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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
CONFLITO E PAZ PERPÉTUA EM KANT
EVERSON DEON
FLORIANÓPOLIS
2005
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2
EVERSON DEON
CONFLITO E PAZ PERPÉTUA EM KANT
Dissertação apresentada ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Filo-
sofia, área de concentração Ética e
Filosofia Política, como requisito à
obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA
ORIENTADORA: PROFª. DRª. MARIA DE LOURDES ALVES BORGES
FLORIANÓPOLIS
NOVEMBRO/2005
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3
Aos meus pais Amélio e Dileta.
4
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Santa Catarina, pela oportunidade de cursar o Mestrado
e à sociedade brasileira que mantém esta universidade pública, gratuita e de qualidade.
Ao programa de Pós-Graduação em Filosofia, pela acolhida do projeto.
Aos professores do Mestrado: Delamar Volpato Dutra, José Ricardo Pierpauli,
Selvino Assmann, Darlei Dall’Agnol, Maria de Lourdes Alves Borges e Alessandro
Pinzani, pelos valiosos ensinamentos oferecidos durante o curso.
À professora Maria de Lourdes Alves Borges, pela orientação do trabalho, compre-
ensão constante e apoio nos momentos difíceis.
À banca de qualificação, constituída pelos professores Delamar Volpato Dutra,
Alessandro Pinzani e Léo Staudt, pela leitura do texto e pelas contribuições, as quais ajuda-
ram a tornar este trabalho mais consistente.
Aos colegas do Mestrado e aos amigos, pela presença e incentivo.
À Ângela, secretária do PPGF, pela atenção e gentileza dispensada durante o curso.
Aos meus pais, pelo constante apoio para superar as dificuldades encontradas duran-
te o curso.
5
RESUMO
CONFLITO E PAZ PERPÉTUA EM KANT
Kant, há mais de duzentos anos, apresentou no opúsculo A Paz Perpétua (1795), um projeto
filosófico para a efetivação da paz mundial. A filosofia jurídico-politica kantiana, no tocante a paz
perpétua, está fundamentada em três idéias básicas: a constituição republicana, a federação de Es-
tados e o direito cosmopolita. No contexto da obra kantiana, a filosofia jurídico-política e a paz
como idéia reguladora fazem parte da arquitetônica da razão prática e têm sustentação definitiva na
razão pura legisladora. Para Kant, a constituição republicana é a única derivada do conceito de di-
reito e capaz de garantir a liberdade e a paz; a federação de Estados concebe um ordenamento inter-
nacional que assegura a soberania dos Estados e garante o direito de permanecer em paz como re-
gra universal; e por fim, o direito cosmopolita fornece os elementos teóricos e práticos necessários
para a formação de uma comunidade jurídica universal, bem como para a elaboração de uma consti-
tuição cosmopolita. O fio condutor subjacente ao projeto kantiano da paz perpétua concentra-se na
idéia de progresso para o melhor presente na História da humanidade, bem como na ação da nature-
za em prol da realização do sumo bem político. Este trabalho pretende apresentar o projeto kantiano
para a paz perpétua e identificar sinais concretos de sua efetivação na atualidade.
Palavras-chave: Kant. Filosofia da história. Paz Perpétua. Republicanismo. Federação de Estados.
Cosmopolitismo.
ABSTRACT
CONFLICT AND PERPETUAL PEACE IN KANT
Over two hundred years ago, in his essay Perpetual Peace (1795), Kant presented a
philosophical project to make the world peace happen. The Kantian’s juridical-political philosophy
as regards perpetual peace has three fundamentals: the republican constitution, the federation of
States and the cosmopolitan right. In the context of the Kantian work, the juridical-political
philosophy and peace as a regulating idea are part of the architecture of practical reasoning and
have definite support on pure legislating reasoning. For Kant, the republican constitution is the only
one that derives from the concept of right and capable of ensuring freedom and peace, the
federation of Nations conceives an international ordainment that ensures the sovereignty of States
and guarantees the right to remain in peace as a universal rule; and, lastly, the cosmopolitan right
provides the theoretical and practical elements required for the formation of a universal juridical
community, as well as for the elaboration of a cosmopolitan constitution. The underlying guide line
to the Kantian perpetual peace project focuses on the idea of progress for an enhance present in the
History of Humanity, as well as in nature’s action toward the realization of the ultimate political
welfare. This paper intends to present the Kantian project for perpetual peace and identify concrete
signs of its accomplishment in the present.
Key words: Kant. History Philosophy. Perpetual Peace. Republicanism. Federation of States.
Cosmopolitism.
6
ABREVIATURAS DAS OBRAS DE KANT CITADAS
IHU - KANT, I. Idéia De Uma História Universal De Um Ponto de Vista Cosmopoli-
ta. (Trad. Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra). Edição Bilíngüe. São Paulo: Editora Brasili-
ense, 1986.
PP - KANT, I. A Paz Perpétua. (Trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70,1988.
TP - KANT, I. Sobre a Expressão Corrente: Isto Pode Estar Correto em Teoria Mas
Nada Vale na Prática (Trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70,1988.
CRP - KANT, I. Crítica da Razão Pura. (Trad. De Manuela Pinto dos Santos e Alexan-
dre Fradique Morujão). 4ª ed. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MC - KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. (Tradução e notas de Adela Cortina
Orts e Jesus Conill Sancho) 2ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1994.
RPE - KANT, I. Resposta a Pergunta “O Que é Esclarecimento?”. (Trad. Artur
Morão). Lisboa: Edições 70, 1988.
CF - KANT, I. O Conflito das Faculdades. (Trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70,
1993.
FMC - KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. (Trad. Paulo Quintela).
São Paulo: Abril Cultural, 1974.
RL – KANT, I. A Religião nos Limites da Simples Razão. (Trad. Artur Morão). Lisboa:
Edições 70, 1992.
7
A Atlântica de Platão, a Utopia de Morus, a Oceana de Har-
rington e a Severambia de Allais foram sucessivamente trazi-
das à cena, mas jamais foram inventadas (exceto o monstro fa-
lhado da república despóstica de Cromwel). – Com estas cria-
ções políticas aconteceu o mesmo que com a criação do mun-
do: nenhum homem assistiu nem a tal podia estar presente,
porque, de outro modo, deveria ter sido o seu próprio criador.
Esperar um dia, por tarde que seja, a realização de um produto
político, como aqui se imagina, é um doce sonho; aproximar-se
sempre mais dele é não só pensável mas, até onde pode harmo-
nizar com a lei moral, é o dever, não dos cidadãos, mas do che-
fe de Estado
”. (I. KANT - O Conflito das Faculdades)
De onde vens?
Diógenes: Sou um cidadão do mundo” .
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................10
Primeira Parte: O projeto kantiano para a paz perpétua
CAP. 1. A IDÉIA DA PAZ NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA KANTIANA ............. 13
1.1. Considerações sobre a filosofia da história kantiana .................................................. 13
1.2. O propósito da natureza e a insociável sociabilidade ................................................. 19
1.3. A concepção de progresso para Kant e a constatação de que o gênero humano progride
para o melhor (“O que o homem pode esperar?”) ....................................................... 28
1.4. A Revolução Francesa e o entusiasmo ........................................................................ 38
1.5. A paz e a articulação entre história, direito e política ................................................. 42
CAP. 2. DIREITO, ESTADO E REPUBLICANISMO ............................................... 50
2.1 O conceito de direito em Kant: o imperativo categórico do direito ............................. 52
2.2. O progresso histórico do direito e o efeito juridicizante da Revolução Francesa ...... 56
2.3. O direito e a razão legisladora .................................................................................... 59
2.4. O contrato social e o Estado ........................................................................................ 63
2.5. A estrutura jurídica para garantir a paz: direito do Cidadão, das Gentes e Cosmopo-
lita ................................................................................................................................ 67
2.6. A constituição republicana e o “puro conceito do direito” ....................................... 69
2.7. Direito e paz ................................................................................................................ 74
CAP. 3. A FEDERAÇÃO DOS POVOS E O IDEAL COSMOPOLITA: LIBERDADE
E PAZ NO HORIZONTE DA POLÍTICA .................................................................. 77
3.1. A constituição de uma sociedade jurídica universal como ideal supremo do provir his-
tórico e o Leviatã hobbesiano ......................................... ........................................ 77
3.2. A federação dos povos e a realocação do status naturalis (análise do Segundo Artigo
Definitivo) .................................................................................................................... 84
9
3.3. O “Terceiro Artigo Definitivo” e o cosmopolitismo na política ................................. 95
3.4. Paz e liberdade: fim último da política ....................................................................... 99
Segunda Parte: O mundo após Kant
CAP. 4. PAZ, GUERRA E ESPERANÇA ................................................................... 102
4.1. A paz democrática: idealismo e realismo no legado kantiano ...................................102
4.2. Comunidade ética ou estado de direito? (excurso) ................................................... 108
4.3. O século XX e as duas guerras mundiais: a criação da ONU, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e a consciência de um novo mundo ....................................... 114
4.4. República mundial, cosmopolitismo jurídico e globalização .................................... 122
4.5. “Vivemos numa época esclarecida?”: história e esperança ....................................... 130
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 137
10
INTRODUÇÃO
A pacificação das relações entre Estados encontra-se no centro da política interna-
cional atual, exigindo da sociedade um grande esforço para obter a paz definitiva. Kant
colocou a paz como objetivo comum a ser alcançado por todos os Estados republicanos,
unidos numa Federação regida pelo direito cosmopolita. Se o filósofo de Könisberg não foi
o primeiro a tratar sobre o tema da paz, foi o primeiro a elevá-la à categoria política e for-
necer elementos teóricos consistentes sobre o tema, antecipando necessidades e problemas
dos séculos seguintes.
Hoje, diante de modelos belicistas e militaristas de Estados, contrapõe-se o modelo
kantiano, pacifista e republicano. A tensão existente entre a paz republicana e a guerra in-
ternacional coloca-se como central para os dirigentes políticos e cidadãos, pois estão em
risco as conquistas no campo da democracia e dos direitos humanos, ao menos no mundo
ocidental. Kant no final da obra “A Paz Perpétua” , texto central sobre o tema da paz, ex-
põe o caráter imperativo da realização da paz: “se existe um dever e ao mesmo tempo uma
esperança fundada de tornar efetivo o estado de um direito público, ainda que apenas nu-
ma aproximação que progride até ao infinito, então a paz perpétua, que se segue aos até
agora falsamente chamados tratados de paz (...) não é uma idéia vazia, mas uma tarefa
que, pouco a pouco resolvida, se aproxima constantemente do seu fim”. A realização da
paz é condição para a efetivação dos direitos do homem, os quais se vêem ameaçados dian-
te da guerra, situação esta que traz conseqüências imprevisíveis e em muitos casos, irrever-
síveis. A guerra produz toda a desumanidade e violência de que o homem é capaz, demons-
trando a completa irracionalidade de tal prática. Consciente disso, Kant afirmou que a razão
absolutamente condena a guerra, e portanto, ela não deve existir diante do caminho crítico
que foi aberto.
Kant não forneceu um modelo pronto para atingir a paz, mas apresentou idéias regu-
ladoras que possibilitam uma ordem cosmopolita e buscam suplantar os particularismos
religiosos, culturais e políticos. O filósofo também apresentou a idéia do “cidadão do mun-
do”, que age racionalmente em prol da humanidade, deixando para trás concepções ideoló-
gicas arcaicas de mundo. A “pax kantiana”, como se convencionou chamar as concepções
11
pacifistas inspiradas no pensamento político de Kant, insere-se no contexto das utopias,
mas ao mesmo tempo, fornece um projeto filosófico consistente e enraizado na tradição
contratualista, visando à garantia dos direitos do homem em todos os lugares do mundo,
pois segundo o filósofo “a violação de um direito num lugar é sentida em todos os lugares”.
O projeto filosófico teorizado por Kant sobre a paz produziu resultados, podendo ser obser-
vado na constante alusão ao escrito A Paz Perpétua e nas tentativas feitas pelos homens em
implementá-lo por meio de instituições políticas internacionais, como revelaram os fatos no
século XX.
Este trabalho pretende apresentar algumas considerações sobre a filosofia política
de Kant, bem como a relação com a filosofia da história, a moral e o direito. O estudo busca
reconstruir a idéia da paz kantiana contida principalmente nas obras “A Paz Perpétua”,
Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, “Metafísica dos
Costumes” eO Conflito das Faculdades”.
No primeiro capítulo serão apresentadas algumas considerações sobre a filosofia da
história kantiana, a qual permite compreender um certo sentido da história defendido por
Kant. O filósofo ensina a não olharmos para a história exclusivamente de maneira empírica,
pois veremos apenas maldade, violência e uma sucessão de carnificinas. É preciso buscar
na espécie humana, sinais de que o gênero humano progride para o melhor, e assim será
demonstrado pelo filósofo, caracterizando-o como um defensor da esperança humana.
No segundo capítulo será trabalhado o papel fundamental atribuído por Kant ao di-
reito no processo de construção da paz, como exigência sistemática da razão. A categoria
do direito proporciona a codificação no seio da comunidade humana dos elementos de soci-
abilidade, segundo leis universais. Neste sentido, Kant apresenta o caminho do republica-
nismo como única forma que assegura o direito como virtude necessária à edificação da
paz.
O direito ilumina a política, provendo a paz.
No terceiro capítulo será apresentado o ideal cosmopolita, o qual referenda o repu-
blicanismo e institui a idéia de uma Federação de Estados. A idéia de uma federação de
Estados livres é o caminho apresentado por Kant para garantir uma condição pacífica uni-
versal. A paz é o resultado da vigência interna do direito e da cooperação ordenada e insti-
tucionalizada entre todos os Estados, os quais devem estar regidos pelo direito cosmopolita.
12
E por fim, no quarto capítulo trataremos da questão da paz perpétua e suas condi-
ções de possibilidade atuais. Os eventos que se sucederam ao escrito kantiano “A Paz Per-
pétua” permitem compreender a consistência teórica, a abrangência e a atualidade do escri-
to, bem como especular sobre o futuro da política mundial. A ONU é a representação do
ideal kantiano da paz perpétua e apresenta-se hoje como o único organismo internacional
com capacidade de prover a paz. A idéia reguladora da paz e os princípios políticos dela
derivados, mesmo considerados irrealizáveis por muitos, favorecem os Estados a buscarem
paz e aproximarem-se de um mundo cosmopolita de liberdade. A paz perpétua é uma idéia
que está articulada com outras idéias do idealismo político e da filosofia prática kantiana,
estando no plano do dever ser, tal como demonstrado na passagem de Kant citada anterior-
mente. A teoria kantiana inspira possibilidades reais de realização da paz, configurando o
sumo bem político, ao qual a humanidade deve firmemente orientar-se.
13
Primeira Parte: O projeto kantiano para a paz perpétua
CAP. 1. A IDÉIA DA PAZ NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA KANTIANA
1.1 Considerações sobre a filosofia da história kantiana
Os textos “Idéia de Uma História Universal de um Ponto de vista Cosmopolita
(IHU), “Sobre a expressão comum: isto pode estar correto na teoria, mas nada vale para a
prática” (TP), “Resposta à pergunta: Que é iluminismo? (RPE) e “O Conflito das Facul-
dades” (CF) reúnem os principais elementos para reconstituir a filosofia da história kantia-
na. Além desses textos, a questão da filosofia da história aparece de forma dispersa em ou-
tras obras, e de forma indireta n’A Paz Perpétua, obra que se apresenta como peça impor-
tante na compreensão do porvir humano. Uma análise atenta desses textos permitem com-
preender o interesse de Kant em realizar uma filosofia da história, pois os pontos essenciais
de uma “metafísica dos costumes”, tais como a concepção de homem, de sociedade e do
Estado ou de uma ética, recebem o sentido da filosofia da história
1
, a qual subsume pela
razão a plausibilidade do existir e do devir consoantes à humanidade.
A filosofia kantiana da história alicerça-se na hipótese de uma intenção ou propósito
da natureza como fio condutor por detrás da multiplicidade de ações individuais humanas.
Dela extrai um conjunto de proposições que se desdobram, conseqüentemente, a priori, o
pensamento do sentido ou da racionalidade da totalidade de eventos que são as ações hu-
manas no tempo e no espaço. Para que esta história universal ou história filosófica seja pos-
sível, é tomado necessariamente o caminho da reflexão transempírica, completando a trans-
ferência da abordagem do plano das ações particulares para a perspectiva da espécie
2
. A
idéia de representação dos indivíduos ganha força na filosofia da história kantiana, con-
substanciando-os na idéia de espécie, ente do qual nascem as idéias de progresso e esperan-
ça e sumo bem político.
A questão da filosofia da história geralmente esta associada a Hegel, quando o filó-
sofo analisa a manifestação do Absoluto no mundo e o processo de aprimoramento dialéti-
1
Cf. ESTIÚ, E. La Filosofia kantiana de la história. p. 7.
2
Cf. BICCA, L. A unidade entre ética, política e história na filosofia política de Kant. Apud. OLIVEIRA, M.
A. Kant e a história como processo de totalização. p. 169.
14
co existente nos grandes acontecimentos da humanidade. É inegável a contribuição de He-
gel para a compreensão da complexidade da história humana, mas também é correto afir-
mar que há em Hegel um retorno a uma visão metafísica das coisas, do mundo, da política e
da filosofia em si, sem contar o infinitismo subjacente à sua filosofia. Kant, no século
XVIII, interrompeu o ciclo da supremacia da metafísica no campo do conhecimento, por
entender que a sua atuação dirige-se a objetos provenientes de crenças e não de saber.
A visão de Hegel sobre a filosofia da história, bem como as questões controversas
de suas teorias, estão expostas em extensa bibliografia e não constituem o objeto de análise
deste trabalho. O importante é salientar que de acordo com alguns intérpretes, Kant teria
iniciado a reflexão sobre a filosofia da história e não Hegel, como geralmente tem sido
compreendido. Considerar Kant como precursor de uma Filosofia da História
3
e da idéia da
existência de um fio condutor no percurso histórico da humanidade, significa afirmar que
no centro das reflexões filosóficas está o homem como conhecedor do mundo e, sobretudo,
como ser livre e autônomo.
Kant compreende a história como cenário para a manifestação da razão, identifica-
da no impulso fornecido à espécie para o desenvolvimento completo das disposições huma-
nas e para o aperfeiçoamento da moral e das instituições jurídico-políticas. Estas condições,
as quais a espécie está submetida, conduzem à realização da Cidade dos fins, do jus cos-
mopoliticum e da paz perpétua
4
. Kant, diferentemente de Hegel, buscará a fundamentação
do Estado e da sociedade justa e pacífica, a partir de categorias que se distanciam de ele-
mentos metafísicos
5
, justificando de forma racional a existência e a ação humana na histó-
ria.
A filosofia da história kantiana está alicerçada na idéia do constante progresso da
humanidade para o melhor, sendo os fundamentos objetivos para sua realização pautados
por elementos jurídico-políticos. Dessa forma, nenhuma teoria ou ação política pretendida
pela humanidade, terá sentido quando desvinculada de uma filosofia da história. No pensa-
3
Outros filósofos pensaram a questão da filosofia da história, tais como Lessing (séc. XIII), Condorcet (séc.
XVIII, Rousseau (séc. XVIII), Vico (séc. XVII), entre outros. Lessing, por exemplo, exerce grande influência
sobre o pensamento de Kant. A posição aqui defendida de que Kant é o precursor da filosofia da história é um
contraponto à Hegel, primeiro nome associado a tal reflexão. A análise desenvolvida baseia-se nas considera-
ções de G. Lebrun sobre o tema.
4
Cf. LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 75.
5
Mas também sem dispensá-los completamente, o que é percebido n’ Religião nos Limites da Simples Ra-
zão, onde Kant, ao falar de um reino de Deus na terra retoma algumas questões metafísicas nas discussões
filosóficas.
15
mento kantiano não é possível separar história, direito e política; sendo o direito o elemen-
to basilar do Estado e promotor privilegiado do processo de realização da paz e da liberda-
de, fins últimos da política e sustentação da esperança no horizonte histórico da humani-
dade.
Mas o que nos permite afirmar que foi Kant quem primeiro fez a reflexão sobre um
plano maior ou um objetivo existente na História humana? Lebrun
6
lembra que é Kant
quem primeiro faz a oposição entre Historie, ou seja, a história propriamente dita e Welt-
geschichte, caracterizada por uma “história do mundo, que de certo modo tem um fio con-
dutor a priori”
7
. A oposição não significa a exclusão do papel reservado a Historie, a “
elaboração da história propriamente dita, composta apenas empiricamente”
8
e baseada no
relato de detalhes, tais como a enunciação e a datação dos fatos. A elaboração da Weltges-
chichte fornece uma visão abrangente do homem na história, em movimentos amplos da
espécie e dos fatos, o que não é obtido pela Historie. Sobre a oposição entre Historie e
Weltgeschichte, Lebrun demonstra que Kant procurou entender a humanidade de um ponto
de vista racional, valendo-se dos acontecimentos da época para demonstrar este ponto de
vista, antes de Hegel:
É a Kant, e não a Hegel, que remonta a oposição entre a Historie, disciplina do entendi-
mento, e a Weltgeschichte, discurso sobre o sentido necessário da história. É Kant, antes de
Hegel, quem exclama: como é que a razão, presente na cena da natureza, poderia estar au-
sente da gesta da humanidade? Que o gênero humano esteja ‘progredindo para o que é me-
lhor do ponto de vista do fim moral do seu ser’ constitui uma hipótese muito razoável (...)
9
A filosofia da história é muito mais do que uma descrição de fatos, ela é uma com-
preensão em busca de suplantar a visão do homem factual pelo homem histórico, o qual
está orientado para o futuro
10
. A filosofia da história de Kant propõe uma análise a priori
da história, colocando o devir com igual status ao obtido pela Historie; ela é o projeto de
6
Cf. LEBRUN, G. Uma escatalogia para a moral. p. 75.
7
KANT, I. IHU. p. 23.
8
KANT, I. IHU. p. 23.
9
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 75.
10
Terra assim interpreta a filosofia da história de Kant: “A filosofia da história, a Welgeschichte, não é com-
posta pelo acúmulo de fatos, nem depende apenas de algum tipo de ordenação, nem diz respeito a uma maior
ou menor amplitude na abordagem de diferentes povos e civilizações, não consiste na comparação dos costu-
mes dos povos, não busca apenas as causas das instituições que existiram; a filosofia da história busca e afir-
ma um sentido para o devir” . In: TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p.
58.
16
“redigir uma história (Geschichte) segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mun-
do, se ele fosse adequado a certos fins racionais”
11
. Em síntese, Kant redireciona a história
do homem para o futuro, buscando nele a legitimação para o presente
12
.
Ao desenvolver uma compreensão no plano da filosofia da história e da política,
Kant indiretamente expõe a sua filosofia prática, pois considera o estudo do homem sensí-
vel e das suas inclinações, as quais assumem um papel positivo na história para o desenvol-
vimento das disposições naturais da espécie humana
13
, tal como veremos adiante. Por outro
lado, na obra A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant aponta o mal radical dificul-
tando a constituição de uma comunidade ética; nesse contexto, as inclinações, ao dificulta-
rem as ações morais, novamente assumirão um papel surpreendente, somando-se ao esforço
humano para o aperfeiçoamento das relações jurídicas
14
.
A filosofia prática kantiana coloca a responsabilidade sobre o sujeito, quanto à rea-
lização ou não de uma ação moral. A ação do indivíduo, no entanto, está inserida no uni-
verso maior da humanidade e da história da espécie humana. Trata-se da complexa questão
de saber qual o vínculo existente entre as ações individualizadas na história (pertencentes
ao campo das ações morais e, portanto, internas) e as ações coletivas presentes no plano
histórico da humanidade (envolvendo uma comunidade, a organização do Estado e a vida
política em si). Em outras palavras, em que ponto moralidade e a história humana concreta
se encontram? Se esta relação parece conflituosa, Kant demonstra que não é possível sepa-
rar a moralidade no processo de gestação da história da humanidade.
“Ora, parece-nos possível mostrar que não existe nenhuma falha entre os opúsculos sobre a
História e a análise da razão prática, e até mesmo que é uma exigência inscrita nesta última
que leva Kant a conferir cidadania filosófica ao “sentido da História”. Se assim for, Welges-
chichte, longe de ser uma noção marginal face à razão prática, contribuiria para garantir a
supremacia da razão prática
15
.
11
KANT, I. IHU. p. 22.
12
A século XVIII é profícuo em teorias que reavaliam o papel da história enquanto ciência descritiva e apon-
tam para o papel escatológico da história. Há um redirecionamento da história para o futuro, sem no entanto,
cair num paradoxo de “contar a história futura” ou no campo da previsão. Cf RIBEIRO, R. J. História e
Revolução: a Revolução Francesa e uma nova idéia de História. p. 3.
13
Cf. TERRA, R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 63.
14
Cf. TERRA, R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 63.
15
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 76.
17
Dessa forma, pode-se afirmar que o progresso ético-político da espécie humana ru-
mo à Cidade dos Fins, ao jus cosmopoliticum e à paz perpétua, é o objetivo da ação huma-
na na história. Embora nem sempre perceptível ao indivíduo e nem sempre unidas, morali-
dade e História determinam o existir humano. Perceber esta relação complexa não é tarefa
fácil ao indivíduo, pois a sua condição natural limita-o a compreensão empírica dos fatos.
Kant busca superar esta limitação do indivíduo e da própria Historie, elegendo signos em-
blemáticos, obtidos pela intuição racional sobre os fatos. Tais signos permitem a compreen-
são da espécie humana e atestam o progresso em direção ao melhor.
O entendimento do homem como ser histórico não se refere necessariamente a uma
asserção doutrinal ou teórica, mas trata-se de “um juízo de reflexão pelo qual se visa o ho-
mem na sua ambigüidade: não somente animal e ser racionável, mas animal para tornar-se
racionável”
16
. Kant não eleva o homem a uma condição absoluta, mas ao contrário, retira-o
de sua superioridade, pois ele não tem consciência de tudo o que a natureza lhe reservou.
Há uma incerteza no rumo da humanidade, mas é dessa incerteza que homem retira a espe-
rança do aperfeiçoamento racional, mesmo sem ter a consciência desse processo. Assim
analisa Lebrun:
“Esta cláusula de inconsciência é fundamental: é ela que torna utilizável a História, pois a
converte numa suposição não mística. Em suma, a razão prática, longe de nos lançar uma
especulação sobre a Providência, somente nos incita a formular o seguinte problema: dado
que seria quimérico aguardarmos o aparecimento de uma sociedade angélica, vamos encon-
trar o mecanismo graças ao qual os indivíduos, mau grado seu e mesmo a contragosto, são
forçados a moralizar-se progressivamente”
17
.
O fato do homem não ter consciência de tudo o que está acontecendo, não significa
que a história humana segue sem rumo e que a razão falha ao não perceber o que acontece-
rá ao homem. Segundo Kant, o “plano oculto da natureza”
18
incumbe-se de dar sentido à
história e fornecer os meios para alcançar o que é melhor. Mesmo que o indivíduo fizesse
um grande esforço intelectual para perceber o que lhe espera, não iria muito longe, pois é
limitado para perceber tudo o que a natureza lhe reserva e, analogamente, este processo
16
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 97.
17
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 97.
18
KANT, I. IHU. p. 20.
18
ocorre com a humanidade existente em determinada época, a qual, como veremos adiante,
prepara o caminho para outras gerações.
Mas de onde o homem retira esperança para seguir a trajetória da sua existência
histórica, se ele apenas consegue perceber a realidade de forma confusa e irregular? Os
homens não cairão na desesperança ao verem a realidade composta de um amálgama de
avanços e retrocessos? Segundo Kant, se os homens olharem para o conjunto da espécie
19
,
reconhecerão o desenvolvimento progressivo da humanidade e alimentarão a esperança,
apesar vicissitudes dos fatos. Lebrun afirma que a Geschichte provoca a esperança nos ho-
mens, mesmo que estes não ajam deliberadamente para atingir tal fim e sejam coagidos
pela natureza, levando-os a um aperfeiçoamento natural como conseqüência:
“A confiança do sujeito moral repousa em coisa inteiramente distinta: no olhar para trás que
lhe permite constatar que a humanidade, sem o querer, já se avançou nessa via, e que o su-
pra-sensível já fez um caminho terrestre (através dos antagonismos, dos interesses, através
das guerras, através da cultura e dos vícios por ela propagados – por mais que isso desagra-
de a Rousseau...) E, isso, sem que os seres sensíveis nisso tomassem qualquer parte.”
20
Poder-se-ia objetar, então, que o homem segue cego e não tem capacidade de prover
condições necessárias para o seu próprio desenvolvimento, mas, na verdade, trata-se de
mais um propósito que a natureza revela aos homens. Os homens não percebem e não con-
seguirão perceber tudo o que a natureza lhes reservou. A história segue seu curso, sem que
os homens tenham consciência de tudo o que é melhor para a humanidade, mas a natureza
sempre continua agindo. A filosofia da história kantiana, ao trabalhar com a idéia da paz a
ser alcançada pela natureza, retira dos homens individualizados, a pesada carga de respon-
sabilizar-se por tudo o que acontece ao seu redor. A aparente cegueira do homem é mais
um artifício que a natureza dá ao homem para que ele progrida em direção ao melhor. Se-
gundo Lebrun “é por isso que é tão necessário que os atores históricos sejam cegos: sem
essa ‘genialidade’ da humanidade, a filosofia crítica não teria condições de tornar aceitável
a idéia de uma junção entre sensível e supra-sensível, da qual o sujeito moral necessita. É a
astúcia da razão histórica, e ela só, que torna crível a realização fenomenal de nossa desti-
19
KANT, I. IHU. p. 9.
20
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 98.
19
nação de seres criados (de coisas-em-si) – sem que com isso, se coloque em questão a cli-
vagem do sensível e do inteligível.”
21
1.2. O propósito da natureza e a insociável sociabilidade
A filosofia da história de Kant parte de uma concepção antropológica, atribuindo ao
homem a responsabilidade de desenvolver todas as potencialidades possíveis reservadas
pela natureza, as quais estão orientadas segundo um fim
22
. A doutrina teleológica da natu-
reza orienta o homem a perseguir os seus propósitos, mas o resultado das ações de cada
homem será colhido pela humanidade. Segundo Kant, a mera observação do homem toma-
do isoladamente, faz com que não se perceba atitudes dignas de serem consideradas sábias
e muito menos a existência de um fio condutor que pudesse dar sentido a todas aquelas a-
ções que chegam a ser pueris, infantis e carregadas de maldade
23
. O homem parece seguir
na história cegamente, mas surpreende-se ao constatar que a sua liberdade encontra-se vin-
culada aos propósitos da natureza. Assim Kant descreve nesta passagem:
“Como o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu conjunto,
nenhum propósito racional próprio, ele não tem outra saída senão tentar descobrir, neste
curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite, todavia, uma
história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um
plano próprio.
24
Kant ao defender a idéia de um “plano oculto da natureza”, responsável pelos de-
sígnios das ações humanas na história entende que a natureza sabiamente tem propósitos
que entrelaçam as vicissitudes da história humana, dando sentido à realidade e ordenando a
aquilo que parecia confuso. Cabe ao filósofo encontrar este fio condutor para a história hu-
mana, tal como Kepler, que “de uma maneira inesperada, submeteu as excêntricas órbitas
dos planetas a leis determinadas”
25
; e Newton, “que explicou essas leis por uma causa na-
tural e universal”
26
. No entanto, encontrar o fio condutor da história humana não é tarefa
fácil, mesmo para o filósofo, pois a existência limitada dos homens dificulta a percepção da
21
LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 99.
22
Cf. KANT, I. IHU. p. 11.
23
Cf. KANT. IHU. p. 10.
24
KANT, I. IHU. p. 10.
25
KANT, I. IHU. p.10.
26
KANT, I. IHU. p. 10.
20
complexidade envolta na história da humanidade. Mas, segundo Kant, este esforço deve ser
feito para responder a pergunta inquietante sobre o porvir da humanidade, mesmo quando a
realidade fornece demonstrações ambíguas, fazendo incidir sobre os homens a dúvida sobre
a insistência racional em buscar o conhecimento e aperfeiçoar as instituições políticas.
É recorrente na filosofia da história kantiana a idéia de que existe uma finalidade no
curso do mundo, manifesta pela tendência de realizá-la sempre, tal como é expresso na
primeira proposição da “Idéia de Uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopo-
lita”: “Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desen-
volver completamente e conforme a um fim”
27
. A natureza entendida teleologicamente tem
como conseqüência a idéia de que todas as disposições da espécie humana para alcançar
este fim deverão ser realizadas. Tais disposições ganham forma na cultura, na aptidão geral
do homem como ser inteligente e no uso que faz da natureza como meio, usando-a com
toda a liberdade para os fins que deseja
28
. A natureza é colocada a serviço do homem, in-
cluindo a totalidade de tudo o que existe sobre a face da terra.
A doutrina teleológica da natureza é fundamental para entender a existência de to-
dos os seres sobre a terra, mesmo os que são muitas vezes considerados insignificantes ou
desprovidos de objetivo aparente
29
. Segundo Kant, não se pode prescindir do princípio tele-
ológico da natureza, pois do contrário “não teremos uma natureza regulada por leis, e sim
um jogo sem finalidade da natureza e uma indeterminação desconsoladora toma o lugar do
fio condutor da razão”
30
. A razão para Kant assume o caráter militante e tece a ordem da
história humana, devolvendo ao homem um sentido em meio ao aparente caos em que se
encontra a humanidade
27
KANT, I. IHU. p. 11.
28
Cf. HASSNER, P. Imannuel Kant. p. 566
29
Kant concebe os seres inferiores também dotados de um fim, os quais não existiriam sem esta condição.
Além disso, a dinâmica inusitada da natureza conduz à conclusão de que existe um propósito firme da nature-
za agindo constantemente. Kant, de certa forma, trabalha com as idéias de ecologia, ecossistema, harmonia da
natureza, ainda incipientes na sua época: “É digno de admiração que nos frios desertos, junto ao oceano glaci-
al, cresça apesar de tudo o musgo, que a rena busca debaixo da neve para ela própria ser a alimentação, ou
também o veículo do ostíaco ou samoiedo; ou é também digno de admiração que os desertos de areia contem
ainda com o camelo, que parece ter sido criado para a sua travessia, para os não deixar inutilizados. Mas mais
claramente brilha ainda a finalidade da natureza quando se tem em conta que, nas margens do oceano glacial,
além dos animais cobertos de peles, as focas, as morsas e as baleias proporcionem aos seus habitantes alimen-
tos com a sua carne e fogo com a sua gordura”. In: KANT, I. PP. p. 143.
30
Cf. KANT, I. IHU. p. 11.
21
Kant não está atribuindo à forças desconhecidas ao homem, o poder sobre a história,
quando fala de um plano oculto da natureza, mas está dizendo que a natureza quer a todo
custo que o homem entre em sociedade e deixe o seu estado selvagem e, finalmente, ingres-
se numa estrutura federativa congregando todos os Estados. A natureza age em favor do
homem para que o sumo bem político seja realizado na terra. Assim afirma Kant nesta pas-
sagem:
Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de
um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung)
perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único es-
tado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas dispo-
sições
31
.
A natureza torna-se a guardiã dos fins a que se destinam todas as coisas, não haven-
do a possibilidade de o homem reverter isso. Kant identifica o caráter imperativo da nature-
za, que de certa forma, está alheia aos movimentos individuais dos homens e inteiramente
voltada a um fim maior a ser alcançado pela humanidade. Há liberdade na história, mas é
como se natureza soubesse o que é melhor para o homem, mesmo ele tendo consciência de
que poderia fazer diferente em diversos momentos, ele não faz, pois o que esta acontecendo
é o que deve acontecer.
“O que a natureza neste desígnio faz em relação ao fim, que a razão impõe ao homem como
dever, por conseguinte, para a promoção da sua intenção moral, e como a natureza submi-
nistra a garantia de que aquilo que o homem devia fazer segundo as leis da liberdade, mas
que não faz, fica assegurado de que o fará, sem que a coação da natureza cause dano a esta
liberdade; (...) Quando digo a respeito da natureza que ela quer que isto ou aquilo aconteça,
isto não significa que ela impõe o dever de fazê-lo (o que com efeito só é possível para a ra-
zão prática que é livre de toda coerção), mas que fará ela mesma, quer queiramos quer não
(fata volentem ducunt, nolentem trahunt).”
32
A forma imperativa como a natureza agiu não garantiu generosidade nos dotes físi-
cos inatos atribuídos ao homem, tendo ele que retirar tudo de si próprio. Qualquer outra
espécie animal parece ter recebido mais dotes do que o homem. Essa insuficiência de dotes
naturais do homem é mais uma prova dos propósitos da natureza, fazendo-o que “tirasse
inteiramente de si tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e
que não participasse de nenhuma felicidade ou perfeição senão daquela que ele proporciona
31
KANT, I. IHU. p. 20
32
KANT, I. PP. p. 146.
22
a si mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão”
33
. O homem obrigado a tirar tudo
de si, é o único responsável pelo mérito das conquistas, sendo que, paradoxalmente, “pare-
ce que natureza não se preocupa com que ele viva bem, mas, ao contrário, com que ele
trabalhe de modo a tornar-se digno, por sua conduta, da vida e do bem-estar”
34
. A natureza
exige que o homem desenvolva as habilidades que não possui, tal como a possibilidade de
voar, presente em diversos animais e ausente nos homens.
Kant constatou que o progresso da humanidade ocorre sem que os homens estejam
percebendo os movimentos da natureza em prol desse progresso. As gerações presentes
nem sempre perceberão o porquê de muitos eventos estarem acontecendo, mas deverão ter
a certeza histórica de que a natureza sabe o que é melhor para o homem. Uma geração, se-
gundo Kant, estará cumprindo penosas tarefas em nome da felicidade de gerações vindou-
ras, que delas usufruirão melhor do que a geração anterior. Em síntese, a geração presente
não participa da felicidade que ela própria preparou, assim ocorrendo sucessivamente.
Na perspectiva teleológica, a história segue seu curso, sendo que os acontecimentos
isolados e sem sentido aparente, ganham sentido no final. O fio condutor é estabelecido
sem que os homens estejam percebendo o quanto a natureza faz em proveito de sua felici-
dade, mesmo quando as coisas que estão acontecendo no curso da história pareçam ser so-
mente a busca do interesse individual, tal como Kant afirma nesta passagem:
“(...) os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros, mal se dão conta, de que,
enquanto perseguem propósitos particulares, cada um buscando seu próprio proveito e fre-
qüentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor, o
propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização e, mesmo
que conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria.”
35
Na perspectiva kantiana existe uma espécie de ardil da natureza fazendo com que
os homens e os povos, mesmo procurando atingir apenas seus interesses particulares, aca-
bem realizando um propósito mais amplo e elevado
36
. Dessa forma, Kant pressupõe que a
história poderá descobrir uma regularidade nas ações humanas, desde que as considere em
larga escala e na perspectiva de uma razão histórica:
33
KANT, I. IHU. p. 12.
34
KANT, I. IHU. p. 12.
35
KANT, I. IHU p. 10.
36
Cf. TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 68.
23
“A história que se ocupa da narrativa dessas manifestações, por mais profundamente ocultas
que possam estar as suas causas, permite todavia esperar que, com a observação, em suas li-
nhas gerais, do jogo da liberdade da vontade humana, ela possa descobrir aí um curso regu-
lar – dessa forma, o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais, poderá ser
reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente progressi-
vo, embora lento, das suas disposições originais.”
37
O desenvolvimento completo das disposições naturais só pode ser dar na espécie e
não nos indivíduos, diferentemente dos animais que atingem individualmente sua destina-
ção
38
. Esta teleologia não é dada à compreensão pelos indivíduos, desenvolvendo-se na
história da humanidade e não na história dos homens, conforme Kant afirma na segunda
proposição da Idéia: “no homem, única criatura racional sobre a Terra, aquelas disposições
naturais que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente
apenas na espécie e não no indivíduo”
39
. Deste aspecto fundamental deriva a idéia de que a
destinação do homem refere-se não ao instinto, mas à razão exercendo seu papel no longo
processo necessário a realização de seus propósitos, os quais são transmitidos de uma gera-
ção à outra
40
num processo contínuo e progressivo.
O indivíduo é mortal, a espécie não, sendo que esta prosseguirá infinitamente o seu
curso. Este dado empírico revela a condução da história por meio de um processo envol-
vendo toda a humanidade, mesclando a diversidade das ações dos indivíduos. Sendo assim,
a esperança de realização de todos os propósitos da natureza deve ser depositada na espécie
e não no indivíduo, pois seria uma incumbência demasiada exigir que um indivíduo reali-
zasse tudo o que em tese poderia realizar. A não realização de tudo o que o homem poderia
realizar não é sinal de fraqueza, mas uma ação da natureza em prol da sua felicidade, pois
Kant retira o peso das costas do indivíduo e coloca-o sob responsabilidade da espécie, que
deve realizar tudo o que lhe foi confiado, mesmo que para isso, várias gerações sejam ne-
cessárias. Nessa situação, Kant difere a história da humanidade da história do homem, pre-
valecendo as derivações sobre a primeira:
“O conceito de história só tem sentido e utilidade se colocado na fórmula: ‘a história da hu-
manidade é diferente daquela dos homens’. Visto que a destinação natural do homem não
37
KANT, I. IHU. p. 9.
38
KANT, I. IHU. p. 11.
39
KANT, I. IHU . p. 11.
40
TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 69.
24
decide a sua essência, dirigiremo-nos ao futuro do gênero humano; já que o indivíduo racio-
nal é mortal, confiaremos à espécie imortal, a realização de seu destino racional abortado.”
