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Emília Mendes-Lopes
CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DO CONCEITO DE
FICCIONALIDADE E DE SUAS CONFIGURAÇÕES
DISCURSIVAS.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras – UFMG
2004
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Emília Mendes Lopes
CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DO CONCEITO DE
FICCIONALIDADE E DE SUAS CONFIGURAÇÕES
DISCURSIVAS.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos Lingüísticos da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Minas Gerias, como requisito parcial para a
obtenção do título de doutor em lingüística.
Área de concentração: Lingüística
Linha de pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Profa. Dra. Ida Lúcia Machado
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2004
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Dedico este trabalho:
Àqueles que sabem que a vida,
sem um toque de ficcionalidade,
é um barco sóbrio, remado, a duras penas, pelos soldados do tédio,
singrando um mar cinza, espesso e de difícil navegação.
Àqueles que sejam bem-humorados, espirituosos & sarcásticos.
(E que esse bom humor se estenda a ponto de suportar
ser mencionado na dedicatória em uma tese...)
Também dedico este trabalho, munida do mais alto grau de solidariedade,
A todos os sobreviventes da TESE,
grupo do qual talvez faça parte de agora em diante.
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AGRADECIMENTOS
Nas teses, o ato de agradecer, em geral, é quase sempre
desprovido de emoção, embora a função do agradecimento devesse ser
exatamente «emocionar». Infelizmente, nem sempre nossa gratidão pode ser
expressa da forma e com a intensidade que julgaríamos representativas do que
sentimos. A seção «agradecimentos» é quase sempre um amontoado de frases
protocolares, burocráticas, por vezes tão envernizadas que o público externo
nem pode entender o porquê daquele reconhecimento ou homenagem. Assim,
resolvi fazer um agradecimento prosaico... O que há para agradecer em um
trabalho desse porte? Por onde começar?
Uma tese, a meu ver, está de uma forma ou de outra ligada às
pessoas, aos fatos que nos circundam e à história que é construída nessas
relações: vivemos na rotina angustiante da aquisição do conhecimento;
passamos pelo desafio da busca de um artigo ou livro que brinca de esconde-
esconde com a gente (e é justamente aquele «texto», achamos, que vai
«salvar» a nossa vida); encontramos paradoxalmente conforto e desconforto na
sala do orientador, mas também cortesia, compreensão e amabilidade nas
relações com ele (pelo menos é o que se espera); os comentários, as opiniões e
os valiosos e cruciais desabafos na cantina entre um intervalo e outro, em geral
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regado a um café de péssima qualidade.... No transcorrer de quatro anos, são
tantas as pessoas que perpassam nossa existência que se torna difícil, em uma
mera e pálida folha branca, enumerar e homenagear a todas; mesmo porque
algumas merecem como homenagem bem mais que um nome impresso num
contraste branco e preto xerocado em “n” cópias.
Não deve ser de bom tom fazer uma citação na seção dos
agradecimentos, mas pensamos que gostaríamos de fazer nossas, as palavras
de Lakoff & Johnson (2002:39) apresentadas nesta mesma seção da referida
obra por eles publicada: “As idéias não surgem do nada. Em linhas gerais este
livro representa uma síntese de várias tradições intelectuais e evidencia a
influência de nossos professores, colegas, alunos e amigos.” Assim como na
citação dos referidos autores, esta tese não saiu do nada, ela tem a influência
de várias pessoas que nos cercaram e, sobretudo, nos apoiaram durante este
percurso. Assim, em primeiro lugar, gostaria de agradecer: aos que já pensaram
sobre o assunto, por terem podido construir o conhecimento no qual me baseio;
a todos os professores que já tive, pelos ensinamentos; a todos os colegas
(não só do Núcleo de Análise do Discurso como também do curso de Pós-
graduação) e amigos, pela paciência em ouvir minhas elucubrações e pela
amizade.
Gostaria de fazer um agradecimento especial à Profa. Dra. Ida
Lúcia Machado. Seria quase impossível enumerar as excelentes lições que pude
6
obter ao seu lado, já que nossos passos passaram a trilhar os mesmos
caminhos a partir de 1993. Com toda certeza, posso afirmar que a Profa Ida é a
pessoa mais significativa na minha carreira acadêmica.
Sempre se mostrou uma professora extremamente bem
informada, atualizada e em sincronia com as teorias atuais, mas com a lucidez
necessária para reconhecer quais são os avanços que realmente importam.
Devo elogiar seu vanguardismo ao criar o Centro, e mais tarde, Núcleo de
Análise do Discurso, que foi de grande valia para a minha pesquisa e, acredito,
importante para as pesquisas de inúmeros outros colegas. Devo ressaltar o
mérito dos convênios por ela firmados com Paris XIII, pois foram de suma
importância para mim e para vários alunos, pois possibilitaram um rico contato
com professores de Universidades Européias e, com isso, um desenvolvimento
considerável nas pesquisas em Análise do Discurso.
Para mim, foi uma verdadeira educadora, mostrou os caminhos da
pesquisa e do conhecimento de forma muito aberta, sem querer guardá-los para
si, sem censuras, sem imposições teóricas, sem cobranças de filiações a
determinadas linhas de pensamento. Sempre soube valorizar meus trabalhos (e
de meus colegas também), incentivado as rotas do exeqüível e advertido para
os caminhos possivelmente improdutivos.
Posso dizer que uma de suas maiores lições no mundo da pesquisa
foi me ensinar a liberdade da escolha (que não é tão livre assim...) e me fez ver
7
as conseqüências dessa liberdade. É muito mais difícil projetar e trilhar seu
próprio caminho, pois é você quem escolhe, sofre, erra a direção, pode corrigir
os trajetos, acerta, erra novamente, faz um grande acerto a partir do erro e
assim vai: na minha opinião, é nisso que consiste o processo de aprendizagem e
amadurecimento, logo, do fazer científico. Se um orientador dá todas as pistas
do mapa da caça ao tesouro, a aventura fica sem graça e sem o valor da
conquista. Poderia dizer que a Profa. Ida soube dar as pistas certas ou omitir
pedagogicamente algumas outras, nos momentos convenientes. Convenhamos,
saber o “tempo” exato de interferir ou recuar na orientação de um trabalho é
uma tarefa de difícil execução, é uma qualidade que poucos possuem. Posso
dizer que tive a sorte de estar ao lado de alguém com tais predicados.
Considero que um de seus mais representativos ensinamentos ( e
espero que ele valha também para os pesquisadores iniciantes) seja: Você deve
aprender a gerir a sua pesquisa, caso contrário, no seu futuro, você não saberá
ser um pesquisador competente e independente. É preciso entender, e a profa.
Ida pôde mostrar-me isso, que uma tese (ou uma dissertação) não é um
produto definitivo - a pesquisa está sempre em continuidade, em
transformação. Uma tese é somente um ritual pelo qual todos devemos passar
para sermos aceitos, institucionalmente, como pesquisadores (mas devo dizer
que existem rituais e rituais de iniciação...). Na minha opinião, é essa postura
que um pesquisador deve ter e a Profa Ida soube, como poucos o sabem,
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ensinar-me essa liberdade. Agradeço, sinceramente, todos estes ricos anos ao
seu lado e espero que possamos desenvolver muitos outros trabalhos em
conjunto.
Na execução de uma pesquisa de doutorado existem, fora das
exigências formais da Academia, as relações humanas, ou mais explicitamente,
o lado nevrálgico de nossas experiências vividas naquele espaço de tempo.
Estão aí inseridas as relações de amizade, empatia e até mesmo sinergia que
podemos desenvolver uns em relação aos outros. Nessa esfera, devo
demonstrar a minha profunda gratidão pelos professores Ida Lúcia Machado
(novamente) e João Bosco Cabral do Santos. Após um temporário descrédito da
validade de minha pesquisa ocorrido na defesa de minha dissertação de
mestrado, estes professores confiaram em mim, acreditaram em meu trabalho
quando ninguém mais acreditava, respeitaram a minha vontade de prosseguir
em um tema complexo, quando quase todos apostavam que eu não seria capaz,
que fracassaria. A força e a confiança que estes dois professores depositaram
em mim foi crucial para a continuidade de minha jornada na pesquisa e diria
que nunca serei capaz de agradecê-los merecidamente. Sem a credibilidade que
estes verdadeiros amigos depositaram em mim, talvez tivesse desistido de uma
carreira na área de Letras.
Agradeço também ao prof. Dr. Hugo Mari, que foi meu primeiro
orientador no programa de Iniciação Científica do CNPq, em 1992, cujo projeto
9
tinha um título bem peculiar: “o sentido da droga e droga do sentido”. Foi
naquela época que, de uma maneira ou outra, comecei a ter contato com textos
que apontavam para a Análise do Discurso, ou seja, podemos considerar este
trabalho de Iniciação científica o primeiro passo teórico para o trabalho na linha
de pesquisa em A.D. Nossa convivência se estendeu da graduação até o curso
de doutorado. Assim, agradeço-lhe, em nome de todos esses anos, os seus
ensinamentos, o seu pronto atendimento, as suas sempre lúcidas
considerações, a sua amizade e as valorosas contribuições no campo teórico.
Gostaria de agradecer ao CNPq e ressaltar o importante papel
deste órgão. Tive bolsas de Iniciação Científica (1992-1995), Mestrado (1998-
2000) e Doutorado (2000-2004) e os fomentos oferecidos por esta agência
foram de suma importância na minha formação acadêmica. Agradeço também
ao convênio CAPES/COFECUB que me proporcionou um Doutorado Sanduíche
de seis meses na Universidade de Paris XIII na França, sob a orientação do
Prof. Dr. Patrick Charaudeau.
Durante a minha permanência na Universidade de Paris XIII, devo
agradecer ao Prof. Dr. Charaudeau e a toda a equipe do
Centre d´analyse du
Discours
(CAD) pela acolhida tão simpática e amável. Agradeço também por
todas as contribuições teóricas, pela ajuda e orientação dada, e sobretudo, pela
gentileza e pelo respeito com que nosso grupo foi tratado.
10
Agradeço ao Prof. Dr. Antoine Auchlin (Universidade de Genebra)
pelas conversas sobre o tema e também por mostrar a importância de uma
visão experiencialista do discurso. Este fato foi de grande valia para poder
organizar a visão de ficcionalidade aqui exposta.
Gostaria também de agradecer à Faculdade de Letras como um
todo; aos funcionários da secretaria de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos
pela gentileza, pelo respeito, pela educação e pelo pronto atendimento com
que sempre me atenderam; aos funcionários da Biblioteca, sempre muito
prestativos e atenciosos.
Já que me propus a fazer um agradecimento prosaico, cabe aqui
acrescentar só mais “um dedo de prosa”. Gostaria de fazer um agradecimento a
meus pais, mas para fazer isso, devo contar uma história relativamente longa,
caso contrário, a razão do agradecimento será ininteligível. Assim, caro leitor,
caso você já esteja cansado deste longo agradecimento e já esteja afoito para
ler as árduas teorias que serão aqui apresentadas, concedo-lhe licença para
ignorar esta parte e seguir adiante. Aos que ficarem, agradeço a paciência e
espero que minha pequena narrativa lhes apeteça.
É senso comum dizer que a escolha de um tema de pesquisa é um
procedimento científico, que parte da observação da realidade e depois é
analisado a partir de regras sugeridas pelo método - o que ocorre, geralmente,
em uma idade adulta. Devo dizer que no meu caso não foi bem assim (imagino
11
que o mesmo tenha acontecido a outras pessoas também)... Antes mesmo de
saber ler, o problema da ficcionalidade já flertava comigo. A primeira vez que
essa incógnita da ficção e da realidade assolou (talvez o termo correto seja
«assombrou») a minha vida, foi na infância. Bom, várias crianças também têm
este mesmo problema, não seria de se estranhar... mas nem todas, em idade
adulta, fazem teses a respeito.
Morei em uma fazenda até os seis anos de idade e depois de ir
para a escola na cidade, sempre passava as férias lá. Ouvia muitas histórias,
desde contos de fadas e outras narrativas infantis até histórias sobre
personagens locais, sobre fazendas da região, sobre coisas que não existiam
mais, linhagens que se extinguiam, transformações das cidades vizinhas, enfim,
sobre os mais diversos assuntos. Sempre ficava me perguntando, quando ouvia
aquelas histórias, o que tinha de real e o que era invenção da gente daquele
lugar. Além das minhas suspeitas, existiam sempre os fatos que não podiam ser
ouvidos por crianças e, por causa destes segredos velados, as histórias eram
contadas de forma incompleta, o que só aumentava a dúvida entre o que era
real - e o que não era - em tais narrativas.
