. E u saltar
deles quis e se lançar
cuidou no batel; mas dar
foi de pees en xermentos
que y eran, e tonbar
no mar foi e mergullar
be até nos fondamentos.
Gran poder á de mandar...
Os do batel a remar
se fillaron sen tardar
per sse da nav' alongar
e fugir dos escarmentos,
de que oyran falar,
dos que queren perfiar
sen aver acorrimentos.
Gran poder á de mandar...
E con coyta d' arribar,
ssa vea foron alçar,
e terra foron fillar
con pavor e medorentos;
e enton viron estar
aquel que perigoar
viran enos mudamentos.
Gran poder á de mandar...
Començaron-ss' a sinar,
e fórono preguntar
que a verdad' enssinar
lles fosse sen tardamentos,
se guarira per nadar,
ou queno fora tirar
do mar e dos seus tormentos.
Gran poder á de mandar...
E el fillou-ss' a chorar
e disse: «Se Deus m' anpar,
Santa Maria guardar
me quis por merecimentos
non meus, mas por vos mostrar
que quen per ela fiar,
valer-ll-an seus cousimentos.»
Gran poder á de mandar...
Quantos eran no logar
começaron a loar
e «mercee» lle chamar,
que dos seus ensinamentos
os quisess' acostumar,
que non podessen errar
nen fezessen falimentos.
Gran poder á de mandar...
CANTIGA 36
ESTA É DE COMO SANTA MARIA
PARECEU NO MASTE DA NAVE, DE
NOITE, QUE YA A BRETANNA, E A
GUARDOU QUE NON PERIGOASSE.
Muit' amar devemos en nossas voontades
a Sennor, que coitas nos toll' e
tempestades.
E desto mostrou a Virgen maravilla
quamanna
non pode mostrar outro santo, no mar de
Bretanna,
u foi livrar ha nave, u ya gran companna
d'omees por sa prol buscar, no que todos
punnades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
E u singravan pelo mar, atal foi ssa ventura
que sse levou mui gran tormenta, e a noit'
escura
se fez, que ren non lles valia siso nen
cordura,
e todos cuidaron morrer, de certo o
sabiades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
Pois viron o perigo tal, gemendo e
chorando
os santos todos a rogar se fillaron,
chamando
por seus nombres cada un deles, muito lles
rogando
que os vessen acorrer polas ssas piedades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
Quand' est' oyu un sant' abade, que na nave
ya,
disse-lles: Tenno que fazedes ora gran
folia,
que ides rogar outros santos, e Santa Maria,
que nos pode desto livrar, sol nona
ementades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
Quand' aquest' oyron dizer a aquel sant'
abade,
enton todos dun coraçon e da voontade
chamaron a Virgen santa, Madre de
piedade,
que lles valvess' e non catasse as suas
maldades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
E dizian: «Sennor, val-nos, ca a nave sse
sume
E dizend' esto, cataron, com' er é de
costume,
contra o masto, e viron en cima mui gran
lume,
que alumava mui mais que outras
craridades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
E pois lles est' apareceu, foi o vento
quedado,
e o ceo viron craro e o mar amanssado,
e ao porto chegaron cedo, que desejado
avian; e se lles proug' en, sol dulta non
prendades.
Sempr' a Virgen groriosa ao que s'en
ela fia...
CANTIGA 37
ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ
COBRAR SEU PEE AO OME QUE O
TALLARA CON COYTA DE DOOR.
Miragres fremosos
faz por nos Santa Maria,
5 e maravillosos.
Fremosos miragres faz que en Deus
creamos,
e maravillosos, por que o mais temamos;
porend' un daquestes é ben que vos
digamos,
dos mais piadosos.
Miragres fremosos...
Est' avo na terra que chaman Berria,
dun ome coytado a que o pe ardia,
e na ssa eigreja ant' o altar jazia
ent' outros coitosos.
Miragres fremosos...
Aquel mal do fogo atanto o coytava,
que con coita dele o pe tallar mandava;
e depois eno conto dos çopos ficava,
desses mais astrosos,
Miragres fremosos...
Pero con tod' esto sempr' ele confiando
en Santa Maria e mercee chamando
que dos seus miragres en el fosse
mostrando
non dos vagarosos,
Miragres fremosos...
E dizendo: «Ay, Virgen, tu que es escudo
sempre dos coitados, queras que acorrudo
seja per ti; se non, serei oi mais tudo
por dos mais nojosos.
Miragres fremosos...
Logo a Santa Virgen a el en dormindo
per aquel pe a mão yndo e vindo
trouxe muitas vezes, e de carne conprindo
con dedos nerviosos,
Miragres fremosos...
E quando s' espertou, sentiu-sse mui ben
são,
e catou o pe; e pois foi del ben certão,
non semellou log', andando per esse chão,
dos mais preguiçosos.
Miragres f remosos...
Quantos aquest' oyron, log' ab veron
e aa Virgen santa graças ende deron
e os seus miragres ontr' os outros teveron
por mais groriosos.
Miragres fremosos...
CANTIGA 39
ESTA É COMO SANTA MARIA GUARDOU
A SA OMAGEN, QUE A NON QUEIMAS' O
FOGO.
Torto seria grand' e desmesura
de prender mal da Virgen ssa figura.
Ond' avo en San Miguel de Tomba,
no mõesteiro que jaz sobre lomba
da gran pena, que ja quant' é comba,
en que corisco feriu noit' escura.
Torto seria grand' e desmesura...
Toda a noite ardeu a perfia
ali o fog' e queimou quant' avia
na eigreja, mas non foi u siia
a omagen da que foi Virgen pura.
Torto seria grand' e desmesura...
E como quer que o fogo queimasse
en redor da omagen quant' achas[s]e,
Santa Maria non quis que chegasse
o fum' a ela, nena caentura.
Torto seria grand' e desmesura...
Assi guardou a Reÿa do Ceo
a ssa omagen, que nen sol o veo
tangeu o fogo, come o ebreo
guardou no forno con ssa vestidura.
Torto seria grand' e desmesura...
Assi lle foi o fog' obediente
a Santa Maria, que sol niente
non tangeu sa omage veramente,
ca de seu Fill' el era creatura.
Torto seria grand' e desmesura...
Daquesto foron mui maravillados
quantos das terras y foron juntados,
que solament' os fios defumados
non viron do veo, nena pintura.
Torto seria grand' e desmesura...
Da omagen nen ar foi afumada,
ante semellava que mui lavada
fora ben toda con agua rosada,
assi cheirava con ssa cobertura.
Torto seria grand' e desmesura...
CANTIGA 40
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA DAS
MARAVILLAS QUE DEUS FEZ POR ELA.
Deus te salve, groriosa
Reÿa Maria,
5 Lume dos Santos fremosa
e dos Ceos Via.
Salve-te, que concebiste
mui contra natura,
e pois teu padre pariste
e ficaste pura
Virgen, e poren sobiste
sobela altura
dos ceos, porque quesiste
o que el queria.
Deus te salve groriosa...
Salve-te, que enchoisti
Deus gran sen mesura
en ti, e dele fezisti
om' e creatura;
esto foi porque ouvisti
gran sen e cordura
en creer quando oisti,
ssa mesageria.
Deus te salve, groriosa...
Salve-te Deus, ca nos disti
en nossa figura
o seu Fillo que trouxisti,
de gran fremosura,
e con el nos remisti
da mui gran locura
que fez Eva, e vencisti
o que nos vencia.
Deus te salve, groriosa...
Salve-te Deus, ca tollisti
de nos gran tristura
u por teu Fillo frangisti
a carcer escura
u yamos, e metisti
nos en gran folgura;
con quanto ben nos visti,
queno contaria?
Deus te salve, groriosa...
CANTIGA 41
ESTA É COMO SANTA MARIA
GUARECEU O QUE ERA SANDEU.
A Virgen, Madre de Nostro Sennor,
ben pode dar seu siso
ao sandeu, pois ao pecador
5 faz aver Parayso.
En Seixons fez a Garin cambiador
a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
que tant' ouve de o tirar sabor
a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
10 do poder do demo, ca de pavor
del perdera o siso;
mas ela tolleu-ll' aquesta door
e deu-lle Parayso.
A Virgen, Madre de Nostro Sennor...
15 Gran ben lle fez en est' e grand' amor
a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
que o livrou do dem' enganador,
a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
que o fillara come traedor
20 e tollera-ll' o siso;
mas cobrou-llo ela, e por mellor
ar deu-lle Parayso.
A Virgen, Madre de Nostro Sennor...
Loada será mentr' o mundo for
25 a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
de poder, de bondad' e de valor,
a Virgen, Madre de Nostro Sennor,
porque a ssa mercee é mui mayor
ca o nosso mal siso,
30 e sempre a seu Fill' é rogador
que nos dé Parayso.
A Virgen, Madre de Nostro Sennor...
CANTIGA 42
ESTA É DE COMO O CRERIZON METEU
O ANEL ENO DEDO DA OMAGEN DE
SANTA MARIA, E A OMAGEN
ENCOLLEU O DEDO CON EL.
A Virgen mui groriosa,
Reÿa espirital,
5 dos que ama é ceosa,
ca non quer que façan mal.
Dest' un miragre fremoso, | ond' averedes
sabor,
vos direy, que fez a Virgen, | Madre de
Nostro Sennor,
per que tirou de gran falla | a un mui falss'
amador,
que amude cambiava | seus amores dun en
al.
A Virgen mui groriosa...
Foi en terra d'Alemanna | que querian
renovar
has gentes ssa eigreja, | e poren foran tirar
a majestad' ende fora, | que estava no altar,
e posérona na porta | da praça, sso o portal.
A Virgen mui groriosa...
En aquela praç' avia | un prado mui verd'
assaz,
en que as gentes da terra | yan ter seu solaz
e jogavan à pelota, | que é jogo de que praz
muit' a omes mancebos | mais que outro
jog' atal.
A Virgen mui groriosa...
Sobr' aquest' ha vegada | chegou y un gran
tropel
de mancebos por jogaren | à pelot', e un
donzel
andava y namorado, | e tragia seu anel
que ssa amiga lle dera, | que end' era
natural.
A Virgen mui groriosa...
Este donzel, con gran medo | de xe l' o anel
torcer
quando feriss' a pelota, | foy buscar u o
põer
podess'; e viu a omage | tan fremosa
parecer,
e foi-llo meter no dedo, | dizend': «Oi mais
non m'enchal
A Virgen mui groriosa...
Daquela que eu amava, | ca eu ben o jur' a
Deus
que nunca tan bela cousa | viron estes ollos
meus;
poren daqui adeante | serei eu dos servos
teus,
e est' anel tan fremoso | ti dou porend' en
sinal.»
A Virgen mui groriosa...
E os gêollos ficados | ant' ela con devoçon,
dizendo «Ave Maria», | prometeu-lle log'
enton
que des ali adelante | nunca no seu coraçon
outra moller ben quisesse | e que lle fosse
leal.
A Virgen mui groriosa...
Pois feit' ouve ssa promessa, | o donzel
logo ss' ergeu,
e a omagen o dedo | cono anel encolleu;
e el, quando viu aquesto, | tan gran pavor
lle creceu
que diss' a mui grandes vozes: | «Ay, Santa
Maria, val!
A Virgen mui groriosa...
As gentes, quand' est' oyron, | correndo
chegaron y
u o donzel braadava, | e el contou-lles des i
como vos ja dit' avemos; | e conssellaron-ll'
assi
que orden logo fillasse | de monges de
Claraval.
A Virgen mui groriosa...
Que o fezesse cuidaron | logo todos dessa
vez;
mas per consello do demo | ele d' outra
guisa fez,
que o que el prometera | aa Virgen de gran
prez,
assi llo desfez da mente | como desfaz agua
sal.
A Virgen mui groriosa...
E da Virgen groriosa | nunca depois se
nenbrou,
mas da amiga primeira | outra vez sse
namorou,
e per prazer dos parentes | logo con ela
casou
e sabor do outro mundo | leixou polo
terreal.
A Virgen mui groriosa...
Poi-las vodas foron feitas | e o dia sse sayu,
deitou-ss' o novio primeiro | e tan toste ss'
adormyu;
e el dormindo, en sonnos | a Santa Maria
vyu,
que o chamou mui sannuda: | «Ai, meu
falss' e mentiral!
A Virgen mui groriosa...
De mi por que te partiste | e fuste fillar
moller?
Mal te nenbrou a sortella | que me dést';
ond' á mester
que a leixes e te vaas | comigo a como quer,
se non, daqui adeante | averás coyta
mortal.»
A Virgen mui groriosa...
Logo s' espertou o novio, | mas pero non se
quis ir;
e a Virgen groriosa | fez-lo outra vez
dormir,
que viu jazer ontr' a novia | e ssi pera os
partir,
chamand' a el mui sannuda: | «Mao, falsso,
desleal,
A Virgen mui groriosa...
Ves? E por que me leixaste | e sol vergonna
non ás?
Mas se tu meu amor queres, | daqui te
levantarás,
e vai-te comigo logo, | que non esperes a
cras;
erge-te daqui correndo | e sal desta casa,
sal!»
A Virgen mui groriosa...
Enton ss' espertou o novio, | e desto tal
medo pres
que ss' ergeu e foi ssa via, | que non
chamou dous nen tres
omes que con el fossen; | e per montes mais
dun mes
andou, e en un' hermida | se meteu cab' un
pal.
A Virgen mui groriosa...
E pois en toda ssa vida, | per com' eu escrit'
achei,
serviu a Santa Maria, | Madre do muit' alto
Rei,
que o levou pois conssigo | per com' eu
creo e sei,
deste mund' a Parayso, | o reino celestial.
A Virgen mui groriosa...
CANTIGA 43
ESTA É DE COMO SANTA MARIA
RESUCITOU UN MENŸO NA SSA
EIGREJA DE SALAS.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira,
poren muito ll' avorrece | da paravla
mentireira.
E porend' un ome bõo | que en Darouca
morava,
de ssa moller, que avia | bõa e que muit'
amava,
non podia aver fillos, | e porende se
queixava
muit' end' el; mas disse-ll' ela: | «Eu vos
porrei en carreira
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Com' ajamos algun fillo, | ca se non, eu
morreria.
