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U F S M
Tese de Doutorado
A LITERATURA CONTRA O AUTORITARISMO: A DESORDEM
SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO
BRASILEIRA PÓS-64
_____________________
Lizandro Carlos Calegari
PPGL
Santa Maria, RS, Brasil
2008
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2
A LITERATURA CONTRA O AUTORITARISMO: A DESORDEM
SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO
BRASILEIRA PÓS-64
_____________________
por
Lizandro Carlos Calegari
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, Área de
Concentração em Estudos Literários, da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM – RS), como requisito parcial para a obtenção do título e do grau de
Doutor em Letras.
PPGL
Santa Maria, RS, Brasil
2008
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3
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Curso de Pós-Graduação em Letras
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Tese de Doutorado
A LITERATURA CONTRA O AUTORITARISMO: A DESORDEM
SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO
BRASILEIRA PÓS-64
elaborada por
Lizandro Carlos Calegari
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
_________________________________________________
Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach – UFSM
(Orientadora/Presidente)
_________________________________________________
Prof. Dr. Jaime Ginzburg – USP
(1.° argüidor)
_________________________________________________
Profa. Dra. Gilda Neves da Silva Bittencourt – UFRGS
(2.ª argüidora)
_________________________________________________
Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva – UFRGS
(3.ª argüidora)
_________________________________________________
Profa. Dra. Vera Lúcia Lenz Vianna da Silva – UFSM
(4.ª argüidora)
Santa Maria, 28 de janeiro de 2008
4
Sabe o que é ficção? É quase a mesma coisa que
realidade. É uma realidade sem visões falsas. É isso
que atrapalha. A ficção parece absurda porque é a
realidade despojada de todas as mentiras. Portanto,
todas as verdades são ficções e todas as realidades
são mentirosas. Daí, tira-se uma conclusão ou várias.
Depende do gosto.
(Bolero, Victor Giudice)
5
Aos meus pais, que, embora não tenham me ditado
uma única frase contida neste trabalho, me ensinaram,
através do exemplo, o verdadeiro sentido das palavras
amor, respeito, ética e humildade...
6
AGRADECIMENTOS
O processo de elaboração desta tese contou com oportunas e criteriosas
contribuições. Registra-se, aqui, um sincero agradecimento àqueles que compartilharam
esse percurso:
À Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach, pelo estímulo constante, pela
atenção, pelo apoio nos momentos difíceis, pela paciência, pelo jeito sempre humano de
tratar as pessoas e por ter acreditado nessa proposta de trabalho;
Ao Prof. Dr. Jaime Ginzburg, por ter me iniciado nesta trajetória, por ter me
acompanhado nos estudos, por ter confiado em meu potencial e, principalmente, por
sempre ter acreditado que me esforçaria ao máximo para obter os melhores resultados
no desenvolvimento de um estudo sério;
Ao Prof. Dr. David William Foster, que, mesmo do outro lado do hemisfério, nos
Estados Unidos, contribuiu para a pesquisa, mandando material, dando sugestões e
melhorando o ânimo;
Ao Prof. Dr. Flávio Wolf Aguiar e à Profa. Dra. Gilda Neves Bittencourt, pela
leitura e observações atentas do trabalho e pelas sugestões no exame de qualificação;
Ao Prof. Dr. Arnaldo Franco Jr., pela atenção e pelo material enviado pelo
correio, importante para a pesquisa;
À Profa. Dra. Edilene Gasparini Fernandes, pela gentileza em enviar a sua
dissertação de mestrado sobre Antonio Callado, o que abriu novos caminhos para se
pensar a obra do autor;
À Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva e à Profa. Dra. Vera Lúcia Lenz
Vianna, pelas conversas e pelo estímulo. À Profa. Dra. Cláudia Perrone e ao Prof. Dr.
Vitor Biasoli, pela leitura do trabalho;
Aos participantes do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo, pelas
contribuições constantes. Um agradecimento especial ao colega João Luís Pereira
Ourique, pela amizade, incentivo constante, interesse e sugestões;
7
À coordenação, aos professores e aos funcionários do Programa de Pós-
graduação em Letras da UFSM, pela atenção, pelos ensinamentos e profissionalismo
manifestados;
Aos autênticos e fraternos amigos que acompanharam de perto esta jornada, em
particular, a Márcio José Coutinho, Kátia Luisa Seckler, Vitor Hugo Chaves Costa, Saulo
Felin, Elvandir Guimarães, David Sanmartin, Cosme Pegorraro, Joel Kleinpaul, Diamar
Ruoso, Maísa Borin, Raquel Lima da Costa, Vanderlene Rolim e Fabiane Raquel
Canton;
Aos demais amigos que, embora não estivessem por perto, torceram pela
concretização deste trabalho. Um agradecimento especial a Ana Paula e a Luana
Teixeira Porto;
Aos meus irmãos e irmãs, pela ajuda, incentivo e reconhecimento. Um
agradecimento especial à Elenir, por sempre ter estado por perto. A meus primos e tios
de Porto Alegre;
Ao CNPq, pelos recursos financeiros viabilizados, indispensáveis para a
realização da pesquisa.
8
SUMÁRIO
RESUMO
.................................................................................................................................... 10
ABSTRACT
................................................................................................................................ 11
RESUMEN
.................................................................................................................................. 12
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 13
1 A PROPÓSITO DA FRAGMENTAÇÃO: APONTAMENTOS
EM TORNO DA TEORIA DO ROMANCE
............................................................................ 20
1.1 Pressupostos iniciais: Hegel, Lukács e Goldmann ............................................. 20
1.2 Desdobramentos: Bakhtin, Kristeva e Barthes .................................................... 31
1.3 O romance moderno e a forma da escrita como resistência
............................... 41
2 PRINCÍPIOS E FUNÇÕES DA FRAGMENTAÇÃO: O OLHAR
FRANKFURTIANO
................................................................................................................. 53
2.1 A desordem social no Brasil pós-64 .................................................................... 53
2.2 A fragmentação enquanto resposta a um processo histórico autoritário ............ 61
2.3 A representação em tempos sombrios: a questão da mímese na modernidade. 70
2.4 Forma como resistência: fragmentação e humanização ..................................... 79
3 DESORDEM E FRAGMENTAÇÃO EM IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO,
IVAN ÂNGELO, ANTONIO CALLADO E RENATO POMPEU
.......................................... 89
3.1 A situação de desenvolvimento do romance no Brasil ......................................... 89
9
3.1.1 O romance brasileiro: do romantismo ao modernismo ............................. 89
3.1.2 O romance brasileiro na contemporaneidade ........................................... 98
3.2 Sujeito, carnavalização e fragmentação em Zero, de Ignácio de Loyola
Brandão ............................................................................................................. 109
3.2.1 A questão do sujeito em Zero: descentramento e aniquilação ............... 109
3.2.2 A carnavalização na narrativa de Ignácio de Loyola: a
perturbação da ordem social .................................................................... 125
3.2.3 A estética fragmentária em Zero: subversão e crítica social .................. 141
3.3 Desordem social, polifonia e fragmentação em A festa, de Ivan Ângelo .......... 156
3.3.1 Retratos do Brasil: a propósito de A festa .............................................. 156
3.3.2 Dialogismo e polifonia em A festa .......................................................... 171
3.3.3 A fragmentação no romance de Ivan Ângelo .......................................... 188
3.4 Sociedade autoritária, comicidade e fragmentação em Reflexos do baile, de
Antonio Callado ................................................................................................. 202
3.4.1 A sociedade em Reflexos do baile: história e histórias ........................ 202
3.4.2 O paródico, o satírico e o cômico no romance de Callado .................... 217
3.4.3 A fragmentação em Reflexos do baile: descontinuidades e enlaces ... 232
3.5 Memória, melancolia e fragmentação em Quatro-olhos, de Renato Pompeu .. 246
3.5.1 O apagamento da história como estratégia de controle social: uma
leitura de Quatro-olhos ........................................................................... 246
3.5.2 Elementos melancólicos na ficção de Renato Pompeu: desconforto
e crítica social .......................................................................................... 261
3.5.3 Uma leitura de fragmentos: as ruínas da história em Quatro-olhos ...... 276
CONSIDERAÇÕES FINAIS – ZERO, A FESTA, REFLEXOS DO BAILE,
QUATRO-OLHOS: FRAGMENTOS DE UMA ÉPOCA
..................................................... 291
BIBLIOGRAFIA
....................................................................................................................... 302
10
RESUMO
Tese de Doutorado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
A LITERATURA CONTRA O AUTORITARISMO: A DESORDEM
SOCIAL COMO PRINCÍPIO DA FRAGMENTAÇÃO NA
FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64
Autor: Lizandro Carlos Calegari
Orientadora: Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Local e data da defesa: Santa Maria, RS, 28 de janeiro de 2008
O propósito da presente pesquisa é refletir acerca da fragmentação nas diferentes obras
produzidas no curso do período ditatorial brasileiro (1964-1985): Zero, de Ignácio de
Loyola Brandão; A festa, de Ivan Ângelo; Reflexos do baile, de Antonio Callado; e
Quatro-olhos, de Renato Pompeu. O primeiro romance foi concluído em 1969 e editado
em 1975, os outros três foram publicados em 1976. O objetivo geral do trabalho consiste
em demonstrar que a fragmentação formal está, de diferentes formas, vinculada à
desordem social do referido momento histórico. Aliás, essa desordem no plano sócio-
histórico – considerada, aqui, de uma perspectiva ampla – dialoga com um fundo
alicerçado por uma prática e/ou por uma ideologia autoritária. Assim, dentre os diversos
aspectos de estudo, é dada ênfase às teorias do romance bem como a pontos teóricos e
temáticos que estão em comunhão com o aludido problema da pesquisa. Nesse sentido,
no livro de Brandão, são analisados tópicos como a constituição do sujeito e a
carnavalização literária; em Ivan Ângelo, as discussões estão por conta das marcas do
autoritarismo na sociedade brasileira e da polifonia do texto; em Callado, ponderam-se
as marcas históricas bem como elementos satíricos, paródicos e cômicos no texto do
autor; em Pompeu, privilegia-se a questão do apagamento e do esquecimento bem
como a da melancolia. A matéria em questão é importante porque, no momento atual,
estão se concretizando os pesadelos formulados nos anos 30 e 40 acerca da
desumanização. Para dar conta dos referidos assuntos, busca-se respaldo em
referenciais sobre as teorias do romance, da História Social e da Sociologia da
Literatura, tendo em vista autores consagrados pela Escola de Frankfurt. Além disso,
levam-se em conta elementos de Teoria Literária a partir da Literatura Comparada,
agregando, para tanto, perspectivas interdisciplinares com outras áreas do
conhecimento.
11
ABSTRACT
Doctoral Dissertation
Postgraduate Program in Letters
Universidade Federal de Santa Maria
LITERATURE AGAINST AUTHORITARIANISM: SOCIAL DISORDER
AS A PRINCIPLE OF FRAGMENTATION IN POST-64 BRAZILIAN
FICTION
Author: Lizandro Carlos Calegari
Director: Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Place and Date of Defense: Santa Maria, RS, Brazil; January 28
th
, 2008
A reflection on the fragmentation in various works produced during the period of the
1964-85 dictatorship in Brazil is the purpose of this dissertation: Zero, by Ignácio de
Loyola Brandão; A festa, by Ivan Ângelo; Reflexos do baile, by Antonio Callado and
Quatro-olhos, by Renato Pompeu. The first novel was completed in 1969 and published
in 1975; the other three were published in 1976. The overall goal consists of
demonstrating that formal fragmentation is, in varying ways, tied to the social disorder of
the historical moment in question. Moreover, this disorder on the sociohistorical plane –
considered here from a broad perspective – exists in a dialogue with a background
based on an authoritarian practice and/or an authoritarian ideology. Thus, among the
diverse aspects studied, emphasis is given to theories of the novel, as well as to
theoretical and thematic points that related to the problem identified by the investigation.
In this sense, in Brandão’s book, there is an analysis of topics like the constitution of the
subject and literary carnivalization. In Ivan Ângelo, discussion turns on the markers of
authoritarianism in Brazilian society and the polyphony of the text. In Callado, there is an
in-depth consideration of historical markers, as well as satirical, parodic and comic
elements. Pompeu’s text is privileged in terms of abulia and memory loss, along with
melancholy. The subject at hand is important because, at the present moment, there is a
realization of the nightmares formulated in the 30s and 40s regarding dehumanization. In
order to deal adequately with these matters, support has been sought in references on
theories of the novel, social history and the sociology of literature, bearing in mind
authors prominent in the Frankfurt School. Additionally, elements drawn from literary
theory, beginning with comparative literature, have been taken into account, along with
interdisciplinary perspectives drawn from other areas of knowledge.
12
RESUMEN
Tesis doctoral
Programa de Posgrado en Letras
Universidade Federal de Santa Maria
LA LITERATURA CONTRA EL AUTORITARISMO: EL DESORDEN
SOCIAL COMO PRINCIPIO DE LA FRAGMENTACIÓN EN LA
NARRATIVA BRASILEÑA POS-64
Autor: Lizandro Carlos Calegari
Directora: Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Lugar y fecha de defensa: Santa Maria, RS, Brasil, 28 de enero de 2008
Esta investigación pretende ser una reflexión sobre la fragmentación en las diferentes
obras durante el período de la dictadura brasileña (1964-85): Zero, de Ignácio de Loyola
Brandão; A festa, de Ivan Ângelo; Reflexos do baile, de Antonio Callado; y Quatro-
olhos, de Renato Pompeu. La primera novela terminó de escribirse en 1969 y se editó
en 1975; las otras tres se editaron en 1976. El objetivo general del trabajo consiste en
demostrar que la fragmentación formal está, en diferentes formas, vinculada con el
desorden social del referido momento histórico. Es más, este desorden en el plano
sociohistórico – considerado aquí desde una perspectiva amplia – dialoga con un
trasfondo fundamentado en una práctica y/o en una ideología autoritaria. De esta
manera, se da énfasis, entre los diversos aspectos de estudio, tanto a las teorías de la
novela como a puntos teóricos e temáticos que entran en juego con el problema referido
de la investigación. En este sentido, se analizan en el libro de Brandão tópicos como la
construcción del sujeto y la carnavalización literaria. En Ivan Ângelo, las discusiones
toman en cuenta los trazos del autoritarismo en la sociedad brasileña y la polifonía del
texto. En Callado, se ponderan los trazos históricos, así como los elementos satíricos,
paródicos y cómicos del texto. Se privilegia en el texto de Pompeu la cuestión del
apagamiento y del olvido así como de la melancolía. El tema en cuestión es importante
porque, en el momento actual, se están concretizando las pesadillas formuladas en los
años 30 y 40 acerca de la deshumanización. Para dar cuenta de los asuntos referidos,
se busca un respaldo en referencias sobre las teorías de la novela, de la historia social y
de la sociología de la literatura, manteniendo en vista autores consagrados por la
Escuela de Frankfurt. Adicionalmente, se toman en cuenta elementos de teoría literaria,
comenzando por la literatura comparada, para abarcar también perspectivas
interdisciplinarias relativas a otras áreas del conocimiento.
13
INTRODUÇÃO
No século XX, a experiência do autoritarismo trouxe necessidades de reflexão
decisivas para as ciências humanas. Em uma época caracterizada por um grau de
violência e de destruição jamais concebível na história, regimes políticos estabeleceram
formas de comportamento do Estado que atingiram concepções tradicionais de ética,
racionalidade e consciência. O Holocausto, situação exemplar dentro desse processo,
consistiu numa expressão da face mais perversa e problemática da modernidade.
A perplexidade diante dos regimes autoritários levou pensadores como Walter
Benjamin, Theodor Adorno e Hannah Arendt a avaliar com rigor os sistemas de
pensamento da tradição, em virtude de exigências de revisão dos modos de pensar, em
razão das possibilidades de catástrofes a que a humanidade foi exposta. A experiência
do autoritarismo, no referido século, assinala uma forma radical de enfrentamento da
postura agressiva do Estado em relação aos indivíduos.
Nesse contexto mais amplo, é extremamente revelador o caso brasileiro. O
processo de formação social, no Brasil, esteve enraizado num terreno permeado por
uma ideologia de base autoritária; e o século XX levou às últimas conseqüências essa
circunstância. O país experimentou, na década de 1940, a confluência de duas
experiências históricas importantes: o Estado Novo, em âmbito nacional, e o
totalitarismo, em âmbito internacional. Afora isso, esteve submetido às amarguras da
Ditadura Militar, que atravessou os anos 1970, resultando num período de tempo
superior a duas décadas. Esses fatos trouxeram consigo diferentes formas de violência,
dentre massacres coletivos, atitudes conservadoras e reacionárias, que acabaram
moldando e consolidando a política autoritária contemporânea.
14
Todo esse quadro que define não só o Brasil, mas o cenário mundial – incluindo-
se, aí, o nazi-fascismo, o comunismo alemão e os governos ditatoriais hispano-
americanos – forma, nos termos de Eric Hobsbawm, a “era da catástrofe”
1
. Essa
turbulência originada dos conflitos emergentes no século XX problematizou as relações
entre indivíduo e sociedade, de maneira que a complexidade dos modos de constituição
da subjetividade determinasse condições específicas para a experiência estética. Assim,
a produção, a recepção e a apresentação das artes em geral estariam condicionadas a
circunstâncias históricas de uma época.
A complexidade e a abrangência das aludidas considerações suscitam inúmeras
abordagens. Nesse trabalho, entretanto, por razões de ordem prática, o tópico norteador
de análise pretende-se restrito. A presente pesquisa propõe uma reflexão acerca da
fragmentação nas diferentes obras produzidas no curso do período ditatorial brasileiro:
Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; A festa, de Ivan Ângelo; Reflexos do baile, de
Antonio Callado; e Quatro-olhos, de Renato Pompeu. O primeiro romance foi concluído
em 1971 e editado em 1975, os outros três foram publicados em 1976. O objetivo geral
do estudo consiste em demonstrar que a fragmentação formal está, de diferentes
formas, vinculada à desordem social do referido momento histórico. Aliás, essa
desordem no plano sócio-histórico – considerada, aqui, de uma perspectiva ampla –
dialoga com um fundo alicerçado por uma prática e/ou por uma ideologia autoritária.
A propósito, é difícil definir o conceito de autoritarismo, dada a existência de
variações de fundamentação propostas pelos autores de ciências humanas. Para efeito
desse estudo, o conceito do referido vocábulo é definido, fundamentalmente, a partir das
exposições de Simon Schwartzman
2
, Bolívar Lamounier
3
e Raimundo Faoro
4
. Seguindo
o percurso de raciocínio dos dois primeiros autores, o autoritarismo consiste na
caracterização de um regime político em que existe um controle da sociedade por parte
do Estado, que manipula as formas de participação política e restringe a possibilidade
de mobilização social; existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a
administração pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao servir ao interesse
do Estado; o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da ordem. Nas
1
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Trad. Marcos Santarrita. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 112.
2
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
3
LAMOUNIER, Bolívar. Introdução. In: AMARAL, Azevedo. O estado autoritário e a realidade nacional.
Brasília: UnB, 1981.
4
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato público brasileiro. 13. ed. São Paulo:
Globo, 1998. V. I.
15
formas extremas, como o totalitarismo, o regime autoritário determina um partido único e
reprime rigorosamente manifestações antagônicas a seus interesses. A proposta de
Faoro é a de que se pense o autoritarismo como práticas e ações presentes no
cotidiano social que remontam à era colonial e que se desdobram em abusos de poder,
corrupções, preconceitos, clientelismo.
Cabe, aqui, ainda, especificar o sentido do termo fragmentação. De modo geral,
essa última pode ser designada quando se observar, nos referidos romances, os
seguintes casos, dentre outros: descontinuidade temporal, compreendendo-se, aí, a
fusão entre presente, passado e futuro; desarticulação causal entre os acontecimentos;
fluxo desgovernado de imagens e/ou de elementos; oscilação ou mudança de foco
narrativo; perda dos nexos lógicos da frase – enfim, toda vez que houver uma primazia
da desordem sobre a ordem presente na narrativa ficcional.
O estudo requer, ainda, que se explicitem alguns critérios para a seleção do
corpus. Nesse particular, os livros podem ser exemplares pelos seguintes princípios
básicos: em primeiro lugar, por serem narrativas fragmentárias; em segundo, por
possibilitarem a exploração de uma multiplicidade de tópicos que concorrem para a
problematização das narrativas; em terceiro, por serem engajados
5
; e, por fim, por
serem considerados, de acordo com a tendência geral da fortuna crítica, como os mais
representativos da época. Tais considerações, do mesmo modo que se propõem a
justificar a escolha das mencionadas obras como adequadas para a consecução do
presente trabalho, servem como ponto de partida para situá-las em relação ao objetivo
supradito.
Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, surgiu em 1971; no entanto, em virtude da
censura em curso, somente ganhou espaço para publicação, no Brasil, em 1975. O
enredo do romance radica em torno da história de um homem chamado José, sujeito
cuja travessia pelo mundo encontra-se conturbada pela violência e pela miséria. Em
comunhão com isso, tem-se uma pluralidade de tópicos temáticos que conferem à obra
o seu caráter fragmentário: assaltos a bancos, prisão de estudantes, morte de crianças,
tortura, fome, burocracia, machismo, rituais demoníacos – tudo isso se mistura e se
5
A idéia de engajamento não pode ser confundida com a de panfleto, conforme a conceituação proposta
por ADORNO, Theodor. Engagement. In: ____. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1991, aprofundada adiante.
16
repele numa composição surrealista, em que “o absurdo da ficção ressalta a insensatez
do real”
6
.
Editado em 1976, A festa, um dos mais consideráveis no panorama da literatura
brasileira da aludida década, consiste, talvez, no mais representativo da síntese entre a
aguda percepção crítica da sociedade e o tratamento formal do texto, rico em recursos
que sugerem desordem, compatível com a complexidade histórica e discursiva dos
momentos e dos temas que constituem a narrativa. Afora esses detalhes, Ivan Ângelo,
nesse livro, não somente propõe uma visão dramática do Brasil dos anos 1970, mas
possibilita a encenação de uma diversidade de personagens, dramas e classes sociais,
criando, com isso, um caleidoscópio em que os conflitos assumem tanto a humana
dimensão individual e psicológica, quanto a consternadora e letal confrontação com as
forças do poder.
Reflexos do baile, de Antonio Callado, também foi publicado em 1976. O
romance – que narra a tentativa de seqüestro de quatro embaixadores por um grupo de
guerrilheiros durante um baile de gala oferecido à rainha da Inglaterra – se faz por meio
de cartas, diários e relatórios. E o que chama a atenção e confere o caráter de
fragmentação à obra é a multiplicidade de vozes, de línguas e de estilos que habitam o
romance.
No mesmo ano de lançamento do livro atrás referido, tem-se a publicação de
Quatro-olhos, do escritor Renato Pompeu. Esse texto, que integra a linha do romance
memorialista, aborda a repressão, mesclando lembranças do passado, ficção e estilo de
crônica. Aí, o protagonista – que, aliás, dá nome à obra – ao representar o exercício de
uma consciência de recuperação de um passado violento, se depara com a
impossibilidade de fornecer dados íntegros acerca de fatos que restituem essas épocas
pretéritas. Como decorrência disso e dosado por um teor profundamente melancólico, o
relato apresenta-se descontínuo: nele, observam-se lapsos, vaivéns temporais,
recorrências ambíguas, bem como a incorporação de comentários sobre essa
fragmentação.
A execução do presente trabalho justifica-se como uma contribuição para os
estudos literários que, a rigor, vêm privilegiando argumentos históricos para atenderem
6
Cf. DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UnB,
1996. p. 70.
17
às suas aludidas propostas. Cabe ainda enfatizar que – apesar de a história ser, de
modo crescente, objeto de constante discussão nas pesquisas literárias – a incidência
dos fatos históricos que repercutiram no Brasil interessa enquanto testemunho do
caráter autoritário a que a formação da sociedade brasileira, em particular a partir da
segunda metade da década de 1960, esteve submetida.
A propósito, a demanda de reflexões sobre o assunto é cada vez mais urgente,
porque, no momento atual, de acordo com Fredric Jameson, estão se concretizando os
pesadelos formulados nos anos 30 e 40 acerca da desumanização
7
. Assim, nessa
perspectiva, o contexto histórico interessa enquanto elemento de possível inserção na
discussão a respeito dos conflitos sociais, conflitos esses, muitas vezes, enfatizados
através de determinadas obras literárias. Em virtude disso, esse estudo procura, em sua
delimitação, enfocar os aspectos históricos assinalados pelo caráter autoritário,
atentando ainda para a realidade sócio-histórica brasileira do período delimitado.
Ademais, conforme se frisou anteriormente, os livros que constituem o corpus
dessa tese são avaliados pela fortuna crítica como os que mais satisfatoriamente
respondem ao problema da institucionalização da violência política e do autoritarismo na
sociedade brasileira no período pós-64. Entretanto, não se verificou a existência de
qualquer estudo teórico suficientemente consistente que reunisse os quatro romances
juntos. Em vista disso, o presente trabalho objetiva resgatar essa suposta deficiência,
procurando valorizar as aludidas obras no tocante às suas escolhas temáticas e formais.
Levando-se em conta o vulto alcançado pelos livros privilegiados, concluiu-se que o
caminho eleito para abordá-los era pertinente e merecedor de atenção.
A pesquisa em curso desenvolve reflexões com o fito de dar conta do
mencionado problema. Para tanto, comporta divisões de modo que os componentes
analisados surjam segundo uma ordem de precedência. Assim, em primeiro lugar,
situam-se os princípios teóricos; em seguida, o exame individual dos livros que
compõem o corpus de investigação. Aliás, esses últimos estão dispostos de forma que
os tópicos eleitos para fins de análise se complementam de maneira lógica e didática. O
material, obedecendo a essa seqüência, permite que o trabalho apresente três
segmentos básicos: A propósito da fragmentação: apontamentos em torno da teoria do
romance, Princípios e funções da fragmentação: o olhar frankfurtiano e Desordem e
7
JAMESON, Fredric. O marxismo tardio: Adorno ou a perspectiva da dialética. São Paulo: Unesp, 1997a.
18
fragmentação em Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Antonio Callado e Renato
Pompeu.
Na primeira parte, A propósito da fragmentação: apontamentos em torno da
teoria do romance, colocam-se os princípios teóricos que visam a resgatar algumas
abordagens condizentes à formação do gênero em questão. Com isso, pretende-se
posicionar a discussão acerca das teorias da narrativa em relação aos princípios
estilístico-composicionais das obras literárias. O capítulo desenvolve considerações
tendo como sedimentação os posicionamentos de Georg Lukács, Lucien Goldmann,
Mikhail Bakhtin e, dentre outros, Julia Kristeva. O aludido segmento é encerrado com
uma proposta de revisão de ensaios de autores como Erich Auerbach, Anatol Rosenfeld,
Antonio Candido e Alfredo Bosi.
Na segunda parte, Princípios e funções da fragmentação: o olhar frankfurtiano,
optou-se pelo adentramento de quatro tópicos. Em primeiro lugar, apresenta-se um
panorama dos principais fatos históricos e sociais que caracterizaram o Brasil pós-64;
em segundo, expõe-se a problemática da fragmentação em vista da teoria crítica da
Escola de Frankfurt; em terceiro, discute-se a respeito de conceitos como mímese e
representação, todos eles alinhados com a proposta central de análise; e, por último,
enseja-se uma avaliação desses tópicos procurando compreender a função ou o efeito
que determinados textos fragmentados desempenham no leitor. A esses assuntos
compete demonstrar que a fragmentação está a meio caminho entre a desordem social
e a perspectiva de humanização do homem.
Na terceira parte, Desordem e fragmentação em Ignácio de Loyola Brandão, Ivan
Ângelo, Antonio Callado e Renato Pompeu, tem-se a análise individual de cada um dos
textos dos referidos escritores. Todos eles privilegiam tópicos que, além de se
complementarem, respondem ao estilo fragmentário. Assim, em Zero, são abordados
elementos condizentes à constituição problemática do sujeito e à carnavalização
literária; em A festa, são traçados comentários sobre a repressão, a miséria e a falta de
credibilidade dos poderosos, bem como é avaliado o discurso polifônico da narrativa; em
Reflexos do baile, são considerados o autoritarismo social e a questão da comicidade;
em Quatro-olhos, são postos em foco o apagamento da memória e a melancolia. A
escolha desses enfoques para cada romance deve-se à densidade de elementos que
apresentam, o que não desautoriza que a abordagem de uma obra seja pertinente a
19
outra. Antes dos comentários a respeito desses livros, empreende-se, ainda, uma
discussão acerca da situação de desenvolvimento do romance no Brasil.
Para a abordagem das temáticas selecionadas, busca-se respaldo em
referenciais sobre as teorias do romance, da história social e da sociologia da literatura,
tendo em vista autores consagrados pela Escola de Frankfurt (Walter Benjamin,
Theodor Adorno, Max Horkheimer e Hannah Arendt). Além disso, acrescentam-se a tais
postulados teóricos complementos cujo intuito é dar conta das peculiaridades que cada
texto comporta. Isso significa, então, que o presente trabalho não exige um método de
leitura totalmente rígido e pré-determinado. Ele abriga referenciais teóricos na medida
em que forem úteis para a construção da análise interpretativa. Nesse sentido, não se
pretende realizar uma discussão acerca de uma possível classificação das obras
conforme determina a história literária. Elementos da teoria literária a partir da literatura
comparada, agregando perspectivas interdisciplinares com outras áreas do
conhecimento também são considerados para o propósito da pesquisa em curso.
20
1 A PROPÓSITO DA FRAGMENTAÇÃO: APONTAMENTOS
EM TORNO DA TEORIA DO ROMANCE
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a
outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a
pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre
houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.
(A hora da estrela, Clarice Lispector)
1.1 Pressupostos iniciais: Hegel, Lukács e Goldmann
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução
creio do Jornal do Comércio. Sentei à mesa que havia no centro da
sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa
dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-
me às aventuras.
(Missa do galo, Machado de Assis)
A consagração do romance foi um acontecimento cuja data pode ser situada na
virada do século XVIII para o XIX. O surgimento desse novo gênero no plano da arte fez
eclodir traços que o particularizaram em relação aos modelos poéticos anteriormente
existentes. Dentre tais características, as principais talvez sejam a forma prosaica que o
romanesco
8
elegeu para narrar os eventos selecionados e o caráter de painel de seu
enredo. O romance, entretanto, não emergiu destituído de discussões teóricas. Um dos
primeiros nomes a situar e a sistematizar a problemática em torno do aludido gênero foi
Georg Wilhelm Hegel.
8
O vocábulo romanesco, tal como se emprega neste trabalho, refere-se ao gênero moderno romance, e
não ao gênero medieval que recebe denominação similar.
21
As abordagens teóricas que o referido autor apresenta acerca do romance, em
verdade, circunscrevem-se a partir das reflexões filosóficas situadas em seu estudo
sobre a fenomenologia do Espírito. Essa relação, diferentemente do que se pode
pensar, não ocorre de maneira casual. Ela tem a ver, inclusive, com a formação dos
gêneros canônicos da literatura – o épico, o lírico e o dramáticoque, por sua vez,
condicionaram o surgimento do gênero moderno.
Hegel, partindo de uma reminiscência platônica, afirma existir um mundo supra-
sensível onde se situam as leis que regem o jogo recíproco de forças que garante um
movimento perfeito da vida. Ainda segundo os seus preceitos, essa força viva, inerente
à natureza das coisas, é responsável pelo estímulo do pensamento na construção das
etapas do conhecimento
9
.
Persistindo essa movimentação, dá-se uma passagem do que até então se
situaria no nível da conceituação para o grau da Idéia. É justamente nessa etapa, de
acordo com o pensador, que se manifesta o Espírito, enquanto uma espécie de
consciência universal que resulta tanto da superação das referências aos dados
exteriores que distinguem a natureza bem como de reelaborações operadas no interior
da consciência: “essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de
sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade
das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu”
10
.
O Espírito nasceria em uma consciência individual e limitada e, para alcançar
estágios mais elevados, dependeria da relação desta com outras consciências. Isso
significa, então, que ele pode atravessar o plano da individualidade de maneira a vir a
traduzir-se em formas objetivas da vida social e ética. Segundo as premissas
hegelianas, “[o] Espírito, doravante cindido em si mesmo, inscreve em seu elemento
objetivo, como em uma afetividade rígida, um dos seus mundos – o reino da cultura – e,
em contraste com ele, no elemento do pensamento, o mundo da fé – o reino da
essência”
11
.
9
HEGEL, Georg Wilhelm. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e Karl-Heinz Efken. 6. ed.
Petrópolis: Vozes. 2001. Parte I. p. 95-118.
10
Idem. p. 125.
11
HEGEL, Georg Wilhelm. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e José Nogueira Machado.
5. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. Parte II. p. 9.
22
O caráter universal do Espírito englobaria o Direito, a Família, a Moral e o Estado
e, em sua expressão mais elevada, se manifestaria como o Absoluto
12
. Aí, desponta-se
a formalização da arte, da religião e da filosofia, todas elas isentas de contradições entre
o subjetivo e o objetivo
13
. Em outras palavras, o que Hegel intenta mostrar é que a
fundamentação absoluta do saber é resultado de uma gênese ou de uma história cujas
vicissitudes são assinaladas, no plano da aparição ou do fenômeno ao qual tem acesso
o filósofo, pelas oposições sucessivas e dialeticamente articuladas entre a certeza do
sujeito e a verdade do objeto.
As aludidas considerações acerca dos pressupostos hegelianos prestam-se para
uma abordagem a respeito da constituição do pensamento social, bem como servem de
alicerce para situar a formação dos gêneros literários que, a seguir, fariam irromper o
gênero romanesco. Nesse sentido, por um lado, o caminho descrito por Hegel
acompanha os passos da formação do indivíduo para a ciência, ou, se se quiser, do
homem ocidental para a filosofia; por outro, compõe a fórmula explicativa que combina
os gêneros canônicos a partir do modo como se inscrevem na tradição e nas
conceituações teóricas.
Assim, nesse esquema, no particular à expressão artística, Hegel expõe que a
epopéia se nutriria de uma essência dada por um estágio mais evoluído da sociedade.
Isso significa que os povos teriam superado aquelas etapas iniciais e intermediárias dos
primeiros tempos e estariam se encaminhando para uma certa organização da
existência humana. O filósofo sugere ainda que o conteúdo da poesia épica brotaria da
dinâmica dos acontecimentos conferida pelo conjunto dos homens e dos deuses de
modo que, entre o narrador e a matéria narrada, existiria um distanciamento. Com isso,
a epopéia assumiria a função de tese na equação dialética proposta pelo autor.
Em contrapartida à epopéia, a lírica teria por conteúdo a alma agitada pelos
sentimentos, o que equivaleria a dizer, então, que ela possui um caráter essencialmente
subjetivo. Em outros termos, a atitude fundamental da lírica seria, conforme sugere
Hegel, o não distanciamento, a fusão do sujeito e do objeto. Aqui, ainda segundo o
filósofo, o indivíduo viveria num mundo mais estável e, em virtude disso, se voltaria para
a sua interioridade, com o intuito de expressar estados poéticos. Esses traços atestam
12
Idem. p. 207-220.
13
Cf. ainda SANTOS, Pedro Brum. Retratos do Brasil: a representação da história na ficção pós-70. 199f.
Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 1996. p. 13-17.
23
ao referido gênero uma marca de individualidade e, por isso mesmo, ocuparia a posição
de antítese dentro da dialética hegeliana.
O gênero dramático, a rigor, irromperia como síntese dos outros dois. Isso se
justifica uma vez que ele constitui, simultaneamente, o desenrolar objetivo de
acontecimentos e a expressão vibrante da interioridade, formando, assim, valores
coletivos e individuais. Nesse particular, segundo seus argumentos, podem surgir
espécies de heróis pessoais e independentes que concebem a finalidade de uma ação e
são capazes de realizar empreendimentos individuais
14
.
Esse quadro permite formular as seguintes observações. A primeira diz respeito
ao não hibridismo de gêneros. O épico, o lírico e o dramático – cada qual com suas
particularidades – seguiriam percursos individuais, de maneira a prescreverem os três
modos básicos firmados na tradição das expressões da arte literária. A segunda
concerne à origem do romance. Hegel se detém particularmente no desenvolvimento
histórico da epopéia, desde os seus modos mais simples – epigramas, inscrições em
monumentos, poemas didático-filosóficos, teogonias e cosmogonias – até chegar à
epopéia propriamente dita. Esta, de acordo com os seus apontamentos, apresentaria
como pano de fundo a idéia de um mundo orgânico, total e unitário, que, por sua vez,
daria origem ao romance, o qual ele define como a “epopéia burguesa moderna”,
tornada prosaica e sem a transcendência do mundo épico onde habitam deuses e
heróis
15
.
Com isso, considerando-se o propósito da pesquisa em curso, pode-se salientar
que o romance, no seu estágio inicial de desenvolvimento, era visto enquanto um
gênero que não contemplava uma estrutura fragmentada de composição, mesmo
porque estava pautado numa totalidade harmônica de elementos. Portanto, o
empreendimento de Hegel acerca desse tópico, pelo que tudo indica, permite conferir
uma relação dialética entre a forma e o conteúdo do romance em relação aos valores do
mundo que ele preconizava.
Outro teórico que manifesta particular interesse pelas formas de desenvolvimento
do romanesco é Georg Lukács. Em seu estudo clássico sobre a teoria do romance, o
14
Essa abordagem consta em HEGEL, Georg Wilhelm. Estética: poesia. Lisboa: Guimarães, 1980.
15
A propósito, Hegel (1999) afirma que o indivíduo heróico não se separa do conjunto ético ao qual
pertence, antes tem uma consciência de si apenas enquanto unidade substancial com esse todo. Além
disso, acrescenta: “na antiga totalidade plástica o indivíduo não é em si mesmo isolado, e sim é membro
de sua família, de sua linhagem” (p. 198).
24
filósofo húngaro aproxima-se da equação dialética proposta por Hegel tanto para
explicar a introdução dos modos literários no mundo da história quanto para situar a
problemática em torno do desdobramento do romance. O autor, além de investir na
abordagem desses elementos teóricos, confere especial destaque à forma romanesca,
pautando-se, ainda, no recurso da ironia.
No entendimento de Lukács, a síntese dialética operada entre a tragédia e o
drama concorreria para a formação do romance. Nessa perspectiva, segundo ele, o
gênero trágico logra uma era em que os heróis da juventude são acompanhados, em
seus caminhos, pelos deuses; daí, a profunda certeza de sua marcha. Aqui, ainda, é
suplantada a idéia de que os mundos superiores ocupariam posições hierárquicas
vantajosas, e o mundo exterior seria somente um pretexto para que a alma encontrasse
a si mesma
16
. Esses traços, dentre outros, conferem ao modelo em apreciação a função
de tese.
O drama, por sua vez, caracterizaria um herói que desconhece toda a sua
aventura e toda a sua interioridade, já que essa última “nasce da dualidade antagônica
entre a alma e o mundo”
17
. Conforme o autor, essa consciência que o indivíduo
expressa em relação a suas condições justificaria o fato de ele “não sair a campo para
provar a si mesmo”
18
. Ele é herói porque a sua certeza está afirmada
independentemente de sua experiência, e o acontecimento que dá forma ao destino é,
para ele, simplesmente uma objetivação simbólica, uma cerimônia profunda e solene. O
gênero dramático, consideradas essas particularidades, desempenharia o papel de
antítese dentro desse esquema.
O romance consistiria no resultado dessa dialética, ou seja, na síntese que se
afeiçoa a partir dos mencionados gêneros. Segundo Lukács, “[o] romance é a forma da
aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a
campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e,
pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência”
19
. Com isso, o herói romanesco se
situaria no campo de ação do demoníaco.
16
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000. p. 89.
17
Idem. p. 90.
18
Idem. Ibidem.
19
Idem. p. 91.
25
O trato de Lukács para com os referidos elementos teóricos contribui para que a
sua obra seja a primeira das ciências do Espírito em que os resultados da filosofia
hegeliana sejam aplicados concretamente a problemas estéticos. Na visão do teórico
húngaro, o mundo social, diferentemente do que preconizava Hegel, não é mais dotado
de uma totalidade orgânica de sentidos. Agora, ele apresenta incompletudes e
contradições de modo que a vida deixaria de ser estruturada a partir de valores
imanentes e/ou transcendentais. Assim, os problemas formais que o romance apresenta
seriam reflexos artísticos do emaranhado inextrincável que o plano social comporta.
Conforme o próprio autor, “todos os abismos e fissuras inerentes à situação histórica
têm de ser incorporados à configuração [do mencionado gênero] e não podem ser
encobertos por meios composicionais”
20
.
Afora isso, em seu estudo, Lukács ressalva que “a problemática da forma
romanesca é a imagem especular de um mundo que saiu dos trilhos”
21
. Do seu ponto de
vista, a realidade não consistiria mais num terreno propício à arte e, em decorrência
disso, surgiria a necessidade de um acerto de contas do romance para com as formas
fechadas e totais que nascem de uma totalidade do ser integrada em si. Isso significa,
então, segundo os seus argumentos, que a organização formal do aludido gênero se
estabelece em relação ao seu confronto com o mundo o qual se configura tendo como
base experiências de vida empíricas.
Um importante ponto de discussão dentro da teoria lukácsiana que colabora para
a compreensão do romance diz respeito ao seu lugar social de desenvolvimento.
Conforme os apontamentos do autor, a emergência do romanesco inscreve-se a partir
da divisão social de classes condicionada pela ascensão da burguesia. Dentro desse
quadro consignado pelo capitalismo, o gênero moderno se situaria no pólo oposto ao da
epopéia antiga. Nesse sentido, partindo de Hegel, Lukács afirma que a poesia dos
poemas homéricos repousaria essencialmente sobre a ausência relativa da divisão
social do trabalho, o que justificaria a unidade entre indivíduo e sociedade. Em
contrapartida, com a divisão capitalista do trabalho, fenômeno esse que coincide com a
prosa da vida moderna, formula-se a oposição entre o indivíduo e a sociedade.
20
Idem. p. 60.
21
Idem. p. 14.
26
Conseqüentemente, o conteúdo do romance é determinado como combate na
sociedade, e não da sociedade como ocorre com o conteúdo da epopéia
22
.
Acontece, no entanto, que a sociedade burguesa apresenta uma ambivalência
fundamental em sua composição. O modo de produção a que ela aderiu pela divisão
social do trabalho levou a uma profunda degradação humana e, por isso mesmo, “só
pode ser compreendida completa e corretamente pela visão de mundo do proletariado –
o materialismo dialético”
23
. Nessa perspectiva, Lukács explica que o escritor burguês
resolve tal paradoxo fazendo do progresso uma mitologia, combatendo ou lamentando
com estreiteza romântica a degradação do homem.
Ainda segundo o teórico, grandes escritores do período ascendente da burguesia
procuravam expressar uma síntese entre essas duas tendências contraditórias. O herói
positivo, que exprimia valores dignos e típicos da classe emergente, teria seu caráter
dissolvido em meio às contradições e aos horrores da evolução capitalista. O que esses
grandes escritores pretendiam, em verdade, era um estado intermediário, uma
ultrapassagem das contradições que descobriam no interior do sistema capitalista. Tudo
isso, na visão de Lukács, convergiria para a forma do romanesco:
o resultado final é a forma romanesca – esta forma contraditória,
paradoxal e, na ótica clássica, inacabada, mas cuja grandeza artística
prende-se exatamente ao fato de ela refletir e figurar artisticamente o
caráter contraditório da última sociedade de classes, realizando-o
conforme esse caráter contraditório
24
.
A propósito, um estudo acerca da teoria lukácsiana foi elaborado por Fredric
Jameson. O autor, em sua abordagem, retoma elementos extraídos da filosofia de Hegel
para, com isso, pautar-se na organização do mundo adotada pelo teórico alemão e,
também, nas características essenciais que, na visão deste, definiriam o gênero épico.
Em seguida, Jameson contrapõe os aludidos pressupostos hegelianos com os
posicionamentos teóricos preconizados por Lukács. Seguindo o percurso de raciocínio
desse último, o crítico norte-americano chega a uma conclusão sobre a natureza do
romance, o qual ele afirma ser não uma forma fechada e estabelecida com convenções
22
LUKÁCS, Georg. Nota sobre o romance. In: ____. Sociologia. José Paulo Netto (Org.). 2. ed. São
Paulo: Ática, 1992. p. 177-179.
23
Idem. p. 180.
24
Idem. Ibidem.
27
pré-fixadas, mas um gênero problemático em sua própria essência, uma forma híbrida
25
,
conforme as precedentes considerações demonstraram.
Segundo Lukács, portanto, a manifestação romanesca estaria, de diferentes
formas, marcada pela ênfase a questões de cunho social e histórico. Isso não significa,
entretanto, que ela não exprima um conteúdo essencial. Conforme o autor, para
satisfazer essa exigência, o escritor deve aderir ao recurso da ironia, o qual torna
possível a prática de um distanciamento em função do qual ele pode dissimular, no
texto, a degradação do mundo narrado e manter uma autonomia em relação aos
personagens descritos.
Considerando-se os preceitos do autor, vale afirmar que a ironia consiste na
objetividade do romance e de seus respectivos personagens. Nesse particular, tal como
chama a atenção o teórico húngaro, essa objetividade se manifesta na medida em que o
homem se liberta em sua relação com deuses: “o herói é livre quando, com pertinácia
luciferina, atinge a perfeição em si e a partir de si mesmo
26
. De acordo com o pensador,
é essa liberdade condicionada pelo escritor através do recurso da ironia o que
propiciaria o resgate do poético num mundo sem deus. A junção de um conteúdo de
feição histórica dosado por valores poéticos garantiria, pois, a legitimação do romance
no plano da arte.
Os apontamentos em torno da teoria de Lukács permitem verificar um certo
descompasso em relação às afirmativas hegelianas. Para o filósofo alemão, o romance,
enquanto um desdobramento tardio do épico, continha como pano de fundo a idéia de
um mundo orgânico, total e racional, e, por isso mesmo, estava descartada a
possibilidade de se avaliá-lo enquanto um gênero fragmentado ou desestruturado
formalmente. Na visão do pensador húngaro, em contrapartida, o romanesco consistiria
num produto das manifestações dramáticas e, além disso, estaria pautado numa idéia
de mundo cuja totalidade não pode mais ser apreendida. Nesse sentido, os tumultos da
vida social retornariam ao gênero em questão desmantelando a feição de seu conteúdo.
25
JAMESON, Fredric. The Case for Georg Lukács. In: ____. Marxism and Form. New Jersey, Princeton:
Princeton University Press, 1971. p. 172.
26
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000. p. 93.
28
Conforme o que foi arrolado, essas seriam condições suficientes para se pensar o
hibridismo de formas que o romanesco elege adotar
27
.
Aliás, um teórico bastante afinado às propostas teóricas desenvolvidas pelo autor
húngaro é Lucien Goldmann. Os estudos desse último assentam-se numa tentativa de
traçar correlações entre a história da forma romanesca e a história da vida econômica
nas sociedades ocidentais. A premissa de seu trabalho é de que existe uma homologia
entre a estrutura do gênero romanesco e a estrutura da sociedade de valor de troca,
mostrando, inclusive, que a evolução do romance corresponde ao mundo da
reificação
28
.
Nesse sentido, para lograr o seu intento, Goldmann vale-se de determinados
tópicos formulados por Georg Lukács e por René Girard
29
. Estes, na visão do teórico,
encerrariam pontos de vista semelhantes, não obstante a particularidade de seus
pensamentos. Assim, tanto de um quanto de outro, o autor romeno aproveita as
definições dos conceitos de herói problemático, degradação e valor autêntico
30
, todos os
três considerados fundamentais para a caracterização do gênero emergente. De modo
geral, o que se registra dos dois pensadores é a idéia de que o romance consistiria na
história de uma busca de valores autênticos, por um herói problemático, em um mundo
degradado
31
.
Partindo dessas considerações, Goldmann procura desenvolver a tese de que
existe uma relação entre a forma romanesca e a estrutura do mundo social onde ela se
27
Diferentes enfoques de leitura acerca das propostas teóricas desenvolvidas pelo autor húngaro
encontram-se em BORDINI, Maria da Glória (Org.). Lukács e a literatura. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.
28
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. 2. ed. Trad. Álvaro Lins. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976. p. 8.
29
Os livros a partir dos quais Goldmann formula suas considerações são LUKÁCS, Gyorgy. La théorie du
roman. Paris: Gonthier, 1963 e GIRARD, René. Mensonge romantique et vérité romanesque. Paris:
Grasset, 1961.
30
Nesse particular, Goldmann (1976) explica que valores autênticos não devem ser entendidos enquanto
valores que a crítica ou o leitor julgam autênticos, mas aqueles que, sem estarem manifestamente
presentes no romance, organizam, de modo implícito, o conjunto de seu universo (p. 9).
31
Goldmann elucida ainda um ponto de desacordo entre Lukács e Girard. A mencionada premissa de que
o romance envolveria uma pesquisa degradada de valores autênticos num mundo inautêntico exigiria que
a situação do escritor em relação ao universo por ele criado fosse, no romance, diferente da sua situação
em relação ao universo das demais formas literárias. A essa situação particular Girard denomina humor;
Lukács, ironia. Conforme Goldmann, “[a]mbos estão de acordo em que o romancista deve ultrapassar a
consciência de seus heróis e que essa superação (humor ou ironia) é esteticamente constitutiva da criação
romanesca” (p. 12-13). No entanto, os dois divergem quanto à natureza de tal superação. Para Girard, o
romancista, no momento em que escreve a sua obra, abandonaria o mundo da degradação para
reencontrar a autenticidade, a transcendência. Já para Lukács, na medida em que o romance é a criação
imaginária de um universo regido pela degradação universal, aquela superação não poderia deixar de ser,
ela própria, degradada (p. 13).
29
desenvolveu, isto é, de que o romance enquanto gênero literário se edificaria a partir da
moderna sociedade individualista:
[a] forma romanesca parece-nos ser a transposição para o plano
literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da
produção para o mercado. Existe uma homologia rigorosa entre a forma
literária do romance, tal como acabamos de definir, nas pegadas de
Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos homens com os bens em
geral; e, por extensão, dos homens com os outros homens, numa
sociedade produtora para o mercado
32
.
Com vistas aos aludidos pressupostos, verifica-se que Goldmann não está
preocupado em julgar o romance enquanto resultado de uma progressão dialética dos
gêneros literários, como o fizeram Hegel e Lukács. Seu intuito radica em torno do
preceito de que o desenvolvimento do romanesco tem em conta o presente de sua
produção, ou seja, a sociedade pautada na troca e na reificação. Com isso, o teórico
trabalha com a hipótese de que a vida econômica seria composta por pessoas
orientadas exclusivamente para esses valores – valores, por sua vez, degradados – aos
quais se somariam, na produção, certos indivíduos que se conservam orientados,
essencialmente, no sentido dos valores de uso e que, por isso mesmo, se situariam à
margem da sociedade, convertendo-se, assim, em sujeitos problemáticos
33
.
Assim, segundo Goldmann, as duas estruturas atrás elucidadas – a do gênero
romanesco e a da troca – apresentariam homologias definidas a tal ponto que se
poderia falar de uma única estrutura que se manifestaria em planos distintos. Afora isso,
conforme salienta o autor, “a evolução da forma romanesca que corresponde ao mundo
da coisificação só poderia ser compreendida na medida em que estivesse relacionada
com uma história homóloga das estruturas da última”
34
.
Após enfatizar a idéia de que existe uma ligação entre as estruturas econômicas
e as manifestações literárias, Goldmann se esforça para explicar como tal vínculo se
processa. Do seu ponto de vista, haveria quatro razões básicas que determinariam uma
visão do gênero em questão. Em primeiro lugar, ele averigua que o romance apresenta
32
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. 2. ed. Trad. Álvaro Lins. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976. p. 16.
33
Idem. p. 17.
34
Idem. p. 18.
30
categorias mediadoras que se transformam em valores absolutos. Em segundo,
comenta que, mesmo em meio a esses valores absolutos, há indivíduos que se orientam
por valores qualitativos. Seriam, nesse caso, dentre outros, criadores, escritores, artistas
e filósofos, cujo pensamento e conduta são regidos pela qualidade de suas obras, “sem
que possam escapar inteiramente à ação do mercado e ao acolhimento da sociedade
coisificada”
35
. Em seguida, expõe que o romance é a expressão de uma experiência
coletiva que visa diretamente aos valores qualitativos. Por fim, esclarece que o romance
abriga valores universais que perduram em meio a uma sociedade degradada pelo
mercado. Nesse sentido, esses valores se tornariam constitutivos do romanesco uma
vez que este expressaria uma biografia individual de um sujeito problemático
36
.
As considerações precedentes – que gravitaram em torno dos princípios teóricos
elaborados por Hegel, Lukács e Goldmann – permitiram verificar determinados aspectos
que são de interesse para a pesquisa em curso. O principal deles provavelmente diz
respeito à relação que a arte mantém com a história ou, de um ângulo mais específico, a
ligação que o romanesco estabelece com o dado social. Os três pensadores costumam
construir seus aportes conceituais sem perder de vista tal aspecto. Com isso, elementos
sociais e históricos atravessariam o texto ficcional, garantindo um quadro que, em última
instância, sugeriria uma certa visão do mundo.
Assim, para Hegel, o Espírito instaura um sistema idealista, onde o que se
ressalta é a totalidade. Há uma teleologia que se encarrega de determinar o real e da
qual não se é possível fugir. É como se houvesse uma providência divina a reger os
passos dos homens em função da instauração de uma determinada realidade. O
Estado, nesse caso, seria o elemento máximo da racionalidade no mundo da
objetividade do Espírito. Justamente em virtude disso, haveria um mascaramento da
opressão e da dominação que acontece concretamente na vida dos homens. Logo, no
mundo preconizado por Hegel, o romance não gera, no seu estágio inicial de
desenvolvimento, maiores polêmicas quanto ao seu aspecto estrutural.
Da perspectiva de Lukács, o romance constitui-se num gênero que mantém
vínculos com a história moderna. O autor não aceita o romance fragmentário visto que
este é uma forma épica nova, que mantém uma simetria formal com a epopéia, embora,
no quadro do fenômeno social burguês, não pode mais atingir uma realização artística
35
Idem. p. 22.
36
Idem. p. 21-23.
31
de alto nível. Não obstante, do ponto de vista do pensador húngaro, a sua estrutura se
funda na trajetória de um indivíduo precário e num mundo contingente. Assim, o
romance é problemático já que exprime as incertezas das estruturas e do homem de
sua época e também porque seu modo de expressão e sua construção representam
uma tarefa não resolvida.
Para Goldmann, o romance é um universo dominado por valores que a sociedade
ignora, tornando implícitos valores autênticos que não existem, nele, como realidade
manifesta. Isto está relacionado com o fato de que a forma do romance é homóloga à
estrutura de troca no sistema de economia do mercado. Em outros termos: desde o
momento em que o valor de troca empurra para o último plano, tornando implícito o
valor de uso, os valores autênticos se vêem mais esquecidos pelo romance. Assim,
esse último, através da modificação da forma e não somente dos conteúdos, corporifica
uma grande conquista da era burguesa: a natureza não-fixa e se modificando
dinamicamente, da ordem de valores.
A partir das formulações teóricas desses pensadores, não é oportuno que se fale
em romance fragmentado. Entretanto, particularmente com Lukács e Goldmann,
observa-se que o gênero apresenta características que somente são compreensíveis se
forem tomadas como referências as circunstâncias históricas e sociais de sua época. De
qualquer modo, é importante assinalar que o romance é flexível às transformações à
sua volta. Não somente esses autores se preocuparam com a relação entre a literatura
e o dado histórico e/ou social, nomes como Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva e Roland
Barthes também se esforçaram nessa direção.
1.2 Desdobramentos: Bakhtin, Kristeva e Barthes
Es-tou vi-va. Talvez eu não mereça tanto. Estou com medo. Mas não
quero terminar com medo. Êxtase. Yes, my love. Entrego-me. Sim.
Pour toujours. Tudo – mas tudo é absolutamente natural. Yes.
(Brasília, Clarice Lispector)
Tal como se registra em Georg Lukács e em Lucien Goldmann, os princípios
teóricos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin acerca do romanesco enquadram-se numa
32
perspectiva de cunho marxista. Aliás, para ele, o romance consiste num gênero literário
em devir, ou seja, sempre inacabado em relação à epopéia, gênero esse fechado,
dotado de um sentido total e orgânico. Não obstante a aludida compatibilidade entre os
três teóricos, convém assinalar o seguinte ponto de divergência entre eles: enquanto
que, para aqueles dois, prevalece a idéia de uma filosofia da história que privilegia a
ordenação de esquemas de raciocínio que procuram definir tópicos do relato ficcional
em função da vida em sociedade, para este, a problemática do romance situa-se no
âmbito da lingüística e do discurso. A propósito, os seus estudos a respeito da filosofia
da linguagem bem como a análise da poética dostoievskiana são importantes para o
empreendimento da pesquisa em curso.
Em sua abordagem marxista da filosofia da linguagem, Bakhtin leva em conta
inúmeros domínios das ciências humanas, dentre eles, a psicologia cognitiva, a
etnologia, a pedagogia das línguas, a comunicação, a estilística, a crítica literária bem
como fundamentos da semiologia moderna. Nesse estudo, o pensador russo procura
demonstrar a existência de um vínculo entre as leis da comunicação semiótica e o
conjunto das leis sociais e econômicas, propondo uma filosofia sociológica da linguagem
através do método sociológico marxista. Do seu ponto de vista, tal filosofia é concebida
como uma filosofia do signo ideológico, já que a palavra – a qual ele denomina como o
signo mais puro – é o fenômeno ideológico por excelência, sendo que o signo somente
emergiria pelo processo de interação social entre uma consciência individual e uma
outra. Segundo ele, essa consciência individual consistiria num fato sócio-ideológico que
adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de
suas relações sociais
37
.
Partindo dessa base, o autor busca investigar a forma como a realidade (a infra-
estrutura) determina o signo. Do seu ponto de vista, o signo ideológico é concebido por
palavras, e estas “são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de
trama a todas as relações sociais em todos os domínios”
38
. Por isso, explica ele, tais
palavras são sempre os indicadores mais sensíveis de todas as transformações sociais,
já que todo signo é ideológico, e a ideologia consistiria num reflexo das estruturas
37
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981a. p. 31-38.
38
Idem. p. 41.
33
sociais de modo que toda modificação dessa ideologia encadearia uma modificação da
língua
39
.
Afora isso, Bakhtin acrescenta que o sujeito social, refletido no signo, não apenas
nele se reflete, mas também nele se refrata. Segundo expõe o teórico, o que
determinaria tal refração do ser no signo ideológico seria o confronto de interesses
sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja, a luta de
classes. Nesse ponto, ele chama a atenção para o fato de que o signo – quando
subtraído às tensões da luta social, quando posto à margem da luta de classes – iria
delibitar-se, deixando de ser um instrumento racional e vivo para a sociedade. E este,
salienta o pensador russo, seria o objetivo do grupo detentor do poder: “[a] classe
dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das
diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor
que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”
40
.
Segundo os preceitos bakhtinianos, portanto, o signo – porquanto consiste num
reflexo da realidade – apresenta uma natureza viva e móvel, dotada de plurivalência.
Entretanto, argumenta o teórico, o interesse da elite é torná-lo monovalente no intuito de
conferir-lhe certa neutralidade justamente para camuflar os conflitos ideológicos e de
classe. A propósito, essa idéia fica assegurada no tocante à análise das formas de
configuração do discurso. Bakhtin, nesse particular, afirma existirem duas modalidades
de estilo dentro das quais se circunscreve e se esquematiza o discurso de outrem: a
primeira seria o estilo linear; a segunda, o pictórico.
O crítico descreve e interpreta tais estilos da seguinte forma. No primeiro caso, a
tendência consistiria em criar contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado.
Isso equivale a dizer que o texto adquiriria certa homogeneização estilística,
comportando sobriedade e plasticidade máximas. De acordo com o autor, haveria, aqui,
a imposição de certo grau de autoritarismo e de dogmatismo que acompanharia a
apreensão do discurso. Em contrapartida, no que diz respeito ao estilo pictórico, o
contexto narrativo se esforçaria por desfazer a estrutura compacta e fechada do
discurso citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras. Sua tendência consistiria em
atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem, trazendo à tona as
39
Idem. Ibidem.
40
Idem. p. 47.
34
diferenças sócio-ideológicas. Nesse caso, comenta Bakhtin, o dogmatismo autoritário e
racionalista tenderia a desaparecer
41
.
Os pressupostos teóricos formalizados pelo pensador russo permitem verificar
que aquelas particularidades conferidas ao signo prestam-se para uma reflexão acerca
da arte literária. Nesse sentido, conforme Bakhtin, o signo – dada a sua capacidade de
refletir uma estrutura sócio-histórica – é sempre ideológico e, por isso mesmo, pode ser
manipulado para atender a fins específicos. Considerando que todo texto literário emana
do seio de uma sociedade situada historicamente, pode-se afirmar, então, que ele
resguarda, da mesma forma, valores ideológicos. Não só isso: o arranjo de seus
elementos lingüísticos pode ser manipulado a favor ou contra ideais pregados pela elite
dominante. Assim, uma obra fragmentada estruturalmente busca não apenas sugerir um
todo contraditório e desestruturado, mas também procura reagir contra aqueles
domínios autoritários, já que visa a dessacralizar as formas burguesas de expressão.
Aliás, um estudo acerca do romanesco é desenvolvido pelo aludido autor em seu
livro relativo a questões de literatura e de estética
42
. Nele, o teórico russo trabalha com a
hipótese de que o romance é caracterizado por distintas vozes sociais que se defrontam
e se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado
objeto. De acordo com Bakhtin, o que particularizaria o gênero em questão seria o seu
caráter pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal
43
, definido a partir das disposições
discursivas da linguagem. Tal linguagem, na sua compreensão, seria formada por
palavras e estruturas que expressariam vozes sociais e históricas
44
.
Com base nesses pressupostos, o pensador russo afirma que todo romance, em
maior ou menor intensidade, consistiria num sistema dialógico de imagens das
linguagens, de estilos, de concepções concretas e inseparáveis da língua. A língua do
romance, segundo o teórico acrescenta, não apenas representaria, mas ela própria seria
objeto de representação. Assim, salienta ele, a palavra romanesca seria sempre
autocrítica, o que faria do romance um gênero distinto da epopéia, da lírica e do drama
em senso estrito
45
. Nesse sentido, o romance, na concepção do autor, seria a
41
Idem. p. 149-151.
42
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni
Bernadini et al. 3. ed. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1993.
43
Idem. p. 73.
44
Idem. p. 106.
45
Idem. p. 371.
35
“expressão da consciência galileana da linguagem”
46
. Isso significa que o aludido gênero
pressuporia uma descentralização semântico-verbal do mundo ideológico, implicando
grupos sociais fortemente diferenciados que se encontrariam “numa interação tensa e
essencial com outros grupos sociais”
47
. Com tudo isso, portanto, as tensões sociais e
ideológicas estariam marcadas no próprio campo discursivo do romance.
As reflexões desenvolvidas por Bakhtin acerca dos referidos aspectos tornam-se
bastante ilustrativas em seu estudo a respeito da poética de Dostoiévski
48
. Aí, o autor
empenha-se na definição de particularidades relativas à noção de dialogismo para, com
isso, construir a sua teoria do romance polifônico. Na primeira parte de seu livro, o
teórico procura demonstrar as diversas leituras realizadas a partir do conjunto das obras
do escritor russo. A partir das reflexões de críticos como Ivanov, Askóldov, Grossman,
Kauss e, dentre outros, Engelgangt, Bakhtin define o romance polifônico em oposição ao
monológico. De modo geral, segundo ele, esse último consistiria naquele que
apresentaria uma consciência única e abrangente; em contrapartida, o romance
polifônico seria aquele dialógico, ou seja, o que encerraria uma multiplicidade de
centros-consciência ou vozes, não reduzidos a um denominador ideológico
49
.
A partir dessas ocorrências, Bakhtin descreve a narrativa polifônica a partir dos
seguintes traços. Segundo ele, tal romance, para ser assim classificado, deveria
apresentar uma “multiplicidade de vozes e consciências independentes”, ou seja, os
personagens, nesse caso, seriam sujeitos de seus próprios discursos, constituindo
vozes repletas de valores que se impunham pela sua autenticidade
50
. Além disso, o
crítico alerta para o fato de que, nesse particular, haveria a necessidade de se
irromperem os focos narrativos em primeira pessoa e não um narrador apenas,
onisciente, que conduz ele só a narrativa e o destino dos personagens, não lhes
conferindo voz ativa
51
.
Os apontamentos de Bakhtin, em seu estudo, chamam a atenção para inúmeras
circunstâncias que justificariam a emergência do romance polifônico no plano da arte
literária. De modo geral, haveria causas sociais que determinariam tal especificidade.
46
Idem. p. 164.
47
Idem. p. 165.
48
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b.
49
Essas reflexões constam principalmente no Capítulo 1. Idem. p. 1-37.
50
Idem. p. 2.
51
Idem. p. 41.
36
Segundo o autor, os romances dostoievskianos não representariam nem expressariam a
formação dialética do Espírito. Pelo contrário: em termos hegelianos, o Espírito uno em
processo de formação dialética não poderia gerar outra coisa senão um monólogo
filosófico. Assim, mesmo como imagem, o Espírito seria organicamente estranho a
Dostoiévski, para quem o universo é profundamente pluralista. Portanto, de acordo com
o teórico russo, o que tornaria possível a construção do romance polifônico seriam as
condições de um universo social objetivo cujas particularidades incidiriam na
“multiplicidade de planos e [n]o caráter contraditório da realidade social”
52
. Conforme o
pensador,
[a] complexidade objetiva e a polifonia da sua época, a condição de
raznotchínets [intelectual que não pertencia à nobreza na Rússia dos
séculos XVIII e XIX] e peregrino social, a participação biográfica
sumamente profunda e interna da multiplanaridade objetiva da vida e,
por último, o dom de ver o mundo em interação e coexistência foram
fatores que criaram o terreno no qual medrou o romance polifônico de
Dostoiévski
53
.
Um importante acontecimento que teria contribuído para o desmantelamento das
bases sociais e que, por sua vez, teria impulsionado o surgimento do romance polifônico
seria a intensificação das relações capitalistas. Bakhtin desenvolve tais argumentos a
partir das proposições elaboradas por Otto Kauss
54
. De acordo com os preceitos desse
último, os mundos e os planos sociais, culturais e ideológicos criados por Dostoiévski
continham, em princípio, significados auto-suficientes, organicamente fechados,
consolidados e interiormente conscientes no seu isolamento. Não havia uma superfície
plana material para um contato real e uma interpenetração entre eles. O capitalismo
destruiu o isolamento desses mundos, fez desmoronar o caráter fechado e a auto-
suficiência ideológica interna desses campos sociais, levando-os a uma colisão de
maneira a entrelaçá-los em sua unidade contraditória em formação. Como conseqüência
disso, o mútuo desconhecimento ideológico tranqüilo e seguro se extinguiu, revelando a
contradição e o nexo de reciprocidade entre eles
55
. Nesse sentido, complementa
Bakhtin:
52
Idem. p. 21.
53
Idem. p. 25.
54
Idem. p. 13.
55
Idem. p. 14.
37
[a]s contradições extremamente exacerbadas do jovem capitalismo
russo, o desdobramento de Dostoiévski enquanto indivíduo social e sua
incapacidade pessoal de adotar determinada solução ideológica,
tomados em si mesmos, são algo negativo e historicamente transitório
mas, não obstante, constituíram as condições ideais para a criação do
romance polifônico, “daquela inaudita liberdade de ‘vozes’ na polifonia
de Dostoiévski”
56
.
Nessa perspectiva, segundo o autor, o dialogismo – que garantiria a base para a
polifonia
57
– seria correlato à multiplicidade de vozes ideológicas, e a luta entre tais
vozes se constituiria no alicerce da forma artística das obras de Dostoiévski, ou seja, na
base de seu estilo, redundando, inclusive, em certa hibridez artística: “a peculiaridade
fundamental da poética de Dostoiévski reside na violação da unidade orgânica do
material, (...) na unificação dos elementos mais heterogêneos e mais incompatíveis da
unidade de construção do romance, na violação do tecido uno e integral da narrativa”
58
.
Portanto, “todas as ‘vozes’ que desempenham papel realmente essencial no romance
são ‘convicções’ ou ‘pontos de vista acerca do mundo’”
59
.
As proposições bakhtinianas acerca da teoria polifônica não se dirigem à
literatura de modo geral. Elas valem para os chamados gêneros do cômico-sério, cujas
produções, com raízes na tradição do folclore carnavalesco, encontram seu ponto de
partida no diálogo socrático (experimentação da verdade através do diálogo) e na sátira
menipéia (gênero cômico, livre para a invenção e a fantasia). Em oposição aos gêneros
sérios – a epopéia, a tragédia e a retórica clássica, por exemplo –, os gêneros do
cômico-sério são marcados pela alegre relativização da cosmovisão carnavalesca.
Conforme explica Bakhtin, o dialogismo polifônico adviria da representação e da
enunciação segundo as “leis”, ações e imagens próprias do ritual do carnaval, as quais,
de forma genérica, remeteriam à situação de vida às avessas, à eliminação da distância
entre os homens e à livre profanação
60
. Seja como for, o que Bakhtin intenta demonstrar
56
Idem. p. 29.
57
Segundo Bakhtin (1981b), “[o] romance polifônico é inteiramente dialógico. Há relações dialógicas entre
todos os elementos da estrutura romanesca, ou seja, eles estão contrapontisticamente em oposição. As
relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso
composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas
as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância” (p. 34).
58
Idem. p. 9.
59
Idem. p. 27.
60
Bakhtin aprofunda esse tópico no Capitulo 4. Idem. p. 87-155.
38
é que “[o] mais vital nesses romances é a aplicação da carnavalização à representação
da realidade atual e à vida atual”
61
.
As considerações precedentes pautadas nos pressupostos bakhtinianos
enfatizam que o romance consiste numa construção que se assenta, antes de mais
nada, na organização do discurso lingüístico. Tal organização, a rigor, encontra-se
intimamente vinculada à ideologia. Toda modificação dessa ideologia implica alterações
desse conjunto de signos que constituem o romance
62
.
Julia Kristeva também investe na idéia de que o discurso literário consiste no
cruzamento entre particularidades lingüísticas e instâncias ligadas ao real. Partindo da
premissa de que todo texto é formado por categorias gramaticais e leis semânticas, a
autora procura frisar a hipótese de que qualquer mudança aí presenciada manteria
correspondência com alterações visíveis na esfera social e histórica. Nesse sentido, o
texto estaria duplamente orientado: “para o sistema significante no qual se produz (a
língua e a linguagem de uma época e de uma sociedade precisa) e para o processo
social do qual participa enquanto discurso”
63
. Portanto, as transformações na esfera do
real histórico e social se fariam presentes, de um modo ou de outro, no âmbito textual.
Diferentemente da poesia, o romance seria o gênero mais sensível a tais
transformações. Segundo Kristeva, ele consiste num terreno onde atua, enquanto
prática e apresentação, o remanejamento epistemológico, social e político. Além disso,
atravessaria a face da ciência, da ideologia e da política como discurso e se ofereceria
para confrontá-los, desdobrá-los, refundi-los, tornando-se plural, plurilingüístico e, por
vezes, polifônico. Considerando as aludidas particularidades do romanesco, em especial
a sua capacidade de acompanhar o social e o histórico em andamento, a autora
averigua que o texto permite quebrar a mecânica conceitual que põe em foco uma
linearidade histórica para, assim, ler uma história estratificada, “de temporalidade
cortada, recursiva, dialética, irredutível a um único sentido, mas feita de tipos de práticas
significantes nas quais a série plural resta sem origem nem fim”
64
.
A partir dessa base, Kristeva, retomando conceitos formulados por Bakhtin, tais
como carnavalização, intertextualidade, dialogismo e polifonia, procura sistematizar
61
Idem. p. 137.
62
Estudos acerca das obras de Bakhtin encontram-se em BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e
construção de sentido. Campinas: Unicamp, 1997.
63
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 12.
64
Idem. p. 15.
39
elementos que distinguem a expressão romanesca. A autora entende que o discurso
carnavalesco quebra as leis da linguagem censurada pela gramática e pela semântica e,
por esse motivo, seria uma contestação do código lingüístico oficial. A noção de
intertextualidade é um outro fator constitutivo do romance, já que o sentido deste se
originaria de um cruzamento de superfícies textuais e se elaboraria em relação a uma
outra estrutura, conferindo ao texto um caráter dinâmico. O dialogismo seria o princípio
que torna possível considerar que, na linguagem, o sentido é sempre produto de muitas
vozes e autorias, e a polifonia seria o embate de diversas vozes no discurso, sem que
nenhuma predomine sobre as demais.
A proposta de Julia Kristeva busca frisar que tais conceitos não podem ser
entendidos como algo ingênuo ou ideologicamente inocente. Deve-se considerar o fato
de eles remeterem, explícita ou implicitamente, a uma cosmovisão, revestindo a palavra
com novas significações, algo que, aliás, desfavorece a predominância de uma verdade
absoluta. Como quer que seja, para a autora, o estatuto do texto é alcançado no
momento em que há um cruzamento entre leis internas, próprias da composição de
linguagem no relato, e modalidades externas, identificadas com o sentido da realidade,
supondo a vigência de códigos lógicos e ideológicos, respectivamente
65
.
Essa mesma preocupação pode ser constatada nas abordagens teóricas
desenvolvidas por Roland Barthes. Contrariamente à presunção estruturalista de
encaixar todas as fábulas do mundo dentro de uma estrutura única, o autor insiste em
que cada texto é diferente. A seu ver, cada escritura se refere a um grande depósito que
contém tudo o que havia sido produzido em épocas anteriores, ou seja, todos os textos
literários seriam tecidos a partir de outros textos literários, não no sentido convencional
de que trazem traços ou influências, mas no sentido mais radical de que cada palavra,
frase ou segmento é um trabalho feito sobre outros escritos que antecederam ou
cercaram a obra individual. O romance realista, o qual Barthes caracteriza como um
texto acabado, teria um significado limitado e único, o que desencorajaria o leitor a fazer
uma ligação entre o texto e o que havia sido escrito antes. O leitor, nesse caso, seria
apenas o consumidor de um significado fixo. Barthes chama esse tipo de texto de legível
(lisible)
66
.
65
Idem. p. 61-90.
66
BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970. p. 10.
40
Os romances modernos, diferentemente dos realistas, dão ao leitor o máximo de
liberdade para a produção de significados. Isso acontece porque colocam o leitor em
contato com uma pluralidade de outros textos. Esse segundo tipo de texto é classificado
por Barthes como escrevível ou redigível (scriptible)
67
, já que não tem significados fixos,
mas é plural e difuso, constituído por uma galáxia ou um emaranhado inexaurível de
significantes, uma trama inconsútil de códigos e fragmentos de códigos. Nesse caso, o
leitor assume um papel de escritor, já que se vê frente a uma pluralidade de
significantes (e não a uma estrutura de significados), sem que nenhum deles possa ser
considerado o principal ou possa predominar sobre outros. Como explica Barthes,
interpretar tal modalidade de texto não significa simplesmente atribuir-lhe um sentido,
por mais profundo que seja, mas poder perceber o quão rico ele é nas suas
possibilidades interpretativas. Os textos escrevíveis ou redigíveis, devido a essas
múltiplas possibilidades de leitura, seriam flexíveis, liberais e não autoritários.
Com base nesses preceitos, o autor atenta para o papel do leitor quando este se
dedica à leitura de obras escrevíveis. Segundo Barthes, tal leitor não pode ser um
sujeito inocente ou passivo. Essa exigência por um indivíduo ativo no processo de
leitura é importante a começar pelo fato de o próprio ledor constituir-se por uma
pluralidade de outros textos e códigos. Ler, complementa o crítico, não implica um
conjunto de gestos limitados, mas um trabalho de linguagem. Ler é descobrir
significados, e descobrir significados é nomear, e essa nomeação deve se dar em
direção a outros nomes e significações: “é uma nomeação em devir, uma aproximação
incansável, um trabalho metonímico”
68
, cujo intuito é não deixar escapar a pluralidade de
sistemas de significados que o texto apresenta.
A abordagem desenvolvida ao longo deste segmento permitiu verificar que a
literatura e a história se entrecruzam e determinam formas específicas de representação
artística. Tal representação, a rigor, assumiria uma dupla caracterização: ao mesmo
tempo em que ela é influenciada por instâncias sociais, ela própria sugeriria uma leitura
da história e da sociedade. Bakhtin, Kristeva e Barthes, particularmente, empenham-se
no estudo do signo e da linguagem. Para eles, essas duas instâncias, quando não
apresentam heterogeneidade nem contradições em sua essência, implicariam uma
única maneira de ver o mundo e, por isso mesmo, encerrariam uma visão autoritária e
ideológica do mundo.
67
Idem. p. 11.
68
Idem. p. 18-19.
41
Os princípios teóricos pautados em Lukács, Goldmann, Bakhtin, Kristeva e
Barthes, em certo sentido, se complementam e são úteis para o propósito da pesquisa
em curso. Os três últimos estão interessados principalmente na micro-estrutura, ou seja,
naquelas especificidades que determinam a natureza do signo e da linguagem, mas
nem por isso deixam de lado a sua implicação com o elemento social. Os dois primeiros
buscam avaliar o romanesco sem perder de vista sua relação com o dado sócio-
histórico. Com isso, o que se visa a demonstrar no presente trabalho é que tanto a
linguagem quanto a estrutura de uma obra formam um todo indivisível que enlaça as
condições de um período da história. Assim, num contexto violento e autoritário, a
desordem social estimularia a fragmentação a qual se transferiria para os escritos
literários com um intuito marcado.
1.3 O romance moderno e a forma da escrita como resistência
Vi crescer a terra e lutarem os homens, entre desajustes e
sofrimentos. (...) Há muita ingenuidade, também muita coragem, e os
problemas se multiplicaram com o crescimento desordenado.
(Brasileiro cem-milhões, Carlos Drummond de Andrade)
Os apontamentos precedentes demonstraram que inúmeros teóricos – quando na
elucidação de tópicos acerca do romanesco – pautam-se na relação que o gênero
mantém com a vida social. Em outros termos, o que esses críticos procuram determinar
é que a obra literária não se faz por ela só, mas que está, de diferentes formas, calcada
nas ocorrências que se registram na realidade factual. Isso significa que a expressão
artística é afeita a cumprir com acontecimentos que o plano histórico propõe-se a
desencadear.
A propósito, um estudo acerca do romance moderno que atende ao referido
vínculo que se processa entre arte e sociedade é desenvolvido por Anatol Rosenfeld. O
ponto básico que o autor intenta explorar radica em torno da questão da fragmentação
que a narrativa experimenta no século XX. O crítico, para lograr o seu intento, parte de
três hipóteses básicas. A primeira diz respeito à existência de um espírito unificador que
põe em contato, em cada fase histórica, todas as manifestações de cultura. Segundo os
42
seus argumentos, isso significa que, na cultura ocidental, a despeito de sua
complexidade, as várias esferas – tais como a ciência, a arte e a filosofia – manteriam
entre si uma relação de interdependência e de mútua influência
69
.
A segunda proposição tange ao fenômeno de desrealização que se observa na
pintura. De acordo com Rosenfeld, a desrealização se refere ao fato de que a pintura
deixou de ser mimética, recusando, com isso, a função de reproduzir ou copiar a
realidade empírica. Ainda segundo ele, tal fenômeno inclui correntes como o cubismo, o
expressionismo e o surrealismo, que abandonaram a reprodução mais ou menos fiel da
realidade sensível e fizeram com que fosse abolida a idéia de perspectiva
70
.
A terceira premissa deriva da interação da primeira com a segunda. Do ponto de
vista do ensaísta, as alterações verificadas na pintura resultam de uma fase histórica
que não é mais íntegra. Afora isso, aquela idéia de interdependência das diversas
esferas culturais fez com que o romance assumisse aqueles traços que caracterizavam
as demais artes. Com isso, conclui o pensador, o romance do século XX teria
experimentado modificações análogas às da pintura moderna, mudanças essas que
parecem essenciais à estrutura do modernismo. Dentre essas características, Rosenfeld
chama a atenção para as seguintes:
[à] eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder
no romance a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade
temporal foram abaladas, “os relógios foram destruídos”. O romance
moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Faulkner
69
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto / contexto. 3. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1976. p. 75-76.
70
Idem. p. 77. Nesse ponto, Rosenfeld explica que a perspectiva consistiria numa instância que criaria a
ilusão do espaço tridimensional, projetando o mundo a partir de uma consciência individual. O mundo seria
relativizado, visto em relação a essa consciência. No entanto, tal relatividade se revestiria da ilusão do
absoluto. Em outras palavras: um mundo relativo seria apresentado como se fosse absoluto. Seria, do seu
ponto de vista, uma visão antropocêntrica do mundo, referida à consciência humana que lhe impunha leis e
óptica subjetivas. Afora isso, o autor averigua que, na filosofia ocidental, essa constituição do mundo a
partir da consciência humana surgiria pela primeira vez com os sofistas. A visão perspectívica ressurgiria,
subseqüentemente, na filosofia pós-renascentista com Descartes que parte do cogito, supondo como única
certeza inabalável a do eu existente, encontrando sua expressão máxima em Kant que projeta o mundo
dos fenômenos, isto é, o mundo que aparece e a que se tem acesso. Tal visão, acrescenta o ensaísta,
seria impossível na idade média. Como a Terra era imóvel, fixa no centro do mundo, o homem teria uma
posição fixa no mundo e não uma posição em face dele, e, como decorrência disso, a ordem dependeria
da mente divina e não da humana. No entanto, no instante em que a Terra começou a se deslocar, essa
ordem foi posta em xeque. Agora, não seria mais o mundo que prescreveria as leis à consciência humana,
seria esta que prescreveria as leis do universo. A segunda hipótese descrita por Rosenfeld, a propósito,
resultaria na afirmação de que a pintura moderna seria expressão de um sentimento de vida ou de uma
atitude espiritual que renegaria ou, pelo menos, colocaria em dúvida a visão do mundo que se desenvolveu
a partir da renascença (p. 77-79).
43
começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente
e futuro
71
.
O autor explica que a dificuldade de os leitores se adaptarem a esse tipo de
romance decorre da circunstância de a arte moderna negar o compromisso com o
mundo empírico das aparências, isto é, com o mundo temporal e espacial posto como
real e absoluto pelo realismo tradicional e pelo senso comum. Partindo dessa base,
Rosenfeld averigua que – revelando espaço e tempo, e, com isso, o mundo empírico
dos sentidos, como relativos ou aparentes – a arte moderna nada fez senão reconhecer
o que é corriqueiro na ciência e na filosofia. “Duvidando da posição absoluta da
‘consciência central’, ela repete o que faz a sociologia do conhecimento, com sua
reflexão crítica sobre as posições ocupadas pelo sujeito cognoscente”
72
.
Segundo os preceitos do autor, o fundamentalmente novo é que a arte moderna
não reconhece tais mudanças e percepções apenas tematicamente, através de uma
alegoria pictórica ou pela afirmação teórica de um personagem de romance, “mas
através da assimilação desta relatividade à própria estrutura da obra-de-arte”
73
. A visão
de uma realidade mais profunda – e, por sua vez, mais real – do que a do senso comum
é incorporada à forma total da obra, tornando-a realmente válida em termos estéticos
74
.
Tendo em vista esses pressupostos, o autor explica que a vivência subjetiva do
tempo, ou seja, aquele tempo que se processa no fluxo psíquico dos indivíduos em
geral, não apresenta qualquer ligação com a cronologia linear fornecida pelos relógios.
Isso remete para a idéia de que, em cada instante, a consciência humana equivale a
uma totalidade que engloba, como atualidade presente, o passado e o futuro, como um
horizonte de possibilidades e de expectativas. A tentativa de se reproduzir esse fluxo de
consciência, com sua fusão dos níveis temporais, leva à radicalização extrema do
monólogo interior. Aí, desaparece ou se omite o narrador e, como decorrência disso, a
consciência do personagem deixa de ser mediada, passando a se manifestar em pleno
ato presente. Com isso, tem-se a omissão da ordem lógica da oração e a quebra da
estrutura que o narrador clássico imprimia à seqüência dos acontecimentos, fazendo,
inclusive, com que a base do enredo tradicional – a causalidade – se esgarçasse. Ainda
71
Idem. p. 80.
72
Idem. p. 81.
73
Idem. Ibidem.
74
Idem. Ibidem.
44
segundo o autor, tudo isso faz com que o personagem perca a sua integridade e os
seus contornos firmes e claros
75
:
[o]s indivíduos – quase totalmente desindividualizados – são lançados
no turbilhão de uma montagem caótica de monólogos interiores,
notícias de jornal, estatísticas, cartazes de propaganda, informações
políticas e meteorológicas, itinerários de bonde – montagem que
reproduz, à maneira de rapidíssimos cortes cinematográficos, o
redemoinho da vida metropolitana. O indivíduo dissolve-se na polifonia
de vastos afrescos que tendem a abandonar por inteiro a ilusão de
óptica da perspectiva, já em si destruída pela simultaneidade dos
acontecimentos, a qual substitui a cronologia
76
.
Rosenfeld propõe uma discussão que visa a justificar a maneira como o referido
desestruturamento teria se processado na narrativa. De acordo com seus
apontamentos, haveria razões sociais para tal: o mundo seria precário e caótico, em
rápida transformação, abalado por cataclismos guerreiros, dotado de imensos
movimentos coletivos e de espantosos progressos técnicos. Enfim, a realidade teria
deixado de ser um mundo explicado, o que exigiria dos artistas adaptações estéticas
capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da
obra. Com isso, conclui ele, a arte teria imitado a realidade e não o processo inverso ou
interdependente
77
.