41
Se as disposições destinam-se realizar-se um dia na espécie humana, o indivíduo
nunca poderá contemplar tudo o ele poderia vir a ser
42
, sendo que “para isso um homem
precisaria ter uma vida desmesuradamente longa a fim de aprender a fazer uso pleno de
todas as suas disposições naturais”
43
. O indivíduo, sendo depositário do conhecimento obti-
do por gerações anteriores, é limitado para compreender tudo a sua volta, mas será possível
identificar sinais que fazem compreender o progresso da história. Kant não buscou entender
o propósito do homem no mundo, olhando apenas para o indivíduo ou para determinado
povo, pois estes não contêm os elementos suficientes que garantam afirmar que há um fim
por trás de cada ação realizada: “Ela [a natureza] necessita de uma série talvez indefinida
de gerações que transmitam umas às outras as suas luzes para finalmente conduzir, em nos-
sa espécie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que é completamente ade-
quado ao seu propósito”
44
.
Cada movimento que o homem faz há uma descoberta, sendo que os sucessos e os
fracassos colhidos a cada dia que passa, adquirem novos contornos na perspectiva teleoló-
gica. Ao adaptar-se a determinado meio que impõe resistências, o indivíduo assegura expe-
riência e saber, que lhe trarão novas possibilidades de agir e pensar, e assim conduz o seu
caminho sempre com um histórico de experiências positivas e negativas
45
. Para Kant, o
indivíduo não está sendo apenas empurrado à frente, desdobrando suas disposições naturais
para realizar os propósitos da natureza, pois sendo racional, ele precisa necessariamente
aprender a usar todas elas e não somente algumas
46
. Mas sabe-se que sozinho o homem não
conseguirá realizar tudo o poderia realizar, pois “no curto espaço duma vida, que possui a
41
LEBRUN, G. Kant et la Fin de la Métaphysique. Apud TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filosofia
da história em Kant. p. 69.
42
Segundo Giannotti “no conjunto das ações humanas, o filósofo não encontra um propósito próprio e racio-
nal (vernünftige “eigene Absicht”), e, como não pode abandonar o princípio geral da teleologia, cabe-lhe
indagar se, por detrás de cada ação, não existe um propósito da natureza como um todo (Naturabsicht). É
nesse sentido que a história dos homens se diferencia por completo da história da humanidade, só nesta última
torna-se possível encontrar a articulação dum sistema, uma regularidade escondida por detrás da legitimidade
tanto teórica quanto moral de cada ação” In: GIANNOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal. p.
128.
43
KANT, I. IHU p. 11.
44
KANT, I. IHU. p. 11.
45
Cf. GIANNOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal p. 129.
46
Cf. GIANNOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal. p. 130.
25
medida da morte, cabe transferir para a espécie o processo ilimitado de aprendizagem
47
.
Logo, para Kant, o homem está sempre aprendendo algo e não poder deixar nunca de ser
assim, pois novas serão as adversidades que se colocarão ao homem. A aprendizagem é
transmitida de geração a geração, nunca havendo perdas, mas somente progresso em dire-
ção ao melhor.
Havendo a certeza de que os indivíduos realizarão todas as disposições reservadas
pela natureza, as quais eles não têm consciência absoluta, então, de que instrumento a natu-
reza dispõe para que a humanidade cresça e alcance os seus propósitos? A resposta de Kant
é surpreendente. São os antagonismos entre os homens os fatores determinantes para o pro-
gresso, realizando-se assim os propósitos da natureza
48
. A propensão natural para associar-
se, defronta-se com outra propensão de igual teor, para o não compartilhamento da vida em
sociedade. Os antagonismos permitem o desenvolvimento das qualidades individuais, sen-
do que, sem os quais, estas estariam fadadas ao desuso e ineficiência. Kant denomina esta
tendência de enfrentamento como insociável sociabilidade (unsesellige geselligkeit)
49
, da
qual o homem é beneficiado, pois os antagonismos consubstanciam os elementos funda-
mentais para o progresso humano, sem, no entanto, subtrair a sua liberdade. Assim expres-
sa Kant:
“O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas dispo-
sições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a
causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a
insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a tendência dos mesmos a entrar em socieda-
de que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa socieda-
de
50
.”
47
GIANNOTI, A. Kant e o espaço da história universal. p. 130.
48
Segundo Rohden o conceito central de antagonismo adotado por Kant, prova o realismo da sua concepção
de história: “ Este antagonismo, que explica o dinamismo histórico, consiste no conflito entre as tendências
anti-sociais e as tendências sociais dos homens. Ele é uma força que atua independentemente de qualquer
consideração da moralidade da ação. Mas, subjacente à irracionalidade individualista dos fatos e independente
das vontades individuais conflitantes, atua uma força racional, dando um sentido à História e guiando-a a um
fim. Quer dizer, ou os homens optam racionalmente por um fim histórico, ou a Natureza conduzi-los-á forço-
samente, através de guerras, egoísmos e outras desgraças até ele. De modo que o progresso moral da humani-
dade é livre, porque se consubstancia com a prática racional. Os homens que agem moralmente são os únicos
que tomam consciência real de um sentido da História. A História propriamente dita só existe a partir deste
ponto de vista racional; o mais não passa de natureza, ou de história natural da humanidade, que contra as
próprias vontades individuais contribui no entanto para a superação dos individualismos e o aperfeiçoamento
da espécie humana”. In: ROHDEN, V. Interesse da Razão e Liberdade. p. 164.
49
Cf. KANT. IHU. p. 13.
50
KANT, I. IHU. p.13.
26
A insociável sociabilidade faz com que os homens sejam lançados uns contra os
outros, num processo de enfrentamento, mesmo em períodos onde não haja escassez de
bens materiais. Este não é o fator determinante da insociabilidade, mas sim o fato de existir
uma predisposição nos homens para competirem entre si e assim saírem do estado de pre-
guiça em que se encontravam
51
. Kant assinala que a cultura e a arte humana resultam da
insociável sociabilidade, num processo de aprimoramento da espécie:
toda cultura e toda
arte que ornamentam a humanidade, a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade,
que por si mesma é obrigada a se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a
desenvolver completamente os germes da natureza”
52
.
O antagonismo peculiar da espécie humana subordina as demais oposições reais,
havendo uma subsunção em torno da insociável sociabilidade. Dessa forma, o instinto de
sociedade é contrabalançado com uma propensão, igualmente instintiva, ao isolamento;
pois cada um, ao mesmo tempo que é atravessado por um vetor em direção ao outro, colo-
ca-se como fim em si e busca administrar as tensões resultantes por meios próprios
53
. O
homem sem a tensão provocada pela presença do outro, acomodar-se-ia em seus interesses,
que seriam menores, pois não haveria nenhuma resistência. A competição não implica a
destruição do outro, e em hipótese alguma é este o objetivo, pois não há uma intenção ex-
plícita de competir, mas de certa forma, inconscientemente o homem é lançado em direção
ao outro e percebe as vantagens obtidas na competição, sendo que o resultado não será par-
tilhado somente por ele, mas por toda a humanidade. O homem ao desenvolver suas dispo-
sições, mesmo que à custa da competição , do egoísmo e da guerra, acaba produzindo um
51
Kant entende que o homem deixado na sua vida pastoril e arcádica na qual foi concebido, nunca progredirá.
A natureza prontamente providenciou algo que colocasse suas disposições em funcionamento, a insociável
sociabilidade: “O homem tem uma inclinação para associar-se porque se sente mais como homem num tal
estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele também tem uma forte tendência a sepa-
rar-se (isolar-se), porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer con-
duzir tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe
que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta oposição é a que, despertando todas as for-
ças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção (Ehrsucht), pela
ânsia de dominação (Herrschucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar-se uma posição entre compa-
nheiros que ele não atura mas do quais não pode prescindir. Dão-se então os primeiros verdadeiros passos que
levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem; aí desenvolvem-se aos
poucos todos os talentos, forma-se o gosto e tem início, através de um progressivo iluminar-se (Aufklärung), a
fundação de um modo de pensar que pode transformar, com o tempo, as toscas disposições naturais para o
discernimento moral em princípios práticos determinados e assim finalmente transformar um acordo extor-
quido patologicamente para uma sociedade em um todo moral. In: KANT, I. IHU. p. 13.
52
KANT, I. IHU. p. 15.
53
Cf. GIANOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal. p. 133.
27
resultado superior àquele que seria produzido na condição de isolamento. Os benefícios não
se restringirão a um indivíduo, a um povo ou a uma geração, mas a tendência é que todos
de uma época sejam beneficiados (isso nem sempre ocorre devido a curta duração da vida
do homem), e, completamente a todos das gerações vindouras.
Kant explícita o papel da insociável sociabilidade entre os homens, comparando as
árvores que crescem isoladamente com aquelas que crescem em meio às outras. As árvores
que crescem isoladas tornam-se mutiladas, sinuosas e curvadas, pois nada além de crescer
naturalmente lhes foi exigido; por outro lado, as árvores que cresceram em meio às outras,
desenvolveram-se belas e aprumadas, pois competiram pelo ar e pelo sol, na busca pela
sobrevivência
54
. A insociável sociabilidade humana permite o desenvolvimento das dispo-
sições naturais, ou seja, os talentos vêm à tona quando as pessoas são submetidas ao conví-
vio social, um espaço de competição e discórdia, mas também de cooperação e concórdia,
quando se trata, por exemplo, de estabelecer um Estado ou uma federação de Estados.
A discórdia é melhor do que a concórdia em diversas situações, pois, segundo Kant,
a concórdia resulta na estagnação das inúmeras possibilidades humanas, enquanto que a
discórdia resulta na valoração das disposições humanas e no aperfeiçoamento da espécie. A
discórdia obriga o homem a usar as suas disposições. O desuso leva o homem a acomodar
as disposições, deixando-se sucumbir à preguiça e à inatividade. Assim Kant expressa:
“O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela
quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamente, mas a natureza quer que este a-
bandone a indolência e o contentamento ocioso e lance-se ao trabalho, à fadiga, de modo a
conseguir os meios que ao fim o livrem inteligentemente dos últimos.”
55
A natureza incumbiu-se de dar as condições para que o homem povoasse a terra e
dela tirasse proveito; assim também ocorre com a guerra, meio utilizado pelo homem para
expandir as suas fronteiras e alcançar regiões distantes, as quais não teriam sido descober-
tas, caso os instrumentos para manter a guerra não fossem elaborados. Todos os esforços
feitos pelo homem para dominar ou para se defender, visando a manutenção do seu povo
que buscava consolidar-se em meio a outros povos com o mesmo objetivo, acabaram resul-
tando num aperfeiçoamento da cultura, tais como a criação de novos artefatos, estratégias e
54
Cf. KANT, I. IHU. p.15.
55
KANT, I. IHU. p. 14.
28
idéias. Esse antagonismo é sempre admirado por Kant, como um meio que a natureza dá ao
homem para que ele progrida. Assim é demonstrado por Kant na seguinte passagem:
visto que a natureza providenciou que os homens possam viver sobre a Terra, quis igual-
mente e de modo despótico que eles tenham de viver, inclusive contra a sua inclinação, e
sem que este dever pressuponha ao mesmo tempo um conceito de dever que a vincule por
meio de uma lei moral; a natureza escolheu a guerra para obter esse fim
56
.
O plano oculto da natureza reservado ao homem, do qual ele não tem consciência e
mesmo assim obedece, resguarda a sua liberdade incondicional. A natureza não retira a
liberdade do homem, mas intensifica esta liberdade, dando ao homem todas as condições
para que ele faça o bem ou o mal, a paz ou a guerra. Naturalmente, o homem perceberá que
para a sobrevivência da espécie a paz é necessária, sendo que a razão histórica assim proce-
derá.
Durante um longo tempo a guerra não foi um mal em si, pois se orientava por pro-
pósitos maiores incumbidos pela natureza, os quais não eram percebidos claramente à épo-
ca dos acontecimentos. Nos períodos passados de guerra, lançavam-se as bases da liberdade
futura. O homem sabiamente percebeu que a guerra deveria ser apenas um estágio provisó-
rio a ser superado, a fim de não se perderem todos os benefícios conquistados, como o esta-
belecimento do Estado e a liberdade civil. A guerra, outrora elemento para o progresso,
agora se demonstra desnecessária e vil, devendo as relações entre indivíduos e Estados, a
partir de então, serem firmemente orientadas pelo direito.
A história humana é o cenário de desenvolvimento das disposições humanas, atra-
vés das próprias inclinações humanas, as quais tomadas em si não são positivas e estão fora
do alcance da razão. No entanto, a natureza sabiamente colocou as inclinações humanas no
centro da história, permitindo o desenvolvimento do que é melhor para o homem: alcançar
a paz perpétua. Dessa forma, concluímos esta seção, com a seguinte passagem de Kant:
É assim que a natureza garante a paz perpétua pelo mecanismo mesmo das inclinações
humanas; e, embora tal garantia não seja suficiente para se poder prever (teoricamente
) o
seu surgimento, ela basta, do ponto de vista prático, e faz que seja um dever o tender a esse
objetivo (que não é puramente quimérico)
57
.
56
KANT, I. PP. p. 144.
57
KANT, I. PP. p. 149.
29
1.3. A concepção Kantiana de progresso e a constatação de que gênero humano pro-
gride para o melhor (“O que o homem pode esperar?”)
Kant identificou as razões para o homem confiar no progresso da humanidade, bem
como, fortaleceu a esperança da realização do sumo bem ainda neste plano. A filosofia da
história kantiana demonstra o fim a ser alcançado pela humanidade, a partir dos movimen-
tos e signos históricos diagnosticados pela razão. E havendo um fim na existência da hu-
manidade, a pergunta sobre qual caminho deverá ser percorrido, coloca-se de forma central
na filosofia kantiana.
Quando Kant formula as perguntas críticas, “1. Que posso saber? 2. Que devo fa-
zer? e 3. Que me é permitido esperar?”
58
, fruto da razão especulativa e prática, obtém-se
um prognóstico do projeto filosófico e do que ele pretendia alcançar. Ao perguntar Que
posso saber, Kant procurou definir os limites do conhecimento, usando-se da razão pura
como instrumento para tal empreendimento; a pergunta Que devo fazer? estabelece por
meio da razão prática a ação verdadeiramente moral. A pergunta Que me é permitido es-
perar? delineia o campo do prático (“Se faço o que devo fazer, que me é permitido espe-
rar?
59
), mas também da razão histórica, buscando compreender o sentido da história huma-
na e o fio condutor existente no processo de emancipação do homem, bem como os elemen-
tos que dão esperança da realização do melhor ainda neste reino.
Kant ao utilizar-se de uma reflexão a priori ou mais propriamente, de juízos sintéti-
cos a priori, revolucionou a forma de entender o processo de conhecimento. A resposta de
Kant à pergunta sobre a possibilidade dos juízos sintéticos a priori teóricos encontra-se na
sua obra máxima, Crítica da Razão Pura, de 1781. Posteriormente, na Crítica da Razão
Prática, de 1788, ele dedicou-se aos juízos morais, sendo que a sua resposta consistiu em
afirmar que a realidade objetiva desses juízos não consiste na sua verdade ou falsidade, mas
na sua exeqüibilidade pelo agente humano. E finalmente, Kant estendeu esse mesmo pro-
grama da crítica da razão pura a outros tipos de juízos a priori, o que resultou na descoberta
do caráter a priori de juízos até então considerados como empíricos, entre eles os estéticos,
os da doutrina do direito, da política e, finalmente, os da história
60
. O projeto crítico coloca
a doutrina do direito, a política e a história como elementos passíveis de serem formulados
58
KANT, I. CRP. p. 639.
59
KANT, I. CRP. p. 640.
60
Cf. LOPARIC, Z. Kant, revolução ainda em curso. p. 10.
30
a partir de juízos sintéticos a priori, ou seja, é possível ter uma compreensão do direito, da
política e da história sem cair na subjetividade da experiência, o que não significa ignorá-la,
tal como fizeram os racionalistas. Também não se pode esquecer que Kant é tributário do
pensamento de Hume, que o despertou do “sono dogmático”, atribuindo à experiência um
papel importante no processo do conhecimento.
No contexto da pergunta Que me é permitido esperar? Kant mostra que através de
juízos a priori, também é possível formular uma compreensão da história da humanidade,
sem apelar a dados meramente empíricos, tal como empreendido pela Historie, como vi-
mos anteriormente. Existem dois planos de reflexão em torno da pergunta Que me é permi-
tido esperar?: o primeiro refere-se ao mundo terreno, com seus entes reais, como institui-
ções políticas, Estados, leis, poder soberano, entre outros; o segundo, refere-se a um plano
metafísico, envolto em questões que transcendem a análise da razão pura. Se direcionar-
mos a pergunta para o contexto político, veremos que os avanços das instituições políticas
estão orientados por um fim ao qual todos os cidadãos e instituições políticas almejam, este
fim é a paz.
A complexidade histórica em que o homem está inserido, faz com que ele não tenha
clareza imediata dos objetivos reais a que a humanidade esta destinada. O homem se per-
gunta: que condições históricas mostram que a humanidade caminha em direção a um esta-
do pacífico? Se o mal persiste, há alguma garantia de que ele não vingará sobre a humani-
dade? Em síntese, o que prova que os homens desejam o bem, a justiça e a paz, quando isto
não é claramente diagnosticado na convivência entre os cidadãos e Estados do mundo?
Kant, em resposta, empreenderá a comprovação de que a humanidade quer realizar o me-
lhor, a partir de dois planos: um metafísico e outro sobre o mundo fenomênico. Ao fazer a
pergunta o Que me é permitido esperar? , Kant indica duas direções: o que o homem pode
esperar nesta vida e o que ele pode esperar num outro reino. Para essa empresa, primeira-
mente Kant elabora os postulados da razão prática, a existência de Deus e a imortalidade da
alma para mostrar o que podemos esperar em outro mundo, sem que haja a necessidade de
qualquer comprovação empírica. Outra empresa, consiste na análise da lei, das instituições
políticas, da moral e da teleologia histórica que permitem mostrar o que o homem pode
esperar na terra, considerando a esfera dos fenômenos
61
. É neste plano terreno onde ho-
61
Cf. HASSNER, P. Immanuel Kant. p. 550.
31
mem desenvolverá os meios necessários para realizar o sumo bem político, por meio do
aperfeiçoamento histórico obtido no campo da moral, do direito e da política.
Ao abordar a questão do que o homem pode esperar aqui na Terra, Kant suspende a
reflexão sobre a teleologia metafísica e os postulados da razão prática ( a existência de
Deus e a imortalidade da alma). Mas essa suspensão não significa que Kant eliminara das
suas reflexões este aspecto como já foi afirmado na primeira seção. Kant argumentará em
favor da reflexão da filosofia da história a partir de elementos fornecidos pela própria histó-
ria, os quais demonstram o progresso do gênero humano. Quando Kant analisa o que po-
demos esperar neste mundo, através da lei, da política e da teleologia histórica, não signifi-
ca que os postulados da razão prática deixam de exercer influência sobre a existência hu-
mana, pois mesmo sendo objetos de crença e não de conhecimento, continuam presentes no
vasto arcabouço do entendimento humano. Os postulados apenas não devem ser tomados
como base da teleologia histórica terrena, a qual deve ser construída a partir da razão. Se
racionalmente não há nada além deste mundo, resta então, definir um caminho para orientar
o progresso da humanidade e estabelecer o que podemos esperar, já que o sumo bem polí-
tico dever realizado aqui na Terra.
Segundo Kant, a dificuldade para determinar o caminho do progresso
62
encontra-se
na própria condição humana, que por ser livre, não é invariavelmente boa. Há um amálga-
ma entre bem e mal, fazendo com que o homem tenha que trabalhar para garantir o pro-
gresso, o qual não o ocorre sem o seu esforço. Assim afirma Kant:
“Se ao homem se pudesse atribuir uma vontade inata e invariavelmente boa, embora limita-
da, ele poderia vaticinar com certeza a progressão da sua espécie para o melhor, porque ela
diria respeito a um evento que ele próprio pode produzir. Mas, face à mescla do bem e do
62
Segundo Marques a questão do progresso assume uma posição importante na filosofia de Kant, e em al-
guns momentos de sua obra, é a principal questão da razão prática, colocando-se acima da razão pura: “A
idéia de progresso, enquanto ordenadora do conjunto de ações humanas produzidas pela vontade como causa
natural, não dispensa o conceito de finalidade, condição a priori do juízo teleológico. Sem a representação
pura de um horizonte a realizar – possibilitado pelo acordo não determinativo, subjetivo, das faculdades no
interior do juízo reflexivo – jamais Kant poderia afirmar ser o progresso, enquanto legalidade, o “fim natural”
da humanidade. (...) A idéia de progresso não oferece somente perspectivas ao entendimento para um mais
longo conhecimento dos fatos históricos. Ela constitui, igualmente, uma determinação prática sobre a vontade
humana. Como elemento do soberano bem, ideal prático absoluto, a idéia de progresso atinge a fímbria supra-
sensível do mundo fenomênico, num movimento que não se faz gnoselógica, mas ativamente, numa tarefa
que não é algo a conhecer, mas a realizar. Neste momento, afirma-se a superioridade da razão prática sobre a
razão teórica”. In: MARQUES, V.S. Razão Prática e progresso em Kant. p. 83.
32
mal na disposição, e cuja proporção ele não conhece, não sabe que efeito daí pode espe-
rar.”
63
Kant ao conceber uma história a priori não buscou nos fatos empíricos a constata-
ção do progresso humano e a existência de um fio condutor da humanidade, mas identificou
um evento com valor suficiente e maior do que qualquer outro, para a compreensão do pro-
gresso histórico da humanidade. O evento tomado em si, foi uma manifestação empírica,
mas o seu entendimento e o sentimento que provocou, foi captado aprioristicamente. A
constatação de que o gênero humano está em constante progresso para o melhor foi obtida
através de um signo, o elemento chave para o entendimento de todas as ações da espécie. O
signo histórico provocador do entusiasmo e catalisador do movimento histórico em direção
ao progresso foi a Revolução Francesa. O evento de 1789 colocou emblematicamente os
ideais de liberdade, solidariedade, igualdade e fraternidade no centro de toda a história
humana, e de certa forma, subsumiu universalmente os esforços feitos pelo homem no
campo da ética, do direito e da política, sem recorrer à providência divina, mas utilizando-
se da razão como instrumento verificador e legitimador da verdade, proclamada em público
e não mais reclusa a preceptores misteriosos, tal como os clérigos. Este tema será retomado
na próxima seção.
O progresso sendo estabelecido a partir do conceito a priori do gênero humano e da
humanidade em si, não se detém sobre as vicissitudes de uma cultura ou de uma nação em
particular, o que seria impossível de realizar, dadas as dimensões do planeta e a quantidade
e diversidade de povos. Kant não desenvolveu uma teoria que provocasse uma moralização
da história, embora a moral estivesse (e está) presente no percurso da humanidade, tampou-
co se utilizou do postulado da existência de Deus para afirmar o progresso do gênero hu-
mano e o fim a este reservado; enfim, Kant seculariza a história, tornando-a então, seculari-
zada e finitizada
64
.
Kant, como vimos, concebe o avanço da humanidade, apoiando-se na idéia da exis-
tência de um “plano oculto da natureza”, o qual direciona a humanidade ao melhor, sendo
que as eventuais e inevitáveis interrupções, como guerras, violência, competições desmedi-
das, conflitos, etc. fariam parte da própria dinâmica do aperfeiçoamento humano. Tais ma-
63
KANT, I. CF. p. 100.
64
Cf. LOPARIC, Z. Apresentação no Colóquio Direito e Paz em Kant. PUC-POA set. 2003.
33
nifestações não caracterizariam uma circularidade presente na história ou menos ainda, um
retrocesso, como afirmava Mendelssohn, mas seriam um recurso da própria dinâmica de
aperfeiçoamento da humanidade, sendo que, sem os quais, a humanidade nunca teria saído
da vida arcádica e pastoril em que se encontrava nos primórdios da humanidade.
Kant expôs as três formas comumente usadas para definir o porvir do gênero huma-
no, expressas no Conflito das Faculdades: “o gênero humano está ou em incessante regres-
são para o pior, ou em constante progressão para o melhor na sua determinação moral, ou
em eterna detença no estágio atual do seu valor moral entre os diversos membros da criação
(com que se identifica a eterna rotação em círculos à volta do mesmo ponto)”
65
.
A primeira forma Kant denominou de terrorismo moral, a segunda, de eudemonis-
mo ou milenarismo e a terceira, de abdeterismo. As três formas são contestadas por Kant,
por expressarem extremos em relação à história humana, sendo a segunda forma a que mais
se aproxima da concepção de Kant sobre a história, mas é restringida por configurar-se nu-
ma relação desequilibrada entre bem e mal e apostar mais nos efeitos do que na causa efici-
ente da ações.
A primeira e a terceira formas de conceber o porvir, encaixam-se na resposta elabo-
rada por Kant ao contestar a posição de Moses Mendelssohn sobre progresso da humanida-
de e do gênero humano. Para Mendelssohn a história reproduz, segundo a interpretação de
Kant, o mito grego de Sísifo
66
, onde verifica-se a idéia da ação humana cíclica e irracional,
avançando um passo e retrocedendo dois. O prosseguimento da humanidade neste enfado-
nho processo de repetição, faz com que não haja motivos para vangloriar a existência hu-
mana, pois não há progresso. A humanidade viveria, para Mendelssohn, sob a égide da es-
tagnação, tendendo a um processo de deterioração, comprovando que nunca há progresso.
65
KANT, I. CF. p. 97.
66
Na mitologia grega Sísifo é condenado pelos deuses devido à sua astúcia; como castigo é obrigado a em-
purrar uma pedra até o alto de uma montanha, para depois vê-la rolar montanha abaixo; esta ação repete-se
infinitamente. Sísifo insistentemente repete o labor sem gerar nenhum benefício, mas, pelo contrário, desgas-
ta-se a cada vez que empurra o rochedo montanha acima. Segundo Fontoura, o mito de Sísifo contribui para a
resposta de Kant à antinomia provocada pela idéia de circularidade ou
progresso da história, demarcando a
posição do filósofo: “A pergunta que sintetiza a preocupação com a aplicabilidade do conjunto das determina-
ções, em parte formais, como na esfera do direito puro (natural), em parte materiais, como na esfera ética, às
condições empíricas que o satisfazem, é a que quer saber se a humanidade está em constante progresso, ou se
insiste numa faina irracional de Sísifo”. In: FONTOURA, C. T. Sobre o significado jurídico da história em
Kant. p. 124.
34
Mendelssohn acredita ser uma ilusão a idéia do aperfeiçoamento da humanidade na suces-
são dos tempos históricos:
“(...) Vemos, o gênero humano no seu conjunto fazer pequenas oscilações; e nunca dá al-
guns passos em frente sem logo a seguir retroceder duas vezes mais depressa para o seu es-
tado anterior (...) O homem vai mais longe, mas a humanidade oscila constantemente entre
limites fixos, para cima e para baixo; mas, considerada no seu conjunto, conserva em todas
as épocas mais ou menos o mesmo nível de moralidade, a mesma proporção de religião e de
irreligião, de virtude e vício, de felicidade e de miséria.”
67
Para Mendelsshon não há evidências nas instituições humanas que pudessem de fato
atestar o progresso da humanidade e do gênero humano. Como no mito de Sísifo, a huma-
nidade apenas repete ações, chegando sempre no mesmo ponto em que começou. O pessi-
mismo histórico de Mendelssohn inclui o fato de que não valeria a pena depositar esperança
nas instituições humanas, pois estas se corromperiam naturalmente, ao invés de melhora-
rem a vida do homem. Prova disso seriam as guerras, a destruição dos bens e a miséria das
pessoas.
Kant discorda de Mendelsshon, ao enxergar no homem que luta contra as adversi-
dades e busca o aperfeiçoamento, um espetáculo digno de uma divindade. Kant estaria rein-
terpretando Sísifo, que mesmo tendo sido condenado a rolar o rochedo montanha acima,
não desiste da sua tarefa. Sísifo representaria a humanidade lutando contra as adversidades
e buscando continuamente a conquista do melhor
68
, sem importar-se com a imediaticidade
do resultado. A esperança do melhor anima o homem a seguir o seu trabalho, tal como
Sísifo incessantemente o fizera. A resposta dada a Mendelsshon demonstra que Kant, em
nenhum momento, compreenderá a história como um movimento laborioso, cíclico e muito
menos, desprovido de sentido. O castigo aplicado a Sísifo por ter desafiado os deuses não
67
MENDELSSHON, M. Apud KANT, I. TP. p. 96.
68
Kant, porém, admite que apesar do esforço do homem, muitas vezes ele cai no pessimismo ao constatar os
aparentes retrocessos na história. Essa percepção incide sobre a esperança, a qual decresce nos indivíduos
tomados isoladamente; tais eventos, no entanto, não são suficientes para atestar a idéia de regresso da huma-
nidade. Kant esclarece na seguinte passagem que o homem deve acreditar no progresso como um dever: “No
triste espetáculo não tanto dos males que, em virtude das causas naturais, oprimem o gênero humano, quando
antes dos que os homens fazem uns aos outros, o ânimo sente-se, porém, incitado pela perspectiva de que as
coisas podem ser melhores no futuro e, claro está, com uma benevolência desinteressada, pois já há muito
estaremos no túmulo e não colheremos os frutos que em parte temos semeado. As razões empíricas contrárias
à obtenção destas resoluções inspiradas na esperança, são aqui inoperantes. Pois, pretender que o que ainda
não se conseguiu até agora, também jamais se levará a efeito, não justifica sequer a renúncia a um propósito
pragmático ou técnico (como, por exemplo, a viagem aérea com balões aerostáticos), e menos ainda a um
propósito moral, que, se a sua realização não for demonstrativamente impossível, se torna um dever”. In:
KANT, I. TP. p. 97.
35
se aplica à humanidade, pois existem na história diversas manifestações (signos) que con-
tradizem o afirmado por Mendelsshon:
dado o constante progresso do gênero humano no tocante à cultura, enquanto seu fim natu-
ral, importa também concebê-lo em progresso para o melhor, no que respeita ao fim moral
do seu ser, e que este progresso foi por vezes interrompido, mas jamais cessará. Não sou o-
brigado a provar este pressuposto; o adversário é que tem de o demonstrar.”
69
A concepção de história de Mendelssohn, definida como cíclica, é combatida por
Kant, defensor de uma concepção linear progressiva da história da humanidade. Ambas as
concepções, inserem-se no debate existente no século XVIII, onde os pensadores discutiam
se a História operava de forma cíclica ou de forma linear. Prevaleceu a compreensão de
que a história não é uma mera repetição de fatos e situações, mas é orientada pela idéia de
constante progresso
70
.
O progresso é sempre para o melhor e não para um objeto específico, embora seja
possível associar que o objeto do progresso seja a paz. Em sendo a paz o objetivo do pro-
gresso, será necessário arquitetar uma federação de nações orientadas pelo direito para sua
consecução definitiva. Mas enquanto isto não ocorre, Kant que ter a certeza de que a histó-
ria humana dirige os seus esforços em direção ao melhor, para isso necessitará de um signo
que funcione como animador da esperança e legitimador as ações humanas em prol da hu-
manidade.
É possível também afirmar que o homem esteja em constante progresso a partir da
constatação do avanço cultural e das instituições políticas, cada vez mais ilustradas e aces-
síveis aos indivíduos. Segundo Lebrun, será neste mundo que a idéia de progresso faz pres-
sentir uma “intenção racionável perfeita”, interpretada por Kant, sob a luz da Revolução
Francesa e antecipando o advento da constituição republicana
71
. Kant confia no poder es-
clarecedor das luzes como garantia do progresso incessante para o melhor: “ora, afirmo que
posso predizer ao gênero humano, mesmo sem o espírito de um visionário, segundo os as-
pectos e os augúrios dos nossos dias, a consecução deste fim e, ao mesmo tempo, a sua
progressão para o melhor e não mais de todo regressiva”
72
.
69
KANT, I. TP. p. 96.
70
TERRA, R. R. Política Tensa. p. 141.
71
Cf. LEBRUN, G. Uma escatologia para a moral. p. 94.
72
KANT, I. CF. p. 105.
36
A idéia de progresso para o melhor é dada pela esperança humana, que a despeito de
ser um sentimento ingênuo, é um instrumento vinculado a eventos empíricos, os quais são
subsumidos pela razão, permitindo então, afirmar que o incessante progresso para o melhor
é visível para aqueles que direcionam o olhar acima de vicissitudes e idiossincrasias, típicas
de uma visão cíclica da história, a qual não corresponde à realidade. A natureza impulsiona
a esperança humana, como podemos observar nesta passagem:
“Se perguntarmos agora por que meios se poderia manter esse progresso incessante para o
melhor, e também acelerá-lo, depressa se vê que este sucesso, que mergulha numa lonjura i-
limitada, não depende tanto do que nós fazemos ( por exemplo, da educação que damos ao
mundo jovem) e do método segundo o qual devemos proceder, para produzir, mas do que a
natureza humana fará em nós e conosco para nos forçar a entrar num trilho, a que por nós
mesmos não nos sujeitaríamos com facilidade.”
73
Kant demonstra a existência do progresso apelando a exemplos técnicos, como a
aposta na aviação, ainda não existente na sua época. Essa capacidade de vislumbrar aconte-
cimentos é a prova de que no âmago de nossa existência resiste, apesar de todos os percal-
ços, o profundo desejo de mudança.
Como vimos na seção anterior, a análise feita por Kant na Idéia demonstra que a
constatação do progresso não se encontra determinado num indivíduo, mas na espécie, a
qual é portadora de todo o arcabouço produzido pela humanidade. Todo conhecimento
produzido pelo homem até agora é a prova que a humanidade está evoluindo, mas o fato
desses sinais estarem dispersos em meio a diferentes povos do planeta, e muitas vezes, por
serem tomados apenas empiricamente e sem a devida elaboração racional, podem levar a
uma conclusão negativa do progresso humano
74
. É preciso direcionar o olhar para a ampli-
tude de ações já desenvolvidas pelo homem nos diferentes indivíduos e povos do mundo
75
,
e sintetizar o que for possível, de maneira a compreendermos racionalmente a existência
73
KANT, I. TP. p. 98.
74
Kant admitia os diferentes estágios de desenvolvimento dos povos, e sabia da existência de regiões da terra
onde os homens viviam de forma selvagem. No entanto, estas considerações de Kant devem ser tomadas de
acordo com a visão existente na Europa no século XVIII, do que vinha a ser um povo evoluído ou não evoluí-
do.
75
Segundo Rohden “para o Kant dos escritos de Filosofia da história e da Política, a razão realiza-se somente
na espécie, jamais em indivíduos isolados. A responsabilidade moral consiste então em trabalhar pelo desen-
volvimento da espécie. A razão passa a ser compreendida com razão histórica da espécie. A História torna-se
história política; e a moral, moral social e política. A História empírica é julgada criticamente segundo a me-
dida da contribuição de cada época para a constituição de um estado cosmopolita, cuja existência unicamente
permitirá aos homens um pleno desenvolvimento das suas possibilidades”. In. ROHDEN,V. Interesse da
Razão e Liberdade. p. 165.
37
humana do plano da natureza, que força o homem a desenvolver-se em cada lugar da terra.
Enfim, segundo Kant, “o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá
ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente pro-
gressivo, embora lento, das suas disposições originais”
76
.
Os animais, como foi visto anteriormente, desenvolvem todas as suas disposições
num único exemplar da espécie, enquanto no homem as disposições desenvolvem-se ple-
namente na espécie, conforme Kant afirmou na Segunda Proposição da Idéia
77
. Dada a
condição persecutória da espécie humana, as disposições originais lenta e progressivamente
desenvolvem-se no conjunto da espécie sem que muitas vezes sejam percebidas pelos ho-
mens, enquanto estão perseguindo os seus propósitos particulares em meio a competições e
a variedade de adversidades impostas pela natureza. Retomamos a idéia de que o homem
precisaria ter uma vida muito longa para observar sinais consistentes do progresso; como
isso não ocorre, o que se vê é a transmissão do saber de uma geração à outra, dando assim a
noção de progresso, a qual é percebido pelo olhar racional dirigido para a compreensão do
todo da humanidade. Aqui a razão exerce uma função reguladora do conhecimento humano
pois conduz o entendimento na empresa de exploração do mundo
78
, mas será o propósito da
natureza que deterá a completa compreensão da humanidade, tornando os indivíduos, em-
bora autônomos moralmente, submetidos ao plano da natureza:
“Pois só dela, ou melhor, da Providência (porque se exige uma sabedoria superior para a re-
alização deste fim) é que podemos esperar com sucesso que diz respeito ao todo e a partir
dele às partes, uma vez que pelo contrário, os homens com os seus projetos sabem apenas
das partes, mais ainda, permanecem apenas nelas e ao todo enquanto tal, que para eles é
demasiado grande, podem sem dúvida estender as suas idéias, mas não a sua influência; e
sobretudo porque eles, mutuamente adversos nos seus desígnios, com dificuldade se associ-
ariam em virtude de um propósito livre próprio.”
79
Como afirmou-se anteriormente, uma visão empírica dos fatos não é suficiente para
entender o progresso humano em direção ao melhor, é preciso que a razão faça a reconstitu-
ição e estabeleça o fio condutor da humanidade, o que é dado de forma a priori. Kant ela-
bora uma compreensão da história com o olhar sobre o homem concreto, propenso às incli-
nações e naturalmente contraditório nas ações. Esta ambigüidade do homem, a princípio,
76
KANT, I. IHU. p. 9.
77
KANT, I. IHU. p. 11.
78
OLIVEIRA, M. A. Kant e a história como processo de totalização. p. 163.
79
KANT, I. TP. p. 98.
38
faz com que ele próprio acredite na impossibilidade de existir coerência na humanidade, e
tampouco o faz vislumbrar um futuro melhor. E como também foi demonstrado, é a insoci-
ável sociabilidade que torna o homem apto para conquistar as condições necessárias para
viver melhor. Kant pergunta-se se “há na natureza disposições a partir das quais se pode
inferir que a espécie humana progredirá sempre em direção ao melhor,e que o mal dos tem-
pos presentes e passados desaparecerá no bem das épocas futuras?”
80
. Como veremos na
próxima seção, o homem demonstra a sua capacidade de progredir para o melhor, atestado
por um signo histórico e assim “podemos amar a espécie, pelo menos na sua constante a-
proximação ao bem (..)”
81
.
1.4 A Revolução Francesa e o entusiasmo
Kant foi um observador atento dos acontecimentos históricos da Europa no século
XVIII. Ao colocar-se como filósofo do seu tempo, Kant participa dos movimentos da
Aufklärung e de certa forma antecipa a Revolução, evento fundamental do ponto de vista da
política, do direito e da filosofia da história. No texto “Resposta à pergunta: o que é Escla-
recimento?” Kant indagou se a época em que vivia era esclarecida e a resposta dada foi
não; mas segundo o filósofo vivia-se numa época de Iluminismo, com a tendência do povo
a se ilustrar e adquirir a liberdade intelectual. Um povo livre e ilustrado é o germe de uma
sociedade cosmopolita e pacífica, sendo que onde não há ilustração, brotam guerras e a
humanidade sucumbe ao poder incontrolado das paixões humanas. Kant considerou que
somente um espírito republicano pode garantir a liberdade civil:
“um grau maior da liberdade civil parece vantajosa para a liberdade do espírito do povo e,
no entanto, estabelece-lhe limites intransponíveis; um grau menor cria-lhe, pelo contrário, o
espaço para ela se alargar segundo toda a sua capacidade. Se, pois, a natureza, debaixo deste
duro invólucro, desenvolveu o germe de que delicadamente cuida, a saber, a tendência e a
vocação para o pensamento livre, então ela atua por sua vez gradualmente sobre o modo do
sentir do povo (pelo que este tornar-se-á cada vez mais capaz de agir segundo a liberdade), e
por fim, até mesmo sobre os princípios do governo que acha salutar para si próprio tratar o
homem, que agora é mais do que uma máquina, segundo a sua dignidade.”
82
.
80
KANT, I. TP. p. 95.
81
KANT, I. TP. P. 95.
82
KANT, I. RPE. p. 18.
39
Posteriormente ao escrito de 1784, Kant, assim como os intelectuais alemães, serão
observadores privilegiados da Revolução Francesa. O fato de não vivenciarem in loco , fará
com que a Revolução apareça como um fato metafísico, encarando os princípios da liber-
dade e da igualdade no plano ético e não no da política efetiva, como estava ocorrendo na
França
83
. Kant analisa não tanto a Revolução em si, mas o entusiasmo que ela provocou nos
espectadores, sendo ele próprio um espectador entusiasmado pela Revolução que acontecia
na França.
A Revolução Francesa é um signo
84
fundamental na história da humanidade e coroa
a compreensão da sua filosofia da história elaborada por Kant nos diversos textos político-
históricos. O evento da Revolução é um fato empírico, mas ele deve ser visto como um
signo que ultrapassa as barreiras da experiência e alcança o plano da razão histórica. Assim
como o progresso não pode ser medido por intuições empíricas
85
, os efeitos da Revolução
ultrapassam os limites da política efetiva e são sintetizados no plano ético, jurídico e no
porvir histórico. Segundo Terra, “não é mais o adivinho que organiza os acontecimentos
que prevê, mas busca-se no gênero humano alguma característica, alguma qualidade que
possa garantir que ele mesmo seja a causa do progresso – assim seria possível pensar no
desenvolvimento futuro da humanidade e desta maneira elaborar uma história com um fio
condutor a priori
86
.
O “signo de história” (Geschichtszeichen) é a denominação propriamente crítica de
um passo interfacultativo importante e que permanece indeterminado no tempo
87
. Trata-se
83
DROZ, J. L’Allemagne et la Révolution Française. Assim escreve Droz: “esvaziada de sua substância his-
tórica, a revolução aparecerá à inteligência alemã como um fato metafísico de que ela calcula o valor ético”.