Poren dou-vos por conssello | que log' a
Santa Maria
de Salas ambos vaamos, | ca quen se en ela
fia,
o que pedir dar-ll-á logo, | aquest' é cousa
certeira.»
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Muit' en proug' ao marido, | e tan toste se
guisaron
de fazer sa romaria | e en seu cam' entraron.
E pois foron na eigreja, | Santa Maria
rogaron
que podessen ayer fillo | ontr' el e ssa
conpanneira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
E a moller fez promessa | que se ela fill'
ouvesse,
que con seu peso de cera | a un ano llo
trouxesse
e por seu servidor sempre | na ssa eigreja o
désse;
e que aquesto comprisse | entrou-ll' ende
par maneira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
E pois aquesto dit' ouve, | ambos fezeron
tornadA
a Darouca u moravan; | mas non ouv' y
gran tardada
que log' a poucos de dias | ela se sentiu
prennada,
e a seu temp' ouve fillo | fremoso de gran
maneira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Des que lle naceu o fillo, | en logar que
adianos
déss' end' a Santa Maria | teve-o grandes
set' anos
que lle non vo emente | nen da cera nen dos
panos
con que o levar devera, | e cuidou seer
arteira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Ca u quis te-lo fillo | e a cera que tia,
deu fever ao meno | e mató-o muit' aga,
que lle nunca prestar pode | fisica nen
meeza;
mas gran chanto fez la madre | pois se viu
dele senlleira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Que o soterrassen logo | o marido ben
quisera;
mas la madre do meno | disse con gran
coita fera
que el' a Santa Maria | o daria, que llo dera
con sa cera como ll' ela | prometera da
primeira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
E logo en outro dia | entraron en seu camo,
e a madr' en ataude | levou sig' aquel meno;
e foron en quatro dias, | e ant' o altar
festinno
o pos, fazendo gran chanto, | depenando sa
moleira
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
E dizend' a grandes vozes: | «A ti venno,
Groriosa,
con meu fill' e cona cera | de que te fui
mentirosa
en cho dar quand' era vivo; | mas, porque es
piadosa,
o adug' ante ti morto, | e dous dias á que
cheira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Mas se mio tu dar quisesses, | non porque
seja dereito,
mas porque sabes mia coita, | e non
catasses despeito
de como fui mentirosa, | mas quisesses meu
proveito
e non quisesses que fosse | nojosa e mui
parleira.»
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Toda a noit' a mesquinna | estev' assi
braadando
ant' o altar en gêollos, | Santa Maria
chamando
que ss' amercasse dela | e seu Fillo ll'
ementando,
a quen polas nossas coitas | roga senpr' e é
vozeira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Mas, que fez Santa Maria, | a Sennor de
gran vertude
que dá aos mortos vida | e a enfermos
saude?
Logo fez que o meno | chorou eno ataude
u jazia muit' envolto | en panos da liteira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Quando o padr' e a madre, | que fazian
muit' esquivo
doo por seu fillo, viron | que o men' era
vivo,
britaron o ataude | u jazia o cativo.
Enton vo y mais gente | que non ven a ha
feira,
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
Por veer o gran miragre | que a Virgen
demostrara
de como aquel meninno | de morte
ressucitara,
que a cabo de seis dias | jazendo morto
chorara
por prazer da Groriosa, | santa e
dereitureira.
Porque é Santa Maria | leal e mui
verdadeira...
CANTIGA 44
ESTA É COMO O CAVALEIRO QUE
PERDERA SEU AÇOR FOY-O PEDIR A
SANTA MARIA DE SALAS; E ESTANDO
NA EIGREJA, POSOU-LLE NA MÃO.
Quen fiar na Madre do Salvador
non perderá ren de quanto seu for.
Quen fiar en ela de coraçon,
averrá-lle com' a un ifançon
avêo eno reino d' Aragon,
que perdeu a caça un seu açor,
Quen fiar na Madre do Salvador...
Que grand' e mui fremos' era, e ren
non achava que non fillasse ben
de qual prijon açor fillar conven,
d' ave pequena tro ena mayor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E daquest' o ifançon gran pesar
avia de que o non pod' achar,
e porende o fez apregõar
pela terra toda en derredor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E pois que por esto nono achou,
pera Salas seu camo fillou
e de cera semellança levou
de ssa av', e diss' assi: «Ai, Sennor
Quen fiar na Madre do Salvador...
Santa Maria, eu venno a ti
con coita de meu açor que perdi,
que mio cobres; e tu fas-lo assi,
e aver-m-ás sempre por servidor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E demais esta cera ti darei
en sa figura, e sempr' andarei
pregõando teu nome e direi
como dos Santos tu es la mellor.»
Quen fiar na Madre do Salvador...
Pois esto disse, missa foi oyr
mui cantada; mas ante que partir
s' en quisesse, fez-ll' o açor vir
Santa Maria, ond' ouv' el sabor.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E que ouvess' end' el mayor prazer,
fez-ll' o açor ena mão decer,
come se ouvesse log' a prender
caça con el como faz caçador.
Quen fiar na Madre do Salvador...
E el enton muit' a Madre de Deus
loou, e chorando dos ollos seus,
dizend': «Ai, Sennor, tantos son os teus
bes que fazes a quen ás amor!»
Quen fiar na Madre do Salvador...
CANTIGA 45
ESTA É COMO SANTA MARIA GÃOU DE
SEU FILLO QUE FOSSE SALVO O
CAVALEIRO MALFEITOR QUE CUIDOU
DE FAZER UN MÕESTEIRO E MORREU
ANTE QUE O FEZESSE.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piedade,
que ao peccador colle | por feito a
voontade.
E desta guisa avo | pouc' á a un cavaleiro
fidalg' e rico sobejo, | mas era brav' e
terreiro,
sobervios' e malcreente, | que sol por Deus
un deiro
non dava, nen polos Santos, | esto sabed' en
verdade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Aqueste de fazer dano | sempre ss' ende
traballava,
e a todos seus vezos | feria e dostava;
sen esto os mõesteiros | e as igrejas britava,
que vergonna non avia | do prior nen do
abade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
E todo seu cuidad' era | de destroir los
mesqos
e de roubar os que yan | seguros pelos
camos,
e per ren non perdõav' a | molleres nen a
menos,
que ss' en todo non metesse | por de mui
gran crueldade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
E esta vida fazendo, | tan brava e tan
esquiva,
un dia meteu ben mentes | como sa alma
cativa
era cha de pecados | e mui mais morta ca
viva,
se mercee non ll' ouvesse | a comprida de
bondade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
E, porque sempre os bõos | lle davan mui
gran fazfeiro
do muito mal que fazia, | penssou que un
mõesteiro
faria con bõa claustra, | igreja e cymiteiro,
estar e enfermaria, | e todo en ssa herdade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
E des i ar cuidou logo | de meter y gran
convento
de monges, se el podesse, | ou cinquaenta
ou cento;
e per que mui ben vivessen | lles daria
conprimento,
e que por Santa Maria | servir seria y frade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Tod' aquesto foi cuidando | mentre siia
comendo;
e poi-ll' alçaron a mesa, | foi catar logo
correndo
logar en que o fezesse, | e achó-o, com'
aprendo,
muit' apost' e mui viçoso, | u compris' ssa
caridade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
En este coidad' estando | muit' aficad' e mui
forte,
ante que o começasse, | door lo chegou a
morte;
e os demões a alma | fillaron del en sa
sorte,
mais los angeos chegaron | dizendo:
«Estad', estade!
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Ca non quer Santa Maria | que a vos assi
levedes.»
E disseron os diabos: | «Mais vos, que
razon avedes
d' ave-la? Ca senpr' est' ome | fezo mal,
como sabedes,
por que est' alma é nossa, | e allur outra
buscade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Os angeos responderon: | «Mais vos folia
fezestes
en fillardes aquest' alma, | mao conssell' y
ouvestes
e mui mal vos acharedes | de quanto a ja
tevestes;
mais tornad' a vosso fogo | e nossa alma
leixade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Os diabos ar disseron: | «Esto per ren non
faremos,
ca Deus é mui justiceiro, | e por esto ben
sabemos
que esta alma fez obras por que a aver
devemos
toda ben enteiramente, | sen terç' e sen
meadade.»
A Virgen Santa Maria | tant é de gran
piadade...
E un dos angeos disse: | «O que vos dig'
entendede:
eu sobirei ao ceo, | e vos aqui mi atendede,
e o que Deus mandar desto, | vos enton
esso fazede;
e oi mais non vos movades | nen faledes,
mais calade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Depois aquestas palavras | o angeo logo ss'
ya
e contou aqueste feito | mui tost' a Santa
Maria;
ela log' a Jeso-Cristo | aquela alma pidia,
dizend': «Ai, meu Fillo santo, | aquesta
alma me dade.»
A Virgen Santa Maria | tant' e de gran
piadade...
E ele lle respondia: | «Mia Madr', o que vos
quiserdes
ei eu de fazer sen falla, | pois vos en sabor
ouverdes;
mais torn' a alma no corpo, | se o vos por
ben teverdes,
e faça o mõesteyro, | u viva en omildade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
E pois Deus est' ouve dito, | un pano branco
tomava,
feito ben come cogula, | que ao angeo dava,
e sobela alma logo | o pano deitar mandava,
porque a leixass' o demo | comprido de
falssidade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Tornou-ss' o angeo logo; | e atan toste que
viron
os diabos a cogula, | todos ant' ela fugiron;
e os angeos correndo | pos eles mal los
feriron,
dizendo: «Assi perdestes | o ceo per
neycidade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Pois que ss' assi os diabos | foron dali
escarnidos
e maltreitos feramente, | dostados e feridos,
foron pera seu iferno, | dando grandes
apelidos,
dizendo aos diabos: | «Varões, oviad',
oviade.»
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
Os angeos depos esto | aquela alma fillaron,
e cantando «Surgat Deus» | eno corpo a
tornaron
daquel cavaleiro morto, | e vivo o
levantaron;
e fezo seu mõesteiro, | u viveu en castidade.
A Virgen Santa Maria | tant' é de gran
piadade...
CANTIGA 48
ESTA É COMO SANTA MARIA TOLLEU A
AGUA DA FONTE AO CAVALEIRO, EN
CUJA ERDADE ESTAVA, E A DEU AOS
FRADES DE MONSSARRAD A QUE A EL
QUERIA VENDER.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos,
5 que fill' aos que an muyto | e dá aos
menguadosos.
E daquest' un gran miragre | fez pouc' á en
Catalonna
a Virgen Santa Maria, | que con Jeso-Cristo
ponna
que no dia do joyzo | possamos ir sen
vergonna
ant' el e que non vaamos | u yrán os
soberviosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Monssarrat éste chamado | o logar u é a
fonte
saborosa, grand' e crara, | que naç' encima
dun monte,
que era dun cavaleiro; | e d'outra parte de
fronte
avia un mõesteyro | de monges religiosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Mas en aquel mõesteiro | ponto d'agua non
avia
se non quant' o cavaleiro | da fonte lles dar
queria,
por que os monges lle davan | sa renta da
abadia;
e quando lla non conprian, | eran dela
perdidosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
E demais, sobre tod' esto, | el assi os
pennorava,
que quanto quer que achasse | do mõesteiro
fillava;
e porend' aquel convento | en tan gran coita
estava,
que non cantavan as oras | e andavan mui
chorosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Os monges, porque sentian | a ssa casa mui
menguada,
entre ssi acord' ouveron | de lle non daren
en nada,
ca tian por sobervia | de bever agua
conprada;
poren todos na eigreja | entraron muit'
omildosos,
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Dizend': «Ai Santa Maria, | a nossa coyta
veede,
e con Deus, o vosso Fillo, | que todo pode,
põede
que nos dé algun consello, | que non
moiramos de sede,
veend' agua conos ollos | e seer en
desejosos.»
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Pois ssa oraçon fezeron, | a Sennor de
piadade
fez que sse canbiou a fonte | ben dentro na
sa erdade
dos monges, que ant' avian | da agua gran
soidade,
e des alia adeante | foron dela avondosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
Pois que viu o cavaleiro | que ssa font' assi
perdera
por prazer da Groriosa, | que lla aposto
tollera,
deu a erdad' u estava | a fonte ond' el
vendera
a agu' àquele convento, | onde pois foron
viçosos.
Tanto son da Groriosa | seus feitos mui
piadosos...
CANTIGA 50
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA,
QUE MOSTRA POR QUE RAZON
ENCARNOU NOSTRO SENNOR EN ELA.
Non deve null' ome desto per ren
dultar
que Deus ena Virgen vo carne fillar.
E dultar non deve, por quanto vos direi,
porque, se non foss' esto, non viramos Rei
que corpos e almas nos julgass', eu o sei,
como Jeso-Cristo nos verrá joigar.
Non deve null' ome desto per ren dultar...
Nen d' outra maneira non viramos Deus,
nen amor con doo nunca dos feitos seus
ouveramos, se el non foss', amigos meus,
tal que nossos ollos o podessen catar.
Non deve null' ome desto per ren dultar...
Ca Deus en ssi mesmo ele mingua non á,
nen fame nen sede nen frio nunca ja,
nen door nen coyta; pois quen sse doerá
del, nen piadade averá nen pesar?
Non deve null' ome desto per ren dultar...
E poren dos ceos quis en terra decer
sen seer partido nen menguar seu poder;
e quis ena Virgen por nos carne prender,
e leixou-ss' encima, demais, por nos matar.
Non deve null' ome desto per ren dultar...
Onde come a Deus lle devemos amor
e come a Padre e nosso Criador,
e come a ome del coyta e door
avermos de quanto quis por nos endurar.
Non deve null' ome desto per ren dultar...
E a Santa Virgen, en que ss' el ensserrou,
de que prendeu carne e por madre fillou,
muit' amar devemos, ca per ela mostrou
todas estas cousas que vos fui ja contar.
Non deve null' ome desto per ren dultar...
CANTIGA 52
ESTA É COMO SANTA MARIA FEZ VIR
LAS CABRAS MONTESAS A
MONTSARRAT, E SE LEIXAVAN
ORDENNAR AOS MONGES CADA DIA.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer
a Santa Maria, de que Deus quis
nacer.