Fora isso, havia uma peculiaridade: o meu pai era 74 anos mais
velho que eu e minha mãe era 50 anos mais nova do que ele. É possível
imaginar a diversidade de crenças e valores com os quais se convive quando se
têm diferenças tão grandes. Só para ilustrar, a forma de falar e o vocabulário
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usado pelo meu pai era singular, tinha parado mais ou menos nos anos 1940;
os valores morais também. Desde a mais tenra idade, via os pais das outras
crianças e achava que aquilo que eu vivia não era real, que não vivia na mesma
realidade das outras pessoas, minha vida parecia saída de um velho livro, de
preferência algum de García Márquez. Estava lá meu pai: nascido no fim do
século XIX, fazendeiro, cheio de memórias reais e também de memórias
possíveis que a idade embaralhava, tinha testemunhado praticamente um
século inteiro de transformações, e diga-se de passagem, o século XX foi
bastante pródigo em acontecimentos.
Uma pessoa como ele, evidentemente, tinha que ter as suas
lendas pessoais. E as histórias não eram poucas. A cereja do bolo era a história
do pacto que fizera com o demônio para enriquecer, que explicarei mais tarde.
Prezado(a) leitor(a) rogo-lhes ainda um pouco mais de paciência. Ainda são
necessários alguns índices contextuais.
Na época da colheita de café, vinham pessoas da região para
trabalhar na lavoura, que não era mecanizada como hoje. Com os grupos,
vinham senhoras que faziam um trabalho mais leve e ficavam durante toda a
jornada de trabalho contando histórias. Tinha as narrativas que só poderiam ser
contadas à noite, à beira do fogo (para isolar a presença do diabo), sob pena de
uma maldição recair sobre a família. Portanto, para a total frustração da minha
curiosidade exasperada, nunca cheguei a ouvir nenhuma delas, por mais que
13
insistisse veementemente... Acho que o diabo tinha argumentos mais
convincentes do que os meus...
Adorava quando elas contavam as histórias sobre meu pai, que na
época já devia ter seus quase 80 anos. Era de se esperar que na condição de
patrão, dono da lavoura, ele seria o vilão. Havia histórias para todos os tipos de
temores e sustos: pacto com o diabo (já citada), abuso de poder para comprar
terras, tortura de criancinhas, recém-nascidos enterrados vivos no quintal da
casa, posse de escravos no passado, jagunços e matadores de aluguel que lhe
prestavam serviços, crueldade em todos os sentidos, festim com prostitutas, e
mais todo um rol de maldades possíveis dignas de qualquer «ser do mal» de
histórias nas quais o bem sempre vence.
Para mim, a história do pacto com o diabo foi a mais frutífera,
principalmente porque tinha mais ou menos uns cinco ou seis anos de idade e
nada pra fazer em uma fazenda. Nessa idade a gente não sabe muito bem no
que acreditar, mas lembro-me de que minha mãe dizia que não existia Diabo
“personificado”, que era uma «idéia», mas eu não entendia muito.
Estas verdadeiras contadoras de histórias que eram as senhoras
às quais me referi acima, contaram-me que o pacto fora feito através de uma
oração rezada por um ano, dia após dia e que toda sexta-feira, à meia-noite,
um cavaleiro vestido de negro passava pela fazenda para assegurar o pacto e
que iria, um dia, levar seu pagamento: a alma do meu pai. Ficava curiosíssima
14
para saber como era uma oração de pacto com o diabo, deveria ser algo
inimaginável. Perguntava à minha mãe e ela dizia que era mentira, que eram
histórias; Perguntava ao meu pai e ele, por sua vez, dava um sorriso discreto,
com um ar sarcástico de mineiro velhaco, e não dizia nada.
Após um verdadeiro trabalho de detetive mirim, fiz «entrevista
com pessoas que vinham ocasionalmente à fazenda (secretamente, claro), com
as senhoras que colhiam café (pareciam verdadeiras “bruxas” saídas de contos
de fadas”), com outros empregados da fazenda...e assim por diante. Fui
chegando à conclusão que naquela história havia vários indícios de «verdade»,
inclusive a real existência do cavaleiro de negro (o diabo disfarçado) que
passava pela fazenda sempre às sextas feiras à meia-noite (e que após várias
tentativas de permanecer acordada, consegui ver! – depois não dormi mais,
estarrecida de medo, a idéia era real!). Faltava a oração do pacto, que segundo
as colhedeiras de café ficava trancada num cofre que meu pai tinha. Ele era
azul, enorme (para a minha estatura), um segredo impenetrável....isso, para,
uma criança era um prato cheio. Insistia nas perguntas. A minha mãe dizia que
aquilo não existia, que era invenção do povo do lugar e que meu pai endossava
as histórias para que as pessoas tivessem medo dele. Já meu pai, não dizia nem
que era verdade, nem que não era, às vezes até mesmo lançava mais algum
ingrediente ambíguo recheado de mais um sorrizinho sarcástico. Para uma
criança, era uma questão difícil. Por muitos dias e noites busquei na minha
15
pueril vida de campesina a resposta à questão: Como a gente sabe o que é real
e o que não é? Juntava fatos, como em um quebra cabeças, mas não conseguia
desvendar o mistério. Com o passar do tempo, outras situações foram surgindo,
a mesma dúvida se repetindo e aquela pergunta acabou virando quase uma
melodia em minha cabeça: o que é real e o que não é...o que é real e o que
não é....
Aos seis anos fui para a escola, tantas outras histórias foram
ouvidas e lidas, o tempo foi passando e eis que um dia meu pai me dá uma
oração para eu rezar, pois ele tinha rezado a oração por um ano.... tremi. A
prova estava ali! Foi uma grande decepção, não passava de uma ladainha cheia
de «virgem Maria», «são não sei o quê» e «Jesus». Nenhuma menção ao
diabo... Restava o «cavaleiro de negro»: também não era o diabo, eram
pessoas que passavam pela fazenda durante a noite, para irem a outras
fazendas vizinhas. Mistério desvendado, história acabada! Ledo engano, uma
história acaba e outras começam. A semente da dúvida já estava ali, geminada,
fincando raízes e se transformando em uma árvore frondosa. O vento que bate
em suas folhas parece sempre assoviar a canção: o que é real e o que não é...o
que é real e o que não é....
Toda essa longa história, tantos anos passados e encontro-me,
ainda hoje, tentando responder a essa questão, agora com um pouco mais de
método, com uma instituição envolvida e tudo o mais. Assim, gostaria de
16
agradecer aos meus pais, mas não sei exatamente pelo quê: se pelo despertar
para a indagação «científica» ou pelo «trauma» - essa questão da ficcionalidade
tem me «perseguido», reconheçamos, por um tempo razoável. No fundo, talvez
eles mereçam um obrigado pelas duas coisas, elas são complementares.
Então fico pensando: será que querendo seguir uma tradição
familiar de pactos, o meu não tenha sido feito com o Demônio da Teoria em vez
de fazer um pacto com o demônio para ter sucesso na descoberta da teoria e
fazer uma boa tese? Bom, mas esta já é uma outra história...
Aos leitores que tiveram a paciência de me seguir até aqui, muito
obrigado. Espero que não tenha sido demasiado enfadonha.
YZ
17
RESUMO
O objetivo de nossa pesquisa é mostrar que a ficcionalidade pode
ser um fenômeno da comunicação em geral, e não somente uma ocorrência
restrita às artes, vistas de forma ampla. Em tal linha de pensamento,
poderíamos encontrar a ficcionalidade em vários gêneros de discurso, sejam
classificados com estatutos factuais ou ficcionais.
Definimos ficcionalidade como sendo a simulação de uma situação
possível. Como decorrência de tal demarcação, postulamos a existência de três
tipos de ficcionalidade:
constitutiva
(é inerente aos fenômenos em que ocorre –
por exemplo, a língua, o sistema numérico etc.);
colaborativa
(ocorre em
gêneros de discurso cujo estatuto é factual – por exemplo, publicidades,
discurso didático etc.);
predominante
(está presente em gêneros de discurso
cujo estatuto é ficcional – por exemplo, piadas, charges, contos, romances etc.).
O tratamento teórico dado à noção de ficcionalidade foi feito a
partir da Teoria Semiolingüística de P. Charaudeau. Nesta perspectiva, no atual
estágio de nossa pesquisa, concluímos que a ficcionalidade é determinada e
influenciada por conceitos e noções tais como: situação de comunicação,
contrato situacional, restrições genéricas, efeitos de real e efeitos de ficção,
estilo, identidades social e discursiva, dentre outros.
18
RÉSUMÉ
Le but de notre recherche est voir la fiction en tant que
phénomène de la communication en générale. Dans cette perspective, la
fictionnalité pourrait apparaître dans les genres de discours dont le statut soit
factuel ou soit fictionnel.
La fictionnalité, ou mise en fiction, se caractérise pour être la
simulation d´une situation possible. À partir de ce point de vue, on peut
postuler trois types de fictionnalité:
constitutive
,
colaborative et
prédominante
Pour définir le mécanisme d´action de la fictionalité, on a utilisé la
Théorie Sémiolinguistique developpée par P. Charaudeau. Dans le stage actuel
de notre recherche, on a conclu que la fictionnalité peut être determinée et
influencée par des concepts et des notions tels que: situation de
communication, contrat situationel, des enjeux des genres de discours, des
effets de réel et des effet de fiction, le style, les identités sociales et discursives
etc.
19
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Fonte: Manguel & Guadalupi (2003: 446)................................127
Ilustração 2: detalhe do mapa «conhecimento» In: Swaaij & Klare (2004:21)128
Ilustração 3: Joana D´arc - in: Revista Cláudia, nov./2001...........................139
Ilustração 4: Jornal Balcão. Edição nº 1350 – 20 a 23 de julho de 2003........140
Ilustração 5: Angeli - In: Folha de São Paulo, 11/03/2003 ...........................142
Ilustração 1: Situação de comunicação e os sujeitos da linguagem...............147
Ilustração 2: Glauco – Folha de São Paulo, 23/05/2003...............................150
Ilustração 3 : A ficcionalidade no mundo da linguagem ...............................153
Ilustração 4: Joseph Albers. «figure» (1925), Bâle, Kunstmuseum................155
20
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................... 23
Preâmbulo ......................................................................................... 25
1- Breves indagações sobre como percebemos o factual e o fccional ...... 31
PARTE I: A (RE)CONSTITUIÇÃO DO CONCEITO DE
FICCIONALIDADE .........................................................................
46
2 - Ficção: o que é isso? ............................................................... 47
2.1 – Antigas ficções ........................................................................... 48
2.2 – Contemporâneas ficções ............................................................ 52
2.3 – Ficção, mentira e polidez .......................................................... 56
2.4 – Considerações finais .................................................................. 60
3- Os mistérios por detrás da cortina ........................................... 61
3.1 - O sinuoso caminho entre o camarim e o palco ............................. 62
3.2 - Revolver o pó: o estabelecimento da pesquisa bibliográfica ......... 65
3.3 - Ensaio: a busca das marcações mais apropriadas ......................... 68
3.4 - Ficcionalidade: seu passado te condena? ...................................... 71
3.5 - Em busca do elo perdido ............................................................ 72
3.5.1 - A questão dos gêneros ............................................................ 74
3.5.2 - A influência dos preceitos católicos no ocidente ....................... 78
21
3.5.3 - O efeito da censura em diversas épocas .................................... 84
3.5.4 - A querela dos objetivistas x subjetivistas .................................. 88
3.6 - Enfim, subir os degraus que antecedem o palco ........................... 92
4 – Em busca das teorias perdidas ............................................... 95
4.1 - Teorias que defendem a existência de marcas lingüísticas nos textos
ficcionais .........................................................................................
99
4.2 - Teorias que não reconhecem a existência de marcas lingüísticas nos
textos ficcionais ...............................................................................
106
4.3 – Uma querela sem fim ................................................................ 112
PARTE II: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS AO ESTUDO DO
CONCEITO DE FICCIONALIDADE ................................................
114
5- Ficcionalidade: modos e tipos de ocorrência ........................... 115
5.1- Definições ................................................................................... 116
5.1.1 – Breves considerações sobre o uso da ficcionalidade nos dias
atuais ...............................................................................................
121
5.1.1.1- Ficcionalidade e prática pedagógica ....................................... 121
5.1.1.2 – A topografia e a imaginação ................................................ 124
5.2 – Intermezzo .............................................................................. 130
5.3 – Tipologia da ficcionalidade ....................................................... 131
5.3.1 – Ficcionalidade Constitutiva ..................................................... 131
5.3.2 – Ficcionalidade colaborativa ..................................................... 134
5.3.2.1- Metáfora .............................................................................. 135
5.3.2.2 - Publicidades ....................................................................... 137
22
5.3.3 - Ficcionalidade predominante .................................................... 141
5.4- Algumas considerações finais ....................................................... 144
6 – A teoria Semiolingüística e a questão da ficcionalidade ........ 146
6.1 - Situação de comunicação e os sujeitos da linguagem .................... 146
6.2 - Situação de comunicação e ficcionalidade .................................... 151
6.2.1 - Situação factual ...................................................................... 156
6.2.2 – Situação ficcional ................................................................... 159
6.2.3 - Situação possível .................................................................. 161
6.3 - Efeitos de real e efeitos de ficção ............................................... 162
6.4 – Competências e efeitos de real e efeitos de ficção ....................... 167
6.4.1 - Competência situacional ......................................................... 167
6.4.2 - Competência discursiva .......................................................... 168
6.4.3 - Competência semiolingüística ................................................. 169
6.5 – Considerações finais sobre a relação ficcionalidade &
Semiolingüística .................................................................................