Apud TERRA, R.R. Kant e o entusiamo. p. 7.
84
Foucault destaca a necessidade de compreender o porquê da escolha de Kant de um fato que pudesse
demonstrar que o gênero humano progride em direção ao melhor, entre outros fatos históricos. O evento que
mais equaciona os requisitos necessários para afirmar com certeza que a história não é cíclica, mas progressi-
va é a Revolução Francesa: “é preciso determinar se existe uma causa possível deste progresso, mas, uma vez
que se estabeleceu esta possibilidade, é preciso mostrar que esta causa agiu efetivamente e por isto isolar um
certo acontecimento que mostre que a causa agiu de fato. Em suma, a atribuição de uma causa só poderá de-
terminar efeitos possíveis ou, mais exatamente, a possibilidade de efeito; mas a realidade de um efeito só
poderá ser estabelecida pela existência de um acontecimento. Não é suficiente, pois seguir a trama teleológica
que torna possível um progresso; é preciso isolar, no interior da história, um acontecimento que terá o valor
de signo”. FOUCAULT, M. Dossier Michel Foucault. Apud. TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filoso-
fia da história em Kant. p. 59.
85
Cf.LYOTARD, J. El entusiasmo. p. 56.
86
TERRA, R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 58.
87
Cf. LYOTARD, J. El entusiasmo. p. 59.
40
segundo Kant de um “signum rememorativum, demostrativum, prognosticum
88
, o qual
engloba o passado, o presente e o futuro. Este signo é o resultado do avanço das instituições
políticas, do anseio em consolidar em todos os Estados as constituições republicanas, do
desejo de liberdade e, fundamentalmente, permite atestar o progresso histórico da humani-
dade em direção ao melhor
89
. Segundo Lyotard, o entusiasmo revelado publicamente na
ocasião da Revolução Francesa é um sentimento sublime extremo, pois ele deriva de uma
cultura preparada para o evento, que também se prepara para no horizonte encontrar a paz
civil e mais a frente, a paz internacional
90
. O entusiasmo também é fonte de esperança do
progresso em direção ao melhor, o qual será obtido a partir das capacidades e dos feitos
humanos estabelecidos no presente
91
. O entusiasmo do público não pôde ser testado, mas
foi sentido pelos espectadores, revelando um forte desejo de realização do sumo bem políti-
co. O evento da Revolução não tem precedentes na história, nem mesmo quando foi inven-
tada a política grega e criado o direito romano
92
.
O simbolismo da Revolução Francesa no direito, na política e na filosofia da histó-
ria é fundamental para Kant. O progresso não foi verificado empiricamente, mas partiu do
signo que teve o poder de estender seus efeitos aos diversos povos da terra, num processo
de republicanização das instituições políticas e aprimoramento das instituições sociais. A
causa estaria sempre atuando, e o progresso abrangeria todo o gênero humano
93
, fazendo
com que a humanidade realize aqui na terra o sumo bem político, ou seja, a paz.
A Revolução Francesa subsumiu as expectativas da humanidade, transformando-se
num signo de valor universal. Ao manifestar uma simpatia universal e desinteressada “de-
88
Cf. KANT. CF. p. 101.
89
Cf.LYOTARD, J.. El entusiasmo. p. 66.
90
Cf. LYOTARD, J. El entusiasmo. p. 85.
91
Cf. KANT, I. CF. p. 102.
92
Segundo Fontoura, a Revolução Francesa subsume os variados aspectos do aperfeiçoamento da cultura da
humanidade, traduzido nos ideais então proclamados: “...a limitação da liberdade externa pela organização
jurídica dos homens em comunidade civil exprime uma exigência semântica, que demanda uma condição de
realização objetiva prática para o ideal de uma constituição republicana inscrita pela razão prática na história
efetiva, como interpretação empírica do contrato originário. Este ideal, por sua vez, atuando como regulador
do antagonismo natural, induz a humanidade ao progresso, quer dizer, a faz tender à realização da constitui-
ção cosmopolita e da paz final. O signo histórico que instaura essa possibilidade, agenciando para a realidade
prática o entusiasmo pelo ideal da constituição definitiva, é a Revolução Francesa. Esta revolução tem, assim,
o caráter de sensificador simbólico que indica, empiricamente, estar em curso o aperfeiçoamento gradativo da
humanidade em sua ordem jurídica, ainda que através de um jogo violento entre a sociabilidade e a insociabi-
lidade dos homens e povos, até a efetivação da cosmo-constituição – não mais de alguns homens ou povos
mas da humanidade como um todo. Com isso deverão ser atingidas as condições exigidas para a paz perpé-
tua”. In: FONTOURA, C. T. Sobre o significado jurídico da história em Kant. p 127.
93
TERRA, R. Algumas questões sobre a Filosofia da História em Kant. p. 59.
41
monstra (por causa da universalidade) um caráter do gênero humano no seu conjunto e, ao
mesmo tempo (por causa do desinteresse), um seu caráter moral, pelo menos, na disposi-
ção, caráter que não só permite esperar a progressão para o melhor, mas até constitui já tal
progressão, na medida em que se pode por agora obter o poder para tal”
94
. Kant analisou
também os passos dos revolucionários
95
, mas concentrou-se no entusiasmo irradiado por
toda a Europa e que determinou uma nova etapa na história, no direito e nas instituições
políticas.
Segundo Lyotard, “ a ação dos revolucionários apontara não somente a constituição
política da França sob a autoridade de um único soberano que é o povo, mas apontava à
uma federação dos estados em um projeto de paz que incumbiria então a toda humanida-
de”
96
. Apesar de a Revolução ter sido um fato localizado no cenário francês, não significa
que outros povos não podiam admirá-la, sem que necessariamente houvesse o desejo de
participar dela
97
. O entusiasmo provocado nos espectadores alheios a Revolução é sinal de
moralidade e estabelece o progresso da humanidade em direção ao melhor, mesmo que para
isso tenha sido necessário o horror de uma revolução factual, mas ultra dimensionada sim-
bolicamente à toda humanidade.
O evento revolucionário derivou efeitos práticos, tais como a Declaração dos Direi-
tos do Homem, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e a constituição republicana
como única forma justa de governo. O efeito simbólico da Revolução permitiu uma nova
compreensão do mundo, das relações entre cidadãos e entre os Estados. Segundo Loparic
“Kant propõe uma teoria a priori do progresso para o melhor, em termos de uma tendência
do gênero humano de estabelecer constituições republicanas, assinalada e, assim sensifica-
da, pelo sentimento de entusiasmo diante do progresso na esfera do direito constitucional
94
KANT, I. CF. p. 102.
95
Segundo Terra “ o que interessa não é o próprio processo revolucionário, seus autores, ou a marcha da revo-
lução, que pode inclusive fracassar, pois não é ela mesma que é signo, mas sim o que ela provoca nos espec-
tadores. Estes chegam a uma “simpatia” que beira o “entusiasmo”, o que “não pode ter outra causa senão uma
disposição moral do gênero humano”. Essa simpatia é o signo do progresso, e a causa moral que atua constan-
temente tem um duplo aspecto: primeiro, o direito que um povo tem de elaborar independentemente sua cons-
tituição e, segundo, o princípio que afirma ser conforme ao direito e à moral apenas a constituição que impede
toda guerra ofensiva. Há condições agora de afirmar que a disposição moral do gênero humano pode ser a
causa de seu progresso constante”. In: TERRA, R. R. Algumas questões sobre a filosofia da história em Kant.
p. 60.
96
LYOTARD, J. El entusiasmo. p. 77.
97
Cf. LYOTARD, J. El entusiasmo. p. 78.
42
presente nas reações da opinião pública às conquistas da Revolução Francesa”
98
. O entusi-
asmo do povo com a Revolução legitimou as ações em favor de um governo republicano,
que deveria ser difundido a todos os Estados da terra e atestou o desejo da humanidade em
alcançar o melhor ainda neste reino, através do aperfeiçoamento moral e político, atingindo
a sua plenitude numa sociedade cosmopolita e pacífica.
1.5 A paz e a articulação entre história, política e direito
Kant vivenciou o Iluminismo, época marcada pela confiança no poder esclarecedor
e legislador da razão. Os efeitos do Iluminismo foram verificados na organização das cons-
tituições dos Estados e na relação destes entre si, tendo como pano de fundo a idéia de que
a história é o espaço do desenvolvimento das disposições humanas, as quais sempre visam
o melhor para a humanidade. A história é vista como espaço do progresso da humanidade,
embora nem sempre perceptível aos contemporâneos de uma época, por razões enunciadas
anteriormente. Mas cabe ressaltar que o progresso não ocorre ininterruptamente, ocorrendo
intervalos no decorrer da história que poderiam colocar em questão a idéia de progresso,
tais como a irrupção de hostilidades e guerras. O progresso da humanidade e do gênero
humano em si é fruto de uma racionalização da história, que abarca as diversas manifesta-
ções humanas em todo o mundo, subsumidas numa idéia geral de progresso, e tendo como
marco regulador o signo da Revolução Francesa.
A complexidade em constituir uma filosofia da história em Kant parece encontrar-se
no fato dele ter negado os postulados metafísicos. A revolução encontra-se no fato de Kant
ter buscado no campo jurídico-político os elementos necessários para dar sentido à existên-
cia humana na história. Esta secularização da história transfere ao homem a total responsa-
bilidade pelo seu futuro aqui na Terra. O homem é livre para construir a história como ele
desejar, e sendo o desejo mais profundo o fim das guerras e o estabelecimento da paz per-
pétua, o homem deverá buscar o aprimoramento dos Estados através da constituição repu-
blicana e posteriormente, o ingresso de todos os Estados numa federação.
Em Kant, como em toda filosofia do século XVIII, há uma profunda valorização da
razão e os benefícios que esta traria aos homens, numa época ainda marcada pelo domínio
98
LOPARIC, Z. O problema fundamental da semântica jurídica de Kant. p. 26.
43
da instituição religiosa e sob a égide do medo e do obscurantismo. Kant, ao defender o a-
vanço moral da humanidade, dá aos indivíduos a possibilidade de acreditarem no futuro,
pois a razão assim permite que se faça. A filosofia para Kant é essencialmente uma “filoso-
fia da liberdade”, pois é a liberdade o que unifica toda a vida humana, ela é o horizonte
unitário e a pedra angular de toda a filosofia
99
. Ao vincular história, política e direito, Kant
buscou realizar no mundo a realização fática do imperativo categórico, o qual “desce” ao
mundo sensível e configura-se no homem enquanto ser social
100
.
Kant procurou não apenas demonstrar como a história humana estava desenvolven-
do-se, mas apresentou um projeto político para conduzir a humanidade em direção à paz
perpétua, condição esta necessária para a realização de todas as disposições humanas. Pode-
se dizer que a filosofia da história kantiana engloba três aspectos: 1) a constatação do pro-
gresso durante a história humana, identificados nas constituições republicanas e na valori-
zação da liberdade e do direito; 2) a existência de um signo da mudança e do progresso em
direção ao melhor, ou seja, a Revolução Francesa e o entusiasmo provocado nos espectado-
res; e 3) a existência de um fim ao qual se dirige a humanidade, ou seja, a paz perpétua.
Todos os três aspectos são fruto da razão atuante na história da humanidade.
A obra A Paz Perpétua é a peça culminante da filosofia da história kantiana, a qual
dá continuidade aos princípios estabelecidos na “Idéia de uma História Universal de um
Ponto de Vista Cosmopolita”, pois a ‘intenção cosmopolita’ dessa obra já apontava em
direção a uma filosofia da paz permanente
101
. Kant não fez de sua filosofia da história uma
mera reflexão sobre os desígnios da humanidade, mas empreendeu um projeto de realização
efetiva da paz e superação das hostilidades e guerras
102
. Kant cunhou elementos importan-
99
OLIVEIRA, M. A. Kant e o ético enquanto auto-emancipação do homem. p. 131.
100
Segundo Oliveira, Kant busca no universo das relações sociais a razão histórica da existência humana, a
qual, orienta-se pela idéia de liberdade: “Kant afirma que o mundo sensível deve conter a imagem do mundo
inteligível, da lei moral. Ora, isso significa que Kant está aqui abrindo perspectivas para a vida humana con-
creta, sua vida histórica. Então, nesse caso, a história revela-se como a possível configuração do mundo fe-
nomenal pela razão, pela lei moral. No mundo moral, os homens constituem um todo, e a liberdade só pode
realizar-se na esfera da sociabilidade”. OLIVEIRA, M. A. Kant e o ético enquanto auto-emancipação do ho-
mem. p. 168.
101
Cf. BRAUER, D. Utopía e Historia en el Proyecto de Kant de una “paz perpetua”. p. 210.
102
Esta idéia é assim desenvolvida por Daniel Brauer: “Com efeito a vigência da concepção kantiana da histó-
ria não reside tanto na sua filosofia especulativa acerca das fases mais importantes que caracterizam as trans-
formações da história humana, nem tampouco numa escassamente desenvolvida e sutilmente reconstruída
teoria da historiografia que poderia estabelecer-se como alternativa ao historicismo de origem herderiano
para fundar assim a história como disciplina científica, mas em haver unido a elas um projeto político explíci-
to que toma como ponto de partida uma análise do estado de natureza que domina as relações internacionais,
44
tes da filosofia da história, ao trabalhar a história em sua dimensão universal, ou seja, é a
humanidade como um todo que deve ser observada e não os fatos isolados. Olhando para
fatos isolados e ações individuais dos homens, poder-se-ia dar razão a Mendelssohn, pois
há inúmeros fatos que em nada trazem mérito. Porém, Kant adotou um conceito de história
“que não se contenta com a ênfase na inefabilidade do indivíduo, pelo contrário, toda a
questão se concentra na determinação completa desse indivíduo, no esforço, feito pelo inte-
lecto, de cernir uma singularidade irredutível”
103
.
Kant, ao afirmar o progresso da história, não aceita que o fim da história seja a guer-
ra, por uma insuficiência dos Estados particulares, já que estes estariam livres para a auto-
determinação e poderiam agir à maneira hobbesiana. A proposta kantiana mostra o caminho
do republicanismo, aliado a uma federação das nações, como base para uma futura condi-
ção pacífica da humanidade. Herb estabelece um comparativo do fim da história em Kant e
Hobbes:
Kant contradiz Hobbes na interpretação cética do fim da história: ele não vê a guerra final
no horizonte histórico previsto por Hobbes, mas uma promessa de paz perpétua. De seu pon-
to de vista, deve-se compreender a evolução da sociedade civil à luz de seu fim republicano.
Progresso do direito por meio de reforma política, esta é a lei que reina na mediação entre
razão e história.”
104
A relação estabelecida por Kant entre história, política e direito, é o meio para ga-
rantir o estabelecimento da paz perpétua no “fim da história”, afastando-se assim da inter-
pretação de Hobbes. A análise da história permite afirmar o processo de emancipação do
homem e seu desejo de realizar a paz, pois a humanidade progride em direção ao melhor. A
política é o campo de ação do homem e será nela que efetivamente o Estado alcançará o
seu fim: adotar uma constituição republicana de acordo com os puros conceitos do direito.
A articulação entre história, política e direito revela a importância dos mesmos no contexto
do projeto crítico. Segundo Herb, Kant traça a existência de um plano visível para garantir
a paz, mas não dispensa a idéia de um plano não perceptível, mas igualmente condutor da
porém (a diferença, por exemplo, de Hegel depois) não para permanecer no plano meramente descritivo senão
para propor uma solução teórica e prática que supere a sua condição selvagem” In: BRAUER, D. Utopía e
Historia en el Proyecto de Kant de una ‘paz perpetua’ . p. 213.
103
GIANNOTTI, J. A. Uma escatologia para a moral. p. 148.
104
HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da história em Hobbes e Kant. p. 81.
45
humanidade em direção a paz perpétua. A análise de Herb, a nosso ver, detalha com propri-
edade esta questão, conforme podemos observar nessa extensa passagem:
“ Como filósofo do direito, Kant mostra aos atores históricos dois caminhos que levam à
República. Reforma vinda, do alto, pelos soberanos e, de baixo, pelas luzes dos filósofos,
por seu raciocínio crítico. Na garantia entre esses dois atores Kant vê a garantia de um pro-
gresso permanente do direito público. Entretanto, Kant não quis confiar no futuro republica-
no fundando sua moralidade unicamente na racionalidade dos protagonistas da sociedade
civil. Enquanto filósofo da história ele tende a revelar a congruência escondida entre ideal
republicano e da história natural da humanidade. É o mecanismo da natureza que contribui
por sua vez para reduzir a distância entre a visão republicana e a práxis histórica. Aquilo que
os indivíduos e os estados não podem cumprir por meio de sua cooperação social, a natureza
produz sem que eles o saibam e para além de seus fins particulares. O antagonismo põe-se a
serviço do progresso republicano. A história natural da sociedade civil, ela também, obedece
à lógica da evolução do republicanismo. O horizonte republicano abarca simultaneamente o
processo natural e político”
105
Utilizando-se da compreensão de que a insociável sociabilidade é o móbil para de-
senvolver as características individuais, mas também fonte de insegurança e de temor, pois
há ausência de um poder soberano e do direito como garantia da ordem, Kant percebeu que
no plano interestatal o mesmo fenômeno poder-se-ia repetir. No convívio entre Estados
manifestam-se hostilidades e conflitos, não trazendo benefícios na maioria das vezes, pois a
humanidade já avançou suficientemente para perceber que a guerra não mais é necessária.
Chegará um determinado momento onde deverão cessar os conflitos entre Estados, ingres-
sando-se numa Federação de Povos, a qual permitirá o desenvolvimento de todas as dispo-
sições humanas. A guerra, outrora importante no desenvolvimento das habilidades huma-
nas, agora é um empecilho para as disposições humanas e para a paz. A humanidade não
pode esperar que a garantia da paz esteja na boa vontade dos homens e menos ainda na paz
garantida na base da força, tal como se observa nesta passagem da Idéia:
“...sair do estado sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que todo
Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força
ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações (Foedus Am-
phictyonum) de um poder unificado e da decisão segundo leis de um vontade unificada.”
106
105
HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da história em Hobbes e Kant. p. 82.
106
KANT, I. IHU. P. 17
46
A humanidade que Kant tem em mente configura-se a partir da confederação das
nações, que tem consciência de sua origem por meio da insociável sociabilidade
107
, a qual
é vista de forma positiva no desenvolvimento das disposições humanas, mas deve, nesta
época de esclarecimento, ser abrandada, sob pena de nunca colocar-se um fim a guerra. O
direito racional deve ocupar o lugar da insociável sociabilidade e determinar o que é de
direito a cada um, abandonando os meios selvagens outrora utilizados. O temor que agora
se coloca é o mesmo vivenciado pelos homens antes do Estado Republicano
108
, ou seja, as
guerras que podem surgir entre os Estados. Kant quer estabelecer a partir da análise da tele-
ologia histórica, os elementos práticos que permitem a instauração da paz, sendo que ele
encontrará na política orientada pelo direito o caminho para este empreendimento. Numa
extensa passagem, Kant demonstra como ocorre o processo histórico de inserção da huma-
nidade numa sociedade política, bem como sua dependência do direito para sobreviver:
“O que o estado sem finalidade dos selvagens fez – ou seja, entravou todas as disposições
naturais em nossa espécie, mas finalmente, por meio dos males, onde ele a colocou, obri-
gou-o a sair desse estado e entrar na constituição civil, na qual todos aqueles germes podem
ser desenvolvidos -, faz também a liberdade bárbara dos Estados já constituídos, a saber:
que por meio do emprego de todas as forças das repúblicas (gemeines Wesen) em se armar
umas contra as outras, que por meio das devastações ocasionadas pelas guerras, mas ainda
por meio da necessidade permanente de estar de prontidão, na verdade impede-se o pleno
desenvolvimento das disposições naturais em seu progresso, mas, por outro lado, também os
males que surgem daí obrigam nossa espécie a encontrar uma lei de equilíbrio para a oposi-
ção em si mesma saudável, nascida da sua liberdade, entre Estados vizinhos, e um poder u-
nificador que dê peso a esta lei, de modo a introduzir um estado cosmopolita de segurança
pública entre os Estados – que não elimine todo perigo, para que as forças da humanidade
não adormeçam, mas que também não careça de um princípio de igualdade de suas ações e
reações mútuas, a fim de que não se destruam uns aos outros.”
109
No estágio em que se encontravam os Estados à época de Kant, havia uma tendên-
cia a avançarem em suas constituições, embora não sendo explícito o como proceder daí em
107
A este aspecto trabalhado anteriormente, pode ser acrescentada a seguinte passagem de Kant, onde ressal-
ta-se o papel dos antagonismos provocados pela natureza: “Assim como a violência omnilateral e a miséria
que daí deriva levaram necessariamente um povo à resolução de se submeter ao constrangimento que a pró-
pria razão lhe prescreve como meio, a saber, a lei pública, e a entrar numa constituição civil, assim também a
miséria resultante das guerras permanentes, em que os Estados procuram uma e outra vez humilhar ou subme-
ter-se entre si, deve finalmente levá-los, mesmo contra vontade, a ingressar numa constituição cosmopolita;
ou então, se um tal estado de paz universal (como várias vezes se passou com Estado demasiado grandes), é,
por outro lado, ainda mais perigoso para a liberdade, porque suscita o mais terrível despotismo, esta miséria
deve, no entanto compelir a um estado que não é decerto uma comunidade cosmopolita sob um chefe, mas é,
no entanto um estado jurídico de federação, segundo um direito das gentes concertado em comum”. In:
KANT, I. TP. p. 99.
108
Este tema será desenvolvido no capítulo 2.
109
KANT, I. IHU. p. 18.
47
diante e onde se chegaria. As concepções de Hobbes, Locke e Rousseau forneceram ele-
mentos fundamentais para a formação do Estado moderno, mas não deram subsídios sufici-
entes para garantir a paz entre as nações, tampouco colocaram a paz no centro da história e
da política. Kant assim avalia o estágio da política em sua época:
embora este corpo político (Staatskörper) por enquanto seja somente um esboço grosseiro,
começa a despertar em todos os seus membros como que um sentimento: a importância da
manutenção do todo; e isto traz a esperança de que, depois de várias revoluções e transfor-
mações, finalmente poderá ser realizado um dia aquilo que a natureza tem como propósito
supremo, um estado cosmopolita universal, como o seio no qual podem ser desenvolver to-
das as disposições originais da espécie humana”
110
.
A análise da filosofia da história em Kant permite entender que a evolução da hu-
manidade passa pela liberdade, a qual que deve ser garantida ao homem, como forma dele
tirar de si próprio os meios para garantir a paz. Nesse processo há uma tensão entre o desejo
de agrupar-se em prol do melhor para a humanidade e o desejo de renunciar a liberdade e
submeter-se ao destino, o que não passaria de uma crença. Kant deposita no homem e na
sua razão a responsabilidade de estabelecer uma constituição republicana e uma federação
de nações
111
, bem como o dever
112
de cultivar a esperança e alcançar a paz perpétua.
A hipótese do progresso do gênero humano em direção à sociedade cosmo-
polita, regida pelo direito provedor da paz perpétua, é uma idéia, mas sua utilidade importa
também no plano moral. O progresso em direção a paz é um dever, um postulado orienta-
dor da ação humana, uma pressuposição da razão e sem o qual, torna-se difícil pensar a
ordem dos acontecimentos futuros, sem cair na armadilha do descrédito consagrado ao ho-
mem pelos eventos contraproducentes. As dificuldades para a realização do direito e dos
valores republicanos não devem levar a crer na impossibilidade da paz como fim último do
110
KANT, I. IHU. p. 22.
111
Segundo Terra, é do interesse do governante ampliar a liberdade do indivíduo para que este busque por sua
conta o aperfeiçoamento das instituições políticas: “além de ser um dever a realização da constituição republi-
cana e da federação das nações que possibilitem a paz perpétua, esta é promovida especialmente pela insociá-
vel sociabilidade: como o desenvolvimento das sociedades chega-se a um ponto em que é do interesse do
próprio governante ir aperfeiçoando as instituições políticas (...)mesmo que seja apenas por motivos egoístas e
busca de grandeza, os governantes deverão ampliar as liberdades, diminuir as restrições aos cidadãos, ampliar
a liberdade de religião e favorecer a difusão das luzes. As reformas das instituições são exigidas pelo próprio
desenvolvimento histórico, o progresso inscrito na própria natureza da sociedade”. In: TERRA, R. R. Algu-
mas questões sobre a filosofia da história em Kant. p. 72.
112
Cf. KANT, I. PP. p. 171.
48
da história.
113
. Kant espera que os homens em cada época façam o máximo em prol da ilus-
tração e do direito, mesmo que não estejam pensando no futuro da humanidade. Ao empe-
nharem-se ao máximo em cada época, os homens estarão necessariamente contribuindo
para o bem futuro:
E deste modo, também a posteridade (sobre a qual não devem pesar encargos que ela não
mereceu) poderá sempre progredir para o melhor, mesmo no sentido moral, sem que a causa
disso seja o amor por ela, mas apenas o amor de cada época por si própria: pois toda a co-
munidade, incapaz de prejudicar outra pela violência, se deve agarrar apenas ao direito e
pode com fundamento esperar que outros, assim igualmente configurados, virão em seu au-
xílio”
114
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant expôs a orientação para de-
terminar o valor moral de uma ação, aplicando a fórmula do imperativo categórico para
avaliar o valor moral de uma ação. O desdobramento do imperativo categórico gera a fór-
mula da Humanidade, a qual permite situar a questão da história de forma moral. A fórmula
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qual-
quer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”
115
,
expressa o desejo universal de realização do esclarecimento, obtido através da conversão
moral e do avanço das instituições políticas, conforme analisa Giannotti:
“ A humanidade existente em cada um precisa ser usada racionalmente para que se converta
em humanidade universal, cuja efetividade se dará no estado cosmopolita. O uso dessa hu-
manidade particular, dos caracteres de cada um como ser vivo, no sentido de cultivar a mo-
ralidade, a universalidade e a civilização, nada mais é do que a história, entendida como um
processo de Aufklärung
116
.
A
s determinações do indivíduo vão ao encontro dos desígnios da humanidade, por
meio da universalização da moral. O eu pensante regula suas ações por máximas determi-
nadas completamente pelo imperativo categórico, que obriga o indivíduo tomado como fim
113
Segundo Marques “O progresso afirma-se como uma estratégia, a longo termo, de abordagem dos eventos
históricos. Nessa linha o grande problema e o grande objetivo da sociedade, enquanto lugar da vida e dos
conflitos coletivos , é a constituição de uma sociedade civil formando um estado de direito, garantia da justi-
ça. O caminho para esta meta não é compreendido linearmente, mas como uma senda sinuosa, propensa a
rupturas e recuos que, contudo, não poderão afetar o almejar do aperfeiçoamento constante das instituições e
regras de convivência entre homens e estados” In: MARQUES, V. S. Razão prática e progresso em Kant. p.
78.
114
KANT, I. TP. p. 100.
115
KANT, I. FMC. p. 229.
116
GIANNOTTI, A. Kant e o espaço da história universal. p. 148.
49
em si a comportar-se de forma a tomar sua própria legalidade particular e a humanidade
nele presente, como sendo o lugar onde o indivíduo reconhece a humanidade como um todo
racional e que deve ser efetivado pelo movimento da história
117
. Segundo Kant “há na hu-
manidade disposições para a maior perfeição que pertencem ao fim da natureza a respeito
da humanidade na nossa pessoa”
118
; isto significa que cada pessoa contém o gérmen para a
perfeição da humanidade, mesmo com a presença das inclinações. No entanto, será na es-
pécie humana, onde manifesta-se plenamente a garantia de que a humanidade caminha em
direção ao aperfeiçoamento moral, e será nela que a humanidade se revelará inteiramente,
tendo como fim natural de toda a história a felicidade dos homens
119
.
Kant compreendeu o homem como artífice da própria felicidade. O homem como
legislador universal da moral precisou assegurar-se por meio de agentes externos, tais co-
mo o Estado e a federação dos povos
120
, e estando ambos orientados pelo direito, a realiza-
ção da paz na história. Se não houver a paz, todo esforço de aperfeiçoamento moral e polí-
tico será em vão. Por fim, encerramos este capítulo com as palavras de Horkheimer, quando
afirma que foi Kant o filósofo que buscou no cerne da história, as relações entre direito e
moral, edificantes da política justa e guardiões da liberdade. Vejamos:
“O formalismo de Kant possui tanto conteúdo que dele resultam o respeito por todo indivíduo, o
mesmo direito para todos, a república e o estado verdadeiro da humanidade... Ninguém, nem
Locke, nem Hume, nenhum francês, uniu tanto a Moral com o interesse político e com o traba-
lho pela ordem jurídica interna e externa, e tornou tanto esta união o único objeto da boa inten-
ção, como Kant. Ninguém era menos inclinado ao fanatismo das massas dirigidas pela manipu-
lação, do que o filósofo da autonomia. Pertence à ilustração a atitude de medir o progresso da
humanidade pelo desenvolvimento das capacidades espirituais do indivíduo, e de ao mesmo
tempo tornar aquele progresso obrigação de cada um.”
121
117
Cf. GIANNOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal. p. 148.
118
KANT, I. FMC. p. 230.
119
Cf. KANT, I. FMC. p. 230.
120
Segundo Terra, em Kant “a transformação das instituições políticas no sentido da aproximação aos pa-
drões do direito natural pela razão prática será de certo modo forçada pela própria dinâmica das relações entre
os cidadãos e também pela relação dos Estados entre si. Recoloca-se então a questão da existência ou não de
um plano das ações humanas dando um sentido para a história”. In: TERRA, R. R. Algumas questões sobre a
filosofia da história em Kant. p. 68. E de acordo com Oliveira, para Kant “a história é um processo de espiri-
tualização, de moralização da realidade empírica humana, através da qual a humanidade se constitui, progres-
sivamente, sob a forma de uma sociedade organizada segundo a lei, como corpo visível da liberdade”. In:
OLIVEIRA, M. A. Kant e a história como processo de totalização. p. 171.
121
HORKHEIMER, M. Apud ROHDEN, V. Interesse da razão e liberdade. p. 162.
50
CAP. 2. DIREITO, ESTADO E REPUBLICANISMO
O Direito (Recht) para Kant é o responsável pela formação de uma ordem jurídica,
com possibilidades concretas realização da paz perpétua. Na filosofia jurídico-política de
Kant, a paz é elevada ao status de categoria jurídica, podendo-se afirmar que ela é a ratio
das constituições estatais, as quais devem ter em seus fundamentos, a previsão do estabele-
cimento de uma condição pacífica universal, através de uma federação de nações, igual-
mente regida pelo direito.
A relação entre Direito e Estado na filosofia jurídico-política kantiana é o ponto
central para estabelecer as condições ulteriores necessárias à paz entre as nações. Para
Kant o Estado é o guardião do direito nas sociedades constituídas de forma republicana, a
qual possui, naturalmente, as condições fundamentais para o desenvolvimento efetivo do
direito.
O estabelecimento da paz mundial passa pela articulação entre Direito, Estado e a
forma republicana de governar, sendo que estas estruturas devem ser adotadas progressi-
vamente pelas nações do mundo. A condição necessária para a liberdade é garantida pelo
direito, que define segundo uma máxima a convivência entre os diferentes arbítrios. O pri-
meiro direito natural é a liberdade, sendo que as ações morais, o direito e as instituições
políticas visam assegurá-la como condição permanente. Em síntese, paz e liberdade são os
mais nobres valores aos quais a humanidade deve visar, constituindo-se no mote de toda a
filosofia jurídico-política kantiana.
Kant demonstrou em sua filosofia prática, a preocupação em definir quais os fun-
damentos racionais, morais, políticos e jurídicos, que permitirão a realização da paz perpé-
tua na humanidade. Uma leitura atenta da obra de Kant permite-nos afirmar a existência de
uma importante questão relativa ao desenvolvimento da humanidade. Esta questão é fun-
damental para a própria sobrevivência da espécie humana, tal como o filósofo expressou na
Idéia:
“O maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar
uma sociedade civil universal que administre universalmente o direito.(...): assim uma soci-
51
edade na qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no mais alto grau a um poder
irresistível, ou seja, uma constituição civil perfeitamente justa (...)”
122
A quinta proposição da Idéia apresenta uma necessidade e ao mesmo tempo uma so-
lução. O problema identificado é a guerra, como o grande mal que aniquila as instituições
sociais, causa a morte de pessoas e destrói bens materiais e culturais conquistados pela hu-
manidade. A solução apresentada é a extensão do direito aos mais remotos pontos da Terra,
o que significaria a ilustração dos povos através da razão legisladora, independentemente
das peculiaridades culturais.
O projeto kantiano visa garantir a máxima liberdade dos indivíduos, tendo no direito
a garantia da ordem pacífica universal, mas sem que para isso seja preciso suprimir defini-
tivamente os antagonismos, vitais para o constante aperfeiçoamento da humanidade. Os
antagonismos manifestos pela insociável sociabilidade, tal como apresentados no capítulo
1, não estão em discordância com o direito, mas são elementos impulsionadores providos
pela natureza. Kant afirma que “toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade, a
mais bela
ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a se dis-
ciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a desenvolver completamente os ger-
mes da natureza”
123
. O direito tem a capacidade de disciplinar os antagonismos e asssegurar
a ordem pública interna e externa dos Estados.
Kant estabeleceu o direito como fio condutor da sua obra política. Somente um Es-
tado organizado sob a orientação jurídica, está em condições de estabelecer relações eqüita-
tivas com outros Estados igualmente jurídicos, configurando-se então, uma sociedade har-
mônica e constantemente preocupada em garantir a paz e a liberdade. Os motivos para os
Estados virem a estabelecer relações são variados, tais como o comércio, trocas de bens
materiais e culturais, entre outros. No entanto, a razão para que os Estados continuem a
manter entre si um equilíbrio institucional é garantido por meio de tratados internacionais,
fundamentados no direito à paz, o qual não deve ser violado por nenhuma das partes. O
acordo efetuado entre dois Estados para não iniciar um conflito é fundamental para a orga-
nização interna de cada Estado, o qual não precisaria preocupar-se com a manutenção de
122
KANT, I. IHU. p. 14.
123
KANT, I. IHU . p. 15.
52
exércitos permanentes e artefatos de guerra
124
. Ao estabelecer acordos de cooperação ao
invés de entrar em conflito, um Estado estará economizando seus bens e aproveitando-os
em benefício dos cidadãos. Diante da irrupção de uma guerra entre Estados, ocorre um pro-
cesso instantâneo de desestabilização da ordem regional, podendo, inclusive, alcançar todos
os povos do mundo. A guerra produz inevitavelmente a destruição das estruturas sociais e
materiais, e principalmente, o aniquilamento de vidas humanas, o que é condenável pela
razão.
A linha reflexiva que adotamos neste capítulo, baseia-se na idéia de que a filosofia
prática kantiana estabelece o direito como meio para realizar a paz. Primeiramente, será
demonstrada a concepção kantiana do direito e como ele se torna a base para a realização
da paz perpétua. Em seguida, será apresentada a relação intrínseca entre Estado republicano
e direito, sendo aquele o guardião deste.
2.1 O conceito de direito em Kant: o imperativo categórico do direito
O homem é obrigado a conviver com os semelhantes num espaço que tem o ta-
manho da Terra, esta é uma realidade da qual não se pode escapar. O fato de existir um
limite no plano geográfico e a constatação de que a espécie humana é regida pelo signo
impiedoso da escassez, nada existindo na terra em excesso
125
, faz o homem lutar pela so-
brevivência e por conforto. Há uma corrida por bens materiais e por territórios fornecedores
de bens consumíveis, os quais se tornam cada vez mais escassos à medida que a população
cresce. Assim sendo, a competição, os conflitos civis e as guerras entre Estados tendem a
tornarem-se constantes, dada a condição inevitável dos humanos conviverem num espaço
limitado.
A conformação aos limites impostos pela convivência com os demais seres hu-
manos em decorrência da limitação espacial do globo terrestre aponta que o homem não
dispõe de outra escolha a não ser viver em comunidade com outros semelhantes
126
. A con-
124
Cf. KANT, I. PP. p. 121.
125
Cf. KERSTING, W. Kant e o problema da justiça social. p. 121.
126
Cf. HÖFFE, O. O imperativo categórico do direito: uma intepretação da “Introdução à Doutrina do Direi-
to”. p. 214.
53
vivência será melhor quanto maior for o domínio sobre as inclinações humanas e a subordi-
nação tácita ao direito, gerando benefícios desfrutáveis por todos os envolvidos.
A tensão provocada pela insociável sociabilidade não é uma etapa peculiar dos
primeiros tempos da humanidade, mas está presente durante toda a história humana, sendo
que ela não deixará de existir num grupo social estabelecido, num Estado ou até mesmo na
relação entre Estados, mas pelo contrário, tornar-se-á mais evidente. Kant, ao enfatizar o
papel da insociável sociabilidade como meio para o progresso, ressaltou a importância da
competitividade como forma de melhorar a condição humana, tal como as árvores que cres-
cem em meio as outras na floresta. No entanto, é necessário estabelecer um termo para a-
quela que é a condição fundamental do homem, a liberdade, a qual esta respaldada na uni-
versalização de uma lei. As manifestações da insociável sociabilidade não podem ultrapas-
sar os limites impostos pelo direito. Assim escreve Kant:
É a necessidade que força o homem, normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, a
entrar neste estado de coerção; e em verdade, a maior de todas as necessidades, ou seja, a-
quela que os homens ocasionam uns aos outros e cujas inclinações fazem com que eles não
possam viver juntos por muito tempo em liberdade selvagem.”
127
Encontra-se na Metafísica dos Costumes a definição do direito fornecida por Kant, a
qual permite compreender a sua abrangência no desenvolvimento do Estado e de uma co-
munidade universal, igualmente jurídica. O direito é definido na Metafísica dos Costumes
como “ o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o
arbítrio dos demais segundo uma lei universal de liberdade”
128
. Prosseguindo, tem-se o
conceito do que seja uma ação conforme ao direito, distintamente de uma ação realizada
por dever (moral): “Uma ação é conforme ao direito (recht) quando permite, ou cuja máxi-
ma permite, à liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo
uma lei universal”
129
. A partir da definição do direito e de como ele se manifesta no plano
externo (como naturalmente acontece), tem-se a lei universal do direito, assim elaborada
por Kant: “Age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir
com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal”
130
.
127
KANT, I. IHU. p. 15.
128
KANT, I. MC. p. 39.
129
KANT, I. MC p. 39.
130
KANT, I. MC. p. 40.
54
O direito permite a coexistência universal de arbítrios, sem que um se sobreponha
ao outro, tendo como norma um imperativo (do direito) que orienta a ação, submetendo os
diversos arbítrios à lei universal. Sobre o imperativo do direito, Höffe afirma que:
“somente aquelas determinações do direito, que permitem a compatibilidade da liberdade
de um com a liberdade de todos os outros segundo leis estritamente universais, são legíti-
mas, produzem uma padrão de medida que forma a contrapartida jurídica do imperativo ca-
tegórico familiar a nós. Ele obriga a comunidade da liberdade externa à legislação universal
exatamente da mesma maneira que o imperativo categórico obriga a vontade pessoal em re-
lação às máximas postas por ela mesma.”
131
Para Kant tudo o que se coloca contrário ao direito (unrecht) é um obstáculo à liber-
dade, e para que esta seja garantida, o uso da coerção é considerado inerente ao direito.
Dessa forma, tem-se que direito e faculdade de coagir estão no mesmo patamar teórico. A
coerção é a forma legítima de garantir a liberdade do indivíduo, conforme podemos ver
nesta passagem de Kant:
“tudo o que é contrário ao direito (unrecht) é um obstáculo à liberdade segundo leis univer-
sais: porém a coação é um obstáculo ou uma resistência à liberdade. Portanto, se um deter-
minado uso da liberdade mesma é um obstáculo à liberdade segundo leis universais – isto é,
contrário ao direito (unrecht) – a coação que se lhe opõe, enquanto obstáculo frente ao que
obstaculiza a liberdade, concorda com a liberdade segundo leis universais; ou seja, é con-
forme ao direito (recht). Por conseguinte, ao direito está unida a faculdade de coagir a quem
o viola, segundo o princípio de contradição.”
132
Para garantir a liberdade, único e verdadeiro direito natural, é preciso ordenar a vida
humana através de uma categoria proveniente da razão legisladora que permitirá a convi-
vência de diferentes arbítrios num mesmo espaço; trata-se de instituir o direito como ele-
mento articulador das relações humanas e garantidor da liberdade. A doutrina do direito
garante que não haja imposição ao indivíduo de qualquer norma que não tenha valor uni-
versal. A liberdade dos homens não se resume no cumprimento de leis jurídicas e morais,
mas na máxima experiência que o homem pode ter da sua liberdade, sem atingir o arbítrio
de outrem
133
. O direito então, permite ao homem realizar a máxima liberdade, sem que com
isso outros indivíduos sejam prejudicados por sua ação. Ao restringir o arbítrio de um con-
131
HÖFFE, O. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da “Introdução à Doutrina do Direito”.
p. 222.
132
KANT, I. MC. p. 40.
133
Cf. HECK, J. N. Direito Subjetivo e Dever interno em Kant. p. 67.
55
siderando o arbítrio de outro, de acordo com uma lei universal, está se projetando uma so-
ciedade o menos constrangedora possível das vontades e liberdades humanas.