E dest' un miragre, se Deus m' anpar,
mui fremoso vos quer' ora contar,
que quiso mui grand' a Groriosa mostrar;
oyde-mio, se ouçades prazer:
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
En Monsarrat, de que vos ja contei,
á un' igreja, per quant' apres' ei,
feita no nome da Madre do alto Rei
que quis por nos morte na cruz prender.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
Aquel logar a pe dun mont' está
en que muitas cabras montesas á;
ond' estrãya maravilla avo ja,
ca foron todas ben juso decer.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
Ant' a eigreja qu' en un vale jaz,
e ant' a porta paravan-ss' en az
e estavan y todas mui quedas en paz,
ta que os monges las yan monger.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
E quatr' anos durou, segund' oý,
que os monges ouveron pera si
assaz de leite; que cada noite ali
vian as cabras esto fazer.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
Ates que un crerizon sandeu
furtou un cabrit' en e o comeu;
e das cabras depois assi lles conteceu
que nunca mais las poderon aver.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
E desta guisa a Madre de Deus
quis governar aqueles monges seus,
por que depois gran romaria de romeus
veron polo miragre saber.
Mui gran dereit' é d' as bestias obedecer...
CANTIGA 59
COMO O CRUCIFISSO DEU A PALMADA
A ONRRA DE SA MADRE
AA MONJA DE FONTEBRAR QUE
POSERA DE SS' IR CON SEU
ENTENDEDOR.
Quena Virgen ben servir
nunca poderá falir.
5 E daquesto un gran feito
dun miragre vos direi
que fez mui fremos' afeito
a Madre do alto Rey,
per com' eu escrit' achey,
10 se me quiserdes oyr.
Quena Virgen ben servir...
Esto foi dûa donzela
que era en Fontebrar
monja, fremosa e bela,
15 que a Virgen muit' amar
sabia, se Deus m' anpar
Mais quis da orden sayr
Quena Virgen ben servir...
Con un cavaleir' aposto
20 e fremos' e de bon prez,
e non catou seu dêosto,
mais como moller rafez
quisiera ss' ir dessa vez.
Mais nona quis leixar ir
25 Quena Virgen ben servir...
A Virgen Santa Maria,
a que mui de coraçon
saudava noit' e dia
cada que sa oraçon
30 fazia, e log' enton
ya beyjar, sen mentir,
Quena Virgen ben servir...
Os pees da majestade
e dun crucifiss' assi,
35 que y de gran santidade
avia, com' aprendi.
E pois s' ergia dali,
ya as portas abrir.
Quena Virgen ben servir...
40 Da ygreg', e sancristãa
era, com' oý dizer,
do logar, e a campãa
se fillava a tanger
por s' o convento erger
45 e a sas oras vÿir.
Quena Virgen ben servir...
Fazend' assi seu offiço,
mui gran tenp' aquest' usou,
atêes que o proviço
50 a fez que se namorou
do cavaleir', e punnou
de seu talante comprir.
Quena Virgen ben servir...
E porend' hûa vegada
55 a meya noite s' ergeu
e, com' era costumada,
na ygreja se meteu
e à omagen correu
por se dela espedir.
60 Quena Virgen ben servir...
E ficando os gêollos,
disse: «Con graça, Sennor.»
Mas chorou logo dos ollos
a Madre do Salvador,
65 en tal que a pecador
se quisesse repentir.
Quena Virgen ben servir...
Enton s' ergeu a mesquinna
por s' ir log' ante da luz;
70 mas o crucifiss' aginna
tirou a mão da cruz
e, com' ome que aduz,
de rrijo a foi ferir.
Quena Virgen ben servir...
75 E ben cabo da orella
lle deu orellada tal
que do cravo a semella
teve sempre por sinal,
por que non fezesse mal
80 nen s' assi foss' escarnir.
Quena Virgen ben servir...
Desta guisa come morta
jouve tolleita sen sen,
trões o convent' a porta
85 britou; e espantou-s' en
quand' ela lles contou quen
a feriu pola partir
Quena Virgen ben servir...
Do grand' erro que quisera
90 fazer, mais que non quis Deus
nena sa Madre, que fera
mente quer guarda-los seus,
segun Lucas e Matheus
e os outros escrivir
95 Quena Virgen ben servir...
Foron. Porend' o convento
se pararon log' en az,
u avia mil e çento
donas, todas faz a faz,
100 e cantando ben assaz
est' a Deus foron graçir.
Quena Virgen ben servir...
CANTIGA 60
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA, DO
DEPARTIMENTO QUE Á ENTRE AVE E
EVA.
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.
5 Ca Eva nos tolleu
o Parays' e Deus,
Ave nos y meteu;
porend', amigos meus:
Entre Av' e Eva...
10 Eva nos foi deitar
do dem' en sa prijon,
e Ave en sacar;
e por esta razon:
Entre Av' e Eva...
15 Eva nos fez perder
amor de Deus e ben,
e pois Ave aver
no-lo fez; e poren:
Entre Av' e Eva...
20 Eva nos ensserrou
os çeos sen chave,
e Maria britou
as portas per Ave.
Entre Av' e Eva...
CANTIGA 64
COMO A MOLLER QUE O MARIDO
LEIXARA EN COMENDA A SANTA
MARIA NON PODO A ÇAPATA QUE LLE
DERA SEU ENTENDEDOR METER NO
PEE NEN DESCALÇA-LA.
Quen mui ben quiser o que ama guardar,
5 a Santa Maria o dev' a encomendar.
E dest' un miragre, de que fiz cobras e son,
vos direi mui grande, que mostrou en
Aragon
Santa Maria, que a moller dun infançon
guardou de tal guisa, por que non podess'
errar.
10 Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Esta dona, per quant' eu dela oý dizer,
aposta e ninna foi, e de bon parecer;
e por aquesto a foi o infançon prender
por moller, e foi-a pera sa casa levar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Aquel infançon un mui gran tenp' assi
morou
con aquela dona; mais pois s' ir dali cuidou
por ha carta de seu sennor que lle chegou,
que avia guerra e que o foss' ajudar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Ante que movesse, diss-ll' assi sa moller:
«Sennor, pois vos ides, fazede, se vos
prouguer,
que m' encomendedes a alguen, ca m' é
mester
que me guarde e que me sábia ben
consellar.»
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E o infançon lle respondeu enton assi:
«Muito me praz ora daquesto que vos oý;
mais ena ygreja mannãa seremos y,
e enton vos direi a quen vos cuid' a leixar.»
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Outro dia foron ambos a missa oyr,
e pois foi dita, u se lle quis el espedir,
chorand' enton ela lle começou a pedir
que lle désse guarda por que ouvess' a
catar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E ar ele, chorando muito dos ollos seus,
mostrou-ll' a omagen da Virgen, Madre de
Deus,
e disse-ll': «Amiga, nunca os pecados meus
sejan perdõados, se vos a outri vou dar
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Senon a esta, que é Sennor Espirital,
que vos pode ben guardar de posfaz e de
mal;
e porende a ela rog' eu, que pod' e val,
que mi vos guarde e leix' a min cedo
tornar.»
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Foi-ss' o cavaleiro logo dali. Mas, que fez
o diabr' arteiro por lle toller seu bon prez
a aquela dona? Tant' andou daquela vez
que un cavaleiro fezo dela namorar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E con seus amores a poucas tornou sandeu;
e porend' ha sa covilleira cometeu
que lle fosse bõa, e tanto lle prometeu
que por força fez que fosse con ela falar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E disse-ll' assi: «Ide falar con mia sennor
e dizede-lle como moiro por seu amor;
e macar vejades que lle desto grave for,
nona leixedes vos poren muito d' aficar.»
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
A moller respos: «Aquesto de grado farei,
e que a ajades quant' eu poder punnarei;
mas de vossas dõas me dad', e eu llas darei,
e quiçay per esto a poderei enganar.»
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Diss' o cavaleir': «Esto farei de bon talan.»
Log' as çapatas lle deu de bon cordovan;
mais a dona a trouxe peor que a un can
e disse que per ren non llas queria fillar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Mais aquela vella, com' era moller mui vil
e d' alcayotaria sabedor e sotil,
por que a dona as çapatas fillasse, mil
razões lle disse, trões que llas fez tomar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
Mais a mesquinna, que cuidava que era
ben,
fillou logo as çapatas, e fez y mal sen;
ca u quis calça-la ha delas, ja per ren
fazer nono pode, nena do pee sacar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E assi esteve un ano e ben un mes,
que a çapata ao pee assi se ll' apres
que, macar de toller-lla provaron dous nen
tres,
nunca lla poderon daquel pee descalçar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
E depos aquest' a poucos dias recodiu
seu marid' a ela, e tan fremosa a viu
que a logo quis; mas ela non llo consentiu
ata que todo seu feito ll' ouve a contar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
O cavaleiro disse: «Dona, desto me praz,
e sobr' esto nunca averemos senon paz,
ca sei que Santa Mari', en que todo ben jaz,
vos guardou.» E a çapata lle foi en tirar.
Quen mui ben quiser o que ama guardar...
CANTIGA 71
COMO SANTA MARIA MOSTROU AA
MONJA COMO DISSESSE BREVEMENT'
«AVE MARIA».
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos,
a Sennor que nos mostra | de como a
loemos.
5 E porend' un miragre | vos quero dizer ora
que fez Santa Maria, | a que nunca demora
a buscar-nos carreiras | que non fiquemos
fora
do reyno de seu Fillo, | mais per que y
entremos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
E direi da monja | que en un mõesteiro
ouve, de santa vida, | e fillava lazeiro
en loar muit' a Virgen, | ca un gran livr'
enteiro
rezava cada dia, | como nos aprendemos,
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
De grandes orações | sempre, noites e dias.
E sen esto rezava | ben mil Ave Marias,
por que veer podesse | a Madre de Messias,
que os judeus atenden | e que nos ja
avemos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Tod' aquesto dizia | chorando e gemendo,
e suspirava muito, | mais rezava correndo
aquestas orações. | E poren, com' aprendo,
viu a Santa Maria, | com' agora diremos,
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Dentro no dormidoiro | en seu leit' u jazia
por dormir mui cansada, | e pero non
durmia.
Enton a Virgen santa | ali ll' apareçia,
Madre de Jhesu-Cristo, | aquel en que
creemos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Quando a viu a monja, | espantou-se ja
quanto,
mais a Virgen lle disse: | «Sol non prendas
espanto,
ca eu soon aquela | que ás chamada tanto;
e sey ora mui leda, | e un pouco falemos
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Respos enton a monja: | «Virgen santa,
Reynna,
como veer quisestes | ha monja mesquinna?
Esto mais ca mesura | foi, e porend' aginna
levade-nos convosco, | que sen vos non
fiquemos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Disse Santa Maria: | «Esto farei de grado,
ca ja teu lugar tees | no Çeo apartado;
mais mentre fores viva, | un rezar
ordinnado
che mostrarei que faças | ca ja que en
sabemos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Se tu queres que seja | de teu rezar pagada,
u dizes la saude | que me foi enviada
pelo angeo santo, | di-a assessegada-
mente e non te coites; | ca certo che
dizemos
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Que, quand' ouço u fala | como Deus foi
comigo,
tan gran prazer ey ende, | amiga, que che
digo
que enton me semella | que Deus Padr' e
Amigo
e Fill' en nosso corpo | outra vez ben temos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
E poren te rogamos | que fílles tal maneyra
de rezares mui passo, | amiga
companneyra,
e duas partes leixa | e di ben a terçeira,
de quant' ante dizias, | e mais t' end'
amaremos.»
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Pois dit' ouv' esto, foi-sse | a Virgen
groriosa.
E des enton a monja | sempre muit'
omildosa-
mente assi dizia | como ll' a Piadosa
mostrara que dissesse, | daquesto non
dultemos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
Ca sempr' «Ave Maria» | mui ben e passo
disse;
e quando deste mundo | quis Deus que se
partisse,
fez levar a ssa alma | ao Çeo, u visse
a ssa beita Madre, | a que loores demos.
Se muito non amamos, | gran sandeçe
fazemos...
CANTIGA 75
COMO SANTA MARIA FEZ VEER AO
CLERIGO QUE ERA MELLOR POBREZA
CON OMILDADE CA REQUEZA MAL
GÃADA CON ORGULLO E CON
SOBERVIA.
Omildade con pobreza
5 quer a Virgen corõada,
mais d'orgullo con requeza
é ela mui despagada.
E desta razon vos direi | un miragre mui
fremoso,
que mostrou Santa Maria, | Madre do Rey
grorioso,
a un crerigo que era | de a servir desejoso;
e poren gran maravilla | lle foi per ela
mostrada.
Omildade con pobreza...
Ena vila u foi esto | avia un usureiro
mui riqu' e muit' orgullos' e | sobervi' e
tortiçeiro;
e por Deus nen por sa Madre | non dava sol
nen dinneiro,
e de seu corpo pensava | muit' e de sa alma
nada.
Omildade con pobreza...
Outrosi en essa vila | era hua velloçinna
mui cativa e mui pobre | e de tod' aver
mesquinna;
mais amava Jesu-Cristo | e a ssa Madr', a
Reÿa,
mais que outra ren que fosse. | E con tant'
era pagada
Omildade con pobreza...
Tan muito, que non preçava | deste mundo
nimigalla;
e porend' en ha choça | morava, feita de
palla,
e vivia das esmolnas | que lle davan; e sen
falla
mui mais se pagaya desto | ca de seer ben
erdada.
Omildade con pobreza...
E estando desta guisa, | deu a ela fever
forte,
e outrosi ao rico, | per que chegaron a
morte:
mais a vella aa Virgen | avia por seu
conorte,
e o rico ao demo, | que lle deu morte
coitada.
Omildade con pobreza...
Mais o capelan correndo, | quando soube
com' estava
o rico, vo aginna, | porque del aver coidava
gran peça de seus dinneiros, | ca el por al
non catava,
e diss': «Esta 'nfermedade | semella muit'
aficada.
Omildade con pobreza...