170
7 – Ficcionalidade e estilo: algumas considerações do ponto de
vista da Análise do discurso .........................................................
172
7.1 – Análise do Discurso e Estilo ........................................................ 173
7.2 – Combinações entre ficcionalidade e estilo ................................... 178
7.3- Ser ou não ser....? ....................................................................... 180
7.4 – Com que roupa eu vou? ............................................................ 183
8- Ficcionalidade e gêneros: classificações instáveis .................. 185
23
8.1 - A questão dos gêneros ................................................................ 187
8.2 - Cenas e diários: um estudo de caso ............................................ 189
8.2.1 – A cena englobante .................................................................. 189
8.2.2 – A cena genérica ..................................................................... 194
8.2.3 – Cenografia ............................................................................. 204
8. 3- Gêneros, diários e prefácios ........................................................ 205
8.4- Considerações finais ................................................................... 208
Anexos ............................................................................................. 209
PARTE III: POR UMA INTEGRAÇÃO ENTRE ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS E ESTUDOS LITERÁRIOS .....................................
214
9 – Estudos Lingüísticos e Estudos Literários: bem me queres ou
mal me queres? ..........................................................................
215
9.1 - Entre o bem querer e o mal querer ............................................. 216
9.2 - Leituras possíveis ...................................................................... 223
9.3 – Considerações finais .................................................................. 227
CONCLUSÃO ................................................................................ 230
BIBLIOGRAFIA ............................................................................. 237
Referências Bibliográficas .................................................................... 238
Pesquisa Bibliográfica ........................................................................ 247
24
INTRODUÇÃO
25
PREÂMBULO
Empreender uma pesquisa é, de certa forma, embarcar em uma
viagem cheia de surpresas e aventuras. Partimos confiantes e cheios de
expectativas, altivos, com nosso roteiro nas mãos: aquele projeto de pesquisa
que pensamos ter sido cuidadosamente elaborado e estrategicamente montado.
No entanto, como qualquer outro roteiro ou projeto, ele é apenas um
prognóstico que nem sempre pode garantir um percurso certo e seguro. Por
vezes, é preciso que façamos constantes rearranjos para que o caminho possa
ser percorrido sem muitos percalços, ou então, possuir a habilidade de fazer dos
percalços, novos caminhos a serem trilhados.
Durante a nossa jornada pela busca de uma explicação para o
funcionamento da ficcionalidade, pudemos encontrar muitos portos atracáveis,
mas todos eles nos pareceram exigir um pré-requisito: definir o que é
ficcionalidade. Em nosso inventário bibliográfico, pudemos encontrar várias
vertentes e operar escolhas difíceis. Certamente, a mais complexa foi escolher
de qual ponto nos posicionaríamos para tratar do tema, já que tal
posicionamento definiria todo o nosso roteiro daquele momento em diante. O
26
que fazer? Permanecer na planície e contemplar o horizonte ou escalar a
íngreme montanha e ter uma relativa visão ampla do relevo?
Após uma longa reflexão desistimos da planície e quisemos arcar
com as conseqüências da escalada. Assim sendo, escolhemos estudar o
assunto de um ponto de vista da estrutura de uma Faculdade de Letras, ou
seja: como os Estudos Lingüísticos e os Estudos Literários vêem o tema. No
entanto, esta escolha ainda nos apontou muitas outras...
Dessa forma, num segundo momento, nos posicionamos no
mirante dos Estudos Lingüísticos e pudemos ver uma certa carência de estudos
sobre a ficcionalidade a partir do referido ponto de vista. Lançamos aí a nossa
âncora e, acreditávamos, havíamos definido nosso roteiro, só nos restaria
desembarcar a bagagem e explorar o local. Tudo parecia muito pragmático.
Naquela ocasião, optamos por
analisar os textos que o escritor Moacyr Scliar
vem publicando no jornal
Folha de São Paulo
. Nesta coluna, ele elabora textos
ficcionais a partir de textos factuais que são publicados no mesmo jornal
durante a semana. Assim, estabelecemos dois
corpora
: (1) composto por textos
factuais coletados no jornal e citados por Scliar; e (2) composto por textos
ficcionais escritos pelo referido escritor. Dessa forma, pensamos que o contraste
entre o ficcional e o factual poderia ser estudado em textos construídos a partir
do mesmo tema. A coleta dos dados foi feita no período de 22 de junho a 11
27
de setembro de 2000. Tais decisões nos pareciam ter o conforto da bonança
após a tempestade.
No entanto, persistia um problema que seria, a nosso ver, anterior
à coleta e classificação dos
corpora
escolhidos: «o que é ficcionalidade?». Na
ocasião, não pudemos encontrar nenhuma definição que se propusesse a fazer
uma abordagem do conceito de um ponto de vista da Lingüística e/ou da
Análise do Discurso. Assim sendo, começamos a fazer dois trabalhos paralelos:
um trabalho de busca de definição do termo «ficcionalidade» e uma
classificação dos
corpora
selecionados.
A paisagem já estava definida? O segredo dos melhores recônditos
já havia sido revelado? Qual o quê? Seguindo a lei matemática na qual duas
paralelas nunca se cruzam no infinito, tivemos que fazer uma escolha sobre qual
caminho seguir, pois estávamos fazendo duas pesquisas que, embora tivessem
muito em comum, não se comunicavam. A impressão que tínhamos era que
fazíamos duas teses diferentes. A «impressão» passou a ser «certeza» no
momento do Exame de Qualificação. Assim, engavetamos a análise de nossos
corpora,
que naquele momento já tinham sido classificados em um trabalho que
já durava três anos e resolvemos nos concentrar em um estudo mais
aprofundado sobre a ficcionalidade.
É da natureza de uma pesquisa de doutorado a exigência de
quatro anos para a sua realização e pensamos que um bom trabalho sobre a
28
ficcionalidade levaria, ao menos, uns 10 anos para ser considerado satisfatório.
Diante de toda essa situação, restou-nos tomar uma atitude que todo bom
viajante deveria adotar: seja prático e objetivo, caso contrário, sua viagem pode
ser uma seqüência de desagrados, frustrações, decepções e insucessos.
Foi com esta postura de «viajante prático» que decidimos fazer um
trabalho que se prestasse a ser uma introdução ao assunto, que mostrasse os
porquês de determinadas posições acadêmicas e que propusesse um esboço de
um modelo, calcado na Análise do Discurso – mais especificamente na Teoria
Semiolingüística de P. Charaudeau, para a explicação da ficcionalidade.
Considerando que uma pesquisa é uma aventura - e não
aventura sem riscos, optamos pela incerteza de fazer uma tese sem um
corpus
metodologicamente coletado e organizado e decidimos trabalhar com vários
exemplos. Na ocasião, pensamos que seria muito mais enriquecedor para os
estudos sobre o tema demonstrar a existência da ficcionalidade em diversos
gêneros de discurso. A maioria dos textos teóricos por nós lidos associava
ficcionalidade, narração e textos literários. Se preservássemos nossos
corpora
,
textos jornalísticos e textos de Moacyr Scliar, iríamos na mesma direção que
associa a ficcionalidade a textos literários. Interessávamos também explorar
outros discursos, ver outros tipos de ocorrências. Às vezes, é mais
enriquecedor, durante determinadas viagens, desviar-se do grupo e fazer
percursos alternativos...
29
Reconhecendo aqui a nossa postura de viajante despojado e
despretensioso, temos plena consciência de que o trabalho aqui exposto é
somente a descrição, vista do ângulo das Letras, da ponta do imenso iceberg
denominado «ficcionalidade», que existem muitas outras implicações, maciços
submersos que nem é possível ainda calcular a profundidade. No entanto,
pensamos que mesmo a descrição da ponta do iceberg seria razoável de ser
feita, já seria um começo. Sabemos que não é possível abordar todos os
ângulos, que temos limitações, mas esperamos que este trabalho possa dar
uma pequena contribuição ao estudo sobre o tema no Brasil. Com um pouco de
otimismo, por que não pensar que ele também possa contribuir para a pesquisa
de alguém que saiba ler a nossa língua. Talvez, para nós, fosse o momento de
reconhecer as nossas próprias limitações, algumas até mesmo em termos de
maturidade para tratar do tema devido a uma carência de estudos mais
aprofundados. Em outros termos: icebergs são misteriosos e é preciso saber
reconhecer que, para um neófito viajante dos trópicos, a água dos pólos pode
ser demasiado gelada para determinados mergulhos.
Não podemos conhecer o mundo em uma só viagem. Apreciamos
um tipo de viajante que, primeiro, se instala em um local para desfrutar dos
sabores e dissabores que um lugar oferece, para só então partir levando aquele
instante precioso, nunca mais revivido ou reconquistado, mas que será
inesquecível. Para nós, uma tese cumpre o mesmo processo: é um momento
30
único de visão e de vivência daquilo que pesquisamos. Esperamos que
tenhamos podido mostrar àqueles que se interessam pela ficcionalidade um
pouco desse universo no qual nos instalamos temporariamente.
Para aqueles que queiram se lançar na aventura da pesquisa
sobre o tema, há sugestões de roteiros iniciais na seção que nomeamos
«Pesquisa Bibliográfica» na segunda parte da Bibliografia. Esperamos que
possam ser pontos de partida originais. Para aqueles que queiram seguir o
roteiro aqui esboçado, esperamos que consigamos agradá-los com nossas
palavras e escolhas.
YZ
31
01
BREVES INDAGAÇÕES SOBRE COMO PERCEBEMOS O
FACTUAL E O FICCIONAL
Gostaríamos de iniciar formalmente nossa reflexão com a seguinte
pergunta: como distinguimos um texto ficcional de um texto factual? Na nossa
opinião, esta não é uma questão que se possa responder de imediato, em claro
e bom tom. No entanto, tentaremos assinalar aqui alguns dos caminhos pelos
quais é possível trilhar ao tentarmos responder a tal indagação. Assim sendo,
para fazermos uma introdução ao tema, procederemos a um breve exame dos
fragmentos de texto abaixo:
i. "Um francês foi coroado ontem como Rei dos Mentirosos
2002 pela academia dos mentirosos de Moncrabeau,
França. Receberá como recompensa o privilégio de "mentir
impunemente a todo momento e em qualquer lugar".
Gunther Clasen, o rei destronado contou que teve um ano
lamentável: sua mulher não acreditava em uma palavra do
que dizia."
1
ii. "Os visitantes acorrem em grande número, curiosos para
ver a máquina de morrer, um complicado dispositivo com
tubos, canos e mostradores. A todos, ele explica,
pacientemente, como funciona o equipamento. E o faz em
tom didático porque, como sempre gosta de repetir, está
lidando com fatos da vida. Explica, por exemplo, que seu
1
Texto factual. Folha Online, 05 de agosto de 2002
32
monóxido de carbono é absolutamente puro, não como
aquele emitido pelos motores de automóveis, que contém
impurezas, entre elas hidrocarbonetos cancerígenos. Não,
o equipamento é limpo, higiênico e garantido."
2
iii. "Alguém se aproxima de Andy e sorri. A contrapartida é um
sorriso, naturalmente. Outra pessoa passa carrancuda, e
Andy subitamente muda de expressão. Todos se espantam
com sua habilidade de reagir aos humores humanos.
Porque Andy é um robô, a versão atualizada de um projeto
conduzido na Universidade do Texas."
3
iv. “Outra “roxinha” que me alegrou, como marca exata de
cachaça (januária, franciscana boa), e trouxe mais largura.
Quando você vier, meu telefone (de casa) é este: 47-3360.
o endereço será fornecido na ocasião, pois é complicado;
moro muito defendidamente, escondido nos grotais de um
altozinho, depois de muita volta, nas batoqueiras da
caatinga. Vivo num istmo, sofrendo o mar e me
alembrando do campo. Mas tenho janelas que dão para
um matinho, bamburral e amendoeiras bravas; lá vêm
pássaros, borboletas, e existem alguns dignos gatos
independentes.”