Em Kant, moral e direito, prima facie perseguem o mesmo fim: tornar o indivíduo
livre e assegurar permanentemente esta liberdade, pois constantemente fatores internos (in-
clinações) e externos (o desrespeito da lei pelo outro) subtraem em parte ou no todo aquela
liberdade. De forma geral, as leis morais são leis da liberdade e englobam leis éticas e leis
jurídicas, sendo que as primeiras referem-se à motivação interna e envolvem a ação prati-
cada por dever, derivada de uma máxima do imperativo categórico; as leis jurídicas por sua
vez, referem-se a ação externa e não dizem respeito necessariamente ao móbil interno da
ação, pois outros móbeis podem estar presentes no momento da ação, que não a obediência
ao dever, como por exemplo o temor da punição. O cumprimento das leis jurídicas não a-
tém-se ao motivo pelo qual a lei é obedecida, mas sim no cumprimento da lei. Segundo
Höffe, “o direito diz respeito apenas à liberdade externa, independente do necessário arbí-
trio de outro para fazer e deixar de fazer, e não exatamente àquela liberdade interna ou mo-
ral, à independência da vontade dos impulsos, necessidades e paixões, que para a virtude é
imprescindível”
134
.
O direito permite ao indivíduo suspender, mesmo que momentaneamente, a reflexão
moral. Agindo de acordo com uma lei jurídica, e sendo ela derivada da moral, o indivíduo
estaria realizando em parte uma ação moral. No entanto, é conhecida a distinção que Kant
faz entre uma ação realizada conforme ao dever e por dever, o que contradiz a análise ante-
rior. Segundo a análise de Habermas, a interconexão entre direito e moral origina-se do
procedimento heurístico elaborado por Kant na filosofia prática. Para Habermas, Kant parte
do conceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas, seguindo
um caminho da redução
135
; ou seja, o direito percorre um caminho proveniente da moral
136
.
Habermas sustenta que a teoria moral primeiramente fornece os conceitos superiores, como
vontade e arbítrio, ação e mola impulsionadora, dever e inclinação, lei e legislação, que se
134
HÖFFE, O. O imperativo categórico do direito: uma intepretação da “Introdução à Doutrina do Direito. p.
215.
135
Cf. HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. p. 140.
136
Segundo Oliveira, o direito nunca realiza completamente a moralidade: “A lei é a encarnação (sempre
deficiente) da moral, de tal modo que a sociedade civil é a encarnação, a aproximação, do reino dos fins. A
legislação cria uma situação em que se torna possível a realização da liberdade humana. A realização da li-
berdade é, para Kant, o fruto exclusivo de uma decisão pessoal diante da interpelação do incondicionado”.
In: OLIVEIRA, M. A. Kant e a história como processo de totalização. p. 172.
56
constituem na base inicial do agir e do julgar moral humano. No entanto, para o indivíduo
este é um fardo muito grande para carregar, cabendo ao direito garantir a compatibilidade
de ações
137
. A doutrina do direito busca empreender esta liberdade de ações, pois o direito
não está ligado primariamente a uma vontade livre, mas sim ao livre arbítrio dos envolvi-
dos, os quais se relacionam externamente com outras pessoas e tem autorização para coagir,
caso haja violação da liberdade alheia
138
. O princípio do direito, então, limita o princípio da
moral, como forma de agilizar o convívio humano e “a partir dessa limitação, a legislação
moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, os deveres éticos nos deveres jurí-
dicos, etc”.
139
A análise de Habermas esclarece o processo de derivação do direito a partir da mo-
ral na obra de Kant, e comprova como este processo permite a construção de estruturas
plausíveis no âmbito da convivência humana e da edificação da paz, as quais necessitam de
leis públicas e de caráter normativo - condições estas que só o direito pode concretizar efe-
tivamente
140
.
2.2. O progresso histórico do direito e o efeito juridicizante da Revolução Francesa
No primeiro capítulo foi destacada a importância atribuída por Kant ao evento da
Revolução Francesa, a qual foi transformada em signo do progresso histórico em direção
ao melhor. O entusiasmo presente nas pessoas que presenciaram o evento atestou que os
homens não estavam realizando a revolução em vão, mas em prol da humanidade
141
. Por
outro lado, a Revolução Francesa ao afirmar os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraterni-
137
Cf. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 114.
138
Cf. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 140.
139
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. p. 140.
140
As aporias provenientes da relação entre direito e moral são um importante campo de estudo na filosofia
prática kantiana, mas não serão aprofundados neste trabalho. Sobre isso, ver, por ex. HECK, J. Direito e Mo-
ral: Duas Lições sobre Kant. Goiânia: Ed. Da UCG: Ed. Da UFG, 2000; HECK, J. Direito subjetivo e dever
jurídico interno em Kant. In: Rev. Veritas. V. 48, n.1, PUC: Porto Alegre, 2003; BECKENKAMP, J. O
direito como exterioridade da Legislação Prática em Kant. In: Revista ethic@. Depto. de Filosofia. UFSC. V.
2,, n.2. Florianópolis, 2003, entre outros.
141
Segundo Terra “o sinal da moralidade estaria nesta adesão desinteressada [...]. O entusiasmo é o sinal da
moralidade e nos leva a afirmar o progresso. Kant abre neste texto uma importante perspectiva de reflexão
política, a política pensada não apenas nos parâmetros do direito, mas em um juízo reflexionante. A ação
política não é pensada apenas no plano de seu acordo com os princípios universais do direito racional. O sin-
gular é pensado sem uma regra prévia como em um juízo estético, onde há um acordo das faculdades e não a
legislação da razão ou do entendimento”. In: TERRA, R. Kant: entusiasmo e revolução. p. 7.
57
dade, aponta para outra ação igualmente importante para a humanidade: o estabelecimento
do direito na base das nações, como pacificador e fornecedor dos meios para garantir os
ideais então proclamados e, consubstanciados à época, na Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem.
O evento da Revolução Francesa redimensiona o papel do direito na garantia da li-
berdade e da paz, até então timidamente valorizados no âmbito dos Estados nacionais. O
entusiasmo pelos ideais da Revolução Francesa ultrapassa o evento em si e torna-se impera-
tivo nas constituições dos Estados, os quais, a partir de então, buscaram incluir firmemente
os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. A idéia de regressar ao estado de natu-
reza é progressivamente distanciada sob o ideal da ilustração, o qual orienta o estabeleci-
mento de uma ordem jurídica em todos os Estados.
O avanço em direção à paz perpétua é o avanço do próprio direito, iniciado na cultu-
ra greco-romana e alcançado o seu ápice na Revolução Francesa. Para Kant, o tempo histó-
rico é traçado segundo o esquema da razão do direito
142
. Embora os Estados tenham surgi-
do durante a história pelo recurso livre da violência, cabe ao direito racional, quando não
ocorrerem saltos revolucionários similares à Revolução Francesa, realizar uma lenta refor-
ma em direção ao sumo bem político, ou seja, a paz perpétua
143
.
Kant, apesar de ser contra o direito de revolução e do poder de destituir o soberano,
foi um defensor da Revolução Francesa, apesar das atrocidades nela cometidas. Embora
Kant tenha declarado inicialmente que a Revolução Francesa era contrária ao direito, mes-
mo assim, simpatizou com ela
144
. Uma vez acontecido o evento que permitiu maior liber-
dade ao estabelecer uma constituição, não tem sentido regredir ao estágio anterior, onde
ocorreu a ação revolucionária e ilegítima. O importante da ação dos revolucionários está na
conseqüência - não planejada – ou seja, a inspiração e a fundamentação de uma ordem jurí-
dica promotora do ideal republicano e da paz. Neste sentido, identifica-se o progresso ocor-
rido sendo julgado pela liberdade política e pela evolução das constituições, que irão garan-
tir tal liberdade
145
.
142
Cf. HECK, J. Contratualismo e Sumo Bem Político. Um estudo preliminar sobre a Pax Kantiana. p. 82.
143
Cf. HECK, J. Contratualismo e Sumo Bem Político. Um estudo preliminar sobre a Pax Kantiana. p. 82.
144
Cf. KERSTING, W. Hobbes, Kant, a paz universal e a Guerra contra o Iraque. p. 9.
145
Cf. TERRA, R. R. Kant: entusiasmo e Revolução. p. 7.
58
Kant defenderá sempre a Revolução Francesa pelos resultados práticos e teóricos no
campo da ética, da política, do direito e da filosofia da história. Sobre as críticas feitas a
Revolução e seu caráter sanguinário, Kant a entenderá como um processo necessário na
elaboração das constituições republicanas, assim como foram as guerras em outros momen-
tos da história humana. Novamente, pode-se afirmar que a natureza agiu em prol da huma-
nidade, através da insociável sociabilidade, trazendo a lume uma revolução como forma de
estabelecer uma ordem baseada no direito racional. Segundo Kant, o grande mérito da Re-
volução ocorreu na vasta publicidade dada aos princípios morais, jurídicos e políticos: “é
simplesmente o modo de pensar dos espectadores que se trai publicamente nesse jogo de
grandes transformações, (...) e demonstra assim (por causa da universalidade) um caráter do
gênero humano no seu conjunto e, ao mesmo tempo (por causa do desprendimento), um
caráter moral (...)
146
. Foram diversas as possibilidades abertas pela Revolução Francesa,
mas foi no campo da legalidade que o evento deu provas de seu poder de ilustração. A lei é
o caminho estabelecido para as nações elaborarem suas constituições, deixando o caminho
aberto para a paz jurídica, ou seja, o caminho para o soberano bem político. Assim expressa
Kant:
“Não uma porção sempre crescente de moralidade na disposição de ânimo, mas na multipli-
cação de produtos de sua legalidade, em ações em conformidade ao dever, sejam quais fo-
rem os impulsos que as ocasionarem, isto é, nas boas ações dos homens que tornarão sempre
mais numerosas e melhores, por conseguinte, nos fenômenos da constituição ética do gêne-
ro humano, tão-somente aí poder-se-á situar o ganho (o resultado) do cultivo do mesmo para
melhor”
147
.
A Revolução Francesa é o evento paradigmático do direito, por indicar as condições
necessárias para alcançar a paz. Somente através da legalização das instituições, segundo
Kant, pode-se estabelecer uma sociedade melhor. A Revolução e a conquista da constitui-
ção republicana nos Estados, são fatos que legitimam para Kant, a reivindicação moral da
razão de que a espécie está a caminho de um futuro melhor, sendo que a tipificação da lei
suprema do direito racional manifestou-se na publicidade legalizadora da Revolução Fran-
cesa
148
.
146
KANT, I. CF. p. 101.
147
KANT, I. CF. p. 109.
148
Cf. HECK, J. N. Direito e dever de resistência ou progresso para o melhor – Política, direito e história em
Kant. p. 14.
59
2.3 O direito público e a razão legisladora
A paz em Kant é uma categoria jurídica e não um apêndice na constituição de um
Estado, e muito menos uma forma espiritual condicionante das pessoas e instituições. Sen-
do a paz elevada à categoria jurídica, torna-se imperativo que todas as nações assumam-na
em suas constituições republicanas, a fim de que a liberdade esteja garantida aos cidadãos.
Se numa determinada sociedade, o direito, tendo como guardião o Estado, é a garan-
tia da liberdade e da paz interna, analogamente ocorrerá no plano mundial. Kant, como vi-
mos, partiu da idéia do inevitável encontro entre as nações e da manifestação da insociável
sociabilidade, para concluir da necessidade do direito como articulador da paz e da liberda-
de entre as nações. A constatação do progresso histórico para o melhor defendido por Kant
é o pressuposto teórico para estabelecer uma legislação universal como instrumento funda-
mental para a realização da paz perpétua.
Kant, ao articular história, política e direito como forma de encaminhar a humani-
dade à paz perpétua, mostrou que a humanidade caminha em direção ao melhor, sendo a
política a forma ideal para concretizar o progresso, pois é aquela que aplica as leis da liber-
dade provenientes do direito. O direito promove a articulação interna de uma nação e esta-
belece, como um segundo passo necessário à paz definitiva, um pactum entre as nações da
terra. Em síntese, é o direito que fornece o padrão racional para a política, mas, é a política
a executante do direito, sendo que ambos encontram-se sob o estatuto da razão histórica.
A demonstração do papel do direito na realização da paz perpétua encontra-se nas
obras Metafísica dos Costumes e A Paz Perpétua. Na Metafísica dos Costumes Kant apre-
senta o direito como categoria proveniente da razão prática e orientadora das relações ex-
ternas entre os homens (legalidade). N’ Paz Perpétua é apresentado o projeto da paz, a par-
tir de um estatuto orientado pelos princípios do direito. Da leitura de ambos os textos con-
clui-se que o direito é a forma que a razão prática encontrou para orientar as ações humanas
externamente, sendo que à moral caberia orientar as motivações internas. Não necessaria-
mente haverá concordância entre a moral e o direito, mas este sempre será proveniente da
moral; conforme a análise empreendida anteriormente, na vida pública, nem sempre o ho-
60
mem está obrigado a ser moralmente bom, embora esteja obrigado a ser um cidadão cum-
pridor de suas obrigações
149
.
A obrigação de cumprir uma lei jurídica, pelo fato de ser proveniente da razão legis-
ladora, impõe-se ao homem duplamente. Primeiramente é exigida a obrigação de cumprir a
lei moral, em segundo, o cumprimento da lei jurídica propriamente dita, derivada da opera-
ção prática realizada pelo direito a partir da moral, válida inclusive para um povo de demô-
nios como Kant enfatiza. As obrigações jurídicas são estabelecidas entre elementos objeti-
vos, como na relação entre indivíduos, na relação entre o Estado e o indivíduo ou ainda na
relação entre Estados. Em cada uma destas situações, o direito racional permite a convivên-
cia de arbítrios, segundo uma lei universal da liberdade. Assim escreve Kant:
“A leis procedem da vontade; as máximas, do arbítrio. Este último é no homem um arbítrio
livre; a vontade não se refere senão a lei, não pode chamar-se nem livre nem não livre, por-
que não se refere a ações, senão imediatamente a legislação referente às máximas das ações
(portanto, a razão prática mesma), que seja também absolutamente necessária e não seja ela
mesma suscetível de coerção alguma.”
150
A efetivação do Direito é dada a partir do entrelaçamento com a moral e a política,
como pode-se observar em algumas passagens da Crítica da Razão Pura. A razão é res-
ponsável pela condução dos processos que envolvem a moral e o direito, visando a realiza-
ção absoluta da política, ou seja, alcançar a paz perpétua. A política ocorre na relação entre
cidadãos, entre estes e o Estado e na relação entre Estados, cabendo ao direito o papel me-
diador desses encontros, os quais nem sempre são equilibrados e pacíficos, distanciado-se
da orientação da razão. Assim Kant expressa o papel da razão subjacente à relação entre
direito e política:
“Pode considerar-se a Crítica da Razão Pura o verdadeiro tribunal para todas as controvér-
sias desta faculdade, porque não está envolvida nas disputas que se reportam imediatamente
aos objetos, mas está estabelecida para determinar e para julgar os direitos da razão em ge-
ral, segundo os princípios da sua instituição primeira.”
151
Kant desenvolve nesta passagem a idéia do direito proveniente da pura razão, o qual
tem a função de legislar sobre as ações humanas no plano coletivo. A razão pura é a primei-
149
KANT, I. PP. p. 146.
150
KANT, I. MC. p. 33.
151
KANT, I. CRP. p. 604.
61
ra instância que deve ser considerada na elaborão das leis, pois está isenta das inclina-
ções, as quais contribuem para formulação de leis não universalizáveis. Da razão pura são
derivados os princípios puros do direito, válidos universalmente como leis da liberdade.
Prosseguindo a análise, Kant fornece evidências do papel do direito e da razão pura
na realização da paz perpétua. Seguindo a tradição contratualista, Kant considerou que no
estado de natureza persiste a ausência da legalidade, restringindo-se drasticamente a liber-
dade dos homens:
“Sem esta crítica a razão mantém-se, de certo modo, no estado de natureza e não pode fazer
valer ou garantir as suas afirmações e pretensões a não ser pela guerra. A crítica, pelo con-
trário, que extrai todas as decisões das regras fundamentais da sua própria instituição, cuja
autoridade ninguém pode pôr em dúvida, proporciona-nos a tranqüilidade de um estado le-
gal em que não nos é permitido tratar o nosso referendo a não ser mediante um processo.”
152
Kant, antes de ter escrito A Paz Perpétua, defendeu de forma tangencial a ne-
cessidade de estabelecer um ordenamento jurídico que assegurasse a paz definitiva. Tal
empreendimento somente é possível quando o direito racional difundir seus efeitos pacifi-
cadores a todos os lugares da terra, através da legalização cada vez maior das instituições
humanas. Assim escreve Kant:
O que no primeiro caso põe termo às querelas é uma vitória de que se vangloriam ambas
as partes e à qual segue, a maioria das vezes, uma paz mal assegurada, imposta pela inter-
venção de uma autoridade superior; no segundo caso, porém, a sentença, porque toca agora
a fonte das discussões, deve conduzir a uma paz eterna. Os conflitos intermináveis de uma
razão simplesmente dogmática obrigam-nos também a procurar finalmente repouso numa
crítica dessa própria razão e numa legislação que nela se funda.”
153
Para Kant, a razão filosófica não é um mero órgão receptivo, mas uma instância que
estabelece de forma espontânea o direito no nível cognoscitivo; ele estabelece as demarca-
ções epistemológicas e determina o marco para decidir entre as pretensões do conhecimento
que a realidade apresenta
154
. Expressões metafóricas como tribunal da razão, a disputa das
pretensões, o direito sobre determinados conhecimentos, o estado de natureza, a guerra co-
mo meio de resolver disputas, o processo e a sentença como procedimento para obter a paz
duradoura não constituem meras analogias, senão que a razão filosófica é para Kant a razão
152
KANT, I. CRP. p. 604.
153
KANT, I. CRP. p. 604.
154
Cf. ORTS, A. C. Estúdio Preliminar. p. 24.
62
jurídica
155
. A razão fornece o padrão para o direito, levando à conclusão de que direito e
razão mantém entre si uma íntima relação, não havendo espaço para as sinuosidades das
inclinações humanas e da liberdade selvagem. O direito compatibiliza o anseio humano
pela ordem pública e pela liberdade em meio às inclinações humanas e à insociável socia-
bilidade, através de uma lei positiva, subsunção da moral e do direito. Esta situação pode
ocorrer em diversos agrupamentos, desde uma comunidade, passando pelo Estado e alcan-
çando a relação entre Estados.
O direito em Kant não se restringe à garantia da ordem e da liberdade entre indiví-
duos, mas visa a condução da humanidade à paz perpétua, através de uma federação de
Estados orientada pelo direito internacional. O direito, sendo fruto da razão, é a única forma
capaz de estabelecer a justiça numa relação entre os indivíduos pertencentes a um Estado e
entre os diversos Estados. O caráter universal do direito se sobrepõe à manifestação particu-
lar do indivíduo e àquilo que foi culturalmente construído, por estar em desacordo com o
que foi racionalmente estabelecido como o melhor para uma comunidade, para um Estado
ou finalmente, para a federação de Estados. O estabelecimento da paz definitiva depende da
reciprocidade entre a organização jurídica interna dos Estados e o ordenamento jurídico
mundial, ou seja, a Federação de Estados. A ausência ou mesmo a insuficiência do direito
no plano estatal ou inter-estatal deixa o caminho aberto para a guerra interna e externa, res-
pectivamente.
O direito racional declara a paz como sumo bem político, sendo a paz kantiana o re-
sultado de uma conseqüente codificação de todas as relações conflituosas no mundo da
liberdade externa
156
. Não há como estabelecer a paz, sem que antes as nações estejam sob o
domínio do direito público e de uma constituição republicana.
“Em toda a comunidade deve haver uma obediência ao mecanismo da constituição política
segundo leis coercitivas (que concernem ao todo), mas ao mesmo tempo um espírito de li-
berdade, porque, no tocante ao dever universal dos homens, cada qual exige ser convencido
pela razão de que semelhante coação é conforme ao direito, a fim de não entrar em contradi-
ção consigo mesmo. A obediência sem o espírito da liberdade é a causa que induz a todas as
sociedades secretas.”
157
155
Cf. ORTS, A. C. Estúdio Preliminar. p. 24.
156
Cf. KERSTING, W. Hobbes, Kant, A Paz Universal e a Guerra Contra o Iraque. Kant e-prints. p. 3.
157
KANT, I. TP. p. 92
63
O caráter “legalizador” d’Paz Perpétua deve-se ao firme propósito kantiano de es-
tabelecer a paz entre as nações, ocorrendo primeiramente entre aquelas organizadas de for-
ma republicana. Segundo Terra, a questão da instauração da paz é o ponto fundamental da
filosofia jurídico-político de Kant e do próprio projeto crítico: “a crítica será o tribunal que
põe fim às lutas, estabelecendo um estado legal, julgados os conflitos, o tribunal tomará
decisões proferindo sentenças que possibilitem a paz perpétua”
158
. Enfim, Kant desenvol-
ve a sua proposta por uma nova ordem social a partir da idéia de representação ideal da
razão, a qual estabelece o direito como único meio eficaz para alcançar a paz perpétua.
2.4 O Contrato Social e o Estado
A instauração da paz é uma necessidade para a sobrevivência das instituições políti-
cas, sendo dada de forma a priori, ou seja, é uma elaboração que o homem faz a partir do
uso da razão e visa o soberano bem político. Assim como foi incumbido aos indivíduos o
dever de constituírem uma sociedade civil, é dever dos Estados, enquanto “pessoas morais”
159
, formarem um pacto entre si, colocando fim definitivo às hostilidades. O estabelecimen-
to de uma comunidade jurídica internacional, seguindo a idéia de uma “Federação de Esta-
dos livres” ou de uma “liga das Nações para a paz” é o redimensionamento da idéia de con-
trato presente no surgimento do Estado.
Os passos identificados na filosofia jurídico-política kantiana revelam o progresso
da razão em favor da paz, ou seja, é a própria liberdade agindo com vista à sua plena reali-
zação. Isso ocorre por que Kant elabora uma justificação do progresso de modo a priori e
ao mesmo tempo analítico, a partir de uma dado concreto e inquestionável que é a socie-
158
TERRA, R. R. Política Tensa. p. 32.
159
Assim Kant expressa a idéia do Estado como pessoa moral: “Um Estado não é patrimônio (patrimonium)
(como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma sociedade de homens sobre a qual mais nin-
guém a não ser ele próprio tem que mandar e dispor. Enxertá-lo noutro Estado, a ele que como tronco tem a
sua própria raiz, significa eliminar a sua existência como pessoa moral e fazer desta última uma coisa, contra-
dizendo, por conseguinte, a idéia do contrato originário, sem a qual é impossível pensar direito algum sobre
um povo. In: KANT, I. PP. p.121. E em outra passagem: “
(...) aqui um Estado, considerado como pessoa
moral frente a outro que se encontra no estado de liberdade natural e, portanto, também em estado de guerra
contínua, se coloca como problema do direito a guerra, o direito durante a guerra e o direito a obrigar-se mu-
tuamente a sair deste estado de guerra, portanto, se propõe como tarefa uma constituição que funda uma paz
duradoura”. In: KANT, I. MC. p. 181.
64
dade civil existente (ou o Estado)
160
. A filosofia jurídico-política de Kant estabelece três
etapas do progresso da organização política, sendo que cada uma das etapas justifica-se
eticamente e a priori pela exigência de um imperativo categórico da razão prática que apa-
rece como exigência da passagem de uma para outra etapa
161
. Primeiramente, o dever de
todos de entrar numa sociedade civil, abandonando o estado não-jurídico em que viviam;
em segundo, constituir um Estado baseado numa constituição republicana; e em terceiro, o
ingresso numa estrutura federativa de nações, onde a paz perpétua é concebida como o su-
mo bem político
162
. A primeira e segunda etapas referem-se ao contrato social e a forma-
ção do Estado, assim expresso por Kant na Doutrina do Direito:
“O ato pelo qual se constitui a si mesmo num Estado, propriamente porém apenas a idéia
deste ato, só ela permitindo pensar a sua legitimidade, é o contrato originário, segundo o
qual todos (omnes et singuli) entregam ao povo sua liberdade exterior, para retomá-la logo
como membro de um ser comum, ou seja, do povo considerado como Estado (universi). Não
se pode dizer que o Estado, o homem no Estado tenha sacrificado uma parte de sua liberda-
de exterior inata a um fim, mas que abandonou completamente a liberdade selvagem sem
lei, para reencontrar sua liberdade plena e não diminuída numa dependência legal, ou seja,
num estado jurídico, porque essa dependência provém de sua própria vontade legislado-
ra.”
163
Não há um fato histórico que justifique a necessidade de um contrato, o que existe é
uma idéia da razão que norteia a ação política e que justifica a formação racional do Esta-
do
164
, pois Kant pretendeu “afastar toda dimensão arqueológica e toda metáfora da origem
histórica, dando ao contrato o estatuto de simples critério jurídico”
165
. A idéia do contrato e
do Estado para Kant, parte de uma inversão das idéias jusnaturalistas de sua época, virando
de avesso o esquema tradicional do contrato; Kant não buscou um fato no passado que jus-
tifique o Estado hoje, recusando qualquer espécie de legitimação retrospectiva: não é o pas-
sado, mas antes o futuro, que serve de base para justificar o presente da República
166
. O
Estado, como mostra Herb, não é mais justificado pelo esquema arqueológico do contrato,
pelo passado imemorial ( os quais Kant sempre recusou), mas pelo futuro que irradia espe-
160
Cf. SALGADO, J. C. A idéia de Justiça em Kant. p. 295.
161
Cf. SALGADO, J. C. A idéia de Justiça em Kant. p. 295.
162
Cf.SALGADO, J. C. A idéia de Justiça em Kant. p. 295.
163
KANT, I. MC. p. 145.
164
Cf. BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Imanuel Kant. p. 124.
165
HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da História em Hobbes e Kant. p. 76
166
BORRIES, K. Kant al Politiker – uns Gesenschaftslehre des Kritizismus. Leipzig, 1928. Apud. HERB, K.
O futuro da República: sobre a leitura contratualista da História em Hobbes e Kant. p. 76.
65
rança na humanidade e consolida os Estados como agentes pacificadores. A esperança do
melhor torna os Estados mais próximos da realização da paz, antecipa a justificação do pre-
sente, tornando as instituições mais perenes ao direito e ao republicanismo, facilitando,
conseqüentemente, o cumprimento de acordos internacionais e a criação de uma Federação
de nações.
Kant ao buscar no futuro a inspiração para o atual, demonstra que a política nem
sempre deve ser construída olhando para o passado, mas olhando para a racionalidade polí-
tica que está à frente, pois o olhar sobre o passado muitas vezes reforça o dogmatismo e
favorece a cristalização das instituições, impedindo o progresso em direção ao melhor. Kant
não confia somente na ação humana imediata, mas no plano oculto existente na história,
abarcando republicanismo e natureza, conforme demonstrado por Herb
167
no primeiro ca-
pítulo.
A filosofia política de Kant encontra n’ Paz Perpétua um ponto de inflexão em rela-
ção às concepções do surgimento do Estado desenvolvido até a sua época. Kant difere dos
contratualistas, ao considerar o Estado como uma pessoa moral, e dessa forma com obri-
gações morais com outros Estados, com os quais está obrigado a se relacionar devido a
forma limita da terra.
A guerra põe em risco a existência do Estado e a sobrevivência da própria humani-
dade. Kant, diferentemente das razões dadas pelos filósofos contratualistas defende n’A
Paz Perpétua, a existência do Estado tendo por base os princípios da paz e da liberdade.
Tais princípios promoveriam gradualmente a paz interna do Estado e posteriormente entre
os Estados, sendo que ambas as estruturas deveriam estar orientadas solidamente pelo ideal
republicano e cosmopolita. Kant atribuiu ao aparelho do Estado um papel fundamental na
instauração da paz, sendo que somente a sua existência garantirá a liberdade dos homens.
No Estado encontra-se a possibilidade de efetivação da liberdade, após intensos antagonis-
mos manifestados entre os homens, sendo que o mais grave de todos é a guerra. No entanto,
mesmo após o estabelecimento do Estado, os antagonismos continuarão a existir, mas não
deverão conduzir à guerra, pois o direito já disciplinou os indivíduos e a razão disseminada
na sociedade interpela em favor da paz.
167
Cf. HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da História em Hobbes e Kant. p. 82.
Citação da página 44.
66
Para Kant, a forma de organização do Estado que expressa plenamente a liberdade e
autonomia do homem é o estado republicano. A liberdade é um bem que não só a constitui-
ção existente no Estado deve buscar, mas todas as leis que nele existam, devem direcionar-
se no sentido de garanti-la. E para isso o Estado deve promover o Direito, que também tem
seus princípios decorrentes da idéia de liberdade. Kant assim define o Estado na Metafísica
dos Costumes:
“ Um Estado (Civitas) é a união de uma multidão de seres humanos submetida a leis de di-
reito. Na medida em que estas são necessárias a priori como leis, isto é, na medida em que
procedem espontaneamente de conceitos de direito externo em geral (...), a forma de um Es-
tado é aquela de um Estado em geral, ou seja, do Estado em idéia como deve ser de acordo
com puros princípios do direito. Essa idéia serve como norma para qualquer associação real
numa república (e, por conseguinte, serve como uma norma para sua constituição inter-
na.”
168
.
O homem no estado de natureza possui uma aparente liberdade
169
, a qual não está
assegurada devido a ausência do direito. Kant percebeu que para estabelecer um Estado,
mesmo um “povo de demônios” poderá fazê-lo, desde que obedeça a lei, ou seja, mesmo
“um homem mau, pode ser um bom cidadão, num bom estado”
170
. Isso demonstra o por-
quê do preceito obrigatório da razão ordenando a criação do Estado, pois no estado de na-
tureza o homem está propenso à destruição do semelhante, mas ele abdica de sua aparente
liberdade em favor da constituição de um Estado.
O salto empreendido por Kant em relação às teorias jusnaturalistas foi a percepção
de que os Estados, embora sustentados internamente pelo contrato social, fundamental para
a paz interna, poderiam perder sua estabilidade no plano interestatal, que não é regulado
pelo direito, criando assim, uma arena livre para incursões violentas de um Estado sobre
outro, caracterizando-se novamente, uma condição selvagem. Com razão, Kant afirmava
que os Estados nas suas relações externas vivem num estado não-jurídico
171
, ou seja, estão
no estado de natureza, onde prevalece o recurso da força do mais forte. A solução apresen-
tada por Kant é a ampliação do contrato social, quando os Estados decidem “sair do estado
168
KANT, I. MC. p. 142.
169
Assim comenta Kant sobre o estado de natureza: “Tal como Hobbes afirma, o estado de natureza é um
estado de violência e de prepotência e devemos necessariamente abandoná-lo para nos submetermos à coação
das leis, que não limita a nossa liberdade senão para que possa conciliar-se com a liberdade de qualquer outro,
desse modo, com o bem comum”. KANT, I. CRP. p. 604.
170
Cf. KANT, I. PP. p. 146.
171
Cf. BOBBIO, N. Direito e estado no pensamento de Kant. p. 159.
67
sem lei dos selvagens para entrar numa federação das nações
172
. Havendo injustiça e a
guerra entre Estados, é um dever sair dessa condição e formar uma Federação de nações
com o poder de limitar qualquer tipo de ingerência de um Estado sobre o outro. O ideal
republicano inspira a Federação das nações e esta fornece as condições necessárias para a
liberdade e a paz mundial
173
.
2.5. A estrutura jurídica para garantir a paz: direito do Cidadão, das Gentes e Cos-
mopolita
A concepção política de Kant fornece elementos teóricos e práticos abrangentes pa-
ra estabelecer a paz definitiva entre as nações. Tal concepção encontra-se principalmente na
obra “A Paz Perpétua (1795)”. Este texto, central na filosofia jurídico-política de Kant, é
organizado em seis Artigos Preliminares, três Artigos Definitivos e dois suplementos “So-
bre a Garantia da Paz Perpétua” e “Artigo Secreto da Paz Perpétua”, seguido do apêndice
Sobre a discrepância entre a moral e a política a respeito da paz perpétua” . A forma
peculiar como Kant elabora A Paz Perpétua, imitando protocolos diplomáticos e artigos de
constituições, aparenta um experimento prático jurídico e não propriamente um texto filo-
sófico, quando comparado com outras obras do filósofo. De fato as questões apontadas no
texto não são ali aprofundadas; no entanto, a compreensão d’Paz Perpétua completa-se
quando inserida no contexto da filosofia prática kantiana. Deve-se ler A Paz Perpétua ori-
entando-se pelo projeto maior da razão legisladora, que em última análise veta qualquer
possibilidade de agressão entre os povos e ordena a instauração da paz definitiva, a qual é
assegurada somente quando existir uma sociedade que administre universalmente o direi-
to
174
.
Segundo Cavallar, “os artigos preliminares e definitivos desdobram o princípio kan-
tiano do direito – que podemos ler como uma formulação especializada do imperativo cate-
górico – nos planos do Direito Constitucional, do Direito das Gentes e do Direito Cosmo-
172
KANT, I. IHU. p. 17.
173
Segundo Herb, Kant é um filósofo idealista na medida em que recupera uma certa visão utópica da políti-
ca, tal como é descrito nesta passagem: “Para Kant, a utilidade da reflexão filosófica é ainda mais evidente: o
projeto das Luzes é em si mesmo promotor do progresso. Sua filosofia republicana abre uma perspectiva
confiante sobre o futuro da República. Após ter apagado qualquer dimensão histórica do conceito de contrato,
ele o situa numa relação não conflituosa com a realidade histórica. O ideal da República Platônica recupera a
honra. A investigação científica das condições da paz exerce uma tarefa ao mesmo tempo nobre e útil”. In:
HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da História em Hobbes e Kant. p. 83.
174
Cf. KANT, I. IHU. p. 14.
68
polita. A possibilidade de uma paz jurídica universal está ligada a seis condições negativas
e três condições positivas
175
. O desdobramento do direito em Direito Constitucional ou do
Cidadão, no Direito das Gentes ou Federativo e no Direito Cosmopolita, tal como é apre-
sentado n’Paz Perpétua evidencia o primado do direito na realização da paz e elimina qual-
quer possibilidade de uma interpretação metafísica das instituições políticas. Kant vê no
uso prático da razão a única forma para homens e Estados abandonarem o status naturalis.
Os artigos preliminares da paz perpétua entre Estados proíbem: a) o acordo de paz
apenas condicionado b) a destruição da soberania estatal c) a existência de exércitos per-
manentes d) o endividamento com relação a conflitos externos, e) intervenções violentas e
f) um modo desleal de fazer a guerra
176
. Tais artigos apresentam condições específicas a
serem adotadas pelos Estados, excluindo determinados atos contrários à idéia de uma co-
munidade jurídica e possibilitando a existência de uma comunidade pacífica de povos li-
vres
177
.
Os artigos definitivos são assim elaborados por Kant: 1) A constituição em cada Es-
tado deve ser republicana
178
, 2) O direito das gentes deve fundar-se numa federação de
estados livres
179
, 3) O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade
universal
180
. Nos artigos definitivos estão subsumidos os elementos para o estabelecimento
da paz definitiva, sendo que outros textos de Kant remeter-se-ão às idéias fundamentais ali
contidas: republicanismo, federação dos povos e cosmopolitismo.
Os três artigos definitivos determinam o estado de direito em três esferas ou áreas,
sendo que o direito dos Cidadãos trata das relações entre os cidadãos de um Estado; o di-
reitos das Gentes trata do direito entre os Estados e o direito Cosmopolita trata do direito
do cidadão pertencente a uma nação diante de outra nação. Considerando o direito público
dessa forma, fica claro que
só quando predominar um estado de direito público em todas as
três áreas, que assegure a cada indivíduo ou a cada estado o seu direito, poderá haver paz.
Os três artigos definitivos do tratado contém os princípios jurídicos para a configuração de
175
CAVALLAR, G. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano. p. 79.
176
Cf. KANT, I. PP. 120 ss.
177
Cf. CAVALLAR, G. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano à Paz Perpétua. p. 78.
178
KANT, I. PP. p. 127.
179
KANT, I. PP. p.132.
180
KANT, I. PP. p 137.
69
cada nível de relações”
181
. Pensar uma realidade pacífica é pensar o direito garantido ao
cidadão, no âmbito da nação e na federação de nações. O postulado da paz está subjacente a
todos os artigos definitivos e apóia-se na inter-relação entre eles para realizar a paz, con-
forme é analisado por Kant:
“ Todos os homens que entre si podem exercer influências recíprocas devem pertencer a
qualquer constituição civil. Mas toda a constituição jurídica, no tocante às pessoas que nela
estão, é 1) Uma constituição segundo do direito político (Staatsbürgerrecht) dos homens
num povo (ius civitatis); 2) Segundo o direito das gentes (Volkerrecht) dos Estados nas suas
relações recíprocas (ius gentium); 3) Uma constituição segundo o direito cosmopolita (welt-
büergerrecht), enquanto importa considerar os homens e os Estados , na sua relação externa
de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmo-
politicum).”
182
Na conclusão da Doutrina do Direito, Kant afirma que a razão moralmente prática
pronuncia no homem um veto irreversível: “não deve haver guerra alguma”
183
, acrescen-
tando que o objetivo último do direito e suas formas práticas é estabelecer a paz. A visão
abrangente do direito para Kant, configurada sob a forma do direito público, das gentes e
cosmopolita abre caminho para a justiça e a paz. Assim diz Kant:
“Pode-se afirmar que estabelecer a paz universal e duradoura constitui não apenas uma par-
te da doutrina do direito, mas todo o propósito final da doutrina do direito dentro dos limites
exclusivos da razão, pois a condição de paz é a única condição na qual o que é meu e o que
é teu estão assegurados sob as leis de uma multidão de seres humanos que vivem próximos
uns dos outros e, portanto, submetidos a uma constituição
184
.
Passaremos agora a trabalhar os Três Artigos Definitivos separadamente, sendo que
neste capítulo desenvolveremos o Primeiro Artigo Definitivo e no terceiro capítulo serão
analisados o Segundo e Terceiro Artigos Definitivos.
2.6 A constituição republicana e o “puro conceito do direito”
Kant considerou, como vimos, o Estado como uma pessoa moral, o que poderia ser
chamado hoje de pessoa jurídica , estando obrigado a relacionar-se com outros Estados.
181
CAVALLAR, G. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano à Paz Perpétua. p. 84.
182
KANT, I. PP. p. 127.
183
KANT, I. MC. p. 194.
184
KANT, I. MC. p. 195.
70
Em outra analogia, a insociável sociabilidade que se manifesta entre os homens, manifesta-
se também entre os Estados. A idéia do Estado como pessoa moral e da insociável sociabi-
lidade fazem parte da justificativa da constituição republicana, a única capaz de administrar
o direito e manter a liberdade dos indivíduos e dos Estados. Além da preocupação em fun-
damentar a existência do Estado e de ver nele o fundamento da liberdade, Kant procura
estabelecer as bases para evitar a guerra e assim não comprometer a própria constituição do
Estado.
A entrada no estado civil ocorre a partir de um imperativo categórico, pois a razão
assim impeliu o homem a realizar a saída do estado de natureza. No entanto é fundamental
que os Estados tenham se organizado de forma republicana, pois esta forma é a única que
está de acordo com a razão e funda-se no puro conceito do direito, tal como Kant expressou
no Primeiro Artigo Definitivo. O Estado organizado a partir de uma constituição republica-
na
185
evidencia que ela é a única forma que pode levar a humanidade a alcançar a paz defi-
nitiva, do contrário permanecerão as guerras, com intervalos de paz. Para Kant, a constitui-
ção republicana é a base do processo de estabelecimento da federação de nações, pois esta
fundada na liberdade jurídica.
A constituição fundada, em primeiro lugar, segundo os princípio da liberdade dos mem-
bros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os
princípios da dependência de todos em relação a uma única legislação comum (enquanto
súbditos); e em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cidadãos) é
185
Kant utilizava o vocábulo república para designar os regimes políticos baseados na divisão dos poderes. A
recusa em utilizar o termo democracia deve-se ao caráter negativo dessa palavra no século XVIII, a qual
despertava temores quanto a uma eventual tirania da maioria em detrimento dos direitos individuais, tal como
podemos observar nas concepções de Estado apresentadas por Kant: “Para não se confundir a constituição
republicana com a democrática (como costuma acontecer), é preciso observar o seguinte. As formas de um
Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Esta-
do, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efetivamen-
te a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um
só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia,
aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma
regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no ato da vontade geral pela qual a massa se torna
um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido a constituição é ou republicana, ou
despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo;
o despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte,
a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. Das três formas de Estado, a demo-
cracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo sobre e, em todo o caso, também
contra um (que por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos,
decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade”. In: KANT. PP. p.
130.
71
a única que deriva do contrato originário, em que se deve fundar toda a legislação jurídica
de um povo (...).”
186
Para Kant, a constituição republicana é proveniente de uma idéia da razão, sendo a
única a permitir a liberdade civil e a igualdade entre os homens perante a lei. A constituição
republicana corresponde à idéia de direito dos homens e de justiça, permitindo a realização
efetiva de ambos através de acordos coletivos e da idéia de representatividade no poder
187
.
A constituição republicana está em íntima relação com a liberdade política dos cidadãos
diante de compromissos assumidos publicamente. Tal constituição não exclui os cidadãos
de participarem de escolhas, como quando se exige o consentimento dos cidadãos para de-
cidir “se deve ou não haver guerra”
188
. No Conflito das Faculdades Kant ratifica a idéia de
uma constituição republicana como única forma de impedir a guerra:
“A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural dos homens, a saber,
que os que obedecem à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legisladores, está sub-
jacente a todas as formas políticas, e o Estado que, concebido em conformidade com ele,
graças a puros conceitos racionais, se chama um ideal platônico (respublica noumenon), não
é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda a constituição civil em geral, e afasta
toda a guerra. Uma sociedade civil organizada em conformidade com ela é a sua representa-
ção, segundo leis de liberdade, mediante um exemplo na experiência (respublica phaeno-
menon). E só pode conseguir-se penosamente após múltiplas hostilidades e guerras; mas a
sua constituição, uma vez adquirida em grande escala, qualifica-se como a melhor entre to-
das para manter afastada toda a guerra, destruidora de todo o bem (...).”