Nesse ponto, o autor retoma a questão da perspectiva. Esta consistiria na
expressão de uma relação entre dois pólos: de um lado, o homem; do outro, o mundo
projetado. Segundo Rosenfeld, frente às aludidas circunstâncias do mundo moderno,
um dos pólos seria eliminado e, como resultado disso, desapareceria a perspectiva.
Assim, em um dos casos, restaria somente o fluxo da vida psíquica que teria absorvido
totalmente o mundo; em outro, permaneceria o mundo reduzido a estruturas
geométricas em equilíbrio que, com efeito, absorveriam o homem. O abandono da
perspectiva, ou seja, a supressão da distância entre o homem e o mundo, mostra ser
expressão do anseio de superar a distância entre o indivíduo e esse mundo
78
.
75
Idem. p. 82-85.
76
Idem. p. 95-96.
77
Idem. p. 86.
78
Idem. p. 87-88.
45
Esses seriam dados suficientes para Rosenfeld traçar um paralelo entre o
romance do século XIX e o romance do século XX. No primeiro caso, têm-se a
plasticidade dos personagens e a ilusão da realidade. O romancista, onisciente, adotaria
uma visão tridimensional que garantiria um saber total dos personagens, conhecendo-
lhes o futuro e o passado empíricos e biográficos, situando-os num ambiente de cujo
pano de fundo se destacaria com nitidez, realçando a verossimilhança e conduzindo-os
ao longo de um enredo cronológico de encadeamento causal. Rosenfeld salienta que o
primeiro grande romancista que rompeu com a tradição do século XIX, embora
moderadamente, foi Marcel Proust. Segundo o ensaísta, a sua obra teria introduzido os
traços que, subseqüentemente, definiriam o romance do século XX. Conforme o crítico,
para o narrador do seu grande romance o mundo já não é um dado
objetivo e sim vivência subjetiva; o romance se passa no íntimo do
narrador, as perspectivas se borram, as pessoas se fragmentam, visto
que a cronologia se confunde no tempo vivido; a reminiscência
transforma o passado em atualidade. Como o narrador já não se
encontra fora da situação narrada e sim profundamente envolvido nela
não há a distância que produz a visão perspectívica
79
.
As reflexões empreendidas por Rosenfeld assentam-se na idéia de que a arte
moderna exprime uma nova visão do homem e da realidade. Essa tentativa de redefinir
a situação do indivíduo se revelaria no esforço de assimilar – na estrutura da obra de
arte e não apenas na temática – a precariedade da posição desse indivíduo no mundo
moderno
80
. Aliás, Erich Auerbach é outro autor que dedica especial atenção a essa
questão
81
.
O estudioso, através da análise de um fragmento do romance de Virgínia Woolf
82
,
avalia o fenômeno da ficção moderna que se estrutura desestruturando-se
aparentemente, pela tentativa de expressar o processo mutável e contraditório do
psiquismo humano. A partir de tal estudo, Auerbach chama a atenção para inúmeros
79
Idem. p. 92.
80
Essa mesma consciência de que o romance teria assumido diferentes particularidades estilísticas ao
longo dos tempos é apresentado em KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. rev.
Paulo Quintela. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976. Na parte referente aos aspectos técnicos da
narrativa (p. 211-233), o autor fornece uma visão do problema ligado à evolução do romance. Nesse
particular, ele se detém, dentre outros aspectos, na narrativa em primeira e em terceira pessoas, centra-se
no problema da perspectiva e apresenta um comentário a respeito da configuração do diálogo na narrativa.
81
AUERBACH, Erich. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literatura
ocidental. 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1994.
82
O trecho analisado por Auerbach foi extraído da obra To the Lighthouse, de Virgínia Woolf.
46
aspectos que definem o romance da mencionada escritora. Dentre essas
características, ele destaca a existência de movimentos que se realizam na consciência
dos personagens; a introdução de acontecimentos secundários, exteriores, de lugares e
tempos totalmente diferentes; a presença de orações que são interrompidas por frases
intercaladas bem como a multiplicidade de elementos desencontrados que contribuem
para a descrição das cenas
83
.
A partir dessa base, resultam algumas marcas estilísticas que são comentadas
pelo pensador e que lhe servem para uma avaliação do romance moderno. Nesse caso,
de acordo com Auerbach, o escritor, como narrador de feitos objetivos, desaparece
quase que completamente, e praticamente tudo o que é dito surge como reflexo na
consciência dos personagens do romance. O autor explica que, para reproduzir o
conteúdo da consciência desses indivíduos que povoam a narrativa, empregam-se
meios que passaram a ser conhecidos como fluxo de consciência ou monólogo interior.
Tais recursos fazem com que desapareça a impressão de uma realidade objetiva de
modo que a posição do escritor não consista em interpretar as ações, as situações e os
caracteres dos seus personagens com segurança objetiva
84
.
O interesse do autor também se volta para traços que particularizam o romance
do século XIX em contraposição ao romance que surge no século XX. Segundo
Auerbach, no primeiro caso, as narrativas buscavam transmitir, em seu conjunto, uma
impressão individualista, subjetiva, amiúde excentricamente marginal da realidade, sem
averiguar algo de universalmente válido ou objetivo acerca dessa realidade. No caso do
romance produzido no século XX, não se trata apenas de um único sujeito, cujas
impressões conscientes são reproduzidas, mas de muitos sujeitos, freqüentemente
cambiantes. Além disso, nesse particular, a intenção de aproximação da realidade
autêntica e objetiva mediante impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas,
manteria uma ligação com o tratamento do tempo, o que contribuiria para que a
narrativa adquirisse digressões, ou seja, desvios do assunto principal
85
:
[m]uitos personagens, ou muitos fragmentos de acontecimentos são
articulados por vezes frouxamente de tal forma que o leitor não
consegue segurar constantemente qualquer fio condutor determinado.
Há romances que procuram reconstruir um meio a partir de uma série
83
Idem. p. 476-481.
84
Idem. p. 482.
85
Idem. p. 483-484.
47
de farrapos de acontecimentos, com personagens constantemente
mutantes, por vezes reaparecidas
86
.
Tudo isso resulta do fato de os escritores modernos terem consciência de que a
vida não pode ser ordenada. Auerbach explica que a Primeira Guerra Mundial teria
contribuído para a intensificação do desmantelamento da realidade. Ele expõe ainda
que o alargamento do horizonte do ser humano e o seu enriquecimento em
experiências, conhecimentos e possibilidades de vida teriam começado no século XVI,
avançado no decurso do século XIX em ritmo crescente, e, desde os princípios do
século XX, os haveria feito com uma aceleração violenta. Não só isso: em várias partes
do mundo, surgiram crises de adaptação que se aglutinaram perturbando as formas de
vida. É durante e após a Primeira Guerra, num ambiente de vida descompassado,
inseguro e repleto de desastres que “escritores distinguidos pelo instinto e pela
inteligência encontram um processo mediante o qual a realidade é dissolvida em
múltiplos e multívocos reflexos da consciência”
87
.
As precedentes considerações demonstram, portanto, que, no século XX,
diferentemente do que se observara na centúria anterior, a narrativa se fragmenta em
múltiplos centros. Tanto Rosenfeld quanto Auerbach concordam com o fato de a
desintegração da figura humana e a de seus referenciais espaço-temporais, no
romance, estarem ligadas àquelas particularidades que definem o mundo social. A visão
totalizadora e explicativa do universo deixaria de se sustentar, viabilizando, assim, a
entrada de um todo contraditório, fragmentado, dividido e caótico. Tudo isso, na visão
dos autores, retornaria ao romance, implicando alterações em sua estrutura e em suas
categorias narrativas.
A obra de Julio Cortázar – só para apresentar mais um exemplo – enquadra-se
nos mesmos perfis que caracterizam o romance de Virgínia Woolf. Um estudo sobre a
produção do escritor argentino foi articulado por Davi Arrigucci Jr. Este observa que os
escritos cortazarianos pautam-se numa incessante busca de novas formas de
expressão, novos códigos e mensagens, fazendo surgir o fragmentário e o caótico, o
que desafiaria a interpretação do leitor. Ainda segundo ele, o autor – sendo “um
86
Idem. p. 491.
87
Idem. p. 496.
48
construtor hábil e caviloso, extremamente lúcido e lúdico com relação à própria obra”
88
destrói códigos desgastados da tradição literária hispano-americana, “fundando um
universo de ficção poroso e aberto a novas expansões, ao mesmo tempo que uno e
coeso internamente”
89
.
Arrigucci Jr. não fica apenas nesses traços. Do seu ponto de vista, a poética
cortazariana é avessa aos moldes tradicionais pelas seguintes razões: ela se constitui a
partir de uma sintaxe revolucionária; a palavra seria fragmentada, vindo a se transformar
em neologismo; e, dentre outros aspectos, conteria uma variedade de textos anexada à
obra (desde recorte de jornal até trechos de livros científicos), formando um
caleidoscópio que, graças à montagem, projetaria um enorme halo significativo. Enfim,
ter-se-ia uma narrativa problemática que, além de apresentar uma dificuldade de
elaboração lingüística, exigiria do leitor “uma leitura-montagem dos segmentos
justapostos, que ele deve conciliar dentro do leque ambíguo das múltiplas possibilidades
combinatórias”
90
.
Essas considerações levam à premissa de que a produção cortazariana não é
uma narrativa apenas de herói problemático, mas uma narrativa problemática. Conforme
explica o crítico, não é somente o herói que não consegue alcançar valores autênticos
ao fim de uma busca que ele empreende; ela própria, enquanto linguagem da busca,
hesita quanto ao modo de indagar tais valores adequadamente, ou, pelo menos,
apresenta como crítica essa investigação. Por isso mesmo, ela incorporaria essa
vacilação à sua técnica de construção: “defrontando-se consigo mesma, encaracola-se,
volta-se contra si própria”
91
. Em outros termos, o projeto de construção transforma-se,
paradoxalmente, num projeto de destruição. Segundo Arrigucci Jr., essa desintegração
que a obra experimenta minaria toda a arte moderna
92
.
De qualquer modo, o contexto histórico em que uma obra surge é determinante
na definição de formas específicas de apresentação. O conteúdo de um texto não se
constitui somente a partir do tema que ele se propõe a desvendar. A forma como o
relato se estrutura consiste num elemento a mais que possibilita uma complementação
do significado que se extrai do assunto desenvolvido. Esta, portanto, constitui-se numa
88
ARRIGUCCI JR., Davi. Tema e voltas. In: ____. O escorpião encalacrado: a poética da destruição em
Julio Cortázar. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.16.
89
Idem. p. 17.
90
Idem. p. 22-23.
91
Idem. p. 22.
92
Idem. p. 25.
49
perspectiva marxista de análise literária. Em suas notas sobre a crítica dialética
marxista, Fredric Jameson atenta para a relação que se estabelece entre o conteúdo de
um produto cultural e a sua forma de expressão. Do seu ponto de vista, “o conteúdo
procura sua expressão adequada na forma”
93
, de modo que as realizações formais,
assim como os defeitos formais, são tomados como os signos de certa configuração
social e histórica
94
. Nesse sentido, muitas obras produzidas em contextos autoritários
dessacralizam certas ideologias inclusive pela estrutura que apresentam.
No Brasil, a produção artística foi influenciada pelos regimes autoritários. Tanto o
Estado Novo (1937-1945) quanto a Ditadura Militar (1964-1985) tiveram papéis
decisivos na definição de novas formas de apresentação estética. Nancy Baden explica
que a produção literária brasileira, até meados do século XX, esteve calcada no modelo
europeu. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi um acontecimento que reuniu esforços
em prol da ruptura com tal modelo, de modo que a produção nacional dialogasse com
suas próprias condições sócio-históricas. Com isso, salienta ela, o modernismo elegeu
novas formas de expressão artística: os escritores inovaram a linguagem, abandonaram
aqueles conceitos restritos de gênero e revisaram noções de tempo, espaço e foco
narrativo
95
.
Afora isso, Baden enfatiza que, nos referidos períodos oficialmente descritos
como autoritários, a censura em curso cooptava aquelas informações consideradas
subversivas ao sistema. Como decorrência disso, os escritores, para externarem pontos
de vista críticos em relação à realidade social do país, fizeram uso de diferentes
técnicas literárias. Dentre tais técnicas, a ensaísta cita o monólogo interior, o fluxo de
consciência, a sátira e, ainda, referências às situações passadas como estratégia para
referendar as situações presentes
96
. De qualquer maneira, a produção artística sofre ou
é modificada como resultado da luta pela liberdade de expressão, ou seja, tanto
temática quanto formalmente, ela concorre para elucidar uma crítica social.
A análise e a interpretação de um texto literário nem sempre cumprem com tal
exigência, ou seja, a de procurar o seu significado naquelas instâncias situadas fora do
objeto artístico propriamente dito. Antonio Candido observa, a propósito, que diferentes
93
JAMESON, Fredric. Towards Dialectical Criticism. In: ____. Marxism and Form. New Jersey, Princeton:
Princeton University Press, 1971. p. 328.
94
Idem. p. 331.
95
BADEN, Nancy. We Were Born Censored: the Dubious Legacy. In: ____. The Muffled Cries: the Writer
and Literature in Authoritarian Brazil, 1964-1985. Lanham: University Press of America, 1999. p. 4.
96
Idem. p. 8.
50
épocas primam por distintas abordagens. Segundo o crítico, num determinado
momento, “procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de
ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que, este aspecto constituía o que ela
tinha de essencial”
97
; depois, afirma ele, chegou-se à posição oposta: a matéria de uma
obra é secundária, “a sua importância deriva das operações formais postas em jogo,
conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer
condicionamentos, sobretudo social”
98
.
Candido entende que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas. Do seu ponto de vista, o processo interpretativo deve levar em conta
tanto os fatores externos quanto os internos. Nesse sentido, o autor chama a atenção
para o fato de que “o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da
estrutura, tornando-se, portanto, interno
99
. Assim, segundo os seus preceitos, seria a
própria estrutura do texto literário – incluindo-se, aí, a disposição de seus elementos – o
que, também, importaria para a execução de uma análise sociológica
100
.
Com isso, o referido autor busca frisar a sua acepção salientando que
determinadas leituras e certas conclusões que se podem extrair de um texto literário não
se fazem unicamente a partir da matéria que ele fornece. O conteúdo não é somente
afirmado abstratamente pelo artista, nem mesmo ilustrado com exemplos que se
respaldam em algum ambiente, costume, traço grupal ou idéia, mas sugerido na própria
composição do todo e das partes de um texto. Nesse particular, Candido explica que, na
realização de uma análise nesses moldes, leva-se em consideração o elemento social,
não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a
expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como
enquadramento que permite situá-lo historicamente; mas “como fator da própria
construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo”
101
. Nesse caso,
acrescenta o pensador,
97
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A.
Queiroz, 2000. p. 4.
98
Idem. Ibidem.
99
Idem. Ibidem.
100
Nesse ponto, Candido (Ibidem) esclarece que o tratamento externo dos fatores externos pode ser
legítimo quando se tratar de sociologia da literatura, pois essa não propõe a questão do valor da obra, e
pode interessar-se por tudo que é condicionamento. O autor explica que a sociologia da literatura é “uma
disciplina de cunho científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela crítica”.
101
Idem. p. 7.
51
[s]aímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história
sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética
que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá,
ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e
a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento
social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao
lado dos psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Nesse nível de
análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões
pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento
orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo
102
.
Essa mesma ordem de idéias é formulada por Alfredo Bosi. As considerações
desenvolvidas por ele, no entanto, são mais específicas daquelas ilustradas por Antonio
Candido. Bosi se detém na análise de obras produzidas em contextos históricos
autoritários e faz um comentário cujo intuito radica em torno da necessidade de, no
processo interpretativo, se ter em conta tanto aquelas particularidades temáticas quanto
estilísticas que um texto comporta. O que Alfredo Bosi objetiva demonstrar é que
aqueles livros que contestam um sistema autoritário o fazem não somente através do
conteúdo que expressam, mas inclusive pela estrutura que apresentam
103
.
O elemento central que suscita tal discussão pauta-se na idéia de resistência que
inúmeras obras, quando submetidas às referidas condições de produção e recepção,
buscam exprimir. O crítico averigua que o vocábulo resistência e suas aproximações
com os termos cultura, arte e narrativa foram pensados e formulados no período que
corre, aproximadamente, entre 1930 e 1950, quando inúmeros intelectuais se engajaram
no combate ao fascismo, ao nazismo e às suas formas aparentadas: o franquismo e o
salazarismo. Ao longo desses anos, alega o autor, firmou-se uma frente de caráter
libertador que, em luta de guerrilhas e emboscadas, disputava as áreas invadidas. Essa
união de forças populares e de intelectuais progressistas perdurou na memória dos
narradores do imediato pós-guerra e produziu o cerne da chamada literatura de
resistência
104
.
Bosi ressalta que o leitor politizado do pós-guerra, ao tomar contato com essas
obras, supôs que a natureza do fenômeno literário houvesse mudado radicalmente e
que, a partir da luta contra os regimes autoritários e belicistas, a escrita passara a ter a
102
Idem. Ibidem.
103
BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: ____. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002. p. 118-135.
104
Idem. p. 125.
52
mesma substância cognitiva e ética da linguagem de comunicação da qual se fazia uso
cotidianamente. Com isso, explica o autor, observa-se uma relação contra aquela escrita
acadêmica – própria de tradições clássicas, românticas, simbolistas – de forma que a
resistência ético-política traduzir-se-ia em uma resistência no plano das opções
narrativas e estilísticas
105
.
As observações tecidas por Bosi demonstram a existência de uma relação entre
narrativa e resistência no interior de uma esfera de significados datada, ou seja,
historicamente enraizada, no caso, dentro de uma cultura de resistência política. Ele
discute, além disso, que as opções de cada escritor, por diferenciadas que fossem, se
destacavam todas de um mesmo fundo axiológico, que se poderia qualificar de
“mentalidade antiburguesa gerada dialeticamente como um não lançado à ideologia
dominante”
106
.
O que se procurou demonstrar ao longo deste último segmento é que a arte
moderna – em particular no que tange às especificidades estilísticas da narrativa
produzida no século XX – se diferencia dos modelos poéticos anteriormente existentes.
Segundo os apontamentos dos autores atrás elucidados, tal mudança é decorrente das
condições históricas que o referido século experimentou. Com isso, ficção e história se
cruzam de maneira que essa última se faz transparecer inclusive na própria estrutura do
texto literário. Assim, aquelas obras esteticamente fragmentadas produzidas em
contextos autoritários buscam sugerir “uma tensão interna que as faz resistentes,
enquanto escrita, e não só, ou não principalmente, enquanto tema”
107
.
105
Idem. p. 126-127.
106
Idem. p. 129.
107
Idem. Ibidem.
53
2 PRINCÍPIOS E FUNÇÕES DA FRAGMENTAÇÃO: O OLHAR
FRANKFURTIANO
Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a
narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o
meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam
e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorrem
e caem...
(Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis)
2.1 A desordem social no Brasil pós-64
Tiros, chanfalhos, gases venenosos, patas de cavalo. A multidão
torna-se consciente, no atropelo e no sangue.
(Parque industrial, Patrícia Galvão)
A discussão acerca do processo de estruturação da sociedade brasileira nos
anos compreendidos entre 1964 e 1985 afigura-se a partir de uma noção de caos e de
desarranjo social experimentada pelo país. Tal idéia de desordem aloja-se em torno de
fatos históricos que se articularam e que, por sua vez, projetaram a imagem de uma
nação com características bastante particulares. Dentre esses traços, o principal talvez
seja a influência que o regime autoritário exerceu na constituição dos rumos do Brasil
naquele período. Não obstante a aludida marcação temporal, tal desarmonia não é algo
que se restringe àquela época, mas resultante de acontecimentos antecedentes e
propulsor de novas formas de organização social.
54
Na esteira de questões dessa amplitude, optou-se por utilizar o vocábulo
autoritarismo quando na referência a esse momento histórico, por se tratar de um
conceito mais flexível. Partindo da idéia de totalitarismo enquanto representação do uno,
da opinião única e do pensamento único, acredita-se que, por ser demasiadamente
fechado, tal conceito deixaria à margem elementos como a resistência e as diversas
facções presentes no Exército e na sociedade daquela época. A análise da conjuntura
pós-64, nessa linha de reflexão, desvela especificidades – tais como a padronização e a
uniformização do pensar – que permitem equipará-la a um projeto totalitário. No entanto,
a construção do conceito a ser adotado na pesquisa em curso originou-se de uma
reflexão teórica e de um material empírico que exigisse que o termo fosse
suficientemente maleável, capaz de atingir as particularidades existentes.
De qualquer modo, o Brasil mergulhou, em 1964, num compacto processo
ditatorial subseqüentemente a uma guindada de inspirações democráticas. Entretanto,
na primeira metade do século XX, o país já vivenciava uma experiência limite associada
à implantação do Estado Novo (1937-1945), durante o Governo Getúlio Vargas. Não
obstante a coexistência de traços comuns entre o aludido momento e o período militar,
pode-se dizer que esse último ultrapassou aquele no quesito violência.
Durante a vigência do Estado Novo, assistiu-se às mais diferentes pressões
impostas pelo poder. O governo introjetou-se nos rumos do país num clima de
autoritarismo com o fito de diluir qualquer obstáculo de caráter antagônico a seus
interesses. Assim, a brutalidade cometida pela classe dirigente gravitava em torno das
contestações armadas por meio de torturas, execuções e perseguições variadas; perda
dos direitos políticos entre professores, prefeitos e governadores; e, dentre outros, a
montagem do aparelho repressivo. O controle de informações, a rigor, conferia ao
Estado Novo uma postura antiliberal. O rádio, a imprensa, as obras literárias, o cinema e
o teatro passaram a sofrer fortes censuras
108
. No entendimento de Azevedo Amaral, a
única entidade livre, nesse caso, era o Estado. Ele acrescenta que o indivíduo possuía,
como na democracia-liberal, uma esfera de liberdade, mas delimitada pela ação
igualmente livre dos outros cidadãos
109
.
108
Maiores informações encontram-se desenvolvidas em SCHWARTZMAN, Simon (Org.). Estado Novo,
um auto-retrato. Brasília, CPDOC/FGV: UnB, 1983. GOULART, Silvana. O DIP e o DEIP de São Paulo:
censura e auto-censura. In: ____. Sob a verdade oficial: ideologia e censura no Estado Novo. Minas
Gerais: Marco Zero, 1990.
109
AMARAL, Azevedo. A Nação e o Estado. In: ____. O Estado autoritário e a realidade nacional.
Brasília: UnB, 1981. p. 150.
55
Passadas cerca de duas décadas, o Brasil novamente vivenciaria experiência
similar. Com a ditadura de 1964, os militares passaram a controlar a vida política
brasileira logo nos primeiros dias de abril do referido ano. Teoricamente, isto se fez
necessário para que os principais objetivos econômicos dos governos que se seguiram
a 1964 – nesse caso, o Governo Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-
1969), Médici (1969-1974), Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985) – fossem
concretizados. Em outros termos, para que houvesse o desenvolvimento do país, o
controle da inflação, a redução das diferenças econômicas regionais e, dentre outros, a
atração de capitais estrangeiros, era preciso que os militares investissem na viabilização
de projetos de construção da autonomia econômica no contexto capitalista internacional.
Para tanto, conforme explicita Daniel Aarão Reis, era indispensável um Estado
fortalecido e intervencionista, com um planejamento relativamente centralizado
110
.
Com isso, portanto, o projeto que os militares tinham em mente não poderia se
sustentar caso não tivessem poderes excepcionais em mãos. Eles apelaram para a
legitimidade revolucionária e se atribuíram tais poderes mediante Atos Institucionais
(AIs). Segundo Osvaldo Coggiola, os dispositivos autoritários que passaram a reger a
vida política do Brasil foram sistematizados no Ato Institucional número 1, de 9 de abril
de 1964. Com ele, foram instituídas, dentre outras determinações, eleição indireta para
presidente, autorização do Executivo para cassar mandatos e suspender direitos
políticos além da suspensão das garantias constitucionais
111
. Outros dispositivos foram
criados, sendo um dos mais importantes o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, durante o
Governo Costa e Silva. Através do referido AI, o presidente da República tinha
autorização para decretar o recesso do Congresso, Assembléias Legislativas e Câmaras
Municipais; intervir nos Estados, municípios e territórios; cassar mandatos e extinguir
direitos políticos; decretar estado de sítio e confisco de bens.
Gilberto Velho observa, a propósito, que a diferença significativa constatada entre
os acontecimentos verificados nos primeiros anos da Ditadura Militar em relação aos
fatos ocorridos na vigência do Estado Novo estava assentada no teor de violência das
perseguições. Estas, entre 1968 e 1972, de acordo com seus argumentos, tinham
subjacentes princípios políticos e ideológicos específicos e eram executadas sem
nenhuma margem de tolerância. Embora as principais vítimas ainda fossem a massa
110
REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
p. 13.
111
COGGIOLA, Osvaldo. Governos militares na América Latina. São Paulo: Contexto, 2001. p. 16.
56
trabalhadora e o campesinato, com a implantação dos AIs, mesmos os filhos da elite,
membros do Congresso Nacional e oficiais superiores eram visados. No Estado Novo,
havia restrições em termos de prisões de oficiais; durante o regime militar, em
contrapartida, a repressão se voltava inclusive para os filhos daqueles militares mais
graduados
112
.
Tendo em vista esse abuso de poder advindo, direta ou indiretamente, das
autoridades, a sociedade não aceitou passivamente os regimes instaurados a partir de
1964. Amplos setores da população – políticos, trabalhadores, estudantes, artistas,
organizações civis – se opuseram à Ditadura Militar e lutaram contra a repressão e pelo
processo democrático, principalmente a partir de 1968. No entanto, conforme sublinha
José Antonio Segatto,
[e]m quase todas as tentativas de organização, mobilização,
reivindicações, contestação da ordem, por parte das classes
dominadas, o Estado agiu prontamente para impedir, seja pela
repressão pura e simples seja por outras formas, como a manipulação
e a cooptação ou ainda por meio da criação de instrumentos jurídico-
políticos de controle e exclusão
113
.
Em praticamente vinte anos de regime militar, aproximadamente uma centena de
diferentes modos de tortura – mediante agressões físicas, pressão psicológica e
utilização dos mais variados instrumentos – foi aplicada em pessoas suspeitas de
atividades políticas subversivas. A tortura não procurava apenas produzir no corpo da
vítima uma dor que a fizesse entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o
discurso que, ao favorecer o desempenho do sistema repressivo, significasse sua
sentença condenatória – ela visava a imprimir às pessoas a destruição moral pela
ruptura dos limites emocionais. Com isso, esses indivíduos ficavam marcados por
seqüelas físicas e psicológicas, e perdiam, muitas vezes, por determinado tempo, os
sentidos e as noções espaciais e temporais
114
.
O regime autoritário instaurado em 1964 – embora contasse com um alto grau de
violência, em especial entre 1968 e 1974 – sofreu, novamente, tentativas de
112
VELHO, Gilberto. Autoritarismo e violência no Brasil contemporâneo. In: SCHWARTZ, Jorge;
SOSNOWSKI, Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 36-37.
113
SEGATTO, José Antonio. Cidadania de ficção. In: ____; BALDAN, Ude (Orgs.). Sociedade e literatura
no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999. p. 202.
114
Cf. ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: nunca mais. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
57
esfacelamento no início dos anos 80 por parte da sociedade civil que almejava por uma
proposta de democratização política. Em seu governo, o General Ernesto Geisel investiu
no gradativo desaparecimento da censura e na revogação dos Atos Institucionais. No
entanto, suas medidas – que, aparentemente, iam ao encontro do interesse da
coletividade – significaram, em verdade, o desdobramento de velhas práticas. No
exercício de sua função, Geisel – preocupado em não deixar seu sucessor sem
mecanismos de defesa do Estado – instituiu as salvaguardas constitucionais como
forma de substituição dos referidos AIs. Essas medidas, além de limitarem certos
direitos, permitiam à polícia invadir residências e efetuar prisões mesmo destituída de
ordem judicial. Por esses motivos, as reformas políticas propostas por Geisel foram alvo
de manifestações de desagrado por parte da opinião pública.
O término do período do seu mandato, em 1979, foi sucedido pelo Governo do
General João Batista Figueiredo, que presidiu até 1985. No que tange ao seu plano
político, o então presidente deu continuidade ao projeto de abertura anteriormente
iniciado por Geisel. O mencionado projeto teve como fatos marcantes o surgimento de
greves em 1979 e, dentre outros, eleições diretas para escolha de governadores,
prefeitos, deputados, senadores e vereadores. No entanto, observaram-se algumas
restrições impostas pelo poder cujo intuito incidia na adoção de estratégias que
visassem à dificultação da vitória da oposição, não obstante seu posterior fracasso.
Nesse sentido, os analfabetos não tinham direito ao voto, o eleitor tinha de votar em
candidatos do mesmo partido para todos os cargos e, em contrapartida, ao candidato
não era permitido o pronunciamento de suas metas pelos meios de comunicação de
massa.
Nos últimos meses de 1983, intensificou-se a campanha pelas eleições diretas
para presidente e vice-presidente. A campanha Diretas-já chegou ao auge em 1984
quando se organizaram vários comícios e manifestações em todo o país. Do ponto de
vista dos detentores do poder, a campanha consistia num elemento perturbador da
ordem já que ia de encontro aos seus interesses. Em outros termos, a classe dirigente
queria continuar usufruindo os privilégios conquistados com a ditadura latino-americana
mais prolongada do período. Por essa razão, não foram raros os usos de diferentes
meios para a contestação do movimento. Finda a votação, a emenda das Diretas-já não
foi concretizada, apesar da grande aceitação popular.
58
A conjuntura ditatorial brasileira revela seu caráter paradoxal que atesta sua
inconsistência e irracionalidade. Por um lado, os objetivos dos governos militares
estavam pautados na segurança e no desenvolvimento; por outro, assistiu-se às
contestações dessas metas em virtude do desigual desenvolvimento que beneficiou a
poucos. As conseqüências das desigualdades ficaram mais visíveis nas grandes
cidades, assoladas pela violência. Ao lado de majestosos edifícios-sedes de
multinacionais, bairros opulentos e protegidos por seguranças particulares, percebia-se
o aumento do número de favelas e de marginalizados.
Os estudos realizados nesse sentido chamam a atenção para o fato de os
regimes expressos por uma ditadura se armarem, via de regra, por uma polícia violenta
e por uma legislação que dê suporte à repressão. O regime instaurado em 1964 é,
nesse aspecto, consideravelmente exemplar. Assinalada pela tortura, pela
arbitrariedade policial e, sobretudo, pela edição dos AIs, que ampliaram os poderes do
presidente em detrimento dos direitos civis, a Ditadura Militar conseguiu montar um
aparato repressivo sofisticado. Ainda nesse caso, conforme argumentos desenvolvidos
por Creuza Berg, o regime suscitou algo mais forte que a repressão concreta: ele
expressou a repressão sutil que deu sustentação à sua ideologia. Nesse particular, a
autora alega que a consciência da importância do controle ideológico gera a
necessidade da fiscalização de dois instrumentos eficazes: a propaganda e a
censura
115
.
Esses dois últimos elementos eram utilizados pela ditadura para construir uma
imagem positiva do Brasil. Não só isso: a censura, ajustada ao papel exercido pela
propaganda, agia no sentido de mobilizar os indivíduos em torno dos objetivos do
regime, transformando-os em metas que acenavam com a unanimidade. Ainda segundo
os preceitos de Creuza Berg, a farsa que as máquinas ditatoriais construíam, por
intermédio da propaganda, de uma sociedade ideal, trazia como conseqüência “a
necessidade de criação de uma censura capaz de detectar e eliminar tudo o que
[pudesse] abalar a imagem cuidadosamente engendrada para a legitimação do
poder”
116
. Portanto, a censura e a propaganda eram dispositivos de manipulação
ideológica que se arquitetavam em uma estrutura mais ampla composta pela força e
pelo interesse da sociedade armada e dos setores dominantes da sociedade civil.
115
BERG, Creuza. Mecanismos da violência: expressões artísticas e censura no regime militar (1964-
1984). São Paulo: EDUFSCar, 2002. p. 14.
116
Idem. p. 60.
59
A formulação desses pressupostos é importante porquanto a Ditadura Militar
significou a expressão da violência e da ampliação das diferenças sociais. Os militares –
que, desde jovens, eram educados dentro de rígida disciplina, hierarquia e sentimento
de obediência – eram orientados a não admitir confusões sociais ou contestações.
Assim, diante da necessidade de se firmar uma direção sólida corporificada pelo Estado,
o discurso caminhava no sentido de inculcar na sociedade valores como a disciplina, a
aceitação do comando, a obediência às normas do bem público, a observância da
hierarquia. Quando a sociedade reagia na contramão de tais propostas, diferentes
formas de agressão física e psicológica eram aplicadas a ela. A violência, então, se
fazia necessária para calar as críticas ao regime, assegurando a manutenção da ordem
política e social estabelecida, justamente para não dessacralizar a visão ideal da
realidade do país e do caráter nacional. Nesse sentido, conforme Creuza Berg, a
censura e a propaganda eram mecanismos estratégicos para a articulação de certa
imagem da nação:
[o] discurso, os cartazes, as festas e toda uma alegoria enaltecendo as
maravilhas do regime, combinados com o mais absoluto silêncio acerca
das misérias que este carrega, vem compor um quadro que se
apresenta às massas carregado de funções simbólicas que vão ao
encontro de seus mais contidos anseios e aspirações
117
.
Ainda nesse período, o Brasil convive com o desenvolvimento do parque
industrial, o qual é acompanhado pelo incentivo aos investimentos externos e por um
febril crescimento urbano. Durante tal processo, o edifício da sociedade se expande e se
desloca, com o aumento do desequilíbrio político e da disparidade econômica. Maria da
Conceição Tavares, tratando acerca do perfil da política econômica do autoritarismo,
confere principal destaque a essa questão. A autora observa que, na década de 1970, o
Brasil avançou em matéria produtiva e em matéria de desenvolvimento industrial.
Entretanto, em virtude do endividamento externo e da crise financeira nos quais estava
mergulhado, o país não absorveu todas as parcelas populacionais no aludido projeto de
modernização. Segundo ela, os anseios modernizantes de um Estado autoritário e
conservador não conduziram o país à autonomia tecnológica nem mesmo à
117
BERG, Creuza. Mecanismos da violência: expressões artísticas e censura no regime militar (1964-
1984). São Paulo: EDUFSCar, 2002. p. 52.
60
incorporação da camada menos favorecida
118
. Com isso, portanto, as grandes cidades
resultaram do acelerado processo de industrialização que, assinalando o ingresso na
modernidade, não fez senão acentuar a clivagem dos abismos sociais e políticos.
Tais circunstâncias, que se moldam a partir da mescla firmada entre o avanço
tecnológico e a tradição autoritária ostentada pela sociedade brasileira, concorrem para
a acentuada exclusão social e, ainda, para a “financeirização econômica da vida
coletiva”
119
. Com isso, então, de acordo com as proposições de Paulo Sérgio Pinheiro,
as ideologias ou as práticas autoritárias não terminariam com o colapso das ditaduras,
mas sobreviveriam às transições e sob os novos governos civis eleitos, pois
independem da periodização política e das constituições. Nesse particular, o autor
acrescenta: “mesmo que o ‘entulho’ institucional produzido pelos governos militares de
1964-85 tenha sido varrido, restam resíduos autoritários de regimes de exceção
anteriores, ainda que transformados, inseridos nas práticas sociais e nas ideologias”
120
.
Isso significa que, por estar assentado num projeto de base autoritária, o Brasil carece
de uma padronização. Assim, ele é irregular, disforme e fragmentado em várias de suas
instâncias constitutivas.
Parte da produção literária do período pós-64, a propósito, deu destaque para
temáticas que se voltam para o processo autoritário do momento. Os acontecimentos
históricos, políticos, sociais e econômicos da época foram importantes não somente
para a consolidação de temas que lidam com o sistema, mas, sobretudo, a sua investida
se deu na pesquisa estética, que procurou estar calcada em novas formas de expressão
artística. Assim, na esfera temática, as cenas se dedicam à violência social, às prisões,
aos seqüestros, às torturas, às crises do sujeito – não somente em relação à
problemática da sociedade, mas, sobretudo, com a linguagem e consigo mesmo. No
âmbito formal, o recurso à fragmentação é bastante empregado. Tal propriedade é
importante não apenas para sugerir novos contornos da arte literária, mas, inclusive,
para chamar a atenção para a idéia de desordem na qual se aloja a constituição da
118
TAVARES, Maria da Conceição. A política econômica do autoritarismo. In: SCHWARTZ, Jorge;
SOSNOWSKI, Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 20-21.
119
Cf. DIAS, Ângela Maria. Representações contemporâneas da crueldade: para pensar a cultura brasileira
recente. In: ____; GLENADEL, Paula (Orgs.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora,
2004. p. 17.
120
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP, São Paulo, n. 9, p. 45-57, mar./mai.,
1991. p. 47. O mesmo assunto merece atenção em SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo
brasileiro. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Campus, 1988. Em certa altura do livro, o autor coloca: o
autoritarismo “não é um simples fenômeno passageiro, mas tem raízes profundas e implicações que não
se desfazem por meros rearranjos institucionais” (p. 14).
61
sociedade brasileira. Desse modo, os romances de Ignácio de Loyola Brandão, Ivan
Ângelo, Antonio Callado e Renato Pompeu, que fazem parte do corpus do presente
trabalho, ganham profundidade em decorrência dos temas bem como da forma que
elegem para expressar um momento histórico.
2.2 A fragmentação enquanto resposta a um processo histórico
autoritário
Há guerrilhas pipocando em toda parte, já me convenci mesmo que o
estado normal do mundo é de guerra, a paz está-se transformando
numa anormalidade.
(Verão no aquário, Lygia Fagundes Telles)
O mundo clássico concebe imagens de forma harmônica e pura, o que
equivaleria a dizer, então, que, sob uma perspectiva classicista, a arte não resguardaria
falhas de composição. Em contrapartida, dentro da estética romântica, tal dilema não se
assegura satisfatoriamente. A arte, nesse último caso, forjaria procedimentos que
desautorizariam comentários generalizantes e uniformes. Nesse particular, são
relevantes as proposições desenvolvidas por Friedrich Schlegel
121
, já que antecipam
algumas formulações consideradas úteis para a compreensão da arte moderna.
O empreendimento do autor pauta-se numa reflexão acerca da arte romântica, o
que auxilia no desencadeamento de uma discussão sobre a produção contemporânea.
O fragmento consiste num dos tópicos a que Schlegel volta a sua atenção num conjunto
de aforismos que compõem o seu texto. A maneira como ele expõe as suas idéias
consiste numa demonstração prática do que ele procura defender. Isso porque tais
aforismos não resguardam uma unidade linear de pensamento e, um após o outro, vão
surgindo diferentes pontos de abordagem, criando, com isso, diferentes contextos de
leitura. Nesse sentido, há assuntos que versam a respeito da filosofia e da arte, mas
também acerca das mulheres, do casamento, do espírito cômico e do cristianismo, só
para citar alguns exemplos.
121
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. In: LOBO, Luiza (Org.). Teorias poéticas do
romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 50-72.
62
Diferentemente de Hegel, que postula a divisão tripartida dos gêneros literários,
Schlegel contraria tal princípio estético, indo de encontro à expectativa de formas puras.
Além disso, ele rompe com o afastamento entre pensamento filosófico e produção
poética. Aliás, suas colocações andam mesmo na contramão de certas premissas
elaboradas por Platão. Esse último, atentando para um diálogo entre Sócrates e
Adimanto, no Livro III d’A república, detecta a preferência dada às formas puras de
composição, já que estas imitariam os homens de bem
122
.
De qualquer modo, para o filósofo alemão, conforme o aforismo 116, o objetivo
da poesia romântica não consiste simplesmente em reunir todos os gêneros separados
da poesia ou pôr em contato poesia, filosofia e retórica; antes, “[e]la quer e deve
também misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia de arte e poesia da
natureza, tornar a poesia viva e sociável”
123
. A partir dessa base, compreende-se a
prioridade que Schlegel confere aos escritos fragmentários. Assim, ele desenvolve
considerações acerca do aludido tópico em diversos aforismos, dentre eles, o 24, o 77 e
o 206.
No aforismo 24, o autor defende a premissa de que “[m]uitas das obras dos
antigos se tornaram fragmentos”, e acrescenta: “[m]uitas obras modernas já foram
escritas como fragmentos”
124
. Não obstante tal acepção, o aforismo 77 critica a
dissociabilidade entre forma e conteúdo. Segundo o trabalho de Schlegel, não existiria,
dentro do contexto artístico romântico, “um gênero fragmentário tanto no conteúdo
quanto na forma”
125
. Afora isso, ele expõe, no último aforismo citado, que o fragmento
deve ser semelhante a uma obra de arte em miniatura de maneira que seja isolado do
mundo circundante e completo em si mesmo
126
. No aforismo 432, o pensador procura
valorizar as tendências fragmentárias, defendendo que se evite a monotonia:
[h]á obras de envergadura, particularmente as obras históricas, que na
particularidade são constantemente atraentes e de belo estilo, mas
como totalidades são desagradavelmente monótonas. Para evitá-lo,
122
PLATÃO. A república. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. Em certa altura do Livro III,
lê-se a seguinte passagem: “Sócrates: – Então que havemos de fazer? Havemos de receber na cidade
todas estas formas ou uma e outra das formas puras ou a mistura? / Adimanto: – Se prevalecer a minha
opinião, receberemos a forma sem mistura que imita o homem de bem” (p. 89).
123
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. In: LOBO, Luiza (Org.). Teorias poéticas do
romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 55.
124
Idem. p. 51.
125
Idem. p. 54.
126
Idem. p. 60.
63
seria necessário alterar o colorido, o tom e até mesmo o estilo, e torná-
las radicalmente diferentes em cada um dos diversos blocos que
constituem o todo. Dessa forma, a obra se tornaria não apenas variada,
mas também sistemática
127
.
Schlegel atribui à fragmentação formal e conteudística uma valoração positiva, já
que provoca sensações diversas daquela suscitada pela arte pura e harmônica
128
. Seja
como for, cumpre a tal forma de apresentação estética uma função prática. Procura-se,
nessa pesquisa, avaliar a referida particularidade em textos escritos em contextos
históricos autoritários. Conforme se verificou anteriormente, o século XX, tanto em
âmbito nacional quanto internacional, foi assinalado por diferentes formas de
autoritarismo. Assim, as obras literárias, historicamente condicionadas, enfatizariam um
indivíduo problemático através de uma representação estética fragmentada.
Essa idéia de que as obras literárias manteriam uma ligação com o mundo social
é desenvolvida por Theodor Adorno. Em seu livro Teoria estética, o crítico alemão
reserva uma parte inicial para desencadear uma discussão acerca das relações entre
arte, sociedade e estética. O filósofo afirma que as noções relativas à arte foram
abaladas à medida que “a sociedade se tornava menos humana”
129
. Existiriam, a partir
do seu ponto de vista, vínculos entre a barbárie a que a sociedade esteve submetida e
as produções artístico-culturais. Nesse sentido, o pensador germânico atenta para o fato
de, num certo sentido, as obras de arte serem cópias do vivente empírico. Tal
posicionamento se reforça porquanto o autor expõe a premissa de que mesmo os textos
mais sublimes adotam uma posição determinada em relação à realidade empírica, “ao
mesmo tempo que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre
concretamente e de modo inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito
do momento histórico
130
.
Os aludidos traços elaborados por Adorno remetem para uma passagem
importante do seu texto no qual ele formula a idéia de que “[o]s antagonismos não
resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes de sua
127
Idem. p. 71.
128
Maiores informações sobre o fragmento na estética romântica são desenvolvidas em LACOUE-
LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. A exigência fragmentária. Terceira margem: estética, filosofia e
ciência nos séculos XVIII e XIX, Trad. João Camillo Penna, Rio de Janeiro, PPG-UFRJ, n. 10, ano 9, p. 67-
94, 2004.
129
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. p. 11.
130
Idem. p. 16.
64
forma”
131
. Em outros termos, a representação de uma realidade conflitiva e tensa não
pode formular-se somente em nível temático, mas, especialmente, em âmbito formal.
Não somente esse fragmento do livro ilustra tal situação. O pensador alemão atenta
para a relação dialética que se estabelece entre texto literário e contexto social,
reforçando que as condições sob as quais se estrutura esse último é determinante para
formas específicas de apresentação estética: “[a] sua [da obra] própria tensão é
significativa na relação com a tensão externa”
132
. Portanto, segundo o crítico, haveria
uma homologia entre “a estrutura das obras e a estrutura social”
133
.
Esses argumentos delineados pelo teórico apontam para um trecho do livro em
que ele reforça a importância da história na constituição da obra: “[o] momento histórico
é constitutivo nas obras de arte; as obras autênticas são as que se entregam sem
reservas ao conteúdo material histórico da sua época (...). São historiografia
inconsciente de si mesma da sua época”
134
. Conforme sugere a passagem, o contexto
histórico desempenha um papel essencial na estruturação de determinadas obras, as
quais, segundo Adorno, não podem ser examinadas enquanto documentos artificiais.
Assim, em inúmeros casos, as mudanças presenciadas nas produções literárias do
século XX estão centradas em aspectos temáticos que contribuem para a estruturação
da linguagem. Anatol Rosenfeld também observa que “[m]esmo a deformação e a
desarmonia na arte são elementos formais de uma síntese mais ampla”
135
.
A desestruturação dos elementos formais sublinhados por Rosenfeld e,
particularmente, por Adorno – ou seja, a deformação, a desarmonia e a
heterogeneidade, dentre outros – seria, portanto, conseqüência das condições sociais
com as quais o artista estaria em contato. Circunstâncias essas que traduzem valores
degradantes da sociedade.
Em A história como trauma, Márcio Seligmann-Silva desenvolve uma apurada
discussão conceitual sobre o tema do Holocausto e a sua relação com as formas de
representação estética. Nesse artigo, o crítico destaca que a experiência moderna está
131
Idem. Ibidem.
132
Idem. Ibidem.
133
Idem. p. 20.
134
Idem. p. 207.
135
ROSENFELD, Anatol. Arte e fascismo. In: ____. Texto / contexto II. São Paulo: USP / UNICAMP /
Perspectiva, 1993. p. 191.
65
“repleta de choques, de embates com o perigo”
136
. Como decorrência da mencionada
noção de realidade enquanto um acúmulo de catástrofes, o estudioso frisa que o
elemento universal da linguagem é posto em questão tanto quanto a possibilidade de
uma intuição imediata dessa realidade.
Centrado mais especificamente no evento da Shoah
137
, o ensaísta chama a
atenção para os problemas e para as dificuldades de um historiador em representá-lo.
Nesse sentido, ele comenta que o historiador da Shoah fica preso a um duplo
mandamento contraditório: “por um lado, a necessidade de escrever sobre esse evento,
e, por outro, a consciência da impossibilidade de cumprir essa tarefa por falta de um
aparato conceitual ‘à altura’ do evento, ou seja, sob o qual ele poderia ser
subsumido”
138
.
A dificuldade ou mesmo a impossibilidade de representação de um
acontecimento que transcende a capacidade de imaginação humana não se restringem
somente ao historiador. Assim como os artistas em geral, os poetas e os romancistas
também se vêem ameaçados pelo desafio de absorver e atribuir legitimidade ao evento.
Conforme o autor, existiria uma cisão entre a linguagem e o evento, já que seria
impossível “recobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal”
139
.
Seligmann observa que essa incapacidade de recepção de um evento que vai
além dos limites da percepção humana e que se torna algo sem-forma concorre, numa
perspectiva psicanalítica, para a questão do trauma que, aliás, ele define como “uma
ferida na memória”
140
. O estudioso ressalta que esse problema psicanalítico do trauma –
136
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional. Revista de psicanálise, São Paulo, n.
116/117, p. 108-127, dez., 1998/jan., 1999. p. 108.
137
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. Letras:
literatura, violência e direitos humanos, Santa Maria, n. 16, p. 09-37, jan./jun., 1998. Nesse ensaio,
Seligmann elabora uma distinção entre os vocábulos Holocausto e Shoah. O autor explica que o primeiro
deriva do grego holócauston que aparece na mais antiga versão da Bíblia e que foi transcrito por São
Jerônimo na Vulgata pelo termo holocaustum. Essa palavra significaria queimar totalmente e era
empregada para denominar o sacrifício ritual marcado pela imolação não apenas entre os judeus. No pós-
guerra, esse termo passou a ser empregado para designar o assassinato dos judeus europeus nos
campos de concentração nazistas. Assim, o crítico destaca que essa denominação não teria sido aceita
por muitos estudiosos do tema e pela maioria dos judeus, pois esses últimos negam que aquele morticínio
possa ter sido considerado um sacrifício e muito menos reduzido a um fenômeno a mais na linha
ascendente da história. Daí, frisa o ensaísta, a opção pelo termo hebraico Shoah, ou Shoa, que quer dizer
catástrofe, destruição, aniquilamento (p. 16).
138
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional. Revista de psicanálise, São Paulo, n.
116/117, p. 108-127, dez., 1998/jan., 1999. p. 112.
139
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das
Catástrofes. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2003. p. 46
140
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional. Revista de psicanálise, São Paulo, n.
116/117. São Paulo: Escuta, dez./jan., 1998/99. p. 116.
66
justamente por problematizar a possibilidade de um acesso direto ao real – torna-se um
problema estético de representação.
Nesses termos, a experiência do Holocausto vincular-se-ia ao conceito de
catástrofe. A forma radical de extermínio envolveu um impacto intensamente violento
que, na tentativa de representá-lo em moldes tradicionais, estaria reduzindo-o a um
objeto de representação com estatuto de experiência assimilável. A gravidade do
problema, no entanto, não permite que se assimile uma experiência como esta sem
sofrer o seu impacto, e ter abalado as bases do pensamento humano, dedicado à
acomodação dos elementos em lógicas lineares. Portanto, representar a experiência da
catástrofe em proporções tais como a história do século XX demonstrou implicaria uma
renúncia dos modos convencionais de representação, pois estes seriam incapazes de
preservar a singularidade da experiência e a perplexidade que deve acompanhá-la.
Assim, o questionamento dirigido ao estatuto da linguagem, dos modos de
representação e das formas artísticas tradicionais está ligado a uma busca de
perspectiva de renovação da expressão
141
.
George Steiner é outro crítico que reserva particular atenção para especificidades
atinentes à associação entre linguagem e silêncio em obras produzidas em regimes
autoritários. A análise que ele depreende de textos de autores que viveram em períodos
de exceção mostra-se caudatária de princípios que se filiam à incapacidade de
expressão. Tais apontamentos assentam-se em elementos afins aos abordados por
Seligmann-Silva. Steiner, em certa altura de seu livro, volta a sua atenção para alguns
escritos de Franz Kafka. Dentre suas notas, o crítico francês destaca a incompletude e a
imperfeição bem como o silêncio que permeiam as obras kafkianas. Steiner ressalta
ainda que essa falta de critérios de que se vale o aludido literato equivaleria a uma
liberdade fornecida pelas palavras e, por isso mesmo, seria uma resposta contrária à
repressão imposta pelo sistema
142
. A fragmentação, nessa linha de pensamento, seria
uma fuga do mundo violento e reificado que, em verdade, camufla antagonismos
sociais.
Essa mesma premissa é desenvolvida por Terry Eagleton num estudo pautado
em pressupostos teóricos sustentados por Theodor Adorno e Walter Benjamin. Segundo
141
Cf. GINZBURG, Jaime. A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil. Letras,
Santa Maria, n. 18/19, p. 121-144, jan./dez., 1999. p. 132-133.
142
STEINER, George. K. In: ____. Language and Silence. Great Britain: Pelican Book, 1968. p. 160-168.
67
Eagleton, na passagem do capitalismo de mercado para o monopolista, acentuou-se o
caráter reificado da sociedade. Com isso, afirma ele, a experiência humana passou a
ser regulada por alguma estrutura subjacente ou subtexto (mito) do qual a própria
experiência é o produto manipulado. Essa manipulação ordenaria os fatos, conferindo
unidade ao caos, mas não em nível concreto e, sim, abstrato, pois “o mundo continua
fragmentário e caótico na sua superfície”
143
.
Essas últimas considerações dão margem para que Eagleton trate acerca do
tempo histórico em Benjamin. Para esse último, o tempo aloja-se num espaço de
repetição agonizante, vazia e homogênea, propenso a uma série incessante de
catástrofes e ruínas. Assim, salienta o autor, no fim das esperanças históricas, numa
ordem social que se tornou mórbida e sem sentido, a figura de uma sociedade justa
pode ser vagamente discernida por uma hermenêutica heterodoxa para a qual a cara da
morte é transfigurada num rosto angelical. Somente uma teologia política negativa
poderia ser fiel ao Bilderverbot judaico, o qual proíbe qualquer imagem construída da
reconciliação futura, incluindo, aí, tais imagens que recebem o nome de arte. Nesse
sentido, complementa Eagleton, “[s]ó uma obra de arte fragmentária, que recuse as
tentações da estética, da Schein e da totalidade simbólica, pode pretender figurar a
verdade e a justiça, mantendo-se voluntariamente silenciosa a respeito delas, e
apresentando no seu lugar o tormento irredimível do tempo secular”
144
.
Os elementos teóricos delineados ao longo deste segmento permitem conferir
duas observações básicas. A primeira é concernente à forma artística de apresentação.
A ênfase incidiu em observações de determinadas obras cuja estruturação se
caracteriza por ser fragmentada, resguardando, pois, tensões internas. A segunda é
relativa às circunstâncias de produção de tais obras. Conforme se verificou, elas são
contextualmente condicionadas. Esses dois traços dialeticamente associados remetem
para um conceito importante desenvolvido por Walter Benjamin em seu estudo sobre o
drama barroco alemão
145
: o de alegoria.
Em certa altura de seu texto, Benjamin trata acerca da indissociabilidade da
forma e do conteúdo. Com essas palavras, o crítico germânico sugere que a escolha da
143
EAGLETON, Terry. O rabino marxista: Walter Benjamin. In: ____. A ideologia da estética. Trad. Mauro
Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. p. 231.
144
Idem. p. 237.
145
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
68
forma deve estar adequada ao tema do objeto artístico
146
. Além disso, a seu ver, não
existiria um estudo de conteúdo desvinculado de um estudo de forma e vice-versa.
A seguir, ele projeta um mergulho na conceituação e na distinção entre dois
termos polissêmicos na teoria literária: o símbolo e a alegoria, que engendram dois tipos
de leitura. O símbolo remeteria a uma imagem orgânica da totalidade; a alegoria
proporia a imagem por fragmentos, revelando a incompletude e o despedaçamento.
Enquanto o primeiro implicaria uma interpretação imediata e acabada, a segunda
privilegiaria o momento e restauraria a continuidade em instantes heterogêneos e
desconexos, já que não busca atingir diretamente o todo nem a síntese, aludindo, então,
a uma diversidade de interpretações. A alegoria consistiria, portanto, na representação
de estilhaços do passado esquecido, da história do sofrimento e da catástrofe. Além
disso, a leitura alegórica projetaria a denúncia do reprimido e traria à tona o que não
está explícito.
No curso da aludida abordagem, Benjamin reserva alguns capítulos para discutir
questões vinculadas à ruína, à fragmentação alegórica e à teoria barroca da linguagem,
todos os três segmentos apontando para a estruturação formal da escrita. Antes de se
adentrar nesses tópicos, o filósofo alemão afirma que, na esfera da intenção alegórica, a
imagem é proposta por fragmentos, o que extinguiria o falso brilho da totalidade
orgânica. Ainda na esteira dessa reflexão, ele salienta que a intenção alegórica
contribuiria, no campo da normatividade artística, para “um grande delito contra a paz e
a ordem”
147
.
O crítico germânico, na primeira das referidas partes, destaca que, com o drama
barroco, quando a história penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. O vocábulo
história, chama a atenção ele, está gravado, como os caracteres da transitoriedade, no
rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza-história, posta no palco pelo
drama, somente estaria verdadeiramente presente como ruína. Nesse sentido, destaca:
[c]omo ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob
essa forma, a história não constituiu um processo de vida eterna, mas
de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do
146
Idem. p. 182.
147
Idem. p. 199.
69
belo. As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas
no reino das coisas
148
.
Essas ocorrências ilustram o vínculo existente entre história e ruínas, traduzindo-
se, assim, numa visão fragmentária do mundo. De acordo com os preceitos do filósofo
alemão, “é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo, através da
estrutura alegórica”
149
. Seguindo essa linha de raciocínio, Benjamin desenvolve o
argumento de que não se pode, de modo algum, considerar acidental a relação do
alegórico com o caráter fragmentário
150
. Tal alegoria, assentada na fragmentação, se
manifestaria tanto no elemento lingüístico como no figural ou cênico
151
.
No que tange à fragmentação da linguagem, Benjamin afirma que a sua
tendência é o fracionamento. A motivação para tal estado de coisas aloja-se nas
circunstâncias externas. Segundo o crítico, “[q]uando a confrontação se torna colérica e
violenta, os fragmentos lingüísticos se amontoam”
152
, evocando a impressão do
estilhaço e do caótico.
Com base nas referidas ocorrências, importa destacar a idéia de que a
fragmentação filia-se às condições históricas nas quais certos escritos foram
produzidos. Conforme a análise historiográfica da sociedade brasileira demonstrou, as
contradições existentes em seu processo de formação – em particular no que tange ao
desenvolvimento de formas autoritárias de organização social – surgiram como
condições básicas para que escritores como, dentre outros, Ignácio de Loyola Brandão,
Ivan Ângelo, Antonio Callado e Renato Pompeu, buscassem reunir elementos
condizentes ao momento histórico em curso e procurassem acolhê-los de forma
conflitiva. Isso significa que seus textos não apresentam uma estrutura comportada de
organização, mas primam pelo fragmento, como se fossem constituídos por ruínas.
148
Idem. p. 200.
149
Idem. p. 208.
150
Idem. p. 210.
151
Idem. p. 214.
152
Idem. p. 230.
70
2.3 A representação em tempos sombrios: a questão da mímese na
modernidade
Por mais de um ano depois de ser solto João não conseguia dormir.
De noite chorava no colo de Sandra. Ela afagava a sua cabeça.
Pronto, pronto, isso passa. (...) O emprego era bom, ele era bom no
seu trabalho. Mas de noite chorava nos seios de Sandra. Eu não
denunciei ninguém, Sandrinha. Não denunciei ninguém. Me
quebraram mas eu não traí ninguém.
(Condomínio, Luís Fernando Verissimo)
Num encontro de intelectuais brasileiros nos Estados Unidos, cujo centro de
interesse gravitou em torno das implicações do autoritarismo na constituição da
sociedade brasileira, Ignácio de Loyola Brandão atenta para questões vinculadas à
literatura e a sua relação com a situação histórica do país. O autor, com base no perfil
dos regimes autoritários nacionais, caracteriza o Brasil como irregular e sem sentido. Do
seu ponto de vista, tais adjetivações se prestariam para definições de formas
específicas de apresentação estética. Com isso, ele chama a atenção para a
composição fragmentária que definiria determinados romances escritos no período.
Dentre os diferentes pontos arrolados por Brandão, um deles incide no processo
de escrituração de obras literárias quando submetidas à censura. Nesse particular, o
ensaísta averigua que a literatura é levada a uma guinada em direção ao fantástico e ao
metafórico. Segundo ele, o fantástico, que ameaçara se tornar um gênero, erigiu da
noção de que a realidade era mais absurda que o próprio absurdo. Não só isso, da sua
perspectiva, conceitos relativos a realismo, verossimilhança e logicidade teriam perdido
seus limites, ganhando dimensões incalculáveis e de enorme elasticidade. O autor
salienta que o contexto histórico-social interessa para a compreensão do texto literário,
pois, passado um determinado período de tempo, ele poderia se tornar hermético,
impenetrável e sem sentido
153
.
As colocações desenvolvidas por Ignácio de Loyola Brandão alojam-se em torno
da premissa de que existiria uma necessidade de reavaliação de determinados
conceitos que permeiam os estudos literários. Segundo os apontamentos do autor, a
narração de uma história perfeitamente encadeada, que confere legitimidade ao
153
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Literatura e resistência. In: SCHWARTZ, Jorge; SOSNOWSKI, Saul
(Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 179.
71
pensamento lógico, deixa de ser prioridade em narrativas que se assentam num estilo
fragmentário de composição. Assim, portanto, o conceito de realismo – calcado em
categorias que dão reconhecimento à narratividade tais como a continuidade temporal e
a articulação causal entre os acontecimentos – passa a ceder lugar para noções que
não são mais asseguradas por tal princípio de narração.
O conceito de realismo, nessa linha de reflexão, é importante para um
empreendimento em torno daquelas concepções atinentes à mímese e à representação.
Segundo Ian Watt, o realismo é, fundamentalmente, uma posição epistemológica. Trata-
se de algo perfeitamente consistente com princípios da filosofia a partir de Descartes e
Locke. Nos termos do autor, “o moderno realismo parte do princípio de que o indivíduo
pode descobrir a verdade através dos sentidos”
154
. Ainda de acordo com Watt, o enredo
do romance realista passa a se distinguir da maior parte da ficção anterior por utilizar a
experiência passada como a causa da ação presente. Isso significa, então, que existe
uma relação causal atuando através do tempo, reforçando o componente causa e efeito
entre os acontecimentos.
A literatura moderna, diferentemente da realista, resiste a esse estado de coisas.
Ela não mais se assenta nas estruturas ficcionais tradicionais, já que rompe com a
cronologia e desarticula a linearidade do discurso. Por esse motivo, ela deixa de se
ancorar no caráter mimético. A não-linearidade temporal conduz a uma não-
historicidade, esgotando a obra na escritura, não mais havendo uma representação da
ordem de reprodução do real como pretendia a obra realista. A literatura moderna, ao
incorporar vários recursos antimiméticos, quebra a ilusão referencial através da
dispersão do enredo, obscurecendo o ideal de representação clássico e, o que é mais
importante, lança o texto literário numa construção puramente lingüística. Portanto,
diante da obra de arte modernista, que muitas vezes chama a atenção para uma
determinada ausência de estrutura ordenada, dificultando a percepção de sua eventual
totalidade, a validade da categoria da mímese é questionada.
Assim, se o romance realista realiza plenamente os preceitos de uma mímese
estabelecida na objetualidade, na razão e/ou na capacidade de representar o real na
sua totalidade de conteúdos e formas, isto se deu pela certeza da capacidade e da
possibilidade de o artista poder constituir e compreender o mundo cotidiano como se lhe
154
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 14.
72
apresenta. Tais concepções conduzem à idéia de que a linguagem pode copiar o real e
que a literatura pode representá-lo fielmente, como um espelho ou janela sobre o
mundo, segundo as imagens convencionais do romance. A formulação dos aludidos
conceitos se traduz no que se pode denominar inocência relativa à mímese
155
. Essa
noção assenta-se nos pressupostos de Georg Lukács que, baseado na teoria marxista
do reflexo, analisa o realismo como ascensão do individualismo contra o idealismo
156
.
Em outros termos, o que o teórico húngaro espera da arte é um significado de verdade
em relação à realidade refletida, além de uma dose de utopia no seu papel
transformador da sociedade.
Na modernidade, entretanto, tal idéia de organicidade esfacela-se. Com isso,
desfazem-se os laços aparentes com o social enquanto realidade constituída, negando
qualquer possibilidade de totalização, pois o mundo moderno – assentado na
polissemia, na dissonância cognitiva, na desordem, nas ruínas – limita a transparência
do mundo. Tudo isso contribuiria para que a mímese ficasse frente a frente com o seu
fim, ou seja, há uma mímese que nega os pressupostos de uma mímese realista. Isso
equivale a dizer que somente pode ser possível acolher a idéia de representação
literária de experiências políticas e sociais, de correspondência entre o literário e o
histórico, se o conceito de mímese for imbuído por uma nova visão de história e pelos
novos aspectos que fundam a modernidade.
O século XX foi a era da catástrofe. É inconcebível, pois, a premissa de uma
realidade organizada em moldes orgânicos. Auschwitz, como observa Adorno, não foi
um acontecimento isolado, mas algo coerente com o desenvolvimento de uma
sociedade reificada. Isso significa, então, que a frieza, a falta de amor e a indiferença
seriam condições formuladas ao longo da história e que culminaram no Holocausto,
justificando, assim, os crimes nazistas
157
. Com isso, portanto, a historiografia, tal como
concebe Walter Benjamin, deixaria de ser a narração de sucessos e explodiria em
fragmentos, estilhaços e ruínas
158
. O que se questionaria, nesse particular, é a forma
como se pode dizer o indizível, como representar ou dar legitimidade a uma dor que
155
Conforme expressão utilizada por COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Trad. Cleonice Paes
Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 107.
156
In LUKÁCS, Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: ____. Ensaios sobre
literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1965.
157
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. Gabriel Cohn (Org.). 2. ed. São
Paulo: Ática, 1994. p. 33-45.
158
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232.
73
transcende a capacidade humana de representação. Frente a tais ocorrências, Adorno,
num texto cujo assunto é o ensaio como forma
159
, afirma existir uma ideologia que
organizaria o mundo dando a falsa idéia de totalidade.
Nesse estudo, Adorno estabelece a diferença entre o ensaio e a poesia. O
primeiro, distintamente da segunda, não seria arte, mas produto da reflexão. Não
obstante tal diferença, ambos possuem alguns traços similares. O primeiro é o de
expressarem aquilo que escapa ao padrão linear e totalizador do pensamento de base
cartesiana. Um segundo seria a capacidade de abandonar-se à coisa mesma como uma
forma de descoberta, preferindo sempre o parcial, o que escapa ao pensamento
sistemático, seja de origem empirista ou racional.
A novidade do ensaio, conforme salienta o filósofo alemão, reside na sua forma.
Ele não criaria nada de original, mas reavaliaria o já existente, em busca de uma nova
maneira de abordá-lo. O intuito não seria, pois, encontrar a origem do objeto para
explicá-lo, mas colocar variações em torno do mesmo para projetar as suas
possibilidades futuras. Sua construção não se preocuparia com definições claras,
listagens exaustivas de características ou por partir do mais simples. O ensaio como
forma nega os princípios cartesianos para se debruçar sobre o objeto mais complexo,
sem estabelecer um método de abordagem, colocando os conceitos sem defini-los, mas
jogando-os num mosaico em que uns definem os outros por relação. Afora isso, ele não
visa a persuadir o seu interlocutor, mas mostrar o caminho da descoberta. Tudo isso
não seria por acaso. Segundo Adorno, “[a] configuração é um campo de forças, assim
como, sob o olhar do ensaio, toda formação espiritual precisa transformar-se num
campo de forças”
160
.
Com esse ensaio, o pensador frankfurtiano procura desmistificar o caráter natural
e necessário com que a ideologia se apresenta; ou, de outro modo, como as pessoas
pensam, sendo pensadas pela ideologia e, ainda assim, considerarem estar pensando.
O ensaio, frente a isso, assumiria a função de mediação. Adorno nega a radical
afirmação idealista de que a ordem das idéias seria a mesma da ordem das coisas. Não
somente isso, ele põe como inaceitável a afirmação empirista de que o fenômeno
sempre novo e inalcançável vai além do conceito. Para o teórico germânico, ambos os
159
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ____. Sociologia. Gabriel Cohn (Org.). 2. ed. São Paulo:
Ática, 1994. p. 167-187.
160
Idem. p. 177.
74
preceitos erigem-se dogmaticamente como métodos únicos de acesso à verdade. Em
ambos os casos, a reificação do pensamento se faz presente, pois, no idealismo, fica-se
na contemplação vazia dos objetos; no empirismo, método crítico experimental, o sujeito
fica totalmente alienado do objeto. Nesse sentido, a forma do ensaio concorreria para a
condição de crítica à ideologia, já que exibiria os antagonismos sociais:
[é] inerente à forma do ensaio a sua própria relativização: ele precisa
compor-se de tal modo como se, a todo momento, pudesse
interromper-se. Ele pensa aos solavancos e aos pedaços, assim como
a realidade é descontínua; encontra a sua unidade através de rupturas
e não à medida que as escamoteia. A unanimidade da ordem lógica
engana quanto à essência antagônica daquilo que ela recobre. A
descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um
conflito suspenso
161
.
Com base nessas ocorrências, pode-se dizer que o pensar filosófico surgiria do
olhar demorado e paciente lançado sobre o objeto, à procura do conteúdo de verdade, e
que exigiria sempre voltar ao contato direto com a coisa em si. Com isso, o pensamento
resistiria ao previamente pensado, expondo a experiência, o contato entre o próprio
processo de reflexão e a coisa. O caráter de mediação, no ensaio, fica explicitado na
forma aberta ao novo e ao heterogêneo, e na forma fechada preocupada com o modo
de apresentação.
Tal preocupação, no que se refere à mediação, está presente em outro ensaio de
Adorno em que ele discute a posição do narrador no romance contemporâneo. O
estudioso parte da constatação de que, na modernidade, a identidade da experiência
teria se desintegrado. Para ele, narrar algo significa “ter algo especial a dizer”
162
; no
entanto, o mundo administrado pela estandardização e pela mesmidade teria esfacelado
a experiência individual. Como decorrência disto, a consciência – perdida a ilusão do
conhecimento absolutamente consistente com o real – passa a se pautar no relativismo.
O conhecimento do real, por seu turno, passa a ser parcial, condicionado, suscetível ao
engano, à ilusão e à incerteza generalizada. Assim, o romance realista, porque reproduz
a fachada, serve apenas para enganar, mascarar a realidade, com aparência de
totalidade sem fissuras. O narrador contemporâneo, conforme observa o autor,
161
Idem. p. 180.
162
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Walter et al.
Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 270.
75
diferentemente do narrador realista, não é mais fixo frente a um eu narrado em
transformação. O próprio eu narrador se transforma constantemente, ou seja, ele
aparece como a figura mediadora que revela o caráter não imediato da experiência
estética.
Esses pressupostos prestam-se para uma avaliação das definições dos conceitos
de mímese e representação. Na visão contemporânea de arte pura, enquanto entidade
a-histórica, há a construção ideológica de caráter imediato, o que leva a uma perda de
sua condição histórica. Em outras palavras, a mímese – enquanto representação das
ações humanas
163
– reproduziria a fachada e, por isso mesmo, para se pensar em
termos aristotélicos, a arte seria vista como uma fonte de prazer, um objeto a ser usado
como veículo das sensações dos indivíduos. Esse prestígio conferido pela arte, a
propósito, se filiaria ao deleite propiciado pela mercadoria. Dessa maneira, a arte
realista – fiel aos preceitos da mímese aristotélica, da verossimilhança e da
representação do real – converteu-se num instrumento falacioso, pois camuflaria os
antagonismos que a mercadoria encobre. A arte moderna, em contrapartida, nega tal
homogeneidade: ela é explosiva, fragmentada, desagregadora, revela o seu processo
de construção e o sofrimento que a engendra. Com isso, então, ela colocaria em xeque
aquelas concepções tradicionais atinentes à mímese.
Walter Benjamin é outro teórico que confere destaque à complexa formação da
arte modernista e sua relação tensa com a cultura, a política e a economia. As ligações
entre a história, o conhecimento e a arte estabelecidas pelo pensador alemão, tanto no
âmbito de suas idéias quanto no seu método filosófico, levam a considerar a mímese
como um ponto fundamental de seu pensamento crítico. O conceito de mímese proposto
por Benjamin nega aquele pensamento regido pela lógica da identidade e da não
identidade e funda uma lógica da semelhança em que nunca há identidade entre sujeito
e consciência, mas uma contigüidade, uma aproximação, que possibilita, em alguns
momentos, imagens que não negam o outro, pois a natureza mimética consiste numa
presença-ausente que se manifesta nas correspondências no tempo e no espaço.
Nesse sentido, complementa ele, “nem as forças miméticas nem as coisas miméticas,
seu objeto, permaneceram as mesmas no curso do tempo; (...) com a passagem dos
163
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
76
séculos a energia mimética, e com ela o dom da apreensão mimética, abandonou certos
espaços, talvez ocupando outros”
164
.
Benjamin toma a mímese a partir de duas principais compreensões entre as
quais ela oscila – de uma semelhança sensual e de uma relação distanciada para com o
objeto – e constrói um conceito ambivalente em que, ao mesmo tempo, mímese é o
medium, o lugar onde se dá a relação de semelhança e a impossibilidade de restituição
desse movimento original. Assim, a natureza mimética da modernidade mostra-se como
uma presença-ausente que se manifesta nas correspondências não sensíveis e que
está velada na linguagem e na arte. O crítico germânico procura estabelecer uma
aproximação entre a palavra e a coisa, mas, concomitantemente, mostra que tal relação
imediata não é mais possível, pois o signo teria transformado a linguagem em meio,
mediação
165
. É nela, no entanto, que a mímese pode ser vislumbrada como uma
fulguração não apreensível.
Essa distância entre os elementos do mundo constitui um índice da presença da
morte, da dimensão da perda de uma relação de semelhança, fazendo surgir um mundo
vazio, que aponta para a separação entre imagem e significação. É na ausência do
objeto na linguagem que o caráter original mimético se faz presente de maneira velada,
revelando o vazio da significação.
Benjamin entende a origem da linguagem de uma base não saussureana. Para
ele, a origem mimética estaria assentada na onomatopéia e na mímica gestual, no gesto
expressivo, e, portanto, como manifestação do ser: “os investigadores reconhecem na
onomatopéia, o papel do comportamento imitativo na gênese da linguagem. (...) A
linguagem como é óbvio para as pessoas mais perspicazes, não é um sistema
convencional de signos”
166
. Ainda segundo o teórico em questão, na origem, há uma
comunhão material imediata da linguagem com a natureza, um estado de pura
comunicabilidade. É no espaço do não comunicável que, a rigor, Benjamin situa o
poético, o caráter artístico do literário. Como essa dimensão visada pela literatura nunca
é atingida satisfatoriamente, porque sempre velada, sua inacessibilidade é mimetizada
na obra. Assim, a mímese moderna é mímese da morte, dos destroços de uma
totalidade, da separação dos nexos da vida.
164
BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 109.
165
Idem. p. 112.
166
Idem. p. 110.
77
Benjamin reflete sobre a modernidade através da poesia de Charles Baudelaire.
Segundo o crítico, as experiências do homem moderno são comparadas às de um herói,
pois são necessárias forças superiores para suportar as pressões da vida moderna.
Nessa última, a novidade reside na constante e rápida transformação de algo novo em
velho, o que gera a apreensão da temporalidade a partir da consciência da morte, já que
se observa a deterioração e o perecimento dos objetos. Conforme o pensador alemão, a
imagem do artista em Baudelaire aproxima-se do herói, e esse heroísmo aloja-se na luta
contra o seu destino inelutável de tentar estabelecer uma ligação entre a experiência
artística e o público (agora convertido em massa). Tal vínculo, aliás, é impossível frente
aos ideais da modernidade, em que a produção artística sofreu mudanças diante da
manifestação imediata da forma da mercadoria na obra de arte e da forma da massa no
público
167
.
Esse novo tipo de percepção do homem moderno é evidenciado por Benjamin na
vivência do choque. De acordo com as concepções formuladas pelo autor, essa vivência
do choque – sentida pelo transeunte na multidão das cidades gigantescas e que
corresponde à vivência do operário com a máquina
168
– tornou-se determinante para a
estrutura da poesia de Baudelaire. Em outros termos, os textos do poeta francês
apresentam a imagem de um choque, “quase mesmo a de uma catástrofe”
169
. Isso
significa que a poesia baudelaireana insere a vivência do choque no seu âmago,
exibindo um alto grau de conscientização que transforma tal vivência em experiência, a
partir de um plano atuante de composição. A aludida distinção entre vivência (Erlebnis)
e experiência (Erfahrung) é importante para a compreensão do caráter mimético da
poesia de Baudelaire e da mímese na modernidade, já que o conceito de experiência se
faz paralelo ao de mímese ao fundar-se na memória e fixar-se nas correspondências
(correspondances
170
).
Nesse sentido, a poesia de Baudelaire se manifesta como uma espécie de
“mímese da morte”
171
. A partir do estudo da lírica do poeta francês, Benjamin procura
167
In BENJAMIN, Walter. A modernidade. In: ____. A modernidade e os modernos. Trad. Heindrun K. M.
da Silva et al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p. 7-36.
168
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ____. Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
p. 126.
169
Idem. p. 118.
170
As correspondances representam a instância diante da qual se descobre o objeto de arte como um
objeto fielmente reproduzido e, por conseguinte, inteiramente problemático.
171
BENJAMIN, Walter. A modernidade. In: ____. A modernidade e os modernos. Trad. Heindrun K. M.
da Silva et al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p. 19.
78
formular a idéia de que o conceito de mímese se reveste de uma presença ausente e,
ao mesmo tempo em que faz erigir os destroços de uma sociedade que se quer
contínua, orgânica e totalizante, revela uma possibilidade de redenção de estilhaços e
fragmentos da totalidade, na multiplicidade de sentidos que possibilita a emergência do
diferente. Assim, a literatura moderna, ao incorporar a dimensão da produção de
semelhanças não-sensíveis e o reconhecimento delas, também inclui na sua produção o
caráter fragmentário, o inacabado, o transitório, através do cunho destrutivo da
totalidade da obra. Logo, nos seus aspectos materiais, a literatura moderna assinala, em
sua própria estrutura, a relatividade, a casualidade, a dissonância cognitiva que limitam
a transparência do mundo.
A partir dessa base, pode-se pensar num outro sentido para o conceito de
mímese. Não aquele que reproduz a fachada, mas que se apresenta como condição
para a construção de uma nova relação com o objeto. Assim, a alegoria, em virtude de
seu caráter destrutivo, estilhaça a totalidade ilusória do símbolo, da reprodução
mecânica, esfacelando a aura da obra de arte
172
, da montagem, que, com efeito, rompe
com a continuidade narrativa, dando acesso à experiência (Erfahrung) de verdade na
modernidade. Em outras palavras, a violência e a destruição são mimetizadas de
maneira a fazer verter do seu cerne uma dimensão redentora.
Nesses termos, Benjamin destaca, na mímese moderna, uma relação não
dicotômica entre distância e semelhança, e uma aproximação que faz emergir uma outra
história e, portanto, uma outra verdade. É na interrupção da história linear e conexa que
surge um outro devir. A mímese se apresenta, na modernidade, na condição essencial
da sua impossibilidade e na sua libertação, fazendo surgir desse jogo uma nova
compreensão do presente e do passado que pode redimir o futuro. A partir do que foi
tecido, tem-se uma nova concepção de mímese e, também, uma nova concepção de
verossimilhança e de representação, que não se ancora nas bases realistas de
composição. Aquelas obras que se estruturam de maneira fragmentária – e, aqui, estão
Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; A festa, de Ivan Ângelo; Reflexos do baile, de
Antonio Callado; e Quatro-olhos, de Renato Pompeu – assimilam as estruturas da
sociedade moderna, capitalista, alienante e autoritária, fazendo explodir por dentro o
imitado.
172
O assunto merece destaque em BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 165-196.
79
2.4 Forma como resistência: fragmentação e humanização
– “Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá,
para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?
E ele, com muito caso, no devagar da resposta, suave voz: – “Faz de
conta, minha filha... Faz de conta...
(Nada e a nossa condição, João Guimarães Rosa)
Walter Benjamin, num ensaio em que dedica a sua atenção para a questão do
autor como produtor, atenta para o fato de a obra literária trabalhar a serviço de certos
interesses de classe. Nesse sentido, argumenta ele, o escritor se colocaria, dependendo
de sua situação social dentro do âmbito da contemporaneidade, contra ou a favor do
proletariado. Nesse último caso, conforme os seus apontamentos, o escritor obedeceria
a uma tendência. Tal direcionamento, no entanto, não seria uma condição única a ser
satisfeita. Segundo Benjamin, “uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter
necessariamente todas as outras qualidades”
173
.
Com base em tal preceito, o filósofo alemão procura defender a idéia de que a
tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for
também correta do ponto de vista literário, o que significaria, então, que a tendência
politicamente correta incluiria uma tendência literária. Nos termos descritos pelo autor,
“a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua
tendência literária”
174
.
Consciente da relação dialética existente entre texto literário e contexto social, o
crítico frankfurtiano busca avaliar não simplesmente como uma obra se vincula às
relações de produção da época, mas de que maneira ela se situa dentro de tais
relações. Essa indagação visaria imediatamente à função exercida pela obra no interior
das relações literárias de produção de uma época, ou seja, ela visaria, de modo
imediato, à técnica literária das obras. Segundo o teórico germânico, é preciso repensar
a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos da situação
173
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 121.
174
Idem. Ibidem.
80
moderna, se o intuito consistir em alcançar as formas de expressão adequadas às
energias literárias de tal tempo
175
.
Essas reflexões dão margem para o crítico investir na premissa de que a
tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de
modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado
somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor. Em outros
termos, para que o escritor atinja um fim prático em seu receptor, o seu texto precisaria
agregar um caráter político a elementos estéticos cuja configuração estrutural esteja de
acordo com tal tendência. No entanto, a tendência, embora consista numa condição
necessária, não é suficiente para o desempenho da função organizatória da obra:
[e]sta exige, além disso, um comportamento prescritivo, pedagógico,
por parte do escritor. Essa tendência é hoje mais imperiosa que nunca.
Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O
caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar,
ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo
lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito.
Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à
esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de
transformar em colaboradores os leitores ou espectadores
176
.
Refletindo sobre o teatro de Brecht, Benjamin afirma que este atingiu uma
finalidade prática transformando a conduta de seu expectador, porque procurou
adequar-se ao nível de desenvolvimento alcançado pelo cinema e pelo rádio. Ou seja,
conforme explica o pensador alemão, suas peças, calcadas nos elementos mais
primitivos, não se propuseram a desenvolver ações, mas representar condições, por
meio da interrupção de tais ações, o que implicaria um procedimento de montagem.
Com base nessas ocorrências, o filósofo germânico elucida que a interrupção da
ação, que levou Brecht a caracterizar seu teatro como épico, combate sistematicamente
qualquer ilusão por parte do público – ilusão essa inutilizável para um teatro que se
propõe a tratar os elementos da realidade no sentido de um ornamento experimental.
Nesse sentido, o teatro épico não simplesmente reproduziria condições, mas as
descobriria por intermédio da interrupção das seqüências. No entanto, conforme
Benjamin, “a interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma
175
Idem. 123.
176
Idem. p. 132.
81
função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o expectador a
tomar uma posição quanto à ação, e o autor, a tomar uma posição quanto ao seu
papel”
177
.
A exemplo do teatro brechtiano, as obras literárias, ao seguirem essa trilha de
composição, poderiam alcançar efeitos similares. O estilo fragmentário de inúmeros
textos artísticos, assim como o cinema e o rádio, suscitaria interrupções na seqüência
narrativa, causando uma impressão de choque nos leitores. Não somente isso, esses
últimos – quando se deparam com um texto cuja temática incide na contestação de um
regime opressor – são induzidos a recolher os fragmentos da obra, trazendo à luz uma
nova versão dos episódios históricos. A história, a propósito disso, passaria a assumir
um outro sentido, não podendo ser interpretada como um padrão contínuo,
desenrolando-se debaixo dos imperativos das leis naturais.
Theodor Adorno, aliás, também atribui à arte um poder de sensibilização. Para o
autor, a linguagem revela-se impotente ou incapaz de manifestar o caráter traumático de
certas experiências históricas, como, por exemplo, as memórias dos campos de
concentração. Devido ao caráter reificado da comunicação, há um impedimento da
tradução de experiências limites para o plano lingüístico. Entretanto, observa ele,
apenas a arte seria capaz de aludir ao inominado, porque usa o recurso metafórico. As
contribuições da estética, nesse particular, seriam importantes, pois elas não se
reduziriam à esfera de competência da linguagem, mas levariam em conta inclusive o
mutismo das obras de artes plásticas
178
.
Assim como essas últimas, também a literatura é tributária do esforço de revelar
o que não pode ser nomeado, ou seja, o irrepresentável e o indizível, como ilustra Paul
Celan na negatividade contida em seus poemas
179
. Não somente Celan, Franz Kafka,
como chama atenção Adorno, do mesmo modo, denuncia, em várias obras, os
estreitamentos do sistema que leva os indivíduos a viverem situações paradoxais e
absurdas no interior de um universo que se pretende racional. Em A metamorfose, só
para ilustrar um caso, o personagem principal, Gregor Samsa, manifesta em si próprio o
177
Idem. p. 133.
178
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988.
179
Idem. p. 354. Nessa linha argumentativa, referindo-se à poesia de Celan, frisa Adorno: “[e]ste lirismo
está impregnado da vergonha da arte perante o sofrimento, que se subtrai tanto à experiência como à
sublimação. Os poemas de Celan querem exprimir o horror extremo através do silêncio. O seu próprio
conteúdo de verdade torna-se negativo. Imitam uma linguagem aquém da linguagem impotente dos
homens, e até de toda a linguagem orgânica, a linguagem do que está morto nas pedras e nas estrelas”.