E porend' eu vos consello | que fagades
testamento,
e dad' a nossa ygreja | sequer çen marcos
d'arento;
ca de quant' aqui nos derdes | vos dará
Deus por un çento,
e desta guis' averedes | no Parayso
entrada.»
Omildade con pobreza...
A moller, a que pesava | de que quer que el
mandasse,
diss' ao crerigo toste | que daquesto se
calasse,
ca seu marido guarria, | e que folga-lo
leixasse,
entre tanto sa fazenda | averia ordinnada.
Omildade con pobreza...
Ao crerigo pesava | desto que ll' ela dizia,
mais por ren que lle dissese, | partir non
s'ende queria;
e o ric' enton con sanna | mui bravo lle
respondia:
«Na moller e enos fillos | ei mia alma ja
leixada.»
Omildade con pobreza...
O crerig' assi estando | de sse non yr
perfiado,
ha moça a el vo | que lle trouxe tal
mandado
da vella como morria, | e que lle désse
recado
com' ouvesse maenfesto | e que fosse
comungada.
Omildade con pobreza...
Diss' el enton: «Vay-te logo, | ca ben vees
com' eu fico
aqui con est' ome bõo | que é onrrad' e mui
rico,
que non leixarei agora | pola vella que no
bico
ten a mort' á mais dun ano, | e pero non é
finada.»
Omildade con pobreza...
Quand' aquest' oyu a moça | da vella, foi-se
correndo
e achó-a mui coitada | e cona morte
gemendo,
e disse-ll': «Aquel moogo | non verrá, per
quant' entendo,
nen per el, macar moirades, | non seredes
soterrada.»
Omildade con pobreza...
Quand' est' entendeu a vella, | foi mui trist'
a maravilla
e disso: «Santa Maria | Virgen, de Deus
Madr' e Filla,
ven por mi' alm' e non pares | mentes a mia
pecadilla,
ca non ey quen me comungue | e sõo
desamparada.»
Omildade con pobreza...
En casa do ric' estava | un crerigo d'
avangeo
que ao capelan disse: | «Vedes de que me
reçeo:
se aquesta vella morre, | segund' eu entend'
e creo,
será vos de Jesu-Cristo | a sa alma
demandada.»
Omildade con pobreza...
E o capelan lle disse: | «Esto non me
conselledes,
que eu leix' est' ome bõo; | mas id' y se ir
queredes,
e de quant' alá gãardes, | nulla parte non me
dedes.»
E o evangelisteiro | se foi logo sen tardada,
Omildade con pobreza...
E fillou o Corpus Cristi | e o caliz da
ygreja;
e quando foi aa choça, | viu a que beyta
seja,
Madre do que se non paga | de torto nen de
peleja,
seend' aa cabeçeira | daquela vella sentada.
Omildade con pobreza...
E viu con ela na choça | ha tan gran
claridade,
que ben entendeu que era | a Sennor de
piadade.
E el tornar-se quisera, | mas disso-ll' ela:
«Entrade
cono corpo de meu Fillo, | de que eu fui
emprermada.»
Omildade con pobreza...
E pois entrou, viu a destro | estar has seys
donzelas
vestidas de panos brancos, | muit' apostas e
mais belas
que son lilios nen rosas, | mas pero non de
conçelas,
outrosi nen d' alvayalde, | que faz a cara
'nrrugada.
Omildade con pobreza...
E siian assentadas | en palla, non en tapede;
e disse a Virgen santa | ao crerigo: «Seede,
e aquesta moller bõa | comungad' e
assolvede,
como çed' a Parayso | vaa u ten ja
pousada.»
Omildade con pobreza...
O crerigo, macar teve | que lle dizia dereito
a Virgen Santa Maria non quis con ela no
leito
seer, mais fez aa vella | que se ferisse no
peito
con sas mãos e dissesse: | «Mia culpa, ca
fui errada.»
Omildade con pobreza...
E pois foi maenfestada, | Santa Maria alçó-
a
con sas mãos, e tan toste | o crerigo
comungó-a;
e desque foi comungada, | u xe jazia deitó-
a,
e disse-ll' enton a vella: | «Sennor, nossa
avogada,
Omildade con pobreza...
Non me leixes mais no mundo | e leva-me
ja contigo
u eu veja o teu Fillo, | que é teu Padr' e
amigo.»
Respos-lle Santa Maria: | «Mui çedo serás
comigo;
mais quero que ant' un pouco | sejas ja
quanto purgada,
Omildade con pobreza...
Por que tanto que morreres | vaas log' a
Parayso
e non ajas outr' enpeço, | mais senpre goyo
e riso,
que perdeu per sa folia | aquel rico de mal
siso,
por que sa alma agora | será do demo
levada.»
Omildade con pobreza...
E ao crerig' ar disse: | «Ide-vos, ca ben
fezestes,
e muito sõo pagada | de quan ben aqui
vestes;
e, par Deus, mellor consello | ca o capelan
tevestes,
que ficou con aquel rico | por levar del gran
soldada.»
Omildade con pobreza...
Enton o clerigo foi-se | a cas do rico
maldito,
u o capelan estava | ant' el en gollo fito;
e ar viu a casa cha, | per com' eu achei
escrito,
de diabos que veran | por aquel' alma
julgada.
Omildade con pobreza...
Entonçe se tornou logo | aa choça u leixara
a vella, e viu a Virgen | tan fremosa e tan
crara, (yxz 75-v.134
que o chamou con sa mão | como xo ante
chamara,
dizendo: «Ja levar quero | a alma desta
menguada.»
Omildade con pobreza...
Enton diss' aa vella: «Ven-te | ja comigo,
ay amiga,
ao reyno de meu Fillo, | ca non á ren que
che diga
que te log' en el non colla, | ca el dereito
joyga.»
E tan tost' a moller bõa | foi deste mundo
passada.
Omildade con pobreza...
E ao crerig' a Virgen | disse que mui ben
fezera
e que mui ben s'acharia | de quanto ali vera,
demais faria-ll' ajuda | mui çed' en gran
coita fera;
e pois aquest' ouve dito, | foi-s' a
Benaventurada.
Omildade con pobreza...
E enquant' a Virgen disse, | sempr' o crerig'
os gollos
teve ficados en terra, | chorando muito dos
ollos;
e tornou-ss' a cas do rico, | e ouv' y outros
antollos,
ca viu de grandes diabos | a casa toda
çercada.
Omildade con pobreza...
E pois que entrou, viu outros | mayores que
os de fora,
muit' espantosos e feos, | e negros mui más
ca mora,
dizendo: «Sal acá, alma, | ca ja tenpo é e
ora
que polo mal que feziste | sejas senpr'
atormentada.»
Omildade con pobreza...
E a alm' assi dizia: | «Que será de min,
cativa?
Mais valvera que non fosse | eu en este
mundo viva,
pois ei de soffrer tal coita | no ynferno, tan
esquiva,
agora a Deus prouguesse | que foss' en poo
tornada.»
Omildade con pobreza...
Quand' o crerigo viu esto, | fillou-se-ll' ende
tal medo,
que de perder-se ouvera; | mas acorreu-lle
mui çedo
a Virgen Santa Maria, | que o tirou pelo
dedo
fora daquel lugar mao, | como Sennor
mesurada.
Omildade con pobreza...
E disse-lle: «Para mentes | en quant' agor'
aqui viste
outrosi e ena choça, | ali u migo seviste;
que ben daquela maneira | que o tu tod'
entendiste
o conta log' aas gentes | sen ninga
delongada.»
Omildade con pobreza...
O clerigo fez mandado | da Virgen de ben
conprida,
e mentre viveu no mundo | foi ome de santa
vida;
e depois, quando ll' a alma | de sa carne foi
saida,
levó-a Santa Maria; | e ela seja loada.
Omildade con pobreza...
CANTGA 76
COMO SANTA MARIA DEU SEU FILLO
AA BÕA MOLLER, QUE ERA MORTO, EN
TAL QUE LLE DÉSSE O SEU QUE
FILLARA AA SA OMAGEN DOS BRAÇOS.
Quenas sas figuras da Virgen partir
5 quer das de seu Fillo, fol é sen mentir.
Porend' un miragre vos quer' eu ora contar
mui maravilloso, que quis a Virgen mostrar
por ha moller que muito [se] fiar
sempr' en ela fora, segund fui oyr.
Quenas sas figuras da Virgen partir...
Esta moller bõa ouv' un fillo malfeitor
e ladron mui fort', e tafur e pelejador;
e tanto ll' andou o dem' en derredor,
que o fez nas mãos do juyz vir.
Quenas sas figuras da Virgen partir...
E poi-lo achou con furto que fora fazer,
mandó-o tan toste en ha forca põer;
mais sa madr' ouvera por el a perder
o sen, e con coita fillou-s' a carpir.
Quenas sas figuras da Virgen partir...
E como moller que era fora de [seu] sen
a ha eigreja foi da Madre do que ten
o mundo en poder, e disse-lle: «Ren
non podes, se meu fillo non resurgir.»
Quenas sas figuras da Virgen partir...
Pois est' ouve dito, tan gran sanna lle
creceu,
que aa omagen foi e ll' o Fillo tolleu
per força dos braços e desaprendeu,
dizend': «Este terrei eu trões que vir
Quenas sas figuras da Virgen partir...
O meu são e vivo viir sen lijon nen mal.»
Quand' est' ouve dito, log' a Madr' Espirital
resurgio-o dela, que vo sen al
dizendo: «Sandia, mal fuste falir,
Quenas sas figuras da Virgen partir...
Madre, porque fuste fillar seu Fillo dos
seus
braços da omagen da Virgen, Madre de
Deus;
poren m' enviou que entr[e] ontr' os
teus,
per que tu ben possas conmigo goyr.»
Quenas sas figuras da Virgen partir...
Quand' a moller viu o gran miragre que fez
a Virgen Maria, que é Sennor de gran prez,
tornou-lle seu Fillo; e log' essa vez
meteu-ss' en orden pola mellor servir.
Quenas sas figuras da Virgen partir...
CANTIGA 77
ESTA É COMO SANTA MARIA SÃOU NA
SA YGREJA EN LUGO HA MOLLER
CONTREITA DOS PEES E DAS MÃOS.
Da que Deus mamou o leite do seu peito,
non é maravilla de sãar contreito.
5 Desto fez Santa Maria miragre fremoso
ena sa ygrej' en Lugo, grand' e piadoso,
por ha moller que avia tolleito
o mais de seu corp' e de mal encolleito.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
Que amba-las suas mãos assi s' encolleran,
que ben per cabo dos onbros todas se
meteran,
e os calcannares ben en seu dereito
se meteron todos no corpo maltreito.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
Pois viu que lle non prestava nulla
meezinna,
tornou-ss' a Santa Maria, a nobre Reynna,
rogando-lle que non catasse despeyto
se ll' ela fezera, mais a seu proveito
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
Parasse mentes en guisa que a guareçesse,
se non, que fezess' assi per que çedo
morresse;
e logo se fezo levar en un leito
ant' a sa ygreja, pequen' e estreito.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
E ela ali jazendo fez mui bõa vida
trões que ll' ouve merçee a Sennor conprida
eno mes d' agosto, no dia 'scolleito,
na sa festa grande, como vos retreito
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
Será agora per min. Ca en aquele dia
se fez meter na ygreja de Santa Maria;
mais a Santa Virgen non alongou
preyto, (* 77-v.32
mas tornou-ll' o corpo todo escorreyto.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
Pero avo-ll' atal que ali u sãava,
cada un nembro per si mui de rig' estalava,
ben come madeira mui seca de teito,
quando ss' estendia o nervio odeito.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
O bispo e toda a gente deant' estando,
veend' aquest' e oynd' e de rijo chorando,
viron que miragre foi e non trasgeito;
porende loaron a Virgen afeito.
Da que Deus mamou o leite do seu
peito...
CANTIGA 78
COMO SANTA MARIA GUARDOU UN
PRIVADO DO CONDE DE TOLOSA QUE
NON FOSSE QUEIMADO NO FORNO,
PORQUE OYA SA MISSA CADA DIA.
Non pode prender nunca morte vergonnosa
aquele que guarda a Virgen gloriosa.
5 Poren, meus amigos, rogo-vos que m'
ouçades
un mui gran miragre que quero que
sabiades
que a Santa Virgen fez, per que entendades
com' aos seus servos é sempre piadosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E daquest' avo, gran temp' á ja passado,
que ouv' en Tolosa un conde mui preçado;
e aquest' avia un ome seu privado
que fazia vida come religiosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Ontr' os outros bes muitos que el fazia,
mais que outra ren amave Santa Maria,
assi que outra missa nunca el queria
oyr erg' a sua, nen ll' era saborosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E outros privados que con el cond' andavan
avian-ll' enveja, e porende punnavan
de con el volve-lo, porque dessi cuidavan
aver con el conde sa vida mais viçosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E sobr' esto tanto con el conde falaron,
que aquel bon ome mui mal con el
mezcraron;
e de taes cousas a el o acusaron,
per que lle mandava dar morte doorosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E que non soubessen de qual morte lle
dava,
por un seu caleiro atan tost' enviava
e un mui gran forno encender llo mandava
de lenna mui grossa que non fosse fumosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E mandou-lle que o primeiro que chegasse
om' a el dos seus, que tan toste o fillasse
e que sen demora no forno o deitasse,
e que y ardesse a carne del astrosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Outro di' el conde ao que mezcrad' era
mandó-o que fosse a veer se fezera
aquel seu caleiro o que ll' ele dissera,
dizend': «Esta via non te seja nojosa.»
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E u ele ya cabo de ssa carreira,
achou un' ermida que estava senlleira,
u dizian missa ben de mui gran maneira
de Santa Maria, a Virgen preçiosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E logo tan toste entrou ena ygreja
e diss': «Esta missa, a como quer que seja,
oyrei eu toda, por que Deus de peleja
me guard' e de mezera maa e revoltosa.»
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Enquant' el a missa oya ben cantada,
teve ja el conde que a cous' acabada
era que mandara, e poren sen tardada
enviou outr' ome natural de Tolosa;
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E aquel om' era o que a mezcra feita
ouvera e toda de fond' a çima treita.
E disse-lle: «Logo vay corrend' e asseita
se fez o caleiro a justiça fremosa.»