189
Kant, no entanto, reconhece as dificuldades para os homens ingressarem numa re-
pública, pois mesmo estando num sistema jurídico, os homens não cessariam de manifestar
as suas disposições naturais, persistindo a “insociável sociabilidade”, a qual poderia levar
os homens a guerra e conseqüentemente ao fim do Estado. Assim escreve Kant:
“... a constituição republicana é a única perfeitamente adequada ao direito dos homens, mas
é também a mais difícil de estabelecer, e mais ainda de conservar e a tal ponto que muitos
afirmam que deve ser um Estado de anjos porque os homens, com suas tendências egoístas,
não estão capacitados para uma constituição de tão sublime forma.”
190
186
KANT. PP. p. 146.
187
TERRA, R. R. Política Tensa. p. 70.
188
KANT, I. PP. p. 129.
189
KANT, I. CF. p. 108.
190
KANT, I. PP. p. 146.
72
A conversão moral não é esperada por Kant na constituição do estado republicano,
pois demandaria um longo processo, no entanto, o cumprimento das leis deve ser estabele-
cido imediatamente num Estado e faz-se necessário que todos as cumpram, mesmo para
aquele cidadão que não internalizou regras morais. A natureza, novamente, manifesta-se em
prol da organização humana e pragmaticamente orienta os homens a organizarem de forma
republicana, como forma de sobrevivência, independente da validade moral da ação:
“Mas vem então a natureza em ajuda da vontade geral, fundada na razão, respeitada, mas
impotente na prática, e vem precisamente através de tendências egoístas, de modo que de-
penda só de uma boa organização do Estado ( o qual efetivamente reside no poder do ho-
mem) a orientação das suas forças, de modo que umas detenham as outras nos seus efeitos
destruidores ou os eliminem: o resultado para a razão é como se essas tendências não exis-
tissem (...)
191
Para Kant, no exercício da liberdade civil, os homens encaminhar-se-ão para a li-
berdade moral, sendo que o direito vai limitar a liberdade de cada um à condição de sua
concordância com a liberdade de todos, segundo uma lei universal. Esta estrutura conduz a
humanidade seguramente no caminho da razão e orienta a pacificação dos cidadãos, conse-
qüentemente, também entre Estados igualmente estruturados de forma republicana, mesmo
que moralmente ainda não haja tido a conversão esperada: “assim o homem está obrigado a
ser um bom cidadão, embora não esteja obrigado a ser moralmente um homem bom. O
problema do estabelecimento do Estado, por mais áspero que soe, tem solução, inclusive
para um povo de demônios (contanto que tenham entendimento)”
192
. Kant, ao afirmar que a
conversão moral não é esperada
193
, apenas está colocando como necessidade imediata a
constituição de um Estado republicano. Kant também concebe o Estado como uma organi-
191
KANT, I. PP. p. 146.
192
KANT, I. PP. p. 146
193
Este tema abordado em passagens anteriores é recorrente na filosofia prática kantiana. Como vimos, obvi-
amente não significa que a filosofia prática de Kant não busque a conversão moral dos homens, a qual estaria
configurada numa comunidade ética: “O melhoramento moral precisa começar pela pessoa humana, mas não
se esgota nele. Kant tem como objetivo alcançar o melhoramento de todos os indivíduos que compõem a
sociedade. Deve-se começar a melhoria moral pela pessoa humana a fim de através dela, atingir toda a socie-
dade. Este modelo ideal de sociedade Kant denominou de “comunidade ética”. (...) Kant deixa claro, pois,
que a própria razão humana dá ao gênero humano o modelo ideal que deve ser seguido para a efetivação da
comunidade ética, com a finalidade última a ser buscada para a realização da pessoa humana em seu meio
social. A moralidade não é um fim em si mesmo no indivíduo, mas é uma ação para o social. A realização
deste objetivo, conforme Kant, é o mais alto grau de bem moral que podemos almejar e, por isso, nele deve-
mos empreender todo nosso esforço. In: HAAG, N. R. A antropologia moral e a consciência legisladora n’a
Religião dentro dos limites da simples razão de I. Kant. p. 338.
73
zação racional, independente das inclinações que afetam o homem, tanto boas como más.
Diz Kant:
“Ordenar uma multidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjunta-
mente leis universais, às quais porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e es-
tabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas
suas disposições privadas, se contêm no entanto reciprocamente, de modo
que o resultado
da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más.”
194
Já vimos que, para Kant, a entrada no estado civil ocorre a partir de um imperativo
categórico, pois a razão assim impeliu o homem a realizar a saída do estado de natureza. No
entanto é fundamental que os Estados tenham se organizado de forma jurídica e adotado o
regime republicano como forma de governo, pois esta forma é a única que está de acordo
com a razão e emana do conceito puro do direito, conforme é expresso nessa passagem cen-
tral da filosofia jurídico-política kantiana: “A constituição republicana além da pureza de
sua origem, que emana da cristalina fonte do conceito de direito, tem a vantagem de ser
mais propicia para chegar ao fim almejado – a paz perpétua”
195
.
A constituição política deve ser em todos os Estado de forma republicana, pois no
caso de guerra, deverá necessariamente aparecer o consentimento de todos. A guerra pro-
vavelmente não aconteceria, pois as pessoas pensariam, afirma Kant, nas conseqüências
que ela provocaria, ou seja, racionalmente as pessoas não desejam a guerra. As guerras o-
corridas no passado, na sua maioria, foram fruto da ação de soberanos despóticos. O ins-
trumento dado aos cidadãos é a liberdade, conforme afirma Salgado:
“não é, portanto, a espada, mas a liberdade da pena, a livre manifestação do pensamento,
pelo qual se leva ao soberano a convicção da injustiça do Estado despótico e da necessidade
de dobrar-se ao dever que lhe impõe um imperativo categórico: o que o povo não pode deci-
dir sobre si mesmo, não pode o soberano decidir para ele. Esse dever, que caracteriza a ne-
cessidade de organizar o Estado na forma de uma constituição republicana, é tão válido
quanto o dever de se passar da luta do estado natural para a sociedade civil. Kant confia,
pois, na razão como único meio – e eficaz – capaz de promover o progresso ético de uma
sociedade.”
196
.
Quanto às três formas de constituição jurídica relativamente ao número de compo-
nentes e aos limites da associação elas são, em ordem crescente, da simples polis à humani-
194
KANT, I. PP. p. 147.
195
KANT, I. PP. p. 128.
196
SALGADO, J. C. A idéia de Justiça em Kant. p. 301.
74
dade – o jus civitatis, o jus gentium e o jus cosmopoliticum. É indispensável que tais consti-
tuições coexistam e que sejam todas inspiradas e orientadas para o fim último: uma paz
duradoura.
O efeito pacificador produzido pelo direito permite estabelecer o convívio entre os
cidadãos num estado republicano, que apesar de limitar a liberdade de cada um à condição
de sua concordância com à liberdade de todos e segundo uma lei universal, conduz segura-
mente à paz. Kant escreve no Conflito das Faculdades, que “um povo não deve ser impedi-
do por outros poderes de a si proporcionar uma constituição civil, como ela se lhe afigurar
boa; em segundo lugar, a do fim (que é ao mesmo tempo dever), de que só é em si legítima
e moralmente boa a constituição de um povo que, por sua natureza, é capaz de evitar, quan-
to a princípios, a guerra ofensiva - tal não pode ser nenhuma outra a não ser a constituição
republicana” (...)
197
. Enfim, Kant enfatizou o papel fundamental de uma constituição repu-
blicana, pois emana do puro conceito do direito e é capaz de afastar a guerra, fonte de todo
o mal na terra.
2.7. Direito e Paz
Kant defendeu a obediência incondicionada ao direito como forma de garantir a
harmonia entre os cidadãos pertencentes a um Estado e entre os Estados. O amor à humani-
dade não é suficiente para estabelecer o Estado e estabelecer uma Federação de povos, e da
mesma forma “não é a ação moral dos homens que leva à fundação do Estado, mas uma
boa constituição política que promove as condições propícias à ação moral”
198
. A recipro-
cidade entre direito e constituição política garante a liberdade, sendo que ambos devem
estar permanentemente resguardados a fim de que a moralidade e a benevolência desen-
volvam-se plenamente. Diz Kant:
“O amor aos homens e o respeito pelo direito dos homens são ambos deveres; mas aquele é
um dever condicionado; em contrapartida, o segundo é um dever incondicionado, absoluta-
mente imperativo, que quem quiser entregar-se ao suave sentimento de benevolência deve
estar certo de o não ter transgredido.”
199
197
KANT, I. CF. p. 102.
198
GIANNOTTI, J. A. Kant e o espaço da história universal. p. 136.
199
KANT, I. PP. p. 170
75
Kant concebeu as leis jurídicas como leis da liberdade, tendo na estrutura do Estado
o meio para providenciar a efetivação do direito. Essa é única forma para estabelecer a jus-
tiça, mesmo que para isso seja necessário o uso da coerção. Kant não hesitou em afirmar
que direito e faculdade de coagir significam a mesma coisa, sendo que o indivíduo faz parte
ou não de uma comunidade dependendo da sua relação com a lei. O indivíduo que não
cumpre a lei estabelecida sofrerá sanções, podendo ser expurgado do convívio social, para
que a ordem não seja desestabilizada
200
. Quanto mais os cidadãos e Estados adequarem-se
às leis da liberdade promovidas pelo direito, mais rápido será o processo de instauração da
paz
201
. O direito é o meio pelo qual os Estados poderão encaminhar-se a uma ordem pacífi-
ca, sem apelar à formas revolucionárias, as quais são frutos das paixões populares ou da
vontade descontrolada de um soberano
202
.
200
Assim expressa Kant: “Embora se possa duvidar de uma certa maldade radicada na natureza humana dos
homens que convivem num Estado e, em vez dela, se possa com alguma aparência aduzir a carência de uma
cultura ainda não suficientemente desenvolvida (a barbárie) como causa das manifestações do seu modo de
pensamento contrárias ao direito, contudo, nas relações externas dos Estados entre si essa maldade manifesta-
se de um modo patente e incontestável. No interior de cada Estado, encontra-se encoberta pela coação das leis
civis, pois a tendência dos cidadãos para a violência recíproca é ativamente inibida por um poder maior, a
saber, o do governo, e assim não só fornece um verniz moral (causae no causae), mas também em virtude de
impedir a erupção moral ao respeito pelo direito. Com efeito, cada um crê por si mesmo que consideraria
sagrado o conceito de direito e acataria com fidelidade se pudesse esperar o mesmo de todos os outros – o
que, em parte, o governo lhe garante; deu-se pois, assim um grande passo para a moralidade (se bem que
ainda não um passo moral, ao aderir-se a este conceito de dever por si mesmo, sem tomar em conta a recipro-
cidade. Mas visto que cada um na sua boa opinião acerca de si próprio pressupõe, no entanto, uma má dispo-
sição em todos os outros, o juízo que mutuamente têm de si mesmos é que todos, no tocante à realidade, pou-
co valem (pode ficar sem explicação a origem de tal juízo, já que não é possível culpar a natureza do homem
como um ser livre). Mas dado qu o respeito pelo conceito de direito, a que o homem de nenhum modo se pode
subtrair, sanciona do modo mais solene a teoria da sua capacidade para se lhes adequar, cada um vê então
que, da sua parte, deveria agir em conformidade com o direito, seja qual for o modo como os outros o queiram
observar”. In: KANT, I. PP. p. 158
201
Kant assim diz: “Seremos inevitavelmente compelidos a essas conseqüências desesperadas, se não admi-
tirmos que os princípios puros do direito têm realidade objetiva, isto é, podem levar-se a cabo; e conseqüen-
temente, com eles devem lidar também o povo no Estado e, além disso, os Estados uns em relação aos outros,
seja qual for a objeção em contrário que a política empírica possa levantar. A verdadeira política não pode,
pois, dar um passo sem antes ter rendido preito à moral, e embora a política seja por si mesma uma arte difí-
cil, não constitui no entanto arte alguma a união da mesma com a moral; pois esta corta o nó que aquela não
consegue desatar, quando entre ambas surgem discrepâncias. O direito dos homens deve considerar-se sagra-
do, por maiores que sejam os sacrifícios que ele custa ao poder dominante; aqui não se pode realizar uma
divisão em duas partes e inventar a coisa intermédia (entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente
condicionado, mas toda a política deve dobrar os seus joelhos diante do direito, podendo, no entanto, esperar
alcançar, embora lentamente, um estádio em que ela brilhará com firmeza”. In: KANT, I. PP. p. 164
202
Kant é contra o direito de resistência do povo, assim como declarou inicialmente a Revolução Francesa
contrária ao direito, mas simpatizou com ela, numa espécie de legitimação a posteriori, conforme comenta
Kersting: “Só quando se usa o sucesso como legitimação a posteriori, o alívio por causa da vitória provoca
uma confusão lógica. E ela aumenta em direção a uma perturbação moral quando a reminiscência do caráter
ilegítimo de toda iniciativa é vista, diante do ditador derrubado, como inconveniente e um desmancha-
prazeres desagradável”. In: KERSTING, W. Hobbes, Kant, a Paz Universal e a Guerra contra o Iraque”. p. 9.
76
O ensinamento político de Kant pode resumir-se numa frase: governo republicano e
organização internacional, tendo como pressupostos, o direito e a paz perpétua. Nas rela-
ções internas existentes nos Estados e na relação entre Estados, é necessário sair do estado
de natureza e alcançar uma condição legal e pacífica. Por menor que seja o grau de direito
num Estado, será melhor do que se nada tivesse, pois mesmo o indício do direito aponta
para um futuro melhor. É a juridicização do Estado que abre caminho para a paz, tal como
Kant expressou n’Paz Perpétua:
“São leis permissivas da razão conservar a situação de um direito público, viciado pela in-
justiça, até por si mesma estar maduras para uma transformação plena ou se aproximar da
sua maturação por meios pacíficos; pois qualquer constituição jurídica, embora só em grau
mínimo seja conforme ao direito, é melhor do que nenhuma (...).”
203
Se o direito deve ser observado no aspecto privado, tanto mais ele deverá ser segui-
do nas Constituições dos Estados, pois tanto a paz interna do Estado quanto a paz externa
dependem do cumprimento de acordos jurídicos. A violação do direito abre caminho para a
anarquia no âmbito do Estado e conduz à guerra entre Estados:
“os homens não podem subtrair-se ao conceito de direito nem nas suas relações privadas,
nem nas públicas, e não se atrevem a fundar a política abertamente só nas manobras da astú-
cia e, por conseguinte, a recusar todas a obediência ao conceito de um direito público (o que
é sobretudo surpreendente na obediência ao direito das gentes (...).”
204
A paz e o direito são os fundamentos sólidos dos Estados republicanos. A paz não
será alcançada, se não percorrer o caminho jurídico; o direito, por sua vez, carecerá de fun-
damentação se não tiver no horizonte a construção da paz. Kant afirmava que a instituição
universal e perpétua da paz é a finalidade última e completa da doutrina do direito nos limi-
tes da simples razão
205
. Se considerarmos a propensão humana às inclinações, à realização
do interesse próprio e ao conflito, é esclarecedora a afirmação de Kant de que “a melhor
constituição é aquela na qual não são os homens que têm poder, mas as leis”
206
.
203
KANT, I. PP. p. 155.
204
KANT, I. PP. p. 159.
205
Cf. KANT, I. MC. p. 196.
206
KANT, I. MC. p. 196.
77
CAP 3. A FEDERAÇÃO DOS POVOS E O IDEAL COSMOPOLITA: LIBERDADE
E PAZ NO HORIZONTE DA POLÍTICA
3.1. A constituição de uma sociedade jurídica universal como ideal supremo do porvir
histórico e o Leviatã hobbesiano
Os filósofos contratualistas do séculos XVII e XVIII preocuparam-se com a funda-
mentação e a legitimidade do Estado moderno, tendo por base idéia de um contrato social
estabelecido entre os cidadãos. O contrato avalizava a existência de uma estrutura superior
comandada por um soberano, que poderia ser o próprio povo. Os contratualistas defendiam
a idéia da constituição do estado civil como forma de solucionar o problema das relações
entre os indivíduos no estado de natureza, caracterizado pela irresponsabilidade e pela au-
sência de segurança, pela falta de garantia da posse dos bens, e principalmente, pela viola-
ção da liberdade individual e da própria vida. O evento do contrato marca o triunfo do di-
reito sobre o estado não- jurídico
207
.
As concepções dos principais filósofos contratualistas, Hobbes, Locke e Rousseau,
foram essenciais para a instituição do Estado moderno e predecessoras da atual concepção
do estado democrático de direito, amplamente difundido e valorizado nas sociedades oci-
dentais. Hobbes, Locke e Rousseau decodificam o anseio explícito dos indivíduos por or-
dem, segurança e autonomia, e reivindicam o direito de constituir um Estado que garanta a
paz e evite a guerra (Hobbes), a conservação da vida e a inalienabilidade da propriedade
(Locke) e a autonomia democrática do cidadão (Rousseau).
Kant, sendo tributário do contratualismo e do jusnaturalismo, incorporou à sua filo-
sofia política idéias como inviolabilidade do poder do soberano, invariabilidade da posse
jurídica e o primado da liberdade, sendo este o principal objetivo ao qual deve visar o Esta-
do. O contrato para Kant tem caráter jurídico-político, sendo que ele possibilita a organiza-
ção do Estado e deverá estar voltado ao estabelecimento de uma federação de Estados, sen-
do que ambas as estruturas têm a finalidade da pacificação interna e externa. Sendo o objeto
de nosso estudo as questões de guerra e paz, por certo, o filósofo inglês Thomas Hobbes
207
Cf. BOBBIO, N. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. p. 153.
78
mantém uma interlocução maior com Kant do que os demais filósofos. As semelhanças e
diferenças entre Kant e Hobbes no campo da guerra e da paz são fundamentais para o en-
tendimento da política na Era Moderna e Contemporânea.
Hobbes é o “herói fundacional da política da Era Moderna”
208
, preocupou-se com o
caráter científico da política e afastou-se das concepções do aristotelismo político, o qual
pregava uma antropologia da cooperação política, a unidade entre natureza e política, a
teoria da vida boa
209
. Aristóteles via a política como um mundo de pessoas boas e preocu-
padas com o cotidiano da polis, no tocante a orientação moral, a qual deveria prevalecer nas
relações entre os cidadãos. Hobbes, diferentemente, propôs uma concepção política baseada
no conflito econômico, em estratégias de maximização da razão instrumental, na teoria da
autoconservação do indivíduo, que em sua essência é a-social, desprovido de vínculos rela-
cionais, e conta somente consigo mesmo e com a sua inteligência; em Hobbes, o Estado é
o instrumento necessário para compensar os déficits de coexistência humana
210
.
Hobbes atribuiu à política o status de ciência e exigiu racionalidade no entendimen-
to da guerra, a qual se origina da ausência de “uma ciência da paz, uma ciência que estude
as leis do comportamento humano, as causas da guerra e da paz, bem como as regras da
vida dos cidadãos ...”
211
. O Leviatã é o Estado absoluto, a materialização perfeita de um
instrumento político-científico que permite aos homens a convivência pacífica; embora
marcada pela servidão ao soberano é a máquina perfeita para compensar a natureza selva-
gem e rude do homem. Hobbes primeiramente suprime a máxima liberdade selvagem dos
indivíduos e declara: ou a liberdade ou o Estado, e em seguida complementa: sem Estado,
não há liberdade. Esse aparente paradoxo em torno da liberdade é fruto da opção de Hobbes
pelo Estado em detrimento da liberdade máxima primária, onde a ausência de leis gerava
uma condição de agressão traduzida numa “guerra de todos contra todos
212
. No estado de
natureza não existia uma definição de justo e injusto, e tampouco, a garantia da própria
liberdade, o que leva a concluir que a verdadeira liberdade está no Estado. A passagem do
estado de natureza para a sociedade civil ocorreu pela submissão ativa dos homens diante
208
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 581.
209
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 586.
210
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 586.
211
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 587.
212
HOBBES, T. Leviatã. p. 77.
79
do poder supremo do soberano, tornando-se súditos livres em um Estado
213
. A existência do
contrato não significou a suspensão completa da natureza violenta e agressiva dos homens,
a qual continuou a existir, mas sob coação legítima do Leviatã, foi abrandada e controlada,
para não colocar em risco a liberdade alheia, o que significaria um retorno ao estado de
natureza.
A natureza imperfeita dos humanos não será o principal motivo dos contínuos em-
bates violentos, tampouco a avidez pelo poder, o fanatismo religioso ou moral, as situações
injustas, as tensões sociais ou outras causas de ordem material; para Hobbes, o que falta é
uma filosofia moral e política de caráter científico que proponha soluções consistentes para
todas as situações anteriormente mencionadas, que são reais e impedem um Estado legal-
mente constituído
214
. Segundo Kersting, “Hobbes entende sua filosofia política como ciên-
cia do método da paz que revela as condições de um convívio duradouro não-violento e
define os caminhos de sua feliz realização”
215
. A solução hobbesiana é radical e cobra do
cidadão a total obediência ao acordo que suprime a liberdade, para dá-la posteriormente em
forma de proteção onipresente do Estado. O filósofo inglês é um pacifista, sendo que ele
incumbiu à política a função de adaptar as deficiências da natureza humana ao convívio
social, sem, no entanto, domesticar a condição humana, mas apelando para a racionalidade
que a distingue dos demais animais. O contrato é fruto da racionalidade científica, a qual
ordena a realização das condições para a realização da paz. A guerra é uma predisposição
natural dos homens e isto os torna dependentes de um senhor (soberano) que coloque fim às
adversidades entre si; dessa forma, a imposição do soberano vai ao encontro da vontade
racional dos indivíduos de por fim aos conflitos.
A teoria de Kant assemelha-se a Hobbes, ao conceber a natureza humana imperfeita,
ardilosa e encarcerada pelo mal radical. O homem é afetado por inclinações violentas que o
conduzem involuntariamente à destruição do outro, à luta pela sobrevivência e à guerra
contínua. Tais predisposições vivem em tensão com o desejo, também puramente humano,
de autoconservação e de viver em paz. Como vimos, essa tensão é denominada por Kant de
insociável sociabilidade. A natureza atribui ao gênero humano artifícios para que ele pro-
213
Cf. HECK, J. Materialismo e Modernidade: ensaios de filosofia política. p. 34.
214
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 588.
215
Cf. KERSTING, W. A fundamentação da filosofia política da Era Moderna no Leviatã. p. 588.
80
grida e realize todas as suas potencialidades, mas esta possibilidade é negada quando preva-
lece a condição selvagem do homem. Sendo assim, a domesticação das inclinações é a so-
lução apresentada por Kant para que haja equilíbrio das disposições humanas. O homem é
afetado mas não é determinado pelas inclinações, sendo passíveis de serem controladas
pelo uso da razão. De certa forma, Kant transpõe esta idéia para o plano político, desdo-
brando-se em outra idéia de igual relevância: o controle das vontades individuais e inclina-
ções originam o contrato civil. Este contrato é encenado num espaço público pelos indiví-
duos que esforçam-se em controlar às inclinações e propõem-se em conjunto uma socieda-
de racionalizada e republicana, onde as leis têm o poder e não os homens
216
. A renúncia das
inclinações é uma determinação da razão, assim como a renúncia da liberdade selvagem é
uma opção racional feita à luz do entendimento racional.
O fim de todas as coisas reservado à humanidade possui diferenças substanciais
entre o teórico do contrato leviatânico e o filósofo da esperança: Hobbes vê a guerra e des-
truição no fim dos tempos, Kant vê a paz como o fim da história e sinal imanente do pro-
gresso para o melhor. Vimos que o summus bonum da política hobbesiana é a paz social,
transfigurada na figura do Leviatã como instituição promotora da ordem social e com fins
pacificadores. O pessimismo teórico de Hobbes tem origem na própria dinâmica populacio-
nal humanidade: a superpopulação é uma ameaça às gerações futuras; a escassez de espaço
leva um crescente número de pessoas a entrarem em conflito, fracassando qualquer possibi-
lidade de uma paz permanente
217
. A superpopulação na terra significaria o agigantamento
dos Estados, os quais buscariam os meios necessários para a sobrevivência de seus súditos,
originando guerras constantes entre os próprios indivíduos e principalmente entre Estados.
Os recursos tornando-se cada vez mais escassos motivariam investidas violentas de uma
nação sobre a outra, pois como afirma o filósofo “ quando toda terra estiver superpovoada,
então o último remédio é a guerra, que trará aos homens ou a vitória ou a morte”
218
.
Hobbes não previu a instituição de um poder além do Leviatã capaz de abarcar os
diversos Estados num acordo comum sobre os compromissos quanto aos limites territoriais
e a disponibilidade de bens materiais, mas simplesmente vê o horror da guerra como fim
último da humanidade. O poder do Leviatã, primoroso ao apaziguar os conflitos individuais
216
Cf. KANT, I. MC. p. 196.
217
Cf. HERB, K. O futuro da República: sobre a leitura contratualista da história em Hobbes e Kant. p. 79.
218
HOBBES. Leviatã. p. 206.
81
e instituir um Estado baseado no poder ilimitado do soberano, parece ser incapaz de impe-
dir que soberanos se entreguem a conquista e a busca insaciável de bens materiais disponí-
veis nos lugares mais remotos da terra. “A visão de horror que Hobbes tem da humanida-
de”, afirma Herb, “quando ela ultrapassa os limites naturais do crescimento, termina com a
confissão tácita da impotência da razão”, e acrescenta, “nenhuma astúcia da natureza vem
em auxílio de uma razão fraca. A força das coisas acaba por arruinar a perspectiva de uma
paz perpétua”
219
. A falta de um dispositivo para uma paz duradoura entre os Estados pare-
ce ser a maior limitação do Leviatã, o qual é incapaz de criar a paz fora de seu domínio
particular e acompanhar o dinamismo natural da humanidade. Os espaços cada vez meno-
res, a superpopulação, a escassez de recursos e principalmente os limites sócio-políticos do
Leviatã, são os ingredientes para a eclosão de guerras intermináveis.
“Hobbes está longe da idéia de organizar a vida dos soberanos segundo o modelo do Levia-
tã. Isto explica também o fato de que a idéia de ordem jurídica se esgota com o paradigma
do Estado particular. Hobbes não sentiu nenhuma necessidade de relativizar a ordem do Es-
tado do ponto de vista de uma ordem global do direito. O direito dos povos faz com que se
reinstalem os antagonismos que foram superados pelo Leviatã. Mais do que isto ainda: ele
os considera como o destino inevitável do povos”
220
.
O caminho percorrido por Kant parte de uma concepção política baseada no pro-
gresso para o melhor e na esperança histórica, permitindo a solução permanente para os
conflitos e a conservação da espécie. Kant postulou como fim último da humanidade a paz
global, regida por uma ordem jurídica internacional, que pudesse estabelecer um acordo
sobre questões de interesse de todos os Estados. A filosofia kantiana foi a primeira a tema-
tizar e fundamentar o nexo entre a democracia e a paz, mais precisamente, o nexo entre a
democracia e a desistência do recurso à violência na política externa
221
. Os escritos filosó-
ficos de Kant demonstram que no fim da história, o desejo de autoconservação humana
prevalecerá sobre um possível final trágico tal como previu Hobbes.
Kant foi o primeiro filósofo a dar status teórico às relações jurídicas entre Estados,
defendendo uma federação dos povos e o cosmopolitismo como forma de estabelecer a paz
definitiva. Eliminar as guerras no mundo, seja entre Estados republicanos ou entre Estados
ainda não republicanos, mas propensos a entrarem nesta condição é o objetivo da política
219
HERB, K. O futuro da República. Sobre a leitura contratualista da história em Hobbes e Kant. p. 80.
220
HERB, K. O futuro da República. Sobre a leitura contratualista da história em Hobbes e Kant. p. 80.
221
CZEMPIEL, E. O. O teorema de Kant e a discussão atual sobre a relação entre democracia e paz. p. 121.
82
em Kant. No entanto, as dificuldades para estabelecer uma ordem cosmopolita evidente-
mente serão maiores quando algum Estado ainda não alcançou o primeiro estágio, ou seja, a
forma republicana de governar.
Kant elaborou uma teoria sobre os meios que levariam à diminuição constante dos
conflitos até chegar ao momento da paz definitiva, observando a condição na qual os Esta-
dos estão estruturados: vivem essencialmente num estado de guerra, embora nem sempre as
hostilidades estejam presentes
222
. O fato de não haver guerra em determinado momento não
significa que os Estados não estejam preparando-se silenciosamente para um novo conflito.
Esta é uma situação ameaçadora da ordem pública e fere os princípios da reciprocidade no
estabelecimento da paz. O Estado deve promover segurança de um Estado fronteiriço e
vice-versa, mas para isso ambos devem estar orientados, analogamente, pelo princípio que
diz que “todos os homens que entre si podem exercer influências recíprocas devem perten-
cer a qualquer constituição civil”
223
. Se um Estado não for orientado por uma constituição
republicana, a possibilidade da paz é uma quimera. As características da constituição a ser
adotada por todos os Estados permitem o estabelecimento de um direito cosmopolita que
por suas características pacificadoras, deve ser mantido e preservado por todos os homens.
Assim, a divisão do direito em direito público, direito das gentes e direito cosmopolita, é
fundamental para compreender a idéia da paz perpétua, pois reforça a idéia de que todos os
indivíduos e Estados devem estar orientados pelo direito, “pois, se um destes Estados numa
relação de influência física com os outros estivesse em estado de natureza implicaria o es-
tado de guerra, de que é justamente nosso propósito libertar-se”
224
.
Kant não citou exemplos de nações que já teriam alcançado a forma republicana e
estariam ameaçadas por nações ainda no estágio selvagem, no entanto, constata que quanto
mais esclarecido um Estado maior a possibilidade de estabelecer relações pacíficas com
outros Estados. Na Europa do século XVIII havia uma constante preocupação com a ilus-
tração das pessoas e das instituições políticas, como forma de superar qualquer resquício da
política obscurantista medieval ou da barbárie selvagem dos primeiros povos a habitarem a
terra. Nesse sentido, justifica-se a preocupação de Kant com a idéia racional do contrato, o
qual é recebido por cidadãos igualmente racionais, que percebem a necessidade de compac-
222
KANT, I. PP. p. 126.
223
KANT, I. PP. p. 127.
224
KANT, I. PP. p. 127.
83
tuarem-se em torno de uma idéia válida igualmente para todos, ou seja, o Estado e posteri-
ormente uma Federação de Estados, ambos solidamente orientados pelo direito.
Como vimos, Kant dedicou parte de sua obra a compreender a história humana e
constatou que o gênero humano progride para o melhor. Essa certeza fundamentada por
Kant a partir dos sinais da Revolução Francesa, exige a compreensão do processo de for-
mação da sociedade internacional futura
225
e da própria humanidade como um todo. A pre-
ocupação com o futuro da humanidade é fruto do desejo humano de acomodação e bem-
estar, pois ninguém deseja para o futuro a guerra, mas sim a paz. Kant percebeu que a hu-
manidade ainda não havia definido uma direção e em muitas situações mostrava-se irracio-
nal e destituída de qualquer idéia política ou ética. Essa constatação torna o filósofo de
Königsberg o primeiro a acenar para as questões políticas no plano mundial, delineando
princípios jurídico-políticos de grande relevância na área do direito internacional
226
. Tais
princípios resultam na inter-relação entre o direito das gentes e a idéia de um direito cos-
mopolita, passando pelo direito público e pressupondo que todo indivíduo ao encaminhar-
se pela política racional, torne-se um cidadão do mundo, no sentido de fazer parte de uma
comunidade que tem o tamanho da terra
227
.
O futuro deve ser construído tendo por base um contrato jurídico entre as nações
visando a paz, condição imprescindível para o desenvolvimento e estabilidade da civiliza-
ção humana. Bobbio afirma que a paz universal torna-se um ideal moral da humanidade e o
agir em conformidade com esta idéia torna-se um dever para o homem, independentemente
se poderá e quando será realizado de fato
228
. A sociedade jurídica universal, no formato de
uma federação dos povos, possibilita gradativamente aos indivíduos realizarem todas as
suas predisposições; portanto, torna-se imperativo o desenvolvimento de uma sociedade
jurídica universal para que o desenvolvimento da história humana aconteça
229
. Na verdade,
há uma relação de reciprocidade e complementariedade entre o desenvolvimento das insti-
225
BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Imanuel Kant. p. 153.
226
Nt. Na época de Kant a expressão utilizada para significar as relações entre as nações era direito das gentes
(Volkerrrecht) e ius gentium para expressar o direito dos povos. Rawls na obra “O direito dos Povos” tamm
usa a expressão ius gentium para designar princípios particulares para regulamentar as relações políticas mú-
tuas entre os povos.
227
Cf. KANT, I. PP. p. 140.
228
Cf. BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Imanuel Kant p. 158.
229
Cf. BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Imanuel Kant. p. 158.
84
tuições políticas e o aperfeiçoamento da espécie, quando o objetivo almejado por ambos é a
constituição de uma sociedade pacífica universal.
Feitas estas considerações, apresentaremos adiante as propostas feitas por Kant
para estabelecer a paz a partir de um sistema federativo entre as nações e do direito cosmo-
polita. No segundo capítulo foi apresentado o Primeiro Artigo Definitivo, trabalharemos
agora com o Segundo e Terceiro Artigos Definitivos d’Paz Perpétua, como base das refle-
xões. Kant demonstrará que a adesão à federação é o resultado da ilustração das nações e
não da ingerência de uma nação sobre outra ou o esforço de várias nações sobre outra, a fim
de que esta faça parte da federação. O cosmopolitismo é expresso pelo sentido de pertencer
a uma comunidade política universal que ultrapassa os limites de uma nação.
3.2. A federação dos povos e a realocação do status naturalis (análise do Segundo Ar-
tigo Definitivo)
O otimismo kantiano em relação a espécie humana e os desígnios da humanidade
são marcados pela idéia do constante progresso para o melhor. Mas este progresso é inter-
rompido, quando se constata que os Estados ainda não afastaram a possibilidade de entrar
em guerra e vivem preparando-se para este acontecimento. Os Estados, mesmo tendo pas-
sado por diversas guerras e terem se organizado de forma republicana, ainda demonstram
insuficiência em garantir a paz externa, pois falta-lhes algo que faça a medião entre si.
Certamente, as dificuldades tornam-se tanto maiores quanto mais num Estado vigorar o
despotismo e resquícios de uma época selvagem, ou seja, um Estado refratário ao republi-
canismo. Kant é enfático ao afirmar que todas as conquistas feitas pela humanidade no
campo do direito e da política, alcançadas ao preço do esforço de gerações de homens, po-
dem ser desfeitas por guerras internas e ou pela irrupção de guerras entre Estados. A digni-
dade humana consiste em buscar a paz, a guerra é a antítese do progresso humano, confor-
me diz Kant:
Em nenhum lugar a natureza humana aparece menos digna de ser amada do que nas rela-
ções mútuas entre os povos inteiros. Nenhum Estado, em relação a outro, se encontra um só
instante seguro quanto à sua independência ou propriedade. À vontade de se subjugarem uns
ao outros ou de empequenecer o que é seu está aí sempre presente e o armamento para a de-
85
fesa, que muitas vezes torna a paz ainda mais opressiva e mais prejudicial para a prosperi-
dade interna do que a própria guerra, jamais pode afrouxar
230
.
A violência do status naturalis foi suplantada pelo surgimento do Estado, que ani-
quila os meios possíveis para o surgimento de uma guerra interna entre os cidadãos. Desde
então, é dever do soberano zelar pela ordem interna do Estado, cabendo-lhe o uso da coer-
ção, a qual é legitimada pelo direito. No entanto a ausência de um poder soberano no plano
mundial aliado a desigualdade de poder entre Estados, favorece o surgimento de conflitos
entre os Estados vizinhos ou mesmo distantes, por razões como a disputa por territórios, a
obtenção de bens materiais ou a resolução de querelas históricas. A única solução que resta
aos Estados, como forma de acabar definitivamente com as guerras é ingressarem numa
federação que congregue paulatinamente todas as nações, de acordo com uma constituição
cosmopolita e que tenha sempre em vista a superação da violência.
Kant constatou que a violência entre Estados nada mais é do que a reprodução do
status naturalis ultra dimensionado no plano global, sendo que a resolução dos conflitos é
muito mais complexa daqueles encontrados no interior dos Estados. Por outro lado, a es-
trutura interna do Estado é colocada em risco, pois “o problema do estabelecimento de uma
constituição civil perfeita depende do problema da relação externa legal entre Estados, e
não pode ser resolvido sem que este último o seja”
231
. Não há como garantir o perfeito fun-
cionamento de um Estado quando os vizinhos ainda vivem sob formas de governo que não
visam o estabelecimento de uma ordem jurídica universal pacífica.
Se a guerra foi um dispositivo da “insociável sociabilidade” humana necessária à
formação das instituições políticas e resultou em avanços para a humanidade, a razão agora
ordena o cessar definitivo da guerra. Kant ressaltou que os avanços da humanidade nem
sempre estão perceptíveis aos olhos do indivíduo, que se atém ao presente e não tem condi-
ções de compreender os movimentos operados pela natureza em prol da construção da li-
berdade. A federação de Estados é fruto da racionalização sobre os atos provocados pela
insociável sociabilidade:
“a miséria resultante das guerras permanentes, em que os Estados procuram uma e outra vez
humilhar ou submeter-se entre si, deve finalmente levá-los, mesmo contra vontade, a ingres-
sar numa constituição cosmopolita; ou então, se um tal estado de paz universal (como várias
230
KANT, I. TP. p. 100.
231
KANT, I. IHU. p. 16.
86
vezes se passou com Estados demasiado grandes), é, por outro lado, ainda mais perigoso pa-
ra a liberdade, porque suscita o mais terrível despotismo, esta miséria deve, no entanto com-
pelir a um estado que não é decerto uma comunidade cosmopolita sob um chefe, mas é, no
entanto um estado jurídico de federação, segundo um direito das gentes concertado em co-
mum.”
232
Kant defendeu a formação de uma federação cosmopolita formada por Estados regi-
dos pelo direito das gentes e não esperava uma vontade explícita de adesão por parte dos
Estados. A adesão seria fruto de uma percepção racional sobre os malefícios da violência e
das guerras, as quais interrompem as conquistas políticas e materiais de cada Estado, mes-
mo daqueles que ainda não aderiram ao sistema republicano. Kant percebeu que a ausência
de uma estrutura internacional abre caminho para a violência entre Estados, reproduzindo
em escala global as injustiças existentes no estado de natureza, e atentando contra a exis-
tência da própria espécie. Seguramente esta não é a principal característica humana, mas
pelo contrário, é próprio do ser humano dar continuidade a espécie e melhorar cada vez
mais a sua forma de vida sobre a terra.
O Estado considerado como uma pessoa moral está necessariamente vinculado a ou-
tras pessoas morais; e deverá, portanto, adequar-se a existência de limites externos. Assim
como os homens demonstram hostilidade na relação com seus semelhantes, devido à sua
insociável sociabilidade, Estados também manifestarão a mesma predisposição, ocorrendo,
porventura, a guerra. A razão dos conflitos está no fato dos Estados formarem um ente polí-
tico, que a princípio não devem justificação dos atos a nenhuma instância superior, a não
ser aos súditos, os quais estão representados na figura do soberano. As insatisfações inter-
nas pressionam o soberano para a conquista de bens materiais e territórios, ocasionando as
guerras entre Estados, fruto da insociável sociabilidade. Sobre essa questão, Kant afirma
que:
“A mesma insociabilidade que obrigou os homens a esta tarefa [entrar num Estado] é nova-
mente causa de que cada república (Gemeinwesen), em suas relações externas – ou seja nu-
ma liberdade irrestrita, e consequentemente deva esperar do outro os mesmos males que o-
primiam os indivíduos e os obrigavam a entrar num estado civil conforme leis.”
233
No Estado, sob o domínio de um soberano e de uma constituição republicana, os in-
divíduos submetem-se a uma lei comum coercitiva, fruto da razão e do direito que ordenam
232
KANT, I. TP. p. 99.
233
KANT, I. IHU. p. 17.
87
essa submissão a fim de abrandar a insociável sociabilidade. No entanto, a diferença subs-
tancial da manifestação da insociável sociabilidade na relação entre Estados, é o desenca-
deamento de guerras, sem a presença de um “soberano” com poder de decisão ou coação
para determinar o fim do conflito. Um Estado acha-se no direito de declarar guerra a um
outro Estado por razões ilegítimas na maioria das vezes, tal como a história da humanidade
tem demonstrado.
Para Kant “no estado natural dos Estados o direito a guerra (a hostilidades) é a for-
ma lícita a qual um Estado, por sua própria força, reclama seu direito frente a outro quando
crê que este o tenha lesionado”
234
, não havendo um processo ou julgamento, como deveria
ser num ordenamento jurídico compactuado por todos os Estados. No estado natural cada
Estado é inimigo do outro, ou seja, originariamente os Estados estão voltados para a guerra,
sendo utilizada a força como meio para praticar uma suposta restituição da justiça, embora
esteja sendo praticada outra injustiça. Essa condição de enfrentamento por meio da força
ocorre devido a inexistência de uma espécie de tribunal internacional, dando assim, ampla
margem de liberdade para os Estados fazerem da justiça uma decisão do soberano, tendo ou
não o apoio popular. É certo que o apelo ufanista conduz o povo ao delírio da conquista e
do suposto reestabelecimento da justiça. As massas dominadas são as pernas e braços do
Estado, as quais perdem a racionalidade lançando-se ao martírio da guerra, embora não
tenham a certeza da legitimidade da causa que defendem.
