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Kant concebeu as leis jurídicas como leis da liberdade, tendo na estrutura do Estado
o meio para providenciar a efetivação do direito. Essa é única forma para estabelecer a jus-
tiça, mesmo que para isso seja necessário o uso da coerção. Kant não hesitou em afirmar
que direito e faculdade de coagir significam a mesma coisa, sendo que o indivíduo faz parte
ou não de uma comunidade dependendo da sua relação com a lei. O indivíduo que não
cumpre a lei estabelecida sofrerá sanções, podendo ser expurgado do convívio social, para
que a ordem não seja desestabilizada
200
. Quanto mais os cidadãos e Estados adequarem-se
às leis da liberdade promovidas pelo direito, mais rápido será o processo de instauração da
paz
201
. O direito é o meio pelo qual os Estados poderão encaminhar-se a uma ordem pacífi-
ca, sem apelar à formas revolucionárias, as quais são frutos das paixões populares ou da
vontade descontrolada de um soberano
202
.
200
Assim expressa Kant: “Embora se possa duvidar de uma certa maldade radicada na natureza humana dos
homens que convivem num Estado e, em vez dela, se possa com alguma aparência aduzir a carência de uma
cultura ainda não suficientemente desenvolvida (a barbárie) como causa das manifestações do seu modo de
pensamento contrárias ao direito, contudo, nas relações externas dos Estados entre si essa maldade manifesta-
se de um modo patente e incontestável. No interior de cada Estado, encontra-se encoberta pela coação das leis
civis, pois a tendência dos cidadãos para a violência recíproca é ativamente inibida por um poder maior, a
saber, o do governo, e assim não só fornece um verniz moral (causae no causae), mas também em virtude de
impedir a erupção moral ao respeito pelo direito. Com efeito, cada um crê por si mesmo que consideraria
sagrado o conceito de direito e acataria com fidelidade se pudesse esperar o mesmo de todos os outros – o
que, em parte, o governo lhe garante; deu-se pois, assim um grande passo para a moralidade (se bem que
ainda não um passo moral, ao aderir-se a este conceito de dever por si mesmo, sem tomar em conta a recipro-
cidade. Mas visto que cada um na sua boa opinião acerca de si próprio pressupõe, no entanto, uma má dispo-
sição em todos os outros, o juízo que mutuamente têm de si mesmos é que todos, no tocante à realidade, pou-
co valem (pode ficar sem explicação a origem de tal juízo, já que não é possível culpar a natureza do homem
como um ser livre). Mas dado qu o respeito pelo conceito de direito, a que o homem de nenhum modo se pode
subtrair, sanciona do modo mais solene a teoria da sua capacidade para se lhes adequar, cada um vê então
que, da sua parte, deveria agir em conformidade com o direito, seja qual for o modo como os outros o queiram
observar”. In: KANT, I. PP. p. 158
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Kant assim diz: “Seremos inevitavelmente compelidos a essas conseqüências desesperadas, se não admi-
tirmos que os princípios puros do direito têm realidade objetiva, isto é, podem levar-se a cabo; e conseqüen-
temente, com eles devem lidar também o povo no Estado e, além disso, os Estados uns em relação aos outros,
seja qual for a objeção em contrário que a política empírica possa levantar. A verdadeira política não pode,
pois, dar um passo sem antes ter rendido preito à moral, e embora a política seja por si mesma uma arte difí-
cil, não constitui no entanto arte alguma a união da mesma com a moral; pois esta corta o nó que aquela não
consegue desatar, quando entre ambas surgem discrepâncias. O direito dos homens deve considerar-se sagra-
do, por maiores que sejam os sacrifícios que ele custa ao poder dominante; aqui não se pode realizar uma
divisão em duas partes e inventar a coisa intermédia (entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente
condicionado, mas toda a política deve dobrar os seus joelhos diante do direito, podendo, no entanto, esperar
alcançar, embora lentamente, um estádio em que ela brilhará com firmeza”. In: KANT, I. PP. p. 164
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Kant é contra o direito de resistência do povo, assim como declarou inicialmente a Revolução Francesa
contrária ao direito, mas simpatizou com ela, numa espécie de legitimação a posteriori, conforme comenta
Kersting: “Só quando se usa o sucesso como legitimação a posteriori, o alívio por causa da vitória provoca
uma confusão lógica. E ela aumenta em direção a uma perturbação moral quando a reminiscência do caráter
ilegítimo de toda iniciativa é vista, diante do ditador derrubado, como inconveniente e um desmancha-
prazeres desagradável”. In: KERSTING, W. Hobbes, Kant, a Paz Universal e a Guerra contra o Iraque”. p. 9.