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Tan toste correndo foi-s' aquel fals' arteiro,
e non teve via, mas per un semedeiro
chegou ao forno; e logo o caleiro
o deitou na chama fort' e perigoosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
O outro, pois toda a missa ouv' oyda,
foi ao caleiro e disse-ll': «As comprid' a
voontade del conde?» Diss' el: «Sen falida,
se non, nunca faça eu mia vida goyosa.»
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Enton do caleiro se partia tan toste
aquel ome bõo e per un gran recoste
se tornou al conde, e dentr' en sa reposte
contou-l' end' a estoria maravillosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
Quando viu el conde aquel que chegara
ant' ele viv', e soube de como queimara
o caleir' o outro que aquele mezcrara,
teve-o por cousa d'oyr muit' espantosa.
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
E disse chorando: «Virgen, bêeita sejas,
que nunca te pagas de mezcras nen
d'envejas;
poren farei ora per todas tas ygrejas
contar este feito e com' es poderosa.»
Non pode prender nunca morte
vergonnosa...
CANTIGA 80
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA, DE
COMO A SAUDOU O ANGEO.
De graça chêa e d' amor
de Deus, acorre-nos, Sennor.
Santa Maria, se te praz,
pois nosso ben tod' en ti jaz
e que teu Fillo sempre faz
por ti o de que ás sabor.
De graça cha e d' amor...
E pois que contigo é Deus,
acorr' a nos que somos teus,
e fas-nos que sejamos seus
e que perçamos del pavor.
De graça cha e d' amor...
Ontr' as outras molleres tu
es beita porque Jesu
Cristo parist'; e porend' u
nos for mester, razõador
De graça cha e d' amor...
Sei por nos, pois que beit' é
o fruito de ti, a la ffe;
e pois tu sees u el ssé,
roga por nos u mester for.
De graça cha e d' amor...
Punna, Sennor, de nos salvar,
pois Deus por ti quer perdõar
mil vegadas, se mil errar
eno dia o pecador.
De graça cha e d' amor...
CANTIGA 81
COMO SANTA MARIA GUAREÇEU A
MOLLER DO FOGO DE SAN MARÇAL
QUE LL' AVIA COMESTO TODO O
ROSTRO.
Par Deus, tal sennor muito val
que toda door toll' e mal
5 Esta sennor que dit' ei
é Santa Maria,
que a Deus, seu Fillo Rey,
roga todavia
sen al,
que nos guarde do ynfernal
Par Deus, tal ssenor muito val...
Fogo, e ar outrossi
do daqueste mundo,
dessi d' outro que á y,
com' oý, segundo
que fal',
alga vez por San Marçal,
Par Deus, tal ssenor muito val...
De que sãou ha vez
ben a Gondianda,
ha moller que lle fez
rogo e demanda
atal,
per que lle non ficou sinal
Par Deus, tal sennor muito val...
Daquele fogo montes
de que layda era,
onde tan gran dano pres
que poren posera
çendal
ant' a faz con coita mortal,
Par Deus, tal ssenor muito val...
De que atan ben sãou
a Virgen aquesta
moller, que logo tornou
ll' a carne comesta
ygual
e con sa coor natural,
Par Deus, tal ssenor muito val...
Tan fremosa, que enton
quantos la catavan
a Virgen, de coraçon
chorando, loavan,
a qual
é dos coitados espital.
Par Deus, tal ssenor muito val...
CANTIGA 83
COMO SANTA MARIA SACOU DE
CATIVO DE TERRA DE MOUROS A UN
OME BÕO QUE SE LL' ACOMENDARA.
Aos seus acomendados
a Virgen tost' á livrados.
5 De mortes e de prijões;
e por aquesto, varões,
sempr' os vossos corações
en ela sejan firmados.
Aos seus acomendados...
E desto Santa Maria
de Sopetran fez un dia
miragr' en Andaluzia
a un que por seus pecados
Aos seus acomendados...
Fora caer en cativo,
u jazia tan esquivo,
que non cuidou sair vivo
ante marteiros dobrados
Aos seus acomendados...
Que lle davan e gran pa,
porque era de Luça.
Sen tod' est', en gran cada
de noite tras cadados
Aos seus acomendados...
Jazia e en escura
carçer e en gran ventura
de morrer. Poren na pura
Virgen tornou seus cuidados,
Aos seus acomendados...
Que en Sopetran aoran
muitos e ant' ela choran;
poren muito non demoran
que non sejan perdõados
Aos seus acomendados...
D' erros e de maos feitos;
demais çegos e contreitos
sãa, e gafos maltreitos
e muitos demoniados
Aos seus acomendados...
E d' outras enfermedades,
e que por sas piedades
saca de catividades
muitos, foss' el nos sacados.
Aos seus acomendados...
Este rogo lle fezera
muitas vezes e dissera,
u el preitejado era
por moravidis tallados
Aos seus acomendados...
Que pagar avia çedo.
E el jazend' en gran medo,
viu as portas abrir quedo
da carcer, e viu britados
Aos seus acomendados...
Seus ferros e que dormian
os que o guardar soyan,
que tan gran sono avian
que non eran acordados.
Aos seus acomendados...
El, quand' esto viu, ergendo
se foi pass', e pois correndo
fogiu e, segund' aprendo,
chegou a dias contados
Aos seus acomendados...
A Sopetran, cabo Fita.
E pois esta cousa dita
ouve, logo foi escrita
e muitos loores dados
Aos seus acomendados...
Aa Virgen groriosa,
Madre de Deus piadosa,
porque sempr' é poderosa
d' acorrer aos coitados.
Aos seus acomendados...
CANTIGA 85
COMO SANTA MARIA LIVROU DE
MORTE UN JUDEU QUE TIINNAN PRESO
HÛUS LADRÕES, E ELA SOLTÓ-O DA
PRIJON E FEZE-O TORNAR CRISCHÃO.
Pera toller gran perfia
ben dos corações,
5 demostra Santa Maria
sas grandes visiões.
Onde direi un miragre que en Englaterra
demostrou Santa Maria, a que nunca erra,
por converter un judeu que prenderan
ladrões,
a que chagas grandes deran e pois
torçillões.
Pera toller gran perfia...
Os ladrões que fezeron est' eran crischãos;
e poi-lo ouveron feito, ataron-ll' as mãos
e os pees e deron-lle muitas con bastões,
que lles esterlis désse, ca non pipiões.
Pera toller gran perfia...
Desta guisa o teveron fora do camo
atad' en ha gran casa vella, o mesquinno;
e deron-lle pan e agua aqueles peões,
en tal que lles non morress' e ouvessen
quinnões
Pera toller gran perfia...
Do seu aver. Mais el conas pas que sofria
adormeçeu, e en sonnos viu Santa Maria
mais fremosa que o sol; e logo ll' as prijões
quebrantou, e foi guarido de todas lijões.
Pera toller gran perfia...
E pois que sonnou aquesto, foi logo
desperto,
ar viu-a espert' estando, de que foi ben
çerto;
e por saber mais quen era, fez sas orarções
que lle dissesse seu nome, e dar-ll-ia dões.
Pera toller gran perfia...
E ela lle disse logo: «Para-mi ben mentes,
ca eu sõo a que tu e todos teus parentes
avedes mui gran desamor en todas sazões,
e matastes-me meu Fillo come mui felões.
Pera toller gran perfia...
E poren mostrar-te quero o ben que
perdedes
e o mal que, pois morrerdes, logo averedes,
que en min e en meu Fillo vossas entenções
tornedes e reçebades bõos gualardões.»
Pera toller gran perfia...
Enton o pres pela mão e tiró-o fora
dali, e sobr' un gran monte o pos essa ora
e mostrou-lle un gran vale cho de dragões
e d' outros diabos, negros mui mais que
carvões,
Pera toller gran perfia...
Que mais de çen mil maneiras as almas
peavan
dos judeus, que as cozian e pois ar assavan
e as fazian arder assi como tições,
e queimando-lle-las barvas e pois os
grinões.
Pera toller gran perfia...
Quand' o judeu viu aquesto, foi end'
espantado;
mais tan toste foi a outro gran monte
levado
u viu seer Jesu-Cristo con religiões
d' angeos, que sempre cantan ant' el doçes
sões.
Pera toller gran perfia...
E viu de muitas maneiras y santas e santos
muit' alegres, que cantavan saborosos
cantos,
que rogan polos crischãos que Deus d'
ocajões
os guarde e do diab' e de sas tentações.
Pera toller gran perfia...
Santa Maria lle disse, pois est' ouve visto:
«Estes son meus e de meu Fillo, Deus Jesu-
Cristo,
con que seras se creveres en el e leytões
comeres e leixares a degolar cabrões.»
Pera toller gran perfia...
Pois que Santa Maria lle diss' este fazfeiro,
leixó-o; e el foi-sse log' a un mõesteiro
u achou un sant' abade con seus
conpannões,
que partiron mui de grado con el sas
rações.
Pera toller gran perfia...
E pois que ant' o convento contou quanto
vira,
o abad' o fez crischão logo sen mentira;
e deste feito foron pelas terras pregões,
por que a Santa Maria deron ofreções.
Pera toller gran perfia...
CANTIGA 86
COMO SANTA MARIA LIVROU A
MOLLER PRENNE QUE NON MORRESSE
NO MAR E FEZ-LLE AVER FILLO
DENTRO NAS ONDAS.
Acorrer-nos pode e de mal guardar
a Madre de Deus, se per nos non ficar.
Acorrer-nos pode quando xe quiser
e guardar de mal cada que lle prouguer,
ben como guardou ha pobre moller
que cuidou morrer enas ondas do mar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
Eno mar que cerca o mund' arredor,
na terra que chaman Bretanna Mayor,
fez a Santa Madre de Nostro Sennor
un gran miragre que vos quero contar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
O miragre foi muit' apost' e mui bel
que Santa Maria fez por San Miguel,
que é conpanneiro de San Gabriel,
o angeo que a vo saudar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
De San Migael, o angeo de Deus,
era un' ermida, u muitos romeus
yan y rogar polos pecados seus,
que Deus llos quisesse por el perdõar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
O logar era de mui gran devoçon,
mas non podia om' alá ir, se non
menguass' ant' o mar, ca en outra sazon
non podia ren en sayr nen entrar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
E porend' un dia avo assi
que ha moller prenne entrou per i;
mais o mar creçeu e colleu-a ali,
non se pod' yr, tanto non pod' andar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
A pobre moller, macar quis, non fogiu,
ca o mar de todas partes a cobriu;
e pois s' a mesquinna en tal coita viu,
começou Santa Maria de chamar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
A moller sen falla coidou a fir
quando viu o mar que a vo cobrir;
e demais chegou-ll' o tenpo de parir,
e por tod' esto non cuidou escapar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
Mais a Santa Virgen que ela rogou
oyu-lle seu rog', e tan toste chegou
e a sua manga sobr' ela parou
que a fez parir e as ondas quedar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
Pois Santa Maria, a Sennor de prez,
este miragre daquela moller fez,
con seu fill' a pobre se foi essa vez
log' a San Miguel o miragre mostrar.
Acorrer-nos pode e de mal guardar...
CANTIGA 87
COMO SANTA MARIA MANDOU QUE
FEZESSEN BISPO AO CRERIGO QUE
DIZIA SEMPRE SAS ORAS.
Muito punna d' os seus onrrar
sempre Santa Maria.
5 E desto vos quero contar
un gran miragre que mostrar
quis a Virgen que non á par,
na çidad' de Pavia.
Muito punna d' os seus onrrar...
Un crerig' ouv' i sabedor
de todo ben e servidor
desta groriosa Sennor
quant' ele mais podia.
Muito punna d' os seus onrrar...
D' onrrar os seus á gran sabor
sempre Santa Maria.
Muito punna d' os seus onrrar...
Ond' avo que conteçeu,
poi-lo bispo dali morreu,
a un sant' om' apareçeu
a Virgen que nos guya.
Muito punna d' os seus onrrar...
Aos seus onrrou e ergeu
sempre Santa Maria
Muito punna d' os seus onrrar...
E pois lle foi apareçer,
começou-ll' assi a dizer:
«Vay, di que façan esleer
cras en aquele dia
Muito punna d' os seus onrrar...
Os seus faz onrrados seer
sempre Santa Maria.
Muito punna d' os seus onrrar...
Por bisp' un que Jeronim' á
nome; ca tanto sey del ja
que me serve e servid' á
ben, com' a mi prazia.»
Muito punna d' os seus onrrar...
Os seus onrrou e onrrará
sempre Santa Maria.
Muito punna d' os seus onrrar...
Poi-lo sant' ome s' espertou,
ao cabidoo contou
o que ll' a Virgen nomeou
que por bispo queria.
Muito punna d' os seus onrrar...
D' os seus onrrar muito punnou
sempre Santa Maria.
Muito punna d' os seus onrrar...
Acordados dun coraçon
fezeron del sa esleyçon,
e foi bisp' a pouca sazon,
ca ben o mereçia.
Muito punna d' os seus onrrar...
Os seus onrrou con gran razon
sempre Santa Maria.
Muito punna d' os seus onrrar...
CANTIGA 89
ESTA É COMO HA JUDEA ESTAVA DE
PARTO EN COITA DE MORTE, E
CHAMOU SANTA MARIA E LOGO A
AQUELA ORA FOI LIBRE.
A Madre de Deus onrrada
chega sen tardada
5 u é con fe chamada.
E un miragre disto
direi que fez a groriosa
Madre de Jhesu Cristo,
a Reÿa mui piadosa,
por ha jude' astrosa
que era coitada
e a morte chegada.
A Madre de Deus onrrada...
Ca o prazo chegado
era en que parir devia,
mas polo seu peccado
aquesto fazer non podia,
porque de Santa Maria
non creya nada
que verdad' é provada.
A Madre de Deus onrrada...
Ela assi jazendo,
que era mais morta ca viva,
braadand' e gemendo
e chamando-sse mui cativa,
con tan gran door esquiva,
que desanparada
foi; e desasperada
A Madre de Deus onrrada...
Era ja d' aver vida
nen lle prestaren meezas.