4
v. " Economista paga R$ 200 para quem «resgatar» Rolex na
Lagoa (RJ). Depois de descobrir que o assaltante que lhe
roubara o relógio portava um revólver de brinquedo, um
homem corre atrás dele, joga-o dentro de uma lagoa
poluída e o faz procurar o relógio. Oferece ainda R$ 200
para quem encontrar o Rolex. Enquanto mergulham em
busca de um dinheiro extra, a uma semana do Natal, os
personagens olham para cima e pedem ajuda ao Cristo
Redentor. A cena não faz parte de um filme. Foi
presenciada por quem passou na lagoa Rodrigo de Freitas
no final da manhã."
5
2
Texto ficcional. Moacyr Scliar In: Folha de São Paulo, cotidiano, 27 de janeiro de 2003 (texto
elaborado a partir da matéria: "Médico lança máquina de morrer em congresso de eutanásia."
Folha Online, 07 de janeiro de 2003)
3
Texto factual. Folha de são Paulo, Ciência, 18 de fevereiro de 2003.
4
Texto factual. Carta escrita por Guimarães Rosa a Paulo DANTAS (1975:55).
5
Texto factual. Folha Online, Cotidiano, 18 de dezembro de 2002
33
vi. “O soldado agonizava; seu companheiro entre os fedayin
soluçava, por compaixão, enquanto o amigo se debatia de
dor. As balas norte-americanas o haviam atingido nas
pernas e uma médica estava tentando lentamente, com
cuidado infinito, remover a bota dianteira do seu pé. Ele se
recusava a gritar, se recusava a mostrar o sofrimento pelo
qual estava passando, embora seus olhos estivessem
cerrados enquanto a mulher trabalhava na bota,
desfazendo os laços e temendo cortar a perna de sua calça
por medo daquilo que poderia encontrar.”
6
vii. “Profunda reflexão de Iberê. Fico esperando. Até que ele
diz: após a realização de um quadro, ou de uma série,
segue-se um esvaziamento que por seu turno é substituído
por uma gestação que se processa, e o período criador
renasce então. Você tem a mesma experiência?
__ Igual. Sinto um esvaziamento que quase se pode
chamar sem exagero de desesperador. Mas para mim é
pior: a germinação e a gestação podem demorar anos,
anos esses em que feneço. (...)”
7
Observando os fragmentos anteriormente transcritos e deles
suprimindo, momentaneamente, as notas em que estão contidos os dados
paratextuais, poderíamos nos perguntar: o que os distinguiria e o que os
tornaria factuais ou ficcionais? Quais mecanismos lingüísticos, discursivos e
situacionais colocaríamos em ação para operar tal identificação? Ao lermos os
trechos acima, haveria algum tipo de “competência” que nos indicaria as
convenções ali efetuadas?
6
texto factual. “A estranha batalha pelo aeroporto de Bagdá” Folha de São Paulo, 5 de abril de
2003, p. A 24.
7
Texto factual. Entrevista de Iberê feita por Clarice Lispector (1992:108)
34
Com o intuito de fazer uma investigação que nos auxiliasse a refletir
sobre o reconhecimento do estatuto de um texto, procedemos à aplicação,
informal, de um pequeno questionário contendo os fragmentos anteriormente
citados. Foi pedido aos alunos da disciplina “
Seminário Tópico Variável em
análise do Discurso: Gêneros Transgressivos
8
que identificassem,
empiricamente, a factualidade ou a ficcionalidade em tais textos. Vale dizer que,
naquela ocasião, não foram fornecidos os dados paratextuais e havia espaço, no
formulário, para eventuais comentários. A sondagem foi feita no dia 03 de
dezembro de 2003 e pudemos contar com 11 informantes.
Pretendemos usar o resultado desse despretensioso experimento
somente para ilustrar nossa discussão, para mostrar como se dá o
questionamento sobre o tema, pois pensamos que o número de informantes
não poderia caracterizar um resultado de pesquisa representativo. A seguir,
teceremos alguns comentários sobre os trechos acima citados e os
relacionaremos com as respostas que obtivemos no supracitado questionário.
À primeira vista, o
fragmento (i)
nos pareceria factual: temos uma
referência de tempo (2002); lugar (Moncrabeau, França); o testemunho de uma
pessoa - Gunther Clasen; uma instituição, por mais incomum que ela seja -
Academia dos Mentirosos de Moncrabeau. Seríamos talvez levados a pensar que
se tratasse de uma notícia de jornal. Por outro lado, um escritor que
8
Disciplina ministrada pela Profa. Dra. Ida Lúcia Machado no curso de Pós-graduação em
Letras – lingüística, Faculdade de Letras –UFMG, no segundo semestre de 2003.
35
pretendesse dar um ar realista à sua obra poderia se valer dos mesmos
recursos: faria uma localização no tempo presente, colocaria uma referência a
um lugar ou a uma instituição etc. Assim sendo, o mesmo fragmento poderia ter
as duas classificações: se estivesse inserido em um romance, por exemplo, seria
ficcional; por outro lado, se estivesse publicado em um jornal, uma das
alternativas possíveis, seria factual.
Pudemos observar no questionário aplicado o reflexo dessa dupla
possibilidade. Cinco pessoas classificaram o texto como factual e cinco pessoas
o classificaram como ficcional. Somente uma pessoa se absteve. Nos
comentários dos informantes, notamos que ora os argumentos relacionavam o
uso da narração e o fato –avaliado por alguns como «incomum» - de haver um
“Rei dos mentirosos” para justificar a ficcionalidade; ora referiam-se à alusão de
dados referenciais como «data» e «local» para indicar a factualidade.
O
fragmento (ii)
não apresenta referências espaciais nem dados
temporais que designassem uma pontualidade como no exemplo anterior. São
mencionados dados de um saber científico, como, por exemplo, o grau de
pureza do monóxido de carbono e seu efeito no organismo. Contudo, não seria
possível identificar a existência ou não da «máquina de morrer» mencionada no
texto. De um lado, devido à forma predominantemente narrativa do texto, seria
aceitável argumentar que fosse um texto ficcional; mas, por outro lado, seria
também plausível dizer que se tratasse de um texto factual no qual se
36
pretendesse relatar, de forma personalizada, mais um lançamento tecnológico
para ser utilizado na área de equipamentos hospitalares. Isso seria possível, por
exemplo, num relatório de uma feira ou congresso científico. Observa-se, nesse
caso, que a utilização do modo de organização narrativo do discurso
9
não seria
exclusivo de um texto ficcional ou de um texto factual.
Do ponto de vista de nosso experimento, tivemos seis informantes
que classificaram o fragmento como factual, quatro que o apontaram como
ficcional e uma abstenção. Dentre as justificativas para a factualidade dos
textos, pudemos encontrar argumentos do gênero: objetividade do conteúdo,
notícia de jornal, texto retirado de informe científico, entre outros. Por outro
lado, a justificativa em função da ficcionalidade se deu, segundo os informantes,
devido à existência de narração e de descrição.
O terreno ainda continua nebuloso, é bem verdade. Lendo o
fragmento (iii)
, e considerando a sua forma narrativa, poderíamos pensar que o
texto é ficcional. Até poderíamos ilustrar a nossa posição apoiando-nos no
recurso a uma competência discursiva capaz de permitir dizer que tal narrativa
nos remeteria aos autômatos do séc. XIX descritos em alguns contos de E. Allan
Poe
10
ou então a alguma criação robótica de romance de ficção científica. Mas
existe um dado espacial concreto: Universidade do Texas. Embora seja possível
localizar tal universidade, ela pode figurar tanto em um texto factual quanto em
9
Cf. Charaudeau (1992: 709-777)
10
Como exemplo, podemos citar o conto " o jogador de xadrez de Maelzel" In: POE, Edgar A.
Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981. (trad. Brenno Silveira e outros)
37
um ficcional. Da mesma forma que no fragmento (ii), poderíamos também
pensar que se tratasse de um relato das novidades apresentadas em uma feira
ou em um congresso.
Na opinião de nossos informantes, oito deles classificaram o texto
como factual, dois o determinaram ficcional e apenas um se absteve. De acordo
com as pessoas que contribuíram no questionário, a justificativa para a
factualidade dos textos pode ser assim resumida: atualmente, na mídia, há uma
considerável quantidade de notícias sobre a construção de robôs e este
fragmento poderia ser mais uma dessas publicações. Para os que classificaram
o texto como ficcional, a narração seria o fator determinante.
O
fragmento (iv)
não apresenta muitos dados que possam ser
explorados a favor da ficionalidade ou da factualidade. De um lado, temos um
estilo que poderia se aproximar do literário e, de outro, um estilo que poderia
sugerir uma correspondência pessoal. Há um número de telefone, mas não é
mais o padrão atualmente usado, logo, como não há datação explícita, não se
sabe se o trecho é ficcional ou factual.
Em nosso experimento, a mesma dúvida prevaleceu. Cinco pessoas
classificaram o trecho como factual e cinco pessoas o identificaram como
ficcional. Tivemos uma abstenção. Não houve justificativas para a classificação
de factualidade. Já para a classificação de ficcionalidade, os argumentos eram:
linguagem poética, narração e subjetividade.
38
De todos os exemplos apresentados, o
fragmento (v)
é o mais
explícito quanto ao seu aspecto factual. Após desenvolver uma narrativa
próxima dos textos de ficção, há o estabelecimento do estatuto factual: "
A cena
não faz parte de um filme. Foi presenciada por quem passou na lagoa Rodrigo
de Freitas no final da manhã".
No entanto, a partir da reflexão desenvolvida
nesta parte de nosso trabalho, podemos perceber que o estabelecimento do
estatuto de um texto sem os dados paratextuais não seria reconhecido de
imediato. Esse trecho não foi usado no experimento supracitado.
No fragmento (vi) encontramos dados que nos remeteria a um
estatuto factual: os fedayin
11
, soldados norte-americanos, uma situação de
guerra. Contudo, tais dados somente seriam assim interpretados por alguém
que possuísse uma competência discursiva relativa à Guerra do Iraque ocorrida
em 2003. Raciocinando em outra perspectiva, a organização narrativa do texto
se aproxima daquela utilizada em romances, portanto, o emaranhado da dúvida
não se desfaz.
A opinião das pessoas que participaram do exercício de identificação
é a seguinte: sete informantes acreditam que o texto é factual; dois informantes
pensam que o texto é ficcional e duas pessoas se abstiveram. Dentre os que
apostam na factualidade, há a justificativa de que o texto trata de um fato
11
Para aqueles que não estão a par:FEDAYIN s.m. (pal. ár.) Resistente (especialmente
palestino) que milita em guerrilha urbana. (A pal. é o pl. de
fedaï,
`aquele que se sacrifica', em
ár., mas é usada como um sing. no português.)” ©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital
39
contemporâneo: a Guerra do Iraque, ou seja, a identificação se deu em função
da competência discursiva de cada informante. Para os que identificaram o
trecho como ficcional, há a justificativa da presença de narração.
Por fim, no fragmento (vii) temos um diálogo. De um lado
poderíamos identificá-lo como ficcional, seria aceitável dizer que se trata de um
excerto de romance no qual duas personagens conversam. Por outro lado, a
mesma estrutura de diálogo poderia estar contida em uma entrevista e,
portanto, em uma situação factual. Há a citação de um nome «Iberê», a
identificação desse nome como pertencendo ao mundo da ficção ou da
factualidade dependeria do conhecimento de mundo de cada um, em outros
termos, de uma competência discursiva. Apesar de Iberê ser um pintor
renomado, nada impediria que ele também fosse um personagem de um texto
ficcional.
Em relação aos nossos informantes, temos o seguinte quadro: seis
pessoas acreditam que o texto seja factual; quatro optaram por um estatuto
ficcional e uma se absteve de opinar. A factualidade foi identificada através da
citação do nome Iberê
12
, ou seja, a classificação se deu através da competência
discursiva. Para as pessoas que não tinham conhecimento de mundo para
12
Para aqueles que não estão a par: “CAMARGO (Iberê Bassani de), pintor brasileiro
(Restinga Seca, RS, 1914 - Porto Alegre, RS, 1994). Um dos maiores artistas visuais do país,
firmou-se como um dos principais nomes da arte abstrata brasileira. Melhor pintor nacional na
VI Bienal de São Paulo (1961)”. ©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital
40
identificar Iberê como pintor, o texto foi classificado como ficcional e este último
citado como personagem de um conto ou romance.
A seguir, resumimos em um quadro o que mencionamos acima
com o objetivo de termos uma melhor visualização: na primeira coluna está o
número do fragmento; na segunda, a classificação original, colocado no pé de
página; na terceira, quarta e quinta colunas estão as informações dadas por
aqueles que se dispuseram a contribuir com nossa pesquisa.
Quadro sintético da classificação
OPINIÃO DOS INFORMANTES (11)
FRAGMENTO CLASS.