Kant não esclareceu o que pode ser realizado em relação às nações que mantém sis-
temas monárquicos ou formas despóticas de governar. O filósofo alemão preenche esta
lacuna afirmando que as nações republicanas a aderirem ao sistema federativo, gradualmen-
te estenderiam sua influência às demais nações, sem qualquer tipo de imposição quanto à
participação na federação
235
. À época de Kant, a Europa delineava acordos de colaboração
política e estava sob efeito do evento juridicizante
236
da Revolução Francesa, que nutria o
espírito pacifista nas constituições políticas dos Estados.
234
KANT, I. MC. p. 185.
235
“É possível representar-se a exequibilidade (realidade objetiva) da federação, que deve estender-se paula-
tinamente a todos os Estados e assim conduzir à paz perpétua. Pois, se a sorte dispõe que um povo forte e
ilustrado possa formar uma república (que, segundo a sua natureza, deve tender para a paz perpétua), esta
pode constituir o centro da associação federativa para que todos os outros Estados se reúnam à sua volta e
assim assegurem o estado de liberdade dos Estados conforme a idéia do direito das gentes e estendendo-se
sempre mais mediante outras uniões”. In: KANT, I. PP. 135.
236
Cf. LOPARIC, Z. O problema fundamental da semântica jurídica de Kant. p. 29.
88
A forma inovadora elaborada por Kant evita qualquer forma de intervenção sobre
um Estado, pois isto desqualificaria o propósito pacífico da federação. A formação de um
sistema federativo que congregasse gradualmente os Estados é uma tarefa hercúlea, quan-
do observa-se a barbárie de alguns povos da Terra. Todavia, Kant não vê na dificuldade de
estabelecer tal federação uma impossibilidade de realizar tal empreendimento, e tira a con-
fiança de sua realização na idéia de que ao final, a razão prevalecerá sobre todos os Esta-
dos. A adesão à federação é um processo de amadurecimento das instituições políticas e
impõe-se racionalmente aos povos de todo mundo e é fruto do esclarecimento (Aufklärung),
proclamado pela Revolução Francesa e o seu espírito de humanidade e coletividade:
“(...) sair do estado sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que to-
do Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria
força ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação das nações (Foedus
Amphictyonum) de um poder unificado e da decisão segundo leis de uma vontade unifica-
da.
237
Ao enunciar que “ o direito das gentes deve fundar-se numa federação de estados
livres”
238
, Kant tem em mente o estado de natureza em que viviam os homens antes de en-
traram para o estado civil, e compara com a situação das nações de sua época. Assim como
era inseguro e ardiloso o estado vivido pelos homens no estado de natureza, o mesmo ocor-
re, quando Estados seguem desagregados e sem projetos globais e desconsiderando a ne-
cessidade de estabelecer regras mútuas de cooperação.
“Uma vez que o estado de natureza entre as nações, como o estado de natureza entre seres
humanos individuais, é uma condição que se deve abandonar a fim de ingressar-se numa
condição legal, antes que isso aconteça, quaisquer direitos das gentes, e qualquer coisa ex-
terna que seja minha ou tua que os Estados possam adquirir ou reter pela guerra, são tão-só
provisórios. Somente uma associação universal de Estados (análoga àquela pela qual um
povo se transforma num Estado) poderão os direitos vir a ter validade definitivamente e sur-
gir uma efetiva condição de paz.”
239
As conseqüências advindas do estado de natureza entre os homens são conhecidas,
tais como a destruição entre si, diminuição da população e a redução da ordem existente; no
entanto, os efeitos das guerras entre Estados são inimagináveis, pois o estado de natureza
237
KANT, I. IHU. p. 17.
238
KANT, I. PP. p. 132.
239
KANT, I. MC. p. 190.
89
alcança o tamanho do mundo, transformando-se num grande arena de conflitos, onde preva-
lecerá o poder do mais forte. Não havendo limites fora da condição interna de um Estado,
tais como acordos internacionais de respeito e colaboração mútua ou algo similar ao contra-
to social, a condição selvagem predomina e alastra a insegurança e a violência em níveis
globais. Na Metafísica dos Costumes Kant afirma que os Estados em sua relação externa
carecem de uma estrutura jurídica universal, com o objetivo superar o estado de guerra e
bloquear as ações baseadas na lei do mais forte. A estrutura jurídica universal efetivar-se-á
quando os Estados ingressarem numa sociedade cooperativa ou uma federação. Assim es-
creve Kant:
“(...)
os Estados, considerados na relação mútua externa (como selvagens sem lei), se en-
contram por natureza num estado não jurídico; este estado é um estado de guerra (do direito
do mais forte) ainda que não de guerra efetiva e de agressão efetiva permanente (hostilida-
de); tal agressão, ainda que por ela ninguém sofre injustiça por parte do outro
(enquanto
ambos
querem melhorar), é em si mesma injusta em alto grau, e os Estados que são vizinhos
entre si estão obrigados a sair de semelhante estado.”
240
A passagem para uma federação das nações equivale a passagem do homem no es-
tado de natureza para a sociedade contratual, com o diferencial que entre as nações o uni-
verso torna-se muito mais complexo, pois se trata de um acordo internacional, onde para
garantir a liberdade, ninguém é obrigado a ingressar e permanecer confederado, pois ne-
nhum Estado está em condições de forçar algum outro a ingressar numa organização estatal
internacionalizada ou a submeter-se à leis do direito público internacional
241
. Segundo
Kant, inspirados pela idéia do contrato originário, os Estados deverão alçar a uma condição
superior, estabelecendo uma federação universal com o intuito de colaboração e estabele-
cimento de leis comuns, tal como é expresso nessa passagem da Metafísica dos Costumes:
“é necessário um pacto de nações – segundo a idéia de um contrato social originário – de
não imiscuir-se (mutuamente) em seus conflitos domésticos, porém sem proteger-se frente
aos ataques de inimigos exteriores; no entanto, a confederação não deveria contar com ne-
nhum poder soberano (como na constituição civil), senão somente com uma sociedade coo-
perativa (federação); uma aliança que pode rescindir-se em qualquer momento e que, por-
tanto, há de renovar-se de tempo em tempo, - um direito in subsidium de outro originário,
consistente em defender-se mutuamente de cair no estado de guerra efetiva (foedus Am-
phictyonum).”
242
240
KANT, I. MC. p. 182.
241
HECK, J. N. Thomas Hobbes: passado e futuro. p. 236.
242
KANT, I. MC. p. 183
90
Trata-se de um primado racional os Estados organizarem-se de forma federativa e
estabelecerem regras em comum acordo, e sobretudo, devem ser preservadas as caracterís-
ticas de cada nação, pois não se trata de formar um Estado mundial (um Leviatã hobbesia-
no), mas uma organização jurídica internacional o mais abrangente possível e assim estabe-
lecer definitivamente a paz.
O inevitável encontro entre os Estados, imposto pela forma da terra é ressaltado pela
também inevitável manifestação da insociável sociabilidade; no entanto, tais encontros
devem ser orientados pela razão, a fim de viabilizar a existência da própria humanidade: “o
mundo, contudo, é redondo: o encontro entre os homens é adiável, mas ineludível. Esse
antagonismo leva-os a desenvolver suas capacidades e os põe numa abertura ao outro como
resultado da inelutabilidade do encontro”
243
. Tais encontros são estabelecidos a partir das
fronteiras dos Estados, originando conflitos em função da expansão territorial, a qual pode
dar-se sob a forma da colonização em terras distantes; e em segundo, em função do comér-
cio, o qual nem sempre ocorre de forma legítima, tal como a exploração de bens em outras
partes do mundo. Diante desses encontros inevitáveis e das possibilidades que são abertas
no campo das relações internacionais, torna-se necessário, segundo Kant, estabelecer prin-
cípios universais reguladores, os quais devem ser gradualmente adotados pelas constitui-
ções dos Estados.
Considerando as limitações do planeta e a conseqüente fatalidade dos encontros en-
tre Estados, a paz é uma condição que se impõem categoricamente. O estabelecimento de
uma ordem que transcenda aos Estados torna-se urgente, pois estes podem decidir expandir
as suas fronteiras ou conquistar bens, confrontando-se com Estados igualmente interessa-
dos. Apenas a federação de povos, aliada a uma racionalidade interna dos Estados, coloca-
ria fim a instabilidade das relações internacionais. O clamor para que todos adentrem na
federação deve vir daqueles Estados já organizados de forma republicana, o que não signi-
fica impor uma condição, mas demonstrar o quanto os Estados tem a ganhar com tal orde-
namento jurídico:
“Os povos podem, enquanto Estados, considerar-se como homens singulares que no seu es-
tado de natureza (isto é, na independência de leis externas) se prejudicam uns aos outros já
243
ZINGANO, M. Razão e História em Kant. p. 257.
91
pela sua simples coexistência e cada um, em vista da sua segurança, pode e deve exigir do
outro que entre com ele numa constituição semelhante à constituição civil, na qual se possa
garantir a cada um o seu direito. Isto seria uma federação de povos que, no entanto, não de-
veria ser um Estado de povos
244
Kant insistiu na formação de uma federação dos povos e não um estado mundial
como solução para o estabelecimento da paz, pois esta última forma subtrai a autodetermi-
nação, o que não é desejável do ponto de vista da soberania e do direito. No entanto, du-
rante muito tempo, segundo Georg Cavallar
245
, até mais ou menos 1793, Kant tinha a con-
vicção do direito a essa coação, ou seja, uma autorização ao exercício de coerção e de um
“Leviatã” expresso numa Liga de Nações com um poder executivo
246
. Kant, expressamen-
te, a partir de sua obra “A Paz Perpétua” recusa a formação de um Estado mundial e insiste
na necessidade de um pacto entre as nações republicanas:
a paz não pode assentar-se e afirmar-se a não ser mediante um pacto entre os povos. Deve-
se, pois, estabelecer uma federação de tipo especial que poderia denominar-se federação da
paz – foedus pacificum – a qual se distingue do tratado de paz – pactum pacis – no fato de
que esta acaba com a guerra e aquele põe fim a toda a guerra. Esta federação não se propõe
adquirir nenhum poder próprio do Estado, mas simplesmente manter e assegurar a liberdade
de um Estado em si mesmo, e também a dos demais Estados federados, sem que estes te-
nham, por isso, de submeter-se – como indivíduos em estado de natureza – a leis políticas e
a uma coação legal”
247
.
244
KANT, I. PP. p. 132.
245
Georg Cavallar assim procede neste aparente paradoxo kantiano: “Houve uma modificação substancial do
modelo hobbesiano anterior a 1793. Note-se que Kant não fala mais de um direito dos Estados de forçar
outros estados para dentro de uma organização internacional. Fala-se agora de Estados, que se sujeitam espon-
taneamente a leis coercitivas, que se ‘acomodam’ a elas (nos trabalhos preparatórios Kant usa ainda o verbo
mais forte, ‘sujeitar’. Isso soa paradoxal, mas fica compreensível diante do pano de fundo da história em
Kant. Os Estados não são mais coagidos por outros, mas por inúmeras guerras a desistirem ‘da sua liberdade
selvagem’ (sem leis)” In: CAVALLAR, G. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano à paz
perpétua. p. 91.
246
Numa passagem do Segundo Artigo Definitivo, Kant, aparentemente, parece recorrer a idéia de um Estado
mundial como solução cabal para as guerras. Há pontos aparentemente contraditórios nos textos kantianos,
mas isto é minimizado quando se tem diante do filósofo uma teoria que procura dar conta de problemas plane-
tários, até então deixados de lado pelos filósofos. A passagem referida é a seguinte: “Os Estados com relações
recíprocas entre si não têm, segundo a razão, outro remédio para sair da situação sem leis, que encerra sim-
plesmente a guerra, senão o de consentir leis públicas coativas, do mesmo modo que os homens singulares
entregam a sua liberdade selvagem (sem leis), e formar um Estado de povos (civitas gentium), que (sempre, é
claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da terra”. In: KANT, I.PP. p. 136. Ao final do parágra-
fo Kant demonstra o conflito entre as concepções e retoma a idéia da federação como a mais provável de ser
efetivada: “Mas se, de acordo com a sua idéia do direito das gentes, isto não quiserem, por conseguinte, se
rejeitam in hipothesi o que é correto in thesi, então a torrente da propensão para a injustiça e a inimizade só
poderá ser detida não pela idéia positiva de uma república mundial (se é que tudo não deve se perder), mas
pelo sucedâneo negativo de uma federação antagônica à guerra, permanente e em contínua expansão, embora
com o perigo constante da sua irrupção [Furor impius intus – fremit horridus ore cruento, Virgilio] trad. -
Um ímpio e horrível furor ferve bem dentro da sua boca sangrenta-”. In: KANT, I. PP. p. 136.
247
KANT, I. PP. p. 134.
92
Kant, ao optar pelo caminho de uma federação dos povos e descartar a possibilidade
de um Estado mundial e até mesmo uma forma mais branda, a exemplo de uma República
dos povos com uma constituição comum, tal como se organizavam os Estados Americanos,
reforça a idéia do esclarecimento à que todos os Estados devem alcançar, sobrepujando-se a
idéia de um Leviatã mundial. A negativa de Kant em estabelecer um Estado de povos, de-
ve-se a uma contradição implícita em tal agrupamento, “porque todo o Estado implica a
relação de um superior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo) e mui-
tos povos num Estado viriam a constituir um só povo, o que contradiz o pressuposto”
248
, ou
seja, a federação de Estados. Kant, enfim, comprova a inviabilidade de qualquer ordena-
mento jurídico centralizador, priorizando a explicitação das idéias da razão que se sobrepõe
à monarquia universal
“A idéia do direito das gentes pressupõe a separação de muitos Estados vizinhos, indepen-
dentes uns dos outros; e, embora semelhante situação seja em si já uma situação de guerra
(se uma associação federativa dos mesmos não evita a ruptura das hostilidades) é, no entan-
to, melhor segundo a idéia da razão, do que a sua fusão por obra de uma potência que con-
trolasse os outros e se transformasse numa monarquia universal; por que as leis, com o au-
mento do âmbito de governação, perdem progressivamente a sua força e também porque um
despotismo sem alma acaba por cair em anarquia, depois de ter erradicado os germes do
bem”
249
A barbárie vivida pelos povos aliada a possibilidade de novas guerras é o horror po-
lítico para Kant. Ao adotar uma filosofia da esperança no auge das Luzes, o filósofo está
preocupado em garantir o que já foi conquistado pela humanidade, como por exemplo a
constituição republicana, e melhorar continuamente as instituições políticas para não retro-
ceder ao modo selvagem em que vivia a humanidade. A postura teórica de Kant está vincu-
lada diretamente às situações da época, tal como a Revolução Francesa e a decapitação de
Luís XVI. Assim sendo, Kant não é um mero espectador dos fatos de sua época, recusando
o estigma do filósofo encerrado numa torre de marfim, mas está preocupado com os rumos
da humanidade. A filosofia política, conforme a peremptoriedade dos fatos, considera tam-
bém a experiência, as ponderações ditadas pela prudência, o conhecimento dos homens da
248
KANT, I. PP. p. 132.
249
KANT, I. PP. p. 147.
93
política, etc
250
; e dessa forma, Kant pode ser considerado um homem do seu tempo, pois
ao vivenciar fatos importantes da história, não os deixou ausentes em sua filosofia política.
A federação dos povos é a manifestação do supremo bem político, o fim último a ser
alcançado pelo esforço humano na política e determinante para o término dos conflitos. A
esperança depositada por Kant na federação dos povos só podia partir de alguém convenci-
do de que a razão provia a passos largos o progresso ético, moral e político da humanidade,
subsumidos na figura do direito:
através de um tal congresso [federação] que a idéia de um
direito público das gentes é exeqüível, direito a ser instaurado para a decisão de seus confli-
tos de uma maneira civil, como por meio de um processo, e não de uma maneira bárbara (a
maneira dos selvagens), a saber pela guerra.”
251
O avanço no sentido de estabelecer uma confederação entre as nações só é possível
a partir do desenvolvimento da razão no interior das nações, pois num estado despótico ou
num estado religioso, impede-se o uso público da razão e, conseqüentemente, subjugam-se
as liberdades individuais, e sem estas, o soberano está livre para agir e determinar livremen-
te a guerra se assim desejar.
Kant não esperava que a adesão a uma federação fosse um processo rápido, mas tal
condição deveria estar horizonte de cada Estado, associada a um direito cosmopolita
incumbido de disseminar o espírito universal e pacífico da estrutura federativa a ser
instaurada. A razão mostra aos Estados que uma federação é a forma mais adequada para a
autopreservação e não o constante preparo para a defesa e a guerra em si. Torna-se um
dever a formação de uma federação universal, conforme é dito por Kant nessa passagem da
Metafísica dos Costumes: “(...) os princípios políticos que tendem a realizar tais alianças
entre os Estados, enquanto servem para aproximar-se continuamente ao estado de paz
perpétua, não são inatingíveis, na medida que tal aproximação é uma tarefa fundada no
dever e, portanto, também no direito dos homens e dos Estados”
252
.
A associação de diversos Estados com o propósito de preservar a paz, formando um
congresso permanente, ocorre num processo de alianças, onde cada vizinho está livre para
participar
253
, sendo que primeiramente seriam poucas nações, tal como sucedeu na
250
Cf. CAVALLAR, G. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano à Paz Perpétua. p. 78.
251
KANT, I. MC. p. 190.
252
KANT, I. MC. p. 190.
253
KANT, I. MC. p. 191.
94
assembléia dos Estados Gerais de Haia, onde os ministros das cortes européias
apresentaram queixas a respeito de ataques empreendidos contra um deles por outro
254
, e
gradativamente, pela ampliação dos espírito republicano, todos os Estados seriam
confederados, tendo o benefício maior da paz. Esta condição é exeqüivel, conforme o que
diz o filósofo a respeito da reflexão teórica: “o que por motivos racionais é válido para a
teoria e válido também para a prática
255
.
Os homens somente poderão realizar todas as predisposições, segundo Kant, quando
todos os Estados estiverem orientados pela idéia racional da paz, que é a efetivação do so-
berano bem político. O bem supremo não se encontra no indivíduo isolado, exceto quando
se trata da moralidade do indivíduo, mas na humanidade como um todo; e será em função
da preservação da liberdade do indivíduo que Kant constituiu a sua teoria, ou seja, não se
trata de unificar os indivíduos em algum organismo institucionalmente livre, mas, sim, de
mantê-los politicamente livres como indivíduos, pois essa é a sua natureza
256
. Os indiví-
duos devem orientar-se para o melhor, encontrando o ponto máximo de seu progresso na
manifestação de uma paz duradoura, como idéia orientadora do pensamento geral da huma-
nidade
257
.
“só se pode falar do direito das gentes sob o pressuposto de alguma situação jurídica (isto é,
uma condição externa sob a qual se possa atribuir realmente ao homem um direito); porque,
enquanto direito público, implica a publicação de uma vontade geral que determine a cada
qual o que é seu, e este status juridicus deve promanar de algum contrato que não tem se-
quer de fundar-se em leis coativas (como aquele de que provém um Estado), mas pode ser
em todo o caso o contrato de uma associação constantemente livre como o caso acima cita-
do da federação de vários Estados.”
258
O avanço teórico da concepção jurídico-política de Kant consistiu em perceber que
a tensão existente anteriormente aos homens entrarem no estado civil, manifestar-se-ia no-
vamente nas relações entre os Estados constituídos, ou seja, o mesmo estado de natureza
que estava em vigor antes da constituição do Estado entre indivíduos, continuaria vigente
nas relações que agora são estabelecidas entre os Estados
259
. Para Kant, “o anseio de todo o
Estado (ou a sua autoridade suprema) é estabelecer-se numa situação de paz duradoura de
254
Cf. KANT, I. MC. p. 191.
255
KANT, I. TP. p. 102.
256
Cf. HECK. J. N. Materialismo e Modernidade. Ensaios de Filosofia Política. p. 155.
257
SALGADO, J. C. A Idéia de Justiça em Kant. p. 317.
258
KANT, I. PP. p. 167.
259
BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de I. Kant. p. 153.
95
modo a dominar, se possível, o mundo inteiro”
260
. As instituições políticas perdem a razão
de existir quando deixam de buscar a paz perpétua, a qual deve ser garantida pelos cidadãos
e soberanos de todo o mundo.
Kant reivindicou a existência de uma federação de Estados, ao considerar o seu
propósito de evitar a guerra e ser o único estado jurídico compatível com a liberdade
261
.
Assim sendo, tornar-se-ão inúteis todos os avanços políticos, morais e éticos se não instau-
rar uma federação de Estados orientada em direção à garantia da liberdade dos indivíduos.
A federação é o meio que a razão humana encontra para que os homens realizem todas as
suas predisposições. Segundo Kant, “a consonância da política com a moral só é possível
numa união federativa (que é igualmente necessária e está dada a priori, segundo os princí-
pios do direito), e toda a prudência política tem como base jurídica a instauração dessa fe-
deração na sua máxima amplidão possível; sem tal fim, toda a habilidade política é igno-
rância e injustiça velada
262
. Em síntese, política, moral e direito são unidos e garantidos
sob a federação de Estados, realizando-se o ideal racional da paz perpétua.
3.3. O “Terceiro Artigo Definitivo” e o cosmopolitismo na política
O cosmopolitismo em Kant pode ser analisado sob diversas perspectivas, as quais
mantêm entre si a mesmo caráter universal da política. Uma primeira perspectiva trata da
questão da hospitalidade universal, tal como é expressamente definido por Kant no Terceiro
Artigo. Uma outra perspectiva está vinculada à compreensão da política mundial, envol-
vendo a idéia de uma federação de Estados. O Terceiro Artigo também abre a possibilidade
de ser interpretado como a recusa de qualquer forma de colonialismo
263
, conforme era pra-
ticado pela Europa do século XVIII e anteriores. Subjacente a estas perspectivas, está im-
plícita a concepção do indivíduo como cidadão do mundo, com deveres para com a huma-
nidade em geral, a qual torna-se a pátria comum de todos os habitantes da terra.
As singularidades de cada povo, tais como cultura, religião e sistema de governo,
devem adequar-se ao direito cosmopolita. E nesse sentido, o cidadão do mundo esforça-se
260
KANT, I. PP. p. 148.
261
Cf. KANT, I. PP. p. 169.
262
KANT, I. PP. p. 169.
263
Essa interpretação é tributada a Mário Caimi. Ver: CAIMI, M. Acerca de la interpretacion del tercer articu-
lo definitivo del ensayo de Kant Zum ewigen Frieden. In: ROHDEN, V. (org). Kant e a instituição da paz. p.
191.
96
por implementar o direito em todas as partes da Terra e ressente-se quando violado
264
. Sob
está ótica, Kant retira a exclusividade dos Estados de zelar pelos indivíduos e transfere
para a humanidade, pois efetivamente o que existe é uma grande comunidade, mas que no
processo histórico foi demarcada por diferenças culturais, políticas e religiosas. No entan-
to,tais diferenças não subtraíram a essência do homem, mas pelo contrário, a natureza tirou
proveito das peculiaridades dos povos, conforme podemos observar nesta passagem d’Paz
Perpétua:
“Mas a natureza quer outra coisa. – Serve-se de dois meios para evitar a confusão dos povos
e os separar: a diferença das línguas e das religiões; esta diferença traz, sem dúvida, consigo
a inclinação para o ódio mútuo e a gradual aproximação dos homens de uma maior conso-
nância dos princípios leva à conivência na paz, a qual se gera e garante não através do en-
fraquecimento de todas as forças, como acontece no despotismo (cemitério da liberdade),
mas mediante o seu equilíbrio, na mais viva emulação.”
265
O direito cosmopolita é o resultado do avanço das instituições internas de cada Es-
tado e coloca-se ao lado daqueles que defendem a dignidade da humanidade em todos os
lugares da Terra. Assim sendo, o cosmopolitismo refere-se a uma condição universal da
hospitalidade, conforme é expresso no Terceiro Artigo Definitivo: “O direito cosmopolita
deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”
266
. Este artigo expressa, numa pri-
meira análise, o direito do estrangeiro ser bem recebido em outro território. Kant defende
tal direito apoiando-se no princípio segundo o qual a Terra originariamente não tinha um
dono e o trânsito entre as regiões era livre. Este direito caracteriza como um direito de visi-
ta, conforme é expresso por Kant:
“(...) um direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentar à sociedade, em
virtude do direito da propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto su-
perfície esférica, os homens não podem estender-se até o infinito, mas devem finalmente su-
portar-se uns aos outros, pois originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar
num determinado lugar da Terra”
267
Kant tem em mente as idéias de Rousseau ao tratar da propriedade no início da hu-
manidade, onde a terra pertencia a todos e os benefícios dela retirados eram igualmente
264
Cf. KANT, I. PP. p. 140.
265
KANT, I. PP. p. 148.
266
KANT, I. PP. p. 137.
267
KANT, I. PP. p. 137.
97
partilhados. O surgimento da propriedade privada nas mãos de um indivíduo ou de uma
tribo foi a célula das futuras nações, as quais mantiveram a idéia de posse no limite de suas
fronteiras. Tal aquisição não tem fundamento, a não ser o desejo que um indivíduo ou gru-
po expressou de tornar-se dono e assim realizou ao preço de conquistas e guerras. Para
Kant, no entanto, após o surgimento do contrato, a posse jurídica da propriedade tornou-se
uma garantia do indivíduo. Dessa forma, continua garantido o direito à posse física, sendo
que todas as pessoas e todos os povos possuem um direito originário e igual , semelhante ao
direito natural, para estar e habitar em qualquer lugar da Terra, podendo, se desejar, possu-
ir uma parte qualquer dela.
268
O fluxo de pessoas em torno do mundo abre-se como uma possibilidade de aproxi-
mação a um ideal comum de paz, tal como defendera Kant. A troca de experiências entre
pessoas e Estados, possibilitaria o progresso do gênero humano, o qual permanece limitado
quando permanece restrito a fronteira de um Estado. Kant exemplifica essa situação, citan-
do povos que à sua época ainda viviam de forma selvagem, demonstrando que o isolamento
humano é prejudicial ao desenvolvimento da espécie e ao estabelecimento da paz, a qual é
o resultado do progresso das constituições em direção ao cosmopolitismo:
Deste modo,
partes afastadas do mundo podem entre si estabelecer relações pacíficas, as quais se torna-
rão legais e públicas, podendo assim aproximar cada vez mais o gênero humano de uma
constituição cosmopolita”
269
.
Kant insistiu no fato de que a natureza quer estabelecer a paz entre os povos, apesar
de simultaneamente ocorrerem fatos que dificultam esta condição
270
, ressaltando a recipro-
cidade dos benefícios para os Estados ao estabelecerem vínculos pacíficos, tais como aque-
les decorrentes do comércio de bens de forma amigável. As trocas comerciais entre os dife-
rentes povos somente ocorrem quando existe o bom relacionamento entre os envolvidos. O
direito cosmopolita possibilita, de forma pacífica, a contração de acordos mútuos, tendo
como pressuposto a harmonia entre os povos, condição fundamental para o comércio fluir.
Assim expressa Kant:
268
Cf. CAVALLAR. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano à Paz Perpétua. p. 92.
269
KANT, I. PP. p. 138.
270
KANT, I. PP. p. 148.
98
“É o espírito comercial que não pode coexistir com a guerra e que, mais cedo ou mais tarde,
se apodera de todos os povos. Porque entre todos os poderes (meios) subordinados ao poder
do Estado, o poder do dinheiro é sem dúvida o mais fiel, os Estados vêem-se forçados (claro
está, não por motivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra mediante
negociações sempre que ela ameaça rebentar em qualquer parte do mundo, como se estives-
sem por isso numa aliança estável, pois as grandes coligações para a guerra, por sua nature-
za própria, só muito raramente podem ocorrer e ainda com muito menos freqüência ter êxi-
to.”
271
Kant recorre novamente à idéia de que por trás das trocas comerciais permanece o
espírito pragmático subjacente às relações internacionais. A necessidade objetiva dos Esta-
dos comercializarem seus produtos e adquirirem outros indisponíveis nos limites das suas
fronteiras, favorece o estabelecimento de condições pacíficas para que o comércio seja in-
tensificado, sendo que todos saem beneficiados ao final. Os meios para subsistência não
estão disponíveis em igual proporção em todos os lugares da terra, o que leva necessaria-
mente a articulação do comércio como forma de prover os bens universalmente. É nova-
mente a razão que ordena uma condição pacífica, desta vez enunciada na necessidade de
bens, facilmente disponibilizados através do comércio entre os Estados.
Concluindo esta seção, a idéia central que permanece gira em torno da república
cosmopolita, a qual é “um objetivo colocado por trás de nossas mentes, mas também um
objetivo que nós devemos sempre ter em mente”
272
. A idéia de uma cidadania universal é a
ampliação da consciência do cidadão, o qual está exposto geralmente às questões relativas
ao seu Estado de origem. Ver o mundo como uma grande comunidade política parece ser
uma exigência demasiada e desnecessária, quando no âmbito regional ainda persistem gra-
ves problemas sociais e políticos. No entanto, essa visão universal, é necessária, pois Kant
tem em mente o poder do esclarecimento e de colaboração entre os povos, indicando a idéia
de co-participação na solução dos problemas internacionais. O espírito cosmopolita abre
caminho para a comunidade internacional atuar onde a violação do direito persistir; assim,
cidadãos e Estados atuando dessa forma aproximam a humanidade cada vez mais da ordem
jurídica e da paz perpétua.
271
KANT, I. PP. p. 149.
272
Cf. HOWARD, Willians. “an objetive to put to the back of our minds, but it is an objective we ought
always to have in mind” in:‘Kant’s Political Philosophy.”. Apud. CAVALLAR, G. A sistemática da parte
jusfilosófica do projeto kantiano à Paz Perpétua. p. 90.
99
3.4. Paz e liberdade: fim último da política
Kant colocou no centro da filosofia jurídico-política o direito à paz . Ao afirmar
que os Estados tem direito à paz, Kant estabelece três condições mínimas para que este
direito seja efetivado. Esta idéia é expressa nesta passagem:
“O direito à paz é 1) estar em paz quando há guerra na vizinhança, ou o direito de
neutralidade; 2) o direito de poder assegurar a continuação da paz que foi acertada, ou o
direito de garantia; 3) o direito de associação mútua (uma confederação) entre diversos
Estados, para defender-se juntos contra todo possível ataque externo ou interno, não uma
liga para atacar e para o engrandecimento interno.”
273
Kant não desconhecia a problemática da existência de Estados mais fortes que
outros, os quais poderiam usar a força com propósitos de dominação. O direito a paz
abrange o direito de não envolver-se em conflitos alheios e não sofrer as conseqüências de
possíveis de uma guerra nas proximidades ou mesmo num lugar distante.
Ao identificar sinais do progresso histórico para o melhor, Kant mostra a possibili-
dade real para que gradualmente todas as potencialidades humanas sejam realizadas. A
concretização do supremo bem na humanidade é o reino da paz perpétua ou o reino da li-
berdade, assegurado pelo direito e pela expansão da racionalidade no mundo. A paz perpé-
tua configura o supremo bem político, onde a liberdade é garantida ao homem, sem inter-
rupções e sem reservas. Sobre isso Hannah Arendt afirma que:
a destinação última no sentido da escatologia, não existe; mas os dois objetivos principais
pelos quais este progresso é guiado, ainda que pela costas dos atores são a liberdade – no
simples e elementar sentido de que ninguém governa seus companheiros – e a paz entre as
nações, como condição para a unidade da raça humana. O progresso perpétuo rumo à liber-
dade e a paz – essa última assegurando a livre intercurso entre todas as nações da terra: es-
sas são idéia da razão sem as quais a simples história da história não faria sentido.”
274
Kant antecipou a necessidade de fortalecer o regulamento interno dos Estados, atra-
vés de uma constituição republicana e fundamentou a estrutura de organismos interestatais,
com o intuito de garantir o pleno desenvolvimento dos povos. A paz e a liberdade, como
273
KANT, I. MC. p. 189.
274
ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant. p. 77.
100
fundamento dos Estados encontra espaço privilegiado na filosofia política de Kant e são
elementos norteadores da história humana, ou como afirma Bobbio no centro da filosofia
kantiana está “ a constituição de uma sociedade jurídica que possa abranger a humanidade,
numa só palavra é a paz com liberdade, ou seja, a liberdade na paz”
275
.
No final d’ Paz Perpétua, Kant enuncia os objetivos a serem perseguidos pela filo-
sofia política nos tempos vindouros, sob uma esperança fundada na razão. A paz perpétua é
uma idéia da razão baseada no ideal republicano e na federação dos povos, e portanto, exe-
qüível do ponto de vista prático:
“Se existe um dever e ao mesmo tempo uma esperança fundada de tornar efetivo o estado de
um direito público, ainda que apenas numa aproximação que progride até ao infinito, então a
paz perpétua, que se segue aos até agora falsamente chamados tratados de paz (na realidade
armistícios), não é uma idéia vazia, mas uma tarefa que, pouco a pouco resolvida, se apro-
xima constantemente do seu fim (...).”
276
O fortalecimento do estado republicano aliado a uma federação livre de Estados,
ambos amparados por um direito cosmopolita, foi o caminho aberto por Kant para instaurar
a paz e realizar assim o sumo bem político. Sobre o papel da razão na instauração da paz,
Kant afirma que a razão absolutamente condena a guerra:
“a razão prático-moral expressa em nós seu veto irrevogável: não deve haver guerra, nem
guerra entre você e eu no estado de natureza, nem guerra entre nós como Estados que, ainda
se encontram internamente num estado legal, todavia, exteriormente (na sua relação mútua)
se encontram num estado sem lei; por que este não é um modo em que cada um deve procu-
rar seu direito.”
277
Sobre aqueles que desconfiam da possibilidade da paz perpétua, Kant defendeu que
esta condição final da humandiade é uma idéia da razão, a qual ainda não tem o
correspondente prático, mas deve lentamente ser tornada real. O projeto kantiano reabilitou
a idéia de utopia, não se tratando de um sonho, mas de um projeto racional fundamentado
na capacidade de organização dos indivíduos e dos Estados, mesmo que ao redor do mundo
ainda observe-se o contrário:
275
BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Imanuel Kant. p. 157.
276
KANT, I. PP. p.171.
277
KANT, I. MC. p. 195.
101
(...) a questão não é a de saber se a paz perpétua é possível ou um absurdo, e se não esta-
mos enganando a nós mesmos em nosso juízo teórico se supormos o primeiro; senão que
temos de atuar com vistas ao seu estabelecimento como se fosse algo que melhor não é pos-
sível, e elaborar a constituição que nos pareça mais idônea para obter a paz perpétua (talvez
o republicanismo de todos os Estados sem exceção) e acabar com a terrível guerra, que é o
fim principal a que se tem dirigido até agora todos os Estados, sem exceção, suas disposi-
ções internas.”
278
Kant abriu o caminho para a paz
279
e desde então observa-se um aperfeiçoamento
das instituições jurídico-políticas, embora também tenham surgido novos e complexos de-
safios, os quais eram impensáveis no século XVIII. Tais desafios exigem a releitura da obra
A Paz Perpétua e a conseqüente adaptação aos novos tempos, mas os princípios da paz e da
liberdade no horizonte da política permanecerão sempre válidos, inspirando a esperança de
sociedade verdadeiramente pacífica. Os desdobramentos políticos após Kant, bem como a
especulação sobre o futuro da política, serão objeto de análise do próximo capítulo.
278
KANT, I. MC. p. 195.
279
Cf. ROHDEN, V. Introdução - Kant e a instituição da paz. p. 11 ss.
102
Segunda Parte: O mundo após Kant
CAP. 4. PAZ, GUERRA E ESPERANÇA
4.1. A paz democrática: idealismo e realismo no legado kantiano
À distância de mais de dois séculos do escrito kantiano “A Paz Perpétua”, poucos
foram os momentos ininterruptos de paz presenciados pela humanidade, revelando o atual
estágio de desenvolvimento das instituições políticas criadas ao longo dos séculos. O esta-
belecimento da paz perpétua deriva de um processo paralelo ao desenvolvimento das insti-
tuições políticas e jurídicas, bem como do aperfeiçoamento moral da humanidade. Dessa
forma, pode-se afirmar que desde a invenção da política pelos gregos, o gérmen de uma
sociedade pacífica estava sendo lançado, considerando-se as características peculiares do
seu tempo histórico. O surgimento da democracia, de espaços públicos, a noção de cidadão
e a própria formação da pólis, encenavam uma sociedade ordenada e regulada segundo
princípios racionais. Mas, no entanto, será na Modernidade, a partir da formação do Estado
moderno, que se colocará o ideal pacífico paralelo à condução política da sociedade, sendo
que a paz adquiriu status definitivo no campo da filosofia política. E por fim, a concepção
atual do Estado é uma síntese das variadas teorias políticas elaboradas a partir do século
XV e tem como um dos pilares centrais a pacificação do mundo.
Este capítulo adota uma perspectiva de análise não propriamente filosófica, desen-
volvendo-se no sentido de apontar algumas possibilidades de entendimento do fenômeno
político atual, tomando por base a perspectiva aberta por Kant de instaurar a paz e conside-
rando-se as intensas transformações ocorridas no mundo deste então. Atualmente, o fato de
diversas transformações estarem em desproporção com a capacidade de gerenciamento por
parte dos governantes e não serem suficientemente analisadas pela categoria dos intelectu-
ais, somando-se a alienação de grande parte da sociedade civil, tornam o cenário mundial
preocupante e colocam em dúvida os meios utilizados até agora nas diversas áreas do co-
nhecimento, abrindo uma incerteza quanto ao futuro. O vácuo existente entre as intensas
transformações e a correspondente reflexão revela um caminho perigoso para a humanida-
de. A inserção da filosofia política de Kant nesse contexto é digna de respeito e contribui
103
para a compreensão da nossa época, bem como, contribui para a resolução de problemas no
campo da política internacional atual.
Os filósofos e juristas até o século XVIII preocuparam-se com a fundamentação do
Estado, sendo que a partir do século XIX, com o advento das ciências particulares, novos
especialistas debruçaram-se sobre a questão do Estado e da paz internacional. No entanto,
apesar da ciência ter caminhado de forma progressiva e ter demarcado espaços conceituais
em diversas áreas, o mesmo não ocorreu com a ciência política internacional, a qual não
conseguiu impedir a eclosão de duas guerras mundiais no século XX, período este tributário
de todos os esforços intelectuais provenientes desde os primórdios da modernidade. Mas é
bom lembrar que houve um curto período de paz situado entre o final do século XIX e o
início do século XX, considerada a belle époque, ponto culminante e fase áurea da moder-
nidade, foi resultado de um processo iniciado com as descobertas de novas terras, passando
pelo racionalismo e a ciência da natureza do século XVII e alcançando no Iluminismo o seu
ápice
280
. Mas, posteriormente, os governantes, a sociedade civil e a ciência política, mostra-
ram-se insuficientes para enfrentar a escalada de violência que assolou o mundo a partir da
segunda década do século XX.
A expansão dos sistemas democráticos no século XX, por outro lado, buscava inse-
rir nas suas constituições o espírito da paz, alicerçado nas garantias jurídicas internas e ex-
ternas, apesar dos refluxos negativos das guerras mundiais. As Constituições de diversos
países do mundo, em seus preâmbulos e artigos, destacaram a necessidade de construir um
mundo pacífico, firmando-se como contraponto à realidade de guerra que parecia tornar-se
constante. Conforme se observa o conteúdo de variadas Constituições, cada nação tornou-
se responsável pela manutenção da ordem pacífica interna e externa, sendo estas co-
dependentes no processo de instauração da paz definitiva.
281
. Prevaleceu nas Constituições
280
Cf. KUJAWSKY, G. de M. A crise do século XX. p. 13.
281
São exemplos, entre outras, as Constituições da Grécia, onde se afirma que a Grécia “almeja, sob a consi-
deração das amplamente reconhecidas normas do Direito Internacional, fomentar a paz, a justiça e o desen-
volvimento de relações amistosas entre os povos e Estados”; do Japão, de 1946, assim escrito: “Nós, o povo
japonês, desejamos a paz eterna e temos a profunda consciência dos ideais sublimes que norteiam as relações
entre os seres humanos” e segue no art. 9, afirmando que “No sincero esforço por uma paz internacional, que
seja baseada sobre justiça e ordem, o povo japonês, por todos os tempos, desiste de guerra, como um direito
soberano da nação (...); da Espanha, que no preâmbulo da Constituição de 1978, declara-se em favor “de
participar no fortalecimento de relações pacíficas e caracterizadas por uma boa cooperação entre todos os
povos da terra”. In: HÄBERLE, P. A humanidade como calor básico do Estado Constitucional. p. 60; e por
sua vez, a Constituição do Brasil que afirma em seu preâmbulo “Nós, representantes do povo brasileiro, reu-
nidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar os
104
a defesa da democracia, como único regime possível para a pacificação gradual do mundo,
e o humanismo cosmopolita, manifesto nos tratados de cooperação internacional, no respei-
to aos direitos humanos e no direito internacional. A maioria dos textos constitucionais faz
alusão, direta ou indiretamente, a questões cosmopolitas, abertura para outros povos do
mundo, cooperação global e ideais comuns a serem perseguidos pelas nações
282
.
As constituições representam a mais alta aspiração de um povo, sendo, portanto, o
veículo natural para uma possível pacificação do mundo. Garantido o intuito de pacificação
nos textos constitucionais, o próximo passo a ser dado é o diálogo inter-constitucional e a
formação de uma sociedade mundial. Assim comenta Häberle:
É possível reconhecer aí [nos diversos preâmbulos das Constituições] contornos de um
contrato de sociedade mundial no que diz respeito à cultura e natureza. Em parte, a humani-
dade constitui-se como uma multicultura, a partir da herança cultural, protegida universal-
mente. Vislumbramos uma sociedade mundial multicolorida dos Estados culturais, uma po-
lítica cultural nacional e internacional, com intenções cosmopolitas.”