Porend' a mui comprida
Reÿa das outras reÿas,
acorredor das mesquinnas,
sen gran demorada
ll' ouve log' enviada
A Madre de Deus onrrada...
Tamanna craridade
ben come se o sol entrasse
aly; e de verdade
lle diss' ha voz que chamasse
de coraçon e rogasse
a santivigada yxz 89-v.43/
a benaventurada
A Madre de Deus onrrada...
Madre de Deus con rogo,
que é cha de gran vertude.
E ela o fez logo,
e ouve fillo e saude,
porque cedo, se mi ajude
Deus, foi delivrada
e a ssa madre dada.
A Madre de Deus onrrada...
Pois Maria oyron
as judeas que a guardavan
chamar, todas fugiron
da casa e a dostavan
e «ereja» a chamavan
muit' e «renegada»
e «crischãa tornada.»
A Madre de Deus onrrada...
Mais ela, por peleja
non aver con essas sandias,
dereit' aa eigreja
se foi depo-los treinta dias,
que non atendeu Messias,
mais de-la entrada
foi logo batiçada.
A Madre de Deus onrrada...
E trouxe dous menynnos
sig' aquel fill' e ha filla;
e macar pequenos
eran, por los de peccadilla
tirar, en Santa Cezilla,
na pia sagrada,
os fez dessa vegada
A Madre de Deus onrrada...
Ambos fazer crischãos,
contando como ll' avera
do fill' e como sos
seus nenbros todos ll' enton dera
Santa Maria; e fera-
mente foi amada
por aquest' e loada.
A Madre de Deus onrrada...
CANTIGA 90
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA.
Sola fusti, senlleira,
Virgen, sen conpanneira.
Sola fuste, senlleira,
u Gabriel creviste,
e ar sen conpanneira
u a Deus concebiste
e per esta maneira
o demo destroiste.
Sola fusti, senlleira...
Sola fusti, senlleyra,
ena virgidade,
e ar sen companneira
en ter castidade;
e per esta maneira
jaz o demo na grade.
Sola fusti, senlleira...
Sola fusti, senlleyra,
en seer de Deus Madre,
e ar sen conpanneyra
seend' el Fill' e Padre;
e per esta maneira
ten o dem' en vessadre.
Sola fusti, senlleira...
Sola fusti, senlleyra,
dada que a nos vallas,
e ar sen companneyra
por toller nossas fallas;
e per esta maneyra
jaz o demo nas pallas.
Sola fusti, senlleira...
Sola fusti, senlleyra,
en seer de Deus ama,
e ar sen companneyra
en valer quen te chama;
e per esta maneyra
jaz o demo na lama.
Sola fusti, senlleira...
CANTIGA 92
COMO SANTA MARIA ALUMEOU UN
CRERIGO QUE ERA CEGO.
Santa Maria poder á
de dar lum' a queno non á.
Ca de dar lum' á gran poder
a que o lum' en si trager
foi, que nos fez a Deus veer,
que per al non viramos ja.
Santa Maria poder á...
E esta Virgen santa deu
pois lum' a un crerigo seu
que perdera, com' aprix eu,
que non vii' acá nen alá.
Santa Maria poder á...
E tan toste se fez fillar
e aa eigreja levar
da Virgen que non ouvo par
de bondade, nen averá.
Santa Maria poder á...
E chorando de coraçon,
fazia atal oraçon
en gollos con devoçon,
dizendo: «Sennor, que será
Santa Maria poder á...
Daqueste lume que perdi?
E porende venno a ti
que mio cobres, sequer ali
u a ta missa sse dirá.»
Santa Maria poder á...
Enton logo ss' adormeceu,
e a Virgen ll' apareceu,
que aos seus non faleceu
nunca ja nen falecerá.
Santa Maria poder á...
E disse-ll' enton: «Logo cras
mannãa mia missa dirás
con devoçon, e cobrarás
teu lum', e que te durará
Santa Maria poder á...
Ta que a missa dita for;
ca assi quer Nostro Sennor,
que ch' esto faz por meu amor
e aynda che mais fará.»
Santa Maria poder á...
O crerig' enton s' espertou
e log' a missa começou,
e seu lum' ali o cobrou;
ca non mentiu nen mentirá
Santa Maria poder á...
A Virgen que é de bon prez,
que lle seu lume cobrar fez
cada dia sempr' a vez,
como vos dissemos acá.
Santa Maria poder á...
CANTIGA 94
ESTA É COMO SANTA MARIA SERVIU
EN LOGAR DA MONJA QUE SSE FOI DO
MÕESTEIRO.
De vergonna nos guardar
punna todavia
5 e de falir e d'errar
a Virgen Maria.
E guarda-nos de falir
e ar quer-nos encobrir
quando en erro caemos;
des i faz-nos repentir
e a emenda vir
dos pecados que fazemos.
Dest' un miragre mostrar
en ' abadia
quis a Reynna sen par,
santa, que nos guia.
De vergonna nos guardar...
Ha dona ouv' ali
que, per quant' eu aprendi,
era menynna fremosa,
demais sabia assi
ter sa orden, que ni-
ha atan aguçosa
era d' i aproveytar
quanto mais podia;
e poren lle foran dar
a tesoureria.
De vergonna nos guardar...
Mai-lo demo, que prazer
non ouv' en, fez-lle querer
tal ben a un cavaleiro,
que lle non dava lezer,
tra en que a foi fazer
que sayu do mõesteiro;
mais ant' ela foi leixar
chaves, que tragia
na cinta, ant' o altar
da en que criya.
De vergonna nos guardar...
«Ay, Madre de Deus», enton
diss' ela en ssa razon,
«leixo-vos est' en comenda,
e a vos de coraçon
m' acomend'.» E foi-ss', e non
por ben fazer sa fazenda,
con aquel que muit' amar
mais ca si sabia,
e foi gran tenpo durar
con el en folia.
De vergonna nos guardar...
E o cavaleyro fez,
poi-la levou dessa vez,
en ela fillos e fillas;
mais la Virgen de bon prez,
que nunca amou sandez,
emostrou y maravillas,
que a vida estrannar
lle fez que fazia,
por en sa claustra tornar,
u ante vivia.
De vergonna nos guardar...
Mais enquant' ela andou
con mal sen, quanto leixou
aa Virgen comendado
ela mui ben o guardou,
ca en seu logar entrou
e deu a todo recado
de quant' ouv' a recadar,
que ren non falia,
segundo no semellar
de quena viia.
De vergonna nos guardar...
Mais pois que ss' arrepentiu
a monja e se partiu
do cavaleiro mui cedo,
nunca comeu nen dormyu,
tro o mõesteyro viu.
E entrou en el a medo
e fillou-ss' a preguntar
os que connocia
do estado do logar,
que saber queria.
De vergonna nos guardar...
Disseron-ll' enton sen al:
«Abadess' avemos tal
e priol' e tesoureira,
cada ha delas val
muito, e de ben, sen mal,
nos fazen de gran maneira.
Quand' est' oyu, a sinar
logo se prendia,
porque ss' assi nomear
con elas oya.
De vergonna nos guardar...
E ela, con gran pavor
tremendo e sen coor,
foisse pera a eigreja;
mais la Madre do Sennor
lle mostrou tan grand' amor,
-e poren beita seja-
que as chaves foi achar
u postas avia,
e seus panos foi fillar
que ante vestia.
De vergonna nos guardar...
E tan toste, sen desden
e sen vergonna de ren
aver, juntou o convento
e contou-lles o gran ben
que lle fezo a que ten
o mund' en seu mandamento;
e por lles todo provar
quanto lles dizia,
fez seu amigo chamar,
que llo contar ya.
De vergonna nos guardar...
O convent' o por mui gran
maravilla tev', a pran,
pois que a cousa provada
viron, dizendo que tan
fremosa, par San Johan,
nunca lles fora contada;
e fillaron-ss' a cantar
con grand' alegria:
«Salve-te, Strela do Mar,
Deus, lume do dia.»
De vergonna nos guardar...
CANTIGA 95
COMO SANTA MARIA LIVROU UN SEU
HERMITAN DE PRIJON DUS MOUROS
QUE O LEVAVAN A ALEN MAR, E
NUNCA SE PODERON YR ATA QUE O
LEIXARON.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa
5 de lles fazer, non quer ela que esto ren
valla.
Desto direy un miragre que ha vegada
demostrou a Santa Virgen benaventurada
por un conde d'Alemanna, que ouve leixada
sa terra e foi fazer en Portugal morada
encima da hermida, preto da salgada
agua do mar, u cuidou a viver sen baralla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
El Cond' Abran foi aqueste, de mui santa
vida,
que fez mui gran pedenç' en aquela
hermida
servind' a Santa Maria, a Sennor comprida
de todo ben, que aos seus sempre dá
guarida,
ca a ssa mui gran merece nunca é falida
a quanto-la ben serviren, assi é sen falla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
Aquel sant' ome vivia ali apartado,
que nunca carne comia nen pan nen bocado
senon quando con cisa era mesturado,
e d' ele ja bever vinno non era penssado;
mas pero algas vezes fillava pescado,
que dava sen aver en deyro nen mealla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
E macar ll' alguen por esto deiros queria
dar ou algus presentes, sol nonos prendia;
mais o que de comer era adubar fazia
pera as gentes que vian y en romaria,
ca ele os convidava e os recebia,
con que lles parava mesa en branca toalla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
El atal vida fazend' en aquela montanna,
estand' un dia pescando com' era ssa
manna,
chegaron ali navios de mouros, conpanna
que ben d'Africa veran por correr Espanna,
e fillárono aginna e con mui gran sanna
deron con el no navio, oy mais Deus lle
valla!
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
E pois est' ouveron feito, fezeron gran
guerra,
rouband' en mar quant' achavan e saynd' a
terra,
e quiseran-ss' ir con todo. Mas a que non
erra
d' acorrer a seus amigos nen lles porta serra
os fez que sse non poderon alongar da
serra,
ca lles non valeu bon vento quant' é ha
palla,
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
Con que movian de rrijo aos treus alçados;
e quanto toda a noite eran alongados
da pena, ena mannaa y eran tornados;
est' avo per tres noites aos malfadados.
E quando aquesto viron, foron espantados
e chamaron Mafomete, o fillo d' Abdalla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
Mais o almiral dos mouros era entendudo,
que nom' Arrendaff' avia, e ome sisudo,
e nenbrou-lle daquel ome que fora metudo
ena sota da galea e y ascondudo,
e teve que por est' era seu feyto perdudo
e diss': «Amigos, fol éste quen a Deus
contralla.»
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
E mandó-o tirar fora e pos-ll' our' e prata
deant', e panos de seda, outros d' escarlata,
e mandou que os fillasse come de ravata,
dizendo: «Do que te pagas», de ssu os ata.»
Mais desto non fillou ren e, ben come quen
cata
por pouco, fillou un vidro de mui bela talla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
E o almiral enton preguntou que om' era,
ou de fillar aquel vidro, porque o fezera.
E el lles contou enton qual vida mantevera
des quand' en aquel' ermida a morar vera;
mais de fillar aquel vidro muito lle
prouguera,
e que al non fillaria do seu nemigalla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
E eles, quand' est' oyron, fora o poseron
en aquel logar mesmo onde o preseron,
e que non ouvesse medo assi lle disseron.
Tan tost' alçaron sas veas, e bon vent'
ouveron
e foron ssa via que sol non se deteveron,
fendend' as ondas per meo ben come
navalla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
Estas novas pela terra foron mui sõadas,
e gentes de todas partes foron y juntadas,
e a Santa Maria loores poren dadas; (* 95-
v.85)
mais el Cond' Abran acharon pois muitas
vegadas
mouros que correr vian con barcas
armadas,
e non lle fezeron mal, d' atant' ouv'
avantalla.
Quen aos servos da Virgen de mal se
traballa...
CANTIGA 96
COMO SANTA MARIA GUARDOU A
ALMA DUN OME BÕO QUE SSE NON
PERDESSE, CA O AVIAN ESCABEÇADO
LADRÕES, E FEZ QUE SE JUNTASSEN O
CORPO E A TESTA E SSE
MAENFESTASSE.
Atal Sennor
5 é bõa que faz salva-lo pecador.
Aquesto dig' eu por Santa Maria,
a que muito pesa de quen folia
faz, e que maneyra busca e via
que non cáia ome dun err' en peyor.
10 Atal Sennor...
Dest' un miragre vos darei recado,
que a Virgen fez fremos' e preçado;
e se eu poder, per mi vos mostrado
será, por que ajades dele sabor.
Atal Sennor...
Esto foi dun ome que feit' ouvera
prazer aa Virgen quant' el podera;
mais pedença prender non quisera
per conssello do demo enganador.
Atal Sennor...
El assi andand', un dia passava
per un gran mont' u conpanna estava
de ladrões con u que andava
con eles, que era de todos mayor.
Atal Sennor...
E quand' est' ome viron, se leixaron
correr log' a el; e poi-lo fillaron
fora do cam', o escabeçaron
por mandado daquel mao roubador.
Atal Sennor...
Dali fogiron poi-lo feit' ouveron.
E a quarto dia per y veron
dous frades mores, e vozes deron
o corp' e a testa, ond' eles pavor
Atal Sennor...
Ouveron; e meteron ben femença
com' as vozes dizian: «Pedença
nos dade, por Deus e por sa creença,
por que non soframos pa nen door.»
Atal Sennor...
Primeir' os frades foron espantados
do que oyron; mas pois acordados
foron, a test' e o corpo juntados
viron, e disseron: «Polo Salvador,
Atal Sennor...
Vos, corp' e testa, por Deus conjuramos
que per vos desto verdade sabiamos.»
Respos a cabeça: «Ja outorgamos
per que cada u seja en sabedor
Atal Sennor...
De vos.» E contou como o mataran
e come diabres alma cuidaran
levar que sen confisson acharan.
«Mas non quis a Virgen, das outras mellor,
Atal Sennor...
Que per nulla ren o demo levasse
mia alma, mais que a testa tornasse
a meu corpo, e que me confessasse;
e ela des i foi mia aguardador.»
Atal Sennor...