82
resultado das experiências de apropriação subjetiva de sua vivência familiar e cultural
que, realizada de forma solitária, o transforma em um grande inseto. O ser esquisito ou
estranho tem a ver com a idéia do não reconhecimento do eu, em virtude da degradação
de sua condição humana. Aqui, tem-se a noção de catástrofe voltando com força pela
mão de um literato, questionando a cultura como algo afastado da vida, dado que a sua
transformação em barata ocorreu no ambiente fechado de seu quarto. Nesse sentido,
conforme o crítico alemão,
[a] técnica literária de Kafka se apega, por associação, às palavras, da
mesma forma como a técnica proustiana da lembrança involuntária se
apega às sensações, mas com o resultado aposto: em vez da
rememoração do humano, há a prova exemplar da desumanização. A
sua pressão obriga os sujeitos a uma espécie de regressão biológica,
preparando o caminho para as parábolas animais de Kafka. Em sua
obra, tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam
consciência de que não são eles mesmos, são coisas
180
.
Os tópicos desenvolvidos por Benjamin e por Adorno prestam-se para
desencadear a discussão de que, em inúmeros casos, o mundo da vida contribui na
elaboração de situações que se projetam na obra artística. As propostas teóricas dos
aludidos autores apontam ainda para o caminho inverso, ou seja, de que se
consubstanciaria uma relação dialética em que os textos literários desempenhariam um
efeito prático em seus leitores. Antonio Candido, a propósito, é outro pensador que
investe nessa mesma linha argumentativa.
Candido esboça considerações não apenas no que tange à influência exercida
pelo meio social sobre a obra de arte, mas também à influência desempenhada por esta
sobre o meio. No primeiro caso, o crítico observa que existem muitas modalidades de
estudo de tipo sociológico em literatura
181
. Em todas elas, “nota-se o deslocamento de
180
ADORNO, Theodor. Anotações sobre Kafka. In: ____. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad.
Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 2001. p. 251.
181
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T.
A. Queiroz, 2000. p. 9-11. Dentre as referidas modalidades, o autor cita as seguintes: um primeiro tipo seria
formado por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com
as condições sociais; um segundo tipo seria formado pelos estudos que procuram verificar em que medida
as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos; o terceiro tipo seria
de tendência sociológica, implicando o estudo da relação entre a obra e o público; o quarto tipo seria
aquele que estudaria a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a
natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade; o quinto tipo investigaria a função
política das obras e dos autores geralmente com intuito ideológico marcado; o sexto tipo estaria voltado
para a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros.
83
interesse da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as
circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração, ou para a sua função na
sociedade”
182
. No segundo caso, tem-se que a obra – por meio de sua capacidade
maior ou menor de representar determinados aspectos sociais – “produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais”
183
.
A influência exercida pela obra de arte sobre o meio social serve de base para
Antonio Candido apontar argumentos no sentido de que a literatura seria uma condição
para a afirmação da humanidade do indivíduo. Em seu ensaio A literatura e a formação
do homem, o crítico destaca algumas constatações básicas. A primeira diz respeito à
literatura imbricada a elementos contextuais; a segunda é relativa à busca da satisfação
da necessidade universal da ficção e da fantasia; a última é concernente à literatura
enquanto a modalidade artística mais rica de sistematização da fantasia humana.
Candido alega que a obra literária é humanizadora e promove o conhecimento porque
estimula a reflexão sobre a realidade e instiga a imaginação e a fantasia
184
.
Em O direito à literatura, ele busca focalizar a relação da literatura com os direitos
humanos a partir de dois ângulos. Primeiro, a literatura corresponderia a uma
necessidade universal que deveria ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade,
porque, pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela organizaria os
indivíduos, libertando-os do caos e, portanto, humanizando-os. Conforme seus
apontamentos, negar a fruição da literatura é mutilar a humanidade. Em segundo lugar,
a literatura consistiria num instrumento consciente de desmascaramento, “pelo fato de
focalizar as situações de restrição dos direitos ou de negação deles, como a miséria, a
servidão, a mutilação espiritual”
185
.
Convém esclarecer, nesse ponto, particularidades relativas à sociologia da literatura e à análise
sociológica do discurso literário. Segundo Luiz Costa Lima (1983), enquanto a primeira procura
desentranhar as condições sociais que presidem o reconhecimento de um discurso como literário,
acentuando as condições que presidem o estabelecimento do próprio conceito de literatura; a segunda, em
contrapartida, busca estabelecer o que – dentro dessas coordenadas – dá especificidade a essa
modalidade de discurso. Portanto, conforme o crítico, a diferença entre os dois campos é de grau e não de
natureza (p. 108).
182
Idem. p. 11-12.
183
Idem. p. 20-21.
184
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: ____. Textos de intervenção. Seleção,
apresentação e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 77-92. (Coleção
Espírito Crítico).
185
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ____. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas
Cidades, 1995. p. 256.
84
Nessa perspectiva, os princípios teóricos apregoados por Lukács se contrapõem
aos de Benjamin e Adorno. O primeiro confere primazia à obra de arte realista. Para o
autor húngaro, o modelo realista funciona como um ponto de referência nostálgico
porque incorpora uma prática artística cujo objetivo é completar uma clara visão
epistemológica e uma emancipação política utópica, dando à vida um sentido de
imanência
186
. Os empreendimentos dos teóricos alemães andam na contramão de tais
ocorrências. Eles valorizam a estética modernista e a arte de vanguarda em detrimento
do padrão realista de composição.
A arte realista procura endossar, muitas vezes, as formas convencionais de
comportamento social e literário; a arte de vanguarda e a modernista, em contrapartida,
visariam a um distanciamento entre o indivíduo e a realidade. Em outros termos, ela é
crítica do real e crítica da própria forma de narrar. Segundo Benjamin, cabe à atividade
crítica abrir o espaço necessário a essa transformação de ponto de vista. A abertura, o
não acabamento e a capacidade de mudança, para o autor, deveriam constituir as
características essenciais de uma obra. Logo, a opção por um texto fragmentado
estruturalmente – por envolver um perfil de não fechamento e, por isso mesmo, propiciar
fendas no discurso e no pensamento – tem em vista despertar no leitor a reflexão, pois
implica uma ruptura com o ideológico na sua versão do real e distancia-se do mítico
para se desenvolver no imaginário-em-aberto.
Jeanne Marie Gagnebin, referindo-se aos métodos de sistematização dos
ensaios benjaminianos, confere destaque a uma das funções da fragmentação. Do seu
ponto de vista, eles procedem por associações, reúnem diversas peças, motivos e
citações na esperança que, desse amálgama, surja uma nova imagem. Para Gagnebin,
tal processo não é gratuito. Tanto nos ensaios quanto, pode-se dizer, nos textos
literários que comportam os aludidos traços, “[e]sta desordem visa a um efeito de
estranhamento, de choque, ela deve perturbar o leitor habituado ao desenvolvimento
tranqüilo das análises acadêmicas”
187
. Esse estranhamento tem, ao mesmo tempo, algo
do efeito de distanciamento de Brecht e dos poemas dos surrealistas
188
. Conforme a
186
Conforme interpretação proposta por DEN TANDT, Christophe. Cultural Studies and the Realist
Paradigm: from Georg Lukács to Neo-pragmatism. In: KEUNEN, Bart; EECKHOUT, Bart (Orgs.). Literature
and Society: the Function of Literary Sociology in Comparative Literature. Bruxelles: Lang, 2001. p. 115.
187
GAGNEBIN, Jeanne Marie. A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. Discurso, São
Paulo, FFLCH-USP, n. 13, p. 219-230, 1980. p. 223-224.
188
Cf. BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: ____. Magia e técnica, arte
e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 78-90. BENJAMIN, Walter.
O surrealismo. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
85
autora acrescenta, “[t]rata-se, em cada caso, de sacudir o leitor em seu torpor, abalando
a velha imagem da cultura integrada, digerida, sem perigo
189
. Com isso, “as citações
tornam-se autônomas, reagrupam-se segundo leis inéditas, ganham uma nova vida e
lançam uma luz diferente sobre a totalidade da obra”
190
.
Ainda conforme a autora em apreciação, a crítica benjaminiana pratica uma dupla
destruição. Inserindo-se nessa abordagem, a obra de arte fragmentária propiciaria,
então, do mesmo modo, esse duplo aniquilamento. Num primeiro momento, o contexto
enganador da tradição deve ser denunciado como o contexto de uma tradição de
dominação que oculta a força subversiva de uma obra. Num segundo tempo, as
citações romperiam a unidade do texto enquanto totalidade fechada para fazer emergir
como que uma face desconhecida soterrada sob a antiga
191
. Seja como for, em ambos
os casos, os textos literários, obedecendo a tais desígnios, serviriam para desmascarar
ou mesmo dessacralizar certos pontos de vista permeados por uma ideologia
conservadora e/ou autoritária.
Na mesma esteira das reflexões propostas por Benjamin, habilita-se o
pensamento de Adorno. Este defende a premissa de que a obra literária, diferentemente
do que preconizava Lukács, não deve se assentar num ideal social com vistas à
prefiguração do paraíso ou a vislumbres do futuro. O autor germânico postula a idéia de
que o mundo real não é mais do que uma superfície e uma deformação de uma cena
falsa onde os problemas sociais nunca surgem com nitidez. A ruína do ideal social, na
estética de Adorno, procura cancelar toda a idolatria dessa gloriosa linhagem. Agora, a
arte mais prezada seria aquela que representaria o real sem idealização
192
. Segundo
José Guilherme Merquior, a base do projeto crítico-artístico de Adorno é representar
Brasiliense, 1994. p. 21-35. Ainda sobre o surrealismo WOLIN, Richard. Benjamin, Adorno, Surrealism. In:
RASMUSSEN, David; SWINDAL, James (Orgs.). Critical Theory: the Future of Critical Theory. London:
Thousand Oaks, New Delhi: Sage, 2004. Vol. IV. p. 285-304.
189
GAGNEBIN, Jeanne Marie. A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. Discurso, São
Paulo, FFLCH-USP, n. 13, p. 219-230, 1980. p. 224.
190
Idem. Ibidem.
191
Idem. Ibidem.
192
Segundo Adorno e Horkheimer (1985), o mundo moderno, com seu avançado processo técnico, teria
ofuscado o olhar crítico da sociedade. Com a desmitologização rumo ao esclarecimento, criaram-se,
paradoxalmente, novos mitos com vistas ao controle e a dominação social. Conforme os autores, “[a]
universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do
conceito, eleva-se fundamentada na dominação social. É a substituição da herança mágica, isto é, das
antigas representações difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada
com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação
com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador, e
essa verdade não pode substituir as rígidas diferenciações daquele pensamento ordenador” (p. 28).
86
agressivamente – seja temática e/ou formalmente – a sinistra in-significação da
realidade sem a luz de um novo mundo
193
.
Isso significa, então, que a história, para os pensadores ligados à teoria crítica,
não podia ser interpretada como um padrão contínuo. Ao contrário, ela tinha de ser vista
como um fenômeno aberto, cuja significação devia ser recolhida nas rupturas e tensões
que separam os indivíduos e as classes sociais dos imperativos da sociedade
dominante. Através dessa forma de encarar a história, o pensamento dialético substitui
as formas positivistas de investigação social. Em outras palavras, a lógica da
previsibilidade, da verificabilidade, da generalizabilidade e do operacionalismo é
substituída por um modelo dialético, que enfatiza as dimensões históricas, relacionais e
normativas de investigação social e do conhecimento
194
.
Uma obra de arte que obedece a um estilo fragmentário de composição presta-se
para desencadear uma proposta analítica e interpretativa semelhante aos critérios de
investigação histórica e social conforme apregoavam os críticos frankfurtianos. O texto
artístico, nesses moldes, ao levar em conta configurações do universo exterior como a
sociedade e a história, abre a possibilidade de se pôr em xeque as formas positivistas
de investigação social, promovendo, com isso, muitas vezes, o conhecimento e a
humanização. Conhecimento esse que, primeiro, instrui os oprimidos a respeito de sua
situação como grupo, situado dentro de relações específicas de dominação e
subordinação; segundo, ilumina como esses oprimidos poderiam desenvolver um
discurso livre das distorções de sua própria herança cultural parcialmente mutilada; e,
terceiro, visaria a uma decodificação radical da história com uma visão do futuro que
não apenas explodisse as reificações da sociedade existente, mas também atingisse
aqueles bolsões de desejos e necessidades que abrigam um anseio por uma sociedade
nova e por novas formas de relações sociais.
Esses pressupostos, aliás, remetem ao conceito de literatura engajada. O
engajamento, a rigor, implicaria uma reflexão do escritor sobre as relações que a
literatura trava com a política (e com a sociedade em geral) e, também, sobre os meios
específicos dos quais ela dispõe para fazer inscrever o político na sua obra. Nas
193
MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1969. p. 84.
194
Notas sobre pressupostos teóricos do pensamento crítico frankfurtiano merecem atenção em GIROUX,
Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Trad. Ângela Maria B. Biaggio. Rio de Janeiro: Vozes,
1986. p. 21-64.
87
composições literárias, conforme destaca Adorno, os rudimentos das significações
externas são o inevitavelmente desartístico da arte; no entanto, observa ele, não é neles
que se deve ler a sua lei formal, “e sim na dialética dos dois momentos”
195
. Em outros
termos, o escritor engajado deve fazer aparecer o seu engajamento ou, dito de outra
forma, deseja fazê-lo de maneira que a literatura, sem renunciar a nenhum dos seus
atributos, seja parte integrante do debate sócio-político. Isso não significa, entretanto,
conforme chama a atenção o autor, que a literatura se reduza à propaganda ou seja
panfletária ou tendenciosa
196
. A propaganda e o panfleto são, por si próprios, políticos; a
literatura engajada, em contrapartida, não recebe tal denominação: ela só o é em virtude
de uma necessidade secundária, qual seja, a de contribuir para uma mudança do real
pela recusa à passividade em relação ao seu inevitável envolvimento no mundo.
Os romances Zero, A festa, Reflexos do baile e Quatro-olhos,
considerando-se as aludidas coordenadas, são engajados. O que define tal
engajamento, a rigor, não é somente a relação que eles estabelecem com o político
ou com o social em âmbito temático, mas também formal. A forma é portadora de
sentido e, por isso mesmo, participa da iniciativa literária e do engajamento. As
mencionadas obras de Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Antonio Callado e
Renato Pompeu, nesse sentido, fogem àqueles traços do grande realismo do século
XIX. A linearidade dessas narrativas encontra-se quebrada em uma série de
fragmentos justapostos. Longe de apresentar a perfeita inteligibilidade do romance
tradicional, os enredos caracterizam-se pela obscuridade, pelas incertezas, sujeitas
a interpretações divergentes. Nesse particular, conforme complementa Benoît Denis,
o que o romance perde em legibilidade, ele ganha em eficácia: “a multiplicação e a
dispersão dos pontos de vista produzem a impressão de uma história em vias de se
fazer e a qual o leitor acompanha”
197
. Ainda de acordo com o autor, essa técnica
narrativa, longe de propor as respostas unívocas e constrangedoras dos romances
195
ADORNO, Theodor. Engagement. In: ____. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1991. p. 53.
196
Idem. p. 54. De acordo com o autor, “[a] arte engajada no seu sentido conciso não intenta instituir
medidas, atos legislativos, cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o
parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por uma atitude”.
197
DENIS, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Trad. Luiz Dagobert de Aguirra Roncari.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002. p. 91. Nessa citação, o vocábulo “história” tem sentido de fatos,
acontecimentos reais.
88
realistas, “produz uma narrativa abertamente problemática que convida o leitor ao
questionamento e ao trabalho crítico, etapa preliminar a todo engajamento”
198
.
198
Idem. Ibidem.
89
3 DESORDEM E FRAGMENTAÇÃO EM IGNÁCIO DE LOYOLA
BRANDÃO, IVAN ÂNGELO, ANTONIO CALLADO
E RENATO POMPEU
A idéia que eu tento retratar numa simples tela é a destruição da
mente humana através das inúmeras convulsões por que tem
passado.
(Bolero, Victor Giudice)
3.1 A situação de desenvolvimento do romance no Brasil
A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos
monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isto, alguns homens de
imaginação foram obrigados a inventar o romance. O homem, na
terra, nasce, vive e morre sem que lhe aconteça nenhuma dessas
aventuras pitorescas de que os livros estão cheios.
(Caminhos cruzados, Erico Verissimo)
3.1.1 O romance brasileiro: do romantismo ao modernismo
Nunca me julguei capaz de conduzir um romance até o fim, e no
entanto lá o pari em 20 dias. Como é canja escrever um romance!
Disse-o ontem ao Coelho Neto e ele amoitou.
(A barca de Gleyre, Monteiro Lobato)
O romance, no Brasil, surge na metade do século XIX como parte do projeto
literário do romantismo. Nessa época, o país vive o latifúndio, o escravismo e a
90
economia de exportação. Afora isso, ele segue a rota da monarquia conservadora após
um breve surto de erupções republicanas, amiudadas durante a Regência. Esse
período, que, a propósito, coincide com a vigência do Segundo Império, apresentou-se
com um projeto de infra-estrutura econômica nas suas fases iniciais de
desenvolvimento. Assim, carente do binômio urbano indústria-operário, a sociedade
brasileira contou, para a formação de sua inteligência, com os filhos de famílias
abastadas do campo, que iam receber instrução jurídica em São Paulo, Recife e Rio de
Janeiro, ou com filhos de comerciantes luso-brasileiros e de profissionais liberais, que
definiam a alta classe média do país. Nesse esquema, conforme observa Alfredo Bosi,
tem-se “o caráter seletivo da educação no Brasil-Império e, o que mais importa, a
absorção pelos melhores talentos de padrões culturais europeus refletidos na corte e
nas capitais provincianas”
199
.
As condições sociais do país, nesse momento, contribuíram, inclusive, para a
definição do público leitor. O romance romântico brasileiro dirigia-se a um público mais
restrito do que aquele surgido no final do século XX: eram rapazes e moças provindos
das classes altas e médias; eram profissionais liberais da corte ou dispersos pela
província; enfim, era um tipo de leitor à procura de entretenimento, ávido por novidades
e cioso de estar em comunhão com a moda
200
. As aludidas exigências estabelecidas
pelo público, aliás, foram decisivas para que o gênero romanesco se consubstanciasse
e ganhasse força.
Inúmeros fatores colaboraram para a afirmação do romance. Um deles foi a sua
aliança com o jornal, que o publicava em capítulos sob a forma de folhetins. No final do
século XVIII e início do XIX (assim como hoje), para que um jornal conseguisse
anúncios, ele precisava dispor de leitores. Uma das estratégias para satisfazer tal
exigência era contratar escritores que produzissem romances cujo assunto interessasse
ao público. Assim, os folhetins, publicados aos pedaços, mantinham os leitores em
suspense por vários números de jornal. Apenas em 1808, com a chegada da corte
portuguesa ao Rio de Janeiro, o Brasil passa a dispor de uma imprensa, elemento
fundamental para que o país ingressasse na era da publicação e da leitura em massa.
199
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 92.
200
Idem. p. 128.
91
Depois da publicação parcelada de uma história no jornal, esta passou a ser editada em
volume, constituindo, com isso, o romance
201
.
A produção compreendida entre as décadas de 30 e 40 dos oitocentos conta com
uma ampla divulgação de folhetins. Uma trama recheada de incidentes que despertasse
o gosto dos leitores era condição suficiente para a legitimação do bom romance. À
medida que os narradores iam ajustando à paisagem e ao meio nacional os esquemas
de surpresa e de um fim feliz dos modelos europeus, o “público acrescia ao prazer da
urdidura e do reconhecimento ou da auto-idealização”
202
. Dentro desse quadro da
época, são exemplares os romances de Joaquim Manuel de Macedo e de José de
Alencar. Em 1844, o autor de A moreninha obtém reconhecimento junto ao público,
reproduzindo, em seu texto, personagens familiares, peripécias e sentimentos
enredados e poéticos, hábitos e costumes, de acordo com as necessidades médias de
seus leitores numa sociedade urbana em formação. No entanto, coube a Alencar a
criação de um projeto que cumprisse não somente com as exigências em questão, mas
também com a edificação de uma literatura nacional.
A ambição do projeto literário arquitetado por Alencar incidia numa tentativa de
mapeamento da história, da geografia e da sociedade do Brasil. Importava ao autor
cobrir, com a sua vasta obra, o passado e o presente, o litoral e o sertão, a cidade e o
campo, enfim, compor uma espécie de suma romanesca. Dentre seus romances, O
guarani (1857), Iracema (1865) e, entre outros, Ubirajara (1875) procuram atingir as
coordenadas históricas do país, através de relatos históricos e indianistas, situados na
era colonial. O gaúcho (1870) e O sertanejo (1875), só para citar dois, celebram os
encantos regionais e retratam paisagens distantes e pouco conhecidas pelo público. Os
seus romances urbanos, dentre os mais populares Lucíola (1862) e Senhora (1875),
apresentam a vida cotidiana do Rio de Janeiro: no primeiro, tem-se a impossibilidade de
união entre dois grupos distintos, o marginal e o burguês; no segundo, o casamento por
interesse, um dos poucos instrumentos de ascensão econômica na sociedade da época.
O escritor cearense foi importante para as letras nacionais. Ele consolidou o
romance brasileiro ao escrever movido por um sentimento de missão patriótica. Afora
isso, questionou os problemas de autonomia da literatura aqui produzida, procurando
separá-la da influência portuguesa – ainda que, às vezes, ele próprio caísse em padrões
201
LAJOLO, Marisa. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 35-41.
202
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 129.
92
franceses e ingleses. Ademais, problematizou a questão da língua brasileira e, durante
toda a sua carreira, quis descobrir a essência da nacionalidade. Seu esforço de
totalização não se deu de maneira satisfatória
203
, entretanto abriu caminho para os
escritores que se seguiram, já que a idéia de um romance ou um conjunto de romances
capazes de representar o país ainda perturbou futuros literatos. De qualquer modo, a
ficção romântica não apenas lançou as bases para se criar uma tradição do romance
dentro da literatura nacional, mas, conforme atesta Antonio Candido, importou “como
tomada de consciência da realidade brasileira no plano da arte”
204
.
Assim, a poesia social de Castro Alves e Sousândrade, o romance nordestino de
Franklin Távora e mesmo a última ficção urbana de Alencar, embora em termos
românticos, já denunciavam um Brasil em crise. A partir de 1850, com a extinção do
tráfico negreiro, acelera-se a decadência da economia açucareira; o deslocar-se do eixo
de prestígio para o pólo sul e os anseios das classes médias urbanas compunham um
novo quadro para o país, propício ao fermento de idéias liberais, abolicionistas e
republicanas. Os anos 1860, aliás, foram importantes para a preparação de uma ruptura
mental com o regime escravocrata e as instituições políticas que o sustentavam. O
resultado dessas críticas já estava nas páginas de um espírito realista e democrático.
Ou seja, os suportes do romantismo – fundados numa série de mitos idealizantes – dão
lugar para um processo de crítica na literatura. Com isso, o último quartel dos oitocentos
vê brotar uma geração que busca firmar uma visão crítica das várias faces da realidade
brasileira. Nesse esquema, são exemplares as obras Memórias póstumas de Brás
Cubas (1881), de Machado de Assis, O ateneu (1888), de Raul Pompéia e O cortiço
(1890), de Aluísio de Azevedo.
203
Entre o projeto de Alencar e a sua realização, há um vácuo do qual resultam alguns equívocos.
Equívocos nascidos de suas ligações com os modelos literários europeus, que, juntamente com suas
próprias idéias a respeito da sociedade, acabaram por anular parte da eficácia e da vitalidade das
narrativas. Quanto aos romances tipicamente históricos, pode-se afirmar que pouco têm a ver com fatos
ocorridos concretamente no passado. As narrativas indianistas delimitam-se por uma valorização do nativo
enquanto elemento útil para a civilização branca. Além disso, o índio é glorificado quando perde sua
identidade, sua cultura, integrando-se na cultura dos conquistadores europeus. Os romances regionalistas,
a rigor, não fornecem um quadro realista da ambiência rural, sacrificando os costumes fazendeiros ao
convencionalismo de histórias folhetinescas. Ademais, a sua linguagem mantém o padrão urbano, pouco
valorizando as particularidades lingüísticas da região enfocada. Nos romances urbanos, o escritor tentou
retratar a duplicidade entre os bons costumes europeus imitados na corte e a mediocridade da vida local.
No entanto, faltou-lhe clareza ideológica. Seus relatos urbanos são tão contraditórios quanto a sociedade
que procurou representar. Oscilam entre a estrutura de folhetins e a percepção da realidade brasileira.
Essa, entretanto, era de tal forma pobre que não bastaria para um romancista seduzido pela idéia de
grandeza. Por isso mesmo, procurou inventar paixões violentas e renúncias sublimes, o que geralmente
compromete suas narrativas com valores importados.
204
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. Vol. II. p.
114.
93
Os primeiros três decênios do século XX, a rigor, dão continuidade ao projeto de
crítica social iniciado nas últimas décadas do século XIX. O quadro geral da sociedade
brasileira vai se transformando graças ao processo de urbanização, o crescimento
industrial e a imigração. Simultaneamente, emerge uma massa popular insatisfeita e
propensa a revoltas. Na zona rural, observam-se cisões dentro das classes dominantes,
conflitos esses resultantes de embates ideológicos. Assim, o primeiro quartel do século
XX, embora conservasse resíduos culturais da centúria anterior, almejava por um
projeto de redescoberta do Brasil. Ou seja, os escritores dessa época ensejavam uma
reinterpretação social do atraso e da miséria do país. Euclides da Cunha, por exemplo,
em Os sertões (1902), não apenas denuncia o massacre do povo sertanejo, em
Canudos, mas revela a falta de progresso tecnológico naquela região; Lima Barreto, em
Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), além de representar os anos conturbados
da Primeira República, critica a miséria e os problemas brasileiros; Monteiro Lobato, em
Cidades mortas (1920), desenha a pequena cidade decadente do Vale do Paraíba,
onde brilhara a civilização do café. Conforme observa Antonio Candido, a literatura,
nesse período, em particular através da ficção, adquire “uma força desmistificadora que
precede a tomada de consciência dos economistas e políticos”
205
. Nesse estágio,
complementa o ensaísta, a matéria novelística expressa uma pré-consciência do
subdesenvolvimento, o que contribui para a análise crítica da realidade.
Tal posicionamento, aliás, é recorrente nos anos subseqüentes à Semana de
Arte Moderna de 1922. O modernismo significou, em linhas gerais, uma atitude de
renovação das letras nacionais, algo que coincidiu, além do experimentalismo estético
dos melhores artistas, com um olhar renovado acerca da realidade do país. De acordo
com Antonio Candido, a cultura brasileira resguarda uma ambigüidade fundamental: ela
é caudatária de elementos próprios de um povo latino, de herança cultural européia,
mas etnicamente mestiço, situado nos trópicos, influenciado por culturas primitivas,
ameríndias e africanas. Tal caracterização, segundo atesta o autor, deu sempre às
afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se resolvia pela
idealização. O modernismo rompe com esse estado de coisas. As deficiências, supostas
ou reais, aqui alojadas, são reinterpretadas como superioridades. Nesse particular, o
crítico faz referência a Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, obra central e mais
característica do movimento, que traz em seu bojo lendas de índios, ditados populares,
205
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández (Org.). América
Latina em sua literatura. Trad. Luiz João Cais. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 345.
94
obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular, comportamentos frente ao
europeu, “mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial
correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que precisava adquirir estado de
literatura”
206
.
Dentro do quadro em questão, o romance de 30, ao que parece, presta-se para
dar conta dos abalos que a vida brasileira experimenta nessa época. A crise cafeeira, a
Revolução, o declínio no nordeste e as fendas nas estruturas locais condicionaram
novos estilos ficcionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfim “por
uma retomada do naturalismo, bastante funcional no plano da narração-documento que
então prevaleceria”
207
. Nesse ponto, portanto, o modernismo retoma e aprofunda uma
tradição que vem de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato, qual seja a de
denunciar um Brasil arcaico, regido por uma política ineficaz e incompetente.
João Luiz Lafetá confere destaque a uma diferença básica que se pode constatar
na literatura dos primeiros anos do movimento modernista de 1922 e aquela que se
segue à Revolução. Na primeira, a ênfase recai sobre a linguagem. O que o autor
chama de projeto estético desdobra-se num estilo que vai de encontro à linguagem
tradicional herdada dos românticos, parnasianos ou simbolistas, propondo, com isso,
uma avaliação e uma tentativa de renovação dos meios. Já o projeto ideológico, mais
observado nos romances daqueles escritores que surgiram depois de 1930, fica por
conta da observância da função da literatura e do papel do artista, buscando estabelecer
ligações entre ideologia e arte. Não que um existe descolado do outro, acontece que,
enquanto nos anos 20, o projeto ideológico correspondia à necessidade de atualização
das estruturas, proposta por frações das classes dominantes; nos anos 30, tal projeto
transborda os quadros da burguesia, principalmente em direção às concepções
esquerdistas, implicando, aí, denúncia dos males sociais, descrição do operariado e do
camponês
208
.
A visão crítica das relações sociais, reservada aos escritores que se firmaram
depois de 1930, aloja-se naquelas obras que retratam o subdesenvolvimento e a miséria
da região que elegem para projetar as suas denúncias. Dentro do âmbito da literatura
brasileira desse intervalo de tempo, conforme salienta Fábio Lucas, “[t]alvez o conjunto
206
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T.
A. Queiroz, 2000. p. 120.
207
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 389.
208
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 11-27.
95
de romances do nordeste constitua o documento mais enfático da disparidade social do
país, pois a situação geográfica e histórica da região, de uma pobreza heróica e
dependente, facilmente pode gerar mais vivamente o sentimento de protesto”
209
. Nesse
rol, destacam-se os livros A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, O quinze
(1930), de Rachel de Queiroz, Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego e,
dentre outros, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos.
A crítica social não se restringe somente a obras que denunciam as mazelas do
ambiente rural. A vida dos trabalhadores que habitam o espaço urbano faz-se presente
também em alguns romances do período. Nesse momento, a sociedade vive algumas
mudanças, em especial devido aos surtos industriais que se observam a partir da
Primeira Guerra Mundial. A cidade começa a ser um atrativo para aqueles que se vêem
em meio a um processo de desvalorização do trabalho no campo. Os camponeses, com
isso, se deslocam para perto das fábricas, mas nem sempre suas expectativas são
preenchidas satisfatoriamente. Talvez os principais livros que dedicam atenção aos
aludidos aspectos sejam Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão e Os ratos
(1934), de Dyonélio Machado. O primeiro, não obstante se centralize principalmente em
personagens femininos, tenta abranger a coletividade operária, inserindo forte
conotação política na sua defesa do proletariado industrial, denunciando num tom
cadente a ordem social injusta. O segundo revela o cotidiano da classe média urbana,
instável financeiramente, vivendo dos meios mínimos. O tema é o do aprisionamento
pela dívida, o drama da necessidade.
Embora vários romancistas de 30 continuassem produzindo durante as décadas
de 1950 e 1960, entre os quais Erico Verissimo, Rachel de Queiroz, Cyro Martins e
Otávio de Faria, observaram-se, no campo da prosa, duas tendências principais que
dominaram a literatura brasileira naquele intervalo de tempo subseqüente ao Governo
Vargas. Por um lado, está a nova narrativa de expressão agrária, que rompe com os
padrões tradicionais da ficção aqui produzida, tanto do século XIX quanto do
denominado romance de 30; por outro, tem-se um surto de obras de temática urbana,
ora de caráter realista, ora tendendo para o simbólico/alegórico.
Guimarães Rosa é o principal nome que estréia dentro daquela primeira vertente.
Suas obras fixam os mundos agrários do sertão, o qual experimenta o avanço da
209
LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Quíron, 1976. p. 76.
96
civilização racionalista, tecnológica, urbana e capitalista que se desloca da costa rumo
ao interior. Valendo-se de velhos temas da cultura ocidental, o autor dispõe de uma
linguagem em que há uma forte e clara presença, ainda que às vezes residual, da
variante caboclo-sertaneja da língua portuguesa. Clarice Lispector, por seu turno, marca
presença na ficção urbana da época. Procurando refletir acerca do mal-estar social e/ou
espiritual, a escritora lança mão de recursos como a metáfora insólita, o fluxo de
consciência e a ruptura com o enredo factual. Não só isso, seus textos, carregados de
feição psicológica, prestam-se para uma análise das angústias e dos dramas
existenciais dos personagens que mergulham para dentro de seu mundo interior.
João Alexandre Barbosa observa, a propósito, que Guimarães Rosa e Clarice
Lispector estendem a linha de modernidade do romance brasileiro surgida, no século
XIX, com Machado de Assis e continuada, no século XX, com Oswald de Andrade,
Mário de Andrade e Graciliano Ramos. Tanto o autor de Grande serão: veredas (1956)
quanto a escritora de A paixão segundo G. H. (1964) emprestam às suas narrativas o
desajuste entre a realidade e a sua representação, descompasso esse que se traduz
numa nova articulação estampada na forma ou na estrutura das obras. O crítico aponta
um caráter de desalinhamento que se consubstancia nos livros dos aludidos autores em
relação às expressões romanescas consagradas ao longo do século XIX
210
.
Nesse recorte temporal, em que se tem em conta o realismo oitocentista ou mais
propriamente o naturalismo, o que, em linhas gerais, caracteriza o romance é a sua
estrutura unilinear, o seu espaço cenográfico, o seu tempo estático e, ainda, a sua visão
objetivista quanto aos personagens, acontecimentos e situações
211
. Segundo João
Alexandre Barbosa, a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881,
por Machado de Assis, ao romper com o padrão realista de representação estética, forja
novos procedimentos narrativos:
[s]em escamotear no nível dos enunciados, aglutinando temas e
motivos de seu tempo, é no nível da enunciação que Machado de Assis
deixa as marcas de um descompasso permanente entre escritor e
realidade, apontando para uma desarticulação básica que a sua
linguagem de elipse, litotes e paradoxos procura resgatar sob a finura
do humor e da descrença. De tal maneira transformou o cânon do
210
BARBOSA, João Alexandre. A modernidade do romance. In: PROENÇA FILHO, Domício (Org.). O livro
do seminário. São Paulo: L R Editores Ltda, 1983. p. 21-42.
211
Cf. NUNES, Benedito. Reflexões sobre o moderno romance brasileiro. In: PROENÇA FILHO, Domício
(Org.). O livro do seminário. São Paulo: L R Editores Ltda, 1983. p. 46.
97
Romance nos acanhados limites de nosso sistema literário, que é até
mesmo com dificuldade que ainda falamos de romance em seu caso.
Melhor seria, talvez, falar de uma escrita ficcionalizada tal a força com
que ressalta, no próprio cerne da composição, a consciência agudizada
dos mecanismos ficcionais. Os seus textos, a partir daquele de 1881,
são organizações complexas resultantes de uma lenta e conquistada
imersão nos desvãos da linguagem. Nada, por isso, lhe é estranho:
alusões, paródias, humor, ironia, tudo nos domínios de uma história
contaminada pela consciência das desarticulações entre representação
e realidade
212
.
Não que cada um dos autores referidos por Barbosa não apresentem
particularidades próprias que os individualizam dentro da série literária, acontece,
entretanto, que a visão do crítico pauta-se na recuperação de traços comuns entre eles,
o que permite classificar as suas obras como modernas. Assim, Machado de Assis
inaugura, em 1881, uma tradição cujos traços vão culminar em expressões romanescas
do início do século seguinte. Na década de 1920, em meio a uma ordem de valores
sustentada pelas vanguardas, Oswald de Andrade e Mário de Andrade reproduzem
textos que não dispensam tais elementos. Mais tarde, cabe a Graciliano Ramos fazer
uso das modalidades em questão, para dar seqüência ao ciclo em andamento. Por fim,
essa tendência engloba Guimarães Rosa e Clarice Lispector nas décadas de 1950 e
1960.
Pelo que foi arrolado, o padrão romanesco, quando na ocasião de seu
surgimento no Brasil, segue a trilha de um modelo realista de composição. Assim, no
início do século XIX, as obras costumam empregar procedimentos como a seqüência
cronológica dos eventos e a articulação causal entre tais acontecimentos num espaço
definido. Afora isso, observou-se que, a partir do último quartel dos oitocentos até a
primeira metade do século XX, mais ou menos, as produções literárias deixam de lado
os aludidos traços e passam a orientar-se por uma forma moderna de construção.
Ademais, conforme se verificou, os textos literários, de modo preponderante, procuram
responder a questões vinculadas à realidade nacional. Nesse particular, as produções
ficcionais buscam registrar, de maneira bastante enfática, marcas do atraso sócio-
econômico do país. A passagem de um padrão de representação para outro implica,
pode-se dizer, uma maior aproximação das letras brasileiras às circunstâncias da
realidade social e histórica. Enquanto que, nas obras realistas, a visão, muitas vezes, se
212
BARBOSA, João Alexandre. A modernidade do romance. In: PROENÇA FILHO, Domício (Org.). O livro
do seminário. São Paulo: L R Editores Ltda, 1983. p. 24-25.
98
torna unilateral, nas produções ditas modernas, tem-se uma abertura maior de
interpretação, condicionada pela forma, algo que coincide com uma correspondência
mais larga com o real.
Analisado esse segmento da produção literária no Brasil, resta avaliar o seu
condicionamento nos anos que se seguiram a 1964, marco esse que se caracteriza por
intensas agitações internas, mas também por calorosos debates e inovações no campo
artístico.
3.1.2 O romance brasileiro na contemporaneidade
De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram
assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas
ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas,
escurecendo, abafando. Até hoje o sabemos se eles foram
construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos de longe já prontos e
fincados aí.
(Sombra de reis barbudos, José J. Veiga)
Em 1964, instalou-se, no Brasil, a Ditadura Militar. Não obstante a censura em
curso, a presença cultural da esquerda, pelo menos num primeiro momento, não foi
liquidada. A censura determinou, em grande parte, os padrões de produção e de
consumo de cultura no país, entretanto, apesar da ditadura da direita, houve relativa
hegemonia cultural da esquerda. O domínio de tal cultura, aliás, concentrou-se nos
grupos diretamente ligados à produção ideológica tais como, dentre outros, estudantes,
artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas e, mesmo, arquitetos. Enfim,
era uma nova produção intelectual que começava a se desenraizar e a reorientar a sua
relação com as massas nesse conturbado contexto dos anos 70
213
.
Dentro desse quadro de época, assinalado por antagonismos sociais e
ideológicos, a preocupação maior incide nos rumos da literatura de ficção. O regime
militar aqui instaurado afetou a atividade intelectual e limitou as possibilidades de
expressão. No entanto, conforme pesquisa realizada por Tânia Pellegrini, isso não
213
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: ____. Cultura e política. São Paulo: Paz e
Terra, 2001. p. 7-55.
99
significou que críticos, intelectuais e produtores da cultura do período tenham
concordado com a idéia de que a censura tenha deixado frutos no romance brasileiro
produzido naquele momento. De acordo com a autora, há os que acreditam que o efeito
censório foi relativo, tendo sido inclusive usado como desculpa para a falta de
criatividade artística. Contudo, o que predomina, segundo a pesquisadora, é o
argumento oposto. A censura teria provocado um absoluto efeito castrador sobre a
criação e a expressão literária
214
. Esse posicionamento, aliás, é defendido por Silviano
Santiago.
De acordo com o autor, é difícil avaliar com precisão o impacto da censura e da
repressão no campo das artes. O estudioso enfatiza que tais mecanismos de cooptação
não afetaram, em termos quantitativos, a produção cultural brasileira, mas esta teria
experimentado certos desvios formais que acabaram sendo característicos das obras do
tempo. Nesse particular, Santiago confere destaque a dois tipos de livro que tiveram
êxito durante o período em questão: os do realismo mágico e os romances-reportagem.
Os primeiros, através de um discurso metafórico e de lógica onírica, pretendem, crítica e
mascaradamente, dramatizar situações passíveis de censura; os outros teriam como
intenção fundamental desficcionalizar o texto literário e, com isso, influir com
contundência no processo de revelação do real. No caso do realismo mágico, o ensaísta
destaca nomes como Murilo Rubião, Erico Verissimo e José J. Veiga; em relação à
outra modalidade, têm-se José Louzeiro e Plínio Marcos
215
.
Afora os comentários acerca das expressões estéticas que surgem enquanto
modalidade artística naquele espaço de tempo, o mesmo Santiago desenvolve
considerações a respeito das temáticas a que muitos romancistas dedicaram atenção.
Segundo seus argumentos, grande parte da literatura brasileira pós-64 abriu campo
para “uma crítica radical e fulminante de toda e qualquer forma de autoritarismo”, em
especial aquela que, na América Latina, tem sido pregada por forças militares quando
ocupavam o poder, “em teses que se camuflam pelas leis de segurança nacional”
216
. Em
outros termos, a descoberta assustadora e indignada da violência do poder é a principal
característica da literatura desse período.
214
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos, SP: EDUFSCar, 1996.
p. 10-11.
215
SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In: ____. Vale
quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 47-55.
216
SANTIAGO, Silviano. Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64. In: ____. Nas malhas da letra:
ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 14.
100
Além disso, para descrever o poder reacionário como algo concreto, o artista
brasileiro procurou distanciar-se dele. Por isso, a postura política na literatura pós-64
incide no descompromisso para todo e qualquer esforço desenvolvimentista para o país,
para com todo programa de integração ou de planificação de ordem nacional.
Conseqüentemente, segundo o autor, a literatura pós-Golpe Militar “não carrega mais o
antigo otimismo social que edificava, encontrado em toda a literatura política que lhe é
anterior”
217
. Isso, na concepção de Santiago, é razão para que o texto literário deixe de
lado os tons grandiloqüentes e os exercícios de alta retórica: “[a] boa literatura pós-64
prefere se insinuar como rachadura em concreto, com voz baixa e divertida, em tom
menor e coloquial”
218
. Isso, aliás, propiciaria a desconstrução do conceito de alegria,
cujo intuito era retirar a produção artística da pura negatividade, bem como do espírito
de ressentimento. Conforme o ensaísta, “[a] alegria desabrochou tanto no deboche
quanto na gargalhada, tanto na paródia e no circo quanto no corpo humano que
buscava a plenitude do prazer e gozo na própria dor”
219
.
Essa mistura de ironia, humor, anarquismo e paródia, que se observou na
literatura, mas que esteve enraizada no terreno da música popular, principalmente nos
anos 1967 e 1968, gerou um movimento conhecido como Tropicalismo. Retomando
basicamente os princípios da Antropofagia, os tropicalistas procuravam sempre salientar
a crítica à esquerda intelectualizada, à sedução dos meios de comunicação de massa, o
retrato da realidade urbana e industrial. Enfim, eles trazem a público situações
contraditórias do painel histórico brasileiro, presentificando as indefinições e as
disparidades do país, em que convivem traços arcaicos e modernos, além de optarem
por uma atitude de denúncia à fome, à falta de liberdade e às desigualdades sociais.
Para tanto, seus representantes fixam-se na montagem de fragmentos do dia-a-dia, na
justaposição de idéias, imagens e citações
220
.
Parte da produção literária que se desenvolve na época em questão, embora
manifeste particularidades que lhe são próprias, não estaria desvinculada da produção
anterior. Os romancistas dos anos 1970 não invalidam as afirmações previamente feitas;
ao contrário, em muitos casos, valem-se de determinados aspectos das criações
passadas, buscando acompanhar e dar objetividade literária à evolução cultural do
217
Idem. p. 21.
218
Idem. Ibidem.
219
Idem. p. 26.
220
O assunto merece atenção em FERREIRA, Sérgio. Caetano e a canção tropicalista. In: MALTZ, Bina et
al. Antropofagia e tropicalismo. Porto Alegre: UFRGS, 1993. p. 73-101.
101
momento. Segundo Janete Gaspar Machado, as experiências estéticas dos anos 20, o
romance de 30, a geração de 45 e as vanguardas de 50 e 60 teriam contribuído, de
alguma forma, para o aparecimento do que se convencionou chamar de literatura
contemporânea.
Segundo a autora, as vanguardas de 1922, por não apresentarem
homogeneidade de princípios, misturando-se às mais diversas concepções,
conquistaram a liberdade criadora para os meios expressivos. Assim, não se pode
ignorar as propostas futuristas, surrealistas e dadaístas no entrecho de textos
contemporâneos. O romance de 30, por sua vez, empresta à literatura dos anos 70 a
temática do subdesenvolvimento cultural e a denúncia de seu tempo, algo que se
observa nos romances mais recentes. A geração de 45 constitui um retorno aos valores
poéticos parnasianos, privilegiando a palavra, o verso, o ritmo, a harmonia métrica, a
rima em um fazer literário classificado como a soma de pesquisa de lirismo. No que diz
respeito à contribuição das vanguardas de 50 e 60, a poesia concreta, a poesia práxis e
o poema processo mostram que é possível, ao menos teoricamente, lidar com o lúdico e
a consciência crítica simultaneamente, transformando a poesia numa obra de
linguagem
221
. Em suma,
[q]uer se trate dos vanguardistas de 20, quer se trate da geração de 45
ou das vanguardas de 50 e 60, muito se deve, a esses antecessores, o
fato de se ter chegado, em muitos romancistas da década de 70, a um
nível de manipulação estética onde já não se privilegia só a forma, a
exemplo de 45, ou só o conteúdo, como no romance de 30. Mas, sim, a
ambos simultaneamente, de modo que, não havendo distinção, se
tornem um só elemento. Forma e conteúdo, dependentes um do outro,
condicionam-se reciprocamente e operam, juntos, em direção à mesma
finalidade criativa e crítica
222
.
As aludidas constatações desenvolvidas por Machado prestam-se para viabilizar
a idéia de que a produção romanesca contemporânea ajusta os recursos estéticos às
atuais condições da realidade social. Isso significa que, em meio ao absurdo da vida, os
principais aspectos que modelam a composição literária mais recente erigem enquanto
resposta à fragmentação cultural que define o contexto. Conforme a autora, “[a] busca
221
MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética.
Florianópolis: UFSC, 1981. p. 29-38.
222
Idem. p. 37-38.
102
do novo nada mais é, então, do que o necessário esforço de encontrar a melhor maneira
de comportar a fissura, o caótico, a fragmentação do momento”
223
.
Assim, a manifestação da prosa ficcional, a partir de 70, demonstra uma fértil
variedade. No início da época, registram-se alguns recortes oriundos da tradição de 30,
que dividem a cena literária com outras ordens expressivas que se constituem em torno
de autores em fase de afirmação. No grupo das renovações, a crônica da ditadura
expande-se de modo expressivo. Com ela, ocorre um aumento das expressões
autobiográficas e memorialísticas, a que se acrescem algumas propostas de andamento
monótono e outras mais eletrizantes, construídas de acordo com técnicas da
justaposição e da montagem. Ao longo dos 70, nomes antigos e recentes alternam-se
no panorama dos autores tais como Erico Veríssimo, Pedro Nava, Márcio Souza,
Fernando Gabeira, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo e Roberto Drummond.
Afora tais tendências, a narrativa dos anos 70 se pauta em outros recursos
calcados no indefectível incremento da cultura de massa e de uma vultosa expansão de
projetos jornalísticos. Como decorrência disso, registram-se, nesse recorte da produção
ficcional, adaptações da linguagem publicitária e objetivos cinematográficos que se
ajustam, muitas vezes, a paródias ou paráfrases satíricas e/ou críticas.
A relação entre o discurso jornalístico e o literário, no romance brasileiro dos
anos 70, é evidenciada não somente pela razão de a maioria dos homens de letras
serem concomitantemente escritores e jornalistas, como também pela existência da
crônica, cujo estatuto narrativo caminha entre o jornalismo e a literatura
224
. O romance-
reportagem apresenta, dentre suas características, uma narrativa construída sobre fatos
comprováveis, à maneira de uma reportagem, mas que resguarda uma conotação
particular como se fosse romance. Afora isso, ele, algumas vezes, banaliza-se como
relato dos acontecimentos da vida cotidiana, confundindo-se com uma crônica. Por
cobrir várias narrativas que, não sendo inteiramente reportagem, nem romance, nem
crônica, habita as fronteiras do jornalismo com a literatura e, por esse motivo, não
pertence ao centro, mas às bordas do discurso literário
225
.
223
Idem. p. 28.
224
COSSON, Rildo. Uma outra história: sobre as relações do jornalismo com a literatura na década de 70.
Letras de hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 305-312, jun., 2001. p. 305.
225
COSSON, Rildo. Do romance-reportagem como gênero. In: LOPES, Cícero (Org.). Textos e
personagens: estudos de literatura brasileira. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1995. p. 76.
103
De acordo com Rildo Cosson, a expressão romance-reportagem encontrou
terreno fértil para prosperação na década de 1970, sendo usada livremente pela crítica
literária para designar toda narrativa na qual imperasse uma mistura de realidade com
ficção. O uso do aludido termo foi tão largo que passou a designar três acepções
básicas. Num primeiro momento, o vocábulo é definido como um modo de narrar
tomado de empréstimo ou, simplesmente, imitado da literatura norte-americana.
Segundo os críticos que defendem essa acepção, tal filiação poderia ser comprovada
pelas semelhanças existentes entre o romance de não-ficção, de Truman Capote,
notadamente, e o romance-reportagem brasileiro de 70. Nesse particular, dentre suas
marcas constitutivas, destaca-se a objetividade da linguagem, sempre parajornalística, e
a obediência estreita aos fatos, normalmente retirados de uma manchete e
aprofundados pelo autor em seu livro
226
.
Numa segunda definição, conforme argumentos de Cosson, o romance-
reportagem não seria um modo particular de narrar, mas uma das características
dominantes da literatura brasileira da referida década. Tal característica consistiria no
efeito mais evidente da migração jornalística que, pela força da censura e da coerção
política impostas pela ditadura, levou repórteres a buscarem na literatura o espaço que
lhes era negado no jornalismo. Essa modalidade de gênero, entremeada de jornalismo,
recebeu o papel de resistir politicamente às arbitrariedades do regime ditatorial e,
também, à ação da censura nos jornais e em outros meios de comunicação,
denunciando e revelando as verdades omitidas no silêncio, a história mascarada pela
versão oficial
227
.
A terceira baliza prefere explicar o romance-reportagem como a união dessas
duas posições. Isso é, uma razão externa – as condições sócio-históricas da época –
conjugada a uma razão interna ao sistema literário – a literatura norte-americana –
fazem nascer o romance-reportagem como uma maneira de narrar que expressa,
inclusive, as características fundamentais da literatura brasileira naquele recorte de
tempo
228
.
Considerando-se tais particularidades, pode-se admitir teoricamente a existência
do romance-reportagem como gênero. Ele seria o resultado da intersecção das marcas
226
Idem. p. 77.
227
Idem. Ibidem.
228
Idem. p. 78.
104
constitutivas e condicionadoras da narrativa romanesca e da narrativa jornalística.
Entretanto, tal entrecruzamento de marcas não é condição suficiente para garantir a
existência de um novo gênero. Para tanto, faz-se mister que as referidas marcas
interseccionadas adquiram autonomia e correlação própria frente aos seus gêneros de
origem, como parece acontecer no caso do romance-reportagem.
Embora o testemunho de uma realidade efetiva seja uma das características que
se destaca como determinante num romance-reportagem, a verdade factual não é
sustentada pelo cruzamento de informações, pelo controle da subjetividade do repórter
ou pela objetividade do relato. Essa verdade factual constrói-se pela mímese e legitima-
se pela verossimilhança. Com isso, então, a narrativa da modalidade em questão
constitui-se numa totalidade que conjuga os fatos da realidade em uma história,
transformando pessoas em personagens e ordenando os acontecimentos segundo as
necessidades de coerência interna de seu discurso
229
.
Essa instauração da verdade factual, mediada pela mímese e pela
verossimilhança, verifica-se, conforme Davi Arrigucci Jr., através da marca sintática do
romance-reportagem que são os recursos narrativos realistas
230
. Tomados de
empréstimo ao romance realista do final do século XIX, os processos narrativos do
romance-reportagem são responsáveis não apenas pela sustentação da verdade
factual, como também pela participação do narrador no relato. Tal participação,
camuflada pelos processos narrativos realistas, constitui-se na marca pragmática do
romance-reportagem como gênero: a denúncia social. Nesse sentido, segundo Rildo
Cosson,
[p]or meio da denúncia social, o narrador impõe um fim à sua narrativa
que é atingir a consciência do leitor, conquistando-o para sua causa.
Para tanto utiliza-se de vários meios que vão da conhecida intrusão do
narrador, através de suas reflexões ou digressões, até contrastes
antitéticos entre o mundo dos ricos e o dos pobres, passando pelo
diálogo e pelo monólogo interior dos personagens. Todavia, para além
da simples comoção do leitor e da participação intrusiva do narrador no
relato, a denúncia social do romance-reportagem apresenta-se, para o
narrador, como uma oportunidade de acusar e censurar a sociedade,
229
Idem. p. 80.
230
ARRIGUCCI JR., Davi. Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente. In: ____. Outros
achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. De acordo com o autor, “na ficção de 70
para cá apareceu uma tendência muito forte, um desejo muito forte de voltar à literatura mimética, de fazer
literatura próxima do realismo, quer dizer, que leve em conta a verossimilhança realista. E com um lastro
muito forte de documento” (p. 77).
105
assim como também um meio de livrar-se da sua culpa de mero
espectador. Denunciando através da narrativa, o narrador redime-se de
suas faltas sociais ao mesmo tempo que as assume publicamente,
porém ele não se quer sozinho no tribunal que seu relato instaura. Por
isso, convoca a sociedade, como narratária, para perceber a parte que
lhe cabe nas acusações que ele, narrador, está disposto a fazer como
testemunho e confissão
231
.
Em todo caso, em conseqüência da interação das aludidas marcas – a verdade
factual, os processos narrativos realistas e a denúncia social –, o romance-reportagem
deixa de ser uma narrativa só de informação (reportagem), para ser também um ato de
comunicação (romance), em que o leitor é solicitado a dialogar como narrador,
ocupando, para tanto, o lugar da sociedade a que ambos pertencem.
Afora tais considerações, o ensaísta em questão vai adiante procurando frisar a
hipótese de que mais que as pressões imediatas da censura, um suposto retorno ao
naturalismo e o desejo de atingir a condição de escritor, “os jornalistas migravam em
direção à literatura por causa das transformações estruturais da imprensa brasileira”.
Em outros termos, a migração jornalística verificada nos anos 70 teve como força de
maior propulsão o estreitamento, se não o desaparecimento, dos espaços de
convivência entre literatura e jornalismo no campo jornalístico, isto é, “as transformações
que levaram o jornalismo a integrar-se definitivamente à indústria cultural”
232
.
A partir dessa base, observa-se que a expressão romanesca que se avigora
entre os anos 70 e 80 comporta uma diversidade de matizes que se armam em função
de suas propostas compositivas. Os textos desse período apresentam, afora os
recursos já empregados em obras anteriores, outros desenvolvidos com mais ênfase na
fase em curso. No primeiro caso, têm-se os moldes oriundos do realismo crítico, da
narrativa moderna de inspiração vanguardista e do estilo referencial-jornalístico. No
segundo, estão o experimentalismo lingüístico e variações do gênero maravilhoso.
Além dessas modalidades, a ficção pós-64 conta com uma variedade de obras
que se enquadram dentro de uma tendência que se pode denominar alegórica. De
acordo com Tânia Pellegrini, o contexto dessa ficção está marcado, de modo geral, por
231
COSSON, Rildo. Do romance-reportagem como gênero. In: LOPES, Cícero (Org.). Textos e
personagens: estudos de literatura brasileira. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1995. p. 81.
232
COSSON, Rildo. Uma outra história: sobre as relações do jornalismo com a literatura na década de 70.
Letras de hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 305-312, jun., 2001. p. 308.
106
uma forte presença da literatura mimética, da tentativa da verossimilhança realista que
pertence à tradição mais geral do romance brasileiro. Em outros termos, é ainda o
realismo, mas utilizando outras formas de expressão e composição tais como a
aproximação com as técnicas jornalísticas e cinematográficas, valendo-se, também, de
elementos da narrativa fantástica e de recursos ao relato biográfico. Consiste numa
narrativa essencialmente alegórica, que remete a uma situação global, extra-texto, às
vezes de um fato real que se conta. Conforme acrescenta a autora, é como se houvesse
uma quase identidade entre o texto e a realidade referencial, a manutenção de uma
tênue fronteira entre o mundo real e o ficcional. Entretanto, essa quase identidade faz-se
irrealizável, já que, na alegoria, “a ambigüidade e a multiplicidade de sentidos são traços
fundamentais, revelando-se formalmente numa acumulação de elementos significativos
e numa fragmentação de sentidos múltiplos”
233
.
Tal tendência chama a atenção para um detalhe importante a ser observado.
Através do caos, da fragmentação, da acumulação de elementos, do hibridismo de
gêneros, a literatura em curso conseguiu apresentar uma imagem da totalidade do
mundo referencial bastante caótico e estilhaçado. Assim, a significação alegórica
assume um valor positivo, pois penetra na forma da aludida produção, por estar em
comunhão com o momento histórico.
Outro nome que dedica atenção à literatura dos anos 1970 no Brasil é Flora
Sussekind. A autora, num primeiro momento de seu trabalho, assinala comentários
acerca da experiência do autoritarismo e suas relações com as artes para, em seguida,
se deter na produção mais significativa daquele período. Dentre alguns aspectos de seu
texto que merecem destaque, está a idéia de que, contrariamente ao que se pensa, a
censura não foi, na época em questão, o único fator que determinou os rumos da vida
cultural brasileira. Segundo ela, o importante papel desempenhado pela política de
incentivo, cooptação e produção – a outra face da repressão – teria exercido efeito
similar. No tocante a essa questão, Sussekind não procede a um aprofundamento,
porque, a seu ver, obrigaria a reavaliar o rendimento estético-ideológico de muitas obras
consideradas críticas ou de denúncia à situação. Afora isso, haveria uma necessidade
de se “perceber a diferença entre os ‘cacoetes literários antiautoritários’ e os textos que
233
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos, SP: EDUFSCar, 1996.
p. 27.
107
incorporam a tensão política à sua própria linguagem, ao invés de apenas descrevê-la
de modo mágico ou naturalista
234
.
Em todo o caso, o que merece ser anotado da pesquisa de Sussekind é o
levantamento de traços e tendências que a produção pós-64 assume. Tomando-se a
proposta da autora, durante os governos militares, observou-se a opção pela
referencialidade biográfica ou social pautada ora numa linguagem cifrada ora descritiva,
naturalista ou jornalística. Ainda nesse esquema, outros caminhos foram percorridos
pela ficção contemporânea brasileira. Os autores optam pelo aniquilamento da ação
narrativa, pelo diálogo cheio de ironia com loucura, pelo recurso ao diário íntimo, pelo
silêncio, montagem e brincadeiras com o jornalismo romanesco, pela estética do
espetáculo, pelas memórias, pelo humor, pela ironia e pela sátira.
No tocante a nomes, trata-se de uma época que conta com um grande número
de artistas que elegem algumas das tendências do momento. Os principais deles
parecem ser José Louzeiro, Aguinaldo Silva, Valério Meinel, Roberto Drummond, Erico
Verissimo, Ivan Ângelo, Fernando Gabeira, Pedro Nava, Raduan Nassar, Torquato
Neto, Caio Fernando Abreu, Carlos Süssekind, Renato Pompeu, Ana Cristina César,
Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago,
Antonio Torres, João Gilberto Noll, Antonio Callado, Renato Tapajós, Alfredo Sirkis,
Rodolfo Konder, Márcio Souza, Paulo Leminski, Luiz Antonio de Assis Brasil, Tabajara
Ruas, João Ubaldo Ribeiro, José J. Veiga, Victor Giudice, Eliane Maciel, Marcelo
Rubens Paiva, Nélida Piñon e Benito Barreto.
A tendência geral da fortuna crítica costuma propor linhas classificatórias que
permitem enquadrar os referidos escritores dentro de diferentes tendências. Assim, há
romances que podem ser classificados como jornalísticos, memoriais, satíricos,
paródicos, cômicos, fantásticos, maravilhosos ou panorâmicos. No entanto, dada a
variedade de obras que integra cada segmento, as suas classificações partem de estilos
dominantes. Isso significa, então, que não se pode excluir o levantamento de outras
ocorrências nas mesmas manifestações. O propósito deste trabalho, considerando-se
tais argumentos, não consiste em propor uma classificação rígida para os romances que
constituem o seu corpus. O intuito da pesquisa em curso é eleger temáticas e situações
que se filiam à fragmentação, sem deixar de apontar, quando conveniente, marcas que
234
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985. p. 27.
108
caracterizam a produção da época. Com isso, pode-se dizer que, dentre os seus
objetivos específicos, está a tentativa de se desenhar o Brasil num momento de sua
história com base em quatro obras que podem ser consideradas exemplares para tal:
Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa (1976), de Ivan Ângelo, Reflexos
do baile (1976), de Antonio Callado, e Quatro-olhos (1976), de Renato Pompeu.
109
3.2 Sujeito, carnavalização e fragmentação em Zero, de Ignácio de
Loyola Brandão
O mundo não queria saber daqueles bandidos, eles que se fodessem
uns em cima dos outros como vermes imundos. A polícia existia para
esconder aquela podridão dos olhares e narizes delicados das
pessoas de bem.
(Agosto, Rubem Fonseca)
3.2.1 A questão do sujeito em Zero: descentramento e aniquilação
Por que o delírio não haveria de corresponder a uma realidade?
(As meninas, Lygia Fagundes Telles)
Jornalista desde os dezesseis anos, Ignácio de Loyola Brandão transfere para a
literatura o exercício da frase despojada e direta, além da constante preocupação com o
cotidiano e as misérias alheias. Em 1965, ele estréia com o livro de contos Depois do
sol, a que se segue outro no gênero – Pega ele, silêncio – e o romance Bebel que a
cidade comeu, ambos de 1968. Entretanto, seu nome ganha destaque com o romance
Zero, publicado na Itália em 1974 e, no ano seguinte, no Brasil, mas proibido de circular
até 1979, sob a alegação de atentar contra a moral e os bons costumes. De maneira
geral, na aludida obra, o que o autor denuncia é o caos em que se encontra o país.
Como se observa, a produção literária de Brandão se situa dentro do período
ditatorial brasileiro, iniciado em 1964 e estendido até 1985, com o término do mandato
do General João Batista Figueiredo. Nesse período conturbado, boa parte da literatura é
marcada pela resistência à situação político-social em curso; pela denúncia, ora satírica,
ora bem humorada, das conseqüências dela decorrentes; pelo desejo de libertação
moral e pela literatura-reportagem ou literatura-documento, que visava a um realismo
sem máscaras. Ela, em inúmeros casos, se transforma em arma de combate e ação
social. Há um inimigo comum – o Governo – e há, entre vários escritores, uma constante
indignação e uma vontade de mudar a situação circundante.
Com isso, objetivando retratar os fatos e criticar o sistema duro e desumano que
imperava, o marasmo dos fins dos anos 1960 cede lugar a uma produção viva e ativa,
110
com algumas características marcantes tais como origem jornalística, balizamento
político e ativismo literário. Nesse particular, conforme frisa Renato Franco, o romance
mais radical dos anos 70 recorreu ao uso de procedimentos literários pouco
empregados, em alguns casos, elaborou modos originais de expressão ou utilizou
técnicas inusitadas, explorou temas novos ou até então considerados irrelevantes,
refletiu sobre sua própria relação com a realidade social e buscou questionar aquela
configuração político-ideológica que, desde o final dos anos 50, havia se tornado
hegemônica na história literária brasileira
235
.
Zero é um exemplo fundamental do romance dos anos 70. Seu eixo narrativo é o
seguinte. José Gonçalves, matador de ratos num cinema de baixa categoria de uma
megalópole, num país qualquer da América Latíndia, encontra Rosa Maria Lopes,
cozinheira de uma lanchonete, com a qual se casa. Os dois passam a viver um padrão
medíocre da situação conjugal, diferenciada apenas pela violência que caracteriza suas
relações, envolvendo-se, aos poucos, num torvelinho de situações esdrúxulas criadas
pelo meio em que vivem. José, de assaltante a assassino, passa a membro do grupo de
Gê, os Comuns, guerrilheiros que buscam combater o regime autoritário e repressivo.
Rosa, desiludida nas suas aspirações pequeno-burguesas de marido e casa própria,
deixa-se levar pelos fatos, até ser sacrificada num ritual de magia negra.
Circundando o percurso individual dos protagonistas, o espaço narrativo explode
em violência; o país da América Latíndia contorce-se em convulsões agônicas de
agressividade explícita no cotidiano dos personagens, no meio onde circulam, povoado
de anormais, doentes e aleijados; na repressão do Governo, por meio do Esquadrão
Punitivo e de portarias impessoais; no bombardeio incessante dos meios de
comunicação de massa; no consumismo inconsciente e descontrolado, no tecnicismo
exagerado e robotizado. Enfim, imersos numa realidade caótica, os personagens se
debatem sem encontrar saída do anel de zero
236
. Todas essas situações a que os
indivíduos estão condicionados contribuem para a sua essência problemática.
Nesse sentido, as condições sobre as quais estão assentadas as estruturas do
mundo contemporâneo e, mais especificamente, o Brasil do último quartel dos
novecentos, desautorizam a idéia de se conceber um sujeito pleno e íntegro. Com isso,
235
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-70: A festa. São Paulo: Unesp, 1998. p. 122.
236
Cf. PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos, SP: EDUFSCar,
1996. p. 129.
111
o indivíduo mostra-se ínfimo, precário e destituído de substancialidade, isto é, de
experiência autêntica. Ele é descentrado tanto em relação ao seu lugar social quanto em
relação a si próprio. Essa imagem de impotência e fragilidade do homem frente ao
mundo fica sugerida logo no início do romance:
José mata ratos num NOME: cosmo ou universo.
cinema poeira. É um homem CARACTERÍSTICAS: contém
comum, 28 anos, que come, os “corpos” celestes e os
dorme, mija, anda, corre, ri, espaços em que eles se
chora, se diverte, se entristece, encontram seu conjunto contém
trepa, enxerga bem dos dois 10
76
(10 elevado a 76 potência)
olhos, tem dor de cabeça de vez de prótons.
em quando, mas toma melhoral, PESO: em gramas: 10
56
.
lê regularmente livros e jornais, vai GRANDEZA: segundo Einstein,
ao cinema sempre, não usa todo o universo deve ter um
relógio nem sapato de amarrar, diâmetro de 8 milhões de anos
é solteiro e manca um pouco, luz.
quando tem emoção forte, boa IDADE: (presumível) 10 a 12
ou ruim. bilhões de anos.
Atualmente, José está FORMAÇÃO: os “corpos”
Impressionado com uma celestes são principalmente as
declaração do Papa de que o estrelas, os planetas que giram
Natal corre risco de se tornar com seus satélites em volta das
uma festa profana. estrelas, os cometas e matérias
que aparecem periodicamente
CADA RATO TEM entre as estrelas.
UM PREÇO IDADE MÉDIA DE UMA
ESTRELA: 10.000 milhões de
Nove horas, José veste o anos.
macacão, calça as botas de QUANTIDADE DE ESTRELAS:
borracha e instala a cada galáxia contém em média
aparelhagem de tambores e 100.000 milhões de estrelas.
tubos plásticos. Aciona a FORMA DE VIDA: 1 planeta em
manivela e produz uma fumaça cada grupo de 1.000 parece
amarela que vai para as tocas. oferecer condições favoráveis à
Os ratos correm e logo caem. vida.
Mortos. Ele recolhe num saco e GRANDEZA DA NOSSA
vai jogar nos terrenos baldios GALÁXIA: comprimento de
da Várzea do Glicério. 100.000 anos-luz; largura de
José tem uma cota diária 30.000 anos-luz; espessura de
de ratos. Ele sabe que no dia em 15.000 anos-luz.
que tiver exterminado todos os VELOCIDADE DA NOSSA
bichos, perde o emprego. Um GALÁXIA: 150 a 330 quilome-
dia, não tinha mais ratos. José tros por segundo.
foi à Várzea, pagou 50 centavos O SOL: pesa 330.000 vezes
a dois moleques, cada um trouxe mais que a Terra.
três ratos. Assim, José continuou A TERRA: pesa: .............................
trabalhando. 6. 000.000.000.000.000.000.000 de
tonelada.
JOSÉ: pesa 70 quilos ou
quilogramas
237
.
237
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 11-12.
112
A coluna à direita do segmento transcrito descreve a dimensão da totalidade do
universo. A idéia de grandeza fica assegurada a tal ponto que se é levado a pensar que
a natureza funciona calcada numa espécie de paradigma de racionalidade. Assim,
corpos celestes, planetas, estrelas e galáxias trabalhariam de maneira rigorosamente
ponderada, algo que reiteraria a noção de perfeição do cosmo. A imensidão sideral é
intencionalmente apresentada ao lado do perfil de José justamente para acentuar a sua
mediocridade e insignificância. Ele é um simples cidadão, um simples matador de ratos,
condicionado às circunstâncias sociais e históricas e, por isso mesmo, preso numa
espécie de labirinto sem saída, dentro do qual se debatem personagens tornados
disformes e abúlicos. Esses pressupostos sustentam a premissa de que a relação do
sujeito com a totalidade objetiva é tensa, e não há nada de harmonioso entre eles.
Aliás, essa relação problemática que se estabelece entre o sujeito social e a
totalidade empírica se justifica porque essa última, dentro do âmbito da
contemporaneidade, carece de uma padronização, ou seja, de uma estrutura estável
que assegure a integridade do indivíduo. O espaço em que José circula não tem nada
de grandioso; ao contrário, é medíocre, não pelas suas dimensões, que são as de um
grande centro urbano, mas pela sordidez de seus limites reais, colocados numa relação
antitética com os números astronômicos: a antiga fábrica de sabão, a pensão, o bar da
esquina, as ruas da cidade. A realidade américo-latíndia, a rigor, começa a se formar na
promíscua aglomeração de pessoas da pensão, que se lavam no tanque “com sabão de
pedra”, que “esquentam marmitas num fogão coletivo”, que vão ao cinema não para ver
o filme, mas para dormir – “[g]ente que vinha dos cortiços, bancos de jardim, parque
Dom Pedro, cadeia, bordéis” – e que irrompe na descrição crua da humanidade feia e
miserável que se encontra na rua. José, em meio a tal realidade, encontra-se deslocado:
(Como tem doente nesta cidade!) Aleijados, cegos, sem braço, sem
mão, sem pés, pés para dentro, pés para fora, caolhos, bocas tortas,
sem nariz, corcundas – sempre com um monte de crianças correndo
para passar a mão nas costas, a fim de ter sorte – anões, sem orelhas,
pescoços tortos, mulheres com elefantíase, pernas imensas, seios que
pareciam sacos, fazendo com que andassem curvadas para a frente,
leprosos, gente cheia de pústulas, de crostas, rostos que eram uma
ferida só, rostos manchados, cabeças em carne viva. José correu pela
calçada, trombando nas pessoas (Eu não quero ficar aqui, vai me
deixar louco!). Terminou num beco de oficinas mecânicas, vazio de
gente, cheio de carcaças de automóveis. (...) Velhos automóveis
amontoados uns sobre os outros, formando um edifício de lataria
descascada, de várias cores. José entrou num vestíbulo iluminado por
113
lâmpadas de vapor de mercúrio. Havia no vestíbulo portas e portas –
portas de carro. Ele foi experimentando uma a uma. Ele abria e
fechava. Até a última. (...) Com a mão no trinco, José se decidia.
ELE ABRIRÁ A ÚLTIMA PORTA?
O QUE EXISTE DENTRO DELA?
238
Nesse fragmento, os personagens são todos problemáticos. O protagonista,
frente a isso, busca não se integrar nessa coletividade. Ao contrário, ele segue um
movimento oposto a ela. Em Zero, a sociedade, em vez de ter valores definidos como
fundamentais, é contraditória e internamente desintegrada. Por esse motivo, não se tem
um herói épico, conforme chama atenção Georg Lukács
239
, mesmo porque o sentido das
ações não está mais claramente definido. Essa indefinição de valores resulta das
condições sociais firmadas na modernidade tardia. Assim, ao contexto ditatorial,
recheado por situações ambíguas e caóticas, soma-se o contexto da modernidade,
repleto de valores obsoletos, inconsistentes e insustentáveis. No trecho em apreciação,
expressões e vocábulos como oficina mecânica, automóveis e lâmpadas de vapor de
mercúrio remetem para o contexto contemporâneo. As incertezas e o desespero de
José resultam de sua posição em meio a tal mundo. A sua dúvida pelo que existe dentro
do carro é, na verdade, a dúvida do homem contemporâneo de para onde tal período o
estaria conduzindo. De todo modo, aqui, o protagonista busca um certo sentido para a
sua experiência, e suas incertezas são compreensíveis, levando-se em conta as
incongruências e as injustiças da vida social.
Inúmeros estudiosos demonstraram preocupação no sentido de estabelecer
relações entre a constituição do sujeito e as condições de estruturação da sociedade
moderna. Zygmunt Bauman trabalha com a hipótese de que, frente à impossibilidade de
reconstruir a perdida integridade do mundo, o sujeito apresentaria dificuldades de
encontrar um referencial estável de apoio, algo que concorreria para a problematização
de sua identidade
240
. Alberto Melucci alerta para os sintomas sentidos pelo indivíduo do
moderno-industrial. Do seu ponto de vista, “[a] descontinuidade e a fragmentação da
experiência que a complexidade introduz criam um esvaziamento do ‘sujeito’ como
238
Idem. p. 18.
239
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000.
240
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1999. p. 107.
114
essência com as características permanentes”
241
. A perplexidade de José, conforme se
constatou, se dá em decorrência de sua imersão em sistemas altamente relativos, e o
impacto das estruturas sociais não é pacificamente abstraído por ele, o que gera um
sentimento de loucura.
No caso de Zero, entretanto, não são apenas esses traços que contribuem para
a elucidação da questão do sujeito. Ignácio de Loyola Brandão elabora suas
representações da condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico,
considerando que, no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é
atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária. José
toca no limiar da loucura, e isso é feito de um modo que se vislumbrem as marcas de
um contexto opressor e difícil, em que as possibilidades de emancipação e liberdade
individual são limitadas e questionadas. Tudo isso motiva a perplexidade do
protagonista. Em outras palavras, à medida que José percebe que a história é violenta,
que o autoritarismo o marca profundamente, que os antagonismos são radicalmente
acentuados e que a sua experiência não é passível de fácil entendimento, é reiterado o
seu perfil atônito: “José se indaga da motivação do crime. E quando não há? O
problema de José é a falta de lucidez. Ele não pode ver claramente os motivos”
242
.
O universo criado em Zero caracteriza uma visão pessimista do mundo
referencial. No romance, avultam tópicos temáticos como assaltos a bancos, seqüestros
de embaixadores, estudantes presos, cientistas tendo de abandonar o país, tortura,
fome, burocracia, machismo, rituais demoníacos, que traduzem a lógica perversa e
autoritária da constituição social brasileira. O sujeito, agredido pela violência constitutiva,
é induzido a internalizar as estruturas autoritárias e, por conseguinte, a reproduzi-las.
Seguindo esse percurso de raciocínio, observa-se que não é por acaso que José, de
matador de ratos, passa a ladrão e assaltante, tornando-se, por fim, assassino:
Tenho medo que a Patrulha Repressiva esteja me procurando, porque
ontem matei dois, foi uma coisa tão boa atirar nos dois, um revólver em
cada mão, um tiro em cada testa, de surpresa. Eu me sinto melhor
quando mato alguém das patrulhas ou da polícia, do que quando atiro
em alguém que não conheço. Se eu conseguisse ajuda. Preciso. Mas
241
MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si numa sociedade global. Trad. Adriano R. Marinho et
al. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 53.
242
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 158.
115
não posso confiar em ninguém da terra. Porque são iguais a mim e eu
nunca confiei em mim
243
.
Yves Michaud, num estudo sobre a violência, chama atenção para o fato de “a
simples paixão de obedecer e a submissão à autoridade transformam indivíduos que
não são particularmente perversos em torturadores”
244
. As colocações do autor levam a
crer que o homem, em condições normais, não seria cruel; ele o é quando as
circunstâncias postas o oprimem na figura de um chefe supremo que dita leis de
conduta social. O percurso de vida de José é modificado constantemente e isso
acontece porque a sua vida está rodeada pela brutalidade. A existência dessa violência
generalizada justificaria a intensificação de uma força violenta racionalizada, ou seja,
uma situação social caótica motivaria o aparecimento de um certo regime de selvageria.
O impulso de matar e a ausência de culpa que o protagonista apresenta correspondem
a uma atitude catártica: ele é vítima do abuso e do autoritarismo, logo é compreensível a
manifestação de seus atos malévolos.
Isso não significa, entretanto, que José não tenha consciência de suas ações ou
de sua própria capacidade destrutiva. Da perspectiva de quem está numa sociedade
violenta ou de quem adere à violência como parte da rotina diária, a vida pode acabar
em qualquer instante. O indivíduo, para sobreviver, é obrigado a olhar o mundo em
busca de qualquer sinal remoto de uma ameaça à sua existência, do inimigo à espreita.
O estilo de vida do protagonista está enredado permanentemente com o horizonte do
limite. Se ele não confia em si próprio, se ele não confia em ninguém, é porque ele
conhece a dimensão dos problemas em que está inserido e as perversões que está
ocasionando.
O papel preponderante de políticas e estruturas autoritárias ganha nitidez quando
se observa a presença impressionante da violência histórica, sobretudo da violência a
serviço do Estado, na formação histórica brasileira. Não é por acaso, então, que Karl
Erik Schollhammer enuncia que, no país, “a violência aparece como constitutiva da
cultura nacional, como elemento ‘fundador’”
245
. A mesma tese é defendida por Antonio
Candido. Num ensaio escrito em 1979, o autor, a partir de um registro realizado pelo
243
Idem. p. 163.
244
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p. 81.
245
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In: PEREIRA,
Carlos Alberto et al. Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 236.
116
historiador Edgar Carone, chama a atenção para a “sucessão ininterrupta da ferocidade,
numa cadeia de chacinas, conflitos sanguinolentos, intervenções armadas cheias de
selvageria” perceptível na formação social do Brasil
246
. Zero traz à tona massacres,
crimes e brutalidades, o que autoriza dizer que o contexto da América Latíndia é
autoritário. José, por estar em meio a essa sociedade e por apresentar uma postura
subversiva, é vítima do poder arbitrário:
José não percebeu ao ser levado para
Outra sala. Jogaram água em seu rosto (1). (1) Assim é, nos
Deram água para ele beber (2). Na sala havia filmes
cheiro de comida. Era tudo muito limpo. (2) Incrível!
Quando se reanimou, José viu um homem
sentado numa poltrona Knoll. (...) O homem
pediu desculpas por ter de conversar
assuntos desagradáveis (3) desagradáveis (3) Aqui, José saiu
eram o cheiro do aposento imundo, a luz no do torpor e delírio.
rosto, a sede insuportável, o banco incômodo
em que era obrigado a ficar sentado, quando
sua vontade era cair para trás, largar o corpo.
O homem deu água para ele beber, era
salmoura, José vomitou e começou a
apanhar. Havia cheiro de bosta, bosta e mofo
misturados num quarto trancado que não via
ar há muito tempo. Lá de fora vinha o som de
um chorinho com sanfona, movimentado.
Entrou um homem, o primeiro saiu (? Seria o
primeiro), o segundo ficou um pouco, saiu
deixou José sozinho, chegou um terceiro (?
Ou seria o primeiro), bateu em José e foi
Embora contando: um, dois, três, quatro,
cinco, seis, sete, oito, nove, dez, cento e
vinte. Voltou o primeiro (? Ou o segundo)
gritando como possesso e esmurrando o
rosto de José, arrancando seus dentes (4) e (4) ? São sádicos
rindo, rindo. A sanfona terminou, recomeçou todos os policiais
com o mesmo chorinho. Entrou um padre (?
Ou um homem vestido de padre) e disse:
Confessa, meu filho, confessa tudo a Deus
nosso senhor. José ergueu-se, e deu com o
banco na cabeça do padre que caiu duro e
seco para trás, sem dizer palavras (5). José (5) ? Como é que
pulou em cima do seu estômago e dançou o podia dizer.
chorinho. Depois sentou-se no banco e
esperou. Eles voltariam para vingar o padre.
E,
de repente (6) (6) De repente, nada.
eles vieram mesmo. Eles estavam para
? E agora. chegar há muito
Eram quatro (7), grandes e fortes, tempo.
246
CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.
205.
117
Vestidos em uniformes verdes (8), botas (7) Podiam ser cinco,
altas, capacete de aço inoxidável, óculos quinze, não importa.
escuros (9), silenciosos. Um segurou José, São apenas números.
o outro, com soco inglês, socou. Dois fica- (8) Uniforme da
ram olhando e se revezaram e torturaram, Instituição Nacional
deixando José ensangüentado. Um deles, de Repressão e
disse: “Tira tal homem da terra, porque não Inquirição: INRI.
convém que ele viva.” (10) (9) Em filmes, a SS e a
Então soltaram José Gestapo sempre
Observação: Nunca se conseguiu descobrir usaram óculos escuros.
nada sobre esta prisão e interrogatório de (10) Atos dos Apóstolos
José. Tanto podia ser o INRI, como podia 22.22
247
.
ser gente de Gê, desconfiada dele.
O mau cheiro do quarto, a impossibilidade de o protagonista sair desse local e a
falta de ar oxigenado não se aplicam somente ao ambiente restrito a que José está
confinado. Na verdade, essa sensação de claustrofobia e opressão se estende à
caracterização de toda a América Latíndia. O personagem é torturado, e esse índice de
crueldade infligido a ele é uma demonstração de como a violência era aplicada em
outras pessoas suspeitas de atividades subversivas. A tortura é responsável pelo
descentramento e pela aniquilação das percepções racionais dos sujeitos. Esses
fatores concorrem para o problema do trauma. Em um mundo marcado pela
experiência radical de violência e destruição, o trauma se torna um elemento
constitutivo da formação social. Por ultrapassar os mecanismos humanos de absorção
e atribuição de legitimidade aos eventos, o trauma vai além das referências de
concepção de forma. Não é por nada, então, que José beira a loucura e sente-se
perdido numa sociedade cujos indivíduos são problemáticos: “[m]inha vida é igual a do
Scott Fitzgerald. Trágica, com uma mulher louca”
248
.
A tortura era uma estratégia bastante eficaz utilizada pela polícia com o fito de
assegurar o poder nas mãos da elite e esconder as atrocidades do sistema. Em Zero,
aliás, há passagens irônicas que chamam a atenção para esses detalhes:
Do chefe da POPO / Polícia Política / ao chefe da POFE:
“Respondendo a sua CI confidencial de 31 do corrente informo
que nenhum preso foi torturado nas celas deste departamento, desde
o início do novo governo. Todos os detidos têm sido bem tratados. O
único inconveniente é do número diminuto de celas para a grande
quantidade de presos. Atenciosamente”
247
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 176-177.
248
Idem. p. 208.
118
a)
Detalhe: veja-se a frase “torturado nas celas”. Realmente, nas
celas não houve torturas. Havia uma sala para isso
249
.
Antonio Candido, num artigo intitulado A verdade da repressão, publicado pela
primeira vez em 1972, formula uma série de considerações com o intuito de demonstrar
que os mecanismos repressivos – principalmente aqueles elaborados pela polícia –
tinham em vista infligir às vítimas certos atos agressivos de forma que elas perdessem
os limites de consciência. Assim, o sujeito descentrado acabava muitas vezes
compactuando com as idéias fornecidas pelos repressores e, por fim, declarava algo
que o incriminava. O autor explica que a polícia necessita construir a verdade do outro
para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu,
até que este seja absolvido por aquele e, desse modo, esteja pronto para o que se
espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por
meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a
violência física e moral. Conforme complementa o ensaísta, por fim, se preciso, “poderá
inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela
dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo, – em todos os seus graus e
modalidades”
250
.
Conforme se averigua, a violência institucionalizada gera um estado geral de
receio, aflição e perplexidade. A tortura, particularmente, tornada trivial, intimida as
pessoas de modo que elas se tornem impotentes frente ao poder. A punição e a
repressão, enquanto funções reguladoras dentro de uma sociedade autoritária, se
desvelam na tentativa de submeter o corpo a determinadas disposições, manobras e
táticas que visam a assegurar um certo controle ideológico. Essas observações são
importantes para a elucidação de algumas situações que aparecem no romance de
Ignácio de Loyola Brandão:
Vão me matar. Estou com medo. Estou com frio. Não devia ter
medo. Ia ser assim, alguém me pegaria. Só tenho que pensar: vão me
matar. E eu, não queria morrer. De jeito nenhum. Antes, eu pensava: o
que será que vou pensar na hora em que me pegarem. Não penso
nada, só tenho medo. Se ao menos eu apagasse logo. Mas vão me
249
Idem. p. 246.
250
CANDIDO, Antonio. A verdade da repressão. In: ____. Teresina, etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980. p. 116.
119
torturar. Vão querer que eu diga coisas. Que nem sei. Não cheguei a
penetrar. Esqueleto se baba, quer partir para a porrada. É só olhar a
cara deles, dos oito débeis mentais. Olhar de quem espera orgasmo.
Com rifles, revólveres, espingardas, cinturões da bala atravessando o
peito, como faixa: Miss Violência, Miss Assassinato, Miss Sangue, Miss
Tortura, Miss Agonia, Miss Espancamento, Miss Mutilação, Miss
Carrasco
251
.