283
Segundo Häberle a política exterior é hoje, em parte, política interna mundial, ou
seja, a instituição da paz passa por um Direito Constitucional de humanidade e universali-
dade
284
. Por outro lado, uma Constituição com propósitos de justiça e paz estará em risco
enquanto outros Estados continuarem a agir em discordância com os propósitos universais
de paz.
Os Estados nacionais contemporâneos encontram-se, obviamente, em situações
muito mais complexas do que aquelas encontradas à época de Maquiavel, dos filósofos
contratualistas e de Kant. Na leitura de um texto de filosofia política deve ser considerado
sempre o contexto da época em que foi escrito e identificar quais eram as necessidades da
época, além disso observar uma característica presente em poucos textos: uma certa previ-
são dos acontecimentos. Nesse sentido, A Paz Perpétua de Kant é um texto visionário, pois
antecipou a questão das relações entre Estados como a grande problemática da política fu-
tura.
direitos ... de uma sociedade ... comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias,... (...)” e no artigo IV “A República Federativa rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios: ... VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; IX – cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade”. In: Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
282
Cf. HÄBERLE P. A humanidade como valor básico do Estado Constitucional. p. 65.
283
Cf. HÄBERLE, P. A humanidade como valor básico do Estado Constitucional. p. 56.
284
Cf. HÄBERLE, P. A humanidade como valor básico do Estado Constitucional.. p. 66.
105
Hoje, os cientistas políticos, os filósofos políticos e os próprios políticos têm a fren-
te, novas e complexas questões no campo da fundamentação do Estado, o qual encontra-se
enfraquecido diante do poder econômico e dos problemas que vão além das fronteiras dos
Estados nacionais. O surgimento de um sistema financeiro global aliado às transformações
promovidas pela tecnologia, tende a dissociar-se completamente do Estado e abre ampla
margem para o domínio completo do capital privado, o que é indesejável do ponto de vista
ético-politico. Além disso, acrescentam-se os riscos globais, muitos deles também fruto do
avanço tecnológico, tais como, a ameaça de pandemias, a degradação acelerada do meio
ambiente, o uso de armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas, o terrorismo e a
delinqüência transnacional organizada. Por outro lado, a crescente miséria social, fruto da
brutal desigualdade social presente na maiorias dos países do mundo, cria uma massa de
deserdados insatisfeitos e dispostos a lutar pela sobrevivência. E por fim, somado a todas as
questões levantadas acima, o mundo ainda convive com o fantasma da Segunda Guerra
Mundial, sendo que este passado não muito remoto ainda assombra a humanidade e inspira
temores de um novo conflito mundial. A maioria dos problemas dessa nova ordem mundial
desenvolveram-se, principalmente, a partir da segunda metade do século XX e ecoam for-
temente no século XXI.
Em parte, muito do que acontece no mundo hoje, é reflexo do fato da política estar
sob a crescente influência do liberalismo, que por sua vez, tende a eliminar a própria noção
de político
285
, sob os auspícios da economia total. Observa-se também, em certas regiões
do planeta o colapso de Estados, numa combinação de pobreza, enfermidades e guerra civil,
decorrendo no comprometimento de macroregiões inteiras, e podendo estender seus efeitos
a todo o planeta, tais como os fluxos migratórios atuais.
A existência de regimes totalitários no século XXI dificulta o diálogo em prol de
um solução consensual em torno de questões de alcance global. Tais sistemas, característi-
cos do Oriente Médio e Próximo, da África e da Ásia, respondem pela ingerência de bi-
lhões de pessoas que não participam dos rumos da nação, contribuindo para um Estado ini-
285
Audard afirma que, assim como os comunitaristas não param de afirmar, “ o liberalismo jamais permitirá
o desenvolvimento de uma esfera pública digna de seu nome, de um mundo comum que seja mais que a soma
dos interesses privados. Indivíduos livres e iguais jamais poderão consentir submeter-se a um poder político
coercitivo, ainda que legítimo. A própria idéia de uma esfera de obrigações e de normas comuns contradiz a
afirmação da prioridade da liberdade. Advém, daí, a pobreza da concepção da cidadania no seio do liberalis-
mo. Insistindo na prioridade dos direitos, ele acaba levando ou à anomia social ou à tirania dos juízes”. In:
AUDARD, C. Ética Pública, moral privada e cidadania. p. 250.
106
ciar uma guerra sem fundamentos. Segundo Kant, nos regimes republicanos as pessoas se-
riam consultadas “se deve ou não haver guerra”
286
, e, após verificadas as conseqüências,
decidiriam não participar da guerra. Por outro lado, e contradizendo Kant, nações reconhe-
cidamente republicanas e laicas, vêem-se envolvidas em guerras no século XXI
287
.
Aparentemente a proposta kantiana encontra-se distanciada no cenário atual, quando
se observam os inúmeros desafios elencados acima. No entanto, este realismo com que o
mundo defronta-se, não pode ofuscar outros aspectos também importantes da nossa época,
como demonstra Merle:
“Desde a última guerra, experimentamos o incremento no surgimento de organizações inter-
nacionais e a constituição de acordos bilaterais e sobretudo, multilaterais. Há o surgimento
de instituições, cuja atividade consiste em estimular a propagação dessas organizações su-
pranacionais integrativas, que se caracteriza por um constante aperfeiçoamento. São estrutu-
ras de negociação permanente, das quais resultam tratados sempre mais pretensiosos. Nessas
novas instituições, as organizações internacionais, cujos membros são exclusivamente Esta-
dos democráticos constituindo sua força motriz, fazem parte das mais desenvolvidas e exi-
gentes.”
288
A realidade do século XXI distancia-se profundamente da realidade do século
XVIII, época em que Kant escreve A Paz Perpétua; e, segundo o representante da ONU no
Brasil, Carlos Lopes,
as ameaças e problemas do século XXI não são os do século XX”
289
,
ainda mais se considerarmos que as ameaças e problemas do século XX não foram suficien-
temente diagnosticados e também não foram tomadas as medidas para eliminá-los, o que
agrava a situação atual. A dificuldade em solucionar os problemas existentes atualmente
está, parcialmente, no fato de não existir uma volonté general, como identificou Rousseau,
em nível mundial, pois os problemas de nosso tempo exigem ações combinadas juntamente
com o conjunto da sociedade civil mundial. Não havendo o correspondente de uma socie-
dade civil mundial com capacidade de apresentar o contraponto das práticas adotadas por
286
KANT, I. PP. p. 129.
287
Kersting assinala a inversão existe atualmente, onde Estados democráticos agem de forma beligerante,
completamente alheias ao direito internacional: “Que distúrbio moral é esse: o renascido presidente americano
anuncia ao mundo inteiro que sua guerra destruidora do direito aterroriza Bagdá e ensina respeito ao clã Hus-
sein e seus carrascos e cúmplices! Essa fala do tipo choque e respeito revela de vez um pano de fundo da atual
política externa e militar dos EUA”. In: KERSTING, W. Hobbes, Kant, a Paz Universal e a Guerra contra o
Iraque. p. 7.
288
MERLE, J. C. Ética kantiana de integração e negociação de ingresso. p. 344.
289
Cf. Entrevista: Disponível em: www.onu-brasil.org.br/ . Acesso em 25 set. 2005.
107
Estados e por conglomerados econômicos
290
, as dificuldades de gerenciamento dos proble-
mas aumentam significativamente. Por outro lado, assim como não há um poder de alcance
mundial capaz de manter a ordem de fato, como ocorre no espaço restrito de um Estado,
não é juridicamente e moralmente aceitável que uma nação assuma o papel de “polícia do
mundo”, passando a determinar quais rumos as nações devem adotar internamente, em tro-
ca de proteção do mesmo. Tal prática viola o princípio da autodeterminação dos povos e
assemelha-se a um processo recolonizatório
291
. Segundo Giesen, a grande questão das rela-
ções internacionais hoje, está em definir sobre qual base deve-se regular as relações entre
sociedades que não apresentam as mesmas características
292
, ou seja, diante de inúmeras
visões de mundo, deve-se buscar um consenso mínimo sobre certas questões de interesse
coletivo.
Dessa forma, à distância de mais de dois séculos da obra A Paz Perpétua, o realismo
das ameaças que paira sobre a humanidade parece contradizer o idealismo contido na obra
de Kant. A tensão de viver numa era de incertezas, sobretudo quando as ameaças anterior-
mente citadas exacerbam-se ao invés de retrocederem, desfazem a idéia de uma utopia da
paz. Talvez, um signo do terror e do medo instaurado em nossa época, seja a aliança entre
poder e ciência, ao criar múltiplas possibilidades de dominação e agir diretamente sobre a
liberdade, sendo que viver sob o terror da ameaça equivale a uma situação de guerra. O
desarmamento mundial deve ser o caminho a ser perseguido pelos Estados, superando a paz
290
Uma tentativa de criar um espaço para discutir as questões da era da globalização ocorreu durante o Fórum
Social Mundial de Porto Alegre, o qual buscou ouvir os diferentes segmentos da sociedade civil mundial,
orientados pelo lema “Um outro mundo é possível”. Por outro lado, eventos ocorridos paralelamente aos
encontros do G-7, tais como os ocorridos em Gênova e Seatle, desnudam a problemática de que não é possí-
vel determinar os rumos da humanidade a partir das decisões de alguns governantes, nitidamente comprome-
tidos com a ordem econômica determinada por mega-conglomerados empresariais. O lema das manifesta-
ções contra o G-7 “Vocês são 7, nós somos bilhões” simboliza a dimensão real que a política deve assumir
atualmente.
291
Esta situação, hoje, refere-se diretamente ao papel dos Estados Unidos. Em tempos não muito remotos,
aplicava-se aos blocos formados em torno dos EUA e da ex-URSS. “O fim da segunda Guerra Mundial defi-
niu as vertentes de uma nova ordem internacional que viria reger as relações interestatais até o final da década
de 1980. O mundo, a partir de então, passou a ser dividido e zonas de influência controladas pelas superpo-
tências emergentes, Estados Unidos e União Soviética. Como o Concerto Europeu que o precedera, esse novo
jogo de forças centrava-se em uma proposta articulada entre as grandes potências, que ditaram a divisão do
planeta em zonas de influência definidas pela penetração das ideologias liberal e socialista. Assim, sem con-
seguir estabilizar os arranjos entre Estados, o modelo de equilíbrio – forma clássica das relações internacio-
nais do século XIX – foi confrontado por duas guerras mundiais e acabou sendo substituído, na metade do
século, por um sistema bipolar”. Cf. PHILIPPI, J. N. Direito e relações internacionais no cenário pós 1989. p
393.
292
GIESEN, K. G. O charme perdido do liberalismo político. p. 366.
108
hobbesiana da intimidação, onde o Estado-Leviatã é uma máquina pacificadora armada ao
extremo
293
. Quando em 24 de outubro de 1945, 51 países (incluindo o Brasil) assinaram a
Carta das Nações Unidas, a esperança da solução pacífica dos conflitos foi colocada como
o pilar da política internacional, mostrando o caminho seguro do direito como a única for-
ma possível de realizar a paz. A ONU é um signo do nosso tempo, que, ao reconstruir a
idéia kantiana da paz, alimenta a esperança e mostra o ideal a ser seguido pelos Estados, tal
como veremos neste capítulo.
4.2. Comunidade ética ou estado de direito? (excurso)
A finalidade política e a finalidade moral nem sempre andam junto nos textos kanti-
anos. A complexidade envolta aos textos de filosofia política, filosofia da história, filosofia
moral e da religião exigem uma análise filosófica aprofundada, mas não é objetivo aqui
desvendar as relações existentes entre eles. Este trabalho optou preferencialmente pelos
textos de filosofia política e filosofia da história kantianos, mas sabemos que eles não se
distanciam dos demais, sendo apenas, partes distintas da arquitetônica da razão prática. Isso
pode ser percebido quanto Kant afirma que buscar a paz é o maior objetivo da razão, ou
seja, ela decorre do empreendimento, sob óticas diferentes, da filosofia política, da filosofia
da história, da filosofia moral e da religião,.
Na obra A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant, assim como o fez em ou-
tros momentos, pergunta-se o que podemos esperar, considerando o homem como um ser
moral, livre e autônomo no seio de uma comunidade ética. O pensamento kantiano da Re-
ligião é fruto do ideal iluminista, irradiado no século XVIII a todos os domínios do saber.
Dessa forma para que houvesse o progresso social, econômico, político e moral foi neces-
sário uma crítica radical da autoridade, da tradição, da superstição religiosa e da autoridade
eclesiástica, ou seja, de tudo o que é estranho à razão
294
. Kant colocou à prova a força da
razão ao atribuir ao indivíduo a responsabilidade pela construção de uma comunidade ética
dentro da estrutura do Estado e da tradição religiosa, que nem sempre caminham de acordo
com a razão.
293
Cf. KERSTING, W. Hobbes, Kant, a Paz Universal e a Guerra contra o Iraque. p. 3.
294
Cf. DINIS, A. A Religião nos limites da Simples Razão. p. 506.
109
A tese de que a inclinação ao social é própria da índole humana é compartilhada por
diversos pensadores, a começar por Aristóteles, sendo que o homem não pode prescindir
desta convivência. Kant, no entanto, como já foi destacado, apontou na espécie humana a
existência da insociável sociabilidade como provocadora de uma tensão entre a necessidade
de agrupamento e ao mesmo tempo a necessidade de competir em busca de um espaço en-
tre os demais, e como meio de alcançar o aperfeiçoamento.
Kant também compartilhou da idéia de que é preciso encontrar meios para garantir a
sociabilidade. Segundo o filósofo, ela pode-se dar de duas formas: na forma de um agrupa-
mento humano ou uma multidão de pessoas convivendo sob um regime de tensões, conti-
dos por um sistema de leis coercitivas; ou na forma de uma comunidade ética onde, à seme-
lhança de um estado familiar, as pessoas convivem numa relação fraternal, visando o obje-
tivo comum do bem moral social. Esta é a nova ordem social que Kant tem como ideal e
cuja efetivação ele tem a esperança que seja progressivamente instalada entre os homens
295
.
Assim é expresso por Kant:
“A uma associação dos homens sob simples leis de virtude, segundo a prescrição desta idéi-
a, pode dar-se o nome de sociedade ética e, enquanto estas leis são públicas, sociedade civil
ética (em oposição à sociedade civil de direito), ou uma comunidade ética. Esta pode existir
em plena comunidade política e, inclusive, consistir em todos os membros dela (seja como
for, se esta última não estiver na base, não podia ser levada a cabo pelos homens). Mas tem
um princípio de união (a virtude) particular e a ela peculiar,e portanto também uma forma e
constituição que se distingue essencialmente da forma e da constituição da comunidade polí-
tica. Existe, no entanto, entre ambas, consideradas em geral como duas comunidades, uma
certa analogia, em atenção à qual a primeira se pode chamar também Estado Ético, i.e., um
reino da virtude (do princípio bom), cuja idéia tem na razão humana a sua realidade objetiva
inteiramente bem fundada (como dever de se unir em semelhante Estado), embora subjeti-
vamente jamais pudesse esperar da boa vontade dos homens que eles se decidiriam a traba-
lhar em concórdia em ordem a tal fim.”
296
O modelo ideal de sociedade Kant denominou de “comunidade ética”, a qual pode
conviver perfeitamente numa estrutura política. A comunidade ética é o modelo de uma
sociedade onde existe a consciência moral legisladora, sendo que nela os homens se rela-
cionam a partir das condições a priori da razão. É um modelo puramente racional porque
não é extraído da realidade social anteriormente existente, ou cujo modelo já tivesse sido
295
Cf. HAAG, N. R. A antropologia moral e a consciência legisladora n’A Religião Dentro dos Limites da
Simples Razão de I. Kant. p. 284.
296
KANT, I. RL. p. 100.
110
viabilizado ao longo da história. Portanto, não se trata de um modelo sensível, concreto ou
histórico, porém, um modelo puro da razão
297
.
A existência de uma comunidade ética indica a existência de outra realidade: o ho-
mem é livre e autônomo, pois incorporou plenamente a lei moral, aliviando-o das comple-
xas estruturas jurídico-políticas, transformadas em contratos e sistemas de leis e sob o po-
der coercitivo do direito. É um dever da pessoa humana, como vontade particular dela, de-
sejar a realização da comunidade ética, e não o contrário, isto é, a comunidade ética exercer
uma força atrativa sobre a pessoa para que se beneficie do bem moral que nela se encontra.
A organização de uma comunidade ética, a partir da vontade particular, deve ter como fim a
união de todas as pessoas, como potência unida, com o objetivo específico de formar uma
sociedade sob leis morais da razão, para combater o mal e garantir o sucesso de tal empre-
endimento. A união de todos para tal propósito comum é uma das finalidades da organiza-
ção de uma comunidade ética
298
. A diferença para o Estado político encontra-se aí: na co-
munidade ética é o próprio indivíduo, que exercendo a sua autonomia moral, decide parti-
cipar de uma comunidade virtuosa; na comunidade política, os indivíduos também são li-
vres, mas são constantemente coagidos pelas normas exteriores, que nem sempre estão em
conformidade com as suas vontades. Vejamos esta passagem de Kant:
“Um estado civil de direito (político) é a relação dos homens entre si, enquanto estão comu-
nitariamente sob leis de direito públicas (que são no seu todo leis de coação). Um estado ci-
vil ético é aquele em que os homens estão unidos sob leis não coativas, i.e., sob simples leis
da virtude.
299
Kant ressalta que na comunidade política há somente o desejo dos cidadãos fazerem
parte de uma comunidade ética, não existindo jamais a exigência para que isto se torne rea-
lidade, pois consistiria na anulação da própria comunidade ética, que traz no seu âmago a
liberdade quanto a qualquer tipo de coação
300
. Kant compara o estado de natureza jurídico
com o estado de natureza ético, e de certa forma, aponta em direção a uma complementari-
edade entre a comunidade ética e o Estado de direito, pois ambas visam o aperfeiçoamento
297
Cf. HAAG, N. R. A A antropologia moral e a consciência legisladora n’A Religião Dentro dos Limites da
Simples Razão de I. Kant. p. 339.
298
Cf. HAAG, N. R.. A antropologia moral e a consciência legisladora n’A Religião Dentro dos Limites da
Simples Razão de I. Kant. p. 289.
299
KANT, I. RL. p. 101.
300
Cf. KANT, I. RL. p. 102.
111
do homem, com a diferença de que a primeira opera no interior
301
dos homens e o segundo,
no aspecto exterior do homem. Diz Kant:
“Assim como o estado de natureza jurídico é um estado de guerra de todos contra todos, as-
sim também o estado de natureza ético é um estado de incessante assédio pelo mal, que se
encontra no homem e, ao mesmo tempo, em todos os outros – os quais (...) corrompem uns
aos outros e de modo mútuo a sua disposição moral – e, inclusive na boa vontade de cada
um em particular, em virtude da ausência de um princípio que os una, como se fossem ins-
trumentos do mal, se afastam do fim comunitário do bem e se põem uns aos outros em peri-
go de cair de novo sob o domínio do mal.”
302
Ficar no estado de natureza ético e no estado de natureza jurídico é algo não deseja-
do pela espécie humana, e para tanto ela cria a moral e o direito como formas de suplantar
essa condição destrutiva e que atenta contra a própria existência da espécie. A saída é a-
bandonar o estado de natureza em direção a duas alternativas:
“Ora bem, assim com o estado de uma liberdade externa desprovida de lei (brutal) e de uma
independência em relação a leis coativas constitui um estado de injustiça e de guerra de to-
dos contra todos, de que o homem deve sair, para ingressar num estado civil político, assim
o estado de natureza ético é um público assédio recíproco dos princípios de virtude e um es-
tado de interna amoralidade, de que o homem natural se deve, logo que possível, aprontar e
sair.”
303
Finalmente, chegamos à questão fundamental que une as idéias de uma comunidade
ética e uma comunidade política, ressaltando o que foi afirmado no início desta seção sobre
a convergência da filosofia prática kantiana. Kant afirma que “toda a espécie de seres ra-
cionais está objetivamente determinada, na idéia, a saber, ao fomento do bem supremo co-
mo bem comunitário”
304
, ou seja, a realização do supremo bem é algo que o gênero tem
como dever para si próprio. Poderíamos interpretar livremente que a existência de um esta-
do civil de direito favorece a existência de uma comunidade ética e vice-versa, sendo que
ambos contribuem para o aperfeiçoamento humano e a realização da paz perpétua. Enquan-
to membros de uma comunidade ética, os cidadãos não estão em conflito
305
como cidadãos
do Estado e estão favorecendo o gradativo aperfeiçoamento das instituições jurídicas. Kant
301
Cf. KANT, I. RL. p. 102.
302
KANT, I. RL. p. 103.
303
KANT, I. RL. p. 103.
304
KANT, I. RL. p. 105.
305
Cf. KANT, I. RL. p. 103.
112
afirmou que, assim como há várias comunidades no estado de natureza ético, não existindo
ainda um todo ético universal, também ocorre com os diversos Estados políticos, que ainda
não se encontram ligados por meio de um direito público das gentes
306
.
A distinção que Kant faz entre uma comunidade ética e uma comunidade política,
ao final, e sem perder suas características peculiares, converge na própria idéia da paz per-
pétua, a qual toda comunidade deve almejar. Segundo Herrero, há uma continuidade entre o
fim político e o fim religioso, “sendo que a filosofia da história religiosa portanto, terá de
ser concebida em continuidade com a história política, apesar da sua diferença intrínse-
ca”
307
. As diferenças entre a história política e a história da religião não impedem a existên-
cia de uma teleologia comum, corroborando com a idéia de que toda ação humana em Kant,
almeja um reino dos fins pacífico. E dessa forma conclui-se com Herrero que “se o fim da
história política era a sociedade cosmopolita, regida pelo direito universal, e por ele a paz
perpétua, o fim último da história total, isto é, em todas as suas dimensões, é o fim moral,
só consumável na religião e portanto na sociedade ética. Nesse sentido o fim político de-
pende e se consuma apenas no fim religioso. A legalidade depende e se consuma na mora-
lidade”
308
. O ideal moral é o primeiro a ser alcançado pela humanidade, pois em havendo
uma comunidade ética, também haveria o respeito às leis jurídicas. Nesse sentido, a paz
perpétua, em última análise, seria fruto do próprio aperfeiçoamento moral da humanidade.
Assim sendo, retomamos a questão da conversão moral exposta por Kant n’A Paz
Perpétua, quando o filósofo alemão afirma não ser necessário a existência de seres morais,
mas apenas seres cumpridores das leis, quando se trata do estabelecimento do Estado. Bem
entendidos, os textos de Kant permitem concluir que uma sociedade juridicamente organi-
zada permite o desenvolvimento moral da pessoa e pessoas morais são pessoas naturalmen-
te cumpridoras das leis jurídicas, e mais ainda, não necessitam da coerção do direito. Há um
favorecimento recíproco, o qual só pode trazer benefícios para a espécie humana, quando
por um lado as pessoas aperfeiçoam-se moralmente e, por outro, as leis jurídicas salva-
guardam o Estado e contribuem para a ampliação da liberdade humana. A coercitividade é
uma possibilidade do direito e não uma realidade necessária, pois é melhor viver numa so-
ciedade onde as pessoas não precisem ser coagidas a agir corretamente. E concluímos esta
306
Cf. KANT, I.RL. p. 102.
307
HERRERO, F. J. Religião e História em Kant. p. 152.
308
Cf. HERRERO, F. J. Religião e História em Kant. p. 155.
113
reflexão, seguindo a análise feita por Pinheiro, segundo a qual “a constituição da socieda-
de, em Kant, é marcada pelos conflitos e antagonismos entre os indivíduos. Isso porque a
finalidade não está centrada no indivíduo, mas na espécie. Esse ponto é central, no pensa-
mento ético e político de Kant, pois a maneira como a sociedade irá se organizar é determi-
nante para o comportamento mais ou menos moral do homem. Isto significa dizer que as
implicações entre a sociedade e a moral são maiores do que a simples constatação de que a
sociedade é formada por seres morais. A possibilidade moral depende da sociedade e vice-
versa”
309
.
A filosofia kantiana, em certos momentos, atribuiu à práxis o primado sobre a filo-
sofia teórica. E, como tal, Kant parte do fato de que a razão prática pode e deve prescrever
fins e metas que se devem realizar na história com caráter obrigatório e em vista de um
reino dos fins
310
. Por outro lado, Kant como pensador da AufKlarung e pelo fato da efeti-
vação do bem comum estar na base do seu modo de pensar, levantou problemas que não
pertencem sem mais à história do passado, mas são absolutamente atuais e hoje exigem
novas soluções
311
. Se as ações dos indivíduos não tivessem qualquer tipo de implicação
sobre outros indivíduos, não haveria a preocupação em torno da questão moral, pois ela tem
como finalidade conscientizar a todas as pessoas humanas de seu compromisso e responsa-
bilidade com o todo social, visto que as ações de cada um repercutem sobre toda a coletivi-
dade
312
.
Kant trabalhou com a possibilidade de transformação do indivíduo simultaneamente
com a transformação das estruturas jurídico-políticas, sem que um lado tire a autonomia do
outro, ou seja, o Estado não pode decidir sobre a liberdade do indivíduo e este não pode
opor-se à coletividade legalizada e representada no Estado. Assim como afirma Nour , Kant
309
PINHEIRO, C. M. Sociedade Justa: palco para o progresso moral em Kant. p. 6.
310
O reino do fins permite o encontro entre fim individual e fim coletivo, os quais não estão em contradição,
mas em plena concordância, pois ambos visam o bem da humanidade. Essa idéia é assim apresentada por
Soraya Nour: “Como o modelo é o reino dos fins, não se trata de fins –e com isso de deveres – de todos os
indivíduos em uma pluralidade, mas sim em uma totalidade: a humanidade. Um fim objetivo de pessoas em
uma pluralidade é primeiro um fim que todos os indivíduos têm, e que apenas como conseqüência é conside-
rado um fim da humanidade. Um fim objetivo de pessoas em uma totalidade –a humanidade – é primeiro um
fim da humanidade e apenas como conseqüência é um fim de todos os membros desta comunidade – apenas
porque a humanidade se encontra em cada um”. In: NOUR, S. À Paz Perpétua de Kant. Filosofia do Direito
Internacional e das Relações Internacionais. p. 59.
311
HERRERO, F. J. Religião e História em Kant. p. 6.
312
Cf. HAAG, N. R. A antropologia moral e a consciência legisladora n’A Religião Dentro dos Limites da
Simples Razão de I. Kant. p. 339.
114
“apresenta com o conceito do reino dos fins o modelo de um mundo a ser realizado como
bem comum não por indivíduos isolados, mas sistematicamente unidos em uma totalidade,
sem, no entanto oprimir o indivíduo e seu fim particular”
313
. Enfim, o aperfeiçoamento mo-
ral do indivíduo e a concretização da paz perpétua como soberano bem político são etapas
do mesmo projeto, que é a felicidade da humanidade.
4.3 O século XX e as duas guerras mundiais: a criação da ONU, a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos e a consciência de um novo mundo
O conceito de paz no século XX passou por um processo de redefinição, sendo que
não se trata mais somente da não existência de uma guerra declarada entre dois países. Hoje
é considerada uma condição de paz o equilíbrio interno e externo de um Estado, bem co-
mo o controle de situações de risco globais. São considerados problemas de abrangência
global o aumento descontrolado da população e sua direta relação com a miséria, a agressão
progressiva ao meio ambiente e a proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas.
Estas situações nos fazem lembrar que o século XX foi o século em que a humanidade nun-
ca avançou tanto, mas também nunca esteve tão próxima de sua destruição completa. Bus-
caremos nessa seção demonstrar que a humanidade ou o gênero humano esteve muito pró-
ximo de seu pior, mas por um esforço racional da sociedade, de governantes e intelectuais,
houve a recondução em direção à paz.
No século XX eclodiram duas guerras mundiais e a humanidade presenciou a morte
de milhões de pessoas em decorrência do uso da tecnologia associada ao aparato bélico.
Não trataremos aqui dos motivos que conduziaram à eclosão das duas grandes guerras,
sendo estas questões abordadas em vasta bibliografia. Interessa-nos tematizar sobre o
fracasso das negociações jurídicas no plano internacional, bem como a consciência de uma
nova realidade no ordenamento jurídico internacional, qual seja, a guerra de Estados contra
Estados numa dimensão global e seus efeitos perversos, também de ordem planetária. E,
sobretudo, demonstraremos o papel fundamental da ONU no período pós-guerra, em
relação a condução dos complexos movimentos assumidos pela humanidade no século XX
e presentes ainda neste século.
313
NOUR, S. À Paz Perpétua de Kant. Filosofia do Direito Internacional e das Relações Internacionais. p. 60.
115
O surgimento da ONU foi antecedido por outras tentativas que não vingaram, tal
como a Sociedade das Nações, surgida após a Primeira Guerra Mundial. A Conferência de
Paz de Versalhes, realizada em 19 de abril de 1919, concretizou a primeira organização de
vocação internacional, cujo objetivo precípuo era a manutenção da paz. No entanto, a dura-
ção dessa organização de caráter universal não durou muito, devido a falta de autonomia de
seu tratado constitutivo, a rigidez de suas regras, a admissibilidade de “guerras lícitas”, a-
lem disso, a crescente insatisfação social que atingia proporções planetárias, entre outros
motivos
314
. O fim da Sociedade das Nações revelou um ambiente propício a novas guerras,
concretizando-se num curto intervalo de tempo.
A Segunda Guerra Mundial marcou uma nova era no potencial destrutivo das
guerras e no poderio bélico de Estados, agora aparelhados de forma intensa com os
produtos oriundos das tecnologias para a guerra, entre as quais o uso da bomba atômica. A
Segunda Guerra rompeu com qualquer possibilidade de análise política até então
formulada; a possibilidade da destruição em massa mergulhou a humanidade num processo
de questionamento sobre o que o homem poderia esperar do futuro. É nesse contexto
caótico e de profunda inquietude que a ONU nasce em 1945 e posteriormente, em 1948, é
proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sob este novo cenário mundial,
Jeanine Nicolazzi descreve:
O mundo, cindido pela cortina de ferro, (...), viu emergir dos acordos de paz que colocaram
fim à Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas, cujo Ato Constitutivo,
assinado em 26 de junho de 1945, introduziu uma mudança significativa não apenas das
perspectivas, mas, sobretudo, dos valores que sustentavam a sociedade interestatal. Assom-
brada com o terror do holocausto, a comunidade internacional reconheceu a necessidade de
proteger os indivíduos e os povos contra a barbárie e a opressão. Nesse sentido, uma rede de
instituições, pactos e declarações foi operacionalizada para sedimentar a garantia dos direi-
tos universais”
315
.
Foi após a Segunda Guerra Mundial que se colocou em questão a necessidade de
uma Federação de Nações, tal como fora antecipado por Kant, com o poder de evitar guer-
ras, agora concebidas em todo o seu potencial catastrófico. A vinculação entre a idéia kan-
tiana da paz mundial, a partir de uma Federação de Estados com a idéia de uma organiza-
ção mundial, tal como a ONU, é inequívoca. Os ideais kantianos estão direta e indiretamen-
314
Cf. PHILIPPI, J. N. Direitos e relações internacionais no cenário pós 1989. p. 392.
315
PHILIPPI, J. N. Direitos e relações internacionais no cenário pós 1989. p. 394.
116
te presentes no processo de evolução das organizações internacionais, os quais são um sinal
de que os Estados concordam em ceder parte de sua autonomia, em prol da convivência
pacífica universal
316
.
A guerra é sempre violenta, porém nem toda violência é guerra. A guerra é a violên-
cia institucionalizada entre sociedades políticas e sua supressão não é, como concebeu
grande parte do pacifismo tradicional, uma questão que dependa tão somente da moral in-
dividual
317
dos governantes, senão uma questão institucional: a transferência do monopólio
legal da força das mãos dos Estados a uma organização dotada de um poder legislativo e
um poder executivo próprios sobre a base de um Estado de Direito Mundial, com respeito à
identidade dos povos. Dessa forma, a ONU perfaz o ideal kantiano de uma Federação dos
povos com o intuito de garantir a paz definitiva entre as nações do mundo. As nações pre-
sentes ao ato constitutivo da ONU e aquelas que aderiram posteriormente, comprometeram-
se a fornecer todos os meios possíveis para acabar com a ameaça das guerras, como tam-
bém toda e qualquer condição ou ação que atinja a dignidade do ser humano em qualquer
lugar do planeta. Fez-se valer na Carta da ONU a expressão de Kant segundo a qual “a vio-
lação do direito num lugar da Terra se sente em todos os outros”
318
.
316
Segundo Jeanine Philippe “um dos fenômenos mais característicos das relações internacionais pós-segunda
guerra mundial foi o surgimento, em grande número, de organizações internacionais, concebidas para buscar a
superação dos entraves ao desenvolvimento e a consecução dos objetivos comuns da sociedade internacional.
Nos últimos vinte anos, de fato, a história das relações internacionais tem registrado uma rápida proliferação
das organizações internacionais que, de simples uniões de estados, evoluíram para as mais recentes comuni-
dades de caráter supranacional. O aumento dos membros da comunidade internacional produziu conseqüen-
temente, uma diversidade significativa de interesses sociais, econômicos e políticos, que ensejou a criação,
por parte dos estados, de “associações” em áreas geopoliticamente definidas, com o fim de resolver os pro-
blemas comuns. Dentre os elementos que caracterizam tais organismos internacionais destaca-se, sobretudo o
caráter voluntário de sua constituição, o princípio de igualdade e a pluralidade dos membros que os constitui.
A estrutura mais freqüente que distingue as organizações internacionais é aquela que engloba três órgãos
principais – a Assembléia que reúne a totalidade dos estados membros (cuja competência assemelha-se aos
Parlamentos nacionais), o Conselho ou Comitê (dotado de poderes executivos que atua nos limites das diretri-
zes ditadas pela Assembléia), e o Secretariado, responsável pela administração da organização internacional.
Sua existência, entretanto, depende de um tratado internacional celebrado entre os Estados membros – espécie
de norma constitucional daqueles organismos, aos quais as demais normas devem ser subordinadas. Em virtu-
de do próprio Ato Constitutivo que as caracteriza, as Organizações Internacionais possuem uma personalidade
jurídica distinta dos membros que as compõem. Assim, o estado, que foi o principal sujeito do direito interna-
cional até o século XIX, passou a dividir seu papel de protagonista das relações internacionais, de forma irre-
versível, com as Organizações Internacionais, às quais ele cede parte de sua competência soberana”
PHILIPPI, J. N. Direitos e relações internacionais no cenário pós 1989. p. 394.
317
Ela tem sua importância, como foi demonstrado na seção anterior, e é válida para todas as pessoas, inclusi-
ve e, principalmente, para os governantes.
318
KANT, I. PP. p. 140.
117
O preâmbulo da Carta das Nações Unidas contém os elementos do cosmopolistis-
mo, do pacifismo e do humanismo, revelando a nobre causa a que se pretendia a recém cri-
ada Organização das Nações Unidas. A Carta subsumiu toda a elaboração teórica até então
alcançada em torno do caráter contratual do Estado moderno, do direito internacional e dos
ideais humanistas presentes na cultura ocidental, desde os decanos da cultura grega. Eis o
que diz o Preâmbulo
319
:
“Nós, os povos das nações unidas, resolvidos
a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,que por duas vezes, no espaço da
nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fun-
damentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos
homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condi-
ções sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fon-
tes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melho-
res condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
e para tais fins,
praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas
forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princí-
pios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse
comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e
social de todos os povos”.
resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos”
320
.
A ONU consolidou uma nova realidade na política internacional, buscando a solu-
ção de problemas complexos existentes no planeta. A ONU também abriu o caminho para a
organização de órgãos como a OMS, UNICEF, UNESCO, FAO, entre outros, os quais es-
tão amparados no direito público internacional e funcionam por meio de acordos, tratados,
convenções e protocolos
321
assinados pelos países signatários. Estes órgãos configuram
319
A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, EUA, a 26 de junho de 1945, após o término da
Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daque-
le mesmo ano.
320
Carta das Nações Unidas. Disponível em: In: http://www.onu-brasil.org.br/.
321
No âmbito das Nações Unidas, são produzidos vários documentos jurídicos, sobre os mais diversos temas –
de direitos políticos da mulher até escravatura, de direito penal internacional à preservação da diversidade
biológica, de proibição de armas químicas a direitos das crianças. Os instrumentos mais comuns para expres-
sar a concordância dos Estados-membros sobre temas de interesse internacional são acordos, tratados, con-
venções, protocolos, resoluções e estatutos. O termo acordo é usado, geralmente, para caracterizar negocia-
ções bilaterais de natureza política, econômica, comercial, cultural, científica e técnica. Acordos podem ser
118
uma nova visão sobre a forma de tratar os assuntos de interesse mundial e têm em comum a
universalização dos direitos humanos e o respeito à diversidade cultural.
Os propósitos da ONU visam garantir os direitos humanos, renunciando qualquer
imposição às diferentes culturas do mundo, mas em contrapartida, não deixará de intervir
num determinado Estado quando este oprime o seu próprio povo. No Preâmbulo da Decla-
ração Universal dos Direitos do Homem, afirma-se que doravante deverão ser protegidos os
direitos do homem fora e acima dos Estados particulares, evitando que o homem seja obri-
gado, como última instância, a rebelar-se contra a tirania e a opressão
322
.
O caráter federativo da ONU mantém o princípio da autodeterminação dos povos,
ou seja, ela não interferirá no processo político interno da nação, salvo na condição acima
citada. Kant afirmara que “os Estados com relações recíprocas entre si não têm, segundo a
razão, outro remédio para sair da situação sem leis, que encerra simplesmente a guerra,
senão o de consentir leis públicas coativas, do mesmo modo que os homens singulares en-
tregam a sua liberdade selvagem (sem leis), e formar um Estado de povos (civitas gentium),
que (...) englobaria por fim todos os povos da Terra”
323
. A ONU garante a soberania das
nações e incentiva políticas que dêem autonomia aos cidadãos das mesmas, ou seja, a de-
mocracia é o único sistema de governo compatível com a liberdade; e por outro lado, a
ONU participará ativamente para o redirecionamento de determinada nação, em desacordo
com os princípios democráticos e dos direitos humanos. Estas concepções estão contidas
nos propósitos da ONU, assim enunciados no primeiro artigo da Carta:
“1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medi-
das efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer rup-
tura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e
do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam
levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas
no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar
outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma coopera-
firmados entre países ou entre um país e uma organização internacional. Tratados são atos bilaterais ou mul-
tilaterais aos quais se deseja atribuir especial relevância política. A palavra convenção costuma ser emprega-
da para designar atos multilaterais, oriundos de conferências internacionais e que abordem assunto de interes-
se geral. Protocolo designa acordos menos formais que os tratados. O termo é utilizado, ainda, para designar
a ata final de uma conferência internacional. Resoluções são deliberações, seja no âmbito nacional ou interna-
cional. Estatuto é um tipo de leis que expressa os princípios que regem a organização de um Estado, socieda-
de ou associação. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>.
322
Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>.
323
KANT, I. PP. p. 136.
119
ção internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social,
cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às li-
berdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser
um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos
comuns.”
324
Quanto ao caráter federativo da ONU, ela se orienta pelo princípio da autonomia
dos Estados, e não impõe a participação de nenhum dos membros, tal como Kant dissera na
Paz Perpétua: “é possível representar-se a exeqüibilidade (realidade objetiva) da federação,
que deve estender-se paulatinamente a todos os Estados e assim conduzir à paz perpé-
tua”
325
. Assim apresenta-se a Carta da ONU em seu segundo artigo:
“A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo
1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da
igualdade de todos os seus Membros. 2. Todos os Membros, a fim de assegurarem para to-
dos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de Membros, deverão
cumprir de boa fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente Carta. 3. To-
dos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de
modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. 4. Todos os
Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra
a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra a-
ção incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. 5. Todos os Membros darão às Na-
ções toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Car-
ta e se absterão de dar auxílio a qual Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo
preventivo ou coercitivo. 6. A Organização fará com que os Estados que não são Membros
das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à
manutenção da paz e da segurança internacionais. 7. Nenhum dispositivo da presente Carta
autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da ju-
risdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma so-
lução, nos termos da presente Carta; (...)”
326
Três anos depois da criação da ONU foi dado outro importante passo em direção à
pacificação da humanidade. Em 1948, foi solenemente aprovada a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, através da qual todos os homens da Terra adquiriram uma nova ci-
dadania, a cidadania mundial, tornando-se igualmente sujeitos do direito internacional e
capazes de exigir o respeito aos direitos fundamentais por parte do Estado e da comunidade
internacional, que começava a ganhar visibilidade e poder de ação global.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 10 de dezembro de
1948, por 48 Estados na Assembléia Geral das Nações Unidas e posteriormente subscrita
324
Carta das Nações Unidas. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/>.
325
KANT, I. PP. p. 135.
326
Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>.
120
pela maioria dos Estados do globo é o grande passo dado pela humanidade em direção a
uma sociedade livre e igualitária. A Declaração, aliada a pregressa criação da ONU é uma
prova daquilo que Kant chamava do “constante progresso para o melhor”, pois ali estão
contidos os elementos fundamentais para garantir a liberdade e a dignidade humana. Ela é
uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro
327
, ou seja, está sujeita a mudanças,
sem, no entanto, perder a sua essência. Para Bobbio, foi a Declaração que manifestou “ a
certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha alguns valores co-
muns”
328
, e ainda, numa referência ao universalismo kantiano, pode-se “crer na universali-
dade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no
sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente
acolhido pelo universo dos homens”
329
. Na Declaração Universal fica subsumido todo o
esforço empreendido pelo humanismo dos séculos anteriores, a começar pela construção do
ideário político greco-romano, os ideais humanistas do Renascimento, perpassando os filó-
sofos contratualistas e alcançando a Aufkärung, que tem em Kant seu principal representan-
te, ao acolher no domínio da razão a verdadeira liberdade do homem. No Preâmbulo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal da paz, da liberdade e da dignidade do
ser humano são ratificados pelas nações como formas legítimas de garantir a existência da
humanidade e o desenvolvimento de todas a suas potencialidades.