Quand' est' oyron, logo mantenente
fezeron os frades vir gran gente,
e confessou-sse verdadeyramente
ant' eles e disse: «Amigos, se for
Atal Sennor...
Vosso prazer, rogo-vos que roguedes
a Deus por mi e me ll' acomendedes,
ca bes aqui vos me veeredes
ora jazer morto e sen coor.»
Atal Sennor...
Bes assi com' el disse foi feito
e o seu corpo tan toste desfeyto;
e os omees, pois viron tal preito,
aa Virgen deron poren gran loor.(yxz 96-
v.74)
Atal Sennor...
CANTIGA 98
COMO HÛA MOLLER QUIS ENTRAR EN
SANTA MARIA DE VALVERDE E NON
PUDE ABRIR AS PORTAS ATEN QUE SSE
MÃEFESTOU.
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir
aquel que de seus pecados | non se
repentir.
5 Desto direy un miragre | que contar oý
a omees e molleres | que estavan y,
de como Santa Maria | desdennou assi
ante todos ha dona | que fora falir.
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
E o falimento fora | grand' e sen razon;
e porque ss' en non doya | en seu coraçon,
pero a Santa Maria | foi pedir enton
que entrass' en sa eigreja, | non quis
consentir.
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
Aquesto foi en Valverde, | cabo Monpisler,
u faz a Virgen miragres | grandes quando
quer,
u vo aquesta dona, | mui pobre moller,
por entrar ena eigreja; | mas non pod' abrir
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
As portas per nulla guisa | que podess'
entrar;
e entravan y os outros, | dous e tres a par.
Quand' aquesto viu a dona, | fillou-ss' a
chorar
e con coita a cativa | sas faces carpir,
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
Dizendo: «Santa Maria, | tu, Madre de
Deus,
mui mais son as tas mercees | que peccados
meus;
e fas-me, Sennor, que seja | eu dos servos
teus
e que entre na eigreja | tas oras oyr.»
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
Pois que aquest ouve dit' e | sse mãefestou
e do mal que feit' avia | muito lle pesou,
enton as portas abertas | vyu, e log' entrou
na eigreja muit' aga. | E esto gracir
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
Foi ela e muita gente | que aquesto viu.
E sempr' ela en sa vida | a Virgen serviu
e nunca des aquel' ora | daly sse partyu,
ante punnou todavia | d' a Virgen servir.
Non dev' a Santa Maria | mercee pedir...
CANTIGA 100
ESTA É DE LOOR.
Santa Maria,
Strela do dia,
mostra-nos via
pera Deus e nos guia.
Ca veer faze-los errados
que perder foran per pecados
entender de que mui culpados
son; mais per ti son perdõados
da ousadia
que lles fazia
fazer folia
mais que non deveria.
Santa Maria...
Amostrar-nos deves carreira
por gãar en toda maneira
a sen par luz e verdadeira
que tu dar-nos podes senlleira;
ca Deus a ti a
outorgaria
e a querria
por ti dar e daria.
Santa Maria...
Guiar ben nos pod' o teu siso
mais ca ren pera Parayso
u Deus ten senpre goy' e riso
pora quen en el creer quiso;
e prazer-m-ia
se te prazia
que foss' a mia
alm' en tal compannia.
Santa Maria...
CANTIGA 120
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA.
Quantos me creveren loarán
a Virgen que nos manten.
Ca sen ela Deus non averán
Quantos me crevreren loarán...
nenas sas fazendas ben farán
Quantos me creveren loarán...
neno ben de Deus connocerán;
e tal consello lles dou poren.
Quantos me creveren loarán...
E con tod' esto servi-la-an
Quantos me creveren loarán...
e de seu prazer non sayrán
Quantos me creveren loarán...
e mais d' outra ren a amarán,
e serán per y de mui bon sen;
Quantos me creveren loarán...
Ca en ela sempre acharán
Quantos me creveren loarán...
mercee mui grand' e bon talan,
Quantos me creveren loarán...
per que atan pagados serán
que nunca desejarán al ren.
Quantos me creveren loarán...
CANTIGA 209
COMO EL REY DON AFFONSO DE
CASTELA ADOEÇEU EN BITORIA E OUV'
HA DOOR TAN GRANDE QUE
COIDARON QUE MORRESSE ENDE, E
POSERON-LLE DE SUSO O LIVRO DAS
CANTIGAS DE SANTA MARIA, E FOI
GUARIDO.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz,
a Deus quen lle nega o ben que lle faz.
Mas en este torto per ren non jarei
que non cont' o ben que del recebud' ei
per ssa Madre Virgen, a que sempr' amei,
e de a loar mais d'outra ren me praz.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
E, como non devo aver gran sabor
en loar os feitos daquesta Sennor
que me val nas coitas e tolle door
e faz-m' outras mercees muitas assaz?
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
Poren vos direi o que passou per mi,
jazend' en Bitoira enfermo assi
que todos cuidavan que morress' ali
e non atendian de mi bon solaz.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
Ca ha door me fillou [y] atal
que eu ben cuidava que era mortal,
e braadava: «Santa Maria, val,
e por ta vertud' aqueste mal desfaz.»
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
E os fisicos mandavan-me põer
panos caentes, mas nono quix fazer,
mas mandei o Livro dela aduzer;
e poseron-mio, e logo jouv' en paz,
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
Que non braadei nen senti nulla ren
da door, mas senti-me logo mui ben;
e dei ende graças a ela poren,
ca tenno ben que de meu mal lle despraz.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
Quand' esto foi, muitos eran no logar
que mostravan que avian gran pesar
de mia door e fillavan-s' a chorar,
estand' ante mi todos come en az.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
E pois viron a mercee que me fez
esta Virgen santa, Sennor de gran prez,
loárona muito todos dessa vez,
cada u põendo en terra sa faz.
Muito faz grand' erro, e en torto jaz...
CANTIGA 328
ESTA É COMO SANTA MARIA FILLOU
UN LOGAR PERA SI ENO REINO DE
SEVILLA E FEZ QUE LLE CHAMASSEN
SANTA MARIA DO PORTO.
Sabor á Santa Maria, |de que Deus por nos
foi nado,
que seu nome pelas terras |seja sempre
nomeado.
I
Ca se ela quer que seja |o seu nom' e de seu
Fillo
nomeado pelo mundo, | desto non me
maravillo,
e corrudo del Mafomet | e deitado en eixillo
el e o diab' antigo | que o fez seu avogado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
II
E desto mui gran miragre |a que éste Madr'
e Filla
mostrou, e mui saboroso |d'oyr a gran
maravilla,
preto de Xerez, que éste | eno reino de
Sevilla
un logar que Alcanate | soya seer chamado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
III
Este logar jaz en terra | mui bõa e mui
viçosa
de pan, de vynno, de carne | e de fruita
saborosa
e de pescad' e de caça; | ca de todo
deleitosa
tant' é, que de dur seria | en un gran dia
contado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
IV
Ca este logar é posto | ontr' ambos e dous
os mares,
o grand' e o que a terra | parte per muitos
logares,
que chaman Mediterrano; | deis i ambos e
dous pares
s'ajuntan y con dous rios, | per que ést' o
log' onrrado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
V
Guadalquivir é u deles, | que éste mui nobre
rio
en que entran muitas aguas | e per que ven
gran navio;
o outro é Guadalete, | que corre de mui
gran brio;
e en cada u daquestes | á muito bõo
pescado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
VI
Ond' en este logar bõo | foi pousar hûa
vegada
el Rey Don Affonso, quando | sa frota ouv'
enviada
que Çalé britaron toda, | gran vila e muit'
onrrada,
e o aver que gãaron, | de dur seria osmado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
VII
El pousand' en aquel logo | e ssa frota
enviando
e yndo muitas vegadas | a Cadiz e ar
tornando,
e do que mester avia | a frota ben
avondando,
per que fosse mais aga | aquel feit'
enderençado,
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por nos
foi nado...
VIII
Non catou al, senon quando | o alguazil mui
sannudo
de Xerez a ele vo, | mouro mui riqu' e
sisudo,
dizendo: «Sennor, com' ousa | seer null' om'
atrevudo
d'Alcanate, u pousades, | aver-ll' o nome
canbiado
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
IX
E ar dizer-ll' outro nome, | de que an gran
desconorto
os mouros, porque lle chaman | Santa
Maria del Porto,
de que ven a nos gran dano | e a vos fazen y
torto.
E atal feito com' este | deve ser
escarmentado.»
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
X
El Rei, quand' oyu aquesto, | ouve gran
sanna provada, 50
e mandou a ssa jostiça | que logo sen
detardada
que pola ost' ascuita[n]do | de pousada en
pousada
andass', e a quen oysse | tal nome, foss'
açoutado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XI
Sobr' esto muitos chrischãos | foron mui
mal açoutados
e outros a paancadas | os costados ben
britados,
e ar outros das orellas | porende foron
fanados,
e per tod' esto non pode | aquel nom' aver
vedado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XII
Ante quanto mais punnava | e provava e
queria
de vedar aquele nome, | a gente mais lo
dizia;
ca a Virgen groriosa, | Reynna Santa Maria,
queria que do seu nome | foss' aquel logar
chamado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XIII
Ond' el Rei en mui gran coita | era
daquesto, sen falla,
temendo que non crecesse | sobr' esto volt'
ou baralla
ontre mouros e crischãos; | mais a Virgen,
que traballa
por nos, tragia o preito | d'outra guisa
ordado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XIV
Ca ao alguazil mouro | fezo logo que
falasse
con el Rei e por mercee | lle pediss' e lle
rogasse
que aquel logar tan bõo | pera crischãos
fillasse.
El Rey, quand' oyu aquesto, | foi en mui
ledo provado,
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XV
Ca entendeu ben que Cadiz | mais toste
pobrad' ouves [s]e; 75
mas temendo que o mouro | por engano o
fezesse,
non lle quis responder nada | a cousa que
lle dissesse.
Ond' o alguazil por esto | foi en mui
maravillado
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XVI
E disso com' en sannudo | al Rei: «Non
saya dest' ano 80
se esto que vos eu rogo | o faço por null'
engano,
mas por meter paz na terra | e por desviar
gran dano
que pode seer, se este | feito non for
acabado.»
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
XVII
E demais lle deu con este | logar toda a
ribeyra
d'outras aldeas que eran | do Gran Mar
todas na beira,
Esto fez a Virgen santa, | a Sennor
dereitoreira,
de cujo nome o mundo | será chêo per meu
grado.
Sabor á Santa Maria, | de que Deus por
nos foi nado...
CANTIGA 370
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA.
Loemos muit' a Virgen Santa Maria,
Madre de Jesu-Crist', a noit' e o dia.
Devemos-lle dar mais de cen mil loores,
pois que a Deus progue, Sennor dos
sennores,
que dela pres carn' e as nossas doores
en ssi quis soffrer, como diss' Ysaya.
Loemos muit' a Virgen Santa Maria...
E de a servir sol non nos enfademos,
outrossi temer e loar, ca sabemos
que nos gãará dos erros que fazemos
perdon pera sempr' e vid' e alegria.
Loemos muit' a Virgen Santa Maria...
Esta nos quis dar Deus por noss' [a] vogada
quando fez dela Madr' e Filla juntada;
e poren deve seer de nos loada,
e atal Sennor, quen-na non loaria?
Loemos muit' a Virgen Santa Maria...
CANTIGA 401
ESTA É PETIÇON QUE FEZO EL REY A
SANTA MARIA.
Macar poucos cantares acabei e con son,
Virgen, dos teus miragres, peço-ch' ora por
don
que rogues a teu Fillo Deus que el me
perdon
5 os pecados que fige, pero que muitos son,
e do seu parayso non me diga de non,
nen eno gran juyzio entre migu' en razon,
nen que polos meus erros se me mostre
felon;
e tu, mia Sennor, roga- ll' agora e enton
10 muit' afficadamente por mi de coraçon
e por este serviço dá-m' este galardon.
Pois a ti, Virgen, prougue que dos miragres
teus
fezess'ende cantares, rogo-te que a Deus,
teu Fillo, por mi rogues que os pecados
meus
15 me perdon e me queira reçebir ontr' os
seus
no santo parayso, u éste San Matheus,
San Pedr' e Santi[a]go, a que van os romeus,
e que en este mundo queira que os encreus
mouros destruyr possa, que son dos
Filisteus,
20 com' a seus emigos destruyu Machabeus
Judas, que foi gran tenpo cabdelo dos
judeus. [cabdelo - capitão; chefe]
E al te rog' ainda que lle queyras rogar
que do diab' arteiro me queira el guardar,
que punna todavia pera om' enartar
[enartar- enganar por meio de artes]
25 per muitas de maneiras, por faze-lo
peccar,
e que el me dé siso que me poss' amparar
dele e das sas obras, con que el faz obrar
mui mal a queno cree e pois s'en mal achar,
e que contra os mouros, que terra
d'Ultramar
30 ten e en Espanna gran part' a meu pesar,
me dé poder e força pera os en deitar.
Outros rogos sen estes te quer' ora fazer:
que rogues a teu Fillo que me faça viver,
per que servi-lo possa, e que me dé poder
35 contra seus emigos e lles faça perder
o que ten forçado, que non deven aver,
e me guarde de morte per ocajon prender,
e que de meus amigos veja senpre prazer,
e que possa mias gentes en justiça ter,
40 e que senpre ben sábia enpregar meu aver,
que os que mio fillaren mio sábian
gradeçer.
E ainda te rogo Virgen, bõa Sennor,
que rogues a teu Fillo que, mentr' eu aqui
for
en este mundo, queira que faça o mellor,
45 per que del e dos bõos sempr' aja seu
amor;
e, pois Rey me fez, queira que reyn' a seu
sabor,
e de mi e dos reynos seja el guardador,
que me deu e dar pode quando ll' en prazer
for;
e que el me deffenda de fals' e traedor,
50 e outrossi me guarde de mal consellador
e d'ome que mal serve e é mui pedidor.
E pois ei começado, Sennor, de te pedir
merçees que me gães, se o Deus por ben
vir,
roga-lle que me guarde de quen non quer
graçir
55 algo que ll' ome faça neno ar quer servir,
outrossi de quen busca razon pera falir,
non avendo vergonna d'errar nen de mentir,
e [de] quen dá juyzio seno ben departir
nen outro gran consello sen ant' i comedir,
60 e d'ome mui falido que outro quer cousir,
e d'ome que mal joga e quer muito riir.