Com vistas aos aludidos pressupostos, o que merece ser anotado é que, seja
qual for a forma de violência abstraída pelo corpo, ela não é de ordem puramente
biológica, ou seja, não se resume à aplicação de uma certa força física sobre um ser
humano. O corpo está diretamente mergulhado num campo político, logo investido de
relações de poder e de dominação
252
. Portanto, todo castigo aplicado num sujeito é
portador de elementos que traduzem um certo arranjo social, nesse caso, calcado em
paradigmas autoritários. Com isso, vale dizer, se um indivíduo é vítima de determinada
brutalidade, é porque ostenta um comportamento que não encontra paralelo na estrutura
social tal qual é requerida pela elite dominante. De qualquer modo, os personagens de
Zero são descentrados seja em virtude do relativismo favorecido pelo contexto da
contemporaneidade, seja em decorrência do autoritarismo imposto. A figura de José
parece sintetizar essas considerações:
Correndo, José tem os olhos amarelos e o gosto de sal na boca.
Correndo ele percebe que as vielas e becos da Vila são o seu corpo,
assim como o viu projetado aquela tarde, na barraca do Homem. Vielas
onde ele não consegue entrar, apesar de estar dentro, e não consegue
sair, apesar de querer. Ruelas, becos, vielas, atalhos que ele não
consegue compreender. Um labirinto. Dentro, querendo sair. Como
aquele dia em que entrou / na porta proibida / e se viu saindo. Porque
esse, sou eu, José. Dois. Um, eu mesmo, saindo de mim. Outro, eu
mesmo, entrando em mim. Um e outro coabitando. Um, recusando o
outro. Divorciados. Camas separadas, mesmo corpo. Qual sou mais,
não sei. Entro e saio com freqüência. Vou, mas quando vou, me
encontro voltando. O que volta, quer impedir o que sai, de sair. O que
sai, não quer que o que vai, entre. Eu queria me sentir um instante sem
Um e o Outro. Vazio. Esse instante pode ser o de minha morte. Não
que um e outro sejam opostos
253
.
251
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 238.
252
Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 29.
ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 25.
253
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 235-236.
120
Afora os aspectos mencionados, outros elementos contribuem na configuração
da realidade américo-latíndia: o misticismo e o sincretismo religioso, envolvendo crenças
orientais e africanas; a presença massiva de frases em inglês, sobretudo títulos e letras
de música, indicando imperialismo econômico e cultural; e, principalmente, o
consumismo exacerbado como conseqüência. Nesse mundo globalizado e administrado
pela sedução das massas, o caráter fetichista e/ou reificado dos corpos tem um valor
essencial para a compreensão das relações sociais.
Pensar a reificação na sociedade contemporânea é da maior urgência. Cabe
revelar aqui a centralidade do ensaio Educação após Auschwitz, de Theodor Adorno.
Para o autor, o problema de Auschwitz não está apenas no fato de ter acontecido, mas
em novamente poder acontecer. O terror do evento foi possível graças ao gesto frio, à
dissolução do sujeito na sociedade. Num mundo industrializado, cuja mediação
universal é a mercadoria, tudo passa a ser considerado por seu valor de troca. Assim,
cada coisa ganha identidade quando serve de mercadoria, mediação do lucro. O caráter
sentimental de um filme hollywoodiano ou de uma música comercial teria o caráter
fetichista de alimentar o consumidor burguês, que compra a obra para ter um vínculo em
que coloca seus sentimentos. O campo de concentração, nesse sentido, existe não
como negação, mas como afirmação radicalmente acentuada da coisificação do
homem
254
.
Quando Adorno discute a música de mercado, aponta um problema semelhante,
pois ela passou a ser expressão do mesmo, do interesse, do lucro. É uma mercadoria
que vale por seu valor de troca. A produção, a distribuição e o consumo são regidos
pelo mesmo princípio dominante, levando a uma regressão da audição. O que mais
chama atenção nesse ensaio é que Adorno mostra como a forma musical traz os sinais
da ideologia. A música fetichista, explica o autor, é caracterizada pela indiferença, já que
prevê uma audição distraída e dispersiva do ouvinte, que se apega a fragmentos e é
incapaz de ter atenção suficiente para recompor a totalidade dela. Ao comentar o jazz
como música de consumo, o ensaísta chega à conclusão de que há um padrão musical
sempre idêntico, monótono, cujas únicas variações acontecem apenas com fins
publicitários
255
.
254
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. Gabriel Cohn (Org.). 2. ed. São
Paulo: Ática, 1994.
255
ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: BENJAMIN, Walter et al.
Textos escolhidos. Trad. Luiz João Baraúna et al. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 173-199.
121
Até esse ponto, a diferença entre a coisificação do homem em Auschwitz e da
regressão da audição pela pseudo-universalização da mercadoria é do grau regressivo
em direção à barbárie, à destruição da humanidade, à reificação brutal. Por isso, é tão
aguda a crítica de Adorno ao princípio identitário que rege a sociedade capitalista, pois
ele prevê, como risco iminente, a repetição de Auschwitz que destruiu todos que fossem
diferentes do padrão ariano-nazista (judeus, homossexuais, intelectuais, comunistas).
Em Zero, os personagens considerados indiferentes e submissos a todo tipo de
violência são predominantemente anormais, aleijões e indigentes, pois funcionam como
o outro na sociedade, excluídos das condições de humanidade, pois não tinham
liberdade de ser.
No romance em questão, tem-se a utilização de recursos estilísticos encontrados
nos meios visuais. Assim, nessa narrativa contemporânea, percebe-se a relação da
linguagem com outros meios de comunicação, como a fotografia, o vídeo e o cinema.
Para Adorno, isso contribuiria para a massificação do estilo, para a perda da
identificação. Paralelamente, na cena pós-moderna, o dilúvio imagético em que estão
imersos habitantes e metrópoles, dentro e fora da ficção, imiscui e confunde olhares e
objetos, numa especularidade ofuscante entre imagens-mercadoria e corpos-fetiche.
Nesse particular, conforme salienta Ângela Maria Dias, “a última versão do totalitarismo
nas sociedades de consumo, administradas pela sedução e pela manipulação das
massas, de um lado, submete o corpo à pornografia glamourizada da fantasia
multimidiática e, de outro, exercita-o no ritmo alucinante da violência banalizada”
256
.
A era contemporânea, considerando-se tais princípios, resguarda o tempo da
mercadoria fetiche, o presente perpétuo, a repetição do mesmo. O corpo, a rigor, não
escaparia de tais empreendimentos. Ele é visto como uma mercadoria, à semelhança da
pornografia banal. O indivíduo, com isso, não apenas é vítima desse sistema, mas ele
próprio seria motivador de tal estado de coisas. Jurandir Freire Costa, nessa linha de
raciocínio, ao tratar dos modelos de identidade pessoal oferecidos no atual espaço
público brasileiro, ressalta: “o sujeito, privado dos valores tradicionais, passou a se
identificar com os personagens de sucesso midiático e a se tornar um mero consumidor
de sensações e desejos imediatos”
257
. A América Latíndia é uma megalópole e, por isso
256
DIAS, Ângela Maria. Escrever, escavar: formas de violência na literatura brasileira contemporânea.
Revista TB, Rio de Janeiro, n. 150, p. 7-20, jul./set. 2002. p. 8.
257
COSTA, Jurandir Freire. Campeonato de irrelevância. Folha de São Paulo, São Paulo, “Mais”, 17 jun.
2001. p. 4
122
mesmo, observa-se nela um excesso de tumulto e gente comprimida pela falta de
espaço, algo que estimularia a mecânica pornográfica do contato obrigatório e
desumanizado:
Fazia seis meses que os mexicanos estavam chegando ao bairro.
Eram mais de quarenta e dormiam no depósito vazio. José tinha ido ao
depósito. Antiga fábrica de sabão, os tachos estavam lá, imensos,
massa preta pela metade. Cheiro de gordura. Os primeiros mexicanos
tinham aberto uma loja de restauração de poltronas e um conserto de
transistores. Conversavam num espanhol entendível e a meninada,
pele escura, oleosa, corria pelas ruas pedindo esmolas, comida e
doces. Tinha uma menina de 13 anos que vivia dando (gostava de
trepar com as pernas fechadas). Ela ia até a pensão e dava no quarto,
mesmo com os outros olhando (eram cinco no quarto da pensão)
258
.
O depósito onde está abrigado o excesso de pessoas configura uma espécie de
miniaturização metafórica das grandes cidades. A fisicalidade compulsória da integração
e a corporalidade promíscua da interação animalizam as relações humanas, e isso se
reflete no ato sexual que uma adolescente pratica com um parceiro qualquer sob o olhar
atento de outros expectadores. Haveria, nesse caso, a degradação do valor do sujeito
humano (no caso, uma garota de 13 anos) que – convertido em objeto, em mercadoria
descartável – se transfigura em espetáculo, em imagem pornográfica, em corpo-fetiche,
submetido ao abuso dos homens, da força e do poder, portanto.
O ato sexual, tal como é tratado no romance em questão, reproduz o íntimo mais
canibal e primitivo do homem. A intimidade da troca de cheiros e secreções, enfim, os
intercâmbios sensoriais conduzem à idéia de que a vida é pornográfica, isto é, passível
de manipulação, suscetível às leis de mercado, de maneira que – roubada a sua
privacidade – as pessoas são jogadas de um lado para outro, como objetos, reduzidas à
sua materialidade, despojadas de sentimentos, servindo de motivo para o espetáculo. É
o que acontece com Rosa, cujo corpo é esquartejado pelo erotismo fetichista e seus
rituais idólatras:
. Ei, aqui é a Olguinha. A Rosa me conhece. Dos camarim do
Municipal. No tempo da escola de balé. Agora, derrubo o teatro por
causa de uma negociata e o senhor não conhece o casarão sinistro. A
258
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 12-13.
123
gente entrava por baixo, ia prum camarim, ficava lá puxando maconha
e pegando no pinto dos rapaz. Depois, a Rosa dava pra todo mundo na
frente de todo mundo. Ela adorava essa farrinha e quanto maior o pinto,
mais gritava. Um dia – ? quer saber, quer, mesmo – fizemos um
espetáculo, de madrugada. Encheu o teatro. Os homens sairo das
camas de madrugada e foram pra lá, pagaram uma nota. Puta show,
seu corno de merda. Que puta show. Teve tudo. Desafio de palavrão
entre as meninas, foda, strip-tease, mijada, cagada, chupada,
enrabada, punheta. O teatro ficô cheirando a porra. (...) Porra de
quinhentos homens. Sabe. ? Sabe o que mais. ? Sabe que quase dez
homens descobriram as filhas deles, lá
259
.
O consumo, intrinsecamente ligado ao tema da comunicação de massa, assedia
e atormenta os personagens. Se, por um lado, esse bombardeio incessante influencia
no sonho acalentado por Rosa – o de adquirir a casa própria –, por outro, contribui para
a instauração de uma evidente conexão sexual estabelecida entre os homens e os
objetos, na medida em que a esses últimos é interditada uma opção pessoal para
canalizar suas energias. Entretanto, no mundo industrializado, regido pela lógica da
mercadoria, os valores são instáveis. Essa relativização de valores está presente não
somente na relação dos sujeitos para com os objetos, mas também na relação entre os
indivíduos. Em Zero, a consciência relativa que José tem das coisas – a qual não
permite que ele assuma o papel de sujeito efetivo de suas próprias ações, sempre
comandadas por pulsões ou emoções inexplicáveis – atinge inclusive suas relações
afetivas. Não sabe se ama Rosa ou não, se quer se casar com ela ou não, se quer
deixá-la ou não:
Também, não interessa, não gosto dela, não sei por que estou me
casando. Só sei que tenho de me casar, me juntar com ela, ficar com
essa gorda para sempre. Gosto de suas coxas, de sua cintura grossa,
daquele peito duro. Depois, tem qualquer coisa que me faz ficar com
Rosa. Tem sim. Ou não tem, estou fazendo bobagem, devia largar dela.
Não largo, não tenho coragem
260
.
Este segmento do trabalho procurou avaliar algumas particularidades relativas à
constituição do sujeito em Zero, de Loyola Brandão. Pelas reflexões efetuadas,
constatou-se que o contexto sócio-histórico onde se movem os personagens é
259
Idem. p. 78.
260
Idem. p. 85.
124
determinante para a constituição de sua subjetividade. No livro, as ações transcorrem no
final da década de 60, época em que a América Latíndia (e, também, o Brasil) enfrenta
situações particulares associadas à experiência do autoritarismo. Num solo violento e
destrutível, controlado por forças repressivas, a constituição do sujeito é abalada. Num
ambiente onde as possibilidades de emancipação e liberdade individual são limitadas e
questionadas, o indivíduo torna-se perplexo. O impacto opressor da realidade autoritária
– considerando-se, aí, massacres, chacinas, torturas e perseguições variadas –
contribuiria para o descentramento do sujeito e concorreria para uma série de traumas
sociais. Além disso, conforme complementa Malcolm Silverman,
[o] quase “culto da destruição” de Loyola, sua ênfase no lado feio,
grotesco e pervertido da natureza humana – e, por extensão, da
sociedade – é novamente uma conseqüência lógica da alienação do
homem e seu subseqüente desespero. O desejo ou a necessidade de
destruição seja da ordem social reinante (coletiva) ou dos segmentos
insatisfeitos (individual), ditam implicitamente uma rejeição dos padrões
convencionais de comportamento. O resultado é a chamada conduta
anti-social ou não social, uma espécie de bête-noire temática cuja
finalidade é escandalizar o leitor tipicamente pertencente à classe
média, sacudindo-o e despertando-o de sua suposta complacência
261
.
Não é apenas tal circunstância que aniquila os personagens do romance em
apreciação. As próprias estruturas e valores do mundo contemporâneo são decisivos
para a definição do perfil dos sujeitos. A contemporaneidade seria caracterizada pela
descontinuidade, pela mudança, pelo relativismo. O indivíduo, frente a isso, tentaria se
adaptar a uma multiplicidade de contextos que lhe é imposta e, sem sucesso, sentir-se-
ia desajustado, fragmentado. Dito de outro modo, na sociedade da informação, o sujeito
participaria de uma infinidade de mundos, algo que implicaria uma pressão constante à
mutação. Como decorrência disso, o sentimento do sujeito é de constante perda, e isso
suscitaria um estado geral de fragilidade, angústia e, por tabela, de insignificância frente
à totalidade.
Por extensão, os meios de comunicação de massa, que imperam nessa era
industrializada, constituiriam um outro tipo de poder, não menos autoritário, que
aniquilaria o sujeito. Funcionando como espiões, eles ditam ordens, divulgam regras,
261
SILVERMAN, Malcolm. A ficção de Ignácio de Loyola Brandão. In: ____. Moderna ficção brasileira.
Trad. João Guilherme Linke. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1982. p. 219.
125
vigiam comportamentos e conduzem a sociedade ao consumo. Como resultado, os
personagens são quase todos alienados e passivos, incapazes de assumir seus
próprios pontos de vista críticos. Isso abriria fendas para a própria reificação do homem,
o qual, comparado à mercadoria, converte-se em objeto de uso descartável. Ademais,
isentos de posturas reflexivas autênticas, esses indivíduos se despersonalizam, perdem
a identidade. Em Zero, talvez a figura mais dilacerada seja José, porque está sempre
tentando escapar dos fios que o enredam. Enfim, os personagens estão num labirinto
sem saída e se debatem no círculo fechado de zero.
3.2.2 A carnavalização na narrativa de Ignácio de Loyola: a perturbação da
ordem social
Vadinho o primeiro marido de dona Flor, morreu num domingo de
carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num
bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua
casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em
companhia com mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e
vinham de um bar no Cabeça onde o uísque correra farto à custa de
um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.
(Dona Flor e seus dois maridos, Jorge Amado)
Lançado em 1975, o romance de Ignácio de Loyola Brandão surge em um
momento delicado para a intelectualidade nacional, que convivia, na época, com a
propaganda desenvolvimentista patrocinada pela Ditadura Militar e com o rigor da
censura prévia então em curso. O autor de Zero, vivendo a amargura do período,
ficcionaliza situações sociais cuja abordagem era desaconselhada em decorrência das
circunstâncias políticas vigentes. Ainda em função disso, a divulgação do livro não foi
tranqüila: mesmo antes de surgir, ele enfrentou todo tipo de restrições. Não obstante, o
seu grande mérito possivelmente tenha sido o de conseguir aliar duas inovações
aparentemente irreconciliáveis: o experimento técnico na estrutura do texto e uma
linguagem quase coloquial. Nesse sentido, é a perfeita união entre os elementos formais
e temáticos que confere à obra um perfil subversivo.
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se dizer que, com o intuito de resgatar
formas marginais desvalorizadas pela crítica e derrubar hierarquias postas entre a
126
sociedade civil e a classe dirigente, o escritor lança mão de recursos que se inscrevem
na cultura carnavalesca, nos moldes propostos por Mikhail Bakhtin. Em outros termos,
com o objetivo de provocar um efeito prático em seus leitores, qual seja o de mudar a
sua percepção em relação ao ambiente repressivo circundante, o livro busca
dessacralizar valores adaptando-se a particularidades conforme as necessidades dos
oprimidos e impotentes. Desse modo, a teoria do carnavalesco, tomada de empréstimo
do pensador russo, utiliza a vulgaridade criativa da cultura popular para atacar a cultura
oficial, sufocante e elitista.
Embora os comentários mais sistemáticos acerca do carnavalesco apareçam no
livro em que Bakhtin discute a cultura popular na idade média e no renascimento e,
ainda, naquele em que trata da produção dostoievskiana, a noção é prenunciada no
texto em que ele desenvolve uma crítica marxista das idéias de Freud. Aí, Bakhtin
afirma que o conceito central da psicanálise – o inconsciente – é uma ficção ideológica,
já que ele é, na verdade, lingüístico por natureza, e a linguagem é sempre social e
histórica, portanto um aspecto do consciente. A partir dessa base, o autor reformula a
distinção consciente/inconsciente, como uma diferenciação não entre duas ordens da
realidade, mas entre duas modalidades de consciência verbal.
Com isso, os fenômenos que Freud apresenta como manifestações do
inconsciente nada mais seriam do que outra espécie de consciente não oficial, que se
afasta das normas socialmente aceitas e prefere um discurso de tipo interno. Em
contrapartida, a consciência oficial, expressa no discurso externo, faz parte de um
mundo público cujas ideologias podem ser abraçadas com toda respeitabilidade, sem
temor de ofensa ou ridículo. Contudo, tanto o discurso interno quanto o externo, tanto a
consciência não oficial quanto a oficial são igualmente sociais, ou seja, patrimônio
partilhado por um grupo social e não propriedade privada. Isso antecipa, por sua vez, a
concepção de carnaval proposto por Bakhtin, como subversão do discurso oficial e
liberação da censura, um momento especial em que o discurso interno não teme tornar-
se externo
262
.
A propósito, o carnaval teve suas origens em práticas festivas da Antigüidade
greco-romana e recupera, na cultura renascentista, uma força transformadora. Em tal
período, amainado o rigor da censura medieval, a proposta carnavalesca surge
262
Cf. interpretação proposta por STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad.
Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992. p. 21.
127
acompanhada do riso e da alegria como um patrimônio do povo e dotado de um caráter
universal. Assim, se na Idade Média o riso é abolido das esferas oficiais da ideologia e
de todas as formas oficiais da vida, porque o “tom sério exclusivo caracteriza a cultura
medieval oficial”
263
, no Renascimento, entretanto, ele é readmitido dentro da obra
literária, valorizado tanto quanto o sério, já que se constitui numa “das formas capitais
pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história,
sobre o homem”
264
. De qualquer modo, a alusão ao popular proposto por Bakhtin visa a
chamar a atenção para as origens da força dessacralizadora e livre do riso
carnavalesco, ou seja, a manifestação popular consistiria numa resposta aos princípios
organizadores e formalizadores da sociedade.
Nesse sentido, tomando como base teórica os estudos do pensador russo, a
literatura carnavalizada configura-se como aquela que sofreu direta ou indiretamente a
influência deste ou daquele aspecto folclórico, antigo, medieval ou mesmo regional.
Dentro da problematização da poética histórica, os domínios do sério/cômico, do lúdico,
do fantástico experimental, do simbolismo e do mito, da polifonia da narrativa e da
pluralidade estilística se mostram como aspectos centrais que definem a literatura
carnavalizada. Assim, ela trabalha, principalmente, com os domínios da cultura popular,
sua ideologia e seus aspectos históricos. Dessa forma, as festas, os rituais, as
encenações, as solenidades e os espetáculos populares se constituem como fonte e
ponto de partida na organicidade da literatura carnavalizada.
Ao tratar da carnavalização da literatura, Bakhtin parte do próprio termo carnaval,
definindo-o como um “conjunto de todas as variadas festividades, dos ritos e formas de
tipo carnavalesco”, e sua influência na literatura enquanto gênero. A carnavalização,
para o autor, seria a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura”. Note-se
que o teórico fala em “transposição”, pois o carnaval não é um fenômeno literário; é uma
“forma sincrética de espetáculo de caráter ritual” que se adapta a épocas, povos e
festejos particulares, sem representantes específicos, já que todos atuam, isto é, vivem
uma vida carnavalesca. Nesses termos, a carnavalização se caracterizaria por proceder
a uma inversão do cotidiano
265
. Sendo o carnaval, na acepção bakhtiniana, o locus
privilegiado da inversão, pretende-se, nesse segmento do trabalho, avaliar como tal
263
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Trad. Yara Freteschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília, EDUnB, 1987. p. 63.
264
Idem. p. 57.
265
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 105.
128
recurso se faz presente em Zero e em que medida ele intenta contra a ordem autoritária
estabelecida.
Bakhtin destaca quatro categorias através das quais a carnavalização da
literatura pode ser percebida. A primeira delas seria o livre contato familiar entre os
homens. Em lugar público, com livre gesticulação e discurso, as pessoas se libertam e
se aproximam mais umas das outras. Conforme explica o autor, os indivíduos,
separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em contato na
praça pública carnavalesca. A partir de tal particularidade, salienta o teórico, averigua-se
o caráter especial da organização das ações de massas, determinando-se igualmente a
livre gesticulação carnavalesca e o franco discurso carnavalesco
266
.
Em Zero, a aludida categoria faz-se presente como forma de assinalar uma
reação contra o controle da sociedade por parte do Estado, que tem como objetivo a
cooptação das mobilizações sociais. Na América Latíndia, impera o autoritarismo e, por
isso mesmo, há uma preocupação com a manutenção da ordem: “[c]om a repressão que
anda por aí, (...) cassaram as licenças para circular depois de 21:34 horas”
267
. Assim, o
romance elege como personagens não somente aqueles segmentos que constituem a
elite governante – policiais, ministros, presidente –, mas também a parcela
marginalizada – presos, aleijados, miseráveis, indigentes, loucos – para que deixe de
habitar a periferia e, com isso, se converta num grupo contestador da situação vigente.
É justamente esse encontro de diferentes classes e grupos o que propicia a inversão e a
dessacralização dos valores formados na tradição. Ou seja, à medida que são
apresentadas as atitudes mesquinhas da elite, ela perde as conotações positivas. Por
extensão, conquanto o povo se mostra vítima dos abusos, ele ganha mérito pela
valentia em resistir ao autoritarismo. É o que pode ser verificado no seguinte excerto do
livro:
O Presidente chamou o Supremo Comandante das Forças
Armadas Repressivas:
– Limpe as prisões. Esconda ou mate os presos. Arranje
subversivos dispostos a colaborar, assinando declarações a nosso
favor. Encha os hospitais com gente nossa e diga que são feridos pelos
terroristas.
Meses depois a ONU recebeu o seguinte comunicado:
266
Idem. p. 106.
267
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 15.
129
NOSSAS PRISÕES ESTÃO ABERTAS A QUALQUER
COMISSÃO INTERNACIONAL PARA QUE SE VERIFIQUE
A FALSIDADE DAS NOTÍCIAS QUE DIFAMAM ESTA
NAÇÃO NO ESTRANGEIRO. SOMOS UM POVO BOM,
PACÍFICO, AVESSO À VIOLÊNCIA E DEMOCRÁTICO.
GÊ PARA JOSÉ:
. Nesta época a gente tem é que ser de aço
268
.
Como se observa nesse fragmento, a classe dirigente não consegue sustentar
uma imagem positiva frente à nação. São suas próprias atitudes cafajestes que revelam
a sua verdadeira face perversa. Como conseqüência disso, Ignácio de Loyola Brandão
consegue um efeito de inversão dos discursos oriundos dos detentores do poder, algo
que abre caminho para que esses últimos sejam julgados como mentirosos e sem
credibilidade. Com isso, o país, representado pela classe dominante, seria o avesso à
ordem. A sociedade civil, alvo de tais atrocidades, seria aplaudida por suportar todo tipo
de cinismo. Como diz Gê nesse trecho: “[n]esta época a gente tem é que ser de aço”.
Portanto, por intermédio dessa estratégia carnavalesca de colocar todos os opostos
dentro de um mesmo paradigma é que o relato ganha um sentido dessacralizador da
realidade, algo que permite que se construa uma outra perspectiva para a história.
A segunda categoria através da qual a carnavalização pode ser percebida na
literatura diz respeito à excentricidade. É ela que dá ao homem condições de se
expressar, de revelar seus aspectos humanos ocultos. De acordo com Bakhtin, o
comportamento, o gesto e a palavra do sujeito libertam-se do poder de qualquer posição
hierárquica (de classe, título, idade, fortuna) que os determinava na visão
extracarnavalesca, razão pela qual se tornam excêntricos e inoportunos do ponto de
vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco. Conforme complementa o autor, “[a]
excentricidade é uma categoria específica da cosmovisão carnavalesca, organicamente
relacionada com a categoria do contato familiar; ele permite que se revelem e se
expressem – em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da natureza
humana”
269
.
Com isso, os personagens, ao revelarem o que pensam ou ao expressarem
gestos ou comportamentos espontâneos e/ou obscenos, demonstram um espírito de
268
Idem. p. 266-267.
269
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 106.
130
excentricidade e de libertação das normas estabelecidas. No espaço autoritário onde se
movimentam os personagens de Zero, a excentricidade consistiria num recurso que
traduz o sentimento de inconformidade e desconforto da sociedade para com o Estado.
Assim, com o propósito de destruir aquela ideologia que visava a traçar uma
personalidade social do povo como branda, tolerante e respeitosa, Ignácio de Loyola
Brandão se vale de assuntos que desrespeitam a moral e os bons costumes pregados
pela elite. Em função disso, matérias consideradas subversivas tais como a
manifestação de atos sexuais explícitos, exibição sensual ou erótica das partes do
corpo, referências a uso de tóxicos, vulgaridade de expressões ou linguagem de baixo
calão buscam pôr em xeque os fundamentos de uma sociedade dita acomodada e sem
reação frente ao poder. No trecho abaixo, a vulgaridade é uma expressão de
desrespeito e, portanto, de resistência e desacordo com os ditames do governo:
HORA OFICIAL
Povo, meu bom povo!
O arauto peidou. Tinha a barriga grande o que estragava o seu
físico modelado por anos de eficiente ginástica. Sofria de cirrose e
peidava muito. O arauto estava num palanque, diante do microfone. O
microfone estava ligado aos alto-falantes colocados em todas as praças
da cidade. E transmitia em cadeia para o interior. Entrava nas ondas
das rádios. O peido forte foi ouvido em todo país.
Povo, meu povo feliz!
Saibam todos. Saibam que somos o povo que menos gasta com
suas forças armadas em todo o mundo! Não é uma alegria? Não é uma
satisfação saber isso?
Peidou de novo, silencioso.
Cada cidadão contribui com dois dólares e meio por ano para o
encargo de defesa.
E meus bons cidadãos! Isto não é justo. Não é. Por isso é que
somos um país indefeso. A mercê de qualquer um que queira nos
atacar.
Saibam que o governo zela. Por todos nós. E prepara um
formidável esquema de defesa. Que vai custar um pouco mais para
cada um.
A partir de hoje, cada cidadão contribuirá com 10 dólares anuais
para a manutenção das forças armadas.
Um peido vinha vindo, mas ele segurou, até voltar ao carro, onde
se aliviou ruidosamente, quatro vezes
270
.
O desrespeito para com as palavras do presidente se faz notar pelo descontrole
bizarro do arauto que, ao soltar gases intestinais, provoca ruídos que, ouvidos por todos,
270
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 155.
131
estimula o riso, algo que conseqüentemente elimina o tom sério do discurso oficial. Em
Zero, não somente essa particularidade intenta contra a ordem estabelecida,
comportamentos que comunicam intenções lascivas e obscenas e vocábulos
extravagantes, da mesma forma, se voltam contra um certo padrão visto como aceitável,
já que eram considerados crimes contra os costumes:
O quarto amarelo, e não é da luz fraca da pensão. José segura na
cama, para não desmaiar. Rosa recortando revistas, e colando, uma a
uma, as fotos e as letras de música num álbum marrom. José sente um
cheiro de bosta, um segundo só, e vê o fogo queimando tudo.
E ele começa a urinar em cima do álbum. Rosa com a tesoura,
pronta para cortar seu pinto, vermelha de raiva, amarelo (? E esse
amarelo, eu tinha parado de ter isso, tinha acabado). Clic-clic-clic-clic,
você não sabe o que passou, só não cortei porque teu pinto é bonito, é
o mais bonito que já vi (? Então viu outros).
. Não faz mais isso, Rosa, não faz mais.
? O quê?
. Não coleciona essa gente, não. Pelo amor de deus, não
coleciona, ou te mato.
. Pfuuuuuuuuuuu / ruído de peido com a boca /
Plaft, plaft, ploft, pacatum, pacatum, pimba, pimba, pimba, plaft,
ploft.
. Seu filhodaputa, vou voltar pra casa.
. Vai teaputaqueopariu, caralho de merda, vaca de bosta
271
.
A terceira categoria que, segundo Bakhtin, define a carnavalização na literatura
consiste naquilo que o autor chama de mésalliances. Seria a celebração de alianças, de
acordos antes nem imaginados. Como escreve o teórico: “[e]ntram nos contatos e
combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e
distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca”
272
. Nesse
particular, ficaria lado a lado o sagrado e o profano, o elevado com o baixo, o grande
com o insignificante, o sábio com o tolo, só para citar alguns pares.
Em Zero, há várias passagens onde tais mésalliances são evidenciadas. Em
certa altura do livro, numa entrevista para seleção de candidatos para um possível
emprego, nota-se a fusão dos opostos:
271
Idem. p. 115-116.
272
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 106.
132
? Do sertão.
? Como sabe.
. Já vieram oito bolas rolantes de lá.
O homem tinha as plantas dos pés grudadas na cabeça. Seu
corpo formava um círculo. Foi contratado.
. A Firestone patrocina o show. Construíram um caminhão e vocês
serão as rodas.
. Obrigado, moço. Obrigado. Até que enfim arranjei um emprego e
posso sustentar minha família, meus filhos
273
.
Em situações como as descritas, pressupõe-se a formalidade, a seriedade tanto
do entrevistador quanto à do entrevistado. Não é esse, entretanto, o efeito atingido pelo
texto. Há um veio cômico, satírico que subjaz ao diálogo. O fato de o sertanejo aceitar o
emprego a ele oferecido – o de servir de rodas de um caminhão – provoca o riso,
suspendendo, assim, a formalidade exigida pela circunstância. Não só isso, a conversa
evidencia outros opostos: o sábio e o tolo. O entrevistador é o sábio, aquele que conduz
a conversa, que tem o poder de manipular seu interlocutor; o entrevistado preenche os
requisitos de um tolo, já que não tem senso crítico para julgar a proposta absurda a ele
feita.
A quarta categoria que define a carnavalização da literatura está ligada à
profanação. Segundo Bakhtin, ela seria formada pelos sacrilégios carnavalescos, por
todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas, pelas indecências
carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas paródias
carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas
274
. Não são raras, em Zero,
passagens em que elementos do contexto religioso são referidos para posterior
dessacralização:
A CRIAÇÃO DE JOSÉ SEGUNDO SUA MÃE
ou a formação moral de um homem
Vamos comungar meu filho Venha com a mamãe para a missa
Pegue o seu missalzinho Se confessou direito ontem A gente precisa
ser um bom católico Você vai ser um bom católico Você é bom é
piedoso. Eu desejo Jesus em meu coração (Cara séria, cabeça
abaixada, respeito: disse a catequista: a primeira comunhão é o
momento mais importante na vida de um católico: depois, só a morte).
273
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 71.
274
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 106.
133
A mão trazendo a hóstia (? Será que tem chocolate, depois). A patena
por baixo refletindo o lustre, a luz atravessando a hóstia. Um relâmpago
branco de luz e hóstia, engolido por José, prazer, eternidade, os gelos
do céu. Jesus descendo para o estômago para depois tomar os canais
certos e ir ao coração. (...) Os Marianos formarão uma legião para
dominar o mundo – levando a bondade e a palavra de Deus a todos os
lares – afastando os perigos do demônio. (...) Mas o meu pé, mãe,
Deus entortou ele. ? Por quê. Para te provar meu filho Aceite sempre a
vontade de Deus ele sabe o que faz. (...) Deus castiga – olhem o
inferno ao meu lado – irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo. O nosso
país se salvará do castigo final – é a nação mais católica da América
275
.
A dessacralização, tal como aparece nessa passagem, está centrada
basicamente na maneira como determinadas proposições bíblicas são apropriadas pelo
romance. A mãe de José profere várias sentenças de cunho religioso no esforço de
instruir o filho dentro dos preceitos católicos. Nesse caso, chama a atenção o fanatismo
da locutora, mas é o contexto de produção e o conteúdo das mensagens que subvertem
o sentido positivo que carrega o discurso divino. Ao acreditar com toda fé nos princípios
da igreja e aceitar a condição social que lhe é reservada, o personagem leva a crer que
a religião é um meio através do qual ideologias de submissão e aceitação são
transmitidas às pessoas. A dessacralização parece residir justamente nesse ponto: o
que é sagrado passa a ser profanado, conspurcado, desacreditado.
Outra característica fortemente marcada do processo carnavalesco é a polifonia.
O texto carnavalesco oferece uma pluralidade de vozes, consciências independentes,
eqüipolentes e seus universos. A narrativa polifônica, portanto, apresenta uma
participação múltipla de vozes (personagens) e estilos, ao invés de uma linearidade do
conteúdo na obra literária. Há uma coexistência e uma interação de personagens e
linguagens, de universos, de pontos de vista, que remetem à organização do texto
carnavalizado. Nesse sentido, o mundo é pensado mais espacialmente do que
temporalmente, havendo, por isso, uma simultaneidade de pontos de vista sobre ele.
Para tanto, o universo carnavalesco é ambientado por uma grande quantidade de
personagens e temas. Assim, os personagens “falam” através de um espaço duplo.
Espaço ambivalente que é necessário para que as relações entre narrador, personagem
e fruidor se completem.
275
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 39-40.
134
Utilizando-se do aludido princípio, Zero se volta para a coletividade. Isso significa
que o livro não apresenta a voz de um indivíduo em monólogo ou diálogo, mas várias
vozes, várias consciências que se impõem à medida que lhe é oportunizado o direito de
expor suas idéias dentro de um processo narrativo. Tal recurso técnico empregado por
Ignácio de Loyola Brandão possibilita a uma multiplicidade de personagens terem
acesso à voz narrativa. Em decorrência disso, ter-se-ia uma literatura social voltada para
a coletividade, com seus problemas, angústias e frustrações, como se verifica no trecho
a seguir:
OS ENGANADOS: MELODRAMA SENTIMENTAL
. Mas eles pediram. É o ouro para o bem do país.
. Dá outra coisa, mãe. A aliança, não.
. Eles precisam dinheiro para combater o comunismo, filho.
. Mentira deles, mãe. Vai para o bolso deles.
. Que falta de fé. Meu deus, me ajude. Se os padres estão
pedindo, precisam.
. Então, dá, mãe. Dá a tua aliança.
DETERMINAÇÃO OFICIAL
O arauto proclamou: A partir desta data, os homens só devem
apanhar os táxis pretos. As mulheres, os amarelos.
MOBILIZAÇÃO PARA CAPTURAR JUMENTO LOUCO
A polícia está recrutando vaqueiros para capturar o jumento que
enlouqueceu. O animal ataca as mulheres que vão lavar roupa no
córrego do Italiano. Os veterinários dizem que o jumento está sofrendo
de encéfalomielite ou “mal de roda”, comum nos animais herbívoros e
que consiste numa inflamação simultânea do encefálico e da medula e
que provocam distúrbios dificilmente curáveis, devido à gravidade da
lesão.
. Prazer, seu Átila, um bom laçador.
. Prazer é meu. Sou El Matador, um toureiro.
OS PAPÉIS PARA RECEBER A CASA
O corretor passou os papéis. A secretária apanhou o contrato.
José assinou. Vieram mais papéis. José foi assinando. Cinco horas
mais tarde saiu de lá.
. O senhor é o feliz proprietário de uma casa no Jardim Assunção,
o maior e mais belo conjunto residencial do país. Somente um Governo
ativo e dinâmico como o atual poderia cuidar tão bem do problema da
habitação.
HORA OFICIAL
As gravadoras têm um mês para liquidarem os
estoques de músicas profanas. Dentro de trinta dias
serão permitidas apenas músicas sacras e as
marchas patrióticas.
Determinação Sagrada n.° 5463789j78a
135
Rosa jogava alka-seltzer dentro do copo, o comprimido fervia, ela
aproximava o copo do queixo: “para fazer cosquinhas. É tão gostoso”.
O alka-seltzer fazia cosquinhas, Rosa ria
276
.
No fragmento transcrito, além de inúmeros personagens – a mãe, o filho, o
arauto, Átila, El Matador, o corretor, José, o radialista e Rosa –, tem-se uma variedade
de tópicos temáticos – a entrega de uma aliança para os padres, a determinação do uso
de diferentes táxis para homens e mulheres, a captura de um jumento, a entrega de
uma casa, a supressão de músicas profanas e o gracejo ocasionado pela efervescência
de um comprimido – que garantem a polifonia do texto. É justamente isso o que abre a
possibilidade de fazer fluir, na narrativa, visões distintas, ideologias diferentes, opiniões
várias. Essa mescla e mistura, onde os contrastes violentos se caracterizam, é que
forma virtualmente o universo carnavalesco. O importante, nesse caso, é salientar que a
ambivalência proporcionada pela narrativa polifônica se apresenta, no romance, como
um debate público, como um desfile colorido e contrastivo da opinião popular sobre a
sociedade e o mundo. É essa soma de vozes e de estilos, essa simultaneidade de
idéias do espaço polifônico que rompe com o autoritarismo do discurso, já que dá vazão
para outras manifestações e questionamentos.
Afora tais elementos, a paródia, segundo Bakhtin, seria uma das técnicas
populares mais contundentes na literatura carnavalizada. Como explica o autor, a
origem da paródia remete à Antigüidade, mas ela não aparece nos chamados gêneros
puros como a epopéia e a tragédia. A paródia na literatura age para desentranhar
aquela voz recalcada que sufoca o homem
277
. Em função disso, ela funciona como um
processo libertador, pois, ao inverter valores e conceitos preestabelecidos, ela dá
margem para que traços do inconsciente individual e social se revelem. Nesse sentido, o
processo parodístico, através do julgamento público incitado pelo carnaval, se constitui
como crítica social.
Zero, no que diz respeito ao tópico paródico, elege como alvos preferenciais as
personalidades internacionais, os discursos oficiais, alguma produção artística e
contextos bíblicos. A recorrência a nomes estrangeiros acontece muitas vezes para fins
276
Idem. p. 140-141.
277
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 109-111.
136
de rejeição do modelo imperialista econômico e cultural, como se observa na passagem
a seguir:
Fotos que saíam na capa de revistas, mãe colecionando, José
rasgou o álbum, pôs fogo em foto por foto, aqueles artistas eram
amigos de sua mãe; queimando Tyrone Power, Linda Darnel, Douglas
Fairbanks Jr., Maureen O’Hara, John Hall, Maria Montez, James
Cagney, Xavier Cugat, José Iturbi, Cary Grant, George Sanders,
Laraine Day, Robert Young, Susan Hayward, Bette Davis, Joan
Fontaine, Olivia de Havilland, Clark Gable, Jane Powel, Ricardo
Montalban, Lorena Young, Judy Garland. Queimados, retorcidos, todos
cinza preta que ele foi assoprando na privada, dando a descarga.
Afogando
278
.
O trecho chama a atenção para a repulsa do protagonista para com os artistas
estrangeiros. O fato de José rasgar, queimar e se desfazer do álbum de fotografias
contendo as personalidades citadas intenta, como já se disse, contra a influência de
ordem econômica e, principalmente, cultural internacional. Os modelos de
comportamento sustentados pelos referidos nomes criam uma fachada de aparência
que não encontra correspondência em uma realidade nada pródiga ou exuberante. Em
outros termos, os atores e atrizes aludidos servem de fonte onde se instaura a paródia
como denúncia de uma elite que investe na imposição de domínios culturais.
Ainda no tocante à paródia, merecem registro referências a recortes históricos
específicos, acontecimentos sociais marcantes ou mesmo passagens bíblicas bastante
sugestivas para o propósito crítico do romance. No primeiro caso, tem-se como exemplo
um subtítulo que alude à entrada dos Cruzados em Jerusalém
279
. Trata-se de uma cena
em que estão sendo recolhidas assinaturas contra a infiltração do comunismo na igreja,
em defesa da família, da tradição e da propriedade. Assim como Jerusalém foi invadida
pelos Cruzados, teme-se a entrada do comunismo na igreja. No segundo caso, há uma
situação que narra o ataque de civis a discos voadores, os quais eram confundidos com
a polícia
280
. Diz respeito ao fato de, durante a Ditadura Militar, muitas pessoas sumirem
misteriosamente, algo que responsabilizava os discos voadores, questão muito polêmica
na época. No terceiro caso, há episódios que lembram o nascimento e a vida de Jesus
278
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 50.
279
Idem. p. 228.
280
Idem. p. 230.
137
Cristo: “A estrela indica a Família” e “A fuga para o Egito”
281
. Na obra, a situação implica
a necessidade de fuga em decorrência da repressão e do autoritarismo. Em todos os
casos, a paródia visa a atingir um sentido dessacralizador, em que a face complicada da
realidade vem à tona.
O carnaval, na concepção bakhtiniana, é mais do que uma festa ou um festim; é
“a cultura opositora do oprimido, o mundo afinal visto ‘de baixo’, não a mera derrocada
da etiqueta, mas o malogro antecipatório, simbólico, de estruturas sociais
opressoras”
282
. Nesse sentido, o carnaval é profundamente igualitário. Ele inverte a
ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis de acordo com o mundo às avessas. O
carnaval, com isso, coroa e destrona; ele arranca de seus tronos monarcas e instala
hilariantes reis da bagunça em seus lugares.
A propósito, o ritual da destronização é um dos pontos centrais do carnaval.
Consiste na elevação ao trono de um rei bufão, do rei momo, senhor-escravo. A partir
da efemeridade da festa carnavalesca, já se pode perceber a deposição, a
destronização, do monarca. Conforme explica o autor russo, na base da ação ritual de
coroação e destronamento do rei, “reside o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca:
a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação”. Ainda segundo o
teórico, “o cerimonial do rito do destronamento se opõe ao rito da coroação; o
destronado é despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos do poder,
ridicularizado e surrado”
283
.
A obra de Ignácio de Loyola Brandão, considerando-se tais pressupostos,
apresenta a imagem do mundo social e político que se assenta em estruturas de
coroamento e descoroamento. Resguardadas as diferenças, o rei momo do carnaval
manteria uma homologia com os personagens do livro no sentido de que tanto aquele
quanto estes são arrancados da periferia e passam a assumir papéis centrais nos seus
respectivos contextos. Ou seja, o romance elege como protagonistas os excluídos, os
marginalizados, os perseguidos, os esquecidos da história oficial e mesmo a fome e a
miséria. Entretanto, ao mesmo tempo em que esses últimos ganham espaço na
narrativa, eles são apresentados sem nenhuma nobreza ou mérito. Portanto, trata-se de
281
Idem. p. 230 e 233, respectivamente.
282
Cf. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Ática,
1992. p. 89.
283
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 107.
138
um coroamento que pressupõe, simultaneamente, um destronamento. As autoridades,
em contrapartida, não obstante seu coroamento, são destronadas ao longo do texto,
dada a dessacralização a que são submetidas em virtude das críticas a elas outorgadas.
A leitura de Zero revela situações cômicas que provocam o riso, conforme se
observou em algumas passagens transcritas. O riso, segundo argumentos
desenvolvidos por Bakhtin, tem um profundo significado filosófico, é um ponto de vista
particular sobre a experiência, não menos profundo que a seriedade. O riso popular
festivo triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte, e provoca a
queda simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que sufoca e restringe.
Ademais, o riso assume o papel de uma consciência crítica, através da qual diferentes
formas de autoritarismo podem ser ridicularizadas. De acordo com o pensador russo,
“[o] riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo; para a mudança dos
poderes e verdades, para a mudança da ordem mundial”. Seja como for, o caráter
cômico, cujo efeito alcançado é o riso, empresta à narrativa um sentido crítico, como no
fragmento abaixo:
Átila fez o normal na mesma cidade onde nasceu José. Não
conseguiu cadeira de professora. Um inspetor pediu a ele uma taxa,
assim seria mais fácil passar. Átila cagou no diploma e jogou na porta
do departamento de educação (...). Foi trabalhar como borracheiro.
Conheceu Carola no dia em que colocaram um out-door em frente à
borracharia. Ela era o modelo do anúncio. O apelido de Átila vem do
costume que ele tem de quebrar tudo, arrasar os lugares quando fica
bêbado
284
.
O cômico ou, pelo menos, o gracejo, nesse caso, advêm principalmente da
atitude de Átila em defecar sobre seu próprio diploma. O ato grotesco do personagem
consiste, na verdade, numa resposta ao sistema que, a exemplo das fezes, é poluído,
sujo e imundo. Aqui, o “baixo” material corporal se constitui na materialização das coisas
ideais, espirituais e abstratas, porque o rebaixamento, como averigua Bakhtin, é “o
princípio artístico essencial do realismo grotesco”
285
. A valorização dos excrementos
aponta para a permutação do alto e do baixo, numa inversão ambivalente do rosto pelo
284
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 13.
285
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Trad. Yara Freteschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília, EDUnB, 1987. p. 325.
139
traseiro, orientando o movimento para baixo e subvertendo a ordem das coisas, como
acontece no carnaval.
Além disso, o comportamento anti-social de Átila expresso na sua depuração é
essencial para a compreensão do indivíduo como ser social. O fato de ele evacuar sobre
o seu certificado exprime o máximo de desprezo e desrespeito para com as instituições
sociais. Com isso, o grotesco poder ter uma dimensão histórica denunciadora, já que
pode revelar aspectos da consciência de um determinado período histórico. Assim
sendo, os princípios provocadores do riso de par com a vazão do realismo grotesco
asseguram para Zero a exploração do cômico carnavalesco e emprestam à narrativa
um caráter de denúncia e de subversão da ordem.
A carnavalização na literatura tem como um dos seus propósitos fundamentais a
crítica social. Para tanto, além dos recursos já citados, lança mão de um discurso muitas
vezes irônico, satírico. Assim como o riso, o tom irônico que caracteriza muitas
passagens de Zero visa a denunciar certos referentes dotados de preconceitos,
dogmatismos ou mesmo autoritarismo. Enfim, a sátira funciona como um elemento
corrosivo à arbitrariedade dos que detêm alguma forma de poder. Desse modo, ela se
mostra útil na denúncia de abusos de autoridade, como se evidencia no seguinte
excerto:
HORA OFICIAL
O Governo tem a subida honra de informar que o povo não deve
se preocupar. Não há nada de anormal acontecendo. Os americanos
pediram permissão para instalar no norte do país uma base militar que
sirva de acesso a toda América Latíndia. Essa base será um trampolim
para as ações da nova Aliança de Auxílio aos Povos Latíndios e será
muito importante, porque os norte-americanos pagarão em dólares
aumentando as divisas do nosso país. O povo que se acalme (1), não
se trata de invasão, nem de entrega do território, apenas uma ajuda aos
nossos amigos.
As Américas unidas, unidas vencerão.
(1) Conversa do Presidente com seus auxiliares: Se ele não se acalmar,
borracha neles
286
.
O fragmento comporta uma série de detalhes que, em decorrência de seu tom
satírico e irônico, serve como forma de criticar o poder arbitrário. Em meio ao
286
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 152.
140
autoritarismo que imperava na época e frente à iminente possibilidade do domínio
imperialista norte-americano, é no mínimo bizarro o Governo informar à sociedade que
ela não precisa se preocupar com nada, já que tudo estaria acontecendo dentro da
normalidade. Como se observa, trata-se de um caso claro de “invasão” ou de “entrega
de território”, no entanto o discurso oficial afirma com ousadia ser “apenas uma ajuda
aos nossos amigos”. O tom irônico se estende na última fala supostamente do
presidente, alegando que, se o continente americano ficar unido, vencerá.
Em Zero, não é somente o mundo que é constituído às avessas, mas também a
própria forma como o relato se apresenta. Ele quebra com a logicidade, com a
linearidade estrutural das obras clássicas, e se apóia no banimento das regras de
pontuação gramatical, desrespeitando um padrão regular de distribuição de frases,
períodos e parágrafos. Essa carnavalização da linguagem visa a agredir o tradicional,
como no fragmento a seguir em que, a exemplo de outros casos, a pontuação e a
formação de algumas frases são deturpadas:
? A senhora viu. Aquele moço andava escrevendo pra minha filha.
Telefonei pra ele, e mandei parar. Pedi, educadamente: o senhor faça o
favor de parar de escrever, pra ela. A menina é nova, ele escrevia
coisas, esquisitas. Coisas, esquisitas. Coisa, ruins. Dizia que não era
muito importante se casar. Isso, era só uma, das coisas. (...) A gente,
quieta na terra da gente, e esses depravados colocando besteiras nas
cabeças, de nossas filhas. Querer que ela fosse embora, daqui, um dia.
Ora essa, minha filha, tem quinze anos, namora um rapaz ótimo, filho
do diretor da faculdade, vai se casar bem, vai ser, feliz
287
.
O carnaval, enquanto conjunto das variadas festividades e ritos, apresenta como
mecanismo básico a inversão. Tal acontecimento festivo surge em oposição ao
cotidiano, logo a alegria, a comicidade, a fantasia e o grotesco se contrapõem à
austeridade, à seriedade e à uniformidade e, por isso, ele é situado no paradigma da
desordem em contraste com a ordem sustentada por outras estruturas. Ao assumir essa
desordem, o carnaval se coloca contra tudo o que é fundamentado pela moral, pelo
civismo e pela ética social. Conforme complementa Roberto Da Matta, é por meio desse
evento festivo que determinados aspectos da realidade social – facetas que
normalmente estão submersas pelas rotinas, interesses e complicações do cotidiano –
287
Idem. p. 76.
141
são dramatizados e imbuídos por significados novos e às vezes surpreendentes
288
.
Ainda de acordo com esse autor, é durante o carnaval que é permitida a confusão das
regras hierárquicas.
A carnavalização, segundo preceitos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin,
consistiria na transposição do carnaval para a linguagem literária. Isso significa, por
conseguinte, que um dos propósitos da carnavalização na literatura é proceder à
inversão de uma ordem instituída hierarquicamente. Assim, aquelas categorias que
definem a carnavalização – o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, as
mésalliances, a profanação, a polifonia, a paródia, o ritual de coroação/descoroação e o
riso – têm em vista colocar em xeque determinadas estruturas. Ao valer-se dos aludidos
recursos, Zero busca lançar possibilidades de leitura que visam a trazer à tona o que
está marginalizado, reprimido. Tudo isso objetivaria a dessacralizar o poder e propor
mudanças numa sociedade com uma ideologia histórica dominante, encompassadora e
autoritária como é a América Latíndia (ou o Brasil, se se quiser).
3.2.3 A estética fragmentária em Zero: subversão e crítica social
Rodolfo não suportará os maus-tratos na granja 31 de março, onde
teve as unhas arrancadas, os dentes extraídos a sangue frio. Será
entregue à família num caixão lacrado. O senhor está vendo ali,
delegado, um vulto se arrastando?
(Operação silêncio, Márcio Souza)
As formulações precedentes demonstraram que Zero procura tematizar os
efeitos de um processo caótico de estruturação social. Assim, o empreendimento do
autor não deixa de lado a opressão e a liquidação do indivíduo, a degradação da vida
cotidiana, a erupção de sentimentos ou comportamentos cruéis, a violência política e
urbana, enfim, aspectos da nova realidade cultural. Todos esses elementos de cunho
temático ganham consistência porquanto se desvela o esforço do escritor para
assegurar um procedimento estético que seja compatível com a ordem do real que ele
tenta figurar. Através do recurso da carnavalização, que foi um dos propósitos da
288
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4. ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. p. 34.
142
reflexão aqui encenada, a obra dá vazão a uma série de recalques impostos pelo
autoritarismo. Tal expediente, nesse particular, abre caminho para se pensar a
fragmentação do texto, algo que habilita uma visão crítica daquele momento.
Nesse sentido, a caótica organização estrutural da narrativa determina a
elaboração de uma linguagem que se dissipa justamente ao apresentar a dispersão que
caracteriza os conteúdos tematizados. Sendo um elemento estruturador de
procedimentos lingüísticos, poéticos e temáticos, a presença do caos define e modela a
linguagem. Esta, por sua vez, passa a ser a principal força motriz, responsabilizando-se
por e motivando todos ou muitos desvios averiguados no texto. Zero constitui-se, dentre
as várias possibilidades significativas dele oriundas, num romance cuja preocupação
fundamental é a linguagem. Dela partem as demais peculiaridades que a obra comporta.
Como resultado disso, o próprio conteúdo abordado sofre alterações e tem o poder
significativo enriquecido à medida que é veiculado através de recursos formais por si
mesmos já produtores de significados.
Dentro das aludidas concepções, a obra de Ignácio de Loyola Brandão –
resultado formal da compreensão aguçada da realidade diluída e desestruturada –
coloca sua linguagem contra os valores sustentados pelo autoritarismo dos anos 1970.
Com isso, tal linguagem resiste aos valores culturais da sociedade de consumo,
inclusive contra o romance de estrutura convencional. Em função disso, observam-se,
no livro em questão, além da acentuada fragmentação da narrativa, o uso da montagem,
o desrespeito às regras convencionais (pontuação, sintaxe, grafia), a desordem dos
vocábulos, o uso de palavras informais e descuidadas, o recurso às técnicas
cinematográficas e televisivas. Ademais, Zero absorve em seu enredo, de modo
profundamente crítico, a opressão política, social e ideológica.
A elucidação dessas questões permite formular a idéia de que nada é gratuito na
composição de Zero. Todos os recursos formais ou antiformais são importantes para a
caracterização e para a constituição de uma totalidade. A totalidade fragmentária da
América Latíndia, a propósito, fica sugerida na própria estruturação do enredo da obra, o
qual é formado por uma infinidade de imagens desconexas e uma soma de histórias,
que apontam experiências limites do ser humano:
143
POLÍCIA ASSEGURA: “Ninguém ficará em liberdade até o fim do
século”. (“É preciso”, comentou o secretário da Segurança)
(...)
A EMIGRAÇÃO
. Mi nombre és Jose, soy colombiano.
. Eu também sou José.
. Mucho gusto.
? O que você sabe fazer de diferente.
. Nada. Yo era lavrador.
? Como posso te dar emprego.
. No lo se.
José, o colombiano, saiu sem emprego.
LIÇÃO DE GEOGRAFIA (Elementar)
COLOMBIA: 1.283.400 km
2
, café, algodão e cana-de-açúcar, trigo e
milho, United Fruit, petróleo, moeda oficial: o peso.
ADEUS, ADEUS
Acaba de embarcar, de mudança para a University of Michigan, o
cientista Carlos Correia, a maior autoridade do país em comunicações
eletrônicas. Ganhando aqui um salário pouco acima do mínimo e sem
condições de pesquisa, o sr. Carlos Correia preferiu se retirar por uns
tempos até que a situação melhore.
LIVRE ASSOCIAÇÃO
Cine odeon, paratodos, robinhood com errol flynn, perfume canoe
(dana), balas de hortelã, pegar nos peitos das meninas, tim holt,
hapalong cassidy, bill eliot, roy rogers, ken maynard, zorro, bang-bang,
clelia.
pam, tapam, rataplam, créééééééééééééééééé, puuuuuuuuuuu
(peido) when beguin the beguine, bandera rossa, pim, pim, pim, pim,
pim, clap, clap, clop
VIVER COMO LOUCO
José e os amigos dele: (reflexões)
(antes PENSAMENTOS DO DIA: Ruim com ela, pior sem ela)
José:
(Eu queria viver, louco irremediável, sem ligar para a minha vida, viver
sem parar, morrer de tanto viver (...), não levar essa vida que levo,
deslizando, sem fazer nada, sem saber o que sonhei um dia, se sonhei,
nem sei o que quero)
289
.
Os trechos transcritos enfatizam algumas considerações atrás formuladas. A
maneira como a narrativa se apresenta disposta na página do romance consiste num
primeiro recurso formal que merece particular atenção. Um após o outro vão surgindo
fragmentos que não resguardam entre si um nexo semântico lógico ou ordenado. Tais
blocos se caracterizam por apresentar desigualdades estilísticas e/ou variações
289
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 81-83.
144
temáticas que destroem não só a linearidade de andamento do texto, mas
principalmente a imagem convencional do romance. Essas passagens geralmente
curtas que tecem o enredo, embora pareçam arbitrárias ou destituídas de sentido,
incorporam a própria perplexidade social na sua conjuntura.
Essas observações conduzem à idéia de que, na obra, não existe um núcleo de
convergência temático. Não há, portanto, como atribuir maior ênfase a um assunto em
detrimento dos demais. No excerto do livro destacado, a realidade violenta, injusta e
disforme adquire expressividade à medida que os diversos temas são somados uns aos
outros. Assim, no primeiro fragmento, é reiterado o autoritarismo da elite que manipula a
sociedade civil subtraindo-lhe a liberdade; no segundo, ganham destaque os problemas
das emigrações como a desvalorização dos trabalhadores e o conseqüente
desemprego; a seguir, são fornecidos dados sobre a Colômbia. Tais informações, ao
mesmo tempo em que enfatizam a grandeza do país, servem como meio de crítica
social. Colômbia, a despeito de ter um território relativamente extenso e um potencial
produtivo respeitável, é tão problemática e paradoxal na sua estrutura que obriga seus
habitantes a migrarem à procura de emprego: é o caso de Jose, do trecho anterior.
Como se não bastasse isso, tem-se a desvalorização da elite intelectual, dos
profissionais graduados, que deixam o país em busca de melhores condições de
trabalho e remuneração. É o caso do renomado pesquisador Carlos Correia que se
desloca para os Estados Unidos. Na penúltima passagem, o fragmento é ele próprio
fragmentado: há vocábulos dos mais variados campos semânticos, onomatopéias e
recorrência à língua estrangeira. Frente a essa disparidade e convulsão social,
manifesta-se a vertigem do protagonista. Seja como for, a obra assenta-se em
segmentos que requerem associações a fim de que formem uma unidade dotada de
sentido.
Partindo-se dos aludidos pressupostos, é possível afirmar que a perplexidade
social, levada à radicalidade, faz surgir uma narrativa problemática. Num país debilitado
e esfacelado, em que os conflitos assumem proporções assustadoras, a tentativa de se
representar o real em moldes tradicionais implicaria uma falsa projeção dessa realidade,
já que o universo caótico ganharia dimensões assimiláveis pela experiência humana.
Portanto, para que a desordem social seja expressa com a devida intensidade, é
necessário manter a perspectiva de que, em regimes autoritários, vislumbre-se o
excesso, uma desmedida em relação aos parâmetros tradicionais. Assim, enquanto
145
resposta a um processo histórico violento e brutal, escritores rompem com as estruturas
convencionais de representação literária e suspendem as referências de delimitação da
realidade.
O autor de Zero, a exemplo de outros escritores brasileiros, se dedicou a temas
referentes à experiência do autoritarismo, à violência, à opressão e à modernização
massificadora. E ele o fez abdicando da perspectiva realista, que faz supor, segundo Ian
Watt, uma capacidade de compreensão do objeto representado em parâmetros
documentais e/ou racionais
290
. Loyola Brandão, ao invés disso, procurou tencionar os
limites entre a realidade e a imaginação, subvertendo parâmetros tradicionais, abolindo
a continuidade temporal, a articulação causal entre os acontecimentos, usando
vocábulos de baixo calão para exprimir um realismo cruel e feroz e, mesmo
fragmentando a palavra:
FRAÇÕES DO DRAMA COTIDIANO
Comum preso, pancadaPANcaDA. BordoADA. DadadadadaDA. Plaft,
pleft, porra, bate na boca, tira todos os dentes, as unhas, queima, fura o olho,
enfia um rato na boca, soda cáustica no olho, riscas de navalha e passa
salmoura em cima, enfia arames no rabo, dá choques, abre o cu dele, rasga
tudo, esmaga os dedos, o cacete, bate no estômago, dá litros de sal amargo,
faz ele comer a bosta, corta a língua, choques na língua, dá uma picada na
veia, dá uma injeção na cabeça
estraçalha, arrebenta em m
e
il p ço
da
s
quebra perna, braço, cabeça, pescoço, dedos, ossos, nariz, orelha,
coração, olhas as tripas do corpo comunista
filhodaputacornocagãocovardeterroristacachorrocanalha
291
Nessa passagem do romance, é enfatizado o grau de violência infligido contra os
comunistas. Essa violência pode ser pensada não somente a partir de uma situação em
particular, mas articulada como fator preponderante que afeta a muitas pessoas. Tudo
isso contribuiria para a fragmentação da forma estética. Assim, nesse caso, a oscilação
entre letras minúsculas e maiúsculas, entre registro vulgar e erudito, a falta de
290
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
291
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. São Paulo: Global, 1987. p. 273.
146
pontuação que obedeça às regras gramaticais e, principalmente, o dilaceramento da
expressão em mil pedaços são alguns dos recursos que permeiam a obra de Brandão e
denunciam sistematicamente a desumanização de um dado momento histórico. Com
tudo isso, portanto, caem as máscaras do realismo de fachada, caem as acomodações,
e são expostas as fraturas, as descontinuidades da subjetividade cuja constituição foi
atingida, em seu cerne, pela opressão da história.
A catástrofe que caracterizou o Brasil nos anos 1970 é tomada não somente
como elemento de problematização das relações humanas, mas como problema
estético. Como conseqüência do impacto do regime autoritário na constituição social, as
formas como se procurou apropriar de tal experiência – percepção, consciência,
memória – são violentamente abaladas. A formação social, sendo resultado de um
processo de construção forjado e sustentado como uma série de ações destrutivas –
massacres, torturas, mutilações, violência sistemática, coerções e ameaças –, manteria
ligações tanto com a consolidação de princípios de vida política como com a articulação
de formas específicas de representação estética. Assim, a fragmentação formal, a
pluralidade de temas, a constituição problemática do sujeito, a seleção lexical, o
emprego de procedimentos de vanguarda, formulações de caráter político e imagens do
ambiente urbano dão complexidade à obra em questão. Considerando-se o conjunto da
produção romanesca produzida até aquele momento, trata-se de uma concepção
renovada.
Tal renovação que a arte experimenta em decorrência de condicionamentos
históricos e sociais pode ser útil na avaliação da historiografia. Afinal, a reflexão sobre o
texto dito literário não exclui uma reflexão a respeito das modalidades de escritura
historiográfica. Walter Benjamin, a rigor, foi um dos pensadores que melhor refletiu
sobre a história e sobre a sua escritura. A abordagem proposta pelo autor acerca da
história valoriza a sua interrupção pontual (determinada num aqui e agora), privilegiando
a cesura no tempo. O tempo, para ele, não é vazio, mas denso, poroso e inexiste sem o
espaço.
A historiografia, com essa concepção de tempo, deixa de ser a narração de uma
história de sucessos e se apresenta em fragmentos, estilhaços e ruínas. Aqui, a ruína
representaria a síntese paradigmática entre tempo e espaço; ela seria, então, uma
imagem-tempo. A visão (barroca) da história como um amontoado de ruínas – descrita
tanto no livro sobre o drama barroco como nas teses sobre o conceito de história –
147
indica um primeiro sentido do conceito de catástrofe que permeia toda a reflexão
histórica de Benjamin. Portanto, correlatas ao culto da ruína, tanto a filosofia da história
proposta pelo teórico germânico quanto muitas das obras fragmentadas visam à
destruição da falsa aparência da totalidade, desencantando qualquer sentido
totalizante
292
.
Tais preceitos conduzem à idéia de que Zero causa uma impressão de choque,
correlata ao tempo presente. Conforme destaca Benjamin, na modernidade, o que antes
era a exceção – o choque – torna-se agora a regra. O mundo moderno seria o mundo
dos choques, e seus habitantes estariam totalmente mobilizados para apará-los e,
desse modo, impedir o esfacelamento do eu. Essa vigília atenta impede, segundo o
ensaísta, a construção da autêntica experiência. Ele detecta a vivência do choque tanto
no transeunte da multidão (como nas figuras narradas por Poe no seu O homem da
multidão), como também na vivência do operário diante da máquina, ou do pedestre em
meio ao tráfego. Daí porque, para ele, a catástrofe ser vista como o continuum da
história ou, dito de forma mais enfática, a catástrofe ser o progresso, e o progresso ser a
catástrofe. Se ele dá uma definição do presente como catástrofe, é devido ao fato de o
ideal da vivência do choque ser a catástrofe
293
.
Como explica Benjamin, a lírica de Baudelaire contribuiria na fundamentação de
uma experiência na qual o choque se tornou através de um alto grau de
conscientização. A experiência do choque, a propósito disso, é uma das questões que
se tornou determinante para a estrutura da poesia do escritor francês. O romance de
Ignácio de Loyola Brandão pode ser interpretado dentro dessas chaves benjaminianas.
Ou seja, o livro é a expressão de uma vivência traumática, mas que, por despertar no
leitor uma profunda reflexão do momento histórico-social, converte-se em experiência.
Nesse sentido, a perspectiva dada pela obra em apreciação é a de que se torna
insustentável a imagem de um país perfeitamente integrado, de uma sociedade orgânica
ou de um grupo coeso e homogêneo. A perplexidade da conjuntura social, calcada em
vivências traumáticas, faria implodir formas ou estimular determinados procedimentos
estéticos de maneira que houvesse uma maior aproximação entre o conteúdo narrado e
292
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e
política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
293
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ____. Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
148
a condição do material histórico a ser representado. Dentre tais recursos, estaria a figura
do narrador.
Assim, em uma narrativa de tipo realista, os problemas sociais seriam
apresentados pela ótica de um narrador que, inabalável, mantendo uma atitude
pretensamente objetiva com a matéria narrada, permanecendo em uma posição bem
determinada, articula os acontecimentos, pondo à mostra as convulsões históricas. Esse
tipo de forma implicaria uma suposta isenção – que poderia ser interpretada como uma
independência ética entre a consciência narradora e os acontecimentos que ela
transmite – e uma capacidade plena de dar ordem e significado à experiência. Esse
narrador objetivo, pleno e isento mantém-se excluído da barbárie que estaria narrando.
No romance moderno, diferentemente, vão se desenvolver recursos estéticos que
expressarão uma outra postura da modernidade frente à violência.
Isso significa que não há, muitas vezes, no romance contemporâneo, um
narrador que faz uma mediação entre a experiência vivida e a matéria narrada. A
narrativa de Zero se faz pela atomização do discurso em pedaços, fragmentos
(des)conexos, por trás dos quais se oculta o narrador feito voz ausente, que da própria
ausência faz a sua presença. O relato se constrói sozinho, através de técnicas de
colagem, montagem, cujas peças são interligadas num processo de interpenetração
simultânea. Não obstante, o narrador interfere na fabulação seja por meio de notas de
rodapé – em que, assumindo a primeira pessoa, ele completa ou esclarece o que se
passa no corpo do texto propriamente dito – ou então através de comentários sobre o
que vai escrevendo, sob uma capa de aparente neutralidade
294
. É o que acontece no
fragmento abaixo em que o narrador não interfere no depoimento de tortura de uma
vítima:
Puseram um fio em minha língua e minha boca explodiu e se
encheu de uma coisa de gosto muito ruim e essa coisa queria descer
pela minha garganta e me sufocar e era um fogo só e cinza e merda e
sangue e terra e dentes partidos tudo de uma vez. Você vai conhecer o
inferno, me disse o tenente, sargento, capitão, não sei o quê. E não
pense que sai vivo, porque nós vamos te arrebentar, não vai ficar um
osso inteiro, pode se preparar. (...) Não sei que horas eram, vieram me
buscar, andei por corredores iluminados com fluorescentes, sem ter
idéia se era dia ou noite. E me puseram na sala de mesa, cadeira e o
294
Cf. PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos, SP: EDUFSCar,
1996. p. 167.
149
pau de arara ali na frente e seis caras muito tranqüilos me deram socos
no estômago e telefones no ouvido, fiquei sem escutar nada, só via eles
movendo os lábios, movendo e nada e então apanhava mais (...) E o
joão bonzinho enfiou um bastão no meu rabo e ligou o fio no magneto e
girou a manivela e me caguei todo, a bosta escorreu pelas minhas
pernas, eles morreram de rir e disseram que eu devia comer a bosta no
chão porque tinha sujado a sala toda e o general comandante não
gostava de sala suja. Eu estava cagando pra ter cagado, a dor dos
choques, os músculos todos tremendo é que me enchia,
ukjitgfyghtyaaoirsgrt groitsgruio gruoatr areasresreaa defers
dgrefregstrfncgui cracrecrecreicrocru, lambe o chão merda de
comunista
295
.
A suposta subtração do narrador da narrativa é condição para que o relato não se
apresente coerentemente articulado. Trata-se de um narrador precário, incapaz de
apreender a matéria narrada. Não só isso, ele é desprovido de palavra, sem experiência
a transmitir. Esse narrador é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude
semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto
espetáculo a que assiste e não enquanto atuante. No segmento da obra transcrito, os
acontecimentos ou, mais especificamente, os sofrimentos do sujeito torturado não são
mediados pelo narrador. Ele provavelmente não teve essa experiência, logo não pode
dar autenticidade às ações. Sufocando o narrador, é a própria voz do personagem que
ganha espaço na página do livro.
Seja como for, aquela narração lenta e detalhada, comum à literatura realista,
cedeu lugar a uma forma de contar aos solavancos, aos jorros súbitos e inesperados.
São fluxos curtos, ceifados, amputados de propósito, sem a tranqüilizadora lógica de
princípio, meio e fim. Em Zero, tais caracterizações se aliam a pequenos capítulos que
quase não ocupam uma página, desenhos à mão, divisão irregular do espaço em
branco, colunas, tipos diferentes de impressão, enfim, uma multiplicidade de recursos
que propiciam novas necessidades narrativas. No romance em questão, a
fragmentação, além de ser uma resposta ao autoritarismo em curso, é também uma
resposta ao mundo administrado pela imagem tornada mercadoria. Ou seja, tem-se uma
perspectiva cinematográfica no fazer narrativo, um tipo de linguagem e de organização
textual que retira do cinema e da televisão uma conotação específica.
A propósito, na contemporaneidade, cada vez mais as questões literárias são
pensadas em sua profundidade quando relacionadas ao horizonte técnico em que se
295
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. São Paulo: Global, 1987. p. 267-268.
150
inserem. O ato de ver um filme ou de assistir à televisão, de atentar para a forma como
as imagens mantêm um domínio absoluto sobre qualquer dado ou informação suscita
interrogações importantes a respeito das representações literárias na atualidade.
Movimento, visibilidade, simultaneidade de tempos e espaços são algumas
características da imagem que – desde o surgimento da fotografia e, em seguida, com o
filme – começaram a invadir a literatura. Entretanto, a constatação pura e simples de
que, como grande parte do globo, o Brasil ingressou na modernidade cultural com o
domínio da imagem e com o advento da informática não dá conta de estabelecer os
nexos necessários entre literatura e sociedade.
Tal relação não é tão tranqüila assim. O período que se inicia em 1964 constitui
um momento de importantes reformulações para o sistema cultural brasileiro no sentido
de sua organização em termos empresariais, sendo que, a partir da abertura
democrática, em 1980, pode-se constatar que existe uma nova estrutura em
funcionamento e em constante expansão. Ou seja, com o fim do regime militar, cria-se
uma conjuntura político-econômica que já é expressão de um novo tipo de articulação
com o mercado.
As implicações disso para o processo cultural dizem respeito à importação de
modernas técnicas e esquemas de organização produtiva, algo que requer um
reaparelhamento do novo mercado de bens culturais, dentro do qual se inclui a
literatura. Assiste-se, pois, à gradativa introdução do país no circuito do capitalismo
avançado, que traz consigo novas formas de organização do trabalho em nível
internacional (a instalação de multinacionais), uma nova dinâmica das operações
bancárias internacionais (que resultou no crescimento acelerado da dívida externa) e
novas formas de industrialização e automação (incluindo o desenvolvimento e a
consolidação da mídia eletrônica). Não obstante, é errôneo afirmar que a vida social, no
Brasil, acompanhou os níveis de desenvolvimento dos países desenvolvidos,
notadamente os Estados Unidos.
Durante o aludido interregno, os conglomerados urbanos brasileiros, a exemplo
de muitos outros na América Latina, expandiram-se de maneira assustadora, gerando
uma gradual porém profunda modificação nos espaços e nos modos de viver, em razão
do crescimento desenfreado e sem planejamento, da favelização das periferias, do
crescimento da marginalidade e da violência, da deterioração da qualidade de vida.
Ademais, as metrópoles passam a exercer uma influência que não é mais lenta e
151
gradual, como antes do surgimento da mídia, mas transmitida igualmente e ao mesmo
tempo a todos os outros pontos do país. Portanto, se, por um lado, observam-se
avanços e tecnologias, por outro, têm-se os arcaísmos, as profundas diferenças sociais
que se refletem na miséria, na burocracia, no descaso
296
. Tal realidade, a rigor, pode ser
pensada a partir de Zero. O romance é a denúncia de um mundo que se diz evoluído,
mas está submisso à miséria, à discriminação e ao autoritarismo.
No contexto mundial do desenvolvimento capitalista, as implicações econômicas
do processo cultural dizem respeito às características do que se chama pós-
modernismo. No Brasil, tal fenômeno refere-se à emergência de novos traços formais na
vida cultural que correspondem ao surgimento de um novo tipo de vida social e de uma
nova ordem econômica chamados também de sociedade pós-industrial, sociedade de
consumo ou ainda capitalismo tardio. Fredric Jameson, aliás, prefere o uso do termo
capitalismo tardio para se referir a esse novo período da vida histórico-cultural, já que a
expressão indica continuidade em relação àquilo que o precedeu, ao invés de sociedade
pós-industrial, que remete à idéia de ruptura que, em verdade, não houve. Segundo o
autor, “o pós-modernismo é pouco mais do que mais um estágio do próprio modernismo
(se não for até mesmo do romantismo mais antigo)”
297
.
Partindo-se dessa visão, o fazer narrativo, calcado em técnicas cinematográficas
e/ou televisivas, além de ser uma resposta ao paradoxo social, é algo que enfatiza a
idéia de que o desenvolvimento da série literária se faz no interior da história,
dialogando com todas as suas coordenadas e, em função disso, ela não seria imune às
influências das formas de produção tecnológicas disponíveis para a cultura em cada
momento. Assim, o cinema e/ou a televisão emprestariam ao romance características
como a desarticulação do enredo, a fragmentação, a descontinuidade, a justaposição e
mesmo o apagamento da figura do narrador. Algumas dessas marcas podem ser
evidenciadas a seguir:
O PROGRESSO DA CIÊNCIA
“Nossa equipe de cientistas descobriu que as galinhas mais felizes
botam ovos mais saborosos.”
(Interrompemos esta nota para uma comunicação oficial)
296
Cf. abordagem proposta por PELLEGRINI, Tânia. A narrativa brasileira contemporânea: emergência do
pós-modernismo. Revista Letras, Campinas, n. 13(1/2), p. 48-59, dez., 1994.
297
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa
Cevasco. Rev. Iná Camargo Costa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1997b. p. 30.
152
TEMPERATURA INSTÁVEL, SUJEITA A CHUVAS E TROVOADAS
No país, há calma.
O congresso foi fechado. Prisão de cem deputados federais e
estaduais. Aumentados os vencimentos dos militares. A polícia recebeu
gases estrangeiros para os trabalhos de repressão.
Continuam, todas as noites, nas praças principais de todas as
cidades, a queima de livros ao som de hinos religiosos.
O PROGRESSO DA CIÊNCIA
Além de aplicar uma dieta, os cientistas deixaram as galinhas ao
ar livre, esgaravatando aqui e ali, em busca de minhocas ou qualquer
alimento que melhor lhes apetecesse. Elas se tornaram mais felizes
com isso, fazendo ovos mais saborosos, ao contrário dos ovos postos
pelas galinhas
298
.
Nesse fragmento, são como que reproduzidas notícias referentes ao dia 13 de
dezembro de 1968, data do AI-5. O título Temperatura instável, sujeita a chuvas e
trovoadas foi retirado da capa do Jornal do Brasil do dia seguinte, 14 de dezembro,
quando o jornal – claramente censurado – falava do clima do país, apontando “Tempo
negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por
fortes ventos”
299
. O clima do romance, a rigor, também não é dos mais agradáveis.
Poderia ser definido como a calmaria que precede a tempestade. O título da obra ratifica
essa idéia: zero é um círculo fechado, que encerra, prende e sufoca.
O que também interessa ser anotado do aludido segmento é o diálogo que ele
mantém com o jornal, o cinema, a televisão e o rádio. Isso implica pensar que as
profundas transformações nos modos de produção e reprodução cultural – desde a
invenção da fotografia e do cinema, que alteraram, antes de tudo, as maneiras pelas
quais se olha e se percebe o mundo – estão impressas no texto literário. Nesse
particular, afora a linguagem, que estabelece relações com o jornalismo impresso, há
detalhes de composição que lembram o rádio ou a televisão. É o caso da fragmentação
e da montagem. A notícia a respeito de uma descoberta científica é atropelada por
outra, uma comunicação oficial chamando a atenção para o caos que o país atravessa.
Subseqüentemente a essa nota, retorna-se à notícia anterior. Esse constante
deslizamento de referências que se verifica no enredo do livro evidencia a fragmentação
da narrativa.
298
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. São Paulo: Global, 1987. p. 157-158.
299
Cf. dados em DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro.
Brasília: UnB, 1996. p. 72.
153
Afora a fragmentação e a montagem, outro recurso oriundo do cinema diz
respeito à simultaneidade de ações, algo que alude a uma nova concepção de tempo.
Dito de outro modo: um novo conceito de tempo – cujo elemento básico é a
simultaneidade e cuja natureza consiste na espacialização do elemento temporal – se
expressa de maneira exemplar no cinema. Tal particularidade encontra correspondência
na filosofia de Henri Bergson. O autor chama a atenção para a inadequação do relógio
como único mensurador do escoar das horas e descobre como dado essencial a
simultaneidade dos conteúdos da consciência, englobando presente, passado e futuro
num amálgama que flui ininterruptamente. Trata-se do tempo entendido como duração
(durée), o tempo da mente, que não coincide com as medidas temporais objetivas e é
simbolicamente representado por uma corrente de memórias e visões oníricas.
Como conseqüência desse princípio, o tempo pode parar, fazer avançar ou
retroceder a ação, dando forma à simultaneidade. Trata-se, agora, do tempo da imagem
móvel, que antecede o tempo da imagem ágil da televisão. Em suma, o tempo perde,
por um lado, sua continuidade ininterrupta e, por outro, sua direção irreversível.
Segundo Arnold Hauser, é nessa nova concepção de tempo que muitos dos elementos
da tessitura que formam a substância da arte se fazem aparecer: o abandono do
enredo, a eliminação do protagonista, a renúncia à psicologia, a montagem técnica e a
combinação de formas temporais e espaciais do filme. Tudo isso, a seu ver, motivaria a
fragmentação como novo traço a caracterizar a visão moderna do mundo
300
. No último
trecho reproduzido do romance, a simultaneidade é um recurso que leva a caracterizar o
mundo como dinâmico, instantâneo e ágil. Tal particularidade está presente em Zero,
em que não somente a questão do tempo é problematizada, mas também a do espaço:
Naquela noite, o Herói correu. Ele e Malevil tomaram um vidro de
bolinhas, para entrar em comunicação. E partiram. Roubaram um carro,
um posto de gasolina, três passantes. Atiraram nos guardas, roubaram
armas, atacaram sentinelas de um quartel, levaram as metralhadoras.
. Que o mundo sifo, gritava Silvana Mangano, de meias
Malevil pretas em Arroz Amargo
. Quero acabar com essa mondadeiras, balcão do
merda toda, gritava o Herói. Paratodos.
Porque queriam, não
morriam. Atacavam e partiam, Os jornais aumentaram a
tranqüilos. Encheram o carro com circulação com os suplementos
300
HAUSER, Arnold. A era do cinema. In: ____. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro
Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 970.
154
galões de gasolina. científicos
301
.
. Era bom se a gente tivesse
a gelatinosa. Aquela sim põe fogo
em tudo.
. Gelatinosa, o exército deve
ter. O jeito é atacar um quartel.
. Topo.
As mudanças que, com o cinema, atingem a concepção de tempo, alteram
também o caráter e a função do espaço, o qual perde sua qualidade estática, tornando-
se fluído e dinâmico, adquirindo uma dimensão temporal que repousa na sucessividade
descritiva e/ou narrativa; deixando de ser espaço físico homogêneo e fixo, assume a
heterogeneidade do movimento do tempo que o conduz. Como se observa, a técnica
literária e suas palavras estáticas no papel são invadidas pela técnica cinematográfica e
pela dinâmica de suas imagens. Não obstante, não se deve atribuir apenas à influência
dessa nova técnica a alteração da dimensão espaço-temporal do romance moderno,
pois ela também coincide com outros elementos relacionados ao desenvolvimento das
artes plásticas, como, por exemplo, o sistema cubista das perspectivas múltiplas, o que
demonstra como as diversas linguagens artísticas mantêm entre si um constante e
frutífero diálogo
302
.
Tanto no penúltimo caso, o da descoberta científica envolvendo galinhas, quanto
no último, o da criminalidade praticada por Herói e Malevil, tem-se um componente que
pode ser articulado à questão do simulacro. Segundo Jean Baudrillard, em função do
processo de globalização da economia e da proeminente interferência dos media na
vida social, tem-se um flagrante desaparecimento da materialidade dos objetos. Em seu
lugar, desponta a figura vazia da semelhança e da representação, algo que o autor
classifica como hiper-real. Conforme ele acrescenta, “[h]á que pensar antes nos media
como se fossem, na órbita externa, uma espécie de código genético que comanda a
mutação do real em hiper-real”
303
.
A América Latíndia, em decorrência de sua estrutura histórica autoritária, pode
ser definida em termos de desordem, violência, atraso e subdesenvolvimento.
301
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 12. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 274-275.
302
Cf. PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: ____ et al.
Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 22-
23.
303
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, 1991. p. 45.
155
Entretanto, os meios de comunicação de massa tentam construir uma representação da
realidade que foge de tais adjetivações. Assim, no particular ao penúltimo segmento que
trata do caos social, vêm à tona notícias condizentes ao progresso da ciência,
apontando descobertas científicas inovadoras, o que contraria a suposta condição social
calcada na miséria. No último caso apresentado, a simultaneidade se encarrega de criar
uma nova versão para o real. Ao lado da turbulência iniciada por Herói e Malevil, são
inseridas informações que desviam o assunto principal. Portanto, como chama a
atenção Baudrillard, “[t]odos os media e o cenário oficial da informação existem apenas
para manter a ilusão de uma acontecimentalidade, de uma realidade dos problemas, de
uma objetividade dos fatos”
304
.
O novo cenário que os media propõem do real, ainda de acordo com Baudrillard,
concorreria para algo que ele identifica como o esquecimento da história. Segundo o
autor, a história está sendo substituída por memórias artificiais, que apagam a memória
dos homens. Zero resiste a esse estado de coisas, ou seja, faz uso de formas
convencionais de comunicação (cinema, rádio, televisão, jornal) justamente para criticar
tais elementos. Ainda de acordo com o teórico, atualmente, as narrativas experimentam
uma relação, um contato negativo com a história, o que tem motivado a cópia, o plágio
de modelos já utilizados. Isso justificaria, do seu ponto de vista, o interesse por
temáticas de cunho histórico.
Pelo que foi apresentado ao longo desse último capítulo, o romance em questão
propõe uma avaliação do momento histórico da época de sua produção. Assim como
seus elementos temáticos, a forma de composição do livro não segue uma estrutura
ordenada, algo que possibilita encenar o período caótico pós-64. A perplexidade diante
do regime autoritário abala as noções tradicionais de indivíduo, problematizando sua
linguagem e, como decorrência disso, a dificuldade de expressão. Aliada à dimensão
social, a perspectiva cinematográfica do fazer literário é muito comum. Tal
particularidade surge por influência da conjuntura histórica e consiste numa maneira de
criticar o sistema, que usa os media muitas vezes para manipular a realidade
circundante.
304
Idem. p. 54.
156
3.3 Desordem social, polifonia e fragmentação em A festa, de Ivan
Ângelo
Atravessávamos uma povoação – duas filas de casebres desertos e
entre elas cabanas de barro negro e palha seca. Para que serviria
aquilo? Alguém falou em botequins e em festa. Não compreendi os
botequins nem a festa, mas as construções de terra e palha
queimada impressionaram-me.
(Infância, Graciliano Ramos)
3.3.1 Retratos do Brasil: a propósito de A festa
Estou barbado, sujo de sangue, fedendo à terra e à morte. Mas há
luz à minha frente, a aurora que nasce para mim e para ela caminho.