ORIGINAL
Factual Ficcional Abstenção
i Factual 5 5 1
ii Ficcional 6 4 1
iii Factual 8 2 1
iv Factual 5 5 1
v Factual - - -
vi Factual 7 2 2
vii Factual 6 4 1
Como já o assinalamos anteriormente, nosso experimento não tem o
rigor científico desejável para esses casos. Entretanto, mostra, de forma
empírica, como é complexo o reconhecimento de um texto factual ou de um
texto ficcional. Pode-se dizer que, na maioria dos casos, os estatutos não
puderam ser definidos de forma segura pelos nossos informantes. Então, outra
questão nos é colocada: «por que isso ocorre?», «Por que há essa falta de
clareza na definição dos estatutos?»
41
Tais questões nos fazem retornar à nossa questão inicial: «como
definir e/ou reconhecer o estatuto de um texto?» Nos fragmentos acima,
observamos que sem os dados paratextuais não seria possível estabelecer o
caráter ficcional ou factual dos exemplos citados. Se nos empenharmos em
determinar uma diferenciação a partir de dados lingüísticos e discursivos, não
seria, a nosso ver, uma tentativa muito frutífera, pois os textos não apresentam,
à primeira vista, dados contrastivos mensuráveis a partir dos quais se pudesse
fazer uma distinção entre ficcional e factual. Em nossa opinião, alguns
fragmentos apresentam dados lingüísticos e discursivos que poderiam ocorrer
em qualquer tipo de texto.
Assim, quais elementos levamos em consideração quando
produzimos e/ou classificamos um texto de «factual» ou de «ficcional»? O que é
acionado nesse processo? De que maneira «indicamos» que o que escrevemos
ou falamos é real ou é uma simulação dessa «realidade»? Como sabemos se o
que lemos ou ouvimos é real ou não? Seriam os dados que consideramos da
«realidade»? A objetividade? A subjetividade? Seriam as restrições impostas
pelos gêneros? Seria o estilo usado nos textos? Seria a organização discursiva:
enunciação, descrição, narração e argumentação? Seria a forma de relatar o
discurso? Seria o conhecimento de mundo que cada um possui?
São estas algumas das questões que pretendemos tentar responder
no decorrer de nossa pesquisa.
42
Com o objetivo de fazer uma tese que forneça em enfoque
discursivo sobre o estudo do tema «ficcionalidade», vamos dividir o corpo de
nossa pesquisa em três partes complementares.
A primeira parte de nossa pesquisa «A (re)constituição do conceito
de ficcionalidade» visa a fazer um apanhado de como podemos perceber a
ficção em nosso cotidiano. Ela é dividida em três capítulos, assim sintetizados.:
No capítulo 2 «Ficção: o que é isso?» iniciamos a nossa pesquisa a partir
da origem da noção de ficcionalidade. Assim, partimos da Grécia antiga,
passamos pelo significado da palavra em latim e, por fim, o seu
significado na língua portuguesa falada no Brasil. Nesta parte também
estabelecemos as implicações existentes entre ficção e mentira.
Já no capítulo 3 «Os mistérios por detrás da cortina» procuramos mostrar
a atmosfera, por assim dizer, que cercou a nossa pesquisa. Pudemos
perceber, ao longo do seu desenvolvimento, que havia fatores teóricos
que se desenvolveram ao longo dos tempos, cristalizaram-se nas
estruturas de determinadas disciplinas e, como conseqüência, interferem
na nossa forma de estudar a ficcionalidade hoje. São eles: a questão dos
gêneros; a influência dos preceitos católicos no ocidente; o efeito da
censura em diversas épocas e os mitos do objetivismo e do subjetivismo
na ciência.
43
Finalizando esta parte e obedecendo à tradição metodológica das teses,
temos o capítulo 4 «Em busca das teorias perdidas». Nesta parte,
fazemos uma abordagem das teorias filiadas aos Estudos Literários e aos
Estudos lingüísticos sobre o que estas áreas do saber entendem por
ficção.
Na segunda parte de nossa tese «Contribuições teóricas ao estudo
do conceito de ficcionalidade», vamos fazer uma abordagem sobre a
ficcionalidade do ponto de vista da Análise do discurso, vertente francesa.
Começaremos pela definição de ficção e de ficcionalidade para chegarmos,
valendo-nos do suporte teórico da Semiolingüística de P. Charaudeau, a uma
tentativa de explicação do funcionamento da ficcionalidade no discurso. Esta
seção é dividida em 4 capítulos:
No capítulo 5 «Ficcionalidade: modos e tipos de ocorrência» vamos, num
primeiro momento, estabelecer noções como ficção, ficcionalidade,
factual, verdade, entre outros; num segundo momento, vamos
estabelecer uma tipologia para a ficcionalidade.
Na seqüência, no capítulo 6 «A teoria semiolingüística e a questão da
ficcionalidade», iremos tentar estabelecer uma relação entre as noções
estabelecidas no capítulo 5 e os preceitos desenvolvidos pela
Semiolingüística. Serão tratadas noções como: identidade social,
44
identidade discursiva, situação de comunicação, efeitos de real, efeitos
de ficção etc.
No capítulo 7 «Ficcionalidade e estilo: algumas considerações do ponto
de vista da análise do discurso» mostraremos as implicações existentes
quando tentamos estabelecer uma diferenciação entre o estilo
empregado em um gênero e a ficcionalidade que pode perpassá-lo.
Para finalizar esta parte, no capítulo 8 «Ficcionalidade e gêneros:
classificações instáveis» nos proporemos a fazer um estudo de caso a fim
de mostrar a fragilidade de classificações nos estatutos ficcional ou
factual dos gêneros.
O objetivo da terceira parte de nossa tese «Por uma integração
entre Estudos Lingüísticos e Estudos Literários» é tentar explicar uma questão:
Por qual razão a ficcionalidade, nas faculdades de letras, não é estudada como
um fenômeno da comunicação em geral.
Por fim, na Conclusão, tentaremos sintetizar algumas das questões
que serão colocadas no decorrer de nossa argmentação. Na verdade, não serão
respostas definitivas, mas avaliações visando mostrar o estágio em que nossa
pesquisa se encontra atualmente.
Gostaríamos de dizer que a parte Bibliografia foi dividida em duas
seções: na primeira, estão contidas as referências bibliográficas citadas no texto
45
da tese; na segunda, fizemos uma reunião, por tema, de referências
bibliográficas sobre o assunto para aqueles que possam vir a se interessar pelo
tema.
Esperamos que o trajeto por nós traçado seja confortável para
todos, que a leitura seja aprazível e que nossas palavras possam trazer alguma
contribuição ao conhecimento daqueles que nos acompanharão pelas páginas
que se seguem.
YZ
46
PARTE I:
A (RE)CONSTITUIÇÃO DO CONCEITO DE
FICCIONALIDADE
47
02
FICÇÃO: O QUE É ISSO?
Qual sentido possui a palavra ficção? O que significa fazer ou
produzir uma «ficção»? Parece-nos que a presença da ficcionalidade na
comunicação humana remonta a tempos bem distantes. Pode-se pensar que até
mesmo as pinturas rupestres feitas nas cavernas, na Pré-história, podem conter
um indício de ficcionalidade, e daquela época aos nossos dias, muitas
transformações já ocorreram. É possível dizer que cada sociedade, nas mais
diversas épocas da história do homem, possui uma tradição oral ou escrita que
ensina, através da ficção, noções como: ética, estética, procedimentos
comportamentais, lições de vida, entre outras funções.
Diante de tamanha riqueza de possibilidades de enfoque – e também
com o intuito de evitar numerosas e inconvenientes páginas de descrição sobre
a configuração da ficção em cada era histórica, lançaremos mão de um
procedimento clássico: faremos, num primeiro momento, um breve percurso
sobre os significados da palavra ficção cujo ponto de partida será a Grécia
Antiga; num segundo momento, trataremos da visão latina do termo; e, enfim,
48
num terceiro momento, veremos qual valor a palavra adquire na língua
portuguesa e como se dá o seu uso.
2.1 – Antigas ficções
No grego clássico, conforme o mostra Brandão (2000), não seria
possível encontrar exatamente uma palavra cujo sentido equivalesse termo a
termo a “ficção”, mas existiam outras noções que, naquela época, já sugeriam
alguns dos significados que atribuímos, atualmente, ao vocábulo. Somente
como uma pequena ilustração, gostaríamos de expor aqui um trabalho do autor
acima citado. A referida pesquisa apresenta uma reflexão sobre a noção de
verdade e de mentira na
Teogonia
13
de Hesíodo. No prólogo da referida obra
da Antiguidade Clássica Grega, encontramos o seguinte trecho, como o afirma
Brandão (2000:07):
"Elas [as musas] certa vez, a Hesíodo, ensinaram belo canto,
Ovelhas ele apascentando sob o Hélicon divino.
E a mim, antes de tudo, as deusas estas palavras dirigiram,
As Musas olimpíades, filhas de Zeus que tem a égide:
Pastores agrestes, maus opróbrios, ventres só,
Sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autênticas
13
Para que não existam possíveis divergências sobre a tradução do original em grego da
Teogonia
, manteremos o texto citado por BRANDÃO (2000).
49
E sabemos, quando queremos, verdades proclamar." (grifo
nosso)
Pode-se observar neste excerto da obra de Hesíodo duas distinções básicas, já
naquela época, para se compreender a noção de ficção: existem verdades e
existem coisas semelhantes à verdade. Para Brandão (2000:08), em Hesíodo, a
capacidade que as musas possuem de discernir verdade e mentira é uma
qualidade e configuraria um saber mais complexo que não estaria,
a priori
, ao
alcance dos pastores - os maus opróbrios: " (...) [As Musas] sabem sim, mas
não simplesmente
pánta
(tudo)
14
– isto é, é preciso esclarecer que seu saber
inclui coisas verdadeiras (
alethéa
) e também mentiras (
pseúdea
)." Nessa
perspectiva, a palavra "mentira" não teria o valor pejorativo que lhe conferimos
atualmente, o que pode ser observado na citação abaixo:
"(...) elas [As Musas] não condenam nem se mantêm longe dos
pseúdea
; o que condenam são os que, em sua rudez, não
distinguem
pseúdea
de
alethéa
, tomando tudo por verdadeiro.
Ou seja: condenam equívocos da recepção dos vários gêneros
de canto que proferem. De um certo modo, estão modelando o
problema que várias gerações futuras terão de enfrentar: o
estatuto desse
pseûdos
." Brandão (2000:20)
Dessa forma, já naquele momento começa a se esboçar uma das problemáticas
da ficção: ela é uma mentira ou é uma imitação da verdade? A lição de Hesíodo
é justamente a de chamar a atenção para a questão dos gêneros e da
14
Inclusão, feita por nós, da tradução
50
importância do reconhecimento do estatuto que possuem. É necessário saber
distinguir quais são os estatutos dos gêneros da Poética e quais são os
estatutos dos gêneros da Retórica, ou em outros termos, da literatura e do
discurso respectivamente.
Na citação acima já se pode ver esboçado também o problema da
recepção: de que maneira o canto das musas era interpretado, ou seja, como se
reconhece o que é factual e o que é ficcional? Qual seria o estatuto imposto
pelas musas para se reconhecer a qualidade do que elas proferem? Embora tão
relativamente distantes no tempo, tais questões parecem-nos muito atuais, visto
que o objetivo desta tese é justamente tentar discuti-las.
Transferindo-nos para a Antiguidade Latina, podemos observar
acepções como “inventar”, “imaginar”, “fingir”, “falso”, entre outros. No
entanto, a noção de “mentira” vai estar associada ao termo como o demonstra
Segre (1989:41):
“Na palavra latina
fingire
, os significados de ‘ plasmar, modelar,
e de imaginar, representar, inventar’ (isto é ‘modelar com a
fantasia’) podem assumir matizes que vão até ao dizer
‘falsamente’, ou seja, até o conceito de “mentira”: acepção mais
evidente do adjetivo
fictus
‘hipócrita’, não só imaginário,
inventado’, mas também ‘fingido, falso’. Em
fictio
, (de onde as
formas portuguesas ficção e fingimento, remontando esta última
pelo prefixo nasal
n
, a
fingere
), prevalecem, por se tratar de um
termo retórico, os significados que aludem à invenção lingüística
e literária.”
51
Se na Grécia antiga era proposto saber fazer uma distinção entre “verdades” e
“coisas semelhantes à verdade”, na Antiguidade Latina essa dicotomia
desaparece e a noção de ficcionalidade vai estar relacionada a fingir. A nosso
ver, reconhecer algo como “semelhante à verdade” é diferente de “fingir algo”,
pois, no segundo caso, o fingimento pode ser “falso”, “mentiroso”, “não
verdadeiro” e nesse caso, traz implicações éticas. Em outras palavras, a acepção
latina de “ficção” é ambígua e traz em seu significado contraposições
complexas, pois, pode-se ver aí estabelecidas relações um tanto quanto
extremas que vão do ato de mentir (que possui um valor negativo) ao ato de
imaginar (que pode ser visto como algo positivo).