A prova do funcionamento de uma estrutura federativa como a ONU está na ausên-
cia, desde sua criação há 60 anos, de uma terceira guerra mundial e na diminuição constan-
te dos conflitos civis e de mortes oriundas de guerras
330
. Além disso, a ajuda humanitária
internacional, o combate à fome e as mais diversas formas de violência, incluindo o direito
das minorias, tem sido intenso. Há por outro lado, novas ameaças à ordem internacional, as
quais exigem esforços constantes dos órgãos da ONU, sendo que o resultado de suas ações
327
Cf. BOBBIO, N. A Era dos Direitos. p. 34.
328
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. p. 28.
329
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. p. 28.
330
Segundo o relatório do Human Securiy Center, da Universidade de British Columbia (Canadá) desde o
fim da Segunda Guerra houve uma redução do número de guerras, além de menos mortos, conforme o relató-
rio “Guerra e Paz no Século XXI”. Ainda segundo o relatório, a redução das guerras e do número de mortos
deve-se aos avanços obtidos na diplomacia da paz, democracia e justiça internacional contrariando mitos em
torno dos dados sobre as guerras. No entanto, o relatório aponta o déficit na África subsaariana, onde a com-
binação de miséria, instabilidade das instituições políticas, discriminação étnica e a proximidade de outras
guerras provoca constantes conflitos e um crescente número de mortos. O documento também adota cautela,
ao afirmar que estão em curso 60 conflitos armados mortíferos, indo do Iraque a Darfur. Cf. BOLOPION,
Philipe. Mundo tem menos guerras hoje, diz estudo. In: Folha de São Paulo. 22 de out. 2005.
121
muitas vezes é inglório. As ameaças atuais concentram-se sobre o terrorismo internacional,
as toxinas químicas e biológicas e a proliferação de armas nucleares pelos Estados e atores
não-estatais, colocando em risco os mecanismos atuais de segurança mundial
331
. A preocu-
pação com a segurança provoca um desgaste intenso para os Estados e para a própria ONU,
ficando impedidos de acompanhar com a devida atenção outras questões como a fome,
miséria, a saúde e os direitos das minorias.
Enfim, como vimos, a atual estrutura da ONU assemelha-se muito à proposta kanti-
ana de uma federação de Estados com fins pacíficos. É imperioso ressaltar que a ONU é um
espelho da ordem internacional, portanto, se ela não alcança os objetivos a que se propôs
desde sua criação, deve-se ao fato de que não há o esforço das nações congregadas em tor-
ná-la melhor, haja vista, a não ratificação de acordos internacionais por parte de muitas
nações. A ONU reflete em sua ordem interna os desequilíbrios de poder existentes no mun-
do, os quais se alojam no seu interior, assim como foi durante a Guerra Fria, quando a EUA
e URSS trouxeram suas premissas para os debates internos da ONU e conseqüentemente
para o mundo. Com o fim da bipolaridade, a ONU continua a enfrentar a desigualdade de
poder, tal como é visto na composição e na resistência à ampliação do Conselho de Segu-
rança, principal órgão executivo, com a responsabilidade primordial pela manutenção da
paz e da segurança. Apesar destas questões polêmicas e diversas outras não citadas, é in-
contestável o papel da ONU como único fórum legítimo de discussão internacional, o que
garante afirmar que os seus ideais estarão presentes por muito tempo no horizonte da polí-
tica internacional . As mudanças futuras da ONU deverão acompanhar as exigências do seu
tempo, mas sem jamais perder de vista o ideal cosmopolita, democrático e humanista que
expressamente a caracterizam. A ONU almeja imperiosamente a paz e condena a guerra,
pois assim ordena a razão, como afirmou Kant.
331
As questões em torno do desarmamento e da não-proliferação são motivo de um debate vigoroso entre os
Estados-Membros da ONU. Atualmente está sendo proposto que todas as nações acedam e adiram a instru-
mentos juridicamente vinculativos como o Tratado de Não-proliferação das Armas Nucleares (TNP), a Con-
venção sobre Armas Químicas e a Convenção sobre Armas Biológicas e Tóxicas. Cf. ONU-Brasil. Disponível
em: <http://www.onu-brasil.org.br/>.
122
4.4. República mundial, cosmopolitismo jurídico e globalização
Kant recusou a idéia de um Estado de povos, pois a sua implantação implicaria na
existência de um soberano com capacidade de atuar sobre todas as nações
332
. A Federação
dos povos proposta por Kant salvaguarda a soberania das nações, as quais, livremente e de
forma gradual iriam aderir à Federação. Hoje, no entanto, é questionado se um modelo
como a Federação proposta por Kant ou a própria ONU alcançam realmente os propósitos
de instaurar a paz perpétua entre as nações, diante dos enormes desafios citados anterior-
mente e que parecem exigir algo mais do que uma Federação.
As análises de Kant sobre a guerra foram próprias do seu tempo e o filósofo não ti-
nha como prever a potencialização do poder bélico no século XX, quando se conjugou ci-
ência e alta tecnologia com fins de destruição em massa, chegando-se a possibilidade de
destruição completa da humanidade em pouco tempo. Possíveis guerras entre Estados ou
uma terceira guerra mundial no século XXI não teriam ( e não tem) as mesmas característi-
cas daquelas vivenciadas até as primeiras décadas do século XX, mas aproximar-se-iam de
uma conjugação dos meios utilizados na Segunda Guerra Mundial, com o uso de bombas
atômicas, da Guerra do Vietnã, com o uso de armas químicas e da Guerra do Golfo, quando
foram utilizados os mísseis intercontinentais teleguiados; além disso, a disseminação em
escala global de vírus letais manipulados em laboratórios abrem outro campo de combate.
Essa nova semântica da guerra, que se afasta das guerras de trincheiras e do front de bata-
lha, questionam as atuais concepções de Estado, o modelo de política internacional até aqui
elaborado e o próprio poder de atuação da ONU, exigindo uma nova retórica no diálogo
político internacional, o qual tem sido insuficiente até o momento. Dessa forma, a rejeição
à época de Kant de um Estado mundial, parece encontrar eco em nossa época diante do
agigantamento dos problemas, apesar de inúmeras resistências por parte de Estados, que
não admitem perder a soberania e da própria incerteza quanto ao funcionamento de um Es-
tado mundial.
Seria possível distinguir três formas organizacionais no direito público internacional
em Kant: o Estado mundial, a república dos povos e a confederação de Estados. A repúbli-
ca mundial é a solução leviatânica definitiva para a paz universal, pois o integraria à plura-
332
Cf. KANT, I. PP. p. 132.
123
lidade estatal-hobbesiana através da absorção de todos os Estados nacionais num único Es-
tado de dimensão planetária, o qual consubstanciaria uma solução radical aos problemas do
direito dos povos
333
. Kant, ao optar pela forma confederativa, preservou o poder soberano
das nações, acreditando no esclarecimento dos cidadãos republicanos, os quais conduziriam
as relações entre os povos de forma pacífica. Pensar um Estado mundial significa afastar-se
da proposta kantiana, mas perguntar qual seria a sua possibilidade, bem como os seus bene-
fícios e prejuízos no contexto da política internacional atual é dever do filósofo, que deve
agir, não raro, como um extemporâneo, tal como fizera Kant ao escrever a obra A Paz Per-
pétua, considerada à época como um “doce sonho” , interrogou profundamente sobre o
porvir da humanidade e mantém-se como referência no campo teórico político atual. No
entanto, trabalharemos aqui com as hipóteses levantadas por Höffe e Habermas, que tam-
bém se afastam de um Estado mundial e aproximam-se do modelo kantiano.
O ordenamento jurídico mundial atual é definido pela existência de diferentes Esta-
dos, com suas respectivas fronteiras e pelo cumprimento de acordos, tratados e convenções
internacionais, subscritos pela maioria dos países. Nos Estados democráticos, o cumpri-
mento de normas internacionais é, naturalmente, parte de uma realidade vivenciada inter-
namente, ou seja, o Estado democrático de direito prevê a colaboração internacional e o
respeito ao direito internacional, bem como o respeito aos princípios democráticos e aos
direitos humanos. O problema hoje parece estar nos países socialistas, no mundo islâmico,
onde existem sérios problemas em relação ao direito internacional e em parte dos Estados
democráticos, que decidem não colaborar com a comunidade internacional. Os totalitaris-
mos existentes em alguns países socialistas, como a Coréia do Norte, o fundamentalismo
religioso-político existente na maioria dos Estados árabes, a miséria crônica na África, o
descumprimento de acordos internacionais por parte de Estados ocidentais
334
, as armas de
destruição em massa nas mãos de países democráticos e não-democráticos, e aliado a essas
questões, o poder econômico global sobrepondo-se aos Estados nacionais, colocam em ris-
co o ordenamento jurídico internacional e exigem uma nova retórica política. É diante desse
333
Cf. HECK, J. N. Thomas Hobbes: passado e futuro. p. 235.
334
Como exemplos, a não adesão dos EUA ao Protocolo de Kioto e a retirada da Coréia do Norte do Tratado
de Não- Proliferação de Armas Atômicas (TNP), o qual entrou em vigor em 1970. Segundo o egípcio Mo-
hamed el Baradei, laureado com Nobel da Paz, juntamente com a AIEA (Agência Internacional de Energia
Atômica) em outubro de 2005, é necessário impedir o crescimento de armas atômicas e ter claro o consenso
da comunidade internacional quanto a não-proliferação de armas atômicas. KOCH, Robert. Agência atômica
da ONU leva Nobel da Paz. In: Folha de S. Paulo, 08 out. 2005.
124
cenário assustador que se discute atualmente a ampliação do papel exercido pela ONU e o
surgimento de uma república mundial, como meios para solucionar tais problemas e pre-
servar primordialmente a ordem internacional, conforme comenta Vitzthum:
“(...) enquanto norma universal da política internacional, vinculante igualmente para todos
os Estados, o ordenamento jurídico internacional deve ser salvaguardado frente a uma pos-
sível desintegração. No mundo globalizado das esferas e conflitos culturais, a unidade do
ordenamento jurídico internacional é um valor jurídico autônomo promotor da segurança, do
Estado de direito e da democracia”
335
.
Segundo os analistas políticos, considerando o alto poder de destruição nas mãos de
Estados e de grupos para-estatais, mais do que a desintegração do ordenamento jurídico
internacional, a humanidade tem o poder de suicídio coletivo, respaldado por uma comuni-
dade da violência
336
. E, paralelamente ao poder bélico, há o círculo vicioso entre cresci-
mento econômico e destruição ambiental, tornando uma eminente catástrofe ecológica, o
inimigo verdadeiro e comum da humanidade
337
. A desproporção entre saber ético-político e
o imenso potencial científico-tecnológico
338
, tornam urgentes as investigações no campo da
política e da ética, visando o equilíbrio entre o que pode ser feito e o que deve ser feito.
Pensar a política para além do Estado nacional e a partir das ameaças atuais é, certamente, o
caminho que apresenta soluções plausíveis para a nossa era, alcunhada de “era de incerte-
zas”.
Falar sobre o universal é uma constante para os filósofos, sendo que Kant foi o pri-
meiro filósofo a tratar o tema da universalidade no campo da política
339
. Na mesma linha de
Kant, mas propondo uma organização que atenda às necessidades do nosso tempo, Höffe
defende a existência de uma “república mundial” como a forma mais propícia para a solu-
335
VITZTHUM, W. G.. Unidad del ordenamiento jurídico internacional? p. 41.
336
Cf. OLIVEIRA, M. A. Ética e Justiça num mundo globalizado. p. 556.
337
Cf. OLIVEIRA, M. A. Filosofia Política Contemporânea. p. 9.
338
Cf. OLIVEIRA, M. A. Filosofia Política Contemporânea. p. 9.
339
Segundo Höffe, “estranhamente é do gosto dos filósofos falar sobre o universal e não obstante negligenci-
am a justiça da comunidade política universal, a de toda a humanidade. Na Antiguidade greco-romana não são
Platão e Aristóteles, os eminentes representantes da filosofia política, que refletem sobre uma república uni-
versal, uma cosmópole, mas só os estóicos. Porém, o cosmopolitismo estóico é quase sempre apolítico. Na
Idade Moderna o desiderato se repete. A primeira e até hoje única exceção entre os clássicos da filosofia é
Kant, com seu projeto filosófico A paz Perpétua e as pertinentes passagens da Doutrina do Direito (53-62).
Para Kant, a idéia de uma ordem universal de paz e de direito não representa um tema ocasionalmente rele-
vante, mas constitui um motivo fundamental de todo o seu pensamento. Hoje, na era da globalização múltipla,
esse pensamento reveste-se de especial atualidade”. In: HÖFFE, O. O que é justiça. p. 115.
125
ção dos problemas já mencionados neste capítulo. Höffe sustenta a idéia de uma ordem
universal ao mesmo tempo inter- e supra-estatal, que garanta o direito e a paz, fundamenta-
da nos princípios de justiça política (direito, direitos humanos, os poderes públicos e a de-
mocracia) próprios dos Estados individuais, os quais são denominados por democracias
constitucionais, Estados de constituição democrática ou simplesmente, repúblicas
340
. Höffe
parte dos elementos já conhecidos nos sistemas tradicionais que fundamentaram o Estado
nacional e que se tornaram insuficientes nesta época marcada pela globalização
341
e uma
situação de paz instável, para formular a idéia de uma república mundial:
“A partir dessa comunidade jurídica familiar, intra-estatal, acedemos à figura não-familiar,
inter- e supra-estatal, com ajuda de um princípio de ligação, a saber, a descoberta de que os
Estados se comportam isoladamente como indivíduos no tocante a aspectos importantes. É
certo que eles não são totalidades orgânicas, mas sujeitos coletivos capazes de tomar deci-
sões e agir. Por isso, os argumentos de justiça em favor de um Estado individual valem tam-
bém para a relação entre os Estados. É necessário, pois, um ordenamento jurídico mundial
com uma certa estatização mundial, quer dizer, de uma república mundial.”
342
A função da república mundial é administrar questões que transcendem ao Estado
nacional, debilitado naturalmente para exercer tarefas supra-estatais pelo fato de seus pró-
prios fundamentos limitarem-se a condução dos processos internos e a salvaguardar a sua
soberania. A república mundial possibilita a interconexão dos Estados na busca de soluções
dos problemas comuns à humanidade e que exigem ações conjuntas entre os Estados. Há
atualmente uma demanda global de ações, as quais são impossíveis de serem realizadas
individualmente pelos Estados, mas que encontram perspectivas na formação de uma repú-
blica mundial, tais como a criação de uma ordem internacional do meio ambiente e da paz,
a criação de tribunais internacionais e a definição de critérios mínimos sociais e ecológi-
cos
343
. Para Höffe, a realização dessas ações exigem a criação de um Estado de direito em
escala global e uma democracia global, ou seja, uma república mundial
344
. Höffe, assim
como Kant, rejeita a idéia de um Estado mundial que dissolve os Estados individuais e os
340
Cf. HÖFFE, O. O que é justiça. p. 116.
341
A globalização é entendida aqui como o processo de intensificação do fluxo de capitais a partir da segunda
metade do século XX, bem como a crescente sobreposição do poder econômico em detrimento do Estado
nacional e da própria política, desfazendo conquistas na área social e impedindo a efetivação de políticas de
justiça social planetária.
342
Cf. HÖFFE, O. O que é justiça. p. 116.
343
Cf. HÖFFE, O. O que é justiça. p. 117.
344
Cf. HÖFFE, O. O que é justiça. p. 117.
126
estágios intermediários continentais (europeus, africanos...); a existência de uma república
mundial subsidiária ocorre por uma questão de justiça que legitima a soberania dos Esta-
dos
345
, ao contrário de sua supressão. Não consistindo num Estado mundial, a República
Mundial obedeceria à idéia da federação, inicialmente sob um soft law por trás do Executi-
vo, do Legislativo e do Judiciário mundial:
“Assim a república mundial exigida do ponto de vista da justiça não é nenhum Estado mun-
dial centralista que absorve todos os países individuais e busca dominar todo o mundo a par-
tir de uma metrópole [...]. Ele não é nenhum Estado centralista, mas uma federação mundial.
Denominamos soft law, direito suave, as regras que não satisfazem o conceito rigoroso do
direito. Correspondentemente o ordenamento jurídico mundial inicia como soft world repu-
blic, como república mundial suave, quer dizer como rede política global já determinadas
por regras (“Legislativo Suave”), que logram impor-se de um outro modo (‘Executivo Sua-
ve”) e já conhecem germes de um sistema judicial global, ao menos de um sistema arbitral
global (“Judiciário Leve’). O próximo passo pode ser uma federação mundial de países que,
pouco a pouco, e apenas em lapsos mais longos de tempo, se desenvolve na direção de uma
república mundial federativa. E como unidade estatalmente subsidiária e federal, ela tem
competência tão-só para tarefas que nem os países individuais nem os estágios macrorregio-
nais intermediários podem realizar, seja isoladamente ou em regime de cooperação, valendo
o mesmo para a sociedade global dos cidadãos.”
346
Höffe desenvolve a idéia da República mundial considerando as mudanças pelas
quais atravessaram e continuam atravessando os Estados individuais, transformados pelo
poder econômico e ameaças globais, como a guerra no moldes citados anteriormente e a
destruição do meio ambiente. Para Höffe, entusiasta dessa idéia, assim como por ocasião da
primeira instituição de Estados democráticos de direito, falou-se de uma revolução republi-
cana, a instituição de uma república mundial poder ser denominada a segunda revolução
republicana.
347
Habermas compartilha de uma visão semelhante à proposta por Höffe, ao afirmar
que muitos problemas criados no século XX não podem ser resolvidos no âmbito do Estado
nacional. Suas análises assinalam um caminho em direção a uma “constelação pós-
nacional”, também de inspiração kantiana. Para Habermas, o Estado nacional foi uma res-
posta convincente como forma de integração social, pois este era o desafio que se colocava
à época de sua criação
348
. Hoje, o desafio é semelhante, pois “a globalização do trânsito e
da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da transferência de tecno-
345
Cf. HÖFFE, O. O que é justiça. p. 118.
346
HÖFFE, O. O que é justiça. p. 118.
347
HÖFFE, O. O que é Justiça. p. 130.
348
Cf. HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p.122.
127
logia e poderio bélico, em especial dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca
em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais,
nem pela via habitual do acordo entre Estados soberanos”
349
. E tudo indica que os Estados
continuarão a perder sua soberania, reforçando a necessária reestruturação e ampliação das
capacidades de ação política em um plano supranacional
350
. Habermas desenvolve o seu
pensamento atento ao esvaziamento político do Estado nacional e a sublevação do poder
econômico, sem o necessário surgimento de um correspondente político internacional com
poder de mediação dessa tendência, a qual é irreversível, se considerado o cenário político
mundial atual.
O futuro parece de fato obscuro aos Estados, pois estes não detêm mais todo o con-
trole sobre o fluxo de capitais, transferidos para o domínio da empresa transnacional, a
qual, é beneficiada pela existência de paraísos fiscais. Tais paraísos são uma forte razão
para pensar uma estrutura jurídica mundial que coíba a existência de nichos alheios ao or-
denamento jurídico internacional. O fim do Estado coloca em colisão grupos étnicos, em-
presas, países, religiões, enfim, todos os grupos historicamente formados, que apesar de
tudo, eram resguardados pelo Estado, que assegurava certa ordem e paz interna e externa-
mente. Assim comenta Habermas:
“Se não é apenas o Estado nacional que chega a seu fim, mas com ele também toda forma
da sociedade política, então os cidadãos serão encaminhados a um mundo de relações enre-
dadas de forma anônima, no qual lhes caberá decidir entre opções criadas sistematicamente,
segundo as respectivas referências. No mundo pós-político, a empresa transnacional se
transformará em modelo comportamental. A autonomização do sistema econômico global
em face das tentativas inócuas de influência política empreendidas por via normativa mani-
festa-se do ponto de vista da teoria dos sistemas como caso particular de um desenvolvimen-
to mais abrangente. O ponto de fuga nesse horizonte é a sociedade global plenamente des-
centrada, que se decompõe em uma quantidade desordenada de sistemas funcionais que se
reproduzem e se orientam a si mesmos. Assim como as pessoas em estado natural no pen-
samento de Hobbes, esses sistemas constituem uns para os outros não mais que um entorno.
Eles já não têm nenhuma língua em comum. Sem um universo de significados intersubjeti-
vamente partilhado, esses sistemas apenas deparam uns com os outros com base em obser-
vações mútuas e comportam-se uns diante dos outros segundo imperativos de autoconserva-
ção”
351
.
349
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p.123.
350
Cf. HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p.123.
351
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p. 142.
128
Para Habermas, as ameaças globais em curso, paradoxalmente, uniram as nações do
mundo numa involuntária comunidade de risco, o que reforça a necessidade de criar institu-
ições políticas eficientes em nível supranacional
352
. Esta comunidade de risco a qual a hu-
manidade está submetida desconhece os reais perigos as quais está submetida, pois não
existe o papel de um observador mundial com capacidade de diagnosticar fielmente as a-
meaças existentes, com o intuito de adotar ações preventivas e buscar soluções apoiadas
pelos Estados e pela sociedade civil mundial, a qual ensaia estabelecer-se. Em resposta a
esta comunidade de risco involuntária, Habermas propõe uma revisão conceitual básica no
campo teórico-político atual que diz respeito “à soberania externa dos Estados e ao caráter
modificado das relações interestatais (1), à soberania interna dos Estados e às restrições
normativas da política clássica de poder (2), e ainda à estratificação da sociedade mundial e
a uma globalização dos riscos, algo necessário a partir de uma conceitualização modificada
do que entendemos por ‘paz’(3)”
353
. Habermas sugere que o compartilhamento dos riscos,
organizados em esferas supraestatais, permite a efetivação de uma ordem jurídica condizen-
te com o panorama político atual e possibilita o caminho para efetivação da paz.
Enfim, a insuficiência dos atuais mecanismos internacionais, tais como os mais de
30 órgãos afiliados a ONU e a própria ONU, a qual representa 191 países, reforçam a i-
déia de aperfeiçoamento da ONU e o surgimento de novos mecanismos supranacionais com
poder de evitar o esfacelamento do Estado nacional e com condições de desenvolver ações
preventivas eficazes para evitar catástrofes naturais (degelo polar, destruição de florestas,
aquecimento global, ...), tragédias sociais (migrações em massa, miséria, escravidão, pan-
demias, etc) e atos criminosos-belicistas (guerras civis, terrorismo internacional, tráfico de
drogas, etc).
Por outro lado, há uma tendência e uma esperança de avançar em direção ao aper-
feiçoamento das atuais instituições internacionais, como tem demonstrado o debate atual
entre os chefes de Estado e em instâncias internacionais, principalmente na ONU. A con-
trapartida negativa vem dos próprios Estados, que desconsideraram os avanços arduamente
conquistados até o momento
354
no campo da política internacional, bem como a instrumen-
352
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p. 172.
353
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. p. 200.
354
Kersting afirma que após a queda do socialismo, o paradigma kantiano da paz ganhou status e a verifica-
ção de que a sua possível efetivação; por outro lado, após o 11 de setembro verificou-se uma nova realidade,
129
talização do Estado através da economia, paradoxalmente, com o apoio do próprio Estado.
Cabe ao filósofo político colocar em questão as noções tradicionais de soberania, de inte-
resse nacional e até mesmo a noção de Estado nacional até aqui formuladas, transformando
a idéia vigente que permite que a economia pense globalmente, enquanto que a política
continua a pensar nacionalmente
355
. Esse avanço qualitativo no debate filosófico político é
sinal do compromisso dos filósofos com uma ética universal, que não faz distinção entre
cidadãos de primeira e cidadãos de segunda
356
.
E, por fim, voltamos à questão de uma comunidade ética, independente das concep-
ções universalistas ou comunitaristas, mas no sentido de uma ética universal
357
que tem
como tarefa primordial “encontrar respostas éticas comuns para problemas que afetam toda
a humanidade em um universo global e têm que ser resolvidos na perspectiva de uma cida-
dania cosmopolita”
358
. Uma ética global proveniente de uma comunidade ética cosmopolita
vai ao encontro de uma comunidade política cosmopolita
359
, tendo como resultado um pro-
cesso de paz simplificado, não obstante, podendo realizar plenamente a idéia kantiana de
retrocedendo ao paradigma hobbesiano: “O paradigma hobbesiano da paz pelo equilíbrio da intimidação abriu
caminho para o paradigma kantiano da paz pela cooperação juridicamente ordenada e institucionalizada entre
os estados. O mundo dividido voltou a unir-se, tentativas bem sucedidas foram feitas de instaurar estruturas
supra-estatais de uma união geopolítica, de intensivar as conexões jurídicas internacionais. Os direitos huma-
nos foram redescobertos como orientação normativa no processo acelerado da globalização. O direito interna-
cional abriu-se para iniciativas em favor dos direitos humanos. Chegou-se a falar de um global governance,
de um política interna global, e, na filosofia, discutiram-se as possibilidades de uma democracia global. A
distribuição de poder ainda determinava os caminhos da política dos direitos humanos na organização mundi-
al”. (...) “Com as primeiras tentativas de entender, após o choque do 11 de setembro, as causas do ataque
terrorista e de evitar sua repetição, uma posição cética quanto aos direitos internacionais ganhou espaço no
governo americano. Todo planejar e atuar estava marcado por uma convicção de fundo que não se pode mais
confiar na autoridade pacificadora do atual direito internacional e de sua organizações, e que o kantianismo da
codificação recíproca com sua tomada de decisões multilaterais seja impróprio perante os novos desafios
terroristas. No pensar e atuar da administração, a lógica hobbesiana do status naturalis começou a prevalecer.
Nessa perspectiva, o status do direito internacional transforma-se num status naturalis. Fortificar o poder
superior torna-se mandamento da racionalidade. Que essa lógica do status naturalis cunha a vida interna do
Leviatã americano, demonstra-o o crescimento das secretarias de segurança e a disponibilidade de diminuir
consideravelmente os direitos constitucionais dos próprios cidadãos (...) Por isso, muitos receiam que o kanti-
anismo no direito internacional tenha uma vida breve e seja logo substituído por uma outra figura do para-
digma hobbesiano. Os terremotos geopolíticos de 1989 provocaram transformações dramáticas nas constela-
ções dos poderes internacionais. Agora existe apenas um poder global, os EUA, que não tem receios políticos
nem escrúpulos morais de aproveitar a plenitude do seu poder para impor seus interesses nacionais. In:
KERSTING, W. Hobbes, Kant, a Paz Universal e a Guerra Contra o Iraque. p. 11.
355
PINZANI, A. Democratização e globalização: é possível uma gestão democrática dos processos de globa-
lização econômica, social e política? p. 457.
356
Cf. ORTS, A. C. Ética transnacional e cidade cosmopolita. p. 277.
357
Também denominada de Globalethik, ética mundial, global ethic, éthique planétaire. Cf. ORTS, A. C.
Ética transnacional e cidade cosmopolita. p. 276.
358
ORTS, A. C. Ética transnacional e cidade cosmopolita. p. 276.
359
Cf. ORTS, A. C. Ética transnacional e cidade cosmopolita. p. 287.
130
paz. Num mundo marcado pelos imperativos econômicos e belicistas, esta idéia reveste-se
de especial validade e eloqüente veracidade.
4.5. “Vivemos numa época esclarecida?”: história e esperança
No século XXI as instituições políticas alcançaram a maioridade? A resposta é não,
mas vivemos numa época que esforça-se para que o ideal racional da justiça e da paz so-
breponha-se aos variados fundamentalismos, ao furor belicista, à degradação humana e à
destruição do planeta, os quais demonstram a irracionalidade presente em nosso tempo.
O caráter corretivo da Aufklärung faz sentir sua necessidade em nossa época, onde a
idéia de justiça social se faz presente face à crescente marginalização social. Os meios de
comunicação, nesse sentido, trazem uma sensação de proximidade jamais vista, como se o
que estivesse acontecendo num povoado de um país da África fosse algo próximo e qual-
quer cidadão do mundo, motivado por um ideal ético-cosmopolita, se sentisse co-
responsável por aquela situação. Uma cidadania cosmopolita universal impele o indivíduo a
expandir a justiça social a todos os lugares do mundo, principalmente quando ele se depara
no século XXI com práticas de extrema brutalidade, como as “limpezas étnicas”
360
, pró-
prias da barbárie existente nos períodos anteriores ao surgimento dos códigos mais rudi-
mentares de respeito mútuo.
O pensamento kantiano traz consigo a idéia da pura humanidade e a reivindicação
histórica da felicidade universal dos indivíduos
361
, não havendo, portanto, restrições quanto
aos destinatários dos benefícios produzidos pela humanidade. Isso pressuposto e conside-
rando a breve tentativa feita nesse capítulo de situar o panorama político-social mundial de
nossa época, o qual, como vimos, apresenta desafios reconhecidamente complexos e exige
um esforço coletivo para compreendê-lo, retornamos a questão colocada por Kant “se o
gênero humano está em constante progresso para o melhor?”. Já vimos que Kant identifi-
cou um “signo” em sua época que demonstrou a disposição do homem em progredir para o
360
Na África, numa região localizada ao oeste do Sudão (Darfur) foram dizimadas 400 mil pessoas e expul-
sas 2 milhões por milícias Janjaweed, sob as ordens do governo da Frente Islâmica Nacional. Segundo o
jornalista Johann Hari, “as milícias adorariam continuar a matar, mas os povoados negros já foram todos
queimados”. In: HARI, Johann. Árabes dizimam população negra no Sudão. Folha de São Paulo. 08 de outu-
bro de 2005.
361
Cf. MATOS, O. Os Arcanos do Inteiramente Outro: a Escola de Frankfurt e a Revolução. p. 287.
131
melhor; o entusiasmo da opinião pública com a Revolução Francesa, cujo evento só poderia
ter como causa “uma disposição moral”, atestou o progresso da humanidade. Assim sendo,
à luz do modelo kantiano, haveria algum “signo” em nossa época que pudesse demonstrar a
continuidade do progresso para o melhor e continuasse a fornecer esperança à humanidade?
Aparentemente não, se considerarmos a gigantesca desigualdade social, a qual con-
dena milhões de pessoas a viveram na absoluta miséria
362
e o alto poder de destruição em
massa nas mãos de Estados e grupos para-estatais. Em função dessas e outra situações, pai-
ra o ceticismo sobre a capacidade da humanidade de desviar-se desse caminho degenerati-
vo. Alexis de Tocqueville descreveu a época da Revolução Francesa como “o tempo de
juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras, tempo do qual, apesar de
todos os erros, os homens iriam conservar eterna memória, e que, por muito tempo ainda,
perturbará o sono dos que querem subjugar ou corromper os homens”
363
. Os ideais de i-
gualdade, liberdade e fraternidade então proclamados, fazem sentir sua ausência no presen-
te, quando são observadas as deficiências no campo da justiça social e o caráter belicista de
alguns Estados.
Se, como Kant definira a abrangência do direito, a violação do direito num lugar da
Terra se sente em todos os outros”
364
, temos muito que percorrer, pois a barbárie e a degra-
dação humana existente em diversos lugares do planeta atestam uma época insensível aos
valores da Revolução Francesa. A idéia de co-responsabilidade presente no direito kantiano
deve ser a inspiração para todo cidadão, habitante de qualquer localidade do mundo, o qual
atuará através dos meios disponíveis em prol da justiça global. Um senso de justiça global
aparenta ser abstrato e distante do cidadão, quando muitas vezes não se consegue resolver
os problemas que o circundam; no entanto, cada vez mais há uma reciprocidade dos pro-
blemas macro e micro, o que confirma a necessidade da integração entre propósitos locais e
globais.
Os críticos acusam qualquer pretensão humanitária global de ser um desvio da pró-
pria política, fruto de um universalismo distante dos problemas internos dos Estados. Não
faltaram críticas à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e à Declaração Univer-
362
A essa classe de marginalizados, denominados underclass, encontram-se abandonados a si mesmos e não
tem mais condições de alterar, com as próprias forças, sua situação social. Cf. HABERMAS, J. A inclusão do
outro: estudos de teoria política. p. 140.
363
TOCQUEVILLE, A. O Antigo Regime e a Revolução. p. 72.
364
KANT, I. PP. p. 140.
132
sal dos Direitos Humanos, acusadas de serem abstratas, metafísicas e inaplicáveis. Assim
como a democracia foi objeto de descrença da parte de intelectuais e de setores da socieda-
de, hoje nos parece inconcebível um sistema melhor do que a democracia, por conter no seu
próprio conceito a inseparabilidade dos direitos do homem. Segundo Bobbio “os direitos do
homem, que tinham sido e continuam a ser afirmados nas Constituições dos Estados parti-
culares, são hoje reconhecidos e solenemente proclamados no âmbito da comunidade inter-
nacional, com uma conseqüência que abalou literalmente a doutrina e a prática do direito
internacional: todo indivíduo foi elevado a sujeito potencial da comunidade internacional,
cujos sujeitos até agora considerados eram, eminentemente os Estados soberanos”
365
.
Kant afirmou que a Revolução Francesa proporcionou a um povo dar a si próprio
uma Constituição fundada no direito natural, e produziu nos espíritos algo que jamais pode-
ria ser esquecido , pois “revelara, na natureza humana, uma tal disposição e potencialidade
para o melhor que nenhum político poderia doravante cancelar”
366
. Os tempos posteriores a
Kant, principalmente o século XX, foram marcados por duas guerras mundiais, genocídios,
tiranias e guerras de extermínio, mas também viu surgir a abolição da escravidão, a supres-
são dos suplícios que outrora acompanhavam a pena de morte e da própria pena de morte.
Além disso, juntamente com os movimentos ecológicos e pacifistas, o interesse crescente
de movimentos, partidos e governos pela afirmação, reconhecimento e proteção dos direitos
do homem, consolidados nas Constituições democráticas, na Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos e na Carta da ONU. Acrescenta-se ainda o fim do colonialismo e a crescen-
te ajuda internacional em situações de catástrofes, envolvendo Estados e cidadãos de todo
mundo, formando uma rede internacional de solidariedade.
Em síntese, como afirmara Kant, o potencial humano de buscar o melhor para a
humanidade, ainda hoje, é conservado e tido como um nobre valor, o qual deve sempre
estar acima dos constantes eventos desabonadores, os quais insistem em contradizer a con-
dição superior do espírito humano, que proclama a paz e a esperança. “A esperança leva,
por fim, à conclusão que alguma coisa é (que determina o fim último possível), porque
alguma coisa deve acontecer; o saber, à conclusão que alguma coisa é (que age como causa
suprema) por que alguma coisa acontece”
367
. A realização da paz perpétua não é uma cer-
365
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. p. 103.
366
KANT, I. CF. p. 103.
367
KANT, CRP. P. 640
133
teza absoluta, tampouco algo infundado, pois a expansão do direito, por exemplo, nos auto-
riza a pensar a tendência da espécie para o melhor e revela-se como um “signo” do nosso
tempo. Mas é, sobretudo, a razão militante que atua na história que nos orienta a esperar
que aconteça a paz perpétua, pois este é o fim último da humanidade e, então, poderemos
de fato afirmar que vivemos numa época esclarecida.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho pretendeu demonstrar que a proposta kantiana para o estabelecimento
da paz perpétua é consistente do ponto de vista teórico e viável do ponto de vista prático. A
proposta kantiana em si não é capaz de dar conta dos complexos problemas que se sucede-
ram após o escrito, mas aponta o caminho, cabendo aos leitores e analistas preencher as
possíveis lacunas existentes e reinterpretá-la à luz dos acontecimentos atuais. Kant não teve
a intenção de encerrar a questão do estabelecimento da paz, sua filosofia buscou nutrir a
esperança do melhor a ser realizado ainda neste reino. Estar a caminho da paz é o objetivo
da filosofia kantiana.
A garantia da paz levou Kant ao problema da história, revelando a existência de um
projeto de realização moral e político da humanidade, bem como a existência de um fio
condutor na natureza que conduz à paz. A filosofia da história kantiana está sob o domínio
da razão, mesmo quando a natureza inadvertidamente age em prol do aperfeiçoamento hu-
mano. Kant forneceu a certeza histórica de que a humanidade caminha em direção ao me-
lhor, e demonstrou que somente numa sociedade pacífica o homem pode realizar tudo o que
lhe foi reservado pela natureza.
A paz em Kant está assentada num projeto jurídico-político e na idéia de universali-
zação do direito. Mas até que ponto as idéias fundamentais do direito tem validade mundi-
al? Não estariam as leis jurídicas restritas ao âmbito regional? Kant desfaz essa dúvida e
afirma que somente quando o direito também vige entre Estados tem-se a paz.
É a própria razão que demonstra que a humanidade viver melhor quando submete-se ao
direito. Da mesma forma, como não há justiça fora do Estado para Kant, também não há
paz e justiça entre Estados, quando desprezam o direito público internacional e recusam-se
a ingressar numa Federação inter-estatal. Os povos do mundo inteiro devem unir-se pelos
princípios da igualdade, da moralidade e da legalidade, realizando a verdadeira política, a
qual não pode dar um passo sem antes render homenagem a moral.
O cosmopolitismo kantiano é uma forma de pensar, ele não significa a suspensão da
soberania dos povos e o agrupamento num Estado mundial, tampouco se trata da prática de
falar várias línguas, viajar para diversos lugares do mundo ou provar comidas típicas de
135
diversas culturas. O cosmopolitismo kantiano refere-se àquilo que serve ao bem-estar da
humanidade, ou seja, aos valores e práticas que devem ser adotados por cidadãos e Estados,
a fim de consolidar uma sociedade justa e pacífica. Uma visão clara sobre o Estado e um
certo nacionalismo são um ponto de partida para o cosmopolitismo, pois se o cidadão tem
consciência do estado de direito e dos valores éticos nacionais, é provável que o terá em
relação à outros povos. O cosmopolitismo trata também da construção de uma esfera públi-
ca mundial, a qual procura fazer um contraponto ao poderes estabelecidos dos Estados,
organismos internacionais e principalmente, ao crescente poderio econômico. Enfim, o
cosmopolitismo está no horizonte político e inspira a criação de uma lei global (Global
Law), corroborando a idéia de que Kant alargou o conceito de direito ao defender a existên-
cia do direito cosmopolita, o qual é simbolicamente ilustrado quando o filósofo afirma que
a violação do direito deve ser sentida em todos os lugares do mundo. Na era da globaliza-
ção e da constante violação dos direitos humanos, o cosmopolitismo assume um papel cen-
tral, ao incumbir ao indivíduo o dever de colaborar na efetivação da justiça global. Enfim,
Kant apontou o caminho para a justiça mundial e baseou-se na existência de regras jurídicas
universalmente válidas para fazer valer os ideais de humanidade tão presentes na sua obra.
A realizibilidade da paz perpétua é resultado da fé inquebrantável de Kant no poder
da razão e da liberdade como conceito central da sua filosofia. Se cada um usasse a liberda-
de para cumprir a lei moral haveria paz, mas o homem rende-se às inclinações perversas,
transformando a liberdade em arbítrio para fins não morais
368
. A humanidade e a moralida-
de presente em cada indivíduo, devem propiciar a realização da paz. Mas ainda assim, a paz
não poderá ser cumprida por um indivíduo isolado, mas somente quando existir uma totali-
dade sistêmica de pessoas bem intencionadas e desejosas de ver realizada a paz perpétua.
Os desafios à uma verdadeira “pax kantiana” são grandes e exigem a constante vigi-
lância da sociedade. O ceticismo em torno da capacidade humana em conduzir os comple-
xos problemas contemporâneos deve ser combatido, sob o risco de recair na fatídica consta-
tação de Hobbes de uma “guerra de todos contra todos”. A humanidade demonstrou ser
capaz de produzir instituições sólidas e determinou os direitos humanos como referência de
toda ação política. Nesse sentido, o pensamento kantiano propicia elementos sólidos para
368
Utilizo-me das idéias do Prof. Dr. Sedi Hurano, proferidas por ocasião da abertura do X Congresso Kant
Internacional, setembro de 2005, São Paulo.
136
todos aqueles amantes da paz, tal como é claramente expresso no artigo quarto da Carta das
Nações: “A admissão como Membro das Nações Unidas fica aberta a todos os Estados
amantes da paz que aceitarem as obrigações contidas na presente Carta e que, a juízo da
Organização, estiverem aptos e dispostos a cumprir tais obrigações . Não há espaço para
o belicismo para aqueles que seguem o caminho aberto pela razão; os Estados devem real-
mente propor-se a buscar a paz internacional por meio de uma Federação internacional co-
mo a ONU, a qual constitui um modelo comum de realização para todos os povos e nações.
Enfim, o tratado kantiano sobre a paz não somente contribui ao pensamento político
contemporâneo, mas principalmente, A Paz Perpétua devolve ao cenário político a idéia da
utopia social. Numa época onde a esperança vê-se solapada por tragédias humanas e pelo
infame beligerar, o escrito kantiano desperta energias utópicas e supera com elas aquela
resignada perda de esperanças e visões que tira todo o brilho da vida e empobrece o mun-
do
369
. A paz analisada por Kant destina-se unicamente a proteger a vida e a liberdade, tarefa
a ser realizada pelo Direito e pela Federação dos povos. Kant ao colocar no centro da filo-
sofia a utopia da paz, tornou a obra A Paz Perpétua o mais famoso e consistente plano de
paz.
369
Cf. HÖFFE, O. Teoría de la justicia de la paz en Kant. p. 21
137
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