(Pessach: a travessia, Carlos Heitor Cony)
Ivan Ângelo é um escritor bastante representativo de um momento histórico
brasileiro em que a narrativa funcionou como uma das formas mais expressivas de
resistência. O autor coloca-se – juntamente com Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola
Brandão, Renato Pompeu e Antonio Callado, entre outros – como um dos marcos
significativos da literatura produzida nos anos 70. Desde Duas faces, sua primeira obra
publicada em 1961 em parceria com o escritor e crítico Silviano Santiago, até a
coletânea de contos O ladrão de sonhos e outras histórias, a visão crítica da
sociedade é traço marcante em sua produção, bem como a busca por novas formas de
narrar. A festa, livro editado pela primeira vez em 1976, consiste num bom exemplo
para se avaliar a produção desse artista, o processo de criação a que ele aderiu e a
importância, ainda hoje, de se ler esse romance.
Na trama, a festa acontece em Belo Horizonte no começo da década de 70. É um
período em que as pessoas se esforçam para se adaptar às circunstâncias culturais
emergentes, não obstante estarem afetadas pelas mudanças históricas e sociais, o que
se revela no comportamento dos personagens que se protegem no egoísmo e na
amargura das aparências. Assim, jornalistas, pintores, escritores, universitários, donas
de casa, revolucionários e políticos representando as mais diversas classes
profissionais e as mais diversas camadas sociais são atraídos pela festa de aniversário
157
de Roberto Miranda. A festa é um marco, um ponto de encontro onde se apresentam as
diversas gerações, com seus dramas pessoais, suas ambições e estupidez.
Paralelamente à festa e seus preparativos, um outro incidente ocorre e vai
ocupar as páginas dos jornais. Na estação de trem da cidade, um grupo de oitocentos
retirantes nordestinos que acabara de chegar é obrigado a retornar daí, sob a mira da
polícia, sem descanso e sem comida. Quando todos estavam acomodados nos vagões
para a partida, inicia-se um incêndio, que concorre para uma debandada geral dos
flagelados. Entendido como um ato subversivo com sérias implicações políticas, o fato é
relacionado à festa que, segundo os policiais, servia de quartel-general para as ações
guerrilheiras, justamente na época de aniversário da “revolução”. A partir desse instante,
instaura-se um inquérito e a vida de cada um é vasculhada em todos os seus
pormenores. Até o momento em que o destino dos nordestinos esbarra com o dos
almofadinhas que vão à festa, o autor utiliza estilos diferentes para lidar com diferentes
eixos narrativos.
O livro em questão é composto por três blocos narrativos. O primeiro é formado
por sete fragmentos (ou contos): Documentário (sertão e cidade, 1970), Bodas de pérola
(amor dos anos 30), Andrea (garota dos anos 50), Corrupção (triângulo nos anos 40), O
refúgio (insegurança, 1970), Luta de classes (vidinha, 1970) e Preocupações (angústias,
1968). As explicitações entre parênteses, no índice, consistem numa maneira de
apontar para um período histórico mais amplo que, centrado na década de 1970,
amplia-se para seus antecedentes, cobrindo os anos 30, 40, 50 e 60. Com isso,
levando-se em conta essa abrangência temporal e o caos que caracteriza cada período
histórico, é possível propor um quadro no qual se configura a desordem social no Brasil.
O segundo bloco narrativo, intitulado Antes da festa, acompanhado do
complemento (vítimas dos anos 60), organiza-se por meio de fragmentos sintéticos,
antecedidos de um título em negrito, acompanhado da indicação de horas e minutos.
Apenas os fragmentos correspondentes ao personagem-escritor não seguem esse
padrão, destacando-se dos demais por estarem entre parênteses e em itálico. A ordem
do aparecimento de tais fragmentos não obedece a uma cronologia linear, mas apóia-se
num tempo cronológico, isto é, as horas e os minutos que antecedem as duas grandes
partes que polarizam a narrativa: os distúrbios da praça da estação e a festa. Os
fragmentos alteram-se, recuperando personagens do primeiro segmento. A questão do
tempo histórico e do tempo narrativo é um dos aspectos centrais do livro.
158
A terceira parte, intitulada Depois da festa, que no índice aparece como Depois
da festa (índice dos destinos), recupera todos os personagens, de epítetos ou de
expressões que as caracterizam, e da página em que aparecem. Tal indicação está
destacada em negrito e pode variar mesmo quando o personagem é retomado.
Vários temas são abordados em A festa. Em linhas gerais, o romance trata de
questões ligadas ao latifúndio com sua conseqüente miséria e demanda de nordestinos,
colocando em debate a cidade e o sertão. Além disso, lê-se a respeito de manifestações
políticas de extrema-esquerda; sobre a proibição generalizada pelo poder dominante,
fiscalizando e punindo; acerca da culpa do indivíduo que se aliena diante da
necessidade de agir; a propósito do sexo como desvio de padrões morais prefixados e
como causa de insatisfação existencial. Há, ainda, a tematização do próprio ato de
criação literária com debates sobre assuntos teóricos e técnicos da atividade criadora.
Tudo isso, no entanto, não esgota as possibilidades de leitura do texto. No conjunto,
coabitam assuntos diversos, cuja virtude é fazer parecer que a obra assume a
responsabilidade de aprofundar-se e construir-se por meio da adoção do momento
histórico e social em que a própria noção de totalidade é considerada impossível.
A obra conta ainda com quatro epígrafes. A de Maquiavel e a de W. H. Auden
referem-se ao poder. A do primeiro afirma que o príncipe não deve temer a pecha de
cruel porque – se, com atos impiedosos, ele consegue evitar desordens e, com isso, o
sofrimento de muitos – ele será piedoso. A de Auden também diz respeito ao poder,
mas, particularmente, à sua eficácia diante da resistência das massas insensatas. A
outra citação é de autoria de Carlos Drummond de Andrade. Se as duas primeiras
tratam do poder ditatorial e da resistência, a do poeta mineiro elege como matéria o
tempo presente: O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a
vida presente. A última pertence a Chico Buarque de Holanda e faz menção a uma
festa. Os versos parecem remeter a uma situação de conflito, à possibilidade de a festa
ser encerrada com violência. As quatro passagens, ao que parece, definem as quatro
coordenadas básicas que nortearão o livro de Ivan Ângelo: o poder ditatorial, a
resistência popular, o tempo presente e a ameaça de desfecho violento para os conflitos
implicados em tais realidades.
Talvez o fragmento do romance que denuncia de maneira mais explícita os
problemas sociais seja o primeiro, intitulado Documentário (sertão e cidade, 1970). Tal
seção narra o confronto dos nordestinos com os policiais quando do episódio do
159
incêndio dos vagões do trem que conduziria os flagelados de volta a sua terra natal. Em
comunhão com isso, são reproduzidos trechos de livros, jornais, diários e depoimentos
cujos assuntos trabalham com questões envolvendo o descaso para com as parcelas
populacionais ignoradas. Assim, no aludido episódio, conforme termo utilizado pelo
próprio narrador, a matéria, embora ficcional, parece tentar estabelecer um vínculo
estreito com a história e, com efeito, prolongar aquele ímpeto documental, verossímil,
típico do romance da década.
Nesse sentido, a obra deixa subjacentes vários elementos que propõem a
desmontagem das visões ideológicas projetadas pelo Estado. No particular a esse
primeiro fragmento de A festa, essa visão crítica se tece não somente em virtude de
acontecimentos isolados, que seriam os problemas decorrentes da seca, mas devido à
falta de solução dada aos vários problemas que são oriundos deste, como é o caso da
violência, da miséria, da migração, da morte, do comportamento submisso dos
indivíduos, dentre outros. Situações essas que ainda se perpetuam na sociedade
brasileira e atingem as parcelas economicamente desfavorecidas.
Os nordestinos são apresentados como sujeitos indiferentes; são, acima de tudo,
uma ameaça, um atentado à ordem ideológica vigente. Tanto isso é verdade que, com a
queima do trem, a polícia se organiza para que os imigrantes não se dispersem, ou seja,
não deixem de retornar ao seu lugar de origem:
Os policiais que perceberam aquele grupo organizado no meio do
tumulto tentavam reunir companheiros para impedir a fuga. A surpresa
do ataque favorecia os nordestinos, pois foi impossível reunir mais do
que oito ou nove soldados. Tentaram conter os flagelados com ordens
(eles avançavam); depois com tiros para o alto (avançavam); depois
com tiros diretos e cassetetes, e foram envolvidos pela multidão,
pisados, batidos
305
.
Os nordestinos, ancorados em Belo Horizonte no dia da festa, além da
indiferença e da alienação a que estão inclinados por um lado, são vítimas de
exploração para fins políticos e de repressão física, por outro. Conforme assinala José
Antonio Segatto, “[a] história brasileira (...) caracterizou-se pela reiterada exclusão das
305
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 16.
160
classes e camadas não-dominantes do processo sóciopolítico”
306
. No romance em
questão, os retirantes representam essa parcela marginalizada, silenciada pelo poder
dominante. Essa mesma idéia de que o processo histórico brasileiro tem sido marcado
por episódios violentos também é defendida por Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo esse
autor, os governos brasileiros “não conseguiram assegurar um dos requisitos básicos da
sociedade democrática – o controle da violência”
307
. Afora isso, acrescenta: “[p]ara os
pobres, miseráveis e indigentes que sempre constituíram a maioria da população
podemos falar de um ininterrupto regime de exceção paralelo, sobrevivendo às formas
de regime, autoritário ou constitucional”
308
.
O que chama a atenção nesse primeiro capítulo do livro é a marcação temporal
que sucede os diferentes fragmentos que o compõem. Depois de cada trecho de
depoimento, livro, jornal ou diário, aparecem referências a datas que antecedem, de
muito, os acontecimentos presenciados naquele ano de 1970. São reproduzidos dois
excertos do romance que facultam tal percepção:
“Nas terras dos grandes proprietários, eles não gozam de direito
algum político, porque não têm opinião livre; para eles, o grande
proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra,
tudo; e afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte desses
infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média”.
(Colaborador anônimo do Diário de Pernambuco, publicado em
meados do século XIX, cit. por Gilberto Freire em Nordeste.)
(...)
“Quanta desgraça, quanta barbárie naqueles sertões, santo
Deus!”
(Teodoro Sampaio em O Rio São Francisco e a Chapada
Diamantina, após viagem realizada ao Nordeste em 1879)
309
.
O primeiro trecho consiste na reprodução de um depoimento publicado no Diário
de Pernambuco em meados do século XIX e aproveitado por Gilberto Freire. É inegável
a crítica que o colaborador anônimo tece à forma de organização política, econômica e
social que imperava na região nordestina. O autor destaca a passividade dos sertanejos
diante daqueles que detêm alguma parcela de poder e os compara aos servos da Idade
306
SEGATTO, José Antonio. Cidadania de ficção. In: ____; BALDAN, Ude (Orgs.). Sociedade e literatura
no Brasil. São Paulo: Unesp, 1999. p. 207.
307
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP, São Paulo, n. 9. p. 45-57, mar./mai.,
1991. p. 45.
308
Idem. p. 48.
309
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 17.
161
Média. O segundo fragmento é uma expressão de horror frente às brutalidades
presenciadas no sertão. Teodoro Sampaio refere-se a Deus como forma de expressar a
dimensão de seu pavor mediante tantas experiências negativas observadas. Tanto a
primeira quanto a segunda passagem transcrita datam do século XIX. De lá para cá,
talvez o que A festa queira destacar é a permanência de atitudes conservadoras, de
organizações antigas que nunca são recicladas e de arranjos autoritários que nunca se
desfazem.
No romance em apreciação, o motivo da vinda dos flagelados para Belo
Horizonte é de ordem econômica, ou seja, é a falta de condições humanas adequadas o
que propicia a retirada de moradores do nordeste para outras regiões do Brasil. Em
outro trecho do livro, a seca aparece como elemento condicionador das tragédias
sociais: “[e]m 1900, abandonam o Ceará 40.000 vítimas da seca. Ainda em 1915, de
cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de Fortaleza, enquanto 8.500 tomam o
destino do Sul, 30 mil se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte...”
310
. Entre as
causas principais da pobreza no nordeste brasileiro não está somente a seca, mas
também a injusta realidade social. Embora destituídas de fundamento, essas idéias
foram muito difundidas, de tal modo que ainda hoje muitas pessoas acreditam que o
clima seja a causa determinante de numerosos acontecimentos sociais. Na verdade, a
pobreza aí observada deve-se também à estrutura social vigente, em que somente
alguns – os latifundiários – possuem recursos técnicos e financeiros para se prevenirem
contra a seca.
Assim, quando não ocorrem as esperadas chuvas, instala-se a estiagem,
obrigando os nordestinos a abandonarem as suas terras. Nesse sentido, as periódicas
secas no nordeste servem para desnudar a injusta realidade social na qual reside a
causa fundamental da pobreza na região. Além do mais, numerosos outros exemplos
poderiam ser citados para demonstrar que o clima não constitui a causa única dos
problemas sociais e econômicos. Muitos, entretanto, não demonstram senso crítico para
julgar o Estado enquanto possível agente causador das desigualdades sociais. Essa
idéia ganha consistência se se levar em conta que, no Brasil, os primeiros decênios do
século XX assistiram ao avanço tecnológico destituído de melhorias sociais. Esse ponto
é criticado por José de Souza Martins. Segundo ele, “[o] novo surge sempre como
310
Idem. p. 18.
162
desdobramento do velho”, não realizando o ideal da modernidade, ou seja, de igualdade
e inclusão social
311
.
Verifica-se, pois, que o abuso de poder vem à tona toda vez que existe uma
manifestação ou uma possibilidade de manifestação social. A maneira como Ivan
Ângelo elabora sua obra satisfaz uma consideração importante defendida por Theodor
Adorno. Segundo esse teórico, toda a atividade crítica é exercida dentro de um sistema
cultural. Quando um intelectual se dedica a essa atividade, necessariamente
incorporará, de alguma forma, elementos do sistema de que faz parte e acerca do qual
se posiciona criticamente. Assim, o crítico está dentro do sistema que pretende criticar
e, portanto toda crítica do sistema será também uma crítica contra si. Conforme os
termos do autor, “o crítico dialético da cultura deve participar e não participar da cultura.
Só assim fará justiça à coisa e a si mesmo”
312
.
Seguindo esse percurso de raciocínio, pode-se dizer que A festa está de acordo
com esse princípio geral. O autor necessita, em um primeiro momento, se afastar do
sistema para recolher elementos de denúncia social, para, em seguida, projetá-los
criticamente em seu texto literário. Assim, a representação de personagens atingidos
pela fome, pela miséria, pelo sofrimento e pela submissão seria produto de um
movimento dialético articulado pelo crítico, justamente para retratar uma sociedade cujo
autoritarismo, na maior parte dos casos, passa de modo despercebido.
Nessa mesma linha de pensamento crítico, encontra-se Walter Benjamin. A festa
satisfaria certas exigências impostas ao materialista histórico. Na concepção
benjaminiana, a tarefa do historiador materialista seria o de não deixar a memória do
passado trágico escapar, mas zelar pela sua conservação, de contribuir na
reapropriação desse fragmento da história esquecido pela historiografia dominante
313
.
Logo, particularidades do romance em consideração que desnudam aspectos
autoritários da experiência teriam como um dos objetivos não deixar a história dos
oprimidos cair no esquecimento, justamente para que a classe redimida conheça as
injustiças do sistema social e lute por soluções.
311
MARTINS, José de Souza. Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo. In: ____. O poder do
atraso. Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 30.
312
ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: ____. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad.
Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 2001. p. 25.
313
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
163
O segundo episódio de A festa narra um envolvimento amoroso entre dois jovens
de Belo Horizonte nos anos 1930. À época, juraram que se matariam quando deixassem
de se amar. O conto, dividido em duas partes – Marido e Mulher –, relata aspectos dos
destinos dos amantes: o casamento, a paixão dos primeiros anos, a cumplicidade e, por
fim, a lenta e progressiva degradação dessa experiência. A mulher se conforma com tal
desgaste, aceitando a situação, com certo senso prático que a motiva a manter um
vínculo amoroso com um jovem e promissor aluno do próprio marido – o estudante
Carlos Bicalho. O homem, em contrapartida, quer despertar na esposa a lembrança do
pacto, fracassando, entretanto, nas inúmeras vezes que tentou assassiná-los. Dadas
essas informações, percebe-se que se trata de uma acurada análise do casamento
pequeno burguês; no entanto, as coisas não se resumem a isso.
A degradação da matéria vivida pelo casal está presa ao tempo, ou seja, no
próprio processo histórico do país. Nos anos 30, quando se iniciava o relacionamento
entre os jovens, brotavam expectativas otimistas sobre o futuro, algo oriundo da própria
situação histórica do país. A situação também comportaria visões esperançosas sobre o
futuro nacional; contudo, o processo de modernização não daria conta da maioria delas.
Nesse sentido, o conto parece estabelecer uma espécie de homologia entre o destino
do casamento e o da própria sociedade brasileira que, na época da Ditadura Militar, teria
experimentado o desmoronamento de seus ideais, delineados nos anos 30.
O desfecho desse segundo episódio não é relatado. O leitor passará a ter
maiores detalhes quando o assunto for retomado na terceira parte e esclarecido graças
à empregada. Nesse caso particular, fica-se sabendo que – depois de o marido ter
tentado envenená-los com um bolo oferecido em homenagem ao aniversário de
casamento – eles são conduzidos ao hospital, onde se recuperam. Seja como for, esse
segundo segmento intenta dar conta dos recalques daquelas possibilidades positivas
que, um dia, se inscreveram como possíveis no horizonte, tanto da história pessoal
como da nação. Assim, embora esse conto possa ser lido de forma autônoma, seu
sentido é ampliado quando associado ao primeiro e ao último bloco da obra.
O terceiro conto do livro – Andrea (garota dos anos 50) – narra a trajetória de
uma moça carioca, nascida na Tijuca, mas que viveu parte de sua adolescência em
Vassouras, para, a seguir, estabelecer-se em Belo Horizonte, já na década de 50, onde
viveria até o início dos anos 70. O que chama a atenção em tal episódio são os modos
de relacionamentos que se estabelecem entre o personagem – proveniente de fora, no
164
caso, da capital – e a vida provinciana mineira. Andrea vai se envolvendo em tramas e
em conflitos de modo que o texto vai desembocar numa espécie mais ou menos
tradicional de análise de costumes. Aliás, o episódio parece experimentar um sutil
deslocamento do foco de atenção, de forma que a matéria de interesse passa a ser
constituída pelos referidos conflitos.
De qualquer modo, o que se pode depreender da leitura dessa passagem da
obra diz respeito aos conflitos entre o local e o universal, o arcaico e o moderno, a
província e a capital. Se Andrea, em princípio, é recebida na sociedade de Belo
Horizonte como um símbolo de modernidade, aos poucos, a cidade a integra e a
esmaga: “acreditou que era o centro das atenções, que a sociedade estava fascinada
por ela, quando a verdade é que estava sendo explorada, estavam tirando dela o que
não tinham mais: beleza e uma relativa inocência”
314
. Assim, com o passar dos anos,
Andrea vai se envolvendo, cada vez mais, em relações não saudáveis, de modo que,
aos poucos, vai se degradando: “[c]ada bula de remédio que lia reforçava sua certeza
de que era realmente infeliz”; além disso, “[m]antinha a ilusão de centro acreditando que
sua infelicidade comovia a todos”
315
. Por fim, acaba casando-se com um artista
homossexual, Roberto Miranda, por quem é “massacrada (...) numa cena dolorosa e
autodestrutiva de jogo da verdade”
316
, no dia da invasão da cidade pelos nordestinos.
Assim, a cidade consubstancia sua tendência para não assimilar o diferente, o
estranho, o que, conseqüentemente, reforça sua identidade arcaica, impermeável à
mudança. Mais do que isso, o romance parece querer aludir ao significado político
desse comportamento. A aversão pelo novo e a incapacidade de lidar com o outro são,
de fato, fortemente avessas à prática da democracia. Nesse sentido, conforme
interpretação proposta por Renato Franco, “a matéria do conto é o massacre do
indivíduo pela autoridade que emana do coletivo, o qual sente suas ações como
legítimas por manter um vínculo infantil com o poder ditatorial”
317
. Ou nas palavras de
Flávio Aguiar, referindo-se ao romance, mas também a esse episódio: ele “põe em cena
a contradança de uma pequena burguesia sofisticada e provinciana, preocupada em
314
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 52.
315
Idem. p. 56.
316
Idem. p. 63.
317
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-70: A festa. São Paulo: Unesp, 1998. p. 186.
165
saber quem-dorme-com-quem enquanto desempenhava papel de proa na tragédia do
progresso nacional”
318
.
O quarto conto – Corrupção (triângulo nos anos 40) – gravita em torno de uma
família composta por pai, mãe e filho ao longo da década de 1940. Paralelamente, o
episódio narra a formação do intelectual orgânico da burguesia provinciana e o processo
de formação política dessa classe em torno da União Democrática Nacional (UDN), a
qual teria papel decisivo no golpe militar de 1964. O fragmento, ainda, levanta questões
de fundo histórico, como a participação do Brasil na guerra e a intervenção de Getúlio
Vargas e de Luís Carlos Prestes na política nacional.
No episódio em questão, os conflitos familiares surgem em decorrência da mãe,
Leonice, que começa a estranhar o comportamento do filho, Robertinho, ainda criança,
para logo depois se opor a ele. Este, por sua vez, se apegava cada vez mais ao pai,
Cleber. Nesse emaranhado psicologicamente complexo, o marido buscava preencher
satisfatoriamente seu papel de pai, esforçando-se para ser protetor e compreensivo com
a criança. Essas situações acabam afastando o marido e o menino de Leonice, fato que
a conduz a lamentações: “se tudo mudasse de repente e ele voltasse a precisar de mim,
Isso é que é triste”
319
. Tudo isso concorre para a ruína do casamento, algo que impeliria
a criança a tentar se adequar ao papel da mãe, formação esta que a conduziria ao
homossexualismo. O tema, aqui, é o fracasso do casamento, a degradação da família
burguesa, o que comprova sua decisiva importância para o período.
O quinto conto – O refúgio (insegurança, 1970) – narra o retorno de Jorge
Fagundes – “advogado de rápida carreira”, “bem relacionado na sociedade e tolerado
entre os intelectuais”
320
– ao lar, após a jornada de trabalho. Tal episódio utiliza
diferentes procedimentos literários: narrado em terceira pessoa, por narrador onisciente
oriundo do século XIX, freqüentemente desloca a narração para o próprio personagem,
recorrendo, assim, ao monólogo interior. Além disso, faz uso de uma linguagem ágil, de
cortes rápidos, quase cinematográficos.
A matéria principal desse episódio consiste na permanente contradição
experimentada pelo personagem entre a vida pública e a vida privada. No meio social,
318
AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. São Paulo: Boitempo, 1997.
p. 182.
319
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 74.
320
Idem. p. 79.
166
comporta-se impecavelmente; no entanto, parece não se adequar perfeitamente ao
papel social que deseja desempenhar, por isso vê a vida pública como uma ameaça, o
que o leva a adotar um comportamento que pode ser designado como um tipo de
máscara, ou seja, uma identidade forjada, artificial. Nesse sentido, em seu apartamento,
deixa transparecer sua identidade real: é descuidado, espalha pela casa as roupas, os
utensílios, que serão recolhidos pela empregada, a quem ele explora, inclusive
sexualmente.
Jorge Fagundes é rico, solteiro, “forte candidato ao título de um dos dez rapazes
mais elegantes de Belo Horizonte em 1970”
321
, mas é também egoísta, com um
comportamento político tipicamente de direita: é leitor de O Globo e, ao ler o jornal,
afirma, a propósito da atitude repressiva do governo, “ferro nesses comunistas”
322
.
Ademais, é tênue o fio que separa o personagem da ação ditatorial ou policial. Por
telefone, ele nega seus préstimos profissionais a um funcionário da Secretaria do
Trabalho e Bem Estar Social que havia sido preso, na tarde do dia 30, por tentar ajudar
os nordestinos retidos na Estação: “Ah, esses comunistas. – Fazem a bagunça deles e
depois vêm encher o saco. Que se fodam”
323
.
Esse conto chama a atenção para a vulnerabilidade das pessoas às ideologias
autoritárias, assunto amplamente estudado por Theodor Adorno. Para o autor, a
personalidade estaria assentada num conjunto de idéias e valores que se articulam a
fatores sociais e a representações ideológicas. Não que categorias psicanalíticas sejam
desconsideradas, acontece que, agora, elas são apropriadas por uma análise
materialista da sociedade. Assim, ao analisar a ideologia, o teórico observa que ela
estaria associada, num dos seus níveis, ao conceito de debilidade do ego. A fraqueza
da instância relacionadora com a realidade externa da personalidade social no mundo
burguês é um dado fundamental, porque a ideologia, além de ser um processo formador
de consciência e não apenas instalado nela, opera ao nível inconsciente. Com isso, a
fraqueza do ego, somada ao investimento que o próprio processo ideológico exige dos
que nele estão envolvidos, constitui a base subjetiva para a reprodução das condições
sociais vigentes
324
. No caso de Jorge Fagundes, a sua instabilidade comportamental
321
Idem. Ibidem.
322
Idem. p. 82.
323
Idem. p. 91.
324
ADORNO, Theodor. The Authoritarian Personality. New York: Harper, 1950.
167
aliada ao impacto do processo histórico em sua subjetividade definiria a sua
personalidade autoritária.
O sexto conto do livro – Luta de classes (vidinha, 1970) – narra a rotina de dois
cidadãos, Ataíde e Fernando, na tarde do dia 30, quando, casualmente, se encontram
próximo à Estação Ferroviária de Belo Horizonte. Fernando, aborrecido, resmunga
contra um mulato que, involuntariamente, esbarra em seu copo, motivo suficiente para
ele reagir: “Ataíde não teve dúvidas e meteu o braço”
325
. O episódio, que traz consigo
certas experiências da prosa modernista tais como o corte cinematográfico e a
construção ágil da frase, não se resume a isso.
O narrador, onisciente, arrola uma série de ações dos protagonistas. Assim, fica-
se sabendo, por exemplo, que Ataíde sai de casa às sete horas da manhã, se despede
da esposa com um beijo, ganha três salários mínimos, não tem filhos, gosta de um
“sambinha”, procura “sua ótima Cremilda quatro, cinco vezes por semana”
326
, é pintor de
paredes e se considera um artista, tenta agradar a sua mulher com surpresas e
presentes. Fernando, em contrapartida, sai de casa às onze e meia, geralmente
chateado, nem sempre beija sua esposa nas despedidas, dorme até as dez horas,
costuma pedir à mulher para que fale menos, tem dois filhos, procura sua esposa uma
vez por semana, tem automóvel e joga futebol aos domingos.
Como se vê, são sujeitos provenientes de diferentes classes sociais: Ataíde
pertence às camadas populares; Fernando, à pequena burguesia. Nesse contraste,
entretanto, o narrador parece tomar partido pelo primeiro, valorizando-o em muitos de
seus aspectos. O episódio, considerando-se tais particularidades, pretende expressar
um conflito social ou diversos tipos de manifestações das lutas de classe. Tal intenção
arrasta o narrador para os lugares-comuns da política populista no Brasil, geralmente
satisfeita.
O último dos sete contos autônomos Preocupações (angústia, 1968) – está
dividido em duas partes. A primeira é o monólogo interior “de uma senhora mãe de um
rapaz”
327
– Carlos Bicalho. Aqui, é possível acompanhar as aflições de uma mulher em
decorrência do envolvimento de seu filho nas atribulações políticas verificadas no final
dos anos 60 e início da década de 70. Suas preocupações também são por conta das
325
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 96.
326
Idem. p. 95.
327
Idem. p. 99.
168
intenções dos jovens e do movimento estudantil, sobre a violência ou qualquer outro tipo
de ameaça, sobre a moda, o amor livre ou a minissaia. É como se ela quisesse controlar
todas as adversidades históricas ou mesmo as manifestações sociais e políticas de
qualquer classe ou grupo. Ela parece manifestar, desse modo, uma personalidade
autoritária adequada à requerida como base social da Ditadura Militar:
Aonde vai levar toda essa confusão? Aonde é que isso vai parar?
O que eles querem? É preciso alguém compreender a aflição das mães
e parar com isso, parar de uma vez. Fazer nossos filhos voltarem para
as namoradas, para as mães, e aí a gente volta a ter certeza das
coisas, certeza de que eles estão quentinhos, alimentados, e livrai-os
senhor Deus de todo mal amém
328
.
A segunda parte do conto também consiste num monólogo interior e pertence a
“um delegado de polícia social”
329
, leitor assíduo de Maquiavel, preocupado com o que
ele identifica como a nova ameaça: manifestações de misticismo tanto por parte de
setores burgueses como do povo – “[j]á há quem acredite mais nos horóscopos do que
nos médicos e nos corretores”
330
. Trata-se, como se observa, de reflexões de um
intelectual de direita, defensor do pensamento científico, do planejamento e, sobretudo,
da formação de uma elite de técnicos que deveriam garantir o desenvolvimento dirigido
do país. Seu tipo de pensamento o leva a descrer que a sociedade é capaz de se dirigir,
o que propiciaria a sustentação para a aceitação de uma política autoritária e ditatorial.
O conto, portanto, parece atar suas duas partes aparentemente díspares. Por um
lado, há pessoas acreditando em valores antigos como família, tradição e propriedade;
por outro, há intelectuais que aderem à ditadura como forma de controle e organização
do estado, justificando racionalmente a maneira como concebem a conjuntura política
que planejam. Foi justamente tal compatibilidade de pensamento – imposição e
aceitação – que culminou na instalação da Ditadura Militar em meados dos anos 1970.
Esses sete contos que precedem a primeira parte do romance intitulada Antes da
festa tematizam tanto o itinerário do amor adolescente e esperançoso dos anos 30 até a
sua degradação nos meados de 1964, época na qual o país começa a deixar para trás
328
Idem. p. 104.
329
Idem. p. 105.
330
Idem. p. 104.
169
aquelas ilusões originais para descambar num sentimento de perda de inocência que
compreende tanto a formação do dirigente político burguês, a repressão dos
movimentos populares quanto problemas existenciais, sexuais e psicológicos.
Antes da festa retomará o primeiro episódio do livro, Documentário,
concentrando-se na ação do repórter do Correio de Minas Gerais, Samuel Fereszin,
dando vazão a uma complexa rede de relações entre os diferentes personagens dos
sete contos iniciais. Na noite de 30 de março, o jornalista é enviado pelo editor à
Estação Ferroviária para elaborar uma reportagem sobre os fatos lá verificados a
respeito dos nordestinos. Após entrevistar algumas testemunhas e comunicar-se com
autoridades e familiares das pessoas envolvidas – como a esposa de Carlos Bicalho ou
o advogado Jorge Fernandes –, ele se sensibiliza pela situação dos retirantes,
questionando, inclusive, a posição ideológica do jornal, que apenas “vai fazer o que o
jornal faz: publicar a matéria”
331
.
Desiludido, Samuel abandona o trabalho para organizar um movimento de
solidariedade aos flagelados. Desprovido de meios para lutar ou de canais institucionais
que lhe permitissem reivindicar soluções dignas para os nordestinos, ele opta por agir
violentamente: compra dois galões de gasolina e ateia fogo nos vagões, dando início à
revolta. Em parceria com Marcionílio, lidera um grupo armado com foices, porretes e
facões, até o momento de sua morte, provocada por tiros disparados pelas forças
repressivas, e a prisão do ex-cangaceiro. A conduta do repórter, nesse particular, pode
ser comparada à dos jovens brasileiros na época que, movidos por problemas
semelhantes e pelo desejo de ação, aderiram à luta armada.
Tais ações podem ser entendidas como a manifestação de uma aliança político-
revolucionária entre o povo e os intelectuais, de qualquer modo, fracassada. Aliás,
muitos intelectuais estavam, no momento da revolta, reunidos no Bar e Restaurante Lua
Nova, onde discutiam o que fazer ou o que esperar da atividade cultural e da vida
literária. Mais tarde, quando a notícia da revolta se espalha pela cidade, eles se
deslocam até a Estação, mas pelo desejo de conhecerem o cangaceiro que se dizia ser
companheiro de Lampião. Tal caracterização do comportamento dos intelectuais
(personagens do romance) expressa uma feroz crítica ao conformismo político desse
331
Idem. p. 144.
170
grupo. A propósito, anotações acerca da situação do escritor e da crise do romance
estão relacionadas a discussões a respeito da literatura.
Depois da festa é o último episódio do romance. Conforme o próprio autor, trata-
se de um “[í]ndice remissivo dos personagens (...), com informações sobre o destino dos
que estavam vivos durante os acontecimentos da noite de 30 de março”
332
. Ele é
composto de pequenas notas que podem ser lidas como contos relâmpagos,
autônomos, embora relatem os desfechos de episódios anteriores. Essas notas revelam
um traço curioso: são compostas de tal forma que se assemelham a relatórios policiais,
pondo à mostra, em muitos casos, testemunhas da barbárie da conjuntura histórica da
época, como no seguinte caso:
Filinto Müller
Página 83.
(...)
Durante dez anos ele [capitão Müller] foi o cérbero do inferno de
Getúlio. Ele viu, nas prisões, os homens sem testículos e as mulheres
rasgadas. Viu o terror na cara dos homens que eram apanhados em
suas casas para interrogatório, o terror dos comunistas, dos
integralistas, dos liberais e dos que simplesmente não concordavam.
Ele viu verdades históricas serem inoculadas em corrente de 110 volts.
Que cena teria na memória ao lembrar-se, entrevistado pela revista
Veja, em 72?: “Foram 10 anos de trabalho intenso e de dedicação
ilimitada”
333
.
Como se verifica, o romance relata, nessa parte final, a violência repressiva
empregada pela ditadura, nas prisões, nas casas ou nas ruas, contra todos aqueles que,
direta ou indiretamente, eram suspeitos de atividades consideradas subversivas. Essa
violência é interminável: nos últimos parágrafos da obra, fica-se sabendo que, um ano
após os acontecimentos de 30 de março de 1970, Roberto Miranda promove mais uma
festa de aniversário, no entanto,
[u]m grupo de trinta rapazes armados com longos cacetes de madeira
invadiu a festa de aniversário de Roberto em 1971. A porta foi aberta
com estrondo de pontapé e os rapazes, de cabelos muito curtos, civis,
entraram correndo, atropelando, batendo, gritando. Excitados pelo
pânico que criaram, rasgaram a roupa de várias mulheres, gritando
puta, sua putona; invadiram os dois banheiros da casa e num deles
332
Idem. p. 149.
333
Idem. p. 173-174.
171
deixaram desmaiada uma mulher. Quebraram o aparelho de som,
televisão, discos, copos, espelhos, esculturas, quadros, antigüidades,
móveis, privadas, bidês, vidros de perfume, garrafas de bebida, bibelôs,
pratos, cabeças, rasgaram livros, vestidos, cortinas. Quem tentava fugir
era espancado na porta por um grupo que formava uma parede.
Roberto apanhava, sangrando, e ouvia: “Está pensando que pode
debochar da gente e ficar por isso mesmo, veado?”. Veado, comunista
e puta eram seus gritos de guerra e excitação. Soou um apito e todos
juntos largaram suas vítimas e desapareceram pela porta, compactos,
poderosos.
Foi a última festa
334
.
A festa, portanto, é resultado de uma construção progressiva de acontecimentos
que cobrem diferentes épocas. Embora o livro narre episódios a começar pelos anos 30,
há eventos que remetem para o século XIX, como é o caso das citações de diários,
depoimentos ou jornais publicados em 1859, 1870, 1877 e 1897, que compõem o Flash-
back do primeiro conto. Nesse sentido, o romance, embora consista numa crítica aos
anos de chumbo, não dispensa considerações de outras épocas. Documentário, por
exemplo, ata o passado ao presente da realidade nacional, e sua crítica se situa
naquela linha de reflexão elaborada por Raymundo Faoro, segundo o qual as crises, as
perturbações e os conflitos pelos quais o Brasil tem passado são oriundos de formas de
administração próprias de governos burocráticos as quais remontam à era colonial
335
.
Não somente esse aspecto é recorrente na obra. Temas como a degradação da família
burguesa, a incapacidade de aceitação do diferente, os conflitos do sujeito (sua
contradição entre a vida pública e a vida privada), a formação da personalidade
autoritária, a tendência de as pessoas ficarem presas a valores arcaicos, a importância
do papel do artista, tudo isso formaria quadros que permitem uma visão mais
abrangente do Brasil, o que estimularia a desmontagem das visões ideológicas
autoritárias.
3.3.2 Dialogismo e polifonia em A festa
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que
emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho,
fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.
334
Idem. p. 219-220.
335
Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato público brasileiro. 13. ed. São
Paulo: Globo, 1998. V. I.
172
(Angústia, Graciliano Ramos)
Uma das características que confere maior vigor temático ao romance de Ivan
Ângelo é a predominância do discurso dialógico. Isso significa que a obra não se define
por um discurso uno e monológico nem por um único ponto de vista acerca do mundo.
Em A festa, é a multiplicidade de vozes e a confluência de diferentes visões do mundo
que facultam leituras diversas da narrativa e, por tabela, da realidade sócio-histórica.
Aliás, é justamente essa construção dialógica e polifônica que gera uma perspectiva
crítico-social de elaboração do texto em consideração. O empreendimento de Mikhail
Bakhtin é útil na consecução da análise dessa proposta.
Na concepção bakhtiniana, a cosmovisão dialógica configura-se através da
intercalação de linguagens e vozes no discurso, sendo possível também entre
enunciações integrais ou em qualquer parte significante do significado, inclusive em uma
palavra isolada, caso esta não seja interpretada como impessoal da língua, mas como
signo da posição interpretativa de um outro. Conforme o autor, a incorporação da voz do
outro pode constituir o discurso polifônico que se caracteriza pela multiplicidade de
vozes e de mundos e pela ruptura da unidade monológica. Para o teórico, o romance
polifônico é inteiramente dialógico, uma vez que existem relações dialógicas em todos
os elementos de sua estrutura
336
.
Tais considerações desenvolvidas pelo teórico russo acerca do dialogismo da
linguagem literária contribuem na elucidação de questões atinentes à natureza do
romance, suas especificidades e traços que garantem a sua originalidade. Assim,
partindo da concepção de dialogismo, o autor discorre sobre pontos-chave que
interferem na elaboração dialógica da linguagem, incluindo-se a natureza ideológica da
palavra e as formas de transmissão da palavra de outrem, as quais garantem no
discurso a bivocalidade e a multiplicidade de linguagens e perspectivas. De acordo com
Bakhtin, estes seriam os conceitos que confeririam particularidades próprias ao gênero
romanesco.
336
Nesse ponto, convém ressaltar que nem mesmo o discurso bivocalizado garante a polifonia. Esta surge
quando se manifesta uma total ausência de um ponto de vista autoral dominante. Nesse particular,
aconteceria um debate de idéias em uma arena de confrontos dinâmicos sem se dirigir a uma conclusão.
173
A propósito, o romance foi, por muito tempo, pensado apenas como objeto de
análises abstratamente ideológicas ou submetido a apreciações de publicistas. O
discurso prosaico era entendido como um discurso poético no sentido estrito e a ele
eram aplicadas indiscriminadamente as categorias tradicionais (baseada nos estudos
dos tropos) ou o seu julgamento limitava-se às categoriais isoladas que caracterizavam
a língua tais como a expressividade, a clareza e a imagética. Enfim, a estilística
ignorava a vida social do discurso e ocupava-se não com a palavra viva, mas com o seu
corte histológico, com a palavra lingüística e abstrata a serviço da mestria do artista.
A perspectiva analítica proposta por Bakhtin, no que diz respeito ao estudo do
romance, mostra-se inovadora. Ele deixa para trás tal metodologia e procura
desenvolver apontamentos sobre o gênero considerando sua natureza social. Para o
teórico, recursos formais e conteudísticos não surgiriam isoladamente: “[a] forma e o
conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas
as esferas da sua existência e em todas os seus momentos – desde a imagem sonora
até os estratos semânticos mais abstratos”
337
. Portanto, o seu ponto de vista consiste
em eliminar a ruptura entre o formalismo e o ideologismo abstratos no estudo do
discurso literário.
Tais pressupostos asseguram algumas especificidades do romance que são
formuladas por Bakhtin. Dentre esses pontos, o autor destaca a diversidade social de
linguagens organizadas artisticamente que se fazem presentes no gênero. Conforme ele
explica, a estratificação interna de uma língua em cada momento dado de sua existência
histórica – através de dialetos sociais, jargões profissionais, linguagens e gêneros, fala
das gerações, das idades, das tendências, das autoridades – constitui premissa
indispensável do gênero romanesco. Os diferentes discursos intercalados introduzem o
plurilingüismo no romance, admitindo uma variedade de vozes sociais, sempre
dialogizadas em maior ou menor grau
338
. Tudo isso assinalaria um sentido ideológico
específico para a matéria, por conseguinte marcado por um índice de valor social
339
.
Associadas à concepção de língua, algumas noções que mais diretamente
interessam para o estudo de obras literárias, como A festa, segundo uma abordagem
pós-saussureana, são as de construção híbrida, plurilingüismo e discurso de outrem.
337
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et al.
3. ed. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1993. p. 71.
338
Idem. p. 74-75.
339
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981a.
174
Além de esclarecerem o modo como o diálogo é construído internamente na estrutura
dos textos literários de maneira a dar a estes uma significação específica, tais conceitos
desenvolvidos por Bakhtin mostram que “[a] pluridiscursividade e a dissonância
penetram no romance” de forma a definir “a particularidade específica do gênero
romanesco”
340
. Os referidos conceitos servem de base para a análise do livro de Ivan
Ângelo na medida em que viabilizam uma leitura acerca da construção estética da obra
bem como de sua perspectiva crítico-social.
O dialogismo, ou seja, a presença de um discurso dentro de outro discurso,
aparece já no primeiro episódio de A festa. Esse primeiro conto do livro apresenta-se
entrecortado por discursos extraídos de outras fontes. Assim, trechos de jornais, de
revistas, de obras literárias e mesmo de letras de música assinalam uma perspectiva
renovadora para o romance em apreciação. Com isso, se o fragmento que inicia o texto
de Ivan Ângelo não se constitui, do ponto de vista estilístico, num monólogo, é porque,
talvez, sua intenção seja estimular um debate, uma reflexão, em que elementos
oriundos de diferentes realidades sócio-históricas assinalem uma percepção específica
acerca do mundo. Documentário (sertão e cidade, 1970) trata da marginalização dos
nordestinos em virtude dos problemas sociais a que estão submetidos, e, para dar um
tom mais crítico ao texto, o narrador optou por valer-se de outros discursos:
“A constituição de nossa propriedade territorial, enfeudando
vastas fazendas nas mãos dos privilegiados da fortuna, só por exceção
permite ao pobre a posse e domínio de alguns palmos de terra. Em
regra ele é um rendeiro, agregado, camarada ou que quer que seja; e
então sua sorte é quase a do antigo servo da gleba”.
(Domingos Velho Cavalcanti de Albuquerque, presidente de
Pernambuco na década de 1870, cit. por Paulo Cavalcanti em Eça de
Queirós, agitador no Brasil.)
(...)
“Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse, adeus Rosinha,
Guarda contigo meu coração.
Hoje longe muitas léguas
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortá pro meu sertão.
Quando o verde dos teus óio
340
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et al.
3. ed. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1993. p. 305-306.
175
Se espaiá na prantação
Eu te asseguro, num chore não, viu?
Quando eu voltarei, viu, meu coração.”
(Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, baião Asa Branca, 1952.)
(...)
“Dos 3 mil populares que invadiram e saquearam o mercado de
Arapiraca, dois terços eram realmente flagelados e famintos. Os outros
se prevaleceram da situação de motim que se criou, guiados por
agitadores e subversivos que pretendiam aproveitar a fase difícil
decorrente da seca e promover agitações e atos de revolta.”
(Jornal O Palmeirense, de Palmeira dos Índios, Alagoas, em 15
de março de 1958.)
341
No excerto transcrito, três fragmentos foram selecionados. Pelas indicações
situadas após cada passagem, o primeiro aparece no livro Eça de Queirós, agitador
no Brasil e é de autoria de Domingos Velho Cavalcanti de Albuquerque. Este, valendo-
se de uma linguagem culta, critica a conjuntura social brasileira, acusando os donos de
grandes propriedades territoriais de abuso de poder. O segundo consiste numa letra de
música e pertence a Luís Gonzaga e a Humberto Teixeira. Utilizando versos, os autores
abandonam o padrão formal e aderem a uma linguagem mais próxima do popular. Eles
fazem uma crítica indireta ao sistema. Vocábulos que remetem à tristeza, à solidão e à
despedida do sertanejo de sua terra e de sua amada apontam para a dor do sujeito,
sentimentos esses cujas motivações básicas residem no descaso para com a
população. O terceiro é uma notícia editada no jornal O Palmeirense, em 1958. Assim
como os outros dois, esse trecho enfatiza a seca e a falta de solução dada ao problema,
o que vem a ser determinante para a eclosão de certos incidentes sociais. Como se
observa, são três gêneros – livro, música e jornal – que se entrecruzam e facultam uma
determinada visão do mundo.
Nesse sentido, as construções dialógicas baseadas na intercalação de gêneros
estão presentes no texto não apenas como artifício estético, mas principalmente como
índice de reforço de entonação crítica desenvolvida no romance. Com isso, aqueles três
fragmentos que aparecem no interior da obra em consideração, bem como outros aí
evidentes, são variações sobre um mesmo assunto e devem ser pensados com a sua
ligação com o social. Assim, a primeira e a última passagem são impressões e
descrições de observadores, a segunda é narrada do ponto de vista de uma vítima
direta do sistema, o que justifica o emprego de uma linguagem mais distante do padrão
341
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 17 e 22.
176
culto. A rigor, o uso de tal nível de linguagem não é casual, é reflexo da realidade,
constituindo um fenômeno ideológico, sendo a palavra “capaz de registrar as fases
transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais”
342
.
A exemplo das palavras, tal como chama a atenção Bakhtin, o romance também
apresenta essa característica de mudança, alteração, de acordo com a realidade
externa. Segundo o autor russo, o romance é o gênero que reage de maneira mais
sensível ao menor deslocamento e flutuação de atmosfera social; portanto, a
intercalação de gêneros, conforme fora observado, visa a acentuar a perspectiva crítica
que a obra elege adotar. Com isso, embora cada gênero tenha suas especificidades, ele
não deve ser estudado fora de sua posição social. Do ponto de vista do teórico,
[e]studar o discurso em si mesmo, ignorar a sua orientação externa é algo tão absurdo
como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele
é determinado
343
.
Ao referir-se à pessoa que fala no romance, julgada por Bakhtin como o principal
objeto do discurso romanesco e responsável pela originalidade do gênero, o teórico
salienta que, por se constituir em um sujeito essencialmente social, historicamente
concreto e definido, o seu discurso é uma linguagem social e não um dialeto individual.
Como ele chama a atenção, o caráter individual, os destinos individuais e o discurso
individual, por si próprios, são indiferentes ao romance. Assim, complementa o autor, as
particularidades da palavra dos personagens sempre pretendem uma certa significação
e uma certa difusão social. Por isso, conclui, “o discurso de um personagem também
pode tornar-se fator de estratificação da linguagem, uma introdução ao
plurilingüismo”
344
.
Com isso, não existiria uma fala neutra, no sentido de ser uma criação lingüística
original, indiferente ao processo ideológico, pois, como ressalva Bakhtin, em todos os
domínios da vida e da criação ideológica, a fala humana contém em abundância
palavras de outrem, transmitidas com todos os graus variáveis de precisão e
imparcialidade. Com base nesses pressupostos, o autor desenvolve a idéia de que o
indivíduo que fala no romance é sempre, em certo grau, um ideólogo e suas palavras
são sempre um ideologema. Tais particularidades prestam-se para uma avaliação do
342
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981a. p. 41.
343
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et al.
3. ed. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1993. p. 99. (Grifos no original)
344
Idem. p. 135.
177
romance de Ivan Ângelo, especialmente se se considerar o episódio Preocupações
(angústias 1968).
Como se verificou antes, o aludido conto narra as aflições da mãe de um rapaz,
Carlos Bicalho, pelo envolvimento do filho nas adversidades políticas do final dos anos
60. Em comunhão com isso, tem-se a sua manifestação contra o movimento estudantil,
a moda, o amor livre e a saia curta das moças. Não é por acaso, então, que ela se
mobiliza em favor de valores como a família, a tradição ou a propriedade, compactuando
com as premissas ditatoriais. O episódio inicia-se nos seguintes termos:
não o deixeis cair em tentação e livrai-o do mal amém.
Todo dia: vou pro DCE. Todo dia: não venho jantar, tem reunião
no DCE. Tem reunião no DA. O que será esse DA, meu Deus, esqueci
de perguntar ao Carlinhos. Alguma coisa eles estão aprontando, com
essas moças de minissaia.
Mãe não tem férias.
Aí, meus Deus, não o deixeis cair em tentação, mexer com
mulheres da rua nem com a filha de seu Nonato. É melhor ele casar
com essa moça da escola, pernas tão de fora, tão boazinha, parece
que não tem mãe para olhar, tão tarde na rua, melhor com ela.
Desde Ponte Nova seu Nonato avisou: não quero seu filho
andando com Cristina. Deus um dia há de castigar seu Nonato e eu vou
dizer: mande sua filha parar de procurar meu filho, aquela sem-
vergonha. Eu sabia que Carlinhos chorava de noite no quarto e não
podia dizer que sabia, eles ficam com raiva é da gente. Deus há de
castigar seu Nonato
345
.
O excerto transcrito enfatiza marcas do discurso religioso cristão na fala da
narradora. Este é um primeiro índice de que a sua linguagem está permeada por um
discurso que não é neutro, mas carregado ideologicamente e, portanto, toma parte de
seu significado do contexto de enunciação. A escolha lexical feita pela mãe de Carlos
Bicalho nessa passagem atesta a sua adesão a um modelo de pensamento que é
compatível a uma ordem autoritária de conduta social. Ao pronunciar expressões como
não o deixeis cair em tentação, livrai-o do mal amém, Ai, meu Deus e Deus um dia há
de castigar seu Nonato, a narradora, ao mesmo tempo em que desaprova certas
atitudes e comportamentos, busca fundamentar certos pensamentos que julga como os
mais corretos e aceitos. Nesse sentido, o fato de ela não se solidarizar com o
envolvimento do filho em movimentos estudantis ou de não aceitar que as meninas
345
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 101.
178
usem minissaias se traduz, por outro lado, na aceitação pacífica daquilo que a elite
propagava como ideal.
Como se observa nesse monólogo, há um discurso atuando dentro de outro
discurso, por isso mesmo, pode-se dizer que existe dialogismo na linguagem literária.
Tal incorporação de um discurso de outrem na fala do personagem permite que se
estabeleça um maior reconhecimento seu, possibilitando, inclusive, que se julgue a sua
visão do mundo. Dependendo da maneira como a voz do outro é introduzida, tem-se um
sentido do texto dialógico, o qual pode variar e sugerir diferentes possibilidades de
interpretação. Nesse particular, a mãe de Carlos Bicalho aderiu a toda uma ordem de
idéias que vai na mesma direção dos ideais da classe dirigente que apoiava a Ditadura
Militar. Assim, ao ser contra os movimentos estudantis, ao ser contra as mulheres de
minissaias, ao ser contra os hippies que fumam maconha, dentre outras coisas, ela é
contra uma ideologia que é contrária às regras de conduta social imposta pelo grupo
governante, logo a sua consciência é massificada e manipulada por um pensamento
autoritário imposto como tal.
O dialogismo, nessa linha de reflexão, leva a pensar na existência de uma
ideologia que se expressa na linguagem. Segundo Theodor Adorno, a linguagem
modula o pensamento e se vale de mecanismos para tornar a idéia que pretende
veicular autêntica. Conforme o autor, as pessoas têm um tipo de inconsciente reificado
que as leva a aderir a um tipo de conduta social pré-fabricado. Soma-se a isso o fato de,
no mundo contemporâneo, universalmente mediatizado, toda experiência ser
culturalmente pré-formada. Sendo assim, a palavra seria concebida como jargão que
teria como propósito organizar um sistema de idéias que tem subjacente um mundo
desorganizado e desintegrado. Logo, explica o teórico, quem domina o jargão possui um
pensamento pré-figurado, o que exclui a necessidade de reflexão. Portanto, o jargão
tem como objetivo a manipulação da realidade, simplificando o pensamento e
conformando a sociedade. Durante o nazismo, o ato de matar foi transformado em um
grande evento que, pela sua banalização (através do jargão), se tornou algo corriqueiro,
logo convertido em um acontecimento ou um procedimento de exclusão justificável por
si só
346
.
346
ADORNO, Theodor. La ideología como lenguaje: la jerga de la autenticidad. Trad. Justo Pérez Corral.
Madrid: Taurus, 1987.
179
No episódio analisado de A festa, a voz narrativa repete convenções já
determinadas. O personagem demonstra certa repulsa pelo diferente, fator este que
poderia gerar uma reação negativa frente ao sistema. Ele não compartilha com o que é
contrário ao pensamento autoritário, o que justificaria a sua falta de reflexão frente às
circunstâncias sócio-políticas. O seu pensamento está perpassado por aquilo que
Adorno denominou como jargão, ou seja, a sua lógica de raciocínio é manipulada por
uma linguagem calcada numa ideologia autoritária.
Outra particularidade que define o romance de Ivan Ângelo é a polifonia. O termo
foi criado por Bakhtin com base nas inovações percebidas na construção narrativa das
obras de Dostoiévski. A peculiaridade fundamental dos textos polifônicos é a
multiplicidade de vozes e consciências independentes, que não se misturam. Conforme
o autor, é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes, ou seja,
consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta
igualdade, e seus mundos que combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a
sua imiscibilidade
347
. Assim, a atividade dialógica, como demonstrada, é outro fator
importante para o polifonismo, já que ela é correlata à multiplicidade de vozes e
consciências independentes do texto polifônico.
Numa narrativa polifônica, a inovação se instaura a partir do domínio de uma
comunicação dialógica especial com as consciências dos personagens, agora bem mais
valorizados pelo caráter democrático, fruto da polifonia e do próprio dialogismo. Isso é
exigido a partir do momento em que se concebe uma obra como polifônica, pois o autor
deve ampliar sua consciência, aprofundá-la para que consiga abranger as outras
consciências e valores, mas nunca renunciando a si mesma, à sua própria consciência,
tampouco se igualando ou superando a consciência dos personagens. Nesses termos,
portanto, a polifonia faz com que a narrativa se volte para a coletividade, ou seja, não é
apenas a voz de um indivíduo em monólogo, são várias vozes, a voz da coletividade,
várias consciências que se impõem à medida que lhes é oportunizado o direito de expor
suas idéias dentro de um processo narrativo.
Assim, em A festa, várias são as vozes narrativas que facultam uma observação
e uma avaliação das circunstâncias sócio-políticas da época. Essa pluralidade de pontos
de vista é importante porque denuncia as mais diferentes facetas do período ditatorial e
347
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 4.
180
do processo de constituição da sociedade brasileira. Com isso, a confluência de
diferentes vozes e de distintas formas de organização do texto literário vislumbra a
influência das forças sociais na elaboração do discurso, fator este que impede a
construção de um discurso monológico e possibilita um debate inconcluso. No romance
em questão, embora os sete primeiros episódios lidem com vozes narrativas distintas, é
nos segmentos intitulados Antes da festa e Depois da festa que se têm, propriamente,
as misturas de tais vozes, que, em inúmeros casos, denunciam o horror e a barbárie na
estrutura social.
Em uma dessas passagens, há um grupo de escritores que, no Bar e
Restaurante Lua Nova, discute a forma de fazer literatura. As transformações do país
forçam os artistas a buscarem opções capazes de lidar com um material heterogêneo e
inusitado, proveniente dos múltiplos aspectos da vida moderna:
Bar e Restaurante Lua Nova
19h45m
– É sério, olha aqui: com um tema desses eu posso fazer um
corte crítico em trinta anos de vida brasileira.
– Corte crítico é muito bom, hem?
– Olha aqui: um cara acorda trinta anos depois, quer dizer,
passou trinta anos com amnésia, vivendo como se fosse outra pessoa.
Quando ele acorda, volta a ser o que era trinta anos atrás. E o romance
é toda essa surpresa dele com os acontecimentos, está me
entendendo? É um negócio meio simbólico. Esse homem representa
todo o homem brasileiro. Amnésia é a alienação, porra. Eu já tenho na
cabeça até os capítulos. Os Mortos. O cara se espanta quando dizem
que Getúlio morreu. Góis Monteiro, Osvaldo Aranha, Heleno de Freitas,
José Lins do Rego. Bom, aí eu analiso, dou um sentido a essas mortes
dentro do romance. Outro capítulo. A Gíria. O cara quase não entende
o que se fala hoje, de vez em quando tira uma dessas: sossega leão,
vou navegando, firme, firme como o Pão de Açúcar, o que é que há
com o seu peru, umas coisas assim. Depois tem as novas invenções –
a televisão, já imaginou o espanto do cara com a televisão? – o
progresso tecnológico, os novos escritores, os golpes militares. É um
negócio bem de pé no chão, entende? Acho que dá um negócio do
rabo, assim na linha do Huxley
348
.
No fragmento em apreciação, um dos escritores comenta a respeito da
possibilidade da realização de uma obra cujo tema trabalha com questões relativas à
alienação social justamente num momento em que o Brasil passa por uma experiência
limite associada ao impacto da Ditadura Militar. Ainda segundo essa voz narrativa, o
348
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 118-119.
181
protagonista de seu livro seria um indivíduo horrorizado com as mudanças sociais que
se processaram no intervalo de trinta anos de história. Nesse sentido, os choques
vivenciados pelo sujeito corresponderiam a momentos de transformação do país como,
por exemplo, o progresso tecnológico, os novos escritores e a intromissão dos militares
na vida brasileira. Como se vê, trata-se da voz de um personagem de A festa que,
através de um veículo particular, tenta expor seu ponto de vista acerca do Brasil de uma
época.
Essa perspectiva crítica não fica só por conta do aludido personagem-escritor. O
romance de Ivan Ângelo é polifônico, cedendo espaço para uma literatura social, voltada
para a coletividade, com seus problemas, angústias e frustrações. Assim, os
personagens, embora diferentes uns dos outros, são situados em um mesmo nível, suas
histórias encontram-se em um mesmo plano, pois relatam, ainda que de forma distinta,
um problema comum a todos. Em A festa, um problema importante diz respeito à ação
da polícia na repressão:
Rua Grão Mogol, 174, apartamento 11
20h52m
Samuel ouve a mulher grávida:
– Reviraram a casa toda, procurando não sei o quê. Nem jantar
ele veio, aposto que está com fome até agora. Eu não posso sair daqui
porque tenho essa menina para olhar – ela está doentinha hoje, não sei
o que é – e também não posso andar muito com essa barriga, está para
nascer de uma hora para outra. Não sei o que Carlos tem de se meter
nessas confusões. É como eu estou dizendo: ele nunca fez nada, mas
é muito esquentado, sabe? Mania de discutir, de tomar as dores dos
outros.
– Como é que a senhora soube da prisão?
– Pois não estou falando que veio polícia aqui e revirou a casa
toda? Essa gente não explica nada direito, diz que ele está
incomunicável. Foi alguma coisa lá na Estação, história de uns
retirantes que chegaram aí e deu uma confusão com a polícia. Ele
trabalha na Secretaria do Trabalho, sabe?, esse doutor Otávio Ernani é
que arranjou para ele. Ele foi lá ver esse negócio dos retirantes;
telefonei para a Secretaria e me falaram isso. Aí, não sei por quê,
prenderam ele. O senhor podia até fazer o favor de saber o que é e
telefonar para o doutor Otávio Ernani, se o senhor puder, para mim
349
.
Nesse excerto, é a voz de um outro personagem que confere destaque a uma
situação delicada do contexto brasileiro. A mulher de Samuel relata a ação da polícia na
349
Idem. p. 119-120.
182
perseguição de Carlos Bicalho, pois é acusado de participação em atividades
subversivas, no caso, ele é acusado de envolvimento com os nordestinos que chegaram
à Estação Ferroviária de Minas Gerais. Até aqui, são pelo menos duas vozes que
expressam variações sobre um mesmo assunto. De um lado, tem-se a perspectiva de
escritores que aderem a um tipo de produção cultural que desejam fazer funcionar como
arma de controle social; de outro, têm-se pessoas sendo violentadas e perseguidas.
Seja como for, em ambos os casos, são vozes de pessoas que pertencem a grupos
sociais marginalizados.
Afora essas duas situações de fala em que se têm expressas opiniões sobre as
circunstâncias políticas e sociais de um Brasil em crise, há ainda um diálogo entre o
redator-chefe do jornal Correio de Minas Gerais e o funcionário Samuel Fereszin. É
justamente nesse embate de vozes que é possível depreender o sentido ideológico de
diferentes classes:
Praça da Estação
22h34m
Samuel ouve a resposta do redator-chefe do jornal:
– Deixa isso para lá, rapaz. Amanhã o governo resolve o que faz.
– Amanhã é tarde. A polícia vai embarcar todo mundo hoje à
noite. O jornal podia telefonar para o governador, pedindo uma
providência. Aposto que ele não sabe o que está fazendo aqui.
– Claro que sabe. Olha aqui, vê se traz logo essa matéria que
está ficando tarde.
– O jornal não vai fazer nada?
– O jornal vai fazer o que jornal faz: publicar a matéria
350
.
Quando da retirada dos nordestinos desempregados e doentes da Estação,
Samuel se desvela em prol destes, esperando, inclusive, que o jornal contribua de
alguma forma com eles. Não é isso, entretanto, o que se averigua. O jornal não se
sensibiliza pela situação. Frente a isso, Samuel abandona o jornalismo e a vida
intelectual e adere, por puro voluntarismo e desespero, à ação armada, que poderia ser
classificada como terrorista. Portanto, no particular ao fragmento em apreciação, são
duas vozes que expressam pontos de vista diferentes: de um lado, a voz daqueles que
questionam o sistema; de outro, a daqueles que silenciam, que preferem manter-se
calados.
350
Idem. p. 143-144.
183
Além disso, em A festa, mais especificamente no capítulo Antes da festa,
aparecem as “anotações do escritor”, destacadas com esse título e entre parênteses.
Elas interrompem a narração da matéria (aparentemente) principal, o que não deixa de
ocasionar, no leitor, uma espécie de afastamento brechtiano, tal como chama a atenção
Walter Benjamin
351
. O ledor, surpreso, é forçado a abandonar temporariamente o relato,
que é já por si só densamente fragmentário, para acompanhá-las. Tais anotações
abordam temas ou questões que, com raras exceções, não são objeto do conjunto de
acontecimentos. Algumas delas permitem ao personagem-escritor refletir sobre suas
próprias condições de trabalho ou sobre a crise experimentada pelo romance e pelos
produtores culturais da década:
(Anotações do escritor:
Um desperdício deixar passar este momento sem tentar captar o
sentido dele, ao menos um esboço que mostre a alguém: era assim,
naquele tempo. Era assim que as pessoas se destruíam, que as
consciências aceitavam, que os homens se diluíam entre o medo e o
dever, que os escritores procuravam esquecer ou não conseguiam
escrever nada.
Sim, eu creio que é isso e que é uma luz e que estou certo.
Algumas das minhas histórias podem esperar uma década para serem
escritas.)
352
Como se observa, aqui é a voz do narrador-escritor que expressa as dificuldades
objetivas que rondam a criação literária, exigindo, por vezes, um trabalho penoso e
prolongado por parte dos escritores, ou que concretizam uma inesperada forma de
atualização do romance, que se abre para os mais variados problemas da conjuntura
histórica e social. Nesse excerto, o escritor lamenta o fato de muitos artistas não
captarem com precisão o sentido, a importância e o valor do momento histórico em
curso. Em outros termos, trata-se da incapacidade ou da impossibilidade de os
romancistas apreenderem as circunstâncias sócio-históricas e elaborá-las artisticamente
para a posteridade. Em todo caso, tem-se, nesse fragmento, mais uma vez, uma voz
que deixa a sua impressão a respeito do contexto histórico.
A festa constitui-se numa narrativa polifônica porque apresenta uma
multiplicidade de vozes e de consciências independentes. Tais características foram
351
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
352
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 147.
184
primeiramente observadas nos romances de Dostoiévski por Bakhtin. Referindo-se às
obras do aludido autor, o teórico russo afirma possuir uma matéria cujos elementos são
distribuídos entre si por diversos mundos e várias consciências plenivalentes,
possibilitando, com isso, várias perspectivas equivalentes e plenas. Conforme Bakhtin,
são esses mundos, essas consciências com seus horizontes que se combinam numa
unidade superior de segunda ordem, por assim dizer, na unidade do romance polifônico,
e acrescenta: “[g]raças a essa variedade de mundos, a matéria pode desenvolver até o
fim a sua originalidade e especificidade sem romper a unidade do todo nem mecanizá-
la”
353
.
As colocações de Bakhtin acerca da produção dostoievskiana prestam-se para a
elucidação de alguns aspectos do romance de Ivan Ângelo. Nesse sentido, A festa
apresenta um conteúdo que demonstra uma preocupação em tematizar diferentes
aspectos da conjuntura social e histórica de uma determinada época. A multiplicidade de
vozes, mais do que expressar consciências múltiplas, coloca a literatura dentro de uma
perspectiva social, voltada para a coletividade, com seus problemas, angústias e
frustrações. Como se verificou em algumas passagens do livro em consideração, é
transmitida a angústia de artistas frente às perspectivas do fazer literário, o desespero
das pessoas com respeito às prisões ocorridas na época e, também, a indignação de
alguns para com aqueles que se omitem perante os problemas sociais. Enfim, o rodízio
de focos narrativos não faz o leitor somente participar da narrativa, mas também
sustenta a voz coletiva.
A multiplicidade de vozes que a narrativa de Ivan Ângelo comporta traduz um
conteúdo de feição social. Essa mesma idéia de que o plano social, cultural e ideológico
influi na organização da narrativa é sustentada por Bakhtin a respeito dos livros de
Dostoiévski. Conforme explica o teórico russo, o mundo dostoievskiano é a expressão
mais autêntica do espírito do capitalismo. Os planos sociais, culturais e ideológicos que
se chocam em sua obra tinham, antes, um significado auto-suficiente, eram
organicamente fechados, consolidados e interiormente conscientizados no seu
isolamento. O capitalismo teria destruído o isolamento desses mundos, fazendo
desmoronar o caráter fechado e a auto-suficiência interna desses campos sociais. Tudo
isso teria gerado contradições na vida social, que não cabem nos limites da consciência
353
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 15.
185
monológica. Com isso, afirma o autor, criaram-se as premissas objetivas da
multiplanaridade essencial e da multiplicidade de vozes do romance polifônico.
No Brasil, as condições históricas que se firmaram na década de 70, mais
pontualmente, deixaram latentes estruturas que assinalam um processo de formação
paradoxal. O autoritarismo, a suposta idéia de desenvolvimento que surge naqueles
anos, o ideal de modernidade infundado, tudo isso ganha uma representação na
linguagem da arte e, particularmente, na linguagem de uma variedade específica do
gênero romanesco, despojado de unidade monológica. Nesse sentido, portanto, A festa,
devido a sua polifonia, tem como mérito abster-se de qualquer tentativa de tornar
monológico esse mundo, abster-se de qualquer tentativa de unificação e conciliação que
ele encerra.
A multiplicidade de vozes no romance em questão desperta a reflexão, já que
coloca lado a lado opiniões diferentes a respeito de um mesmo referente ou assunto.
Em alguns casos, é como se surgisse uma tese seguida de uma antítese que requer do
leitor uma tomada de posição, a síntese. É o que acontece num diálogo entre Dona
Celma e Ana, mãe e esposa, respectivamente, de Carlos Bicalho. Este está
desaparecido por mais de um ano, e a nora, cansada com a situação de abandono,
procura a sogra para confessar suas queixas:
Dona Celma – Você me assusta, Ana. Aconteceu alguma coisa
com Carlinhos?
Ana – Não, nada disso. Eu nem tenho notícias dele.
Dona Celma – Isso não quer dizer nada. Ele nunca foi de
escrever mesmo. Lembra aquele tempo que ele estava em Juiz de
Fora? Só me escreveu duas cartas num ano. Para você também.
Ana – Não. Pra mim ele escreveu oito cartas. E por que a senhora
diz Juiz de Fora em vez de dizer: quando ele estava preso – ah, deixa.
Como se observa, Dona Celma, através de seu discurso, procura defender o
filho. Ana, a mulher, o julga por não receber notícias suas há mais de um ano; a mãe
alega que isso não importa, porque é do costume dele não manter contato. Da mesma
forma, a mãe se refere ao local onde Carlos está, fazendo referência à cidade, já a
esposa é mais específica, dizendo que ele estava na prisão. Seja como for, são
discursos, argumentos, que se desvelam a favor e contra um sujeito.
186
A conversa tem continuidade. Ana expõe a Dona Celma todo o sofrimento e
desgaste que vem enfrentando por não ter qualquer apoio do marido. A sogra interpreta
ou finge entender que se trata de problemas econômicos, oferecendo-lhe ajuda:
Dona Celma – Você sabe também como que eu vivo, minha filha,
mas se precisar, eu dobro na datilografia, ajudo um pouco.
Ana – Não é só problema de dinheiro não. Estou só contando pra
senhora como é que são as coisas.
Dona Celma – Sei, sei. Mas se precisar.
Ana – Primeiro deixa eu acabar de falar o que que eu vim falar. É
o seguinte: o Carlos me abandonou mais a Neusinha.
Dona Celma – Não é isso, minha filha.
Ana – Não, é isso sim. Há mais de um ano que eu não tenho uma
notícia, nem um tostão. Se tivesse sido preso de novo, podia escrever.
Se estivesse solto, trabalhando, podia escrever também e mandar
alguma coisa para a Neusinha. E se não faz é porque não quer mais
saber da gente. Ou então morreu.
Ana é cada vez mais incisiva em seus argumentos, acusando Carlos inclusive de
traição:
Ana – A última carta quem escreveu fui eu. Isso já faz mais de um
ano. A senhora acha que eu sou boba? Das duas uma: morreu ou
arranjou outra mulher. De qualquer jeito, a senhora vai me desculpar
mas, de qualquer jeito, pra mim morreu.
Dona Celma – Não fala isso, menina.
Ana – Morreu! Morreu, dona Celma. Não quero mais saber e é
isso que tem mais de seis meses que eu estou querendo falar com a
senhora.
Dona Celma é conservadora e apela para a tradição como forma de sustentar
suas premissas. Do seu ponto de vista, o papel da mulher é justamente o de se
submeter ao homem, satisfazendo suas vontades, sendo paciente com ele:
Dona Celma – O papel da esposa é esperar. A mulher de Ulisses
esperou dez anos.
Ana – Não interessa o caso dela. Dez anos? Eu conheço ela?
Dona Celma – Ulisses, da guerra de Tróia.
Ana – Bom, não interessa. Eu já resolvi: vou desquitar.
Dona Celma – Que loucura, Ana. Só a morte pode separar marido
e mulher.
187
Ana – Que morte nada, dona Celma. Eu preciso viver minha vida.
Dona Celma – A pior desgraça numa família é o desquite. Mulher
sem marido, filhos sem pai.
Ana – É como eu estou agora.
Dona Celma – É diferente, minha filha. Casada, todo mundo
respeita. Mulher desquitada pode não fazer nada que todo mundo fala.
Pensa na Neusinha.
Ana – Tem seis meses que eu estou pensando. Eu vim aqui só
falar com a senhora, para a senhora não saber pelos outros. Eu quero
casar de novo, dona Celma.
Dona CelmaCasar! Você já é casada. Casada com meu filho! A
mulher tem de zelar pelo nome do marido, tem de respeitar a ausência
do marido
354
.
A conversa termina com Ana confessando que já arranjou outro noivo, pretende
se casar com ele e abandonar Carlos definitivamente. Como se vê, são duas vozes que,
no romance como um todo, se juntam com outras vozes. Nesse particular, são dois
pontos de vista contrários que requerem um julgamento final. Por um lado, tem-se um
pensamento que prima pelas leis do patriarcalismo; por outro, tem-se uma voz
inovadora que se coloca contra uma tradição de base autoritária. Considerando-se tais
particularidades, esse fragmento do livro leva a pensar sobre certas reflexões que
alguma ideologia oriunda da ditadura sustentou. Assim como Dona Celma, havia
pessoas que apoiavam certas estruturas de poder calcadas na tradição; em
contrapartida, assim como Ana, havia aqueles que procuravam colocar em xeque toda
essa ordem de pensamento. A função da polifonia, no romance, ao que parece, é abrir
as possibilidades de reflexão a respeito de determinados assuntos.
Como se observou ao longo desse capítulo, o dialogismo e a polifonia estão
presentes em A festa não somente como artifício estético, mas também como reforço
de entonação crítica que o livro propõe-se a demarcar. O dialogismo – ao expressar a
incorporação da fala de outrem na linguagem de um determinado sujeito – mostra a
influência de um componente ideológico de tal indivíduo. Como se verificou em algumas
passagens do romance, o dialogismo contribui para o entendimento de certos
comportamentos e condutas de personagens, bem como ajuda na compreensão de
determinadas formas de se avaliar o mundo.
A polifonia, isto é, a multiplicidade de vozes, é outro elemento importante para se
avaliar a perspectiva crítica da obra em questão. As várias vozes que integram a
354
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 180-183.
188
narrativa, por si só, já são índices de que não existe um único ponto de vista que forja
uma interpretação fechada do texto. A polifonia expurga o monologismo autoritário e
confere voz a diferentes grupos sociais; conseqüentemente, diferentes aspectos da
conjuntura sócio-histórica são tematizados, estimulando a reflexão, o debate. Portanto, o
dialogismo e a polifonia, enquanto recursos estéticos, mas não só isso, têm como
propósito instigar os leitores a uma visão mais ampla da estrutura social, exigindo deles
uma tomada de posição, ou seja, um in-conformismo.
3.3.3 A fragmentação no romance de Ivan Ângelo
Reúno os fragmentos do passado, recompondo a dilaceração,
desvendo o mistério: apenas arranhei uma nova superfície e é
preciso recomeçar, ir mais fundo.
(Em câmara lenta, Renato Tapajós)
O romance de Ivan Ângelo é formado da combinação de fragmentos que,
entrecruzados, viabilizam diferentes perspectivas ideológicas. A totalidade, entretanto,
exige a constatação de um núcleo de convergência, no caso, a festa. Esta, em si
mesma, constitui o ponto culminante da narrativa, a qual não é exposta ordenadamente.
Ademais, a sua efetivação é dada por meio das referências feitas em forma de flash-
back e de prospectos durante a apresentação dos personagens. Logo, para a
construção das características pertinentes à festa, é preciso montar seus fragmentos
dispersos no todo da obra. Em outros termos, há o antes e o depois da festa, o durante
não é narrado linearmente, existindo nas formas de referências cindidas e nas
conseqüências operadas nas atitudes dos personagens após a consumação do evento.
É como se estivesse faltando uma parte, a qual, no entanto, não prejudica a integridade
do relato, porque sua realização como trama fica sugerida naquilo que realmente faz
parte da narrativa.
Afora isso, A festa, conforme o subtítulo sugere
355
, pode ser lido como um
romance, obedecendo à sua ordem de apresentação, ou como um livro de contos, não
exigindo que seja lido do início ao fim da maneira como os episódios vêm dispostos.
355
O título da obra é assim expresso na folha de rosto: A festa – Romance: Contos.
189
Isso leva a crer que a obra oferece várias possibilidades de leitura. De acordo com os
argumentos de Janete Gaspar Machado, os fragmentos que compõem o texto em
questão são espécies de janelas, através das quais é possível insinuar, no conjunto,
uma visão panorâmica das causas e características da degradação cultural que vai se
alastrar nos anos 1970
356
. Portanto, a forma como o livro se estrutura e os tópicos
temáticos que ele desenvolve ampliam a capacidade de interpretação e geram um novo
prisma da situação política nacional da aludida década.
A propósito, o elemento fragmentação faz parte do plano geral da obra, a qual, se
bem observada, configura-se como um projeto de romance. Em outras palavras, A
festa, tal como se oferece à leitura, surge como um projeto ficcional a ser realizado. Isso
pode ser constatado, por exemplo, em alguma epígrafe de algum subtítulo do livro
“Biografia encontrada pelo autor entre os papéis de um personagem do livro, que não
sabe ainda se identificará mais adiante”
357
– ou em alguma “anotação do escritor”:
(Anotação do escritor:
Incluir em Antes da Festa várias “anotações do escritor” (inclusive
esta). São projetos, frases, idéias, para contos, preocupações literárias,
continhos relâmpagos, inquietações. Assim, o escritor seria, junto com
Samuel, personagem principal da história que está escrevendo.
Personagem involuntário, porque é “outro autor” – ele mesmo, ou o
homem que ele viria a ser, convivendo, artifi-ciosamente no tempo e no
espaço com o homem que ele tinha sido – é “outro autor” que junta os
pedaços desconexos de suas anotações
358
.
Se o livro de Ivan Ângelo assume tanto a forma de romance quanto à de conto,
isso significa que ele abandona determinados modelos tradicionais de apresentação
estética. Essa perspectiva do fazer literário, considerando-se o contexto de sua
produção, é inovadora. Ademais, a dimensão de projeto que a obra assume e o seu
caráter inacabado e fragmentário de apresentação assinalam a suspensão de condições
convencionais de leitura. Dentro de uma postura ideológica e reflexiva de análise, é
possível correlacionar o texto em questão com a realidade social dos anos 70. Assim, A
festa, pelas suas características formais e temáticas, exige uma leitura ativa do seu
356
MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética.
Florianópolis: UFSC, 1981. p. 45.
357
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 49.
358
Idem. p. 128.
190
leitor, seja em relação ao próprio livro seja em relação ao mundo da vida. Tudo isso
propiciaria um questionamento a respeito da noção de verdade.
Na última passagem transcrita da obra, o suposto autor, ao fazer declarações a
propósito de seu livro, chama a atenção para a necessidade de juntar “os pedaços
desconexos de suas anotações” para que seu projeto ganhe um perfil de acabamento
mais definido. Talvez tal artifício gerasse um empobrecimento no que tange ao alcance
de problematização que o texto implica, ou seja, quanto mais definido o seu livro for,
mais acabado ele se caracterizará e, por isso, menos aberto a novas possibilidades
interpretativas.
O escritor, ao salientar a necessidade de associar “os pedaços desconexos de
suas anotações”, está fornecendo pistas não apenas de como o seu livro deve ser lido,
mas de como a própria realidade histórica deve ser encarada. Ao datar os episódios do
romance a começar pelos anos 30, o livro postula a idéia de que há uma sucessão
ininterrupta de acontecimentos que contribuirão para a definição do perfil da sociedade
dos anos 70. Ao optar por essas amarras, o narrador assume a postura de um
historiador que reconstrói a história a partir da totalidade de acontecimentos. Portanto,
seu interesse não se coloca em prol dos vencedores, mas da dos vencidos. A festa,
dadas essas considerações, exerce a função de escovar a história a contrapelo, sendo
metaforicamente semelhante ao anjo do quadro de Paul Klee – comentado por Benjamin
– que é capaz de perceber as catástrofes históricas
359
.
A propósito, partindo-se do quadro de Klee, pode-se dizer que os aspectos
catastróficos da realidade não são vistos a olho nu ou por um olhar despercebido, já que
a figura do anjo parece estática, insinuando uma postura contemplativa, logo de
reflexão. É preciso um olhar tridimensional que, de alguma forma, capte o que há por
detrás da fachada que encobre uma outra verdade da história. O anjo, entretanto, está
com os olhos arregalados, como que temeroso, o que permite inferir que nem tudo pode
ser contado por ele, já que há uma incapacidade crescente de contar, “[p]orque nunca
houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do
359
In BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
191
corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes”
360
. Em outros termos, a maioria
das experiências passa a ser incomunicável após a guerra e a industrialização. Frente a
isso, o narrador, a exemplo do anjo, deve ser rico em experiências para contar. É
preciso resgatar o passado, colar seus cacos, mas não é tão fácil assim, porque tal
atitude de resgate implica deparar-se com o sofrimento e a dor.
Considerando-se os mecanismos estruturadores da obra de Ivan Ângelo, as
várias “anotações do escritor” desvelam um aspecto de provisoriedade da mesma. Essa
provisoriedade no plano de realização formal do livro permite dizer que ele está em
comunhão com a perplexidade diante de um clima de alteração e agitação social e
cultural. Em outros termos, A festa coloca em cena o próprio ato da criação literária,
interrogando a organização interna do enredo, algo que permite estabelecer uma
homologia com o modo de se conceber o momento histórico: em transformação. Em
suma, o envolvimento do romance com o momento presente (anos 70) pressupõe e se
efetiva num envolvimento que tem em conta a própria linguagem. Não são raras as
vezes em que o escritor demonstra perplexidade diante do seu processo de escrita:
(Anotações do escritor:
O papel está na máquina há uma hora e meia, branco até eu
começar a escrever esta carta aberta a quem interessar possa – porra,
porra, porra. Eu pus o papel na máquina para começar novamente a
escrever O Judeu Refratário e não consigo tirar nada de mim. Porra.
Gostaria de dar uma porrada no meu superego. Preciso entender direito
o que é que me impede. Hipótese um: medo de crítica e eu disfarço
com escrúpulos de escrever um livro inútil. Hipótese dois: o ambiente
rarefeito de liberdade me inibe, inibe todo mundo, e escrever virou uma
bobagem sem importância. Hipótese três: estou entre deus e o diabo na
terra do sol, entre escrever para exercer minha liberdade individual e
escrever para exprimir minha parte da angústia coletiva; imagino
histórias que tenho vergonha de escrever porque são circunstanciais.
Hipótese quatro: sou consciente de estar vivendo num momento de
obscurantismo da Literatura, um daqueles períodos estéreis de que a
História não guarda nada e sei que é inútil escrever qualquer coisa,
participante ou não, que tudo sairá uma bosta e se perderá na noite da
História e é melhor não desperdiçar meu tempo. Hipótese cinco: tem
muita porra estéril derramada por aí e eu não quero ser mais um
punheteiro.
(...)
Outros parágrafos, cada um valendo por si como um texto
completo, contarão exatamente o que aconteceu, embora o
360
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 115.
192
acontecimento seja um mistério para o personagem, porque ele não vê
o conjunto. Toim!)
361
.
Nessa passagem, o “escritor” enumera várias razões que dificultam o seu
processo de escrita. Em todas elas, nota-se que, direta ou indiretamente, há um
componente social atuando sobre tal grau de dificuldade. De qualquer modo, o que
merece ser anotado, nesse particular, é que esse personagem enfrenta uma situação
paradoxal: ele tenta narrar o inarrável. Sob esse prisma, segundo apontamentos de
Jeanne Marie Gagnebin, “o que se opõe a essa tarefa de retomada salvadora do
passado não é somente o fim de uma tradição e de uma experiência compartilhada;
mais profundamente, é a realidade do sofrimento, de um sofrimento que não pode
depositar-se em experiências comunicáveis, que não pode dobrar-se à junção, à sintaxe
de nossas proposições”
362
. Não obstante, o “escritor” deve buscar vencer a dificuldade
de narrar, porque o passado deve ser retomado para não ser sufocado pelo silêncio e
pelo esquecimento.
Nesse sentido, abordando os anos 30, 40, 50, 60 e 70 da história brasileira, o
escritor-narrador sopra o vento da denúncia, fazendo com que o leitor seja arrastado
para o passado e, junto com ele, vivencie as arbitrariedades geradas pelo Estado. Com
isso, A festa constitui-se numa espécie de testemunho da truculência, da violência e do
atraso político-social por que tem passado o país. Para expressar essa idéia de
desarmonia, nada é gratuito no romance. O livro, ao ser confirmado como projeto e,
mesmo assim, sendo publicado tal como se apresenta, por intermédio justamente de
sua própria poética, constrói-se de modo a contar a denúncia de si mesmo porque se
mostra assim, na sua elaboração aparentemente provisória no nível da leitura. A
exemplo da obra de Ivan Ângelo, que deve ser lida considerando-se seu aspecto de
inacabamento, a história também deve ser lida da mesma forma, levando-se em conta
seu perfil de inconclusão.
A última frase do excerto reproduzido é bastante elucidativa para a análise de A
festa. O período chama a atenção para a necessidade de se ter em conta cada
fragmento da obra, pois eles são dotados de sentido completo em si, mas também
contribuem para a compreensão de outros aspectos do romance. Ou seja, para o que
361
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 135-137.
362
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
1999. p. 63.
193
talvez o “escritor” queira chamar a atenção é que o livro não procura se assentar
primordialmente em grandes acontecimentos ou figuras da história tradicional, mas
muitas vezes em experiências privadas de personagens comuns, e é esse acúmulo de
experiências que viabiliza uma outra leitura da história. Portanto, aqui, insere-se a
perspectiva do materialismo histórico, preocupado principalmente com os pormenores,
elementos esses que, para o historiador tradicional, exigem ser descartados. Para
Márcio Seligmann-Silva, essa perspectiva de leitura ou de reescrita se dá em camadas:
“ao invés da linearidade limpa do percurso ascendente da história (do ‘Ocidente’, do
‘Geist’) tal como era descrita na historiografia tradicional, encontramos um palimpsesto
aberto a infinitas re-leituras e re-escritas”
363
.
Provavelmente, uma outra perspectiva de avaliação do discurso histórico esteja
centrada no próprio jogo entre aparência de realidade e realidade desmascarada. O
romance de Ivan Ângelo lida com tais aspectos trazendo à tona, por um lado,
personagens que usam máscaras para cobrir sua personalidade autoritária; por outro,
expõe situações que denunciam o atraso e o descaso do Estado para com os problemas
sociais brasileiros. No primeiro caso, tem-se a caracterização de personagens
fundamentados na aparência, sendo denunciados especialmente quando inseridos em
circunstâncias distintas. É o caso do delegado Jorge Paulo de Fernandes, que
apresenta certo nível de aceitação social, mas que demonstra desprezo pelos
comunistas: “ferro nesses comunistas”
364
, ou preconceito racial: “[s]e Maria não
engraxou meus sapatos eu mato essa negra amanhã”
365
. No segundo caso, são as
atrocidades do governo que se fazem presentes:
Quiseram bater no rapaz, o povo não deixou, aí o rapaz disse que
também era autoridade, que trabalhava no governo, pediu ajuda para
os nordestinos, aí o tenente mandou prender, aí ele reagiu, aí entraram
os baianos e foi porrada para todo lado, aí chegou mais polícia e
acalmou. Pode botar no jornal: o rapaz saiu daqui carregado. Agora tem
mais de uma hora que está aí esse cerco. A gente vê que não está
certo, mas vai fazer o quê? Eu tenho minha mulher para olhar, não sou
besta de entrar nisso aí. Mas raiva, dá
366
.
363
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a
escritura da memória. In: ____ (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes.
Campinas: Unicamp, 2003. p. 393.
364
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 82.
365
Idem. p. 90.
366
Idem. p. 139.
194
A aproximação da matéria narrada com a realidade não está calcada na
linearidade dos acontecimentos, pois esta inexiste. O caráter documental é garantido
pela atribuição aos capítulos e fragmentos de datas, horários, indagações bibliográficas
e pela inclusão de trechos jornalísticos e científicos. Além disso, ao atribuir ao romance
a característica de contos independentes, o escritor permite que vários estilos se
encaixem na totalidade da obra. O resultado é um texto fragmentado, marcado, como já
observado, pela provisoriedade, tematizando e denunciando a precariedade de qualquer
verdade absoluta. Portanto, é em função da fragmentação que o texto ganha seu tom de
denúncia.
A fragmentação também desempenharia o papel de conduzir o leitor a uma outra
leitura da história a partir dos diversos elementos de ordem social fornecidos pelo
romance. Atingida até na estrutura sintática da frase pelos pressupostos poéticos da
fragmentação, a linguagem que participa da poética geral da obra em questão
dessacraliza determinados pressupostos ideológicos sustentados pelo pensamento
autoritário. A maneira como o escritor de A festa estrutura seu trabalho vai ao encontro
daquele método crítico de escritura sugerido por Theodor Adorno em seu estudo sobre o
ensaio como forma.
Ao traçar comentários sobre o ensaio, o autor alemão salienta que ele não cria
nada de original, mas re-avalia o já existente. O livro de Ivan Ângelo, a exemplo disso,
não elabora nenhuma matéria nova, ele se vale de peças já existentes e procura
organizar o enredo de modo que o leitor é desafiado no sentido de eleger uma nova
maneira de lidar com tais elementos e acontecimentos. Afora isso, o ensaio não se
preocuparia com definições claras, listagens exaustivas de características ou por partir
do mais simples. Ele não estabelece um método restrito de análise, nem define
conceitos, mas os joga num mosaico em que uns definem os outros por associação. A
festa se estrutura de maneira similar. O texto não se preocupa com a explicitação ou
com a colocação ordenada de situações ou detalhes. Ele apresenta uma sucessão de
episódios que, aparentemente, não dizem muito, mas, se analisados a fundo e em
associação com os demais, geram uma perspectiva de leitura bastante reveladora
367
.
Assim, o primeiro episódio do romance, com uma pretensão de veracidade
histórica, refere-se a duas ordens distintas de realidade: uma delas, social e política, é
367
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ____. Sociologia. Gabriel Cohn (Org.). 2. ed. São Paulo:
Ática, 1994. p. 167-187.
195
constituída pela ação de um grupo de nordestinos flagelados, na Estação Ferroviária de
Belo Horizonte, na noite de 30 para 31 de março de 1970; a outra é constituída pelo
deslocamento de interesse da narrativa para o próprio fenômeno da seca no nordeste e
de suas conseqüências desastrosas. Nesse primeiro segmento, é dada ênfase aos
nomes do nordestino Marcionílio de Mattos e do repórter Samuel Aparecido Fereszin e
também ao incêndio do trem que causou a debandada dos imigrantes.
Uma maior compreensão sobre os acontecimentos daquela noite de março de
1970, entretanto, só é possível quando o leitor se ativer à primeira parte propriamente
dita de A festa. Ou seja, Antes da festa retomará os incidentes apresentados em
Documentário (sertão e cidade), sendo seu ponto de interesse constituído pela ação do
repórter do Correio de Minas Gerais e pelo estabelecimento de uma ampla rede de
relações entre os personagens que aparecem nos sete contos iniciais. Dessa forma, ao
se estabelecer uma relação entre o primeiro episódio, a primeira parte da obra e
também de detalhes dos demais contos iniciais, fica-se sabendo que, no início da
madrugada do dia 31, Samuel abandona sua tarefa e passa a angariar alimentos para
os flagelados; em seguida, quando eles estavam prontos para a partida, ateia fogo em
um dos vagões com dois galões de gasolina e passa a comandar a rebelião juntamente
com Marcionílio de Mattos. O grupo que ele comandava, porém, é cercado pela polícia e
ele morre baleado.
A partir desses entrelaçamentos que a narrativa autoriza, é possível extrair
algumas interpretações. A atitude de Samuel, baseada mais na solidariedade política
aos oprimidos e no desespero do que na consciente opção, remete, por um lado, à
impotência política das oposições no período (em especial dos intelectuais que,
inúmeras vezes, optaram pela luta armada por não encontrarem outra forma de
participação política), por outro, a sua ação, em consonância com a liderança popular
exercida por Marcionílio, lembra a almejada união entre povo e intelectuais. Nesse caso
em particular, tem-se, ainda, a noção que a revolta eclodiria do campo para a cidade.
A exemplo do primeiro episódio, o segundo conto – Bodas de pérola – também
não esgota sua possibilidade interpretativa aí. Maiores detalhes a respeito desse
segundo segmento do livro aparecem em Depois da festa. Na primeira vez em que o
assunto é tratado, sabe-se das tentativas de Candinho de matar a esposa, Juliana,
segundo pacto feito nos primeiros tempos do casamento: se matariam quando
deixassem de se amar. O conto acaba com a comemoração, pelo casal, do trigésimo
196
aniversário de casamento, em festa preparada pelo marido e da qual Juliana participa
com alegria e com a sensação de voltar aos velhos tempos. Todavia, ao final do
romance, fica-se sabendo, graças à empregada, que o bolo continha veneno e, após
serem conduzidos ao hospital, ambos se recuperam.
Apesar disso, Candinho sofrerá uma mudança radical em seu comportamento:
passará a cultivar relações eróticas com mulheres mais jovens ou prostitutas
adolescentes, fato que causará medo e decepção na esposa. Esse novo
comportamento revela sua adequação à nova situação – expressão de seu
desencantamento: “[p]enso todo dia nessa humilhação e acho que acabarei por
desgastá-la aos poucos, como fiz com minha recusada velhice, com meu amor por
Juliana”
368
. Nesse particular, o desgastar-se tem a ver com o esquecer. Os personagens
esquecem para se adaptarem às novas situações, contudo, tal esquecimento está ligado
à reificação: a matéria do esquecimento é o avesso do princípio da realidade atualmente
vigente, e o conteúdo dessa vida esquecida é a felicidade, o que poderia ter sido, mas
não foi.
Ao final do relato, resta a Candinho apagar todo vestígio que, eventualmente,
pudesse perturbá-lo. Opta pelo suicídio como modo de recuperar a sua dignidade, mas
sabe que já a perdeu, por trair seus próprios ideais, particularmente quando optou por
esconder-se logo após a “revolução”, ou seja, o golpe de 64. Diferentemente do primeiro
episódio, que trata, dentre outras coisas, do envolvimento de civis no processo histórico
do país, esse segundo conto narra a omissão de indivíduos da conjuntura brasileira e o
seu sentimento de culpa. Isto é, havia pessoas preocupadas com os rumos da nação,
mas havia também sujeitos que se omitiam deles. Até aqui, observa-se que a
fragmentação do conteúdo e da forma é uma condição estabelecida na poética do texto,
para que, paradoxalmente, o absoluto sem ou com poucas fissuras possa ser
alcançado.
O terceiro episódio – Andrea (garota dos anos 50) – narra a trajetória de uma
moça carioca que se desloca para Belo Horizonte e opta por um estilo de vida
desregrado. Da capital ela parte rumo à província, onde é esmagada. Assim, degradada
e vampirizada pela nova cidade, esta faz prevalecer, contra qualquer impulso para a
mudança, sua natureza arcaica. Andrea, como se fica sabendo em Depois da festa,
368
ÂNGELO, Ivan. A festa. 8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. p. 156.
197
trabalhava no mesmo jornal que Samuel, porém não freqüentava, como todos os outros,
a redação. Ao investigar a vida do repórter, agora morto, os policiais descobrem um
diário seu em que narra suas tramas sexuais com Andrea. Esta é interrogada por
policiais para quem tem de admitir suas relações íntimas com o rapaz. Ela, no entanto,
não mantinha relações apenas com Samuel: Haroldo também se relacionava com a
colega. Como se não bastasse isso, ela teria tido experiências com outra mulher, Cora
Adélia, uma lésbica, para, por fim, casar-se com um homossexual. Depois desses
escândalos, o pai da moça toma conhecimento do comportamento da filha e sofre uma
vertigem.
Embora o centro de interesse seja Andrea com detalhes de sua vida dados em
diferentes passagens do romance, o narrador tece comentários sobre Belo Horizonte:
“[c]omeça aqui a fase de Andrea em Minas. As primas de Belo Horizonte apresentaram
a moça à boa gente mineira; gente delicada, sentimental, vagarosa, prestativa,
envolvente, mítica, organizada, mesquinha, maldosa”
369
. Assim, a capital mineira
resguarda a tentativa de não assimilar o diferente, o estranho. Essa aversão pelo novo e
em lidar com o estranho leva à dificuldade de aceitação da democracia.
Se Belo Horizonte não aceita o diferente, não aceita também Andrea, cujo
comportamento é o avesso daquele requerido por uma sociedade puritana. Por tabela,
não há porque aceitar os nordestinos na cidade, nem qualquer manifestação que se
desenrole em prol destes. Portanto, toda vez que alguém se coloca contra uma ordem
estabelecida, sofre algum tipo de contensão. Essa pluralidade de idéias que vão sendo
levantadas ao longo da leitura de A festa está ligada às artimanhas de montagem do
texto, basicamente definidas pelo pressuposto da fragmentação.
O quarto conto, intitulado Corrupção, narra os conflitos de uma família nuclear
burguesa. A mãe começa a estranhar o comportamento do filho em função das regalias
que o pai dedica a ele. A criança se afasta da mãe e a sua formação a impele ao
homossexualismo. Esse emaranhado leva à ruína o casamento. O mais interessante de
tudo isso é o que se pode observar da leitura de outras passagens da obra que, direta
ou indiretamente, estão em comunhão com essa situação. Fica-se sabendo que o filho,
Robertinho, é Roberto J. Miranda, organizador da festa em que se reunirão jornalistas,
pintores, escritores, universitários, dentre outros. Não só isso, em várias passagens do
369
Idem. p. 52.
198
romance, são feitas referências ao preconceito construído sobre o personagem devido à
sua condição sexual. Isso remete, novamente, a não aceitação do diferente, àquilo que
foge dos paradigmas de base autoritária. Dito em outros termos, para o pensamento
burguês (mas não só para este), o legítimo na sociedade é a família composta pelo
esquema pai-mãe-filho, cada qual cumprindo com seu papel sexual. Não é exatamente
isso o que se percebe aqui e, por isso mesmo, existiria uma corrupção.
A exemplo do conto anterior, Andrea (garota dos anos 50), tem-se, novamente,
nesse caso, uma reflexão em que se articulam marcas que conduzem à seguinte idéia:
tudo aquilo que não atende aos propósitos da elite tende a ser descartado, a sofrer
algum tipo de represália. É o que acontece, inclusive, com os nordestinos ancorados em
Belo Horizonte, e também com Samuel Fereszin que é morto por atentar contra a
autoridade. Portanto, os contos, ao romperem sua linearidade, causam um rompimento
do envolvimento entre leitor e o texto, provocando, além de uma desautomatização, uma
atitude de reflexão sobre o procedimento adotado. Assim, mesmo não existindo uma
tematização explicitamente uniforme sobre um único assunto, a maneira como o livro se
estrutura impõe uma reflexão sobre a própria linguagem, induzindo o leitor a uma certa
organização dos fragmentos. Cada episódio gera uma reflexão que, somada a outras,
conduz a uma montagem que passa a ser significativa para cada leitor.
O quinto conto – O refúgio – radica em torno de Jorge Paulo de Fernandes. O
advogado chega em casa depois do trabalho e inicia um ritual de preparação para a
festa oferecida por Roberto Miranda. O assunto é basicamente o jogo de máscaras que
o personagem adota em diferentes situações do seu dia-a-dia. Na atividade social,
comporta-se impecavelmente; entretanto, na vida privada – como a que experimenta no
interior de seu apartamento –, deixa transparecer a sua identidade. Aliás, essa
identidade contraída, preocupada infantilmente com o olhar dos outros, com o que
possam pensar dele e que, por isso, só se descontrai em casa quando está sozinho,
acabará por fornecer à polícia várias informações sobre quem estava e o que teria
acontecido na festa:
Jorge Paulo
de Fernandes.
Página 81.
As coisas que Jorge contou à polícia:
a) havia tóxicos na casa, maconha e cocaína;
199
b) Roberto J. Miranda era viciado em cocaína;
c) a turma do suplemento esteve na praça da Estação antes da
festa;
(...)
e) Jacob, Rodolfo e Fúlvio eram comunistas ou pelo menos
simpatizantes;
(...)
l) Otávio Ernâni foi chamado ao telefone duas ou três vezes,
durante a festa, a respeito dos nordestinos e da prisão de Carlos
Bicalho, o estudante;
m) ele, Jorge, fora procurado por alguém para atuar como
advogado na prisão de Carlos Bicalho; alguém, uma voz ao telefone;
(...)
p) os escritores e outros intelectuais do suplemento souberam da
prisão de Carlos Bicalho durante a festa e não na praça da Estação, por
intermédio de Samuel;
q) a reação deles na festa era de medo do que poderia acontecer
com eles agora;
(...)
x) Samuel era muito pouco conhecido da turma, mais amigo de
Roberto Miranda, talvez por causa de Andrea ou talvez porque este
quisesse pegar Samuel
370
.
Essa lista de detalhes sobre a festa da qual Jorge teria participado aparece em
Depois da festa. Novamente, nesse caso, o leitor precisa atentar para os diversos
elementos que definem o protagonista e, ainda, ser capaz de ligar os diferentes
momentos da narrativa, não só no que diz respeito às características de Jorge, mas
também em relação aos outros personagens. Assim, como se observou anteriormente, a
polícia invade a residência de Roberto J. Miranda e violenta as pessoas. Isso ocorre
porque ela tem conhecimento do que acontece em tal reunião. Da mesma forma que os
nordestinos são interpelados, da mesma maneira que Andrea é reprimida por duas
atitudes inconvencionais, todos os convidados de Roberto acabam sendo massacrados
em virtude de seus comportamentos. Portanto, a imagem que os indivíduos constroem
de si é de falsidade, e é essa imagem que a elite quer projetar da nação. Não é por
acaso, então, que os nordestinos são expulsos de Belo Horizonte: a elite deseja
esconder uma suposta vergonha nacional.
O modo como A festa se estrutura revitaliza o seu poder comunicativo como um
todo. A sua qualidade é a de fixar matérias, mas o seu maior mérito talvez seja a
provisoriedade de suas colocações, ou seja, a maneira como o romance se arquiteta
impossibilita o estabelecimento de conclusões interpretativas definitivas. Não só isso,
370
Idem. p. 171-172.
200
dotada dessa noção de provisoriedade no plano de sua realização formal, a obra
esfacela qualquer projeção de uma verdade absoluta, gerando um efeito de
perplexidade. Com isso, o livro passa a estabelecer realidades novas para a significação
ficcional, desautomatizando o leitor das formas tradicionais de leitura e exigindo sua
participação no desvendamento e criação dos significados que, em razão da falta de
linearidade (mas não só isto), não são facilmente decodificados. Ademais, ele tem a
capacidade de lidar com o lúdico e a consciência crítica simultaneamente.
Luta de classes (vidinha, 1970), sexto conto do romance, consiste na exposição
do estilo de vida de dois sujeitos de classes sociais distintas – Ataíde, humilde, e
Fernando, mais culto – que se encontram na tarde do dia 30 de março num bar próximo
à Estação Ferroviária de Belo Horizonte. Devido a um acidente com um copo de cerveja,
eles acabam brigando. Como se observa, o episódio alegoriza os conflitos sociais e as
manifestações das lutas de classe. Entretanto, tal episódio, que poderia ser considerado
acabado, terá continuidade na segunda parte, quando se verifica que, por conseqüência
dos acontecimentos da madrugada do dia 31, Ataíde e sua mulher são vítimas da
repressão militar:
Quando soltaram Ataíde, um mês e dez dias após os
acontecimentos da praça da Estação, ele ficou sete horas e meia sem
coragem de voltar para casa. Andava, parava numa esquina, hesitava,
sentava num banco – sofria discretamente, parecia um homem
tomando sol. Tinha quatro medos: a) saber das desgraças que
certamente teriam acontecido a Cremilda; b) a mão esmagada, inútil
para o trabalho; c) o seu futuro, com aquela mão, ao lado de Cremilda
belíssima; d) o ódio
371
.
Nesse embate ideológico em que as diferenças estão presentes, os mais fracos
são vítimas do poder repressivo. Assim, como se averigua nos demais episódios de A
festa, tem-se uma temática denunciadora das diferentes arbitrariedades cometidas no
país em nome de uma ideologia que tolhe a liberdade individual, submetendo o sujeito à
tortura. A ligação de diferentes momentos da narrativa garante uma leitura mais
profunda do romance. O relato, portanto, é desconexo e, nessa desconexão,
paradoxalmente, está a tentativa de compreender, analisar, reconstruir e apresentar a
própria fragmentação do universo cindido. Com isso, o esforço do leitor para
371
Idem. p. 178.
201
acompanhar e compreender o texto torna-se uma quase imposição e, ao mesmo tempo,
uma possibilidade lúdica da elaboração do livro em questão. Tal efeito torna-se produto
de significados na medida em que fornece a reflexão – comprometendo o ledor com o
conteúdo apresentado na narrativa – e a participação reorganizadora do texto.
O último dos sete contos autônomos – Preocupações, 1968 – é dividido em duas
partes. Essa divisão concorre para a fragmentação do episódio e está de acordo com a
tendência geral do livro. A primeira parte relata o drama de uma mãe pela revolta
popular e estudantil por volta dos anos 1970, a segunda expõe a ordem de idéias de um
intelectual, que apóia o desenvolvimento dirigido do Brasil, dando credibilidade à elite
dirigente, no caso, os militares. Esse tipo de pensamento contribuiu para a imposição do
regime de 64 e suas conseqüências aparecem em vários episódios de A festa.
Portanto, a fragmentação em A festa surge como resposta a um contexto social
desestruturado e caótico. A perplexidade da conjuntura histórica brasileira faz implodir
uma narrativa problemática, e os acontecimentos ganham proporções assustadoras
quando as informações são vinculadas entre si em diferentes níveis e leitura. Com isso,
o emaranhado de prismas sob os quais cada episódio é narrado tem como finalidade
subjacente criar efeitos de simultaneidade de valores, o que não deixa de ser a
confirmação do relativismo desejado.
202
3.4 Sociedade autoritária, comicidade e fragmentação em Reflexos
do baile, de Antonio Callado
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem
nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos
do homem.
(Manifesto antropófago, Oswald de Andrade)
3.4.1 A sociedade em Reflexos do baile: história e histórias
Juruena está estranhando seu reflexo. Não num espelho específico,
mas em qualquer superfície que a devolva. Se pega e se perde em
vidraça, balcões de metal, louças... Há mesmo algumas
modificações entre a expressão que faz e aquela em que aparece.
(15 cenas de descobrimento de Brasis, Fernando Bonassi)
Desde a publicação de Quarup, em 1967, o conjunto da obra de Antonio Callado
assume um grande desafio dentro do Brasil militarista, qual seja o de encontrar uma
difícil síntese entre literatura e política. Reflexos do baile, lançado em 1976, parece ser
o exemplo mais claro desse conflito de valores. Composto por bilhetes, cartas,
telegramas e trechos de diários, ele se constitui numa espécie de “romance-mosaico
372
.
Através de uma narrativa fraturada e de uma composição de diferentes estilos de
discurso onde se alojam inúmeras figuras de linguagem, gírias e jargões, o livro tece ao
leitor uma imagem – vale dizer, imparcial – sobre a travessia do país pelos anos da
Ditadura Militar.
Aliás, o cerne do grande conflito esboçado no texto em questão diz respeito à luta
entre as alas partidárias de direita e de esquerda pela manutenção ou alcance do poder.
A obra, que intenta uma representação do Brasil entregue à desorganização e à
brutalidade, questiona algumas idéias impostas à sociedade brasileira ao longo dos
anos e que se tornaram mitos através da mídia, como, por exemplo, a de que se tinha
uma força militar una e organizada, ou a noção de coesão entre os membros das
372
Cf. expressão utilizada por FERNANDES, Edilene Gasparini. Mosaico de histórias e mentalidades em
Reflexos do baile. 162f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Estadual Paulista,
São José do Rio Preto, 1997. p. 4.
203
facções esquerdistas. Em função disso, a ficção de Callado parece não querer,
propositalmente, ordenar fatos ou estabelecer qualquer conceito moral em relação às
diversas facções políticas brasileiras.
Considerando-se o panorama da literatura produzida no período pós-64,
Reflexos do baile apresenta características bem peculiares. A mais interessante talvez
diga respeito à maneira como o romance lida com o conteúdo histórico. A matéria
histórica, em tal livro, não se projeta por meio da menção direta feita aos fatos, mas
através de seu silêncio. Ao leitor não fica assegurado que a narrativa se situa nos anos
1960 e meados de 1970. Entretanto, a ironia, presente nas paródias e nas sátiras, em
contraste com a seriedade das falas dos personagens, fornece pistas a propósito do
conteúdo de que trata a obra: os anos de repressão da Ditadura Militar brasileira. É
justamente essa porção de história contida nas entrelinhas do livro o que confere valor
especial a ele.
Dito em outros termos, Antonio Callado faz uso de catálises – algumas vezes
fantásticas; outras, sutis – no intuito de apresentar ao leitor uma exposição de imagens
tiradas de vários ângulos acerca do golpe militar dos anos 60. Adotando um modo-de-
dizer que não comprometeria o autor-implícito – porque, na verdade, não diz, apenas
sugere –, ele leva seu público a conhecer o sentimento de insegurança daquele período.
Com isso, parece contraditório dizer que Reflexos do baile quebra o silêncio daqueles
anos de militarismo justamente por intermédio de um discurso lacunar. No entanto, as
referências históricas presentes no livro se encontram embutidas no que seus
personagens não podem dizer claramente. Logo, a história se situa no testemunho oral
de quem viveu toda uma experiência de dor e de violência, mas foi castrado por ela.
Não obstante, há uma preocupação em não deixar o leitor sem qualquer
referência que o permita fazer uma articulação, não apenas entre a matéria ficcional e o
conteúdo social, mas também entre os diferentes fragmentos do romance, para que dele
seja extraída uma possibilidade de leitura. Para tanto, o autor lança mão de saltos ao
passado histórico, justamente com o intuito de traçar um panorama mais abrangente da
história do Brasil. Assim, fundindo o passado ao presente, o livro conduz à percepção de
que as estruturas da sociedade brasileira têm permanecido praticamente inalteradas,
pelo menos desde os tempos do Império. Com isso, portanto, a obra realiza um
mergulho no passado com o objetivo de realizar uma reflexão crítica do presente.
204
Reflexos do baile realiza a mímese do florescimento do infortúnio na vida do
Brasil pós-64. Em três seções, o autor-implícito registra o que há de mais ridículo e
grotesco no universo social e pessoal de seus personagens, fixando retratos da
atualidade em molduras antigas. O título do romance é bastante significativo
metaforicamente. Um baile na embaixada inglesa, ocasião em que se dará o começo da
revolução pela liberdade no país. No referido local, as luzes se apagarão conjuntamente
com as luzes da maioria dos bairros do Rio de Janeiro, e o grupo de revolucionários
seqüestrará a rainha da Inglaterra, em visita ao Brasil, como forma de pressionar o
governo a deixar o poder.
O título do livro de Callado, a rigor, é tão multifacetado quanto a composição que
o autor-implícito realiza para expressar a realidade do Brasil. O vocábulo reflexos lembra
os vários matizes de cores na incidência de luz refletida sobre determinada superfície e,
ainda, traz consigo a idéia da pluralidade de nuances e de significados de um mesmo
acontecimento
373
. Partindo-se dessa noção de diversidade, cada grupo fará seu
julgamento: a direita avaliará o apagamento como afronta ao poder governamental; a
esquerda, em contrapartida, o interpretará como uma tentativa de salvar o país de um
poderio que o escraviza. Logo, se o baile evoca a idéia de apagamento, a escuridão,
que significa a não incidência de luz, inutilizaria o poder dos reflexos, transformados
agora em um eco perdido. Restariam, então, somente o baile e a escuridão.
A palavra baile, segundo definições propostas pelo dicionário, significa reunião
dançante de caráter festivo e não raro formal, ou também reunião ou movimentação em
torno de um assunto comum
374
. O assunto comum em torno do qual brasileiros e
estrangeiros se reúnem é certamente o Brasil. E o interesse maior é o de dominá-lo,
cada classe à sua maneira, cada povo segundo suas estratégias e recursos: a
esquerda, a direita, os Estados Unidos, Portugal e Inglaterra.
O livro, como se destacou, é dividido em três seções. A primeira parte, A véspera,
composta de 54 capítulos, trata principalmente dos seqüestros, do apagão da rede
elétrica do Rio de Janeiro que facultaria as ações dos revolucionários, seus motivos, as
possibilidades de seus êxitos e fracassos. Nesse momento, enquanto os policiais estão
ausentes, o leitor entra em contato com os revolucionários e diplomatas. Os últimos
373
HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p.
2412.
374
Idem. p. 380.
205
participam expondo detalhes da rotina das embaixadas no clima apreensivo que
predominava na época diante das ameaças de seqüestros de suas autoridades.
A segunda parte, A noite sem trevas, apresenta 44 capítulos e narra as ações
dos revolucionários durante o baile a partir do fracasso dos planos de provocar a pane
elétrica que deixaria o Rio de Janeiro às escuras no instante do seqüestro. Nessa
seção, expõe-se a mudança de planos iniciais, o improviso das ações, sua repercussão
entre os diplomatas e as primeiras reações do governo, na voz dos responsáveis pela
segurança e seus subordinados.
A terceira parte, O dia da ressaca, tem 49 capítulos. Nela, predomina a voz dos
policiais e de seus chefes, que descrevem as conseqüências da ação dos
revolucionários. A tensão chega ao auge não apenas quanto à situação dos
seqüestradores – que são presos, torturados e mortos –, mas também entre os
diplomatas, cujos destinos são igualmente afetados pelos acontecimentos (alguns
voltam aos países de origem e um deles, talvez mais de um, enlouquece), e os policiais
e chefes de segurança, que expõem a resposta extremamente violenta do governo aos
acontecimentos.
O seqüestro da rainha consiste numa paródia em relação a um plano tramado na
época do Império para raptar o imperador D. Pedro II e a família imperial. Pompílio de
Albuquerque, membro do Clube Republicano do Rio de Janeiro, foi o responsável pela
idéia que, no entanto, não se legitimou, já que ele não obteve total adesão em razão do
insuficiente número de insurretos. No livro em questão, é Beto quem elabora uma
estratégia semelhante à de Albuquerque. A intenção do personagem é seqüestrar a
rainha inglesa, como um meio de mudança de rumo do país. Aqui, observa-se a estreita
ligação e, vale dizer, dependência do Brasil em relação às grandes potências, inclusive
para se fazer uma revolução interna. A idéia de que tal plano havia sido pensado
anteriormente fica sugerida na primeira parte da obra:
5
Dirceu: O jeito é darmos aquele baile de que te falei, projetado há um
século. Já que brasileiros somos todos não hão de obrigar a gente ao
descalabro de ensangüentar camisas engomadas e furar a bala vestidos
de festa como se fôssemos bárbaros, como se não passássemos de
franceses ou russos. O Imperador e o Gabinete vão simplesmente para
a copa. Eu entro, modesto, com as trevas. Pergunte às andorinhas do
206
Rio se não conheço cada um dos fios, pergunte aos cães cariocas se
não conheço todos os postes
375
.
O plano de Beto previa o corte da luz da cidade. O apagamento que se
concretizaria durante o baile é a tentativa do grupo revolucionário em mudar as regras
de condução do país. Isso não acontece, porque, embora os seqüestradores formem um
conjunto coeso, estão destituídos de qualquer base popular. Ainda na primeira parte da
obra, tem-se o ponto de vista do personagem mencionado, o qual defende a revolução
com armas: “[n]ossa história está cheia de bailes proféticos e desta vez o povo, que não
suja prato porque não tem com que, vai ser convidado a quebrar e não a lavar a louça.
Comeremos com a mão. Combateremos no escuro”
376
.
Nesse fragmento, o desprezo aos talheres, aliado ao desdém pela luz elétrica,
recria uma noção do Brasil primitivo, que não necessitaria ser descoberto e colonizado
para evoluir. O progresso não é fator primordial para que uma nação se desenvolva,
esta é a noção realista-naturalista que Beto transmite. Afora isso, um grupo de
embaixadores bailando em meio a um Brasil em trevas é uma importante alegoria para
afirmar o distanciamento dos diplomatas em relação à sociedade civil.
A leitura de Reflexos do baile fica mais rica de significados quando alguns
acontecimentos são associados a episódios e/ou a personagens marcantes do passado
histórico brasileiro. Em certa altura do romance, a consideração pela figura do Conde
Gobineau auxilia na interpretação de um aspecto importante que caracteriza o país.
Gobineau era reconhecido, à época do Império, como estelionatário do dinheiro da
Coroa. No capítulo 28 da obra em apreciação, Felipe cumpre o que prometeu a Dirceu,
e vai visitar a companheira de guerrilha Juliana, que vive com seu pai, Rufino
Mascarenhas, um sujeito alienado. A casa, abarrotada de peças valiosas, guarda um
livro contendo a dedicatória do Conde aos antepassados da família Mascarenhas:
28
Dirceu: Conforme te prometi, fui hoje visitar a companheira Juliana, numa
casa em que a gente pensa, quando entra, que pegou, distraído, um
desvio de retorno no tempo e caiu de quatro no século passado. Palavra
que me senti quase enjoado, enjoado mesmo, vontade de vomitar, no
meio de tantos aparadores e cantoneiras vergando ao peso de castiçal,
375
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 18.
376
Idem. p. 28.
207
caixa, cofre, sopeira de prata, e de tantas paredes com retratos de
família pendurados entre pratos, uns barbados nojentos, uns velhos
caquéticos, umas senhoras tristes, retardadas da cuca. Me deu a
impressão de dinheiro roubado há muito tempo, parado, meio podre.
Tem um armário cheio de livros com umas encadernações afrescalhadas
e sabe o que é que eu encontrei no meio da merda toda? Dois livros,
com dedicatória a não sei que avó ou tia do Rufino, do Conde de
Gobineau, aquele racista filho da puta que tomava o tutu de Pedro II em
São Cristóvão. O veado me dá uma raiva insensata, como se tivesse me
roubado uma namorada ontem. Fiquei com vontade de enfiar no bolso
umas pratas do velho para fazer finanças, mas acho que me comportei
muito bem quando fui apresentado a ele pela Juliana. Fico admirando ela
mais ainda depois de ver a toca sufocante de onde ela saiu
377
.
Esse capítulo marca um percurso de tradição que se estende desde o Império do
Brasil aos tempos de hoje: o roubo. Formada naquela época em que o território
brasileiro era demasiado grande para ser vigiado pela Coroa, a mentalidade da
usurpação fácil pode ser vista como costume que atravessou séculos. Considerando-se
o contexto da Ditadura Militar, o vocábulo roubo poderia se expandir para outras
significações: o furto da liberdade, do direito à expressão, da ordem, de um futuro
promissor, da segurança.
Outra alusão ao passado brasileiro, anterior à vinda da Coroa portuguesa, pode
ser encontrada no capítulo 15 da primeira parte. Ao iniciar uma carta endereçada a
Dirceu, Beto parodia A carta, de Pero Vaz de Caminha
378
, o enviado da Corte ao Brasil:
“[a] paisagem brasileira é composta de eucaliptos, de Volkswagens e de gente com
fome”
379
. Diferentemente de Caminha, Beto denuncia, através da ironia da frase, a
influência estrangeira no país e as suas conseqüências. Na história do Brasil, a vinda de
estrangeiros, na maioria de suas vezes, foi sinônimo de destruição, massacres,
imposições ideológicas, enfim, de diferentes formas de violação.
Assim, a presença de eucaliptos, Volkswagen e gente com fome chama a
atenção para caracterizações importantes da realidade nacional. Os eucaliptos são
frutos de uma terra pobre e comerciável. A árvore gera a celulose que será
comercializada pelas grandes empresas multinacionais. Volkswagen remete à presença
de multinacionais estrangeiras produzindo carros para o consumo brasileiro. Com
tecnologia importada da Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e mesmo França e
377
Idem. p. 34.
378
CAMINHA, Pero Vaz de. A carta. Biblioteca do Exército: Rio de Janeiro, 1957.
379
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 24.
208
China, o setor angaria um lucro vertiginoso. Gente com fome sintetiza as conseqüências
dessa exploração. Com isso, as três imagens juntas formam uma espécie de trilogia.
Elas elaboram uma imagem do Brasil que sempre foi dependente e que nunca foi livre.
A cidade, nesse particular, assume um valor importante na medida em que configura um
ambiente ideal para a hierarquização dos símbolos culturais.
Nesse sentido, para caracterizar essa destruição de tantos símbolos da cultura
brasileira, Reflexos do baile aborda, ainda no aludido capítulo, a representação dos
blocos de população da cidade de Rio de Janeiro através de peças de azulejos:
“[q]uando reorganizei o Rio em Grupos de Desligamento não vi aparecer nada brilhante
diante dos olhos. Vi blocos de povo suburbano, um imenso muro de azulejos – Nilópolis
– Vila Rosali – Eden – Pavuna; Nova Iguaçu – Heliópolis – Mesquita; Caxias – Lucas –
Meriti – com caras de gente triste”
380
. Tais peças correspondem a um bairro da cidade e
elas formam um mapa de desligamentos que seriam realizados no dia do seqüestro da
rainha.
Dentre alguns detalhes já apresentados, observa-se a influência dos
acontecimentos passados na configuração da realidade brasileira do período enfocado
por Reflexos do baile. Entre esses episódios, a hegemonia estrangeira merece
destaque. Portugal foi a primeira nação a dominar o país e a extrair dele as suas
riquezas. Logo em seguida, veio a Espanha que – pelo Tratado de Lisboa, em 1681, e
pelo Tratado de Madri, em 1750 – tomou para si parte do território sul-americano. Em
1713, foi a vez da França. A Holanda invadiu o Brasil através da Bahia, em 1624, e de
Pernambuco, em 1630. O domínio inglês se deu através do Pará e do Maranhão, e seu
poder foi exercido a partir de 1810. A partir dos anos 1960, mais ou menos, os Estados
Unidos exerceram papel importante na cultura e na economia brasileira.
O romance de Callado ilustra vários exemplos a propósito da dependência
brasileira à hegemonia de outras nações. No capítulo 22 de A véspera, existe uma
espécie de confirmação da perda da dominação portuguesa pelos Estados Unidos. A
figura de Father Collins é bastante sugestiva a esse respeito:
Vi Father Collins entrar na Embaixada de Portugal e me senti tentado a
segui-lo para tomarmos – com Carvalhaes e biscoitos – um porto matinal,
380
Idem. Ibidem.
209
ou quem sabe, com santolas, um esperto verde branco. Mas resolvi,
empoeirado que estava por fora, adusto por dentro, entrar em casa, onde
me asserenei o espírito, a longos sorvos, com um quarto de Mumm’s
atrigueirado de cerveja Guinness
381
.
A entrada do americano na Embaixada portuguesa pode ser tomada como um
índice de envolvimento entre as duas nacionalidades. Prevalece, no entanto, a
supremacia da primeira. Quando o personagem faz referência à cerveja Guinness, fica
pressuposto, pela marca da bebida, a influência estadunidense sobre a portuguesa.
Afora isso, a aproximação entre Carvalhaes e Father Collins remete a um denominador
comum se se pensar na figura do americano vestido de padre: os jesuítas portugueses
são substituídos pelos padres americanos na responsabilidade pela “catequese” dos
brasileiros. Portanto, Reflexos do baile retrata a dependência brasileira e faz o leitor
refletir sobre a influência norte-americana a que a sociedade está subjugada.
Essa mentalidade de aceitação do domínio externo aparece novamente no
capítulo 25: “[p]ela porta aberta vi minha filha lendo tão concentrada à luz do abajur que
percebi menos os elementos materiais envolvidos – Juliana, livro, escrivaninha – que um
gestáltico meio luminoso a manter, em suspensão dourada, um foco de conceitos e uma
pura atenção. Pelo sobressalto com que recebeu o beijo que, entrando silencioso,
depositei em seus cabelos, pensei, não sem um muxoxo de malícia, que ia surpreender
minha grave filha a ler pelo menos meu Bocage, ou meu Bocácio, ou quem sabe o
Fernando Pessoa dos obscenos versos ingleses (Look how she likes, with something in
her heart, to feel her hand work the protruded dart) mas, passado o susto, Juliana
mostrou-me a feia capa de uma velha monografia ministerial a propósito de
açudagem”
382
. Essa idéia de aceitação pacífica com o que vem de fora se traduz em
conformismo e faz com que ideologias autoritárias sejam aceitas pela sociedade,
forjando construções mentais que se afeiçoam de modo a atender às prerrogativas das
classes dirigentes. Com isso, a sociedade brasileira se converte em massa de manobra
para aqueles que detêm o poder.
Essa ordem de pensamento concorre para uma avaliação acerca do tipo de
imagem que se procura empreender do Brasil, ressaltando, ainda, os reais desejos
381
Idem. p. 29.
382
Idem. p. 31.
210
estrangeiros. Um bom exemplo do tipo de interesse que os norte-americanos têm com
relação ao país fica expresso nas imagens metaforizadas de um sonho de Jack:
38
Dear Melanie: (...) Oh yes, I had a delightful and vivid dream last night. I
emptied Brazil out of people altogether and filled her with hummingbirds.
There was an element of fright (Hitchcock?) slight fright at the fantastic
multitude of humming, zooming birds piercing the air with their long bills
and criss-crossing the blue skies of Rio, freely going in and out the
windows and doors of abandoned houses and buildings.
Tradução:
Ah, em tempo, tive ontem à noite um sonho esplêndido, vívido a mais não
poder. Esvaziei inteiramente o Brasil de gente e enchi-o de beija-flores.
Havia um elemento de receio (Hitchcock?) um meio receio frente à
chusma de passarinhos que zuniam, zumbiam, furavam os ares com os
bicos longos, cruzando e recruzando sem cessar os céus azuis do Rio,
entrando e saindo à vontade pelas janelas e portas das casas e edifícios
abandonados
383
.
Se o sonho se constitui na expressão de um desejo recalcado, então Jack espera
que a sociedade brasileira desapareça e fiquem somente as terras. Novamente, nesse
caso, tem-se a mentalidade capitalista americana, interessada na exploração do Brasil.
Não só isso, a imagem dos pássaros tomando conta do espaço lembra as cenas do filme
Os pássaros, de Alfred Hitchcock. Na película, as aves expulsam moradores de uma
cidade, matando ou ferindo muitos deles. Hitchcock é considerado o mestre do
suspense-terror, logo o apoio americano prestado aos brasileiros traria consigo uma
perspectiva negativa em seu processo exploratório.
Outro elemento importante que merece atenção na passagem transcrita diz
respeito à voz de um tradutor. Segundo a interpretação proposta por Cartapatti Kaimoti,
esse último “assume para si a tarefa de dramatizar as fronteiras, por vezes
intransponíveis, da mútua incapacidade de compreensão entre o brasileiro e o
estrangeiro, inépcia que, no contexto da narrativa, atesta, sobretudo, a dificuldade de o
elemento local entender a si mesmo e estabelecer um sentido para sua história”
384
.
Ainda segundo a autora, essa incapacidade – inserida naquela perspectiva irônica
383
Idem. p. 40-41.
384
CARTAPATTI KAIMOTI, Ana Paula Macedo. Ossos e espelhos mortos: uma leitura de Reflexos do
baile e Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado. 184f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) –
Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2007. p. 21.
211
comum a todas as vozes da narração – compõe uma visão da história do Brasil como um
percurso disfórico, “povoado por ruínas sem passado, marcas indecifráveis do massacre
da memória daqueles que foram vencidos”
385
.
Essa perspectiva de se conceber uma imagem do Brasil calcada em ruínas, mas
que se quer destituída de um passado, atesta, por um lado, a tentativa de esconder da
sociedade a sua história, culminando naquilo que Cartapatti Kaimoti chamou de
“massacre da memória”; por outro, procura reforçar retratos do país que não coincidem
com a realidade. Esse raciocínio é plausível para uma interpretação do capítulo 20 da
primeira parte: “[é] o cancioneiro pátrio, é o Tabuleiro da Baiana, Os Quindins de Iáiá, a
Lata de Leite, a Receita de Vatapá, o Doce de Coco, é o matar a fome erigido em cúpula
da consumação amorosa, a velha cópula também conhecida como foda, exempli gratia,
vou comer ela, papei ela todinha”
386
. Aqui, têm-se imagens folclóricas de uma nação que
não passa de convenções carnavalescas. Nesse particular, é justamente o papel da
mídia que entra em questão. Ela teria forjado uma mentalidade sobre o país incompatível
com a situação histórica da época.
As diversas intertextualidades presentes em Reflexos do baile prestam-se para
uma maior compreensão da história da sociedade brasileira e, ainda, no que tange à
Ditadura Militar, chamar a atenção para o aspecto de ela ter sido resultado de um
processo que tem subjacentes relações de poder calcadas em princípios autoritários. O
capítulo 11 da segunda parte da obra refere-se às ações de Beto como revolucionário,
na tentativa de efetuar o apagão, e demonstra o abandono da população:
Senhor Diretor-Geral do Departamento Nacional de Águas e Energia:
Oriundas da Guerra de Canudos, as favelas do Rio, atavicamente a
serviço, ainda, do Conselheiro, são os torreões de massapé e as
muralhas de adobe de Troglodítia, são a quinta-coluna, o câncer ósseo
em nosso esqueleto implantado, são a imagem de barro da nossa
pieguice e incompetência, a nossa Cartago, que é preciso destruir.
Delenda, por exemplo, Rocinha. Bastou uma pane para que os favelados
– como baratas e ratos que, mal se apaga a luz, na cozinha, saem ágeis
de baixo da geladeira e da pia, de dentro da cristaleira e do rodapé para
roubar o queijo, o açúcar, provar das panelas destampadas em cima do
fogão – assaltassem três botequins e uma barbearia, sem contar as
biroscas e bocas-de-fumo lá deles mesmos. Panes quase que em
minguantes círculos concêntricos partidas da periferia troglodítica fariam
de nós uma Fariséia e uma Filistídia se não nos levassem a reclamar
385
Idem. p. 22.
386
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 28.
212
investigação exaustiva no DNAE e para tanto peço a vossa presença em
debate a que estará presente o Capitão Roberto e todo o Serviço de
Segurança
387
.
Nessa carta endereçada ao Diretor do Departamento Nacional de Águas e
Energia, é feita referência às favelas cariocas. A elas são atribuídas caracterizações
negativas, uma vez que traduzem o atraso e o subdesenvolvimento do Brasil. Por esse
motivo, para a classe dirigente, o ideal seria destruí-las, ou seja, desconsiderá-las. Afora
isso, os favelados são comparados a baratas e a ratos por trazerem consigo o desígnio
de ladrões ou seres inferiores dentro de uma escala social. Não obstante, o excerto
expõe um apelo histórico do messianismo, calcado na figura de Antônio Conselheiro. O
justiceiro do cangaço, como era conhecido, foi vítima de um sistema injusto. Frente a
isso, reuniu em torno de si um número crescente de fiéis, formando Canudos, local onde
todos conviveriam harmoniosamente. Conselheiro pregava mensagens políticas e
trabalhava em prol da população. Em Reflexos do baile, os representantes da ditadura
receiam que Beto se torne um desses mártires, expondo a causa dos revolucionários à
simpatia popular. Não é por acaso, então, que a trajetória do personagem e sua morte
são materializadas em figuras de barro que exibem seu corpo morto pendurado pelos
policiais na cruz da igreja de Piraí, parcialmente afundada pela represa, para servir de
exemplo para outros que ousassem rebeldia similar:
38
Capitão: Ordens são dadas para ser cumpridas. À risca. Tire
imediatamente o corpo desse Beto ou como se chame de onde se
encontra. O cadáver deve ser levado para o Cemitério da Capital,
enterrado sem acompanhamento num canto de indigente, sem cruz em
cima, sem choro, sem vela, sem nada. Que tirem daí o bandido hoje, já,
que o transportem e enterrem. Tivemos faz pouco o trabalho e a despesa
de afogar Canudos em baixo de Cocorobó. Que idéia da roça é esta
agora de improvisar um monumento com um desertor e uma torre e
inventar alguma romaria de basbaques e subversivos nesse Canudinho
de merda? Cumpra as ordens. Enterre o traidor
388
.
A partir dessa base, pode-se dizer que Reflexos do baile, cuja construção se
assenta em paródias e intertextualidades, permite pensar numa sucessão ininterrupta de
387
Idem. p. 67.
388
Idem. p. 88.
213
violência e autoritarismo na constituição da sociedade brasileira. Assim, no período
colonial, teve-se a dizimação de tribos indígenas pelos portugueses. “A escravidão
representou um exercício sistemático e calculado de coerção pela violência, sendo o
governo brasileiro sustentado, durante o Império, por essa coerção”
389
. No período
republicano, tiveram-se duas experiências limites associadas ao autoritarismo: o Estado
Novo e a Ditadura Militar. Logo, no romance de Callado, a morte de Beto, sendo uma
alusão ao assassinato de Antônio Conselheiro, conduz à conclusão de que 1) existe
controle da sociedade por parte do Estado; 2) há repressões sistematizadas em que
hierarquias de poder são mantidas inalteradas; e 3) o uso da violência se faz necessário
para justificar a própria violência. Esses três últimos aspectos, aliás, também podem ser
observados no capítulo 14 da segunda parte:
Senhor Chefe do Serviço de Segurança: É claro que esse indivíduo,
quando afinal o Serviço conseguir identificá-lo e prendê-lo, deve ser
julgado e punido, por sedição, por sabotagem, pelo diabo que o
carregue: porém, como um pobre coitado, e nada mais. Poderemos,
para compensar o trabalho que nos deu – que está nos dando ainda,
Deus sabe – cair na tentação de lhe exagerar as proporções. Mais
importante do que castigá-lo, ouvi-lo em confissão, ou exterminá-lo, é
caracterizar seu pobre-coitadismo. Estamos no encalço dum cabra
esperto, inteligente mesmo, duma inteligência instintiva, voltado para a
faina de nos desmoralizar, pois tudo indica que veio, passo a passo,
atrás de nós, da zona adusta para o vale do Paraíba e a cidade do Rio.
Terá lá seus encantos pelos jagunços e fanáticos e seguramente
fomentou ele próprio seu cognomezinho interessante de Das Águas.
Ora, traçado esse retrato psicológico de quem não conhecemos a cara,
o que nos cabe fazer, sobretudo, é não fazer-lhe o gosto, é não deixar
que chegue seu nome ou apelido àqueles folhetinhos que se penduram
pelo cordel na cadeira dos engraxates ou à choradeira desdentada dos
cegos de feira de Troglodítia que, se agarram um nome como Das
Águas, são capazes de inventar de novo o Antônio Silvino e o Jesuíno
Brilhante. Lembrai-vos do Conselheiro, endeusado por um dos nossos, o
do trabalho que até hoje dá não deixá-lo chegar aos meninos de colégio
como líder camponês em luta contra o apagamento de impostos além de
taumaturgo e milagreiro. Temos é que pegar o Das Águas vivo e
ridicularizá-lo, aguá-lo, como autor de panes por acaso, conspirador da
roça, pobre pitu de lodo triturado distraidamente pelas engrenagens
azeitadas do Módulo 1967. Quanto a mulheres que surjam como
eventuais candidatas ao martírio pode divulgar que negocio a vinda para
o Brasil dos ossos de Inês de Castro para suprir-nos de tragédia bonita,
tranqüila, distante no tempo e no espaço, posta em sossego, tal como
descrito no anexo Módulo 1357, em xeroxes para distribuição
390
.
389
Cf. GINZBURG, Jaime. A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil. Letras,
Santa Maria, n. 18/19, p. 121-144, jan./dez., 1999. p. 128.
390
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 69.
214
Antônio Silvino e Jesuíno Brilhante, a exemplo de Antônio Conselheiro, eram
jagunços famosos devido a suas atitudes contra as autoridades e a favor da população
local. Essas figuras estão presentes no imaginário popular, apesar do esforço em serem
ignoradas pela história oficial. A propósito, essa perspectiva de distorção dos
acontecimentos e da omissão de fatos aparece na passagem transcrita. Roberto, Beto
ou Das Águas, por dedicar seu empenho em prol dos menos favorecidos e lutar pela
revolução, é igualado àqueles personagens nordestinos que viveram no final do século
XIX e início do século XX. Justamente por atentar contra a ordem, segundo os
representantes da ditadura, ele deve ser ridicularizado e reduzido à condição de pobre-
coitado. Caracterizar o pobre-coitadismo de Beto é minimizar o seu poder. Tornado
pequeno, esse indivíduo será visto como incapaz de guiar outras pessoas, portanto é um
processo contrário à formação de um líder.
A última frase do capítulo reproduzido chama a atenção para o esforço em
camuflar a repressão aos revolucionários, nesse caso, as representantes femininas. Para
tanto, o governo brasileiro usaria a divulgação, na imprensa, de uma possível mudança
dos restos de Inês de Castro de Portugal para o Brasil. Seus ossos encobririam os ossos
das revolucionárias torturadas ou mortas pela Ditadura Militar. Do mesmo modo, com a
conivência do embaixador português Carvalhaes, a transferência dos restos de D. Pedro
I ao Brasil seria uma estratégia para esconder, nos meios de comunicação, os corpos
dos assassinados. Ou seja, a Carvalhaes, apelidado por Henry Dewar de Old Bones,
cabe a tarefa de usar o evento da transferência dos ossos imperiais como forma de
abafar as ações violentas da polícia na repressão aos revolucionários.
Nesse sentido, a figura dos ossos disseminada nas mensagens – como vestígio
da memória – remete para duas possibilidades de representação da história. Por um
lado, os restos de D. Pedro I e de Inês de Castro indicam a presença, na narrativa, da
história oficial e honorífica; por outro, eles apontam para a representação de um presente
devastador e violento, que “reduz o humano a sangue e ossos”
391
. De qualquer modo, ao
ignorar o tempo presente, os representantes da história oficial deixam de considerar a
violência como resultado de um histórico desrespeito a qualquer tentativa de alteração
das bases que sustentam o país. Portanto, a história que é dada conhecer oficialmente
tenta eliminar os vestígios de outra. Segundo Walter Benjamin, é preciso construir um
391
Cf. CARTAPATTI KAIMOTI, Ana Paula Macedo. Ossos e espelhos mortos: uma leitura de Reflexos do
baile e Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado. 184f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) –
Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2007. p. 133.
215
conceito de história que corresponda à premissa de que o “estado de exceção” em que
vive a tradição dos oprimidos constitua a verdade
392
.
Em face disso, Reflexos do baile carrega uma perspectiva sobre a história do
Brasil segundo a qual, intencionalmente, esta não preservou a memória de todos os
episódios da constituição do país, eliminando, conseqüentemente, aqueles
acontecimentos que constituíram tentativas de realizar mudanças. Esse esforço do
governo em apagar os vestígios da história dos revolucionários está no próprio
silenciamento proposto de várias maneiras pela narrativa. Não é por acaso, então, que,
ao longo do livro, as vozes dos revolucionários vão desaparecendo gradualmente. Na
primeira parte, são freqüentes; na segunda, começam a diminuir; na terceira, somem.
Esse silenciamento cede voz aos policiais. Por fim, o leitor entra em contato com
referências aos revolucionários por meio das mensagens dos policiais ou embaixadores.
É justamente nesse ponto que o leitor tem acesso à violência praticada contra os
presos políticos pelos policiais. No último capítulo da terceira parte do livro, estão
presentes, concomitantemente, a arbitrariedade da repressão que vitimou vários
personagens e as falhas que fazem parte desse sistema. Nesse caso, os conflitos
internos e a falta de comunicação entre os representantes da ditadura culminam em
atitudes brutais dos delegados e policiais, as quais são acobertadas e aceitas pelos
órgãos oficiais:
Senhor Secretário de Segurança: (...) Quando eu entrei para o serviço
chegadinho do Norte com um buço de nada nos cornos e uma penugem
macia de barba de milho na virilha a lei aqui era severa. A gente pegou
naquele tempo um tal de Febrônio malfeitor de menino e fez ele tomar
no cu de um por um. Se jornalista xingava a gente de torturador a gente
picava o artigo do jornal e fazia ele engolir aquele alfabeto inteiro letra
por letra mesmo se o cara era só metido a gaiato feito um tal de Itararé.
Agora, Chefe, a gente não passa de vara de rabo de foguete, de pau de
galinheiro. É a bandalha, o esculacho. Repórter bota pra quebrar, diz
que a gente castra, estupra, esgana, o escambau, e quem engole os
artigos é nós mesmos, que treme nas bases e ainda solta os putos. (...)
Essas autoridades que vivem lhe pedindo que solte subversivo por
causa do tal de “clamor da imprensa” o senhor pode ficar sabendo que
gostam é do gosto do cururu que traçam. Lambem o beiço. Veado que
aprecia porrada de fancho não tem médico que cura ele não. Nada disso
tem nada que ver com o Chefe não, que é farinha de outro saco e de
moenda antiga, meu chapa de ouro, do peito. Só quero lhe percatar que
392
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
216
soltar um magote desses vagabundos assim duma vez sem mais nem
menos e antes que a gente decifrou aquela merda basca isso eu acho
que é dose pra leão. O jeito é o sobreaviso de só soltar uns fichinhas se
é que o Chefe vai mesmo dar a entrevista coletiva na tevê. Tem o tal do
jardineiro Válter, tão merdinha no movimento que nunca passou de
Válter mesmo, não tinha nem codinome. (...) Mas tem um outro detido de
ninguém botar defeito nele, cara carola, o pessoal diz até que bicha pelo
menos na divagação, tal de Mário Vilarinho, aliás Marcondes, aliás
Filipe. Esse alfaiate de ofício, parece que nasceu pra dar entrevista de
Madalena arrependida na televisão. Na hora do tratamento chamava o
eletrodo de Valdirreto e de Satanás e agora quando ele está na cela bem
na dele mascando reza feito chiclete e um dos rapazes berra Satanás
ele cai pra trás duro feito uma tábua de engomar. A gente previne ele
que se falar falsidade a gente faz uma instalação permanente de
Satanás anal no fiofó dele que é melhor que pregar esparadrapo na boca
dele. (...) Menos alteração ainda dá o tal de Braz Taborda, codinome
Dirceu. (...) Ele entrou aqui pelo corredor polonês e um dia chegamos a
esquecer ele no pau-de-arara, feito frango assado de porta de
churrascaria que ninguém compra e passa a noite no espeto. (...) O que
ele falou quando a gente botou ele na troça do detetor foi o mesmo que
falou todo mordido de eletrodo e até cagando um sanguezinho. Sem
mobral nenhum. Um pamonha. Acho que soltando o Filipe e o Dirceu na
coletiva a gente vai maneirando
393
.
Pelo que foi arrolado, Reflexos do baile apresenta um conjunto de imagens que
propõe uma desmontagem das visões ideológicas dominantes. Um dos propósitos do
romance provavelmente seja o de assinalar a luta entre a direita e a esquerda pelo
poder. Os primeiros visam a assegurar a situação de dominação, os outros objetivam
uma revolução para libertar não somente os presos políticos, mas também toda a
sociedade das amarras autoritárias. Com vistas a isso, o livro sugere uma série de
elementos de base crítica. Um deles é a presença constante da influência estrangeira em
solo brasileiro. Uma análise atenta da história do Brasil leva a crer que a vinda de
portugueses, ingleses ou americanos sempre esteve acompanhada de violência,
massacres ou imposições culturais. O resultado disso, em certa instância, é a
naturalização e a aceitação pacífica da exploração, do roubo, da discriminação. Foi
justamente esse tipo de pensamento, dosado a outros fatores, que resultou na eclosão
ou na manutenção, por um longo tempo, da Ditadura Militar.
Um outro dado importante que merece ser destacado diz respeito ao conjunto de
histórias que a obra em questão resguarda e que culmina numa outra história: a de
Reflexos do baile. As referências a D. Pedro, a Pompílio Albuquerque, ao Conde
Gobineau, a Antônio Conselheiro, a Jesuíno Brilhante, a Antônio Silviano e a Inês de
393
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 138-140.
217
Castro, só para citar alguns nomes, requerem, no tecido narrativo do texto, associações.
O estabelecimento de tais relações é necessário para o entendimento dos diferentes
episódios históricos, seus encaixes e implicações que culminariam em formas
autoritárias de dominação. O romance de Callado requer o conhecimento desse conjunto
de histórias para que se possa atribuir um sentido mais abrangente de sua leitura. Assim,
muitos dos dados concernentes aos personagens históricos citados conduzem à
percepção de que à elite cabe o papel de dominador, enquanto aos demais o papel de
dominados. Não é por acaso que, no livro, ocorre a perseguição aos revolucionários e
mais uma vez a direita consegue conservar o poder em suas mãos. Isso não é um acaso
histórico, é algo coerente com o seu desenrolar.
3.4.2 O paródico, o satírico e o cômico no romance de Callado
Eu estava com os fundilhos molhados de água e vi que a condição de
aventureiro é quase sempre desconfortável. (...) Não existe marasmo
e os contratempos estão sempre escamoteados das histórias de
aventura. Pois digo aos leitores que ninguém passa mais baixo que o
aventureiro. Quem me dera fosse eu um Phileas Fogg na calha do rio
Amazonas fazendo a volta ao mundo em oitenta seringueiras.
(Galvez, imperador do Acre, Márcio Souza)
Logo que Reflexos do baile foi publicado, Glauber Rocha se entusiasmou devido
à originalidade do romance, pois ele se destacava dos demais no que diz respeito aos
assuntos sobre a guerrilha. Mais tarde, Arnaldo Jabor transformou o livro num roteiro
cinematográfico, mas o projeto de levar a obra às telas ficou inconcluso. Conforme
explica, os empresários brasileiros estavam dispostos a financiar o filme na condição de
os guerrilheiros serem transformados em sórdidos bandidos
394
. Se o projeto de Glauber
Rocha tivesse sido concretizado, várias cenas da película certamente provocariam riso
nos seus telespectadores. Aliás, a comicidade do livro advém não tanto de sua leitura,
mas, mais provavelmente, seria oriunda de sua encenação.
394
Cf. FERNANDES, Edilene Gasparini. Mosaico de histórias e mentalidades em Reflexos do baile.
162f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Estadual Paulista, São José do Rio
Preto, 1997.
218
O texto de Callado constitui-se na denúncia de uma realidade opressora, algo
que, em princípio, bloquearia a possibilidade de manifestação do humor, ou seja, a
elaboração de uma perspectiva eufórica do Brasil estaria travada em função da
seriedade do conteúdo histórico representado. No entanto, a narrativa é portadora de
elementos que rompem com o projeto mais geral do romance, já que propõe imagens
que não são do âmbito do sério ou do elevado. A matéria considerada ignóbil ou
repugnante, que estimula muitas vezes o riso, não prejudica, contudo, o objetivo da obra.
A apresentação dessas imagens atende à expectativa lançada nos Fragmentos do
Athenaeum, de Schlegel, texto em que é afirmado o interesse pelo bizarro na literatura.
Este, no aforismo 429, é definido como “certas associações e confusões insólitas e
arbitrárias nos processos do pensamento da composição poética e da ação”
395
.
Comentando um livro de Goethe, o autor diz que nele “o horrível aparece como
irresistivelmente grandioso”
396
.
Em Reflexos do baile, há situações que levam a enxergar o uso de recursos
cômicos como a paródia e a sátira, mesclados, na maioria das vezes, do emprego da
ironia como recurso retórico. No que tange à paródia, ela imita outra forma de arte, de
uma forma exagerada, para criar um efeito cômico, ridicularizando, geralmente, o tema e
o estilo da obra parodiada. Ainda que, por vezes, as técnicas próprias da sátira e da
paródia se sobreponham, não são sinônimas. A sátira nem sempre é humorística. Ela
chega, às vezes, a ser trágica. A paródia é imitativa por definição, a sátira não tem de o
ser. O humor satírico tenta, muitas vezes, obter um efeito cômico pela justaposição da
sátira com a realidade. A sátira tem por objetivo desdenhar um determinado tema
(indivíduos, organizações, estados), geralmente como forma de intervenção política ou
outra, com o intuito de provocar ou evitar uma mudança.
A paródia teria nascido da rapsódia, assim como a sátira teria se originado da
tragédia, e o mimo, da comédia. Entretanto, a paródia, não obstante suas raízes, seria o
inverso da rapsódia, do mesmo modo como o cômico seria um trágico às avessas. No
que tange à paródia, ela pode ser concebida de diferentes formas: 1) através da
mudança de uma palavra ou de um verso, 2) por meio da alteração de uma letra na
palavra, 3) ao se desviar uma citação de seu sentido sem alterar o texto original, 4) ao se
compor uma obra inteira sobre uma peça ou sobre parte considerável de uma poesia
395
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. In: LOBO, Luiza (Org.). Teorias poéticas do
romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 71.
396
Idem. Ibidem.
219
conhecida, que se desvia para um outro assunto pela mudança de algumas expressões,
e 5) ao se fazer versos do gosto e estilos de autores pouco aprovados.
Reflexos do baile, no que diz respeito ao tópico paródico, elege como alvos
preferenciais figuras e situações históricas, personagens literários e bíblicos, e estruturas
narrativas. Um caso já explorado concerne à aproximação do personagem Beto com
Antonio Conselheiro e seus seguidores, lutando na Guerra de Canudos pela posse das
terras nordestinas. Outro exemplo de paródia está na presença de elementos bíblicos na
narrativa, como o que ocorre no capítulo 7 da primeira parte, numa carta dirigida a
Dirceu:
Dirceu: Pompílio furioso, intransigente, imprudente, pronto a desertar na
marra. Vai com jeito ou sai da frente que o boi ficou bagual. Pompílio
resolvido a executar seu plano de cem anos atrás. “Outro século não
espero.” Organizou do Ribeirão das Lages aos Macacos, no Jardim
Botânico, um arrepio matemático que medita até sobre os geradores que
crestam a grama e cegam os cavalos do Jóquei-Clube. Fará recuar os
relógios do Rio ao caos anterior ao terceiro versículo do primeiro dia no
primeiro capítulo do primeiro livro do Pentateuco, instante em que o
Senhor, resolvido embora a criar a luz, já previa para o versículo vinte e
um no dia quinto dedicado ao jogo do bicho a vinda ao mundo da pré-
serpente. Bota pilha na lanterna, Dirceuzinho
397
.
Este capítulo tem subjacente um apelo messiânico. Tal leitura só é possível se se
atentar para os diversos elementos paródicos aí presentes. Em 1976, quando da ocasião
da publicação do romance, vários grupos revolucionários clandestinos se voltaram contra
a ditadura e suas forças repressivas. O objetivo deles era a obtenção de liberdade e
talvez também a criação de um novo mundo. No fragmento, as referências a Pompílio de
Albuquerque – mas também ao Jardim Botânico (Éden), à luz e à serpente – apontam
para um caminho de libertação a ser conquistado. O primeiro, como se verificou antes,
planejou seqüestrar D. Pedro II e a família imperial, em 1870, com o intuito de pressionar
os dirigentes a libertarem os revoltosos. As indicações aos versículos bíblicos e ao
Criador estão carregadas de providências divinas, o que reforça a pressuposição de que
aquele seria um caminho coerente para se alcançar uma suposta democracia. Na
penúltima frase, a referência ao jogo do bicho está minada de ironia.
397
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 19.
220
A exposição de traços negativos da sociedade brasileira, em particular no que diz
respeito ao silêncio político e ideológico, fica por conta do personagem Rufino
Mascarenhas que, em certa altura do livro, é comparado ao Conselheiro Aires. Numa
carta que Carvalhaes escreve ao filho, ele se refere a Juliana e ao pai nos seguintes
termos: “Meu filho: intriga-me a bela filha do vizinho Rufino. Este, à sua maneira, em
lugar de falar-me na moça, diretamente, comparou-a, como se o fizesse entre pessoas
vivas, a uma certa Fidélia, viúva, secreta paixão de um Aires, conselheiro, ambos figuras
de um romance brasileiro”
398
.
Os diários que o embaixador brasileiro Rufino Mascarenhas escreve se destacam
entre aqueles que predominam na narrativa. Seus escritos são diferentes porque não
apresentam uma perspectiva imediata dos acontecimentos. Esse aspecto se reforça se
se considerar que ele está aposentado e, portanto, tem o privilégio de assistir de fora aos
acontecimentos que envolvem seus colegas embaixadores, os quais, inclusive, são seus
vizinhos. Assim, Rufino, ao invés de expor a voz do narrador tradicional, sábio e com
experiência, não enxerga os fatos que o cercam, em particular devido à sua obsessão
pelo passado de sua família portuguesa e pela infância quase mítica num Rio de Janeiro
perdido no tempo.
A relação de Rufino com Conselheiro Aires se daria no seguinte sentido. O
personagem machadiano é um diplomata aposentado e autor de diários que, reunidos,
constituem o Memorial de Aires (1908), entretanto ele não sofre da cegueira e é
conhecido pelo olhar atento e minucioso que lança sobre todos que o cercam. Como um
narrador primitivo frustrado, a alienação de Rufino o aproxima do arremedo de Aires. O
afastamento de Rufino em relação ao mundo e aos acontecimentos se traduz em seu
alheamento no que diz respeito à situação do Brasil. Nesse contexto, o personagem
machadiano serve de fonte onde se instaura a paródia como denúncia de uma elite
intelectual conformada e alienada, disposta a idealizar o passado e a limpar o presente,
desresponsabilizando-se dos malogros históricos, como se não tivessem princípios
concretos e passíveis de identificação precisa.
Afora isso, a superposição de textos que Reflexos do baile realiza é a principal
evidência da presença de um tônus paródico no romance. Através dessa técnica, o autor
incrusta o hipotexto no hipertexto, a exemplo do que acontece no capítulo 15 da primeira
398
Idem. p. 27.
221
parte da obra: o personagem Beto, ao escrever uma carta a Dirceu, parodia a carta de
Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. A paródia, portanto, tem sempre como alvo um
texto, mas também pode servir de denunciadora de determinadas convenções literárias.
No livro de Callado, a organização da narrativa em capítulos curtos – alguns em forma
de cartas, outros em forma de trechos de diário – pode ser vista como uma crítica à
convenção literária do romance. O efeito da paródia, afirma Linda Hutcheon, é o de
provocar um efeito cômico, ridículo ou degenerante
399
. Através da organização
telegráfica de sua narrativa, Reflexos do baile consegue, senão diminuir ou degenerar o
gênero romanesco, ao menos realizar, com esse recurso, um questionamento sobre
essa uniformização da maneira de escrever conhecida como romance.
A sátira é um outro recurso que aparece em Reflexos do baile. Classificada por
Hutcheon como forma literária, seu objetivo é corrigir certos vícios e inépcias do
comportamento humano, ridicularizando-os. Conforme Malcolm Silverman, a sátira é
uma espécie de “descrição de uma situação absurda ou dolorosa, ou de uma pessoa ou
grupo tolo ou pernicioso, relatada numa linguagem descompromissada e freqüentemente
afastada do convencional”
400
. Dessa forma, portanto, ela possui um ethos arrogante,
insolente, que se manifesta através da cólera, mas que tem fins reformadores, porque
visa o extratextual, o social e o moral, e não o literário. Como exemplo do uso da sátira
dentro da obra em questão, pode-se citar o capítulo 2 da terceira parte. Nesse segmento,
o pai de Jack, por meio de uma carta, pede ao filho que tome cuidado com o pitoresco:
Jack meu filho: Imagino que, de um jeito escoteiro, você esteja vivendo
todo feliz sua história predileta. O Brasil sendo todo de bananas e lianas
o primeiro gato rajado que você viu de relance nas moitas, quem diria,
olha o tigre que você esperava. Não dá carne crua a ele não, Jack, ele
gosta é de leite. Bolas, estou perdendo meu tempo. O Dr. Dale nunca
esqueceu que quando você saiu do Período Egípcio e expeliu do seu
sistema sacos e sacos de areia, cacos e cacos de gatos e de esfinges
você costumava prevenir amigos e desafetos, Cuidado com o Pitoresco.
Você tinha orgulho de você mesmo e da sua linhagem. (...) “É claro que
não, a civilização não é privilégio de nenhum país, mas sem dúvida
escolhe, para hospedeiro, um país de cada vez”
401
.
399
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s.d.
400
SILVERMAN, Malcolm. Moderna sátira brasileira. Trad. Richard Goodwin. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1987. p. 9.
401
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 99.
222
A carta desfila elogios aos Estados Unidos, enfatizando as supostas noções de
civilização, progresso e alegria que existem naquele local. O Brasil resume-se a só mais
um período em sua vida de embaixador, como foram tantos outros. Não faltam
referências à África. A única lembrança que o pai guarda dos anos de trabalho do filho,
em tal país, não é a experiência do convívio com as pessoas, mas, desprezivelmente, o
que lhe vem à mente é a imagem da areia, desconfortável para quem não estava
acostumado a ela. A justaposição das imagens da areia e do tigre, elementos típicos de
países africanos, ao Brasil, leva a crer que esse país não precisa ser levado a sério
pelos Estados Unidos. Assim, o pai pede a Jack que não dê carne ao tigre, outra
metáfora do Brasil. A carne pode fazê-lo despertar e descobrir os poderes que tem e
desconhece.
A sátira, nesse particular, estaria assentada numa busca de reparo que o autor-
implícito tenta realizar na consciência de seus leitores. Conforme Linda Hutcheon, o
gênero satírico se define por uma noção de desprezo ridicularizante com fins
reformadores. A ironia despreziva das palavras do pai de Jack atesta a presença de um
ethos arrogante e colérico. Considerando-se essas noções, a sátira constitui-se num
gênero agressivo. Ela exagera e deforma, dando a impressão de uma descarga nervosa
contra algo ou alguém que irritou profundamente.
A agressividade consiste, pois, num elemento importante da sátira, ao utilizar um
ethos neutro e dócil dentro da função pragmática da ironia escarnecedora. A hostilidade
parece estar presente nas entrelinhas do capítulo 25 da segunda parte. Nesse segmento
do livro, Rufino descreve um jantar que oferece em sua própria casa para que
americanos e portugueses decidam o futuro do Brasil. Nessa conversa, o personagem
faz uso do vocábulo banho-maria, o que recompõe uma atmosfera de languidez e de
embriaguez na qual está envolvido, permitindo que os representantes dos dois pólos de
dominação sobre o Brasil (Portugal, no início, e os Estados Unidos, naquele momento),
mais uma vez, decidam o destino brasileiro. Como se disse, a cólera não está
propriamente nas palavras de Rufino, mas está contida nas entrelinhas do texto, o que
reafirma que a dominação sobre o Brasil, no passado, é tão intensa quanto no presente:
A culpa terá sido minha, pois nossa conversa, a três, travou-se depois de
um jantar de moules (um prodígio de mitilicultura) à la marinière e de um
robalo de forno que me levaram a um consumo assaz veloz do vinho
alsaciano: a verdade, porém, é que tanto o Carvalhaes como Father
223
Collins estavam maçantes. Chegaram a falar em banho-maria,
expressão que me transmite sempre a imagem morna e emoliente de
uma cozinheira lavando-se numa tina. O país, quer dizer, este, o meu,
“deve ser mantido em discreto banho-maria, sem entrar em contato
direto com o fogo”
402
.
Afora os elementos paródicos e satíricos, Reflexos do baile, à luz de uma leitura
menos reflexiva, pode revelar traços de comédia. Pelo menos duas características
apontam para essa particularidade: primeiro, quando explora em seus personagens o
que têm de mais aviltante e negativamente marcante, por isso os representa piores do
que são na realidade; segundo, quando apresenta seus nomes metaforicamente
construídos e, em meio à narrativa, desfilam fatos que se passaram na história do Brasil
com personalidades que existiram.
Nascida da improvisação e com base nos cantos fálicos – espécie de farsas
silenciosas e satíricas cujas mímicas eram consideradas indecentes –, a comédia insistia
na imitação de maus costumes, do ridículo, que, para Aristóteles, se encontrava num
defeito ou numa tara que não representavam caráter doloroso ou corruptor
403
. Em seu
surgimento, a comédia grega era representada de diferentes maneiras. Uma delas era
através da utilização de máscaras de animais no palco, ou mesmo da entrada em cena
de artistas montados sobre animais ou vestidos como tais. Esse tipo de apresentação
era mais comum em Atenas, mas poderia ser apreciado em outros lugares. Conhecida
no mundo todo, essa prática, em alguns países, tinha origens totenistas; em outros,
estava ligada aos rituais mágicos para garantir a fertilidade do solo e das pessoas.
Desde sua origem, a comédia estaria ligada a ritos fálicos, muitas vezes
associados à representação de figuras demoníacas. O capítulo 30 da primeira parte de
Reflexos do baile se encerra justamente com um verso poético que aproxima a imagem
do falo à figura da espada:
Beto: Acordei em casa, no meu antigo quarto, em plena noite... Não. Me
acordaram ontem no meio da noite. Ainda não. Você me acordou,
porque a noite você é que tinha feito, no Café Flor da Penha. Corda forte
você me puxou feito uma caçamba do fundo da cisterna e eu vim
pingando sono por todos os lados mas rindo, feliz como não me sentia
402
Idem. p. 77.
403
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
224
faz muito tempo. O que você me dizia, o que você repetia era o que me
falou a primeira vez que trepamos um com o outro. (...) Primeira vez que
a gente trepou horas, comendo um ao outro, rolando na cama como se
estivéssemos num bote dentro de mar grosso e que de repente me deu
aquela certeza errada de que a gente tinha nascido só para aquilo, para
trepar um com o outro, e você já todo duro, todo arretado por mim de
novo me varou toda outra vez dizendo que não e não com a cabeça. (...)
Aí você sorriu, divertido com o medo que eu sentia e falou numa voz
cavernosa: “O amor desembainha a gente, feito uma espada”, e aos
poucos, sorrindo, você entrou em mim de novo, até os copos. (...) O que
eu queria era ver você de novo, ter você na cama comigo. Aço teu,
bainha eu
404
.
A bainha é uma representação metafórica do órgão sexual feminino, a espada lembra o
falo masculino. A ligação entre as partes íntimas de ambos os sexos e os instrumentos
bélicos pode sugerir uma conexão entre Reflexos do baile e as origens das comédias
gregas.
Segundo Aristóteles, a comédia deve representar os homens piores do que
realmente são através da imitação daquilo que há neles de torpe, de ridículo
405
. Os
nomes dos personagens são fantasiosos, mas os fatos que representam estão
ancorados na realidade factual. Entretanto, o destino dos personagens no romance de
Antonio Callado caminha da felicidade para a infelicidade e, nesse ponto, a noção de
comédia, dentro da obra, se abala pela presença da trajetória do infortúnio, característica
da tragédia grega.
Outro traço da tragédia é recorrente em Reflexos do baile se se atentar para a
sua estrutura narrativa. O livro é dividido em três partes e, vale dizer, em três atos: A
véspera, A noite sem trevas e O dia da ressaca. Como todo espetáculo trágico em três
atos, a primeira parte do romance apresenta os fatos, localizando os leitores (os
espectadores) diante do palco; a segunda parte, calcada sobre a poesia, pode ser
interpretada como uma nova versão da melopéia e da tragédia grega (se se considerar a
poesia, a ode, como a literatura mais próxima da música); a terceira parte desvela
aquelas informações mais secretas e, com isso, as peças do mosaico se encaixam para
revelar a trama maior da obra, e quem sobreviveria ou não a ela.
404
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 35-36.
405
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
225
Existem, ainda, em Reflexos do baile, além de um emaranhado de cartas de
embaixadores estrangeiros, depoimentos de jardineiros, faxineiras e carcerários, cujo
inquebrável fio conduzirá o leitor a uma revelação maior: o despertar através do riso.
Este, de acordo com Henri Bergson, consiste na correção do cômico, da rigidez do
espírito e do caráter
406
. É esse riso contrito, algo entre o satírico e o triste, que abala o
fortalecimento militar e organizacional do Brasil pós-64. Quer se faça referência à
comédia, à tragédia, à paródia, à sátira, o riso de dor é o elemento comum a todos eles.
Trata-se de um riso advindo da impossibilidade de um outro riso maior, o da liberdade.
Afora tais abordagens, a obra de Callado resguarda traços característicos do
gênero cômico-sério. Este, porque tem ligação profunda com o folclore carnavalesco, é
um gênero oposto à epopéia, à tragédia, à história e à retórica clássica. Mikhail Bakhtin
distingue três peculiaridades que definem o aludido gênero. A primeira delas diz respeito
ao tratamento que ele passa a dar à realidade viva e inacabada, conferindo ênfase ao
cotidiano de pessoas comuns e não ao passado de heróis, mitos e lendas, a exemplo do
que acontecia na literatura antiga. Atualizam-se, nesse gênero, as figuras de heróis e as
imagens das lendas e dos mitos passados, de forma a se operar uma mudança em
termos de valorativos temporais na construção da imagem artística.
Reflexos do baile, nesses termos, lembra o leitor de uma continuidade de
costumes sempre presentes na história do Brasil. Ou seja, o livro apresenta ao ledor uma
atualidade inacabada, aberta, o que possibilita alargar seu pensamento e fazer seu
próprio diagnóstico futuro. No romance, existe um cinismo no enfoque de trechos de
contos de fadas. No capítulo 32 da primeira parte, por exemplo, a comparação entre a
fábula de Cinderela e a tentativa de revolução pode expressar uma espécie de
fragilidade da situação, isto é, um sonho encantado que nunca se realiza:
Dirceu: Não pense mais, nada melhor do que essa idéia do Beto, duca,
linda. Colher o Brasil em plena dança. Valsar com a pátria. Depois dizer
que o poeta sou eu, pobre poeta reduzido às palavras do obscuro
português ou do basco hermético. Ao apagar das luzes, noite em meio,
teremos no bolso o sapato de cristal
407
.
406
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 19.
407
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 36.
226
No particular a Cinderela, o personagem atravessa uma série de obstáculos para,
por fim, conseguir realizar seu casamento com o príncipe. Nesse caso, embora surjam
várias dificuldades que impedem a união dos dois, eles vencem todas as barreiras que
bloqueiam sua felicidade. Não é exatamente essa seqüência de acontecimentos que se
segue na obra de Callado. Existe um desejo de revolução, de mudança, de liberdade e
de felicidade que, no entanto, não se concretiza satisfatoriamente. Assim, ao parodiar um
outro texto, Reflexos do baile assume um sentido contrário àquele primeiro.
Vladímir Propp, ao se referir ao riso que um palhaço provoca quando imita os
movimentos de uma amazona de circo, afirma que a paródia que esse bufão realiza
revela não o vazio do que é parodiado, “mas a ausência nele das características
positivas que imita”
408
. Isto é, em Antonio Callado, no que tange à história do Brasil de
um determinado espaço de tempo, não há traços otimistas a serem destacados,
restando, portanto, uma perspectiva frustrante em relação ao curso dos acontecimentos.
Em outros termos, não se pode esperar dos personagens de Reflexos do baile o
mesmo fim que coube a Cinderela e ao príncipe.
A segunda peculiaridade que define o cômico-sério, segundo Bakhtin, liga-se à
primeira. A sua característica é a de basear-se, conscientemente, na experiência e na
fantasia livre; “na maioria dos casos seu tratamento da lenda é profundamente crítico,
sendo, às vezes, cínico-desmascarador”
409
. Tudo isso, de acordo com o autor, é
considerado uma revolução da história da imagem literária, já que critica e desmascara
as lendas, libertando a visão literária extremamente atrelada aos mitos. Em Reflexos do
baile, afora o fragmento anteriormente analisado, há uma passagem em uma carta
escrita a Dirceu em que é problematizado o teor da literatura: “[a] poesia antigamente
vivia às voltas com pastores (...), só que a gente passou da natureza crua para a
natureza cozida. Morou?”
410
. A literatura, nessa perspectiva, não visaria mais o belo, o
tranqüilo ou o harmonioso, agora ela estaria assentada numa realidade em que tais
noções não se sustentariam. As fadas e os pastores teriam cedido lugar ao que é bruto
ou cruel.
408
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
São Paulo: Ática, 1992. p. 85.
409
BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 108.
410
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 102.
227
A terceira peculiaridade caracteriza-se pela pluralidade de estilos e variedades de
vozes. Renunciando à unidade estilística, o cômico-sério faz uso da “politonalidade da
narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico”, empregando
amplamente diferentes gêneros intercalados: “cartas, manuscritos encontrados, diálogos
relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródias, etc.”
411
. Esta
talvez seja a característica mais visível em Reflexos do baile. No capítulo 49 da terceira
parte, vocábulos e expressões como tomar no cu, merdinha e cagando aparecem em
meio a outras mais arrojadas. Os jargões também estão presentes nas falas dos
policiais: “Senhor Delegado: Infelizmente eu não estava presente quando se procedeu à
identificação do cadáver. Assisti, isto sim, ao exame do corpo para o laudo”
412
. Quem faz
uso do bilingüismo é o próprio autor-implícito, descrevendo as cartas e os bilhetes que os
estrangeiros trocam entre si em sua própria língua, e depois os traduz para o leitor com a
ajuda do tradutor, presente nas notas de rodapé.
O uso de diferentes níveis de linguagem dentro de um mesmo discurso expressa
uma grande competência do falante, muitas vezes, não em dizer a realidade, mas em
manipulá-la, visto que, geralmente, tais falas são oriundas de políticos e policiais. A
maestria com o uso da linguagem também está reservada ao remetente de uma carta
escrita a Dirceu:
26
Dirceu: Eu canto a cólera de Beto. Se o Cristo tivesse expulsado os
vendilhões do Templo com Panzerdivisionen em lugar de vergastá-los
com açoites teria talvez feito menos carreira como Verbo na Idade Média
mas seu Reich não ruiria em fatigado pó de implosão antes dos dois mil
anos do primeiro sopro da gaia ciência dos irmãos Karl e Friedrich que a
quatro mãos provaram que os vendilhões nunca tinham saído dos
templos e palácios do poder escravizando no plano externo os mares e
as Babilônias e arrombando no interno o porão e o sótão dos demais
homens para convencê-los em sexo e cuca a viverem humílimos e
contentíssimos em sua austera e sórdida Babel de escravos o que veio a
exigir como notaram sem exceção todos os historiadores vindouros que
os últimos bispos deveram formar uma casta de senhores e guerreiros
do porte e envergadura de Camilo e Helder. Eu canto a cólera do
Capitão Pompílio, o nosso Numa
413
.
411
BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária. 1981b. p. 108.
412
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 119.
413
Idem. p. 32.
228
O remetente da carta escrita a Dirceu – que, pela linguagem mais elaborada,
lembra o discurso do personagem Vítor – consegue expor um misto de ciência, religião e
história interligadas. O discurso é complexo e funde conhecimento sobre vários
assuntos, destacando-se vocábulos escritos em língua alemã como Panzerdivisionen e
Reich. No fragmento, observam-se vômitos realistas e externalizações de angústias
desorganizadas, próprios da crueza da época e do contexto político. A confusão que tais
elementos podem causar na cabeça do leitor revela o efeito de um tempo de
desorientação pelo qual os brasileiros passaram. A passagem, ainda, lembra um sonho,
pois uma imagem não se associa com a outra harmoniosamente. O sonho seria a
expressão daquilo que não pode ser organizado através da fala, mas é também a
manifestação de um conjunto de impulsos reprimidos relacionados a problemas
traumáticos.
Ainda no que tange à terceira peculiaridade do cômico-sério, de acordo com
Bakhtin, tem-se a unidade entre situações cômicas e outras de profunda seriedade. O
capítulo 3 da terceira parte é ilustrativo a esse respeito. Rufino Mascarenhas é
seqüestrado, a exemplo de outros embaixadores, pelos revolucionários. Desorientado,
começa a repetir gestos de outros. Age como se fosse o embaixador inglês, fazendo uso
da linguagem e da autoridade do estrangeiro. Imita um padre que não consegue se
desligar de seu ritual de missa. Esse automatismo que o personagem incorpora o torna
cômico e o insere num clima paródico, há muito tempo intuído pelos bufões
414
:
Dirceu: (...) Saída da Rainha, canastrice geral, o cara pálida afundado
numa poltrona, o Rufa de roupão de saia escocesa, aos peidos, falando
inglês, peidando em inglês, tirando da cristaleira garrafa e dois copos,
que arrumou na mesa, para substituir em seguida por outra garrafa e par
de copos, como um padre enguiçado no meio da missa, falando inglês
com o Bernardo que cumpria papel de carcereiro, a trancar portas e
janelas, e com Válter jardineiro, que cortava fios telefônicos, podador de
trepadeira no meio daquela zorra, e até com o Mejía, que faz questão de
não entender lhufas de inglês. Na poltrona o cara pálida, de medo da
gente, insistia em só responder ao Rufino em português, enquanto
enxugava a tragos de cowboy os uísques que o outro servia para fazer a
saúde da Rainha, a usurpadora, a cafona, e não a nossa, fulgurante, que
tinha saído pela porta afora feito uma alegoria sei lá de que
415
.
414
Cf. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 25. Segundo o autor, os “gestos dos quais não imaginamos rir se tornam risíveis quando outra
pessoa os imita”.
415
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 100.
229
Como se pode notar, Reflexos do baile traz uma duplicidade de sensações: por
um lado, tem-se a seriedade; por outro, a comicidade. Tais formas de sentir o romance
ficam expostas logo no início do livro, quando são transcritos dois pensamentos
diferentes. O primeiro deles pertence a Vasari e aborda a comicidade sobre uma visita
do rei da França a Milão: “quando o rei da França veio a Milão, pediu-se a Leonardo que
inventasse algum espetáculo incomum, e em resposta construiu ele um leão que, cada
poucos passos que dava, abria o peito, expondo uma penca de lírios”. O segundo, de
Buffon, fala da dor, que é inata ao ser humano desde o seu nascimento: “Por que não
seriam alguns bichos criados para o sofrimento, se na espécie humana a maioria dos
indivíduos é votada à dor desde o momento de nascer?”. Mesmo marcado pelo tom
trágico, esse trecho apresenta, ao final, um tom irônico: “desanimado de entender a
preguiça”. O posicionamento dessas duas passagens, colocadas uma sobre a outra, na
primeira folha, parece antecipar as duas facetas que o livro irá abordar: a comicidade e a
tragicidade da vida brasileira nos anos 70.
A exemplo do que acontece na comédia grega, os nomes dos personagens, em
Reflexos do baile, são metafóricos e assumem sentidos específicos dentro da obra. Por
motivos de ordem prática, são considerados os nomes de Rufino Mascarenhas e de
Beto. No primeiro caso, Mascarenhas constitui-se num dos nomes mais populares no rol
de famílias burguesas do Rio de Janeiro nos anos 1960 e 1970. O vocábulo, ainda,
estabelece relação com mascarilha, pequena máscara que cobre parte do rosto, o que é
significativo nesse caso, já que ele nunca abraçou sua nacionalidade verdadeiramente.
Ele sempre viveu recluso em sua mansão, que considerava como território internacional:
uma embaixada inglesa em terras brasileiras. Ao final da vida, acredita ser um
embaixador inglês apaixonado, incorporando a imagem, a língua e os costumes do
estrangeiro.
O primeiro nome, Rufino, pode ser extraído do radical do verbo rufo, que, em
latim, significa tornar ruivo, avermelhado. Essa cor irá acompanhá-lo por toda sua
trajetória na narrativa, como acontece no capítulo 51 da primeira parte. Ao se dirigir a
sua fazenda onde pretende dar uma festa a sua filha Juliana para que ela seja re-
introduzida entre seus amigos diplomatas, ele descreve os mulungus vermelhos que
encontra pelo caminho: “perseguidas pelos mulungus em fogo as acácias adolescentes
só não se atiravam aos braços anosos dos angicos experientes graças à vigilância das
230
paineiras de cabeça branca”
416
. Devido à velocidade do carro, Rufino interpreta os
mulungus perseguindo as acácias adolescentes. Essa imagem antecede a perseguição
que Juliana iria sofrer e o sangue que seria derramado.
Outra referência ao sangue que será derramado por Rufino, embora
indiretamente, está na qualidade das frutas das quais o embaixador afirma sentir
saudades: “[v]ou aumentar o pequeno pomar de agora às dimensões da infância, pois
hei de recuperar o tempo perdido com palavras e com cambucás, abricós, ingás e
jambos. E sobretudo, ai de mim, com as frutas carminativas, mamão, tamarindo, ameixa,
fruta-pão”
417
. Carminar, enquanto verbo, significa avermelhar, daí a ligação entre a
vermelhidão das frutas e a cor vermelha cujo sentido fica expresso no radical do nome
do personagem em questão. Ademais, o adjetivo carminativo, oriundo do latim,
carminare, significa purificar.
Outro nome que merece destaque é o de Beto. Ele é o líder do grupo de
seqüestradores da rainha e, como os demais componentes, suas origens são humildes.
O seu apelido – Pompílio ou Numa – é o nome de um dos primeiros governadores da
Roma antiga, Numa Pompílio (715 - 676 ou 672 a.C.). Negro, filho de escravos e cuja
ascensão ao poder se deu rapidamente, Numa é a figura de um líder do passado que se
repete em Beto. A semelhança entre os dois está na liderança que exercem sobre o
povo, nas origens humildes e na subida ao poder.
Afora isso, a imagem que Beto reflete ao leitor é a de algo semelhante a Jesus
Cristo, tanto que ele morre crucificado à torre de uma igreja, fato que lhe imprimirá as
honras de mártir. O nome Beto também pode lembrar a pessoa de Frei Beto, um
religioso da ordem católica dos dominicanos que se destacou pela luta em prol dos mais
pobres e trabalhadores. Seja como for, Beto parece ser uma nova versão de Cristo, a
começar pelo fato de não se abster do uso da força para alcançar seus objetivos.
Portanto, em Reflexos do baile, a análise dos nomes dos personagens leva o leitor a
uma interpretação mais detalhada e um entendimento mais profundo e rico do romance.
No particular ao riso, trata-se de uma maneira de dessacralizar conceitos em
vigor. Henri Bergson o define como “uma espécie de trote social, sempre um tanto
416
Idem. p. 51.
417
Idem. p. 16.
231
humilhante para quem é objeto dele”
418
. Para Vladímir Propp, “todo riso deveria ser
dirigido para uma finalidade social”
419
. O cômico, portanto, tem um objetivo de ordem
prática. Em Reflexos do baile, afora as referências já assinaladas, o humor aparece no
capítulo 10 da terceira parte. Nessa seção, Rufino, embaixador seqüestrado pelo grupo
de guerrilheiros, é acometido por uma diarréia ininterrupta, juntamente com um
espasmo-temporal que o leva a pensar que está vivendo no exterior e passa, então, a se
dirigir aos seus seqüestradores em inglês, como se desse ordens aos próprios
empregados:
Seu Rufino entrou no banheiro social logo ali e o Bernardo ficou torcendo
a maçaneta e perguntando se tinha telefonado dentro do quartinho, mas
aí parou porque todo o mundo ouviu aquele passar-mal, aquele
estrondo, quer dizer, a gente tem que dar nome aos bois, não é, a
caganeira. Qualquer um, mesmo um Seu Bernardo, tinha que acreditar
na boa fé do patrão muito afiançada numa sinceridade de tripa que Deus
me livre, de se ouvir no sótão e no porão. Aí o patrão voltou para a sala
e chegou a encarar com o Vítor e levantar a mão, num procedimento de
quem agora ia falar mesmo, mas ai de mim coitado, deu a precisão dele
de novo e ninguém mais atrapalhou não e meu patrão obrou feito quem
solta num chofre só uma matilha inteira de cão criado na corrente. Só aí
que ele voltou para a sala efetivo, amarrando o sinto do roupão e já
falando, assim feito quem estava falando antes numa sala, saiu um
instante sem parar de falar e voltou falando ainda a mesma prática. Mas
aí, seu doutor, é que a gente não entende o que é que deu na moleira do
Seu Rufino porque ele estava falando com o Válter, encarando com o
jardineiro da casa dele mas só saía gringo da boca dele, língua que ele
fala com visita estrangeira
420
.
Rufino Mascarenhas é uma espécie de anti-herói na obra de Callado, visto que
expõe cruamente os pontos fracos da sociedade brasileira. Ele é, ainda, um Conselheiro
Aires incompleto, falho, já que não se completa totalmente como indivíduo pela
incapacidade de exercer a narração, embora tenha vasta cultura e experiência. Se forem
consideradas as muitas particularidades referentes a esse personagem, representante
da facção direita, pode-se dizer que o riso que esse trecho do romance suscita é um riso
de zombaria, uma vez que deixa exposto o ridículo, característico do período militar
brasileiro. Nesse sentido, conforme Bergson, o papel do riso é corrigir a rigidez,
418
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 72.
419
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
São Paulo: Ática, 1992. p. 8.
420
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 107.
232
convertendo-a em maleabilidade; é um castigo feito para humilhar, sendo que a
sociedade se vinga através dele
421
. A utilização de recursos cômicos, nesses termos,
tem em vista satirizar o poder, emprestando às ações um caráter de denúncia.
Em Reflexos do baile, os diversos elementos que estabelecem referência à
paródia, à sátira, ao trágico permitem que a obra se desdobre entre o cômico e o sério. A
paródia, a sátira e as estilizações de efeito cômico podem ser apresentados como os
procedimentos utilizados pelo autor com o intuito de questionar uma ordem de
pensamento assentada sobre uma fachada de aparência que tem subjacente um fundo
de procedência muitas vezes inconfiável e inconsistente. O riso de dor que várias
passagens do romance provocam alcança, dentre seus propósitos, uma relativização das
verdades, e ri aquele que percebe a contradição e a transgressão da norma. Portanto, o
livro de Callado, ao burlar um papel de reprodutor de estruturas sociais consagradas,
possibilita uma ordem totalmente diferente do mundo. Assim, coloca-se o foco crítico
encima do papel e do lugar do texto literário na sociedade.
3.4.3 A fragmentação em Reflexos do baile: descontinuidades e enlaces
Havia o mar atrás, algumas rochas. E baías e matas cheias de gatos
selvagens e clareiras com raízes arrancando da terra escuras
substâncias para transmutá-las através do tronco em flores
vermelhas, escancaradas feito feridas sangrentas na extremidade dos
galhos.
(Garopaba, mon amour, Caio Fernando Abreu)
Em Reflexos do baile, a fragmentação, enquanto estratégia de composição, se
articula com uma busca de uma possível representação da história do Brasil. Embora tal
recurso tenha sido aderido enquanto parte de um projeto estético adotado pelo
escritor
422
, a forma como o livro se apresenta diz do impacto que a Ditadura Militar
421
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 100.
422
Nas palavras do próprio Callado, “quanto às influências, do ponto de vista da técnica do romance, elas
são franco-inglesas. Eu li muito nas duas línguas (...) em Reflexos do baile há uma história, se vo
quiser, linear, mas eu acho que fragmentei aquela história por uma questão de estilo, que, na época,
estava me interessando muitíssimo”. In LEITE, Ligia C. Moraes. Antonio Callado: seleção de textos,
notas, estudos biográficos, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril Educação, 1982. p. 8 apud
CARTAPATTI KAIMOTI, Ana Paula Macedo. Ossos e espelhos mortos: uma leitura de Reflexos do baile
233
exerceu na consciência da época. O golpe de 1964 não apenas destruiu a regularidade
de uma ordem social e política, mas, no campo artístico, se apresentou como um
impacto contra a representação proposta nos moldes realistas, já que se encarregou de
desencadear uma sucessão de rupturas em todo um sistema.
Partindo da idéia de que a relação entre a obra e a realidade não é casual, mas
dialética, Tânia Pellegrini, apoiada numa posição benjaminiana sobre alegoria, afirma
que, através do caos, da fragmentação, da acumulação de elementos e da fusão de
gêneros, a literatura dos anos 70 conseguiu representar uma imagem da totalidade do
mundo referencial também descrita como caótica e estilhaçada. Nesse sentido, segundo
a autora, a significação alegórica teria um valor positivo, pois penetraria na forma dessa
literatura, determinando sua estrutura, por estar em sintonia com o momento histórico
423
.
Portanto, a força de disrupção do autoritarismo pós-64 teria sido responsável pela
mudança de curso de desenvolvimento linear de continuidade histórica, abalando seus
encadeamentos lógicos e seus pactos de compreensão.
O romance em questão, lançando mão da alegoria, denuncia, através de tal
recurso, o processo de gradual destruição a que a sociedade brasileira foi submetida
desde seu processo de colonização até o século XX e, dessa maneira, é mais coerente
do que se pretendesse criar uma imagem globalizante, através da totalização simbólica.
No capítulo 1 da primeira parte da obra, em uma carta que Rufino escreve ao filho, têm-
se vários elementos que apontam para a violência com a qual o processo histórico
nacional foi obrigado a conviver:
Esses legados de pátrias mentalmente violentas, que ainda mantêm nos
escudos as águias e os leões de outrora, mas descarnados e sarnentos,
hoje, nevrosados, mais capazes de dilacerar com as garras as próprias
entranhas que o peito dos adversários, eu os vi como se houvessem
sentado ao banquete ao som da lira de Homero e como se agora só
esperassem, nublados de fine e de bagaceira, que o Júlio Dantas lhes
tirasse a mesa. Ainda bem que Portugal foi o primeiro país da Europa a
apagar suas luzes. Pode, como fiz eu, retirar-se da pobre ceia sem ser
notado. Taking French leave, como dizem os ingleses. À l’anglaise,
como dizem os franceses
424
.
e Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado. 184f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) –
Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2007. p. 147.
423
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos, SP: EDUFSCar, 1996.
p. 27.
424
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 16.
234
Nessa passagem, há marcas que apontam para uma tradição de violência que se
articulou ao longo da história do Brasil. As referências às pátrias violentas, às águias e
[a]os leões, ao ato de dilacerar com as garras as próprias entranhas [e] o peito dos
adversários, dentre outras, remetem a cenas repletas de violência. Portugal, França e
Inglaterra seriam países que teriam contribuído para a projeção ou para a disseminação
de tal violência. Nesse nível de articulação, desvela-se o processo alegórico, cujo intuito
é renunciar a uma transparência do mundo ilusória e enganadora. Assim, em lugar de
forjar recomposições plenas de sentido, Reflexos do baile se reveste de fragmentos da
totalidade fissurada, para expressar os cortes e os sobressaltos da descontinuidade
histórica.
Partindo-se dessa base, o autoritarismo do período militar é um acontecimento
importante porque se configurou como uma experiência que se apresentou com tal
intensidade que aquela articulação linear de tempo foi abalada; com isso, a própria
estrutura do relato é atingida. A fragmentação presente na narrativa de Antonio Callado
surge enquanto resposta a um processo histórico traumático, incoerente e inverossímil,
fechado a uma narração totalizadora. Dito de outro modo: desarticulada e quebrada a
organicidade histórica, a textura da linguagem precisa ser reinventada, já que não sabe
como dar conta dos restos catastróficos.
Segundo Cartapatti Kaimoti, em Reflexos do baile, a leitura do fragmento se
desdobra em dois caminhos interpretativos: 1) aquele que o considera como estratégia
privilegiada de representação do vivido num contexto estruturalmente incoerente e brutal,
e 2) aquele em que essa incoerência é exposta como condição mesma de qualquer
tentativa de narração da história do Brasil, que deverá lidar necessariamente com um
objeto esquivo – o país – recheado de outras narrativas, versões e fatos que não se
encaixam tranqüilamente. Não obstante tal compatibilidade, chama a atenção a autora,
há um ponto fundamental que distingue essas leituras e que tem a ver com o vocábulo
representação.
Na primeira dessas leituras, o fragmento e a forma alegórica que o livro gera se
constituem como maneiras de representar, por meio do texto, aquela experiência
histórica; na segunda, tal experiência não é representada, mas vivida no espaço da
ficção. Nesse segundo caso, a fragmentação vai além da relação instrumental entre o
texto e o objeto estabelecida pelo termo representar e que pressupõe que esse objeto
ainda possa ser transposto inteiramente para o texto ficcional, como se a fragmentação
235
dissesse respeito a outro modo de abordar a mesma experiência. Assim, em relação à
primeira leitura, a narrativa, mesmo oposta àquela típica do romance realista lukácsiano,
seria possível de apreensão e de dominação
425
.
Seja como for, as rupturas produzidas no Brasil pós-64 afetaram não somente o
corpo social, mas também as representações da história. Nesse sentido, se uma primeira
base do discurso do poder autoritário consiste em assegurar a ordem como princípio
classificatório do discurso, Reflexos do baile, seja por meio de seu conteúdo seja por
meio da disposição de seus elementos, parece ir contra uma racionalidade construtiva
que se aloja na tentativa de disfarçar a arbitrariedade dos cortes de sua violência
destrutiva. Os choques e as rupturas que a narrativa apresenta reagem a uma idéia de
ordem imposta pelo regime militar, porque eles mesmos são manifestações suspeitas de
desordem e vão de encontro às supostas verdades fechadas.
O romance em questão é formado por cartas, ofícios, bilhetes e um diário de
autoria de vários personagens que fazem parte dos três grupos principais que constituem
a narrativa: os revolucionários, os embaixadores e os policiais, juntamente com outros
que ocupam cargos governamentais. O leitor tem acesso apenas aos destinatários das
mensagens, as quais, por sua vez, não seguem uma ordem cronológica linear em
relação aos acontecimentos que fazem parte do enredo. Com isso, portanto, fica ao
encargo do leitor reunir e associar as referências às situações históricas em meio aos
fragmentos que compõem a narrativa.
Ilustrando um exemplo: no capítulo 1 da primeira parte, alguém, em meio a um
clima apreensivo, escreve ao filho e fala do seqüestro do Embaixador da Alemanha.
Nesse ponto, é impossível identificar o remetente e o destinatário da carta. Não se sabe
inclusive quem é o Embaixador alemão e quando os acontecimentos estão ocorrendo.
Ao longo dessa primeira parte, entretanto, nas mensagens escritas por Dirceu, têm-se
algumas indicações de um suposto plano de desligamento da cidade quando da ocasião
de uma festa oferecida à rainha inglesa. Aos poucos, fica-se sabendo que Dirceu não
está sozinho; ele articula um grupo de revolucionários juntamente com Juliana, Amália e
Beto. Na segunda parte, entram em cena os policiais e acontece a repressão do grupo
de direita. Na terceira parte, têm-se indicações de prisões, torturas e mortes de pessoas
425
CARTAPATTI KAIMOTI, Ana Paula Macedo. Ossos e espelhos mortos: uma leitura de Reflexos do
baile e Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado. 184f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) –
Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2007. p. 150-151.
236
que reagiam à Ditadura Militar (é a soma e a associação de informações que levam a
crer que se trata desse momento histórico). Por fim, chega-se à conclusão de que o
seqüestro de embaixadores e a tentativa de rapto da rainha é uma afronta ao poder para
que se libertem os presos políticos.
De todo modo, estabelece-se uma dificuldade de leitura do romance, porque
existem várias linhas para se pensar os acontecimentos. Em meio a tais caminhos, há
aquele que radica em torno da Ditadura Militar, mas, para se chegar a esse ponto, é
preciso um certo esforço de compreensão por parte do leitor, porque as referências não
são absolutamente claras. Tudo isso gera um nível de desconfiança quanto à
capacidade de organização dos fatos, particularmente aqueles que se seguiram ao golpe
militar de 1964, nos quais passa a prevalecer a ausência de coesão e sentido, o que
caracteriza, inclusive, o próprio grupo revolucionário.
Um outro elemento que justifica a fragmentação de Reflexos do baile é a
supressão do narrador, algo que não é recorrente em obras anteriores do autor. Essa
suposta ausência de um narrador e a fragmentação contribuem na formação de uma
projeção da situação pela qual passara o Rio de Janeiro na década de 1970, quando
foram realizados seqüestros de vários embaixadores pelos movimentos de resistência à
ditadura ao mesmo tempo em que havia censura à imprensa. Nas palavras do próprio
Callado:
Reflexos do baile (...) segue exatamente a mesma proposta que eu me
fiz, de transformar em ficção, em romance, a história recente do Brasil
(...). A diferença que os críticos já notaram nesse livro é uma diferença
estilística, mas que se explica, no caso, pelo fato de que, desta vez, eu
me concentrei não numa visão em painel do Brasil; como em Quarup e
Bar Don Juan, mas naquele movimento altamente curioso e surrealista
da vida do Rio de Janeiro que foi o período de seqüestros de
embaixadores. Era realmente um período de censura muito estrita da
imprensa. De repente saíam manifestos dos próprios seqüestradores,
depois aquele silêncio de novo, até a nova operação. Isso foi no Rio de
Janeiro um momento tão sofisticado, tão curioso e tão fora do comum,
que, para retratá-lo em livro eu adotei uma técnica diferente, de suprimir
o mais possível o narrador
426
.
426
In LEITE, Ligia C. Moraes. Quando a pátria viaja: uma leitura dos romances de Antonio Callado. Cuba:
Casa de las Americas, 1983. p. 68. apud CARTAPATTI KAIMOTI, Ana Paula Macedo. Ossos e espelhos
mortos: uma leitura de Reflexos do baile e Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado. 184f. Tese
(Doutorado em Teoria da Literatura) – Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2007. p. 42.
237
A dificuldade de leitura do romance de Callado, devido à adesão de certas
particularidades formais, afasta-o de um público maior de leitores. O autor reconhece
que o conteúdo da obra é de difícil acesso, mas contra-argumenta alegando:
“complicada é a realidade brasileira, que foge a qualquer capacidade de análise. O meu
livro simplesmente reflete esse beco sem saída em que estamos e de que não sabemos
quando vamos sair”
427
. Por esse comentário, observa-se uma correspondência dialética
entre texto e contexto, sendo que o primeiro diz do segundo, e este dita as regras para
aquele outro.
Em relação ao contexto, ele se aloja em torno da noção de ausência de coesão e
de sentido. Assim, a forma de Reflexos do baile se constitui como conseqüência de
uma desconfiança quanto à capacidade de organização dos acontecimentos, em
particular daqueles que se seguiram ao golpe militar de 1964. A fragmentação, nesse
sentido, é também a busca de uma resposta para o caótico do momento. Não é a
resposta propriamente dita, pois, se assim o fosse, seria algo reinante, e o que se quer
registrar aqui é a impossibilidade de alcance de uma resposta acabada.
Assim, se um dos objetivos do romance consiste em fornecer ao leitor uma
representação ou um retrato do Brasil da época, ele o faz não a partir de uma narração
fechada e totalizadora, tal como nos moldes lukácsianos, mas por meio do fragmento.
Essa técnica parece ser adequada pelos seguintes motivos: 1) o contexto é incoerente e
não passível de apreensão, 2) a época é marcada pela violência extrema, 3) as
condições de narração da história do Brasil não são de fácil acesso. Tudo isso forja a
presença de elementos na narrativa que se apresentam destituídos de coesão interna,
ou seja, a forma é fragmentária para dar conta de uma realidade que estabelece ligações
com as particularidades de um período histórico.
Com isso, se existem antagonismos na conjuntura histórica do Brasil pós-64 e se
há uma preocupação em o artista captar tais tensões, tem-se, conseqüentemente, uma
dificuldade de expressão, sendo os conflitos sociais motivos de transtorno na elaboração
do fenômeno estético. Partindo de uma concepção adorniana, José Guilherme Merquior
afirma que a obra de arte, nas condições mencionadas, não deve apresentar um estilo
harmonioso, porque “a harmonia seria mentirosa”. Ainda segundo o autor, “[a] essência
427
Idem. Ibidem.
238
do estilo é o fragmento rebelde: o pedaço irredutível onde a hipócrita homogeneidade da
forma, cúmplice da ordem social, é denunciada pelo anti-conformismo da arte”
428
.
Em Reflexos do baile, a narração fragmentada distribui o peso dos
acontecimentos entre todos os personagens, expondo suas contradições e conflitos,
enredando-os numa trajetória marcada pela violência, na qual está incluída a trajetória
do próprio país. É o que pode ser observado no capítulo 10 da primeira parte do livro
numa carta endereçada a Dirceu:
a nós na História do país cabe sempre a tarefa suja de remover a
porcaria dos fanáticos, contemplar águas túrbidas de hepatite sem
estoque de cloro e de sulfato de alumínio, racionar, com pejo e ódio, a
luz e a força entre mortos e órfãos, fechar a Rio-São Paulo, deixar o Rio
sem cereais, sem leite, a boca cheia de merda porque o Governador
mandou desligar as elevatórias de esgotos: como se o inimigo tivesse
escalado a fronteira na calada da noite tormentosa
429
.
Nessa passagem do livro, estabelece-se um conflito entre um personagem,
supostamente pertencente à esquerda, e a própria história. Tal embate entre um e outro
é tenso, e isso fica evidente na própria seleção lexical, com vocábulos e expressões de
teor semântico negativo: tarefa suja, porcaria, águas túrbidas, hepatite, mortos, boca
cheia de merda, esgoto, noite tormentosa. Com isso, observa-se que existe um esforço
em levar a história do Brasil para a ficção e, nesse processo, é demarcada uma certa
visão da maneira como a história vem sendo construída e avaliada. O trecho transcrito
carece de atributos positivos acerca do país e isso se traduz numa forma de denúncia do
atraso e do abuso a que a população é submetida.
O fragmento reproduzido elabora uma imagem bastante importante: a calada da
noite tormentosa. Essa expressão aponta para uma avaliação da perspectiva da história
partindo-se do ponto de vista dos excluídos. O vocábulo calada assinala a passagem
entre o dia e a noite, antecipando uma idéia de finitude. A palavra noite, por si, já é
portadora de um sentido negativo, vinculando-se ao negro, ao sombrio, ao triste. O
adjetivo tormentosa parece ser o mais denso deles, porque seu significado remete à
difícil, embaraçoso, sem saída. Com isso, portanto, tem-se uma perspectiva negativa da
428
MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1969. p. 53.
429
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 21.
239
história, já que ela é concebida pelo olhar de um sujeito melancólico. Aliás, considerando
a decadência, a ruína e a desordem da história, Walter Benjamin vê a melancolia como a
constatação da impossibilidade de se encontrar uma saída, uma vez que a desarmonia
marca tanto a história quanto o sujeito
430
.
Partindo da idéia de que Reflexos do baile radica em torno de fragmentos, pode-
se dizer que o livro apresenta uma visão da história constituída de vazios. Dito em outros
termos, a obra é formada por capítulos que, por não serem dotados de sentido completo,
requerem preenchimento, principalmente quando um é associado a outro. Em tais
associações, formam-se lacunas que, quando preenchidas, traduzem o perfil catastrófico
da constituição social brasileira. Essa particularidade pode ser observada numa carta
que Carvalhaes escreve ao filho:
Meu filho: A alta autoridade que me atraiu, mediante honroso convite, ao
Deuxième Bureau de Brasília, mal nos apertamos as mãos declarou-me
sem dizer água vai que pode considerar-se executada a ampliação das
obras do Ipiranga, mas que “é preciso não desperdiçar os ossos”. Deve
ter visto em minha cara a mal disfarçada perplexidade com que eu
procurava harmonizar a noção de desperdício, esbanjamento, com o
conceito de ossada, de uma pitada, ainda que régia, de pó, lacrada, a
pregos, dobradiças e quinas de prata num esquife de honrado pinho
português. Mas vai cuidando de apagar dos lábios o precipitado sorriso
que adivinho daqui. “Ainda não se completaram a visão e a missão de D.
Pedro”, disse-me, “que nos há de ajudar a implantar o império e a
cristandade.” Não soubesse eu de algumas coisas que sei, e que
confidenciei, em desvanecida retribuição, a quem me demonstrava
incomum confiança, e decerto não seguiria, com tamanha clareza, a
linha do seu pensamento. “Só há um combate sério no país, o travado
entre nós e as águas, entre nós e Troglodítia, nação dos fanáticos, filhos
das águas que faltam ou que sobram. Contra as águas anárquicas do
Brasil e os Quasímodos, os calungas de lama que essas águas geram,
formulamos o Plano 1877, desdobrado em vários Módulos terminados
em 7. Nosso orgulho presente é o Módulo 1967, espécie de perfeita
recriação teórica da enchente que pôs de joelhos, antes de fazê-los
tombar de bruços no enxurro, edifícios inteiros do Rio. Nossa Capital
cultural, a Nova York do Sul, ficou pálida, exangue, uma única usina
pingando-lhe feito soro nas veias um fio miserável de luz e força. Jamais
toleraremos de novo esta humilhação, mesmo porque, do ventre
pulverulento ou viscoso de secas e enchentes é que é parido e reparido
o Antônio Conselheiro. Sabe quem é, não?” Felizmente sabia porque,
sem aguardar resposta, o Psicólogo e Estratego já enchia o peito vasto e
cavo como um mergulhador a preparar o salto na ponta da rocha. À
medida que lhe saia o ar, falou com um desdém concentrado na suspeita
de que há fanáticos em ação na zona dos reservatórios do Rio.
430
Ver BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 161ss.
240
“Estamos à beira de cauterizar o tumor, de reduzir o bando, se existe,
aos ossos dos seus componentes. Pois veja bem, os ossos do seu rei,
do nosso Imperador, devem tomar conta dos jornais quando tal ocorrer.
Não permitiremos mais, em nossa História, matutos dementes
transformados, pelos meios de comunicação, em gênios militares e
líderes.” Aqui parou, ar distante, rêveur. “É bem verdade que quem
operou o milagre não foi um jornalista qualquer. Foi um homem de
cultura muito especializada. Um desertor, se poderia dizer”
431
.
O que merece ser anotado desse fragmento é a referência aos ossos, que, aliás,
aparecem em outros capítulos do romance, como, por exemplo, no 4.º, 11.º e 17.º da
primeira parte, e no 23.º e 44.º da segunda parte. Em Reflexos do baile, os ossos ora
indicam os restos de morte daquela parcela oprimida, ora remetem aos vestígios da
história oficial, tal como fica subentendido na passagem transcrita acima. Nesse capítulo,
os ossos de D. Pedro I são motivo para que os meios de comunicação de massa voltem
a sua atenção para eles, encobrindo uma outra versão da história. O que parece ser
lacunar, nesse caso, é justamente esse outro lado da história, que não diz da forma
como os massacres, extermínios e prisões no período pós-64 aconteceram ou atingiram
a população. Entretanto, embora não o diga, ao menos, sugere.
É nesse meio caminho entre não dizer, mas sugerir, que a fragmentação
desempenha uma de suas funções, qual seja, a de indicar uma leitura da história a
contrapelo. O romance focaliza a história oficial, mas também orienta para uma outra
interpretação da trajetória do Brasil. Assim, a presença do fragmento na escrita de
Callado corresponde às diferentes maneiras como ele ensina diversas perspectivas
sobre a possibilidade e a dificuldade de ordenação dessa história. Em outras palavras, a
obra em questão, no seu modo de narrar, não compactua com as premissas da
historiografia progressista nem com a historiografia burguesa, já que não o fazem de
forma adequada. Isso porque, de acordo com Walter Benjamin, enquanto a primeira
sugere uma idéia de progresso histórico que falseia a percepção do fascismo e se torna
impotente para impedir o avanço desse movimento, a segunda procura revitalizar o
passado através de uma identificação do historiador com seu objeto, sendo que esse
historiador não questiona sua posição nem o modo como a história foi narrada ou como
ela se realizou
432
.
431
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 30-31.
432
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 223.
241
Na narrativa, tais questões se desdobram no seguinte sentido. Os ossos, como
vestígios da memória, delineiam duas formas de representação da história que terminam
unidas, ironicamente, pela violência com a qual uma tenta se sobrepor à outra. Entre os
ossos de D. Pedro I (disseminados na presença portuguesa de Carvalhaes e na família
Mascarenhas) e os ossos dos opositores do regime (mortos pela repressão ditatorial), há
um percurso no qual a história oficial, da qual os primeiros são representantes, busca
sistematicamente eliminar os vestígios da segunda. Essa forma de conceber a história
deve ser rompida pelo materialismo histórico, que, ao contrário do historicismo
(historiografia progressista e burguesa), deve ter empatia pelos vencidos e estabelecer
um processo de transmissão da história no sentido de não mascarar o que há de
barbárie.
Nessa perspectiva, a fragmentação formal de Reflexos do baile relaciona-se com
um movimento de inquietação diante de experiências de desumanização e sofrimento
oriundas do contexto social, e essa inquietação assinala um olhar melancólico que é
resultado do desconforto vivenciado por muitos personagens frente a situações de
opressão, como se observa numa carta escrita por Juliana a Beto:
36
Beto: Me lembro do nosso último encontro e vou agora identificando, nos
retalhos que me chegam sobre o que você pretende fazer, os pedaços
de alguma carta rasgada e atirada ao vento, suja de lodo e de sangue,
molhada do suor agoniado de você entre dois pesadelos, no meio de
baleados e afogados, perdido nos meus braços feito um menino, os
olhos embaciados dos mortos olhando você feito olhos de peixe do
fundo do açude
433
.
É o conjunto de imagens disparatadas que conferem a essa passagem um perfil
fragmentário. Além disso, a seleção semântica revela o impacto traumático que atingiu
os personagens do livro. Nesse caso, a falta de ligação entre os vários elementos
apresentados – uma carta rasgada e atirada ao vento, pesadelo, baleados, afogados e
mortos – se traduz na própria desarticulação da linearidade temporal que alcançou a
vítima do trauma e, em particular, o melancólico. Aqui, partindo-se de uma leitura
benjaminiana, observa-se que há vestígios da flânérie, da deambulação de uma escrita
que pula de um tema a outro, estabelecendo vínculos influenciados pela visão
433
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 39.
242
surrealista. Seja como for, o disperso, o fragmentário e o detalhe remetem uns aos
outros e ao uno, ao recolhimento que os amarra para novas e sucessivas dilatações de
sentido.
A questão do tempo é muito importante no romance em apreciação. É um tempo
que ata inúmeras pontas da história, desde a colonização do Brasil no século XVI à
segunda metade do século XX, fazendo alusões, ainda, a outras épocas, como as que
ficam sugeridas nas referências à Santa Ceia, a Ulisses, a Homero (Cap. I, Parte I) ou
mesmo à antiga Grécia (Cap. 10, Parte I). Tais indicações às imagens do tempo e da
história não se prestam a uma saga heróica e ufana; antes, estão ameaçadas pela
tempestade, pela finitude, pela corrosão, pela melancolia, pelo progresso (e pela
inconclusão), tornando-se afinadas com o anjo de Paul Klee que Benjamin caracteriza de
imagem alada. Assim, a reflexão de Benjamin aponta para a impotência de um mundo
premido pela violência e o choque de uma barbárie que a soberania e/ou o progresso
dramaticamente implicam: a face hipocrática e contorcida da humanidade
434
.
Ainda em relação a Benjamin, o autor desenvolve, ao longo de seus textos, uma
conceituação da história como interrupção e cesura. Tais noções desempenhariam uma
dupla função: através delas, ele critica uma concepção trivial da relação histórica – a da
causalidade determinista –; e, ao mesmo tempo, propõe a intensidade de um encontro
súbito entre dois acontecimentos que, colhidos bruscamente, se cristalizam numa
significação inédita, reunindo tempos cronologicamente distantes que, examinados em
sua diferença, seriam também reveladores de uma inserção histórica distinta.
Em Reflexos do baile, tanto a interrupção quanto a cesura são possíveis graças
à fragmentação da narrativa. A causalidade determinista fica abalada e os episódios
históricos são como que colocados lado a lado, reunidos, permitindo, por fim, concluir
que “’o estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”
435
. Esse tipo de
interpretação, em que as descontinuidades propiciam novos enlaces da história, exige a
participação ativa do leitor, o qual passa a atribuir outro significado à cadeia de
acontecimentos.
434
Cf. interpretação proposta por HELENA, Lucia. Um sultão no reino das coisas. Alea: estudos neolatinos,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, n. 1, v. 5, p. 13-27, jul., 2003. p. 22.
435
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
243
A fragmentação do texto em questão não se resume, como acontece muitas
vezes, a um conjunto de idéias aparentemente confusas num capítulo ou noutro. Ela se
faz presente na relação entre um capítulo e outro. O conteúdo expresso em um
segmento não se relaciona harmoniosamente com um segundo, nem este com um
terceiro, e assim sucessivamente. Cartas e telegramas são enviados, e o que se sabe é
para quem eles foram mandados; poucas vezes se é capaz de identificar o remetente.
Tudo isso propicia um entrecruzamento de fatos e vozes que gera a impossibilidade de
se encontrar uma unidade para a narrativa. Assim, tomado em seu conjunto, o livro de
Callado demonstra certo desprezo pelas regras estruturais do romance, omitindo idéias
claras, suprimindo as relações de causa e efeito e, ainda, abalando a linearidade
temporal.
Tais características, em Reflexos do baile, quebram o efeito de “distância
estética” realista
436
, ou seja, aquela atitude simplesmente contemplativa do realismo
tradicional perdeu o sentido, porque a ameaça de uma catástrofe iminente não permite a
mais ninguém a simples observação desinteressada, não permite que mais ninguém se
diga inocente. Não é por acaso, então, que o referido romance traz marcas de seu
momento histórico, de modo que os elementos externos transformam-se em elementos
internos, os quais, dialeticamente, como texto lido, serão parte de elementos externos,
constituindo “focos de resistência”. Também não é por acaso a incidência de um
narrador problemático, que aparece nas notas de rodapé, disperso, feito voz ausente,
que da própria ausência faz a sua presença.
Reflexos do baile, como exemplo de narrativa de cunho político da década de
70, estabelece uma relação entre a realidade e o discurso, sendo que a experiência
histórica e social se incorpora como elemento diretamente formador, que permite definir
o que é específico no Brasil num determinado intervalo de tempo. Assim, a fragmentação
do livro é uma resposta a um contexto autoritário, mas é também uma resposta ao
discurso homogeneizador e reificante oriundo de uma sociedade que se caracteriza pela
estandardização. Nessa linha de raciocínio, são importantes as reflexões de Theodor
Adorno.
Para o crítico alemão, a lógica da arte está alojada no procedimento estético: “[a]
lógica das obras de arte deriva da lógica formal, mas não se identifica com ela: eis o que
436
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Walter et al.
Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 270.
244
se revela no fato de as obras – e a arte aproxima-se assim do pensamento dialético –
suspenderem a própria logicidade e poderem, no fim, fazer desta suspensão a sua idéia;
para aí aponta o momento de disrupção em toda a arte moderna”
437
. Suspender a
logicidade é romper com o modo clássico da narrativa, adotando um estilo que esteja de
acordo com a experiência a ser representada. A ruptura com as convenções de
linguagem e com a estrutura narrativa é uma condição para uma autêntica
problematização da experiência social. Esta, por sua vez, conduz à fratura e ao
fragmento da forma literária, os quais se opõem a uma ordem social conformista e
estandardizada, inviabilizando a noção de que a totalidade possa ser reverenciada, pois
o que se passa a ter são estilhaços de imagens.
Nesse sentido, o desejo de Reflexos do baile de expressar a perplexidade que o
real oferecia se depara com a própria dificuldade de tal narrativa dar conta da expressão
desse real. Isso não é por acaso: o livro focaliza o regime militar, e a fragmentação
traduz a complexidade de se apropriar de modo linear da experiência vivida naquele
momento. Como conseqüência disso, o romance ultrapassa as amarras do projeto de
ficção realista e se lança como texto em aberto, no qual o compromisso com a realidade
cede lugar ao compromisso com a literatura.
Além disso, ao optar por fragmentos em tensão, a obra de Callado abole o
narrador único, de modo que a escrita gere uma multiplicidade de perspectivas. O autor
implícito – presente nas notas de rodapé as quais dão vazão à voz do tradutor – expõe
os fragmentos (bilhetes, cartas, diários e telegramas, isolados entre si, marcados pela
violência, pela arbitrariedade, pelos ossos dos assassinatos escondidos atrás dos ossos
da história oficial), mas não os ordena sistematicamente, e o que resta são peças de um
jogo de montar.
Esse jogo de montagem esconde um enigma de decifração e de entendimento,
enigma esse que caracteriza a Ditadura Militar nos anos 60, 70 e 80. Essa falta de
conhecimento do que de fato esteve envolvido durante o processo de desdobramento de
tal evento ganha proporções idênticas na leitura do romance em apreciação. Ele é
marcado por um inacabamento constitutivo, cuja intenção não é, pois, atribuir um sentido
único ou fechado para a história, mas dramatizar, a contrapelo, o quanto esse sentido
resiste em ser alcançado. Assim, portanto, o texto se fragmenta e multiplica sua
437
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. p. 159.
245
perspectiva, propondo formas de narrar uma história para a qual não há um sentido
único.
246
3.5 Memória, melancolia e fragmentação em Quatro-olhos, de
Renato Pompeu
Onde meter a máquina dos meus ideais naquele mundo de
brutalidade, que me intimidava com os obscuros detalhes e as
perspectivas informes, escapando à investigação da minha
inexperiência?
(O ateneu, Raul Pompéia)
3.5.1 O apagamento da história como estratégia de controle social: uma
leitura de Quatro-olhos
Organizar uma campanha muito hábil, sutilíssima, no sentido de
apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da
memória de seus habitantes. Sugiro (aqui entre nós) um nome para
esse movimento: Operação Borracha.
(Incidente em Antares, Erico Verissimo)
Quatro-olhos foi publicado em 1976, um ano depois da divulgação da Política
Nacional de Cultura do Governo Ernesto Geisel, a qual, na prática, significou a
manutenção da censura prévia e de uma disposição repressiva ainda mais contundente
em relação aos primeiros tempos do regime militar. A obra de Renato Pompeu, não
obstante manifestasse um posicionamento crítico contra o sistema político da época, ao
que parece, burlou essa vigilância. O romance, aliás, é um dos mais instigantes da
época, embora provavelmente não seja dos mais prestigiados pelo público leitor.
O livro – que aborda a repressão, mesclando lembranças do passado, ficção e
estilo de crônica – circunscreve-se na condição de romance memorialista e pode ser
classificado como “literatura do trauma”
438
. Esse último preceito se justifica uma vez que
o texto em apreciação manifesta indícios tais como a destruição do sujeito dentro do
sistema autoritário, assentando-se, ainda, numa construção literária pautada na
fragmentação, no uso de uma linguagem de caráter anti-realista, no questionamento da
narrativa e na luta contra o esquecimento.
438
Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura do trauma, Cult, n. 23, p. 40-47, jun., 1999.
247
No caso da literatura brasileira produzida nos anos 1970, talvez um dos
romances que melhor põe em evidência a questão do esquecimento e do apagamento
da memória seja Quatro-olhos. A fábula da obra radica em torno dos seguintes
acontecimentos: o protagonista – que, a rigor, dá nome ao texto – tem o apartamento
invadido pela polícia que tentava capturar sua mulher, professora universitária e
militante revolucionária, que, no entanto, consegue fugir. A polícia, na ocasião, vasculha
a residência e confisca um livro, que ele disciplinadamente havia escrito. Como a mulher
e o livro eram seus únicos elos com a realidade e como ele fora proibido de continuar a
escrever – algo que lhe proporcionava genuíno prazer e lhe servia de aconchegante
refúgio tanto contra o trabalho rotineiro e brutal como contra o desconforto
cotidianamente apresentado –, desenvolve completo alheamento diante da realidade,
sendo internado numa clínica de saúde mental. Ao se reabilitar, busca reconstituir o
trabalho original, entretanto, conclui que determinada proeza seria impossível, pois, ao
fazê-lo, percebe que não se lembra dos fatos nele contidos.
Renato Franco tece comentários a respeito da literatura produzida no Brasil nos
anos 70 e confere certo destaque ao romance em apreciação, pautando-se,
basicamente, na questão relativa ao esquecimento. Em suas considerações, o ensaísta
averigua que o conteúdo do esquecimento problematiza a própria concepção de
identidade do protagonista, já que esse último, então dilacerado, não consegue unir o
passado ao presente. Na visão do autor, isso concorre para que a narração comporte
duplo sentido: “a luta pela reconstituição do livro original é tanto a luta para superar o
esquecimento – para recuperar a matéria socialmente recalcada – como para reconstruir
sua própria história e, nessa medida, sua identidade”
439
. Ainda de acordo com o crítico,
“o alvo secreto do narrador não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a
experiência nele eventualmente contidos, mas o de comunicar que algo de fundamental
foi esquecido”
440
.
Nesse sentido, os referidos aspectos permitem que se elabore a idéia de que
existe um confronto estabelecido entre memória e esquecimento colocado por diversos
atores sociais e políticos nos países de tradição autoritária, como é o caso do Brasil,
que, no passado recente, vivenciou uma experiência limite associada ao impacto da
Ditadura Militar. Assim, no caso de Quatro-olhos, a narrativa ganha dimensão de
439
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.).
História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 370.
440
Idem. p. 371.
248
denúncia, o que a transforma num modo de criticar a realidade política daquela ocasião.
Não só isso, ela serve para manter as esperanças de que um dia a vida não seja assim.
A narração, com isso, aspira à felicidade: “[m]e pus a escrever para criar um mundo
correto em meio ao mundo falso em que vivia”
441
.
Em relação à memória, no plano individual, através de critérios diversos, ela tem
a capacidade de selecionar, organizar e sistematizar lembranças daquilo que foi
vivenciado. Isso equivale a dizer que não existe memória sem esquecimento, uma vez
que a ação subjetiva de lembrar o passado acaba sendo tão rotineira no cotidiano de
cada um que se perde a noção da necessidade de aferir a veracidade dessa
rememoração. As constatações de Friedrich Nietzsche ratificam essa idéia. Segundo o
filósofo, “é totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”
442
.
O problema de rememoração do passado, em Quatro-olhos, é um atributo
individual, ou seja, do próprio protagonista. No entanto, segundo Enrique Serra Padrós,
mesmo quando envolvem experiências pessoais, as lembranças resultam da interação
com outros indivíduos, contribuindo, assim, para que a memória seja fator fundamental
tanto de identidade e de suporte dos sujeitos coletivos quanto na preservação da
experiência histórica acumulada. Desse modo, sendo, pois, uma construção, ela é
perpassada, veladamente, por mediações que expressam relações de poder que
hierarquizam – segundo os interesses dominantes – aspectos de classe, políticos,
culturais. O autor comenta, ainda, que “[i]sto não é produto do acaso; é sim, resultado
da relação e interação entre os diversos atores históricos em um determinado momento
conjuntural”
443
.
No instante em que Quatro-olhos inicia o seu relato, ele procura fornecer dados
sobre os originais. Nessa ocasião, ele alerta para os problemas de recuperação do
passado bem como exclui informações sobre o contexto histórico:
Perdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me
convém deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo
apenas memória vaga; de que havia, indubitavelmente, um tema, ou
441
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega. 1976. p. 127.
442
Apud SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das
Catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 60.
443
PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras: literatura e
autoritarismo, Santa Maria, n. 22, p. 79-95, jan./jun., 2001. p. 81.
249
vários temas, e mesmo um ou outro personagem, mas não consigo
reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase
444
.
A inconveniência em explicitar as circunstâncias e as condições de produção do
livro original elaborado por Quatro-olhos sugere que a censura sobre a memória em
regimes de exceção é “indutora de um ‘esquecimento organizado’”
445
. O personagem –
que é escritor e, portanto, sob a ótica da classe dirigente da época, um sujeito
subversivo ao sistema – é incapaz de conferir credibilidade acerca dos acontecimentos
vividos. O extravio do trabalho, por parte da classe dirigente, implica pensar a tentativa
de apagamento do passado agônico, o que contribui para que a elite mantenha o poder
sob o seu domínio. Isso gera a premissa, nesse caso, de que a elite é determinante do
que pode ser lembrado e do que deve ser esquecido.
Com base nessas ocorrências, verifica-se que a discussão acerca da memória
está centrada numa correspondência dialética posta entre as circunstâncias passadas e
presentes. A memória, nesse caso, consistiria, pois, num amálgama cuja função seria
de conexão, articulação e relacionamento dos elementos temporais, espaciais,
identitários e históricos. Acontece, no entanto, que a história não é neutra; ela é, nos
termos de Hannah Arendt, um constructo ideológico
446
, o que leva a concluir, então, que
não existe neutralidade mesmo nos registros da memória.
Em seu estudo sobre o conceito da história, que é inclusive uma teoria da
memória, Walter Benjamin investe na necessidade da constante busca pela
rememoração do passado. Dentre os diversos pontos aí arrolados, o filósofo tece
comentários a respeito do historicismo. Segundo o autor, este “culmina legitimamente na
história universal”, que, por sua vez, “não tem qualquer armação teórica”, e o “[s]eu
procedimento é aditivo”
447
. De acordo com esses pressupostos, o historicismo, sob a
aparência de uma pesquisa objetiva, “acaba por mascarar a luta de classes e por contar
a história dos vencedores”
448
, culminando, assim, no apagamento da memória dos
444
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 15.
445
PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras: literatura e
autoritarismo, Santa Maria, n. 22, p. 79-95, jan./jun., 2001. p. 89.
446
Cf. ARENDT, Hannah. Da violência. In: ____. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.
108.
447
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 231.
448
Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da história.
São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 62.
250
excluídos, isto é, dos esquecidos da memória oficial. Logo, o desvendamento do
passado é importante porquanto visa a dessacralizar conceitos e atomizar discursos
com o fito de colocar em xeque a tradição dos poderosos.
O aludido fragmento de Quatro-olhos chama a atenção para a incapacidade de
o protagonista reproduzir determinados acontecimentos bem como o de fazer referência
a certas circunstâncias de produção da obra. Isso concorre para que episódios
históricos se percam. Deste modo, as tragédias históricas extintas em decorrência das
táticas de apagamento da memória contribuem para que os vínculos entre o passado e
o presente sejam destruídos. Segundo Benjamin, existe uma relação entre os
acontecimentos atuais e os episódios pretéritos, e a ruptura desse vínculo é
determinante na consolidação de ideologias que se agregam em prol dos interesses da
elite
449
. Por isso, o amadurecimento dessa consciência é importante porquanto abre à
humanidade um leque de indagações a respeito de seu próprio estar-no-mundo, de seus
valores e, acima de tudo, de suas perspectivas. A tentativa de se manterem vivas as
lembranças do passado – tal como se processa em Quatro-olhos – ameaça a ordem
autoritariamente imposta pelos poderosos, pois é através desse resgate histórico que se
tornam explícitas suas falhas e suas inconsistências.
Os argumentos de Jacques Le Goff, aliás, apontam para essa mesma linha de
raciocínio. O autor salienta que a possibilidade de os indivíduos excluídos da história
terem acesso à memória e, por sua vez, ao passado trágico, é um fator alarmante e
preocupante das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas. Le Goff enfatiza o seu posicionamento crítico ressaltando que os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores dos mecanismos de
manipulação da memória coletiva
450
. Essas considerações são pertinentes na
interpretação de Quatro-olhos. O narrador-protagonista se esforça para rememorar o
passado, mas se depara com a insegurança na reconstituição dos fatos:
Meu amigo funileiro, então ainda estava por perto, com a mulher dele,
porquanto creio até que já tinha filhos, tempo em que eu estava
desesperado atrás dos originais desaparecidos e me recordo que então
sabia de cor algumas frases, como hoje esqueci todas. Uma delas dizia
assim: “Por aquela tarde estava marcada uma grande repressão no
449
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 223.
450
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Irene Ferreira et al. Campinas: Unicamp, 1992. p. 429.
251
centro da cidade. O rádio dizia isso a cada meia hora, entre anúncios
do anil Colman e propagandas do corante Guarany. (...) Segundo as
instruções, repetidas aliás de escola em escola, de lar em lar e nas
bulas de remédio, não se poderia conversar com estranhos na rua, nem
com os vizinhos nos bancos de ônibus e junto aos pontos devia haver
filas; também haveria necessidade de, para adquirir gêneros
alimentícios nos armazéns, doces em carrinhos de mão, cuidados no
médico, haveria necessidade de dar algo em troca, de preferência
notas do Tesouro Nacional. (...) Segundo os mais velhos no bairro,
essa situação absurda perdurava já há algum tempo. Tais boatos,
porém, não merecem crédito”.
Hoje não me lembro mais de ter escrito essas palavras. Mas
aquela manhã eu sabia que havia perdido, pois alguém me avisara de
que as lera em folhas espalhadas num ônibus de alguma linha que
passasse no largo de Pinheiros; era o meu livro, jogado no último
banco, um desses bancos de cinco lugares, e o livro estava lá, pelo
menos a pessoa me garantiu. (...) Embora eu francamente não me
recordasse de nada disso, convenci-me de que era o meu livro, mesmo
porque essa pessoa me tinha em alta conta
451
.
No trecho em apreciação, Quatro-olhos tece comentários acerca das
circunstâncias históricas em curso na época de publicação do livro. Nesse particular, ele
sugere cenas como a censura, a repressão e o autoritarismo – todas elas infligidas à
sociedade civil. No entanto, a lembrança e a credibilidade de ocorrência dos referidos
fatos estão ameaçadas: o narrador-protagonista, sem acesso direto às informações em
razão da política de esquecimento a que foi subjugado, ignora a veracidade e mesmo a
efetividade dos acontecimentos outrora vivenciados. Por isso mesmo, a consciência de
que o livro é seu se dá em decorrência de um segundo sujeito que teria grande apreço
por ele.
Essas observações ratificam a idéia de que o percurso da história, em inúmeros
casos, é afeito a servir às intenções ideologicamente tracejadas pela elite. As
estratégias de controle social articuladas por essa última implicam a adoção de métodos
que suprimem da memória coletiva o passado violento e autoritário. Assim, no aludido
fragmento, é enfatizada a destruição do livro redigido por Quatro-olhos, ou seja, são
aniquilados os fatos pretéritos e, com isso, a sua identidade, de modo que o
personagem torne-se ou permaneça mutilado no tempo, sem recursos que possibilitem
uma releitura da história com vistas aos seus interesses de libertação e aos interesses
de libertação das pessoas com as quais mantêm relação.
451
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 21-22.
252
Tzvetan Todorov, em conformidade com essa proposta de reflexão, frisa que os
regimes totalitários emergentes no século XX – mais do que em qualquer outro período
da história – agiram com rigor no sentido de suprimir da memória coletiva aquelas
marcas catastróficas que traçaram os contornos dos povos subjugados à violência
constitutiva. Do ponto de vista do autor, a verdade procurou adequar-se a um conceito
de realidade forjada pelos repressores
452
.
Alexander e Margarete Mitscherlich desenvolvem argumentos similares a
Todorov. Os autores, centrados basicamente no contexto histórico alemão do século
XX, procuram conhecer e compreender alguns fundamentos da política do país,
recorrendo, para tanto, a uma investigação psicológica dos indivíduos. A pesquisa
proposta por eles se dá nessa direção, porque acreditam que a organização política do
referido país determina, por meios diversos, as formas de comportamento dos cidadãos
de modo que esses sujeitos passam a atender, de maneira inconsciente, aos ideais do
Estado
453
.
Partindo dessa problemática, o livro discute várias questões e, nele, chamam a
atenção passagens em que os autores apontam para a idéia de que as estratégias de
apagamento do passado ou de ocultação de decisões políticas seriam determinantes
para a ocorrência de inúmeros acontecimentos que configuram a realidade atual.
Alexander e Margarete Mitscherlich alegam que existe uma carente difusão dos fatos
históricos e políticos na consciência da vida pública. Eles comentam, por exemplo, que
os dirigentes tratam os crimes nazistas como um conflito bélico sem importância
454
ou
que eles excluem a classe civil de importantes decisões políticas
455
. Tudo isso, na visão
dos críticos, restringiria a liberdade de pensamento dos indivíduos de modo que teriam a
sua opinião crítica e a sua autoconfiança sucumbidas
456
.
Segundo se verifica nos apontamentos precedentes, os regimes autoritários têm
a capacidade de estabelecer limites na autoconsciência da sociedade. A falta de
reflexão, conforme indicam os aludidos estudiosos, conduz ao positivismo da
interpretação, latente na pesquisa histórica burguesa, a qual, segundo Jeanne Marie
452
TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós Asterisco*, 2000. p. 12.
453
MITSCHERLICH, Alexander; MITSCHERLICH, Margarete. Fundamentos del comportamiento
colectivo: la incapacidad de sentir duelo. Versão espanhola de André Sánchez Pascual. Bueno Aires:
Alianza, 1973.
454
Idem. p. 16.
455
Idem. p. 20.
456
Idem. p. 10.
253
Gagnebin, não questiona nem sua posição, nem a maneira pela qual a história foi
contada e transmitida, e ainda menos, a maneira pela qual ela se realizou
457
. Portanto,
conforme alega a autora, “[e]screver a história dos vencidos exige a aquisição de uma
memória que não consta nos livros da história oficial”
458
.
Essa falta de reflexão crítica sobre a maneira de se conceber a história universal
explicaria também o conformismo dos grupos reprimidos, uma vez que ficaria suprimida
a possibilidade de questionamento da história que fracassou, já que ela não mais
constitui objeto de pesquisa. Isso abre margem para que a classe vencedora propague
as suas ideologias de forma incontestável, inviabilizando, com isso, qualquer
manifestação antagônica a seus interesses. Assim, segundo Benjamin, é preciso
construir um conceito de história que corresponda à premissa de que “o estado de
exceção” em que se insere a tradição dos oprimidos constitua regra geral
459
, justamente
para que os episódios violentos não se extingam da memória dos indivíduos.
Em Quatro-olhos, são flagrantes algumas situações em que o protagonista não
consegue organizar os fatos em sua memória. Ele se esforça para fazer emergir os
acontecimentos passados; no entanto, se vê perante a impossibilidade de conferir um
posicionamento crítico acerca desses episódios:
Sobre a cabeça, a noite; dentro do cocoruto uma flor velha, já perdida a
cor e com uma sombra de perfume, a heroína no livro. Finuras assim
melífluas me prendiam o miolo, em desordem hierárquica, misturadas
com ruídos de ventos, passos em esquinas em ritmo vagaroso; tudo
isso formava no cérebro uma mixórdia que eu tentava mais tarde, já em
casa, capturar no escrito, tendo à mesa um globo geográfico, vindo a
luz pelas costas. Então negrunhentos temores me percorriam os nervos
da cabeça aos dedos: conseguiria firmar no texto as ocorrências da
mente? Nem sempre era o caso, mas isso não me compungia; o
principal era ter-me emparedado, protegido do mundo
460
.
No fragmento transcrito, as cenas que rondam a mente do protagonista não
compõem um todo orgânico e, por isso mesmo, ele não consegue traçar uma
representação harmônica dos fatos. Esse acúmulo desgovernado de detalhes, conforme
457
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da história. São
Paulo: Brasiliense, 1982. p. 65.
458
Idem. p. 67.
459
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
460
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 116.
254
Benjamin, equivaleria à forma de percepção do materialista-alegórico, que vê a história
enquanto um acúmulo de ruínas e não enquanto uma sucessão linear bem comportada
de elementos, como almeja o historiador burguês
461
. Afora isso, nessa passagem,
Quatro-olhos demonstra um profundo ceticismo no que tange à tarefa de registro dos
eventos. Essa incapacidade de narração e, conseqüentemente, de transmissão dos
acontecimentos consistiria numa circunstância que se aliaria ao apagamento da
memória. Em seu estudo sobre a obra de Nicolau Lescov, Benjamin desenvolve
considerações que concorrem para uma reflexão acerca do esquecimento dos episódios
pretéritos.
Em seus apontamentos, o filósofo alemão trabalha com a hipótese de que a arte
de narrar histórias perdeu-se gradativamente com o passar dos anos, o que justificaria a
dificuldade e a raridade de se encontrar, na atualidade, um verdadeiro contista.
Benjamin fundamenta a sua premissa pautando-se nos conceitos de vivência (Erlebnis)
e de experiência autêntica (Erfahrung). Esta, segundo os seus indícios, estaria ligada a
uma tradição em que os indivíduos não estariam separados pela divisão do trabalho e
nem desvinculados de um passado comum. Além disso, nessas comunidades pré-
capitalistas, a experiência do passado e do trabalho coletivos (Erfahrung) predominaria
sobre a experiência do indivíduo isolado em seu trabalho e em sua história pessoal
(Erlebnis)
462
.
Segundo o teórico germânico, o desenvolvimento do capitalismo, o qual ele
identifica como o fenômeno de decadência moderna
463
, rompeu com esse estado de
coisas. A obtenção de uma memória comum, que se transmite através das histórias
contadas de geração a geração, é, no presente, destruída pela rapidez e pela violência
das transformações da sociedade capitalista. Agora, o refúgio da memória é a própria
interioridade do indivíduo, reduzido à sua história privada, tal como ela é reconstruída no
romance:
[a] origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não
recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na
descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos
461
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
462
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____. Magia e
técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-198.
463
Idem. p. 201.
255
limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance
anuncia a profunda perplexidade de quem a vive
464
.
Esses pressupostos teóricos extraídos da filosofia benjaminiana prestam-se para
uma análise do livro em apreciação. No último trecho apresentado, Quatro-olhos está
em sua casa, isolado e perplexo, justamente na tentativa de escrever um romance.
Afora esses detalhes, o escritor está isento de atividades coletivas, restrito em sua
interioridade e em sua própria história. Portanto, o sujeito está alienado, e essa
alienação consistiria numa estratégia ideológica cujo intuito incide no apagamento do
passado bem como da história dos povos subjugados aos interesses da elite dominante.
Esses dados servem de alicerce para se consubstanciar a idéia de que a
ocultação de informações e de experiências coletivas serve de fermento para as
argumentações que negam os acontecimentos passados. Isso contribui para a
implantação de uma memória reciclada que interessa ao poder e que, evidentemente,
se afasta ainda mais do passado histórico real. Com isso, os culpados pelas tragédias
históricas são desresponsabilizados de seus atos, o que justificaria a permanência de
ideologias e/ou de práticas autoritárias na sociedade atual.
Em Quatro-olhos, as questões relativas ao passado, a exemplo do que se pode
observar nos demais fragmentos, não se circunscrevem apenas da perspectiva do
narrador, mas do próprio texto. Este está carregado de lacunas e pressupostos que
geram indagações e requerem preenchimentos, conforme se evidencia na seguinte
passagem:
Considerações sutis de natureza enigmática, com mais algum
esclarecimento, necessidades de ordem prática, me levaram naquela
desprimorosa segunda-feira a deixar de lado o trabalho. Muito
positivamente, estava desprovido do instrumental imprescindível à
consecução da tarefa. Desmesura explicar que me faltavam papel e
tinta, de modo que, nessa segunda-feira certa, nada escrevi.
Interessante lembrar com pormenor as horas em que não fui autor,
quando nada recordo do livro
465
.
464
Idem. Ibidem.
465
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 38.
256
O narrador, nesse trecho do romance, comenta que, numa certa segunda-feira,
foi incapaz de dar continuidade ao trabalho que estava desenvolvendo. Nesse particular,
ele expõe argumentos que visam a justificar as razões pelas quais foi obrigado, naquela
ocasião, a abandonar a sua atividade rotineira. Dentre essas causas, ele cita
explicitamente duas: em primeiro lugar, pela falta de material; e, em segundo, por não
se lembrar de mais nada. Afora esses indícios, ele coloca um outro motivo que não pode
ser constatado de maneira direta. Essa terceira proposta vincula-se a lacunas legadas
pelo próprio texto, tais como podem ser evidenciadas a partir das seguintes perguntas:
1) Por que as considerações a que Quatro-olhos se refere são sutis e de natureza
enigmática?; 2) Por que, aí, ele afirma haver necessidades de maior esclarecimento?; 3)
As necessidades de ordem prática que o protagonista menciona têm a ver somente com
a carência de materiais ou com algo mais?; 4) Por que ele descreve aquela segunda-
feira como desprimorosa?.
As interrogações que a própria narrativa suscita remetem a uma dupla
possibilidade de leitura. Por um lado, pode-se afirmar que o protagonista omitiu
voluntária e conscientemente determinados detalhes, justamente por conhecer as
condições de produção e de recepção das obras produzidas naquele período histórico.
O seu trabalho original, pelo que tudo indica, foi destruído em virtude do seu conteúdo
subversivo, logo o apagamento de certas informações é importante para que, nesse
segundo momento, o livro possa circular. De outro lado, está o próprio desconhecimento
dos fatos por parte de Quatro-olhos. Isso não significa que ele não tenha vivido os
episódios históricos marcados pelo autoritarismo da Ditadura Militar; acontece que a
institucionalização do silêncio oficial e a supressão da memória coletiva obrigaram-no a
suspender do relato aqueles acontecimentos que comprometessem a imagem do poder.
Com isso, o sujeito não pode fazer emergir o que desconhece, o que é incapaz de
lembrar. De qualquer forma, o problema colocado consiste no fato de que aquilo que foi
apagado foram os próprios eventos, a própria história.
Cabe, pois, ao historiador materialista não deixar a história e, conseqüentemente,
a memória se perderem. Segundo Benjamin, a tarefa do materialista histórico é
contribuir na reapropriação dos fragmentos da história esquecidos pela historiografia.
Não só isso, ele deve ser fiel à história presente, porque é através dela que o passado
poderá, talvez, alcançar sua libertação. Tudo isso, na visão do filósofo, contribui para
257
que irrompa uma outra história, uma espécie de anti-história, ou ainda a história da
barbárie, sobre a qual se impõe a da cultura triunfante
466
.
Aliás, Quatro-olhos, num processo de desvendamento de sua história e da
história social, percebe que ele poderia estar inserido num contexto cujas circunstâncias
de existência seriam distintas das atuais. Em certa altura do romance, ele se
conscientiza de que sua identidade foi construída enquanto resultado de processos
autoritários:
Dei para misticismos; um belo dia acordei certo de que era
descendente de índios, mal colocado num mundo de brancos – daí eu
não aceitar a vida que me surgia pela frente. Comecei a estudar a
genealogia de minha família e convenci-me de que era mesmo índio;
consultava ao espelho os cabelos escorridos e os olhos puxados para
certificar-me. Notei, pela História, que os três milhões de índios da
Descoberta não poderiam ter sido todos massacrados – e aí estavam
os caboclos. Li também num livro de curiosidades que a memória dos
ancestrais fica guardada na medula, no alto da coluna vertebral, e
convenci-me de que era verdade. Por isso, afinal descobri, eu gostava
de andar nu e de passear pelo mato. Por isso não gostava de trabalhar
para os gringos.
Por gringos, eu entendia os ricos, os brancos, os inimigos, os que
ganhavam acima de dez mil cruzeiros por mês. A eles eu devia a perda
da minha condição de índio; por tática de minha raça para sobreviver
eu tinha sido educado como branco, mas bem lá por dentro eu
guardava ódio ao seu mundo
467
.
Nessa passagem, chama a atenção a revolta de Quatro-olhos quando da
descoberta de sua identidade. A volta ao passado e, como decorrência disso, o
esclarecimento de sua memória, possibilita uma compreensão mais apurada do
processo de estruturação social no Brasil. Ao retroceder no tempo por via da própria
história, ele se depara com um passado agônico, repleto de catástrofes e de ruínas –
condição essa estabelecida pela elite com o fito de satisfazer seus propósitos
específicos. Essa percepção faz com que ele articule a situação atual com os
acontecimentos pretéritos, estimulando, assim, um sentimento de repulsa em relação
aos opressores. Esse inconformismo é gerado porque ele se conscientiza de que ele
não é, na verdade, quem pensa ser; mas, sim, um constructo em cujos princípios de
formação estão assentadas ideologias de dominação.
466
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
467
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 60.
258
Os massacres, as torturas e o extermínio em massa de seres humanos não
consistem em práticas autoritárias restritas num momento específico da história, como
foi durante o processo colonizatório, conforme sugere a passagem acima. O caso do
Brasil no período correspondente ao regime ditatorial é extremamente revelador. No
país, findo o regime militar, os responsáveis por torturas e massacres permaneceram
em liberdade, sem qualquer tipo de punição ou julgamento. Regina Dalcastagnè, nesse
particular, elabora a idéia de que a política de apagamento da memória consistiu numa
estratégia aderida pelos grupos opressores com o intuito de se manterem intactos no
poder. A autora chama a atenção ainda para o problema do esquecimento, alertando
para o fato de que a segurança nacional estaria ameaçada
468
, uma vez que a ausência
de condenação aos torturadores tornaria viável o seu retorno ao poder, permitindo que a
realidade opressora se repetisse.
Ana Maria Machado, num encontro de intelectuais brasileiros nos Estados
Unidos, ao se referir às punições aos contestadores do regime autoritário, comenta:
[e]m nome destas questões fomos para as ruas, para os cárceres e
para o exílio, muitos desapareceram e foram mortos, nenhum dos
responsáveis foi julgado ou ao menos exposto à execração da opinião
pública. Muitos deles ou dos que foram seus cúmplices estão no
governo hoje, ainda ou novamente, sem consulta ao eleitorado e em
nome da democracia. E o país muitas vezes parece se esquecer
469
.
Tal fenômeno não se registra apenas no Brasil. O caso da América Latina –
onde, aliás, segundo Antonio Callado, a democracia não parece ser um fenômeno
duradouro ou capaz de deitar raízes profundas
470
– é bastante sugestivo a esse
respeito. Num artigo dedicado ao estudo de determinadas obras de Mauricio Rosencof,
Raúl Caplán faz referência à política de “desmemoria voluntaria” difundida pelo
presidente Julio María Sanguinetti após o término do período ditatorial no Uruguai. O
autor explica que essa política de desmemória – designada pelo poder através do uso
da expressão “ojos en la nuca” – tinha como objetivo desqualificar aqueles indivíduos
que, porventura, viessem a exigir verdade e justiça, bem como infligir a eles um
468
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UnB, 1996.
p. 15.
469
MACHADO, Ana Maria. Da resistência à transição: a literatura na encruzilhada. In: SOSNOWSKI, Saul;
SCHWARTZ, Jorge (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 87.
470
CALLADO, Antonio. Censura e outros problemas dos escritores latino-americanos. Trad. Cláudio
Figueiredo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 29.
259
obstáculo de modo a fazê-los avançar às cegas, ou seja, sem orientação, justamente
para que não reivindicassem qualquer punição contra os opressores
471
.
Acontecimento similar pode ser verificado no Chile, com a Transição, em 1989.
Nelly Richard explica que, com o referido evento, a elite chilena procurou recuperar e
normalizar a ordem democrática buscando, com isso, conjurar as múltiplas rupturas e
deslocamento de signos produzidos durante a ditadura, obrigando-os à fórmula do
consenso que neutralizava os contrapontos diferenciadores, os antagonismos de
posturas, as demarcações polêmicas de sentidos contrários, através de um pluralismo
institucional que fez da diversidade a não-contradição
472
. Em sua visão, essa
justaposição de diferenças objetivava não marcar as distinções de classes a fim de “não
reeditar os choques de forças ideológicas que haviam dividido o passado”
473
. Assim, o
consenso da Transição conseguiu eliminar de seu repertório de significados
convenientes a memória histórica do antes do consenso político-social, isto é, a
memória de um passado julgado inconveniente pelas guerras
474
.
Em certa altura de Quatro-olhos, chama a atenção uma passagem em que o
protagonista critica a dificuldade de acesso ao passado histórico, o que implicaria uma
mudança em sua concepção de identidade:
A história do Brasil não me dizia respeito, eu não me sentia participante
dela; meus avós era como se não tivessem existido. Assim tive de
recorrer a livros em língua estranha para me formar, fracos
instrumentos contra o mundo que me circundava. Assim me pus a
escrever, para criar minhas armas e esculpir meu mundo. Era um texto
para ser usado pelos que viessem depois de mim, para que a nação
para eles não fosse palavra abstrata, para que tivessem onde se
agarrar, como eu me agarrava às poucas criações nacionais de que
tinha conhecimento. (...) Seria necessário redescobrir a verdadeira
história do Brasil para que eu recuperasse minha identidade perdida
475
.
Esse fragmento remete a uma série de situações articuladas à questão do
apagamento da memória. A primeira diz respeito à exclusão da sociedade civil da
471
CAPLÁN, Raúl. Todas las memorias: las cárceles uruguayas e la obra de Mauricio Rosencof.
L’ordinaire Latin Americain, Université de Toulouse, n. 183, p. 67-75, jan./mar., 2001. p. 68.
472
RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.).
Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 321.
473
Idem. p. 322.
474
Idem. Ibidem.
475
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 88.
260
história oficial. Quatro-olhos não vê a si nem a seus parentes como participantes do
processo social. Eles foram retirados da historiografia e, consigo, todo um passado de
dor e de sofrimentos. Esta seria, pois, uma estratégia de manipulação da memória com
vistas a determinadas apropriações por interesses políticos. Ainda como se observa
nesse particular, o protagonista teve acesso a certas informações a respeito dos grupos
marginalizados em livros redigidos em língua estrangeira, o que dificultaria, então, um
trânsito a experiências autoritárias.
Um segundo ponto tange à importância do reconhecimento do passado. Nesse
trecho, Quatro-olhos demonstra uma profunda preocupação em relação ao passado tal
como registra a historiografia oficial. Do seu ponto de vista, é importante construir uma
outra história justamente para não excluir a memória de certos grupos sociais. Isso
concorreria para uma nova compreensão do presente e, conseqüentemente, para a
projeção de um futuro diferente. De acordo com os preceitos de Nelly Richard, “[a]
memória é um processo aberto de reinterpretação do passado que desfaz e refaz seus
nódulos para que se ensaiem de novo acontecimentos e compreensões”
476
. Segundo
ela acrescenta, é justamente a laboriosidade dessa memória insatisfeita que perturba a
vontade de sepultamento oficial da recordação vista simplesmente como depósito fixo
de significações inativas
477
.
Um terceiro aspecto concerne à questão da identidade. Quatro-olhos está isento
de dados acerca de sua constituição cultural. Não só ele, mas todo um grupo social com
o qual se identifica e constrói a sua identidade. Existiria, conforme Loiva Otero Félix,
uma associação entre memória e identidade nos seguintes termos: a memória é extinta
quando se rompem os laços afetivos e sociais de identidade, já que seu suporte é o
grupo social. Em contrapartida, ela acrescenta: “a identidade pressupõe um elo com a
história passada e com a memória do grupo”
478
. Portanto, segundo seus argumentos,
memória, identidade e história se entrecruzariam e fariam verter concepções de mundo
e de ideologias até então despercebidas ou inimagináveis.
A memória desempenha funções importantes. Segundo Benjamin, ela propicia
uma releitura da história, levando as classes oprimidas ao inconformismo e, como
476
RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.).
Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 322.
477
Idem. p. 333.
478
FÉLIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998. p.
42.
261
decorrência disso, a uma tomada de consciência no que se refere às suas condições
passadas e presentes, orientando-as, assim, em direção à libertação
479
. Geoffrey
Hartman, nessa mesma linha argumentativa, confere à memória um aspecto que aponta
rumo ao futuro
480
. Arthur Nestrovski descreve o seu papel nos seguintes termos: “[c]ada
memória resgatada, cada relance é como um talismã, um instrumento para nos fazer
sentir alguma coisa de novo, antes que a repetição e as defesas cubram a percepção
com o véu da indiferença”
481
.
Portanto, o não esquecimento dos fatos trágicos consignados pelos regimes
autoritários é importante no sentido de se evitar a repetição das experiências históricas
que têm proporcionado o desconforto das classes menos favorecidas. Com isso, a obra,
ao exprimir momentos da sociedade passada, desempenha, no presente, um papel que
orienta em direção ao futuro. Em outros termos, ao ser revelada a memória dos
excluídos, é possível refletir o passado e propor novos rumos para a sociedade
reprimida. Nos termos descritos pelo narrador de Quatro-olhos: “[s]e todo mundo
passasse o tempo escrevendo livros sofríveis, o mundo certamente não seria pior do
que é e quase certamente seria melhor. Todos com o direito de escrever e pronto. Os
estetas que se fomentassem”
482
.
3.5.2 Elementos melancólicos na ficção de Renato Pompeu: desconforto e
crítica social
Paulo não amava o crepúsculo, ele lhe trazia uma sensação de ânsia
e de tristeza, uma indefinida angústia. Nessa hora indecisa entre o
dia e a noite, quando as sombras vagueiam sobre o céu, penetrando
de melancolia o coração dos homens, o moço diplomata considerava
a vida inútil e despida de qualquer interesse.
(Os subterrâneos da liberdade: agonia da noite, Jorge Amado)
479
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
480
HARTMAN, Geoffrey. Holocausto, testemunho, arte e trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-
SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 223.
481
NESTROVSKI, Arthur. Vozes de crianças. In: ____; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e
representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 192.
482
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 131.
262
As experiências ditatoriais agregam a memória individual e coletiva às figuras da
ausência, da supressão e do desaparecimento. Tais sentimentos, que se associam à
noção de perda, geram um estado de luto tensional que, conforme Nelly Richard, “deixa
sujeito e objeto em estado de pesar e incerteza, vagando sem tréguas ao redor do não
encontrável do corpo e da verdade que faltam e fazem falta”
483
. Ainda segundo a autora,
esse estado de luto propiciado por uma condição histórica assinalada por diversas
formas de violência se expressaria por meio de bloqueios psíquicos, dobras libidinais,
paralisações afetivas e inibições da vontade e do desejo frente à sensação de algo
irreconstituível, sejam eles o corpo, a verdade, a ideologia ou a representação.
Os aludidos traços que caracterizam uma atitude melancólica são recorrentes em
Quatro-olhos
484
. A razão mais imediata que justificaria o estado de tristeza do
protagonista seria a perda de seu livro, o que, na verdade, envolve uma situação que se
filia ao apagamento do passado e, portanto, da identidade e da história. Frente às
inúmeras desvinculações entre passado e presente, fabricadas por mecanismos
experientes em suprimir as articulações biográficas e históricas das seqüências
cronológicas e em apagar a problematicidade de seus enlaces, o sujeito se sentiria
vazio, desorientado e, por isso mesmo, melancólico.
A idéia de que existe uma conexão entre a experiência da perda e a atitude
melancólica é desenvolvida por Sigmund Freud em seu artigo sobre luto e melancolia.
Nesse estudo, o autor tece uma distinção entre duas atitudes possíveis diante à
experiência da perda. A primeira seria o sentimento de luto. Nesse caso, o estudioso
explica que a perda é irreversível, entretanto o sofrimento vivido é “superado após certo
lapso de tempo”
485
. Nesse particular, o sujeito procuraria o reequilíbrio afetivo,
substituindo o objeto perdido por outro. No caso da melancolia, o sujeito não admitiria a
sua perda: ele passaria a viver com desânimo, perderia o interesse pelo mundo externo
e pela capacidade de amar e, além disso, inibiria toda e qualquer atividade
486
. Ainda
segundo Freud, o melancólico exibe o empobrecimento de sua auto-estima e agride o
próprio ego, e encontra satisfação em expor sua precariedade.
483
RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.).
Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 325.
484
Convém esclarecer que esse estudo não pretende apresentar uma abordagem exaustiva sobre as
concepções antigas e modernas referentes à melancolia nem eleger um conceito unívoco do termo.
Acredita-se que podem ser produtivas as várias referências a teorias diversas sobre o fenômeno para a
compreensão de imagens melancólicas e formas narrativas na obra em questão.
485
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
1977. Vol. XIV. p. 276.
486
Idem. Ibidem.
263
As mencionadas características desenvolvidas por Freud prestam-se para uma
reflexão acerca do comportamento do protagonista. Tal análise exige, ainda, que se
atente para as razões que induzem Quatro-olhos a estar mergulhado num teor
profundamente melancólico. Nesse sentido, na obra em apreciação, a dor
proporcionada por uma perda decorrente das condições do passado não é superada. O
sujeito é incapaz de restituir o objeto perdido, no caso, o seu livro, e, como resultado
disto, não haveria o reequilíbrio afetivo
487
. Ao mesmo tempo em que luta para
rememorar o passado, se frustra com as condições de tal época:
Mais ou menos dos 16 aos 29 anos passei no mínimo três a
quatro horas todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de
certa segunda-feira, escrevendo não me lembro bem se um romance
ou um livro de crônicas. Recordo com perfeição, porém, tratar-se de
uma obra admirável, a pôr a nu de modo confortavelmente melancólico
a condição humana universal e eterna, particularizada com emoção
discreta nas dimensões nacionais e de momento
488
.
A atitude melancólica, no primeiro período transcrito, está associada à perda e ao
esquecimento. Quatro-olhos vacila no seu modo de pensar e demonstra um profundo
ceticismo frente àquilo que tem escrito. Em contrapartida, as reminiscências são motivos
de sua angústia. As lembranças do passado são causa de seu estado mórbido de
tristeza, já que permitem ver o ser humano dentro de uma tendência degradante cujas
razões são dadas pelo momento histórico em curso. Em outros termos, as experiências
da perda, da dor, da dúvida e da contradição, que tradicionalmente se associam ao
conceito de melancolia, se articulam umas com as outras e projetam o impacto da
violência no processo histórico do Brasil pós-64.
Ainda com base nos preceitos desenvolvidos por Freud, o sujeito melancólico
sente prazer em demonstrar a sua própria precariedade. No romance, são visíveis
ocorrências em que o narrador-protagonista busca situar a sua dor e a sua aflição em
instantes vagos de sua vida. Essa indefinição, aliás, é comum no comportamento
melancólico, já que o sujeito não encontra certeza nem tranqüilidade no meio em que se
487
É interessante observar que o melancólico, segundo Aristóteles (1998), apresenta uma determinada
predisposição à criação. Em certa altura de seu livro, o filósofo indaga: “Por que razão todos os que foram
homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são
manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a
origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules?” (p. 81).
488
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 15.
264
encontra inserido. Assim, registros de oscilação entre o dia e a noite, bem como o
emprego de vocábulos que traduzem efemeridade e instabilidade das coisas, indicam as
incertezas desse indivíduo, desnudando, pois, a sua fragilidade:
A hora mais adequada para lembrar de tudo é como agora, no fim de
tarde, nem dia nem noite, as cores mudam, passam sombras, nuvens
de Santa Maria, como quando a memória imediata é vencida pela
retentiva e a gente, num lugar desconhecido, se lembra de já ter ali
estado – na verdade, a gente realmente sempre já esteve nos lugares
em que nunca foi antes, pois percebe sempre depois
489
.
Afora esses aspectos, o aludido fragmento sugere a imagem do crepúsculo, ou
seja, a passagem, a transição entre dois períodos, o dia e a noite. Essa mudança que se
processa na natureza não somente implica alterações do espaço, mas, principalmente,
vincula-se a experiências afetivas importantes. O crepúsculo evoca uma travessia entre
a luz e a treva, gerando no sujeito um sentimento de finitude e de falta de perspectiva.
Não só isso, ele se situa numa zona limite entre dois termos contrários, propiciando,
assim, a dualidade, o confronto e a indefinição emocional do indivíduo. Todos esses
traços que o crepúsculo suscita viabilizam uma compreensão do protagonista, cujas
expectativas são indefinidas ou não otimistas.
Denílson Lopes, a exemplo desses autores, desenvolve a idéia de que a
“melancolia não é simplesmente uma vaga tristeza ou prostração, fruto de uma
desilusão amorosa, [ou] de um problema psicológico qualquer”
490
. Tal sentimento, a seu
ver, é decorrente de uma força oriunda da percepção da passagem do tempo e das
ruínas que se avolumam na história. Em Quatro-olhos, é evidente essa particularidade,
já que a obra assenta-se como uma releitura do passado cujo intuito é promover uma
leitura crítica do presente:
Aliás essa questão de tempo é de per si complexa e disso posso dar
tranqüila notícia ao mundo. Muito embora creia não ser possível
condenar o presente em nome do passado, pois o passado já passou e
o presente está passando; muito embora julgue prevenir acidentes
dever de todos, ou seja, a condenação do presente deve ser marcada
em nome do futuro – na verdade, não encontro, no fundo do meu
coração até onde posso ir, não encontro em meu coração outro
489
Idem. p. 23-24.
490
LOPES, Denílson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p. 15.
265
recurso. Disfarço com esperteza essa minha limitação, eu não poder
condenar em nome do que virá, avanço com solércia o insolente
subterfúgio de que falo do que não foi. Incapaz de defender o futuro,
defendo o futuro do passado – com essa argumentação, tento encobrir
meu ataque ao presente
491
.
Nesse excerto, o protagonista sugere reflexões acerca do tempo histórico,
pautando-se no passado, no presente e no futuro. Ele sente insatisfação com o
momento presente e a falta de perspectiva em relação ao futuro. Essa projeção
proposta por Quatro-olhos está alinhada com a imagem do passado que acumula
ruínas, as quais são arremessadas para o presente, comprometendo, assim, o futuro.
Portanto, “o melancólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do qual vê
com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se perturba com o futuro, pelo medo
de um possível dano”
492
.
Ainda acerca desse particular, o protagonista procura chamar a atenção para a
articulação que se estabelece entre os diferentes momentos da história. O olhar de
Quatro-olhos, tal como se registra nesse fragmento, equivale à avaliação que o
materialista histórico propõe do curso dos fatos. Em outros termos, o historiador
materialista, conforme os argumentos de Walter Benjamin, busca identificar a história a
partir dos vínculos que ela tece com o presente e, como decorrência dessa observação,
projetar um futuro com receio
493
. Com base nisso, cabe a cada presente resgatar o
próprio passado, não apenas no sentido de guardá-lo ou conservá-lo, mas
principalmente com o intuito de libertá-lo. Conforme a proposta do trecho transcrito, o
futuro se liga às condições pretéritas, o que garante uma crítica ao presente.
Assim, o olhar atento e crítico do melancólico reúne imagens que se pautam
sobre as experiências de autoritarismo que o Brasil experimentou no decurso de sua
história. Tanto o contexto do Estado Novo quanto o da Ditadura Militar, dentro do âmbito
histórico do século XX, estão assentados no princípio da destruição enquanto base da
construção. Nesse sentido, as guerras, os massacres, as torturas, as mutilações e a
violência sistemática fundam o alicerce sobre o qual a sociedade arma a sua estrutura.
491
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 28.
492
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de
Álvares de Azevedo. 321f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. p. 46
493
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 229-230.
266
Esses detalhes não escapam da ótica do melancólico, fazendo com que ele se fixe num
horizonte marcado pela finitude. Não é por acaso, então, que esse sujeito esteja em
constante atração por imagens de morte. Tal idéia está intimamente vinculada à
passagem do tempo e à degradação do corpo frente às resistências postas por
circunstâncias sociais. Há várias passagens, em Quatro-olhos, que evidenciam esse
aspecto:
Talvez fosse eu, talvez um personagem do livro, quem sabe o
homem morto, mesmo o dono das casas ou o moço que trabalha na
firma. Mas havia alguém, um casal, dançando abraçado e eram jovens,
mas enquanto se dançava abraçado e muito feliz o moço foi reparando
que a moça foi envelhecendo, devagar e sempre, enrugando aqui sob
os olhos, embranquecendo ali sobre os cabelos e eles continuavam
dançando e a moça perdeu os dentes, os cabelos, até que morreu e
eles dançavam e ela perdeu as carnes, os bichos comeram tudo,
comeram uns aos outros, só sobrou um e o moço dançando com a
caveira de rosto colado e os ossos se desfazendo se desligando e o
moço procurou se apoiar melhor, pois estava abraçado a algo que se
esvaziava se desfazia e de repente nessa busca de melhor apoio ele se
sente de novo seguro e está dançando com a moça bem moça, tão
moça quanto antes, sorrindo para ele com dentes bonitos, diferentes
dos da caveira e ele fica em dúvida se vale a pena continuar dançando
porque tudo aquilo vai acabar acontecendo de novo, embora talvez
num tempo mais espaçado. Resolve continuar dançando, mas já com
uma ruga na testa ou uma sombra no olhar
494
.
Esse fragmento centra-se na noção de degradação do sujeito mediante a
transitoriedade do tempo histórico. As condições sociais nas quais o indivíduo se
encontra são determinantes para a formação de sua essência. Aqui, o olhar do sujeito
melancólico vai um pouco além: ele garante uma visão panorâmica de maneira que as
nuances históricas sejam percebidas como elementos geradores de mutilação. A
propósito, o olhar que o protagonista lança sobre as imagens que lhe surgem é
semelhante à análise que o Angelus Novus do quadro de Paul Klee suscita da história.
Referindo-se ao aludido anjo, Benjamim explica que, “[o]nde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as dispersa a nossos pés”
495
. Em outros termos, o olhar para trás do anjo
identifica a civilização humana com indícios trágicos que são por ela imperceptíveis. O
olhar de Quatro-olhos é semelhante: ele vê uma sucessão de ruínas que se acumula no
494
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 31-32.
495
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
267
decurso da história e que abala as sociedades de maneira incontestável, levando-as à
degradação.
Segundo os apontamentos do estudioso alemão, o alegorista barroco, que se
identifica com o melancólico, figura a morte e quer significar a história. Isso implica o
fato de o esquema básico da alegoria barroca ser a metamorfose do vivo no morto, pois
o alegorista-melancólico fala em paraíso, e quer significar o cemitério; refere-se ao
armazém, e quer remeter à sepultura; cita a harpa, e quer salientar o machado do algoz;
assim como pretende significar um esqueleto ao ressaltar a beleza de uma mulher, ou o
tempo destruidor na figura de um ancião
496
. Portanto, a morte é o princípio estruturador
para o melancólico, o que permite, nesse caso, ao narrador-protagonista ver a história
como um amontoado de catástrofes.
Em Quatro-olhos, não faltam passagens em que é possível evidenciar o tempo
histórico como princípio da fragmentação da subjetividade. Há, no livro, referências a
situações específicas que remetem a um clima tenso e autoritário: cenas de violência,
tortura e execução se mesclam e projetam uma leitura do período ditatorial bem como
corroboram as constatações formuladas por Walter Benjamin:
No livro, as bombas explodiam sempre à mesma hora, mas não
todos os dias. O barbeiro tinha complicadas explicações para isso, que
com franqueza me caceteavam, mesmo a mim, o autor. Todos estavam
condenados à tortura, em ambientes infectos e sujos e poucos
protestavam, pois sempre havia a hora de escovar os dentes, o
intervalo das refeições; à noite havia o lazer fabricado vindo de longe,
sempre elétrico, e não era proibido urinar. A vida era suportável; nos
intervalos das torturas era permitido estar com a família e ver as
crianças. De manhã, minha mulher sorria e eu, muito tolo, a achava
cansativa.
As torturas eram o caminho concreto da libertação, pelo menos
era o que se comentava. Antes de chegarem a determinado grau, ou
melhor a grau indeterminado, era impossível fazer qualquer coisa. Os
graus variavam para cada um, ou talvez fosse sempre o mesmo grau,
alguns o atingindo, outros não – para o meu amigo funileiro, o momento
chegou cedo demais
497
.
Reinaldo Marques, com respaldo nas circunstâncias sociais emergentes da
modernidade, avalia alguns traços do melancólico. Ele atenta para o fato de que este,
496
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Trad. Celeste H. M. Ribeiro de
Souza et al. São Paulo: Cultrix / Edusp, 1986. p. 22.
497
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 23.
268
frente a uma “experiência de perda decorrente de um tempo e um mundo de mudanças
e ruínas”
498
, encontra-se ensimesmado, insatisfeito e precário em relação ao próprio eu.
Um dos pontos desenvolvidos pelo autor e que se encontra em comunhão com a
aludida proposta de abordagem diz respeito à reificação
499
. Esta, da ótica do ensaísta,
manteria certa relação com a melancolia, dada a noção de alienação, de perda de
sentidos e das incertezas geradas no homem. Conforme a analogia proposta pelo
protagonista de Quatro-olhos:
Num primeiro momento, o jogador está sozinho com a bola nos pés,
cercado por um monstro inimigo que o vigia de todos os lados, tal como
o operário se vê sozinho na engrenagem empresarial. Num segundo
momento, porém, o jogador percebe que tem a seu lado os seus
colegas – exatamente como acontece na fábrica e em geral na
sociedade capitalista. E tal como nas lutas sociais no futebol às vezes
se perde, às vezes se ganha ou empata. Está tudo sempre em
constante movimento, o futebol é fluído como a vida e não adianta
ganhar uma competição que logo começa outra. Isso ela não assumiu
como coisa sua, pois julgava o futebol alienação e não como eu um
momento da luta de classes, mas achou interessante a idéia – e eu,
como seu autor, ainda mais interessante
500
.
O mundo moderno, assentado nas estruturas do capitalismo, prima pela busca do
automatismo e do alheamento dos indivíduos sociais. Mesmo a exemplo de situações
em que se pressupõe uma relação social definida – e, aqui, o protagonista faz referência
ao futebol –, tem-se, no curso da sociedade atual regida pelas práticas e/ou pelas
ideologias capitalistas, uma tendência de desagregação de classes, o que é
determinante de competições, conflitos e desuniões. Conforme acrescenta Terry
Eagleton, tais conquistas fariam do sujeito não somente “a fonte fortemente
individualizada de suas próprias ações”, mas “uma função obediente de uma estrutura
ordenada mais profunda, a qual agora parece fazer por ele o seu pensar e agir”
501
.
Outro detalhe que o fragmento transcrito da obra suscita diz respeito às
incertezas e às oscilações que o sujeito passa a experimentar quando submisso às
premissas ideológicas do sistema. Em tal circunstância, segundo a avaliação do próprio
498
MARQUES, Reinaldo. Tempos modernos, poetas melancólicos. In: SOUZA, Eneida Maria de (Org.).
Modernidades tardias. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 162.
499
Idem. p. 160, 163 e 167.
500
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 126-127.
501
EAGLETON, Terry. O rabino marxista: Walter Benjamin. In: ____. A ideologia da estética. Trad. Mauro
Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. p. 230.
269
protagonista, “[e]stá tudo sempre em constante movimento”. Essa assertiva proferida
por Quatro-olhos apresenta um conteúdo homólogo em relação ao papel exercido pela
mercadoria na atual sociedade de consumo. Essa constatação ganha consistência se se
atentar para a acepção formulada por Eagleton. De acordo com o autor, “todo fragmento
de experiência parece agora regulado por alguma estrutura subjacente”, fazendo com
que a própria experiência seja o produto manipulado
502
. Em outras palavras, o indivíduo
passa por um processo de reificação, e, por isso mesmo, é manipulado como se fosse
um bem de produção em constante recriação e adaptação. Portanto, “[o] que a
sociedade moderna demanda é um corpo reconstituído, vivendo em intimidade com a
tecnologia e adaptado às súbitas conjunções e desconexões da vida urbana”
503
.
Marx observou esse aspecto com muita propriedade. O autor averigua que as
relações estabelecidas entre os produtores – em que, por sua vez, se afirmaria o
caráter social de seus trabalhadores – assumem a forma de relação social entre os
produtos de seu trabalho. A concepção de mercadoria para o pensador se estabelece a
partir do aspecto social: “[u]ma relação social definida, estabelecida entre os homens,
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”
504
. Com isso, a mágoa do
protagonista se consubstancia porquanto ele vê a subjetividade humana se diluindo em
meio às relações mercantilizadas, as quais julgam os homens enquanto objetos e não
enquanto seres dotados de sentimentos
505
. De qualquer forma, o sentido da melancolia,
nesse caso, é sempre de ordem social.
Reinaldo Marques ressalta a idéia de que essa “problematização do mundo
moderno, centrado numa racionalidade instrumental e abstrata”
506
, é uma condição que
se desenrola em prol de uma atitude contemplativa, própria do melancólico. A propósito,
o vínculo entre melancolia e contemplação foi abordado por Walter Benjamin em seu
livro sobre o drama barroco alemão. Nesse estudo, o filósofo germânico fundamenta as
502
Idem. p. 231.
503
Idem. p. 244.
504
MARX, Karl. Fetichismo e reificação. In: ____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1988. p. 160-161.
505
Lukács (1965) afirma que o estudo da natureza humana do homem faz parte de toda a literatura e de
toda a arte autêntica. Com esses termos, ele busca frisar a hipótese de que toda boa arte e toda boa
literatura sejam humanistas, não somente ao estudarem o homem, mas, também, por defenderem a
integridade humana do homem contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram. Com
isso, acrescenta ele, como todas essas tendências assumem a mais desumana das suas formas na
sociedade capitalista – devido ao seu caráter reificado e a sua objetivação aparente que conduzem à
opressão –, “todo verdadeiro artista e todo verdadeiro escritor é um adversário instintivo de qualquer
alteração do princípio do humanismo” (p. 21). O melancólico, a propósito disso, insere-se nessa categoria
que visa a resgatar o humano, devolvendo-lhe essências subjetivas.
506
MARQUES, Reinaldo. Tempos modernos, poetas melancólicos. In: SOUZA, Eneida Maria de (Org.).
Modernidades tardias. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 166.
270
suas colocações acerca da melancolia tendo como base elementos antigos e medievais.
Para tanto, faz referência a Aristóteles, a Constantinus Africanus, citando, ainda, o deus
Cronos, o planeta Saturno e a bile negra
507
.
Dentre os traços que definem a atitude melancólica, Benjamin destaca a
disposição do indivíduo para a contemplação, sendo enfático: “[a] meditação é própria
do enlutado”
508
. Os pressupostos teóricos que dão conta de sua proposta estão
assentados nos seguintes elementos: na bile negra e na gravura Melancolia I, de Dürer.
No primeiro caso, o autor explica que a bile negra
509
, substância responsável pela
melancolia, motivaria o espírito para a contemplação; no segundo, argumenta que a
aludida imagem é “um símbolo do homem contemplativo”
510
: rosto apoiado na mão,
olhar perdido e distante, o personagem é apresentado na pose convencional da tristeza,
do luto e da meditação na arte antiga.
Em Quatro-olhos, não são raras as cenas em que o protagonista encontra-se
em atitude de contemplação, o que revelaria, assim, a sua essência melancólica: “[p]us-
me a meditar se eu seria tão livre quanto os jovens americanos a quem tal leito estava
originalmente destinado”
511
. Em conformidade com isso, o fumo, da mesma forma, seria
determinante para a motivação dessa atitude contemplativa: “[s]entei-me à cadeira do
quarto e fiquei até a madrugada fumando, sentindo o peso do paletó em meus ombros e
acariciando as mangas, pensando naquela vida que se fora dentro daquele paletó”
512
.
Nesse último caso, o sujeito estaria rememorando o passado. Benjamin, nesse
particular, trabalha com a hipótese de que a melancolia desempenharia uma função
prática, pois ela “inclui as coisas mortas em sua contemplação para salvá-las”
513
.
Afora a contemplação, o pensador alemão apresenta a indolência como outra
característica do melancólico. O ócio consistiria numa condição ligada a Saturno.
Segundo o filósofo, esse último “torna[ria] os homens ‘apáticos, indecisos,
507
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 161-180.
508
Idem. p. 163.
509
Existe uma relação entre os vocábulos melancolia e bile negra. Leandro Konder (1989) explica que a
palavra vem do grego, melankholia, combinação de melanos (negro) e kholé (bilis) (p. 102).
510
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 176.
511
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 106.
512
Idem. p.118.
513
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 179.
271
vagarosos’”
514
. O planeta, por ser lento em sua órbita, ocasionaria a preguiça e a
lentidão nos homens. Em Quatro-olhos, esse aspecto se vincula ao abandono doloroso
do sujeito:
As caixas de metal, que a julgar pelos sorrisos das moças em
cartazes brilhantes (a gente tinha de olhar de baixo para cima) geravam
certo orgulho e admiração em alguns não-cidadãos, me jogavam
poeiras, pedras, paus e gases pelo rosto e me deixavam sujo e com má
disposição e faziam meu rosto sangrar. Incomodavam mais as
pedrinhas, em cheio nos olhos, e eu comecei a chorar no meio da rua,
ou melhor, sentei na calçada e comecei a chorar (...), e não sentia
nenhuma vontade de louvar em ação de graças a graça de nascer e
viver, e meu rosto começou a ficar negro de óleo e rugoso de
pedrinhas, e triste, muito triste, porque todo mundo era filho de pai e
mãe, e todas as coisas eram filhas das mãos de todos, mas eu não me
sentia agradecido
515
.
Nessa citação, o estado mórbido de tristeza de Quatro-olhos faz com que ele se
sinta perturbado, desestimulado e sem vontade perante a execução de uma
determinada atividade. A preguiça seria, ainda, uma manifestação envolvida na
desordem mental. O trecho acima chama a atenção para o estado intranqüilo do sujeito
e confere principal destaque para o seu olhar alterado, que não consegue apreender a
totalidade. Nesse particular, Benjamin atenta para o fato de que o melancólico “perde
seus sentidos mesmo quando seu corpo ainda vive, porque nem vê nem ouve mais o
mundo que em torno dele vive e se agita, mas somente as mentiras que o diabo
implanta em seu cérebro e sussurra em seus ouvidos, até que no fim ele delira e
mergulha no desespero
516
.
Nesse âmago, a ação da bile negra estaria diretamente envolvida com as
perturbações mentais e com o olhar sombrio do sujeito enlutado. Constantinus Africanus
argumenta que a bile negra, quando estimulada, subiria ao cérebro e perturbaria a
capacidade de compreensão, em virtude do obscurecimento da luz
517
. Em Quatro-
olhos, conforme o trecho em apreciação, as poeiras e as pedrinhas jogadas na visão do
514
Idem. p. 178.
515
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 30-31.
516
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 168.
517
CONSTANTINUS EL AFRICANUS. De melancholia. Buenos Aires: Fundación Acta, 1992. p. 15. apud
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de
Álvares de Azevedo. 321f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. p. 89.
272
protagonista sugerem elementos que estariam em comunhão com a função da bile
negra, ou seja, obscurecer o olhar devido ao peso da escuridão. Tudo isso concorre
para que a inteligência do indivíduo fique desordenada: “[m]últiplos encantamentos
assim voejavam pelo meu cérebro e encontravam apoio no escrito, deslindado enfim o
real. Partículas do mundo exterior vinham recombinar-se disparatadas, reunidas depois
num todo homogêneo”
518
.
Outra característica que distingue o melancólico é o seu dualismo. No seu estudo
sobre o drama barroco, Benjamin situa esse traço às atitudes do deus Cronos e à figura
do príncipe. Conforme explica o filósofo, Cronos – definido como “um deus dos
extremos”, por criar e matar, propiciar a colheita e a morte – representaria uma espécie
de síntese da condição saturnina: “[c]omo a melancolia, também Saturno, esse demônio
das antíteses, investe a alma, por um lado, com preguiça e apatia, por outro com a força
da inteligência e da contemplação; como a melancolia, ele ameaça sempre os que lhe
estão sujeitos, por mais ilustres que sejam, com os perigos da depressão ou êxtase
delirante”
519
. Em relação ao príncipe, o crítico alemão afirma que ele apresenta uma
condição ambivalente, uma vez que é, ao mesmo tempo, um mártir e um tirano, estando
propenso a sofrimentos ou suplícios e impondo a ordem numa prática de sua condição
hierárquica
520
. Viver no limite entre dois mundos ou oscilar entre dois sentimentos
distintos e contrários propiciaria a condição melancólica. Portanto, o que determinaria a
articulação benjaminiana do conceito de melancolia seria a impossibilidade de
conciliação de termos antitéticos.
Romano Guardini, a exemplo de Benjamin, também estabelece um vínculo entre
melancolia e dualismo. Para o referido autor, o comportamento dual do melancólico se
deve à coexistência paradoxal de dois instintos do sujeito: a afirmação de si, em busca
de uma ascensão, e a renúncia à existência
521
. Afora isso, ele aponta a dificuldade de o
melancólico conciliar tais dualismos. Do seu ponto de vista, o espírito e o corpo, a
intenção e a ação, a disposição de espírito e os resultados, o começo de uma evolução
e seu cumprimento não encontrariam síntese no melancólico, como se houvesse uma
ruptura entre o mundo interior do indivíduo e os elementos exteriores
522
. Jogado em um
518
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 120.
519
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 172.
520
Idem. p. 93.
521
GUARDINI, Romano. De la mélancolie. Paris: Seuil, 1953. p. 37.
522
Idem. p. 48.
273
campo de dualismos, ele relativiza seus valores de tal maneira que suas referências
ficam duvidosas e incertas
523
.
Em Quatro-olhos, o meio autoritário, moldado por estruturas paradoxais e
incoerentes, relativiza seus valores, gerando a inconstância e o dualismo no sujeito. No
fragmento a seguir, extraído do romance em questão, o jogo de palavras e de idéias de
sentidos contrários remete à indefinição e ao caráter dual do protagonista:
Em meio à empreitada, me detinha por vezes em esquinas e as
sombras das nuvens me ultrapassavam, de modo que eu ficava às
vezes sombrio e outras iluminado. Não ventava, mas nos momentos em
que a sombra saía de mim (pois não era eu que estava à sombra, ela
passava por mim) ou quando a luz corria por mim, de repente e só
nesses momentos eu me sentia me movimentando, embora estivesse
parado. E lembrava, não sei se do livro ou da vida
524
.
As aludidas propostas teóricas permitem verificar que a melancolia pode ser
pensada como resultado de circunstâncias sócio-históricas. Isso significa que ela é
considerada fundamental para se avaliar o perfil subjetivo de indivíduos que viveram em
uma determinada época. Susana Kampff Lages, na esteira de tais preceitos, enfatiza a
idéia da necessidade de se refletir acerca da melancolia, tendo em vista o próprio estilo
de escrita do enlutado
525
. A propósito, a premissa de que existiria uma relação entre
melancolia e forma narrativa ou poética é desenvolvida por Julia Kristeva. Para a autora,
a melancolia é tributária da dificuldade de comunicação do sofrimento humano e, na
literatura, ela se traduziria em formas específicas de apresentação estética, justamente
por incorporar o teor melancólico na própria tessitura do texto.
Kristeva atenta para o fato de a melancolia ganhar consistência de expressão em
tempos de crise, quando valores estão em conflito: “[a]s épocas que vêem o
desmoronamento de ídolos religiosos e políticos, as épocas de crise são particularmente
propícias ao humor negro”
526
. A formulação desse princípio está afinada às propostas
teóricas de Benjamin, segundo o qual a melancolia sinaliza um distúrbio do sujeito frente
a um processo de desestruturação social. Outro ponto desenvolvido pela psicanalista
523
Idem. p. 40.
524
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 31.
525
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. p. 112.
526
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Rocco,
1989. p. 15.
274
que encontra correspondência na teoria benjaminiana diz respeito às perturbações nas
formas de comunicação, algo que estimularia uma representação literária distanciada
dos modelos realistas de composição.
Nesse sentido, em relação à fala do sujeito, Kristeva assegura que o estado
depressivo é condição para a fragmentação do ego, o que perturbaria o próprio
desempenho do discurso oral. Ainda segundo seus apontamentos, a palavra do
deprimido seria repetitiva e monótona, concorrendo para uma impossibilidade de
encadeamento lógico das frases. Segundo a autora, o depressivo, preso à sua dor, não
encadeia mais e, por conseguinte, não age, nem fala
527
. Tais fatores indicam que a
fragmentação consistiria num sintoma da condição melancólica, algo que se traduz, na
literatura, numa problematização das condições de escritura, uma vez que suspenderia
a ordem causal dos acontecimentos e a linearidade temporal dos fatos, só para
assinalar dois exemplos.
Nesse sentido, o sujeito, agredido pela violência constitutiva, afora a angústia,
sente-se descentrado, rompendo, assim, com a possibilidade de uma neutralidade do
olhar. Essas informações prestam-se para entendimento do protagonista de Quatro-
olhos, cuja essência subjetiva é fragmentada:
Falavam de futuro extremo, mas ao alcance de seus músculos e
suas respirações. Dominavam a vida, enquanto eu me perco ao sol,
poeira na garganta, luz sobre os olhos. Nesses recortes do pensar, vão
esmaecendo as cenas, em penumbras esquecidas, e somem de meu
quengo os restos do livro – é tempo de lançar-me n’água, aqui na
piscina de onde estou.
Mas me dói o olvidar e a água me molha por fora, enquanto por
dentro fico seco
528
.
Com base nos preceitos arrolados, a melancolia é uma condição motivada por
circunstâncias sociais, históricas e políticas, que perturbariam a plena realização do
sujeito. Assim, as formulações acerca do sentimento de luto e de tristeza requereriam
uma revisão de posições, já que estão vinculadas a contextos específicos de
desenvolvimento histórico de uma sociedade. Quatro-olhos apresenta um indivíduo
cujos hábitos, atitudes e comportamentos permitem caracterizá-lo como melancólico. As
527
Idem. p. 39-40
528
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 52.
275
razões que justificariam tal estado de alma do protagonista estariam assentadas no
período de crise ou de exceção no qual ele está radicado. Tais observações são
importantes porque se prestam para avaliar a relação entre melancolia e história no
Brasil.
Moacyr Scliar, ao traçar um panorama histórico do século XVI ao XX, observa
que, no período renascentista, os homens viveram um paradoxo. Os avanços científicos
e tecnológicos, que implicariam a idéia de progresso, geraram uma visão perturbada do
mundo, algo que propiciou intensas produções no campo artístico e filosófico. Aliada a
tais acontecimentos, a humanidade viu quebrarem-se os antigos paradigmas religiosos,
resultado da Reforma Protestante, assim como enfrentou a erupção de doenças como a
sífilis e a peste negra. Tais incidentes asseguraram uma noção de morte e finitude que,
dosada a uma falta de perspectiva do homem no mundo, gerou um desconforto que se
associa ao conceito de melancolia. Essa oscilação na esfera empírica – idealismo e
corrupção, riqueza e pobreza, otimismo e descrença – coincidiu com o início do
desenvolvimento do capitalismo e, como decorrência disso, com a ascensão do
individualismo, intensificando a melancolia e a depressão.
Scliar entende que a melancolia, no Brasil, deve ser pensada como resultado da
conjuntura histórica propiciada pelos europeus. Assim, ele acredita que a melancolia
deixa de ser um fato isolado de uma determinada comunidade para ser algo de caráter
cíclico que ignora fronteiras espaciais e culturais. A melancolia, segundo o autor, teria
passado de um país europeu para outro, culminando em Portugal. Este, a rigor,
experimentara a derrota na África, a morte de Dom Sebastião, a união com a Espanha,
a crescente influência da Inquisição, os governos despóticos e incapazes, o luxo, a
desmoralização dos costumes, a corrupção. Os portugueses, ao chegarem ao Brasil, no
século XV, teriam trazido consigo essa carga de valores, o que teria propiciado a
projeção de tristeza nos trópicos.
Assim, conforme o crítico, o sentimento melancólico alastrou-se no Brasil graças
a um conjunto de traços sombrios tais como as pestes, as transformações sócio-
políticas, a condição de inferioridade brasileira devido à difusão de idéias racistas, a
tristeza indígena decorrente do genocídio em massa, a tristeza dos negros em virtude
da escravidão, a tristeza latino-americana e a dos próprios imigrantes. Todo esse
quadro, somado à pobreza e à precariedade das condições humanas locais, expressaria
uma visão desanimada, pessimista e antiufanista do Brasil. Eventos como o carnaval, o
276
futebol, o humor e outros festejos populares serviriam para amenizar a dor e a tristeza
da sociedade
529
.
A perspectiva melancólica aparece em obras literárias não somente com o intuito
de dessacralizar a idéia da possibilidade de se conceber a imagem de sujeitos plenos
frente à conjuntura histórica, mas também com o fito de pôr em xeque as próprias
estruturas sociais calcadas em paradigmas positivistas. Quatro-olhos realiza um
mergulho na sociedade autoritária do Brasil ditatorial, e tal atitude gera uma sensação
de desconforto que, tradicionalmente, se associa à melancolia. Esta, a propósito,
desempenharia uma função prática, pois representaria para a elite dominante um afeto
perturbador, insensato e imprudente, colocando-se, dessa forma, contra uma falsa idéia
de otimismo e ordem social
530
. Portanto, pelo viés melancólico, a obra realiza um
mergulho no passado com o fito de realizar uma reflexão crítica do presente.
3.5.3 Uma leitura de fragmentos: as ruínas da história em Quatro-olhos
Contar é muito, muito dificultoso. No pelos anos que já passaram.
Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê,
de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria
sido? Agora, acho que nem no. Sôo tantas horas de pessoas, tantos
tempos, tudo muito recruzado.
(Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa)
As considerações precedentes permitiram verificar que existe um vínculo entre as
lembranças do passado e a atitude melancólica de Quatro-olhos. O livro apresenta o
exercício de uma consciência de recuperação de um passado, cujo sentido não é
inteiramente compreensível. Essa impossibilidade de apreensão da totalidade, somada
à violência constitutiva que caracterizou o contexto histórico brasileiro dos anos 1970,
contribui para a definição do perfil melancólico do protagonista. A sua consciência está
rodeada pela possibilidade da morte e da violência e, por isso, ele não apresenta a
mesma disposição da consciência do homem comum. A forma de narrar envolverá a
529
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
530
AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina.
Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 135.
277
atenção do sujeito para temas do passado e para si próprio no presente, buscando, em
meio a exaltações e à melancolia, conhecer o sentido de sua própria existência.
A experiência de vida de Quatro-olhos conduz não só a uma problematização da
linguagem, mas também a da própria forma de conceber o relato. Essa problematização
do sujeito é uma condição para que o livro apresente um discurso narrativo
fragmentado. Nele, observam-se vaivéns temporais, descontinuidade temática, imagens
aparentemente ilógicas, bem como comentários sobre a fragmentação. Num primeiro
contato, o romance demonstra-se desprovido de certa uniformidade. Ele é dividido em
três partes assimétricas: a primeira, denominada Dentro, apresenta vinte e quatro
capítulos; a segunda, Fora, contém quatro segmentos; a terceira, De volta, constitui-se
de apenas uma seção. Quanto ao narrador, ele é, na primeira parte, homodiegético; em
contrapartida, na segunda e na terceira parte, ele é heterodiegético.
Essa oscilação entre narrador homo e heterodiegético satisfaz uma consideração
importante acerca da organização da narrativa. O enredo do romance em questão não
se estrutura a partir de uma linha de pensamento ordenado, e se torna insustentável a
afirmação de que existe uma estabilidade neutra do olhar. Assim, na primeira parte, é
quase impossível situar com precisão o tempo e o espaço da narração. O narrador, ao
que parece, não dispõe de escolhas técnicas coerentes na elaboração de seu relato.
Com isso, nesse último, tem-se a manifestação de um fluxo ininterrupto de pensamentos
e de idéias que se exprimem numa linguagem frágil e sem nexos lógicos. Já a segunda
e a terceira parte contam com um narrador em terceira pessoa, onisciente, que
acompanha os fatos e, em seguida, os registra. Nesses últimos segmentos, há uma
certa organicidade no andamento de composição do enredo. O narrador, no capítulo
intitulado Fora, situa Quatro-olhos no hospício; no último segmento, De volta, o
protagonista está diante do psiquiatra que lhe dá autorização para deixar o local. A
recorrência a um tipo de narrador em detrimento de outro, por implicar diferentes
escolhas, sejam elas temáticas ou formais, acarretaria, segundo Maria Lúcia Dal Farra,
uma explícita tomada de partida, algo que se traduziria na expressão de uma
determinada ideologia
531
. Seja como for, segundo Flávio Aguiar, o livro entra na
linguagem do que se pode chamar de “o ‘moderno romance desfocado’ brasileiro”
532
.
531
FARRA, Maria Lúcia Dal. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo:
Ática, 1978. p. 51.
532
AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. São Paulo: Boitempo, 1997.
p. 150-151.
278
Assim, verifica-se que, quando compete ao sujeito narrar suas experiências, ele
se sente incapaz de atribuir legitimidade aos fatos. A submissão do indivíduo a
episódios violentos conduz a uma problematização da linguagem e, como decorrência
disso, do próprio relato. Nessa linha de reflexão, a rigor, habilita-se o pensamento de
Walter Benjamim. O autor procura desenvolver a idéia de que os homens no século XX,
ao retornarem da guerra de 1914 a 1918, demonstravam-se precários, ou seja, quase
que destituídos da capacidade de narrar plenamente. O filósofo, nesse particular, os
define como sendo “silenciosos” e “mais pobres em experiências comunicáveis”
533
.
No caso do romance de Renato Pompeu, essa mesma problematização se
expressa de outra forma. O livro apresenta um personagem que articula seu passado de
maneira descontínua, confusa e não linear, e o local em que esse sujeito se encontra
confinado – a sociedade autoritária do Brasil dos anos 1970 – pode ser equiparado a um
contexto de guerra e de conflitos. A fala de Quatro-olhos é o avesso ao silêncio, algo
que sugere, então, uma desmedida, uma hipertensão. O caráter tenso do discurso é
acentuado pelas passagens que problematizam o sentido de seu teor. Portanto, não é
por acaso que, em certa altura da primeira parte do romance, o narrador alude à
desordem como princípio da desarticulação da linguagem:
vamos armar grossa farra, vamos impor a ordem nesse caos, sou
partidário convicto da ordem; faça-se a ordem, pois – alguém dê a
ordem, acione o apito, primeiro o surdo, depois as caixas, tarol,
atabaque, cuíca e tamborim, haja ordem e não o caos desordenado das
conversas desconexas e isoladas, para fazer isso não precisa haver
reunião, fica cada um no seu canto ou cada par na sua cama que
ninguém vai incomodar, é preciso acabar com essa desordem
534
.
Quatro-olhos é constituído como manifestação de desordem e descontrole,
beirando o desconhecido, o não convencional. A forma literária e os temas se vinculam
em profundidade, sendo a desordem a base para a linguagem. A noção de causalidade,
que supõe a irreversibilidade da cadeia de acontecimentos, é abalada, o que confere à
história uma lógica própria. Na medida em que a causalidade for problematizada, o
universo deixa de ser algo totalmente explicado ou regido por leis regulares, previsíveis
533
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 115.
534
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 33-34.
279
ou controláveis. Esses detalhes contribuiriam para a compreensão do gênero
romanesco. Segundo Alfredo Bosi, o romance – “estrutura formada em uma sociedade
heterogênea, contraditória e descontínua” – procede sem modelos prévios. O seu herói
é problemático, pois deve construir para si mesmo, “em meio aos acasos e às rupturas
da existência”, um sentido que não lhe é dado jamais e poderá fugir-lhe para sempre
535
.
Num campo de combate, a vida mental está constantemente sujeita à desordem.
O impacto opressivo das experiências violentas no sujeito implica um comprometimento
das concepções tradicionais de representação. Ou seja, a opressão sistemática da
estrutura social interfere na constituição subjetiva do indivíduo, problematizando, assim,
o ato de narrar. Isso influenciaria na maneira de se avaliar a representação da história.
Esse romance, assim como outros que se assentam na fragmentação, resiste a
acomodações em lógicas lineares causais, ou a esquemas positivistas, incorporando
contradições e indeterminações, e se aproximam do que Benjamin propõe como
representação da história como uma sucessão de ruínas e de catástrofes
536
.
Com isso, a fragmentação também seria resultado da incapacidade de o artista
atribuir legitimidade aos eventos. Esse assunto, conforme se verificou, foi desenvolvido
por Márcio Seligmann-Silva. Por extrapolarem os limites de percepção da capacidade
humana, os acontecimentos de grande intensidade como o Holocausto desafiam os
historiadores e os artistas em geral no que tange às capacidades de legitimação dos
fatos
537
. Quatro-olhos é um escritor que procura registrar impressões sobre a história e a
sociedade de sua época. Nesse exercício, a frustração do protagonista pela luta da
expressão desvela-se pela incapacidade de esse indivíduo apreender a realidade
histórica e social assinalada por episódios agônicos. Conforme ele indica, “[e]screver
doía no coração”
538
. Afora esse indício, existem outras passagens no livro que chamam
a atenção para o desconforto do sujeito frente a questões de elaboração lingüística:
Interessante lembrar com pormenor as horas em que não fui autor,
quando nada recordo do livro.
Não que papel e tinta não estivessem ali à mão, mas como
alcançá-los, se nessa segunda-feira não me vinha o estímulo a obrar?
535
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985. p. 46.
536
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226.
537
Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional. Revista de psicanálise, São
Paulo, n. 116/117, p. 108-127, dez., 1998/jan., 1999.
538
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 64.
280
Portanto, me faltavam. Complexa rede de interações sociais, pois,
como se diz, a palavra nunca é alienada, materialização forçosa que é,
havia naquele dia se entrelaçado de maneira que me tirava da boca o
que tinha a dizer. Muito maior contribuição daria à ciência da estética
não quem explicasse a menor vírgula dos que escreveram, mas o
silêncio de quem não cria. Esse é o problema central, a meu ver
539
.
Aliada ao problema da rememoração, observa-se a impotência lingüística de
Quatro-olhos frente ao registro dos acontecimentos. Aqui, convém salientar a dimensão
meta-ficcional do relato, já que as condições de narração são objeto de reflexão. No
livro, o protagonista está tentando interpretar e entender as suas experiências de vida,
sua subjetividade e a sua relação com o mundo. Assim, a narração funciona ela própria
como instrumento de busca de sentido para o conjunto de experiências vividas. Em
outras palavras, a complexidade das experiências históricas, a necessidade de
equacionar o sentido de episódios importantes e a impossibilidade de conferir
legitimidade aos eventos são razões que impedem que se considere a narrativa de
Quatro-olhos como dotada de uma visão de conjunto organizada. A produção de sentido
e a organização de redes de relações entre os episódios fazem parte do processo em
que a narração se constitui.
Espera-se de um narrador que ele torne articulados, integrados e dotados de
sentido os dados da experiência, e que dentro dessa integração o estranho seja
assimilado e de algum modo aceito como algo que tem unidade se considerada a sua
totalidade. Não é isso o que se pode observar em Quatro-olhos. A problematização das
formas de representação entra em pauta porquanto o indivíduo é agredido pela violência
constitutiva. Isso significa que entre uma experiência traumática e um modelo artístico
está inserida a figura problemática do sujeito, nesse caso, do eu-narrador. O
protagonista – que, na primeira parte do romance, é também narrador – chama a
atenção para as condições de estruturação de seu livro. Os originais de seu trabalho,
escritos antes de ele ter sido preso e recalcado pela polícia política, continham certa
organicidade. Em contrapartida, subseqüentemente à repressão e à perda do livro, o
texto mostra-se isento de nexos lógicos ou de uma integridade de organização,
conforme a seguinte passagem elucida:
539
Idem. p. 38.
281
Mas vi, como não, apenas não tenho paciência para repeti-las,
pois o melhor do meu ser pus inteiro no livro e mais de uma vez – o
livro começou como uma coleção de historietas, no correr dos anos
conseguiu um fio condutor nas chamadas preocupações sociais da
juventude, transmutou-se depois numa avantesma fulgurante sob o
influxo avassalador do realismo fantástico e já estava inaugurando uma
cascateante nova corrente da literatura quando o perdi. De modo que
não venham agora com exigências, se quiserem coisa melhor achem o
meu romance ou procurem outro autor. Se quiserem ficar aqui, lambam
os dedos, que eu já limpei as mãos à parede; além do que tenho todo o
direito, como cidadão, de escrever o que bem entender
540
.
No romance, é elaborada ficcionalmente a noção de uma concepção humana
precária. Assim, a presença de um discurso descontínuo e fragmentado é decorrente da
própria problematização do sujeito, que não consegue atingir a sua integridade. É
possível observar que, de modo geral, ao longo da exposição do narrador, os
acontecimentos narrados não apresentam coerência e, como se não bastasse isso, não
há encadeamento lógico de motivos e situações do enredo, sustentado pela lei da
causalidade. Referindo-se aos personagens dos romances modernos, Anatol Rosenfeld
afirma que “[d]evido à focalização ampliada de certos mecanismos psíquicos perde-se a
noção da personalidade total e do seu ‘caráter’ que já não pode ser elaborado de modo
plástico, ao longo de um enredo em seqüência causal, através de um tempo de
cronologia coerente”
541
. Esses traços caracterizam o seguinte excerto do livro:
Ela [a esposa de Quatro-olhos], porém, me amava, o que só vim a
perceber muito recentemente, no intervalo do primeiro para o segundo
tempo de um jogo a que eu estava assistindo muito depois de tê-la visto
pela última vez. Continuo porém a comportar-me como se ela me
amasse ainda hoje, do que aos poucos fui adquirindo imutável certeza.
Mas foi nesse instante, lá no estádio a caminho da cerveja do meio-
tempo, que me lembrei não só que ela me amava mas também do livro.
O rebate do telefonema não fora verdadeiro. A roda de mãos dadas é
recordação de adulto. As crianças, como se sabe, não têm infância e
nunca brincam. A fila de ônibus, porém, realmente existiu. O rapaz
chegou para a moça da fila e disse: “Te trago um embrulho cor-de-
maravilha”. Era uma lata de goiabada, disso me lembro perfeitamente,
mas acho que não fazia parte do livro. O homem estava morto na
avenida. Acho que no romance não havia rosas
542
.
540
Idem. p. 44.
541
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto / contexto. 3. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1976. p. 85.
542
Idem. p. 20-21.
282
Quatro-olhos não consegue apreender o real de forma homogênea e contínua. O
sentimento de uma totalidade ordenada não se sustenta. Ele centra a sua atenção numa
pluralidade de elementos que, em si, não resguardam um nexo semântico lógico. Assim,
inicialmente, ele faz um comentário sobre o amor que sua esposa sentia; em seguida,
faz referência a um jogo a que estava assistindo; lembra de seu livro; fala de roda de
mão; de crianças, de uma fila de ônibus e, por fim, descreve a imagem de um homem
morto numa avenida. Com isso, a passagem transcrita é constituída como manifestação
da desordem, beirando o caos, ou seja, ela reúne uma série de imagens e de motivos
disparatados, o que desautoriza um comentário generalizante. Logo, é possível destacar
que o sujeito, bem como a imagem da sociedade que esse indivíduo projeta, estão
imersos num campo totalmente desarticulado, comprometendo a sua integridade.
Considerando-se os pressupostos teóricos desenvolvidos por Theodor Adorno
543
e Anatol Rosenfeld
544
, o narrador seria problemático, já que a segurança da consciência
em relação às suas referências de organização da realidade foi abalada. Em outros
termos, ele perde a garantia de que pode efetivamente articular referências, ele é um
narrador precário, incerto e inseguro quanto às possibilidades de sua própria
consciência pensar e representar o real. Sendo a vida algo de significado insólito, a
narração se desenvolve com falta de encadeamento causal, continuidade e amarração
interna. Além disso, a relação problemática com o narrar se vincula com a falta de
certeza do sujeito sobre a substancialidade do que está narrando. Esse conjunto de
elementos que Quatro-olhos aponta, por estar desprovido de nexos semânticos lógicos
e coerentes, sugere a instabilidade das coisas no mundo, abrindo horizontes
impensáveis para a relação da sua consciência em relação a esse mundo. Ou seja, a
desordem inerente às vivências se manifesta como instabilidade no controle do
pensamento e no sentir do protagonista, algo que se reflete no processo de narração.
Não é por acaso, então, que os diferentes capítulos de Quatro-olhos não
mantêm entre si qualquer vínculo semântico. A narração apresenta uma
problematização do encadeamento discursivo, resultado formal da quebra irredutível
atribuída ao princípio causa-efeito. Como resultado disso, a integração dos elementos
543
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Walter et al.
Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
544
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto / contexto. 3. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
283
nunca é atingida. O capítulo VI da primeira parte do romance em apreciação expressa
essa falta de continuidade dos assuntos narrados:
Em certo momento a narrativa tresandou a tratar de uma cebola.
De tão antigo e nobre vegetal, reverenciado pelos partidários dos
costumes sãos, desfolhava eu finas folhas translúcidas cor-de-prata,
deixada opaca a esfera símbolo do infinito, delicada casca vermelha
quebradiça a um lado largada, verdes efêmeros escapando pelas
nervuras esbranquiçadas dos círculos cortados. Estava a cebola posta
em seu canto sobre um prato à mesa, enquanto em derredor se
desenrolava instrutiva conversação, mas eu, num aventureirismo
técnico de velho conhecedor literário, discutia mais a cebola com a faca
ao lado num rebrilho de metal com vegetal, do que o tráfico de
palavras. (...) Com apuro nas cesuras entremeava eu frases esparsas
com delongas sobre o fruto doce e azedo. Disso tudo sobrava que o
casal ia separar-se.
(...)
Mãos grossas doem: esse duro invólucro de carne guarda entre
ossos e nervos as forças da criação, que moldam e alisam, amassam e
consertam, torcem e refinam, num exército de transformadores a fazer
nascer de pedra bruta ou metal seco o conforto e a harmonia. Por
vezes me dava de andar de ônibus até o Tanque das Mulatas ou o
Parque Casa de Pedra, a testemunhar essas mãos. No meu livro muito
tratava dos portadores de tais braços; agora me surgem entre nuvens
pálidas de suor em sangue, perdidos num céu escarlate em que flutua
aspirante ao infinito o rosto bem marcado de um amigo sumido.
Ele vinha da vila e dispunha de um guarda-chuva. Curioso e
oportunista, procurava o belo freqüentando restaurantes da moda, em
que escolhia pela coluna de preços o mais barato como seu prato. (...)
Ele passava por radical para sobressair, mas era radical no gosto por
filmes e teatros, no desancar artiguetes e jornalecos; com o guarda-
chuva em riste investia contra o “pequeno-burguesismo” de tal frase
num samba, do trajar de uma bela, de incerto fotograma do filme
francês em voga, incorridos em “desvios políticos”. (...) Meu amigo
oferecia bombons embrulhados em papel-alumínio amarelo, para fugir
do óbvio cinzento, e buscava oportunidades de tomar licor de uísque
em casa de paredes com papel, em que soltaria o verbo contra “o
caráter oportunista” de tal ou qual grupo estudantil organizado – e
organização para ele era sempre “burocracia”. (...)
Morreu em desastre de carro e assim o recordo sobre mãos
suarentas
545
.
O primeiro parágrafo do fragmento transcrito reúne detalhes sobre uma cebola.
Além de centrar a sua atenção nesse elemento que não apresenta qualquer relação
com outros tópicos do romance, o narrador descreve minuciosamente o objeto, como
que lhe atribuindo uma importância maior do que aquela que um possível leitor daria. A
545
Idem. p. 53-55.
284
última frase desse mesmo parágrafo parece romper com a expectativa de andamento da
narrativa, pois Quatro-olhos centra a sua atenção na separação de um casal. Esse
deslocamento de interesse do sujeito demonstra a sua inconstância bem como aponta
para a impossibilidade de ele manter estável seu olhar. Isso significa que cada parte ou
cada episódio de sua vida tem sentido e valor emocional específicos, o que faz com que
os nexos entre as várias partes não sejam evidentes. As partes de sua vida têm valores
particulares, e com suas lembranças relacionadas de forma irregular, ele percebe sua
trajetória não de maneira ordenada, mas numa espécie de fluxo desgovernado.
O segundo parágrafo apresentado reforça essa falta de andamento ordenado da
narração. As frases iniciais apresentam um comentário sobre mãos e o poder de
realização delas. Novamente, aqui, o protagonista desvia o seu olhar: ele deixa de lado
esse ponto de referência e passa a dedicar-se a um amigo desaparecido. Enfim, Quatro-
olhos relativiza sua própria posição diante do que narra, posição dependente, talvez, de
certas condições circunstanciais. Esse horizonte de incerteza, de loucura, de violência e
de morte, remove a evidência dos acontecimentos. A narração, em razão de tal
problema, ganha duas características que não estão desvinculadas. A primeira é a
problematização do encadeamento discursivo em que a noção de causa e efeito é
abalada. A segunda é a função que a narrativa assume de acordo com um aspecto das
concepções de história de Walter Benjamin: salvar os mortos, ou seja, resgatar aqueles
indivíduos, episódios ou elementos que estão em vias de se perder, mas que têm uma
importância fundamental para a atribuição de um sentido mais pleno sobre o passado. A
cebola, as mãos e o rapaz sumido, da forma como são expostos no relato, talvez não
tenham sentido para um leitor menos informado, mas possivelmente têm um valor
indiscutível para Quatro-olhos, que os resgata e lhes atribui significados. Enfim, o ato de
narrar, nesse caso, faz parte de um processo de busca de entendimento das coisas,
pois retoma diferentes focos, apreendidos por uma ótica emocional, submetidos a uma
atitude analítica.
Todos esses comentários apontam para a idéia de que a substância da vida, a
matéria vertente, o dado social e histórico, não apresentam formatos lógicos, possíveis
de serem apreendidos por esquematismos causais. A vida tem um formato inacabado,
inconcluso, aberto e fragmentário. Considerando os pressupostos de Benjamin, é
possível entender que a fragmentação do discurso do enredo se relaciona com a
condição própria da matéria histórica e sua representação.
285
O esquecimento propicia a fragmentação, ou seja, a incapacidade de lembrar o
passado é uma condição que faz com que idéias e pensamentos não se articulem uma
com as outras de maneira orgânica e homogênea. Quatro-olhos tem consciência da
precariedade da própria expressividade porque tem consciência de que é incapaz de
atribuir profunda legitimidade de reconhecimento dos tópicos ou dos motivos eleitos
para narração. Como conseqüência disso, ele reconhece a precariedade dos resultados
de seu trabalho:
Não me recordo se fiquei nisso quanto à moça; talvez a revisse
depois casada e com filhos ou talvez a mantivesse solteira – parece-me
porém que a larguei professora, dando conselhos às alunas a partir de
uma experiência que não tinha. Mas me lembro de ter falado alguma
vez de ventos a levantar saias de empregadinhas na vila, causando
grande tumulto entre os moleques, e também de festas com groselha e
framboesa e copos assim cheios de cores. Também me apanhei uma
ou outra ocasião a discorrer sobre nuvens, a decorar o céu com forma
diversa, alongando-se sutil contra o azul. Essas nuvens, no meu
escrito, condensaram-se e passaram a escorrer como gotas de chuva
sobre a calva de pacato cidadão dado a usar ternos de cor clara. Era
jovem ainda o careca a marchar solitário sob a chuva, em rua estreita
coberta de prédios do Itaim-Bibi, mantendo digno o mesmo passo como
se não estivesse molhado e desejoso de apressar-se. Enquanto andava
sob os pingos d’água, lembrava-se de como anos atrás, ainda
estudante, telefonara após o almoço para uma colega loura de
ascendência alemã, em cuja casa devia reunir-se um grupo de estudos
para a sabatina da semana próxima. (...)
(...)
Nem só de nuvens de chuva, porém, tratava minha obra. Falava
de chocolate quente em noites de frio, de filhos embrulhados em panos
de flanela, de cabelos soltos a esvoaçar ao vento numa praia de luz
fosca, de trevos encrencados em auto-estrada, de folhas secas presas
num livro velho
546
.
Nessa passagem, o narrador se defronta com a complexidade do processo de
narrar. Ele tem dificuldades de entrelaçar os diferentes tópicos numa rede de
significação coerente. O parágrafo, nesse sentido, apresenta uma sucessão muito
variada de referências as quais nem sempre se organizam tranqüilamente. Um após o
outro, surgem personagens, situações e circunstâncias que não se relacionam
objetivamente. Assim, ele inicia enfatizando a figura de uma moça; em seguida, refere-
se aos ventos; depois disso, chama a atenção para uma festa; passa a discorrer sobre
nuvens; elege como foco de análise um careca e conta dos telefonemas que fazia a
546
Idem. p. 80-81.
286
uma colega loura. Como se não bastasse isso, ele indica outros elementos presentes
em sua narração: o chocolate quente, os filhos embrulhados, os cabelos soltos a
esvoaçar, os trevos encrencados e as folhas secas. A primeira parte da obra, aliás, é
uma manifestação da desordem. O protagonista divaga por uma série de situações e
acontecimentos, fornecendo, ainda, pistas que auxiliam na compreensão das
circunstâncias e das condições sociais e históricas.
Segundo a interpretação proposta por Janete Gaspar Machado, alguns dos
pontos que caracterizam Quatro-olhos são a problemática da composição literária e a
dificuldade do narrador em escrever sobre a realidade. Da ótica da autora, o romance
não perde de vista as formas de opressão anuladoras do homem, especialmente do
personagem que narra. Daí que o fazer a obra consiste numa forma de se manter vivo
dentro do contexto social e opressor. O sujeito é alienado e expressa um profundo
desencanto em relação à realidade tal como se apresenta, o que explica a sua fuga para
a escrita e para a literatura. O personagem é tomado por uma forma de loucura, algo
que concorre para uma transgressão da ordem vigente, “transgressão aos padrões
habituais de comportamento, ao mesmo tempo em que se expõe como possibilidade de
libertação do mundo fragmentário”
547
. Essa transgressão, entretanto, não se limitaria
somente à subversão de padrões comportamentais. O livro efetua uma crítica ao
contexto cultural, “aproximando-se do discurso histórico, quando tematiza forças
ideológicas que agem contra a individualidade e contra a comunidade”
548
.
Detalhes acerca do contexto histórico são colocados no romance de forma um
tanto que restrita. Contudo, são eles que alargam a capacidade de abrangência da obra
em busca da totalidade cindida. A escrita, nesse turno, demonstra-se capaz de
cristalizar, em sua fragmentação, um mundo desmoronando e a reter a descontinuidade
dentro da ficção:
Flores plásticas cor de mel no parapeito do apartamento,
sandálias de couro pintado aos domingos, roupão felpudo e cerveja
doce, procurando o sentido do mundo no jornal com guerras distantes e
a opressão próxima, mãos inúteis a virar as folhas, sem cantar, sem
dançar, os músculos macios de minha mulher abandonados como num
jazigo, eu a exibir meus dentes, resfolegando e engolindo. Aroma de
panos de prato enxutos.
547
MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética.
Florianópolis: UFSC, 1981. p. 112.
548
Idem. p. 113.
287
(...)
Minha mão aquecida pintava a gente desfigurada, com teor novo
e grato, enquanto o colo de minha mulher ressentido se postava estéril.
Andaduras ritmadas contrapunham-se na avenida, em desencontro,
que eu retratava em esboço murcho como rosa engrouvinhada, com
voz morta em exército relapso. Custava dor ao peito testemunhar o dolo
ignóbil, a refulgir com nojo embolorado na noite vizinha, palhaço pálido
a retirar do coração fundo o futuro picado em pedacinhos dos nacos do
presente dilacerado, um espelho de fulgor ocre a difundir, com rodeios
de cheiro áspero, as esperanças do passado
549
.
Nesses trechos do romance, Quatro-olhos fornece alguns detalhes que viabilizam
uma caracterização da sociedade. Em certo ponto, ele faz referências à opressão
próxima; a seguir, chama a atenção para a idéia de um futuro picado e de um presente
dilacerado. O olhar do protagonista, nesse particular, corresponderia à capacidade de
percepção do historiador-alegorista, que se afasta da visão positiva da história, e a
define nos termos de destruição, de ruína. Essa mesma maneira de se avaliar o
discurso histórico é elaborada por Benjamin. O filósofo germânico, em suas teses sobre
o conceito da história, recusa a idéia de um tempo “vazio” e “homogêneo”. O tempo da
história é “um tempo saturado de ‘agoras’”
550
. Essa recusa da homogeneidade exige a
valorização do singular, fazendo com que o olhar dedique sua atenção a cada fragmento
do passado. Com isso, se teria a recusa ao tipo de pensamento historiográfico que –
comprometido com uma falsa ilusão de totalidade, sistematicidade e coerência – opta
por representar a história em esquemas gerais, deixando à margem objetos que julga
irrelevantes. O materialista-histórico, em contrapartida, procura formular um
conhecimento histórico a partir de fragmentos, prendendo sua atenção a cada elemento
singular e considerado pormenor.
No caso de Quatro-olhos, a idéia de ruínas está centrada na destruição, no
massacre, enfim, na constante possibilidade de se enfrentar uma situação dolorosa. A
consciência das condições presentes contribui para a definição do perfil do personagem:
ele tem receio do futuro e é inseguro na idéia de um devir estável. Conforme explica
Hannah Arendt, as previsões do futuro consistem em projeções de processos e
procedimentos automáticos do presente. Segundo a autora, pensar a história presente
implica considerar o imenso papel que a violência sempre desempenhou nos assuntos
549
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 94-95.
550
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 229.
288
humanos. Essa linha de pensamento elaborada por Arendt concorre para a formulação
do pressuposto de que o futuro da humanidade em geral vai ter pouco a oferecer à vida
dos sujeitos. A única certeza do futuro é a morte e um suposto progresso calcado em
constantes embates com forças antagônicas
551
.
O problema colocado por Walter Benjamin e por Hannah Arendt e, em certo
sentido, por Renato Pompeu através de Quatro-olhos, é o de representar a história de
uma experiência vivida em um universo em que a idéia de uma harmonia última, de uma
ordem do mundo, parece insustentável. A história, desse ponto de vista, se apresenta
como um amontoado de experiências de destruição, sem qualquer horizonte positivo ou
otimista.
As várias referências ao contexto histórico que aparecem em Quatro-olhos
apontam para essa linha de raciocínio. Dentre as marcas mais sugestivas, além das já
citadas, o protagonista, no capítulo IX da primeira parte, alude às “graves convulsões
sociais” no “coração do Brasil”
552
. No capítulo XVIII, ele faz um comentário sobre
“prisões por motivos políticos”
553
, o que vem a ser desenvolvido com maior consistência
no capítulo XXIII, em que ele acentua as prisões ocorridas “em 1964 e depois em
1968”
554
. No último capítulo dessa primeira seção do livro, Quatro-olhos chama a
atenção para o medo das torturas por parte de sua esposa: “– Eu não quero ser
torturada – ela explicou, correndo para o quarto e pegando duas malas”
555
. O receio da
mulher implica a consciência de esse tipo de violência ser comum e rotineira. Outros
indícios surgem na segunda parte do romance. No primeiro capítulo, existe uma
referência ao “mundo sujo” e também ao “medo das autoridades”
556
. No capítulo IV, há
uma frase que aponta para a questão do “choque elétrico”
557
. Na terceira parte do livro,
no diálogo entre o médico e Quatro-olhos, esse último afirma: “o fato é que fiquei preso
só algumas horas”
558
, tempo suficiente para ser violentado ou sofrer algum tipo de
violência.
551
ARENDT, Hannah. Da violência. In: ____. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 93-
115.
552
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 65.
553
Idem. p. 104.
554
Idem. p. 129.
555
Idem. p. 135.
556
Idem. p. 148-149.
557
Idem. p. 178.
558
Idem. p. 186.
289
As imagens apresentadas contrariam a idéia de que o Brasil pós-64 seja
constituído como manifestação da ordem. Essas cenas de desordem se vinculariam
também à disposição, por parte do homem, para a ação sem razão, infundada e
inexplicável. O protagonista fala das “irregularidades do mundo”
559
, algo que concorreria
para a sua perturbação, vindo, pois, a se traduzir na própria composição formal e
temática de seu livro:
Nesse livro eu punha coisas que vinham de fora de mim, é verdade,
mas eram pedaços significativos do que estava em volta, que
obedeciam à minha lei interna; todo o resto do mundo externo eu
ignorava como irreal, só assimilando o que estivesse de acordo com
minha lógica. (...) Pedaços assim do dia eram recolhidos para fundir-se
em meu coração com pensamentos ao mesmo tempo inquietos e
estáticos a surgir caprichados no escrito
560
.
Partindo-se do princípio de que o indivíduo tem uma vida maleável e aberta para
a inconstância, pode-se afirmar, nesse particular, que o modo como o romance em
questão apresenta-se estruturado acentua um traço processual da constituição de
Quatro-olhos. A primeira versão do seu livro obedecia a leis de coesão e coerência
interna. Ao contrário disso, a tentativa de reescrever o seu trabalho desponta-se em
dificuldades. Vinculado às circunstâncias, o teor problemático do ato de narrar está
ligado aos detalhes da experiência vivida pelo narrador: violência social, repressão física
e psicológica, loucura – esses elementos se ligam uns aos outros e explicam a
organização da narrativa. Nos termos do protagonista:
No livro tudo era perfeito e absoluto, lógico e reto, sem
reentrâncias ou desastres. Escrevendo-o, eu não era um ser adjetivado
por tempo, lugar e circunstâncias, não era passageiro de bonde, bom
em Português, mau em Matemática, leitor do Lello Universal, fraco em
ginástica (...). Nada disso, porém, aparecia no livro, que era total e
asséptico; nele encontravam guarida apenas flores frugais, tijolos
esquecidos, pés louçãos
561
.
559
Idem. p. 110.
560
Idem. p. 110-111.
561
Idem. p. 111-112.
290
O conflito entre o conteúdo do romance perdido e o do romance reescrito é o
motivo básico da fragmentação estrutural do relato, justamente porque impõe a mistura
de rememorações do texto perdido com a realidade presente. Tal fusão, a rigor, leva ao
desdobramento de quatro narrativas ao invés de uma: a primeira seria a narrativa
contida no livro perdido; a segunda seria a narrativa com o intuito de reescrever o
trabalho extraviado; a terceira consistiria na narrativa da vida do narrador envolvido num
contexto que ele repele; por fim, a narrativa pronta, o romance Quatro-olhos, que
comporta essa disparidade. São algumas perspectivas de abordagem da realidade, e o
livro fixando a matéria poética, valendo-se da montagem fragmentária do conteúdo
ficcional para atingir o seu objetivo.
Quatro-olhos é uma obra cujo discurso é fragmentado. Tal particularidade, como
se procurou constatar, está calcada na problematização das rememorações do passado
e na atitude melancólica do protagonista. O problema da memória, o teor melancólico do
narrador e a fragmentação dialogam um com os outros, mas também mantêm relações
com o contexto histórico aludido pelo romance. Assim, a fragmentação – longe de
expressar uma visão fechada e acabada do mundo – presta-se para causar um efeito de
choque no leitor habituado ao desenvolvimento tranqüilo dos textos realistas. As fissuras
propiciadas pela narrativa propriamente dita possibilitam associações em diferentes
níveis, algo que acarreta a dessacralização da idéia de uma visão unitária e unilateral de
organização da vida social. Tudo isso propiciaria novas formas de se ver o mundo, não
uma forma acabada, mas aberta, em vias de se fazer e da qual o leitor teria alguma
participação.
291
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ZERO, A FESTA, REFLEXOS DO BAILE, QUATRO-
OLHOS: FRAGMENTOS DE UMA ÉPOCA
As considerações expostas ao longo do presente trabalho permitiram verificar
que as definições para o conceito de autoritarismo são de grande complexidade e
abrangência. O século XX representou um momento fundamental da história da
humanidade, pois o que norteou a sociedade moderna foi justamente o embate de duas
perspectivas paradoxais. Quando era esperado de tal período o esclarecimento, a idéia
de progresso, desenvolvimento, emancipação e autonomia do sujeito, foi possível ver
que, acompanhados de tais conquistas, vieram o sacrifício, a dominação, a regressão, a
barbárie e a destruição. A razão que supostamente habitava o mundo o havia
destroçado e tornado irracional. O projeto de emancipação firmado pela razão se
encaminhava para o seu oposto: a ausência do indivíduo e a vitória do totalitarismo.
Com isso, o progresso, a técnica e a ciência foram convidados a se sentarem nos
bancos dos réus para justificarem seus atos. A perplexidade diante dessa
irracionalidade gerou no homem um sentimento de desconfiança na consecução de uma
sociedade emancipada.
Frente a isso, pensadores como Theodor Adorno e Max Horkheimer chegaram ao
fim de suas vidas convictos de que a razão não mais se definiria como eticidade: modo
correto de agir. Isenta de sua capacidade crítica e dessa eticidade, razão significava tão
somente razão instrumental, isto é, ação conforme interesses individuais e egoístas,
compreensão de tudo como meio para fins e, portanto, atitudes utilitaristas e
pragmáticas. A civilização ocidental, alicerçada na racionalidade técnico-científica e
292
instrumental, parece negar os elementos que possibilitaram, em certos momentos, a
emancipação dos homens. Estes, embora firmados como indivíduos, tornaram-se
apenas mônadas dispersas na coletividade, incapazes de estabelecerem relações
intersubjetivas que interrompessem o ciclo da reificação e de atenderem aos apelos do
mágico, do prazer e dos sentimentos. Assim, as patologias da modernidade parecem
ser oriundas da aplicação de uma racionalidade estreita a todos os comportamentos
humanos.
Nessa perspectiva, o modo de pensar cientificista tem como alvo preferencial a
disseminação da ideologia dominante, buscando, através dos processos de submissão
da ordem instituída, fazer ou produzir o homem projetado segundo a lógica da
identidade e do modelo mecanicista da natureza. Não interessa a esse padrão de
conhecimento investir em um modo de pensar assentado numa lógica da diferença e,
por isso mesmo, tudo o que é não-idêntico e constitui o outro da razão deve ser
colocado fora de um determinado esquema de pensamento já que é suspeito de
irracionalidade. A idiossincrasia aos judeus, como um comportamento alérgico e de
repulsa, enquadra-se nessa dinâmica. Perseguidos historicamente, eles desenvolveram
comportamentos de adaptação ao meio e de esquiva que chamam a atenção
justamente porque tentavam passar despercebidos. Essa marca de perseguição
desperta sentimentos de raiva, aliando-se, enfim, ao prazer do algoz em praticar a
tortura. De forma análoga, toda sociedade monta o seu arcabouço de excluídos. Via de
regra, negros, homossexuais, mendigos e prostitutas, só para citar alguns, são utilizados
como grupos que não se enquadram na ética do sacrifício, do esforço e do trabalho.
Disso tudo, resulta que, no contexto mundial, a catástrofe de maior alcance
parece ter sido o Holocausto. Nesse caso, o triunfo final coube à lógica da identidade, já
que esta prevaleceu sobre a diferença, pois os judeus representavam essa diferença no
coração da Europa. Sua conseqüência desemboca numa formação regressiva, pois se
petrificam categorias fixas de pensamento que, isoladas, se transformam em ideologia
de exclusão. Como a razão é incapaz de pensar o outro e a diferença em sua estrutura
interna, torna-se justificável e aceitável o extermínio de milhões de pessoas nos campos
de concentração nazistas. Agora, o sofrimento de indivíduos concretos é mais forte do
que o apelo a uma suposta totalidade reconciliada. O real que se mostra é constituído
de essência e de aparência, e é preciso penetrar na essência, porque ela determina o
293
verdadeiro ser da sociedade. Assim, a irracionalidade do real se impõe como uma
realidade a ser refletida e transformada.
Coube aos pensadores da Escola de Frankfurt, mais notadamente Theodor
Adorno, Walter Benjamin, Max Horkheimer e Hannah Arendt, resgatarem os ideais da
modernidade de forma radicalmente crítica. Para eles, a história não era linear nem
homogênea, mas permeada de conflitos e contradições. Assim, essa reflexão lançada
sobre a sociedade, especificamente no que dizia respeito aos problemas do capitalismo
e do totalitarismo, representou o exercício de pensar a própria racionalidade. A
modernidade e seus colapsos ocupavam o centro nevrálgico das questões acerca da
razão em todas as suas implicações. Com isso, a teoria crítica esboçada pelos aludidos
filósofos trazia em si elementos de transformação. Ela é a negação do estabelecido, a
negação de todo e qualquer momento de positividade que se recuse a contemplar o
homem como um sujeito e a sociedade como o lugar da liberdade e da justiça.
Tomando como base essas considerações, é importante ter em conta que o
processo de reflexão da situação mundial implica a necessidade de se voltar a atenção
para o contexto nacional. A exemplo do que se verificou na Europa, o Brasil também foi
palco de uma série de conflitos que expressaram um perfil autoritário de formação.
Embora o século XX denuncie essa idéia com maior visibilidade, as teses são enfáticas
no sentido de que se vislumbrem marcas de violência em toda a história brasileira. O
extermínio em massa de indígenas, a escravidão dos negros e a exclusão das minorias
sexuais ao longo dos séculos somados à perseguição e ao assassinato de inúmeras
pessoas durante o Estado Novo e a Ditadura Militar não podem passar em branco.
Resguardadas as suas particularidades, o Brasil assimilou um conjunto de práticas de
exclusão adotadas na Europa pelos criminosos nazistas. O nazismo moldou grande
parte da população à sua máquina de guerra, na utilização da força psíquica
inconsciente das massas, algo que se observou no Brasil, já que muitos compactuaram
com as premissas ideológicas dos militares.
A elucidação dessas questões é essencial para se compreender o
comportamento da produção artística nesse recorte temporal. No âmbito literário
brasileiro, os anos 1975 e 1976 são importantes, porque é nesse período que o romance
entra em cena e procura realizar um acerto de contas com as experiências históricas e
sociais verificadas nas décadas anteriores. Durante os anos 1945 e 1964, o país viveu
uma avançada experiência de democratização. Com isso, parecia que as classes
294
populares participariam de maneira duradoura nas definições da vida nacional. Além do
mais, esperava-se que o Estado protegesse as artes e as letras contra a invasão
estrangeira, dando cobertura à precariedade de um passado escravocrata e a um
presente analfabeto. Entretanto, quando o Estado, em 1964, tornou-se o representante
das elites, a sua imagem protetora ruiu. Conforme Flávio Aguiar, “a imagem de uma
nação em que diferentes classes se uniam em torno de um projeto de desenvolvimento
e modernização começou a se fragmentar”
562
. O período imediatamente posterior a
1964 é de perplexidade: a sociedade perdeu seu rumo, a vida de cada um passa a ser
controlada e supervisionada, a violência se faz presente na ordem do dia e o
autoritarismo ganha contornos nítidos.
Poetas e artistas perceberam-se marginalizados, já que, ao invés da proteção
almejada, eram censurados. Após alguns anos de crise, o Brasil passa por um processo
de modernização, vale dizer, muito veloz, e restrito a uma sociedade de classes em
processo de capitalização exponencial. É sobre esse quadro que se projetam o discurso
desintegrado das narrativas e a imagem insistente da marginalidade. Assim, para esse
primeiro acerto de contas, são justamente os quatro romances que constituem o corpus
dessa pesquisa que tentam responder à complexidade de sua época. Zero, de Ignácio
de Loyola Brandão, A festa, de Ivan Ângelo, Reflexos do baile, de Antonio Callado e
Quatro-olhos, de Renato Pompeu, resguardam particularidades que, articuladas uma
com as outras, fornecem uma ampla visão de um momento crítico da história nacional.
Eles se colocam contra uma suposta idéia de racionalidade, desenvolvimento,
modernização, uniformidade e totalidade que a ideologia buscava implantar.
O que está manifesto nesses livros é a sua fragmentação. Foi em torno desse
tópico que as análises empreendidas ao longo do presente trabalho procuraram radicar.
Os livros citados abandonam aquela perspectiva realista de composição nos moldes
defendidos por Georg Lukács, dando, inclusive, passos além à tradição inaugurada, no
Brasil, por Machado de Assis e pelos modernistas do início do século XX, no sentido de
que se valeram de elementos que ganharam grande visibilidade nos decênios finais do
referido período. Parece que a Ditadura Militar ditou algumas regras que, direta ou
indiretamente, se fizeram notar nessa última produção ficcional. Primeiro, porque a
derrocada da imagem de uma nação amplamente protegida pelo Estado e a crise ética
em que a intelectualidade mergulhou foram demasiadas para caberem dentro das
562
AGUIAR, Flávio. Os mensageiros de Jó (notas sobre a produção literária recente no Brasil). In: ____. A
palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. São Paulo: Boitempo, 1997. p. 183.
295
formas de consciência e linguagem que a tradição legara
563
. Segundo, porque o período
pós-64 foi tão violento, caótico, indefinido e contraditório, que os romances produzidos
nesse momento ganharam formas de modo a responderem a tais caracterizações.
Tanto nos seus temas quanto nas suas opções estilístico-composicionais, Zero,
A festa, Reflexos do baile e Quatro-olhos resguardam algumas diferenças, mas são
as semelhanças que interessam mais. O aniquilamento do sujeito e a desintegração da
consciência do narrador foram tópicos de análise a partir do livro de Loyola Brandão.
Entretanto, essas mesmas questões são perfeitamente visíveis nos outros textos.
Assim, em A festa, não faltam exemplos de personagens perseguidos e massacrados
pelo poder: são os casos dos flagelados nordestinos que chegam à estação ferroviária
mineira um dia antes da Revolução, do repórter Samuel Aparecido Fereszin ou mesmo
dos convidados da festa promovida pelo artista homossexual Roberto Miranda em 1971.
Em Reflexos do baile, a repressão fica reservada ao grupo de revolucionários que
planejavam o seqüestro da rainha inglesa e o desligamento da luz na cidade do Rio de
Janeiro como forma de protesto e tomada de poder. Em Quatro-olhos, o protagonista é
um sujeito desiludido, pois tenta em vão articular seu passado e atribuir um sentido ao
seu presente. Em todos esses casos, o narrador é problemático, haja vista os casos de
Zero, A festa e Reflexos do baile, em que ele aparece basicamente nas notas de
rodapé.
Outro tema comum a essas obras é o tratamento dado à violência e ao
autoritarismo ao longo da história do Brasil. Embora esse assunto tenha recebido mais
atenção na leitura de Reflexos do baile, ele aparece representado em A festa e
Quatro-olhos. No primeiro livro, os capítulos e mesmo fragmentos dentro do capítulo
inicial aparecem datados como forma de assinalar um processo contínuo de exploração
e de descaso a que enorme parcela da sociedade está entregue. No segundo, é
exemplar a cena em que Quatro-olhos retrocede no tempo e descobre que milhares de
índios haviam sido exterminados, fato que o leva a pôr em xeque a sua própria
identidade. Nos três casos, a consideração ao passado é importante porque desperta no
leitor uma leitura crítica do presente e uma avaliação das projeções do futuro.
A questão da memória e do esquecimento foi matéria de análise a partir da leitura
do romance de Renato Pompeu, mas o assunto pode ser verificado nos outros três
563
Cf. idem. p. 183-184.
296
textos. Em Zero, são comuns passagens em que policiais alegam a necessidade de
assassinar as pessoas torturadas justamente para que não relatem os fatos ou não
façam denúncias na posteridade. Nas obras de Ivan Ângelo e Antonio Callado, é a
própria volta a situações ou episódios do passado que constitui o tema da memória cujo
intuito gravita em torno do imperativo do não esquecimento.
Provavelmente, esta seja uma das matérias mais urgentes na atualidade. O
homem moderno perdeu o contato com o sofrimento como um componente importante
da formação histórica e cultural de seu povo. Cada vez mais, as pessoas são levadas
pelas facilitações prometidas pela indústria do lazer e da diversão. Pressionados por
esse contexto, os indivíduos saem em busca das facilidades. O interesse pelas
condições históricas de uma sociedade, pelo passado das gerações, pela essência e
pelo valor das circunstâncias e das coisas da vida está ficando em segundo plano. Os
indivíduos estão entregues a uma semi-formação
564
, já que estão perdendo o contato
com o princípio básico da sabedoria. Nessa era tecnológica, o acesso acaba sendo ao
de um mundo cultural empobrecido, em que o conhecimento, como experiência plena de
sentido, é substituído pelo entorpecimento e dessensibilização massiva. O resultado é
um processo contínuo de dominação e a possibilidade de retorno à barbárie.
O tema da melancolia ficou reservado para Quatro-olhos. Apesar disso,
sentimentos de perda e de finitude, falta de perspectivas com o futuro, sensação de
desconforto e medo, tudo isso se faz presente em Zero, A festa e Reflexos do baile.
No primeiro caso, é justamente a falta de perspectiva e o sentimento de transitoriedade
e de perigo que levam José a adotar um estilo de vida pautada na ilegalidade: de
matador de ratos, torna-se ladrão e assaltante para, por fim, virar assassino. A sua
mulher, Rosa, também apresenta sintomas de melancolia. Ela se casa, mas a sua
desilusão com o casamento é tão acentuada, que ela acaba se envolvendo com rituais
demoníacos, sendo sacrificada. Em A festa, não faltam exemplos de personagens
melancólicos. É o caso dos nordestinos desamparados pelo governo; de Andréa, que se
sente perdida em Belo Horizonte e tem suas perspectivas frustradas pela sociedade; do
repórter Samuel Fereszin, que se sensibiliza pela situação dos flagelados, mas que tem
seus planos castrados pelos militares. No último caso, os personagens Beto, Juliana,
Dirceu e Felipe não têm suas perspectivas de libertação atendidas, e é o sentimento de
desconforto, de finitude e de medo com a situação que os torna desiludidos e
564
O assunto merece atenção em ADORNO, Theodor. Teoria da semicultura. Revista educação e
sociedade, Campinas, São Paulo, Papirus, n. 56, ano XVII, p. 388-411, dez., 1996.
297
melancólicos. Nos quatro romances, a melancolia tem sua motivação nas condições
históricas.
A polifonia, isto é, a multiplicidade de vozes e consciências independentes, foi um
assunto reservado para A festa. No entanto, essa mesma particularidade aparece em
Zero e em Reflexos do baile. Na obra de Loyola Brandão, as opiniões e os pontos de
vista sobre determinados temas ligados à repressão do momento são muito comuns.
Algo similar pode ser notado no livro de Antonio Callado. Nele, observam-se juízos e
depoimentos oriundos dos mais diferentes grupos sociais: revolucionários, policiais,
embaixadores e diplomatas. É importante entender que, em todos os casos, o recurso à
polifonia não é gratuito. A soma de vozes e estilos, a simultaneidade de idéias e
julgamentos, tudo isso rompe com o autoritarismo do discurso, já que possibilita a
encenação de várias perspectivas a partir de um mesmo objeto.
A questão da comicidade foi explorada de maneira mais sistemática na análise
do romance de Antonio Callado. Em meio a um clima apreensivo e autoritário, o riso
surge como forma de dessacralizar concepções e conceitos rígidos. O Brasil,
abandonado pelo Estado num momento delicado de sua história, deixa de ser visto
como uma pátria que mereça ser tratada com profunda seriedade. Zero, por exemplo,
lida com temas delicados para a intelectualidade da época, mas elabora situações
completamente cômicas, abandonando, inclusive, os exercícios de alta retórica e
investindo num tom mais coloquial. A festa, de Ivan Ângelo, também não dispensa
situações que fogem do rótulo da seriedade. Nesse caso, o gracejo fica por conta do
uso de vocábulos e expressões de baixo calão, bem na contramão da proposta
ideológica sustentada pelo poder. Além disso, o romance procura ridicularizar as
atitudes e o comportamento da pequena burguesia sofisticada e provinciana. Em
Quatro-olhos, é hilariante a passagem em que o narrador descobre o prazer de curtir
seus antepassados indígenas, optando por andar nu pela casa, tomando pinga, na falta
de cauim. Nesse particular, o protagonista age numa atitude de repulsa à situação
presente e mesmo de protesto com o passado histórico. Talvez em todos esses casos o
que motiva o humor é um fino matiz melancólico que perpassa a consciência dos
narradores, já que a melancolia envolve um componente de dualidade, ou seja, deve-se
entender o cômico enquanto a antítese do que é de mais sério.
Além do mais, as quatro narrativas mantêm um estreito vínculos com as técnicas
da reportagem jornalística e com os meios da indústria cultural. Loyola Brandão, Ivan
298
Ângelo, Antonio Callado e Renato Pompeu foram jornalistas, o que justifica a eficácia
com que fazem uso de certos recursos. Nada disso, entretanto, é gratuito. Tais
expedientes devem ser pensados em função dos fatos técnicos da situação da época,
exigindo, com isso, formas de expressão adequadas às novas energias literárias. O
questionamento da linguagem está presente como tema e como problema, satisfazendo
a premissa benjaminiana segundo a qual uma tendência literária correta deve expressar
uma tendência política correta. Assim, provavelmente, este seja um alicerce no qual os
autores se apoiaram como meio para conseguirem narrar um mundo que se tornou
inenarrável.
Por fim, o que surge de mais comum em todas essas obras é a fragmentação.
Temas como a desintegração do sujeito dentro de um sistema autoritário, a violência
como algo intrínseco à constituição da sociedade brasileira, o problema do
esquecimento e do apagamento do passado enquanto estratégia ideológica, o
sentimento melancólico resultante de um sistema bruto e desumano, o cômico e
polifônico, tudo isso estabelece relações com a falta de unidade das narrativas. Se cada
uma dessas questões estabelece vínculos com o social e se cada um desses
imperativos motiva a fragmentação, então esta surge como resultado de um processo
histórico calcado na desordem, na inconsistência de valores e na incerteza de algo
proeminentemente seguro. A fragmentação, então, se vincula à fuga de um mundo
estandardizado e conduz a uma leitura da história a contrapelo.
Além disso, os entrelaçamentos acima efetuados servem para demonstrar que
Zero, A festa, Reflexos do baile e Quatro-olhos podem ser lidos em conjunto, já que,
durante o processo de leitura e de interpretação, um parece dar ênfase a questões que,
às vezes, não são tão salientes assim em outro. Justamente por resguardarem
características comuns, cada um desses romances diz um pouco de seu momento
histórico e, por isso mesmo, eles se constituem em fragmentos de uma época, que,
quando articulados uns com os outros, têm um alcance maior, no sentido de que
induzem o leitor a ter compreensões até então não alcançadas. Se essa lógica de
raciocínio é válida, o ledor vai poder estabelecer relações profundas não apenas no
texto ou entre um texto e outro, mas entre o texto e a sociedade. Quanto mais intenso
for esse nível de leitura, mais o homem vai se humanizar porque vai conhecer melhor a
sua história, a sociedade a que pertence e toda ideologia que o cerca e o molda. Seja
como for, há uma necessidade de participação ativa do leitor, e talvez o caso mais nítido
299
dessa importância esteja na leitura de A festa, já que, no livro, há o antes e o depois da
festa, não há o durante a festa, a que se refere o título. Considerando-se essas
particularidades, a literatura se colocaria contra o autoritarismo de um determinado
período, já que seu imperativo é de não calar, de não deixar ninguém acomodado,
quando a ordem não é esta.
Os quatro romances, como não poderia deixar de ser, resguardam algumas
diferenças, as quais estão mais por conta de suas formas de apresentação. Zero,
embora alegoricamente diga respeito à situação do Brasil durante a Ditadura Militar,
refere-se a um país do futuro, e seu enredo é formado por fragmentos mais sintéticos se
comparado aos demais textos analisados. A festa é constituído por vários contos que
aparentemente não têm associação. É pela técnica do contraponto que eles ganham
ligação e dizem da complexidade do momento. Reflexos do baile é formado
basicamente por cartas, telegramas, diários, e esse modo de composição não é tão
enfático assim nos demais livros. Quatro-olhos foge de tais empreendimentos, já que é
narrado em primeira e em terceira pessoas. Sua fragmentação resulta de um processo
de composição diferente das demais obras. O levantamento de divergências entre os
textos não se resume a isso e exigiria um estudo mais detalhado em um momento
posterior.
Não se espera que essas aproximações sejam exaustivas ou definitivas. Ao
contrário, elas surgem, no âmbito desta pesquisa, mais a título de sugestão ou
provocação. Se for válida a idéia de que cada uma das obras que formam o corpus do
trabalho são fragmentos de uma época constituídos por outros fragmentos, então, a
exemplo da arte surrealista, elas são regidas por um princípio segundo o qual essas
partes não se submetem a um todo mecanicamente, mas possuem certa independência,
que é a da articulação livre. Assim, as questões levantadas em cada romance podem
ser procuradas em outros livros que surgiram no período ditatorial brasileiro. Só para
ficar naqueles em que se percebe algum tipo de fragmentação: O caso Morel (1973), de
Rubem Fonseca, Confissões de Ralfo (1975), de Sérgio Sant’Anna, Mês de cães
danados (1977), de Moacyr Scliar e Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós.
Fonseca aborda a história de um artista, o pintor Morel/Moraes, acusado de
assassinar a sua amante Joana/Heloísa. Na prisão, aproveita para escrever um livro
autobiográfico, expondo seu ponto de vista sobre os fatos, deformando a perspectiva da
realidade. O protagonista entrega os manuscritos ao seu advogado, que tenta organizá-
300
los com vistas à publicação e mesmo para livrar o personagem da acusação. O texto
apresenta uma forte desintegração da estrutura narrativa ficcional. A obra de Sant’Anna
diz da própria autobiografia de Ralfo. Nesse caso, o livro avança para o absurdo e para
o fantástico, rompendo barreiras da lógica convencional. Scliar aborda aspectos
políticos da história do Brasil que se relacionam com as ocorrências de agosto de 1961.
O texto é narrado do ponto de vista do narrador, Mário Picucha, que, dispondo de
recursos de memória, tece uma narrativa entrecortada, entremeada de citações de
manchetes jornalísticas, em que os acontecimentos não obedecem a uma cronologia
linear. Tapajós denuncia um momento histórico marcado pela repressão e pela
violência. Valendo-se de uma linguagem jornalística e de técnicas do romance-
reportagem, o narrador constrói um relato fragmentado, com peças espalhadas, que
exigem articulações.
De uma perspectiva mais ampla, os tópicos eleitos para análise, tal como foram
apresentados antes, podem motivar, por si só, outros trabalhos, se forem levadas em
conta outras obras da literatura brasileira produzidas em épocas diversas. Assim,
surgem algumas propostas: que fatores levariam a afirmar que personagens de
romances como Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis, Os ratos (1934), de
Dyonélio Machado, Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa e A hora da
estrela (1977), de Clarice Lispector, são representações de uma constituição precária
do sujeito? Por que, em Infância (1945) e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano
Ramos, há uma problematização em torno da questão da memória? Por que é possível
verificar grande densidade de elementos melancólicos em livros como Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, Triste fim de Policarpo
Quaresma (1911), de Lima Barreto, A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond de
Andrade e Morangos mofados (1982), de Caio Fernando Abreu? Dito em outros
termos: qual a razão de tanta melancolia na cultura brasileira? Qual o sentido da
polifonia em O senhor embaixador (1964) e O prisioneiro (1967), de Erico Verissimo?
Por que Jorge Amado opta por um discurso carnavalizado em A morte e a morte de
Quincas Berro D’Água (1959)? Por que a opção pelo humor e pela sátira em
passagens de Memórias de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antonio de
Almeida, Macunaíma (1928), de Mario de Andrade e Estrada nova (1954), de Cyro
Martins? Enfim, as possibilidades são inúmeras e o que se coloca aqui são apenas
alguns exemplos.
301
Pensar as diversas formas de autoritarismo presentes nas sociedades
contemporâneas e estimular a discussão sobre tais questões são tarefas urgentes e
imprescindíveis. O passado repercute no presente e, por isso mesmo, é preciso que
cada indivíduo tenha acesso às suas condições de existência, a fim de que, ao perceber
a linha sinuosa de sua trajetória, se esforce na projeção de um futuro novo, mais
retilíneo. A literatura, pelo que se procurou demonstrar, está a serviço de tal empreitada.
Às vezes, é certo, ela anda por caminhos pedregosos e exige de seus leitores que a
acompanhem nesse terreno. Talvez seja essa a sua missão. Comovido e desaquietado,
esse leitor busca uma saída. Assim, o que se propôs ao longo desse trabalho foram
algumas rotas de fuga, mas que conduzem ao interior do debate.
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