É possível observar também que, conforme as palavras de Segre
(1989:41), a idéia de “invenção” literária e lingüística já se encontrava esboçada
na Retórica daquela época. Na nossa opinião, vemos aqui uma transformação
importante: não se trata mais de Musas que dizem “algo semelhante à
verdade”, mas de “inventar” algo que não esteja, necessariamente, relacionado
à verdade. É possível ainda deduzir que essa invenção seja “falsa”, uma
“mentira”.
52
2.2 – Contemporâneas ficções
Em relação ao português contemporâneo, por sua vez, herdeiro da
tradição Latina, podemos encontrar a seguinte definição em Ferreira
(1986:774): "Ficção. (Do lat.
fictione
) S. f. 1. ato ou efeito de fingir; simulação,
fingimento. 2. coisa imaginária; fantasia, invenção, criação.(...)." Verifica-se,
neste caso, o desaparecimento da acepção de "mentira" que a palavra
apresentava no latim. No entanto, notamos a permanência de noções próximas
à de mentira, como aquelas de
fingir
e
fingimento
.
Embora a acepção de “mentira
15
” para o termo “ficção” não esteja
presente no dicionário, nota-se que, em alguns casos, o vocábulo “ficção” é
usado para mascarar o sentido da palavra “mentira”. Ou seja, a acepção de
“falso” originária do latim não seria registrada convencionalmente, mas se
mantém no uso corrente da língua como uma estratégia “para não se dizer
literalmente o que se quer realmente dizer”. Na nossa ótica, tal modalização
teria, em parte considerável dos casos, a função de polidez. De acordo com
Kerbrat-Orecchioni (2004:384):
15
Observação: como já foi mencionado, quando consultamos a palavra “ficção” não há o
sentido de “mentira”. Porém, quando consultamos a palavra mentira, encontramos como um
dos sentidos “fábula, ficção”
53
“ A polidez não é nada mais do que
uma máquina para manter
ou restaurar o equilíbrio ritual entre interactantes
, logo,
para
fabricar contentamento mútuo
(ao passo que sua falta
desencadeia reações de brutal descontentamento: «ele deveria
ao menos
ter se desculpado!», «Ele
nem mesmo
me
agradeceu!») – de acordo com a definição de La Bruyère (
Les
caractères
, capítulo V): «Parece-me que o espírito de polidez é
uma certa atenção que devemos ter com as nossas palavras e
nossas maneiras, para que os outros fiquem contentes conosco
e consigo mesmos».”
Ainda na concepção de Kerbrat-Orecchioni (2004), a polidez teria a função de
assegurar o equilíbrio na comunicação e a regulação da vida em sociedade. Ela
pode aparecer como uma figura de linguagem (eufemismo, lítotes, hipérbole
etc) ou como ato de linguagem indireto
16
, no caso de uma classificação oriunda
da Pragmática. A seguir, discutiremos alguns exemplos:
(01) "Até pouco tempo atrás, o Orçamento (do Governo
Federal) era uma ficção
, meramente autorizativo _ou seja,
autorizava uma despesa, mas não obrigava o desembolso."
17
(FOLHA DE SÃO PAULO, dinheiro, 23/09/ 2000) (grifo
nosso)
Na nossa opinião, a não ser que existissem provas concretas, um
jornal não poderia publicar um artigo afirmando que o orçamento do governo é
uma mentira, é falso, é somente um artifício para enganar
18
. Tal fato poderia
ser considerado uma falta de polidez e de respeito à autoridade representada
16
Cf. SEARLE, J. R.
Os actos de fala
. Coimbra: Almedina, 1981.
17
Artigo assinado por Luis Nassif
18
vale dizer que, no senso comum, a palavra ficção pode vir a ser empregada nesse sentido.
54
pelo Estado. Uma afirmação desse teor poderia até mesmo acarretar um
processo contra a Instituição na qual o artigo foi publicado, pois o
comportamento ético ou não do governo está sendo colocado em questão.
Dessa forma, o uso da palavra «ficção» atenuaria a opinião que é publicada no
jornal «não dizendo explicitamente o que se gostaria que fosse dito». Em outros
termos, o autor do texto se vale do termo «ficção» como eufemismo de
mentira.
O mesmo raciocínio sobre «questionamento ético» do exemplo
anterior valeria, ao nosso ver, para o fragmento de texto que se segue:
(02) "A privatização das ferrovias foi mistificação. Chamar a
Novoeste, que liga Bauru a Corumbá, de empresa privada é
se aproximar da ficção
."
19
(FOLHA DE SÃO PAULO, Brasil,
30/07/2000)
Neste exemplo, podemos observar que o termo «ficção» é
empregado com a acepção de «mentira», mas há um tom hiperbólico em tal
uso. A esta análise poderíamos ainda acrescentar que além encobrir
estrategicamente o sentido de «mentira», o autor do artigo o faz de maneira
irônica. No nosso ponto de vista, dizer "chamar a Novoeste (...) de empresa
privada é se aproximar da ficção" seria o mesmo que dizer, esta empresa não
19
Artigo assinado por Elio Gaspari
55
existe, não é competente, é uma farsa. Em outros termos, o autor se vale da
polidez, via hipérbole, para mascarar o que desejaria dizer literalmente.
Enfim, no terceiro exemplo que se segue, o vocábulo teria o
significado de uma contra-verdade.
(03) "A `legítima defesa da honra´ tampouco existe na vida
real. É ficção
, artifício, distorção usada para camuflar
sentimentos muito pouco nobres que movem os homicidas
_de mulheres, em geral."
20
( FOLHA DE SÃO PAULO,
Opinião, 30/08/2000 ) (grifo nosso)
Parece-nos que neste exemplo o termo significaria uma situação
totalmente dissociada do real, seria um engodo, um mundo paralelo sem
conexão com a realidade: em suma, uma mentira. Ao afirmar isso a autora nega
que a ficção possa ser «algo semelhante à verdade», ou que tenha qualquer
outra relação com a realidade. A palavra ainda é citada ao lado de duas outras
com valor negativo: “artifício” e “distorção”. Neste caso, o termo «ficção» é
também usado para atenuar uma crítica que se quer fazer. Dizendo de forma
indireta e polida o que poderia ser uma denúncia inflamada e polêmica, a autora
evita um possível conflito. Novamente a polidez é empregada, como o endossa
este enunciado: “sentimentos muito pouco nobres
(grifo nosso).
20
Artigo assinado por Luiza Nagib Eluf, 44, na época procuradora de Justiça do Ministério
Público de São Paulo. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça
(governo FHC).
56
Ainda em relação ao significado de ficção, é possível encontrar, em
alguns veículos de comunicação, o termo sendo usado como sinônimo de textos
narrativos relacionados a um fazer estético. Segundo Ferreira (1986:1040), para
estes casos, teríamos a seguinte definição:
"
Literatura de ficção. O romance, a
novela e o conto." Como ilustração destas ocorrências podemos citar a revista
Veja
que publica
21
, com base no cálculo do índice de vendas de várias livrarias,
uma listagem dos livros mais vendidos durante a semana. A referida revista
possui três rubricas de classificação: "ficção", "não-ficção" e "auto-ajuda e
esoterismo".
2.3 – Ficção, mentira e polidez
Gostaríamos de tecer algumas considerações sobre a relação entre
mentira e ficção
22
. Em linhas gerais, o que é a mentira e por quais meandros
está ligada à ficção?
Parece-nos que o autor de uma mentira tem a clara intenção de
enganar o seu interlocutor, de ludibriá-lo. Um enunciado configura-se uma
mentira após uma prova que o classifique como tal, ou seja, a mentira é
21
Afirmação válida para o período de redação da presente pesquisa: entre 2000 e 2004.
22
Para complementar esta distinção, Cf. Mendes-Lopes (2000:29)
57
instituída
a posteriori
. Já na ficção, inicialmente não haveria intenção de
enganar – e se por ventura vier a existir, é uma intenção lúdica. A ficcionalidade
de um texto é dada
a priori
, na maioria das vezes, isso se dá através de um
contrato situacional que estabelece o caráter ficcional do enunciado.
Qual a diferença entre mentira e ficção? Diríamos que as duas estão
em uma relação quase antagônica: a mentira estaria em uma posição contrária
à verdade e a ficção se contrastaria, de certa maneira, com o factual. A noção
de mentira, ao nosso ver, é de ordem ética e, por isso, estaria em uma relação
de contraposição à noção de verdade. Parece-nos que a mentira e a verdade
poderiam, de certa maneira, serem provadas; por outro lado, o factual e o
ficcional não seriam tão claramente evidenciados ou mesmo demarcados. É
possível que se obtenha vários pontos de vista de um mesmo fato e todos
seriam - ou pelo menos poderiam ser aceitáveis.
Para ilustrar o que acabamos de dizer, podemos mencionar o
seguinte exemplo: suponhamos que tenha havido um pequeno choque entre
dois carros em uma curva de difícil visibilidade. É plausível que duas ou mais
testemunhas do evento relatem versões diferentes do mesmo acidente, mas o
fato «aconteceu um acidente» não seria negado e, portanto, seria real. Assim,
as versões do «acidente» seriam factuais, mas o «acidente» seria uma
verdade. Já a ficção estaria na ordem do verossímil, ou seja, ela atuaria no
âmbito do que é supostamente possível, do que é provável acontecer numa
58
dada reunião de determinadas conjunturas.
Grosso modo
, a diferença entre as
noções de mentira e de ficção concentra-se no fato de que não haveria, na
ficção, implicações éticas quando se opera a simulação de situações possíveis.
Em suma, pode-se dizer que a noção de ficção é bem mais
abrangente do que a noção de mentira. A esfera do factual pode conter várias
verdades e a esfera do ficcional pode se configurar como uma simulação dessas
várias verdades. A relação entre fato e ficção é plural; já a relação entre
mentira e verdade é uma relação singular e excludente: ou o enunciado é falso,
ou o enunciado é verdadeiro – em nosso ponto de vista, as duas possibilidades
não coabitariam o mesmo espaço.
Gostaríamos de abrir um parêntese para nos referir à mentira que
tem por objetivo preservar o equilibro da polidez em uma relação. Imaginemos
que alguém de nossas relações nos faça perguntas como: «Que tal meu novo
corte de cabelo, você gostou das mechas laranja e verde que coloquei?»; «Você
gostou do meu novo vestido longo de oncinha cor-de-rosa?»; «O que você
achou dos meus novos poemas experimentais baseados na minha experiência
como neoconcretista e compositor/letrista de vanguarda?». Responder a tais
perguntas pode constituir uma situação embaraçosa para determinados
interlocutores. A mentira, nesses casos, pode ser usada intencionalmente para
evitar um conflito, um rompimento de amizade, um julgamento de valor, uma
polêmica ou um mal estar na comunicação.
59
Ainda no âmbito do significado de «ficção», gostaríamos de lançar
mais uma questão: haveria diferença entre «virtual» e «ficcional»? Na linha em
que conduzimos nossa pesquisa, não nos parece que exista uma diferença. De
acordo com Ferreira (1986:1782), a palavra «virtual» significa: “adj. 2 g. 1. que
existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual. 2. suscetível de se
realizar; potencial. (...)”
.
Assim como a ficção, o sentido de virtual caminha para
a noção de simular algo que pode ocorrer no mundo factual. Em nossa
perspectiva de pensamento, consideramos que o virtual é somente mais um
modo de denominar a ficção.
Como já o mostramos acima, o termo «ficção» pode ter vários
significados e vários empregos. No entanto, sabemos que apenas enumerar
sentidos de uma palavra não responde à nossa questão principal que é como
funciona a ficcionalidade. Dessa forma, como relacionar ficção «palavra de uso
corrente na língua portuguesa registrada em um dicionário» e «Teorias sobre a
ficcionalidade», ou, em outros termos, como entender o uso da ficção do ponto
de vista do discurso?
Segundo Cohn (2001:18) o estudo sobre a ficção pode ter dois
enfoques possíveis: "La fiction comme construction théorique et la fiction
comme terme genérique" (Tradução nossa: A ficção como construção teórica e
a ficção como termo genérico).
No que diz respeito à nossa pesquisa, tentamos
fazer o percurso: da palavra ao discurso. Buscamos, num primeiro momento,
60
entender o vocábulo e suas origens para, num segundo momento, fazer uma
abordagem do que Cohn (2001) nomeia «construção teórica».
Para efetuar a passagem do significado do termo para uma
elaboração da teoria vamos reter a noção de simulação como fio condutor de
nossa elaboração teórica sobre a ficção.