Outrossi por mi roga, Virgen do bon talan,
que me guard' o teu Fillo daquel que
adamam
mostra sempr' en seus feitos, e daqueles
que dan
65 pouco por gran vileza e vergonna non an,
e por pouco serviço mostran que grand'
affan
prenden u quer que vaan, pero longe non
vam;
outrossi que me guardes d'ome torp'
alvardan,
e d'ome que assaca, que é peor que can,
70 e dos que lealdade non preçan quant' un
pan,
pero que sempr' en ela muito faland' estan.
E ainda te rogo Sennor espirital,
que rogues a teu Fillo que el me dé atal
siso, per que non caia en pecado mortal,
75 e que non aja medo do gran fog' infernal,
e me guarde meu corpo d'ocajon e de mal
e d'amig' encuberto, que a gran coita fal,
e de quen ten en pouco de seer desleal,
e daquel que se preça muit' e mui pouco
val,
80 e de quen en seus feitos sempr' é
descomunal.
Esto por don cho peço, e ar pidir-ch-ei al:
Sennor Santa Maria, pois que começad' ey
de pedir-che merçee, non me departirey;
poren te rog' e peço, pois que teu Fillo Rey
85 me fez, que del me gães siso, que mester
ey,
con que me guardar possa do que me non
guardey,
Per que d'oj' adeante non erre com' errey
nen meu aver enpregue tam mal com'
enpreguey
en algus logares, segundo que eu sey,
90 perdend' el e meu tenpo e aos que o dey;
mas des oi mais me guarda, e guardado
serey.
Tantas son as merçees, Sennor, que en ti á,
que porende te rogo que rogues o que dá
seu ben aos que ama, ca sey ca o fará
95 se o tu por ben vires, que me dé o que ja
lle pedi muitas vezes; que quando for a
no parayso, veja a ti sempr' e acá
mi acorra en mias coitas por ti, e averá
me bon galardon dado; e sempre fiará
100 en ti quen souber esto e mais te servi
por quanto me feziste de ben, e t'amará.
CANTIGA 402
Santa Maria, nenbre-vos de mi
e daquelo pouco que vos servi.
Non catedes a como pecador
sõo, mais catad' a vossa valor
e por un muy pouco que de loor
dixe de vos, en que ren non menti.
Santa Maria, nenbre-vos de mi...
Non catedes como pequey assaz,
mais catad' o gran ben que en vos jaz;
ca vos me fezestes como quen faz
sa cousa quita toda pera ssi.
Santa Maria, nenbre-vos de mi...
Non catedes a como pequey greu,
mais catad' o gran ben que vos Deus deu;
ca outro ben senon vos non ei eu
nen ouve nunca des quando naçi.
Santa Maria, nenbre-vos de mi...
Non catedes en como fuy errar,
mas catad' o vosso ben que sen par
ést' e de como Deus a perdõar
nos á por vos; e seique ést' assi.
Santa Maria, nenbre-vos de mi...
Non catedes a como fuy falir,
mais catade como non sey u ir
senon a vos por merçee pedir,
u a achei cada que a pedi.
Santa Maria, nenbre-vos de mi...
E queredes que vos veja ali
u vos sodes, quando me for daqui.
CANTIGA 406
ESTA PRIMEIRA É DAS MAYAS.
Ben vennas, Mayo, e con alegria;
poren roguemos a Santa Maria
que a seu Fillo rogue todavia
que el nos guarde d' err' e de folia.
Ben vennas, Mayo.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo con toda saude,
por que roguemos a de gran vertude
que a Deus rogue que nos senpr' ajude
contra o dem' e dessi nos escude.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, e con lealdade,
por que roguemos a de gran bondade
que senpre aja de nos piadade
e que nos guarde de toda maldade,
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con muitas requezas;
e nos roguemos a que á nobrezas
en ssi mui grandes, que nos de tristezas
guard' e de coitas e ar d'avolezas.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, coberto de fruitas;
e nos roguemos a que senpre duitas
á sas merçes de fazer en muitas,
que nos defenda do dem' e sas luitas.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con bõos sabores;
e nos roguemos e demos loores
aa que senpre por nos pecadores
rog' a Deus, que nos guarde de doores.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con vacas e touros;
e nos roguemos a que nos tesouros
de Jeso-Cristo é, que aos mouros
çedo cofonda, e brancos e louros.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, alegr' e sen sanna;
e nos roguemos a quen nos gaanna
ben de seu Fillo, que nos dé tamanna
força, que sayan os mouros d'Espanna.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con muitos gãados;
e nos roguemos a que os pecados
faz que nos sejan de Deus perdõados,
que de seu Fillo nos faça privados.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con bõo verão;
e nos roguemos a Virgen de chão
que nos defenda d'ome mui vilão
e d'atrevud' e de torp' alvardão.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con pan e con vo;
e nos roguemos a que Deus mino
troux' en seus braços, que nos dé camo
por que sejamos con ela festinno.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, manss' e non sannudo;
e nos roguemos a que noss' escudo
é, que nos guarde de louc' atrevudo
e d' om' ayo e desconnoçudo.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, alegr' e fremoso;
porend' a Madre do Rey grorioso
roguemos que nos guarde do nojoso
om' e de falsso e de mentiroso.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
Ben vennas, Mayo, con bõos manjares;
e nos roguemos en nossos cantares
a Santa Virgen, ant' os seus altares,
que nos defenda de grandes pesares.
Ben vennas, Mayo, e con alegria.
CANTIGA 409
DE LOOR DE SANTA MARIA.
Cantando e con dança
seja por nos loada
a Virgen corõada
que é noss' asperança.
Seja por nos loada,
e dereito faremos,
pois seu ben atendemos
e d'aver o temos
por cousa mui guisada,
ca é noss' avogada;
e de certo sabemos
que de Deus averemos
perdon e guannaremos
sa merce' acabada
per ela, que á dada
per muitas de maneiras
a nos e dá carreiras
d'avermos perdoança.
Cantando e con dança...
Porende sse loada
é de Santa Eigreja,
esto conven que seja,
pois gran graça sobeja
per ela an gãada
de Deus, per que onrrada
é de quanto deseja,
de que o dem' enveja
á, e por que peleja
nosco muit' aficada-
ment', e non gãa nada;
ca ela todavia
destrue ssa perfia
e dá-nos del vingança.
Cantando e con dança...
Reis e emperadores,
todos comalmente
a todo seu ciente
deven de bõa mente
dar-lle grandes loores,
ca per ela sennores
son de toda a gente,
e cada u sente
dela compridamente
mercees e amores;
e macar peccadores
sejan, a Virgen bõa
mui toste os perdõa,
sen nulla dovidança.
Cantando e con dança...
Des i os oradores
e os religiosos,
macar son omildosos,
deven muit' aguçosos
seer e sabedores
en fazer-lle sabores,
cantando saborosos
cantares e fremosos
dos seus maravillosos
miragres, que son frores
d'outros e mui mellores,
est' é cousa sabuda,
ca por nossa ajuda
os faz sen demorança.
Cantando e con dança...
Outrossi cavaleiros
e as donas onrradas,
loores mui grãadas
deven per eles dadas
seer, e merce[i]ros
e demais deanteiros
en fazer sinaadas
cousas e mui preçadas
por ela, que contadas
sejan, que verdadeiros
lles son e prazenteiros,
ca serán perdõados
porende seus pecados,
e guardados d'errança.
Cantando e con dança.
Donzelas, escudeiros,
burgeses, cidadãos,
outrossi aldeãos,
mesteiraes, ruãos,
des i os mercadeiros,
non deven postremeiros
seer; mais com' irmãaos,
todos alçand' as mãos,
con corações sãos,
en esto companneiros
deven seer obreiros,
loand' a Virgen santa,
que o demo quebranta
por nossa amparança.
Cantando e con dança...
CANTIGA 421
ESTA .XI., EN OUTRO DIA DE SANTA
MARIA, É DE COMO LLE VENNA
EMENTE DE NOS AO DIA DO JUYZIO E
ROGUE A SEU FILLO QUE NOS AJA
MERÇEE.
Nenbre-sse-te, Madre
de Deus, Maria,
que a el, teu Padre,
rogues todavia,
pois estás en sa compania
e es aquela que nos guia,
que, pois nos ele fazer quis,
sempre noit' e dia
nos guarde, per que sejamos fis
que sa felonia
non nos mostrar queira,
mais dé-nos enteira
a ssa grãada merçee,
pois nossa fraqueza vee
e nossa folia,
con ousadia
que nos desvia
da bõa via
que levaria
nos u devia,
u nos daria
sempr' alegria
que non falrria
nen menguaria,
mas creçeria
e poiaria
e compriria
e 'nçimaria
a nos.
CANTIGA 422
ESTA .XII. É DE COMO SANTA MARIA
ROGUE POR NOS A SEU FILLO ENO DIA
DO JUYZIO.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U verrá na carne que quis fillar de ty,
Madre,
joyga-lo mundo cono poder de seu Padre.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill'essa
ora.
E u el a todos pareçerá mui sannudo,
enton fas-ll' enmente de como foi
conçebudo.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E en aquel dia, quand' ele for mais irado,
fais-lle tu emente com' en ti foi enserrado.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill'essa
ora.
U verás dos santos as compannas
espantadas,
mostra-ll' as tas tetas santas que ouv' el
mamadas.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U ao juyzio todos, per com' é escrito,
verrán, di-lli como con el fugisti a Egito.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill'essa
ora.
U leixarán todos os viços e as requezas,
di-lle que sofriste con el[e] muitas
pobrezas.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U queimará fogo serras [e] vales e montes,
di com' en Egipto non achast' aguas nen
fontes.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill'essa
ora.
U verás os angeos estar ant' ele tremendo,
di-lle quantas vezes o tu andast'
ascondendo.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U dirán as tronpas: Mortos, levade-vos
logo»,
di-ll' u o perdiste que ta coita non foy jogo.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U será o ayre de fog' e de suffr' aceso,
di-ll' a mui gran coita que ouviste pois foi
preso.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U verrá do çeo sõo mui fort' e rogido,
di-ll' o que soffriste u d'açoutes foi ferido.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
U terrán escrito nas frontes quanto fezeron,
di-ll' o que soffriste quand' o ena cruz
poseron.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E quando ss' iguaren montes [e] vales e
chãos,
di-ll' o que sentiste u lle pregaron as mãos.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E u o sol craro tornar mui negro de medo,
di-ll' o que sentiste u beveu fel e azedo.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E du o mar grande perderá sa semellança,
di-ll' o que soffriste u lle deron cona lança.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E u as estrelas caeren do firmamento,
di-ll' o que sentiste u [foi] posto no
monumento.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E du o inferno levar os que mal obraron,
di-ll' o que sentiste u o sepulc[r]o
guardaron.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E u todo-los reys foren ant' el omildosos,
di-lle como ves deles dos mais poderosos.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
E u mostrar ele tod' estes grandes pavores,
fas com' avogada, ten voz de nos
pecadores,
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
Que polos teus rogos nos lev' ao parayso
seu, u alegria ajamos por senpr' e riso.
Madre de Deus, ora por nos teu Fill' essa
ora.
CANTIGA 427
ESTA QUINTA É COMO NOSTRO
SENNOR ENVIOU O SEU
SANTI SP[I]RITO SOBRE LOS SEUS
DICIPOLOS.
Todo-los bêes que nos Deus
quis fazer polo Fillo seu,
nos conpriu quando aos seus
o seu Sant' Espirito deu
que prometeu.
Ca per el o sabemos connoçer,
e connoçendo, amar e temer,
e demais dá-nos grand' esforço de
prender
morte por el, nenbrando-nos de com' el por
nos morreu.
Todo-los bes que nos Deus...
E porende vos quer' ora dizer
com' este Spirito fezo deçer
Deus sobre los seus dicipolos, que seer
de ssu fez, por que cada un gran sen del
reçebeu.
Todo-los bes que nos Deus...
Muitas vezes lles fora prometer
Deus que per seu Espirito saber
lles faria todas [las] cousas entender
mellor que nunca sage en todo o mund'
aprendeu.
Todo-los bes que nos Deus...
E porend' os dicipolos meter
se foran de su e atender
en ha casa por aquel don reçeber;
e estand' ali, direi-vos eu o que lles
conteçeu:
Todo-los bes que nos Deus...
A terça começou. muit' a tremer
a terra, e son come de caer
o ayre fez; e enton viron deçender
linguas de fogo sobre ssi, que os todos
ençendeu
Todo-los bes que nos Deus...
De Spirito. E dali sen lezer
se sayron sen ren se deter,
e pela vila se fillaron a correr;
e dizian por eles: «Aquesta gent'
enssandeçeu;
Todo-los bes que nos Deus...
Ca sabemos que non saben leer
nen ar ouveron tenpo d' aprender,
e falan todos lenguages, e responder
saben mellor a toda ren que aquel que mais
lecu.
Todo-los bes que nos Deus...
E por esto non devemos creer
que o vo lles faz esto fazer,
mai-la vertude daquel Deus que á poder
de fazer que os lenguages entendan, que
cofondeu
Todo-los bes que nos Deus...
En Babilonna, u foron erger
a torre que podessen atanger
ben so aos ceos; mas foi-lles Deus toller
os lenguages, assi que un a outro non
entendeu.»
Todo-los bes que nos Deus...
E dali adeante sen temer
souberon preegar e retraer
os dicipolos e as gentes converter
a Jesu-Crist', e cada un deles muitos
converteu.
Todo-los bes que nos Deus...
E muitas coitas ar foron soffrer
por el e ençima morte padecer;
e en tal guysa quisNostro Sennor vençer
o demo pelos seus, e aqueste mundo
conquereu.
Todo-los bes que nos Deus
E nos roguemos a que gran prazer
viu de seu Fillo quando a põer
foi enos çeos a par de ssi, que aver
nos faça del o Sant' Espirito, pois dela
naçeu.
Todo-los bes que nos Deus...
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo