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violência e autoritarismo na constituição da sociedade brasileira. Assim, no período
colonial, teve-se a dizimação de tribos indígenas pelos portugueses. “A escravidão
representou um exercício sistemático e calculado de coerção pela violência, sendo o
governo brasileiro sustentado, durante o Império, por essa coerção”
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. No período
republicano, tiveram-se duas experiências limites associadas ao autoritarismo: o Estado
Novo e a Ditadura Militar. Logo, no romance de Callado, a morte de Beto, sendo uma
alusão ao assassinato de Antônio Conselheiro, conduz à conclusão de que 1) existe
controle da sociedade por parte do Estado; 2) há repressões sistematizadas em que
hierarquias de poder são mantidas inalteradas; e 3) o uso da violência se faz necessário
para justificar a própria violência. Esses três últimos aspectos, aliás, também podem ser
observados no capítulo 14 da segunda parte:
Senhor Chefe do Serviço de Segurança: É claro que esse indivíduo,
quando afinal o Serviço conseguir identificá-lo e prendê-lo, deve ser
julgado e punido, por sedição, por sabotagem, pelo diabo que o
carregue: porém, como um pobre coitado, e nada mais. Poderemos,
para compensar o trabalho que nos deu – que está nos dando ainda,
Deus sabe – cair na tentação de lhe exagerar as proporções. Mais
importante do que castigá-lo, ouvi-lo em confissão, ou exterminá-lo, é
caracterizar seu pobre-coitadismo. Estamos no encalço dum cabra
esperto, inteligente mesmo, duma inteligência instintiva, voltado para a
faina de nos desmoralizar, pois tudo indica que veio, passo a passo,
atrás de nós, da zona adusta para o vale do Paraíba e a cidade do Rio.
Terá lá seus encantos pelos jagunços e fanáticos e seguramente
fomentou ele próprio seu cognomezinho interessante de Das Águas.
Ora, traçado esse retrato psicológico de quem não conhecemos a cara,
o que nos cabe fazer, sobretudo, é não fazer-lhe o gosto, é não deixar
que chegue seu nome ou apelido àqueles folhetinhos que se penduram
pelo cordel na cadeira dos engraxates ou à choradeira desdentada dos
cegos de feira de Troglodítia que, se agarram um nome como Das
Águas, são capazes de inventar de novo o Antônio Silvino e o Jesuíno
Brilhante. Lembrai-vos do Conselheiro, endeusado por um dos nossos, o
do trabalho que até hoje dá não deixá-lo chegar aos meninos de colégio
como líder camponês em luta contra o apagamento de impostos além de
taumaturgo e milagreiro. Temos é que pegar o Das Águas vivo e
ridicularizá-lo, aguá-lo, como autor de panes por acaso, conspirador da
roça, pobre pitu de lodo triturado distraidamente pelas engrenagens
azeitadas do Módulo 1967. Quanto a mulheres que surjam como
eventuais candidatas ao martírio pode divulgar que negocio a vinda para
o Brasil dos ossos de Inês de Castro para suprir-nos de tragédia bonita,
tranqüila, distante no tempo e no espaço, posta em sossego, tal como
descrito no anexo Módulo 1357, em xeroxes para distribuição
390
.
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Cf. GINZBURG, Jaime. A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil. Letras,
Santa Maria, n. 18/19, p. 121-144, jan./dez., 1999. p. 128.
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CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 69.