2.4 – Considerações finais
Antes de expormos nosso ponto de vista, faremos uma pequena
incursão pela história da ficcionalidade: num primeiro momento, no capítulo 3,
falaremos da herança cultural que nos foi passada a respeito do tema e da
influência de tal legado na percepção que temos, atualmente, do conceito; e
num segundo momento, no capítulo 4, faremos uma retrospectiva de teorias
ligadas aos Estudos Lingüísticos e aos Estudos literários que abordaram o tema.
YZ
61
03
OS MISTÉRIOS POR DETRÁS DA CORTINA
Quando entregamos uma tese, aquele objeto que poderíamos
nomear aqui um «tijolo»
23
de papel contendo quase sempre o fruto de escolhas,
de um processo difícil de aprendizagem e amadurecimento, muitas vezes, o
destituímos dos caminhos que percorremos ao moldá-lo. Gostaríamos, nesse
momento, de falar um pouco sobre esse processo de «oleiro» do conhecimento,
pois um trabalho final de doutorado não deixa de ser uma «matéria moldada em
um formato específico e cozida no forno das idéias e das dúvidas». O leitor
pode estar se perguntando o porquê dessa atitude em uma tese, mas como o
veremos mais tarde, ver o processo de «fabricação dos tijolos» e a matéria da
qual são feitos é importante para a compreensão de nosso tema. Podemos dizer
que somente no momento em que tivemos essa atitude, ou seja, vislumbramos
realmente qual era a matéria usada na tradição no fabrico dos tijolos, é que o
nosso trabalho pôde se deslanchar.
23
Nomeamos «tijolo» por pensarmos que além do sentido de «bloco espesso», uma tese é a
nossa humilde contribuição para a construção do edifício do conhecimento.
62
3.1- O sinuoso caminho entre o camarim e o palco.
Após um breve percurso pela metáfora da fabricação de tijolos,
iniciaremos esta parte de nosso estudo migrando dos moldes e processos da
Olaria para a
mise en scène
do Teatro, um espaço que nos permite mais
associações. Vamos nos valer, de agora em diante, para um maior efeito de
clareza, das metáforas de “camarim” e de “palco” porque, em nossa opinião,
elas são apropriadas para o que pretendemos falar. Pensamos que a entrada no
palco é a exposição da tese ao público, representa o dia da estréia - repleta de
temores, ansiedade, quando gostaríamos que fosse preferível: compreensão,
debates que nos ajudassem na continuidade da pesquisa sobre o tema, críticas
construtivas, entre outros. Por outro lado, há também os aspectos indesejáveis,
mas passíveis de ocorrer e que são, na verdade, as razões de nossos temores:
críticas negativas, apatia, incompreensão do que é ali exposto.
Tal qual uma atriz caprichosa, a tese está ali no palco da
academia, moldada pelas normas da ABNT, trajando a última moda em linhas
de pesquisa, se exibindo na ribalta. Já o camarim é justamente o escritório do
pesquisador, é onde ele trabalha, sofre, tenta as várias possibilidades de expor
o tema de forma coerente, exclui alguns dados, inclui outros, organiza todas as
informações e as transforma naquela «peça» que deve ser apresentada ao
63
público. É no camarim que se testa a maquiagem, que se experimenta e se
processa os últimos ajustes no figurino, que se repassa, pela última vez, as falas
antes da estréia. É na solitude do escritório do pesquisador que são resolvidos a
roupagem da tese, as nuances teóricas que devem ser pinceladas, o tom
adotado em nossos posicionamentos. Tudo isso se dá num ambiente por vezes
pálido, em meio a um turbilhão de teorias já pensadas (e, não muito raro, de
difícil entendimento), impregnado pela poeira de tantos volumes lidos,
assombrado por temores e angústias, iluminado por descobertas, pelo
crescimento intelectual e tantas outras situações que oscilam na escala do
prazer e do desprazer.
Na nossa opinião, o caminho sinuoso que liga a feitura da pesquisa
à apresentação da tese é também um dado a ser mencionado, pois julgamos
que a descrição de tal percurso pode trazer contribuições para o entendimento
do tema. Pensamos, baseando-nos em Lakoff & Johnson (2002), que devemos
nos esgueirar do mito
objetivista
que dissocia tanto as idiossincrasias do
pesquisador quanto as condições de produção de seu trabalho do resultado da
sua produção. Para uma melhor exposição de nosso tema, poderá ser profícuo
adotar uma visão
experiencialista
que associaria «produção» e «produto», pois,
ao que nos parece, é no trajeto do camarim ao palco que compomos a peça a
ser exibida. Tal percurso é crucial para a definição do que vamos exibir, pois é a
sua qualidade que forjará uma tese bem ou mal sucedida.
64
De um ponto de vista da Análise do Discurso, vertente francesa,
poderíamos pensar que a execução da pesquisa é também um dado integrante
da tese. A realização da mesma é um dado da situação de comunicação na qual
está inserida e, no nosso caso, pensamos que seja um dado representativo
porque a ficcionalidade não poderia ser pensada sem os dados da situação que
a compõe. Fazer uma pesquisa sobre o discurso ficcional isolando-o de suas
situações de produção é fadá-la ao fracasso.
O leitor deve estar ser perguntado: afinal essa é uma «tese
ficcional» ou uma tese sobre a ficcionalidade? Assim, vamos direto ao ponto a
ser tratado. No que chamamos “os bastidores de nossa pesquisa” podemos
citar dois pontos que foram representativos para a compreensão do tema e para
a organização e direcionamento do trabalho. Durante a execução de nosso
estudo sobre a ficcionalidade, nos defrontamos com dois procedimentos
previsíveis para a situação: ora empreendemos levantamento bibliográfico, ora
expusemos nosso trabalho para outros colegas pesquisadores. De fato, tais
circunstâncias não são anormais quando se trata de um exercício intelectual
dessa natureza. Contudo, as implicações geradas por estes procedimentos nos
motivaram a mencioná-las como um dado que, mesmo sendo externo, incide
diretamente na execução da pesquisa e na forma de conduzi-la.
Na verdade, tais fatos impõem ao pesquisador uma tomada de
posicionamento e daí a sua relevância: a primeira opção seria preservar o
65
conhecimento construído até então e continuar propagando um pensamento
canônico, com uma ou outra idéia «original»; a segunda opção seria rever a
tradição e começar a construir uma outra perspectiva de conhecimento a partir
dela. A segunda escolha é um pouco mais árida porque requer que se tenha um
entendimento de como tal tradição se instaurou e de como ela funciona. No
entanto, e munindo-nos de um espírito de aventura, pensamos que seria mais
interessante enfrentar o «sol a pino» dos terrenos áridos do que permanecer no
palácio climatizado da «variação sobre o mesmo tema» da tradição. E cada
escolha, obviamente, tem seu preço e suas conseqüências. É devido a essa
opção que no Preâmbulo de nosso trabalho já advertimos ao leitor: nossa
pesquisa se propõe a ser um trabalho introdutório sobre o estudo da
ficcionalidade. Estamos somente dando um primeiro passo em direção a um
longo caminho cheio de muitas possibilidades.
3.2 - Revolver o pó: o estabelecimento da pesquisa bibliográfica
Quando empreendíamos o levantamento bibliográfico de nosso
estudo, notamos, no âmbito das pesquisas desenvolvidas nas universidades do
Brasil, da Europa e dos Estados Unidos, uma carência relativa de produções
66
científicas sobre a ficcionalidade. Foi possível encontrar um número pouco
representativo de pesquisadores que se dedicavam inteiramente ao tema;
podemos ilustrar citando: Reboul (1992), (2000); Searle (1995); Bange (1986);
entre outros. Por outro lado, foi uma constante encontrarmos pesquisadores de
várias áreas que fizeram um ou dois artigos abordando o assunto, mas sem a
sistematização exigida por uma pesquisa mais a longo prazo. Podemos citar:
Iser (1979); Warning (1979); Rorty (1982); Genette (1989); Cohn (2001); e
dentre outros. Quanto aos pesquisadores brasileiros, o cenário não deixou de
ser diferente. Infelizmente, somente tivemos acesso à obra de Costa (2002) na
qual é feita uma abordagem sobre a ficção e sua influência na mídia
contemporânea.
Na obra acima citada, a autora se propõe a estudar as relações entre
ficção - no sentido de literatura de ficção (romance, conto, novela), e cultura
de massa, ficção audiovisual e ficção digital. No entanto, não pudemos
encontrar em sua pesquisa uma abordagem teórica de cunho lingüístico-
discursivo que relacionasse a ficcionalidade aos diferentes discursos por ela
estudados. De fato, não era essa a sua linha de pesquisa, pois a definição de
ficção proposta por Costa (2002:29) parte de concepções da psicologia, como o
veremos:
“[...] somos levados a considerar como
ficção não apenas as
obras literárias, plásticas ou cinematográficas que identificamos
e classificamos como ficcionais, mas o tipo de relação
67
intersubjetiva que estabelecemos com a realidade, mediada por
um texto que pode se apresentar sob as mais diversas
linguagens e suportes
.” (marcação da autora)
A referida pesquisa tem como objetivo estabelecer uma co-relação entre ficção
e intersubjetividade. Por uma questão de escolha de linha de pesquisa, não
gostaríamos de abordar este aspecto da ficcionalidade. No entanto, devemos
ressaltar a sua iniciativa em empreender uma pesquisa sobre um tema sem
muitas publicações em nosso país.
A relativa pouca ocorrência de pesquisas não exclui, contudo, o
questionamento da existência da ficção associada a um ponto de vista do
discurso, como o demonstra Kermode
24
citado por Cohn (2001:18): "
On peut y
lire qu´il est tout à fait étonnant... que personne... n´ait jamais essayé de relier
la théorie des fictions littéraires à la théorie de la fiction en général.
" (Tradução
nossa:
Pode-se fazer a leitura de que é totalmente espantoso...que
ninguém...jamais tenha tentado relacionar a teoria das ficções literárias com a
teoria da ficção em geral
). Chamamos a atenção para o fato de que Kermode
faz tal reflexão em 1968, ou seja, a ficcionalidade já era vista como um
fenômeno da comunicação em geral, porém, como afirma o autor supracitado,
já naquela época, o tema não era explorado de forma conveniente.
24
KERMODE, Frank.
The sense of na Ending: studies in the Theory of fiction
. Oxford: Oxford
University Press, 1968
68
Durante a presente pesquisa, foi uma rotina nos depararmos com
publicações esparsas de artigos em periódicos, mas são raros os volumes que
concatenam textos sobre este assunto, e os que o fazem, datam de meados da
década de 1990 em diante. Como exemplo, podemos citar Reboul (1992),
Schaeffer (1999) e Cohn (2001). Devemos dizer que estes volumes são
publicações de artigos reunidos e não foram concebidos, inicialmente, com um
plano de obra sobre o tema.
3.3 - Ensaio: a busca das marcações mais apropriadas
Nos momentos em que expusemos nossa pesquisa em congressos ou
em apresentações de outra natureza, observamos um certo incômodo e uma
certa dificuldade por parte de algumas pessoas em aceitar a perspectiva de uma
abordagem discursiva sobre o tema. Notamos que a ficcionalidade ainda estaria
bastante associada aos Estudos Literários e observamos, por parte de outros
pesquisadores, uma certa resistência em ver o fenômeno de forma mais
abrangente. Tínhamos a impressão de que o discurso literário tornara-se um
espaço sagrado e ao afirmarmos que os demais discursos
25
– os reles mortais,
25
É possível dizer que o fato não é isolado e para ilustrar podemos mencionar a observação feita
por Maingueneau (2004): segundo ele, nas universidades francesas há uma dificuldade em se
69
funcionavam lingüisticamente da mesma forma, estaríamos fazendo algo
semelhante a «bombardear o Olimpo». De certa maneira, como o veremos
abaixo, existem razões históricas que podem explicar algumas destas atitudes.
Além da dificuldade apresentada por determinadas posições em
dissociar o discurso ficcional da esfera dos Estudos Literários, encontramos
outros percalços, pois, na maioria dos casos em que apresentamos a nossa
abordagem, foi necessário fazer exposições relativamente exaustivas para que a
nossa perspectiva fosse compreendida. Parece-nos que existiria também, por
parte dos lingüistas, a associação entre ficcionalidade e texto literário: nesse
caso, ao invés de considerá-lo um «espaço sacro», encontramos resistência em
aceitar uma perspectiva de análise discursiva que estivesse supostamente
relacionada aos Estudos Literários, ou seja, consciente ou inconscientemente, os
lingüistas, de uma maneira ou de outra, parecem legitimar o espaço da
“especificidade do literário”. Parece-nos que, no cenário atual, todas estas
posturas nada mais são do que uma questão de defesa de território e possuem
raízes ideológicas implantadas historicamente no âmago das instituições.
Felizmente, ou poderíamos nos considerar um pouco desprovidos
de razão, também pudemos ver que alguns colegas, de certa maneira, se
surpreendiam quando percebiam a possibilidade de uma visão mais ampla da
ficcionalidade, mostravam-se muito interessados pelo assunto e, em alguns
aceitar o discurso literário como um dos discursos que integram o que poderíamos nomear uma
macro estrutura discursiva.
70
casos, chegaram até mesmo a relacionar a questão ao
corpus
de suas
pesquisas.
A relativa baixa incidência de pesquisas e a aceitação da
ficcionalidade como um fenômeno do discurso, ao que nos parece, estão
amalgamadas em uma relação de complementaridade. De um lado, a ausência
de pesquisa gera a dificuldade de debate sobre o tema; de outro, se não
debate, não é possível o desenvolvimento ou o interesse pelo assunto por parte
de outros pesquisadores, estando aqui também incluídos os alunos de Letras
26
que venham a ser futuros pesquisadores. Devido a essa morosidade – existente,
pelo menos, até o término do presente texto, em aceitar a ficcionalidade como
um fenômeno mais amplo, a pesquisa acaba avançando muito timidamente, em
trabalhos esparsos, como pode ser visto no material coletado a partir da
pesquisa bibliográfica. Várias relações entre ficcionalidade e outros temas são
apontadas, mas julgamos haver uma carência de uma reflexão mais substancial
que indicasse um quadro teórico com mais subsídios para lidarmos com o
tema.
26
Ou de alguma outra área do conhecimento que tenha interesse pelo assunto.
71
3.4 - Ficcionalidade: seu passado te condena?
Acreditamos que a ocorrência pouco marcante de estudos tratando
da ficcionalidade como fenômeno do discurso e a dificuldade de se dissociar
«ficcionalidade» e «estudos literários» teria, pelo menos, duas justificativas
históricas: de um lado, parece-nos que, durante alguns períodos da história da
humanidade, o ato de produzir ficção foi visto de forma negativa, em outros
termos, a ficção teria a qualidade de «ser contrária à verdade» e, por isso,
chegou a sofrer as censuras mais diversas; de outro lado, e como conseqüência
da primeira, pensamos que ela acabou se restringindo ao campo dos Estudos
Literários (pois, ali, de alguma forma estaria protegida pela redoma de uma
«especificidade» do que alguns nomeiam «caráter não-real da arte»). Por
conseguinte, tornou-se distante das preocupações dos lingüistas de várias
épocas, já que estes últimos estavam voltados para o estudo de “enunciados
verdadeiros e produções reais da fala”. A ficcionalidade, estando relacionada ao
texto literário, não se encaixaria nos pré-requisitos dos estudos sobre língua.
Mesmo mencionando pesquisas como aquelas dos formalistas
Russos, do Círculo de Praga, ou de autores isolados como Bakhtin, Barthes,
Greimas, Genette, podemos ver que não são trabalhos que partem da lingüística
para teorizar sobre a ficcionalidade nos discursos não-literários. Ao contrário, e
72
baseando-nos nos pesquisas a que tivemos acesso, partem da análise do texto
literário e se valem da lingüística como um instrumento possível de análise de
tais obras. A partir do que percebemos em nossas leituras, na maioria dos
casos, salvo algumas tímidas exceções, não haveria uma preocupação em
teorizar os demais discursos a partir das mesmas ferramentas utilizadas para a
análise do texto literário.
Qual seria a razão dessa cisão? Por que a resistência (de ambas as
partes) em se aceitar o discurso ficcional como um dos discursos possíveis de
serem analisados pelos lingüistas? Por que a ficção poderia somente estar
relacionada às artes ou a uma concepção de subjetividade/ficção
versus
objetividade/verdade? São estas as questões que tentaremos tratar a seguir.
3.5 - Em busca do elo perdido
Seria possível listar vários eventos da história da humanidade que
estariam em uma relação direta com a percepção - e até mesmo com a
aceitação, da ficcionalidade em nossos dias. Levando-se em consideração tal
pluralidade, não seria possível nos propormos a fazer nenhuma exposição
exaustiva, pois, a nosso ver, os dados históricos relacionados a este assunto
73
poderiam até mesmo constituir o tema de diversos segmentos de pesquisa.
Diante de tal multiplicidade, optamos por mencionar somente alguns fatos que
selecionamos de forma aleatória.
A ficcionalidade, parece-nos, está presente na história do homem
desde as mais remotas eras. De acordo com Felici (2000:823), os primeiros
registros de arte parietal, por exemplo, foram detectados no Período Paleolítico
Superior, há aproximadamente 60.000 anos. Sabe-se que a ocorrência da arte
pré-histórica não se concentrou somente naquele período, visto que existem
estudos que comprovam a sua presença em outras Eras. Em vários sítios
arqueológicos, sejam eles internacionais
27
ou brasileiros
28
, é possível encontrar
diversas ilustrações de animais, de situações que supomos ser da vida cotidiana
daquele tempo e também figurações do próprio homem. Desta forma,
pensamos que estes desenhos constituem uma «representação» do modo de
vida, da fauna e flora da época em que foram feitos. Aos nossos olhos de hoje,
podemos dizer,
grosso modo
, que não se trata de uma «imagens reais» e, sim,
de representações ficcionais daquele tempo.
Nesta perspectiva, a humanidade, desde os seus primórdios, tem
convivido com a ficcionalidade. Proporcionalmente ao passar dos tempos, houve
também uma evolução nas maneiras de se expressá-la. Talvez esse convívio,
em certas épocas, tenha se dado sem nem mesmo ser percebido, sem ser
27
Entre os vários sítios dessa natureza podemos citar a caverna de Lascaux, na França. Felici
(2000:1092)
28
Cf. site: www.iphan.gov.br
74
estruturado como um conceito; já em outros tempos, a ficção era não só
percebida, como também condenável e qualificada de «maléfica».
Não é nossa intenção recontar a história da humanidade e sua
relação com o tema estudado, por isso, selecionamos quatro fatores que
julgamos ser representativos para que nossos antepassados concebessem e
propagassem a idéia de ficcionalidade como a percebemos hoje: a questão dos
gêneros, a influência dos preceitos católicos no ocidente, o efeito da censura
em diversas épocas e os mitos do objetivismo e do subjetivismo na ciência. A
seguir discutiremos, de maneira não exaustiva, a influência de cada um destes
fatores.
3.5.1 - A questão dos gêneros
No inventário das teorias que herdamos da história do ocidente,
diríamos que a primeira diferenciação conceitual mais concreta entre
factualidade e ficcionalidade seria detectada nas obras de Aristóteles, mais
especificamente, na
Poética
e na
Retórica.
Em nossa opinião, tais obras
conteriam o esboço de uma problemática associando a questão dos gêneros
75
àquela da ficcionalidade: de um lado, teríamos os gêneros literários
29
- cujo
estatuto seria explicitamente ficcional – e, de outro, os gêneros do discurso, ou
retóricos
30
- cujo estatuto seria especificamente factual. Assim pensando,
afirmaríamos que a ficcionalidade condicionou-se ao tipo de convenção imposta
pelos gêneros, tal como eram vistos pelo referido pensador grego e, por isso,
compartimentada em uma divisão estanque.
Levando-se em consideração que a Antiguidade Clássica foi o
berço da cultura ocidental e que os gêneros foram sendo criados e recriados
durante séculos, é possível prever que o fio da história fosse emaranhando cada
vez mais a idéia de ficcionalidade e de factualidade. Mesmo havendo
transformações nas restrições impostas pelos gêneros, não seria possível
afirmar que o estatuto ficcional ou factual tenha sido colocado em questão, ou
seja, não encontramos, por exemplo, uma pesquisa que falasse da
ficcionalidade nos gêneros retóricos. A nosso ver, mesmo que tenha havido
traços de ficcionalidade nos gêneros não-literários, esta influência permaneceu
mascarada, de uma maneira ou de outra, mesmo se a designação genérica
tivesse sofrido mudanças. Parece-nos que seria quase uma imposição a
separação dos gêneros através de seus estatutos.
Um exemplo do que acabamos de mencionar pode ser constado no
trabalho de Genette (1977). De acordo com o referido autor, as diversas
29
Na perspectiva da Poética de Aristóteles: épico, lírico e dramático.
30
De acordo com a Retórica de Aristóteles: epidíctico, deliberativo e judiciário.
76
interpretações feitas a partir de Platão e Aristóteles sobre os gêneros
produziram confusões e substituições que passaram desapercebidas. O
rompimento com a estética clássica só se daria a partir no século XVIII, com
contribuições de Schlegel, e de outros teóricos do romantismo alemão. Segundo
Genette (1977:402), a obra de Batteux
31
, embora ainda ancorada na visão de
poética aristotélica, foi um ponto de transição entre as duas poéticas porque
incluía a Lírica como uma possibilidade dentro da «imitação». Nos nossos
tempos atuais, seria admissível interpretar tal postura como «o reconhecimento
da ficcionalidade na Lírica». Devemos observar que mesmo havendo um
rompimento com os ideais da estética clássica como o mostra Genette (1977), a
existência da «imitação» nos outros gêneros não-literários não entraram na
discussão, ou seja, não constituem uma questão, e permaneceram circunscritos
à esfera da Retórica. Mesmo no texto de Genette acima citado, não há
nenhuma referência a gêneros não literários, embora o título do artigo (Genres,
«types», modes) pudesse abarcar tal modalidade.
Assim sendo, a divisão sugerida pela Antiguidade Clássica e
sustentada pela tradição escolar permaneceu, mesmo que em determinados
momentos esta permanência se desse de maneira pouco perceptível, até os dias
atuais. Um desses vestígios pode ser visto na divisão proposta pela estética
31
Genette não cita a referência bibliográfica de Batteaux, há somente a menção «capítulo 13:
sur la poésie Lyrique»
77
romântica do séc. XIX entre textos intransitivos e textos transitivos. De acordo
com Maingueneau (2004:43)
“[...] eis um caso que inspira reflexão: é surpreendente que,
ainda hoje, a maior parte dos especialistas da literatura ignore
tudo o que é feito sobre este tema nos trabalhos sobre o
discurso, e que a maior parte dos pesquisadores sobre o
discurso evite levar em conta categorizações advindas dos
estudos literários. Assim agindo, estes especialistas reproduzem,
sem perceber, a divisão que foi imposta pela estética romântica
do início do século XIX, divisão esta que se fez entre textos
“intransitivos” – expressão da “visão do mundo”, de uma
individualidade criadora – e textos “transitivos” – de menor
prestígio, que estariam a serviço das necessidades da vida
social.”
Nesta linha de pensamento, os gêneros literários estariam associados aos textos
intransitivos, mais prestigiados; e os textos transitivos, aos gêneros de discurso,
logo, de uso cotidiano e de «menor valor». Ainda de acordo com Maingueneau
(2004), esta divisão ainda se reflete, atualmente, nos cursos de letras, mais
especificamente no âmbito da organização das disciplinas. De alguma maneira,
ou pelo menos temos essa impressão, o tema ficcionalidade parece
«pertencer» aos Estudos literários.
Na época em que vivemos, pensamos, seria necessário ter uma
outra visão dessa questão. Tentaremos demonstrar no decorrer de nosso
trabalho que os gêneros podem ser permeados tanto de ficcionalidade quanto
de factualidade, independente de pertencerem à instituição literatura ou a
qualquer outra.
78
3.5.2 - A influência dos preceitos católicos no ocidente
A relação entre ficcionalidade e religiões também, pelo que nos
parece, é problemática. No caso dos textos fundadores de doutrinas, se
pensarmos na Bíblia, por exemplo, é possível notar que existem várias
passagens que podem ser classificadas de «ficcionais». A título de ilustração,
mencionamos: as parábolas, a travessia do mar vermelho, os episódios de
Sodoma e Gomorra, a vida de Jonas dentro de uma baleia, o fato de uma
virgem engravidar, o espetacular dilúvio e a arca de Noé com representantes de
cada espécie da fauna e da flora do mundo daquela época (tal embarcação
pareceria estar mais próxima do que concebemos hoje como “transatlântico” do
que da noção que temos de arca), entre outros. Em vários outros textos
religiosos também podemos encontrar - por exemplo, nos Mitos da Criação -
vários índices de ficcionalidade: o nascimento dos deuses a partir da cópula
entre a Terra e o Céu, a criação dos homens a partir do mais diversos materiais
(barro, argila, costelas...), as formas físicas de alguns deuses (as metamorfoses
de Zeus, por exemplo), o hábito de alguns deuses comerem seus filhos e eles
sobreviverem ao suco gástrico de seu estômago etc. No entanto, vale ressaltar
que o estatuto de textos religiosos é definido de acordo com o posicionamento
do sujeito em relação a sua crença.
79
Na perspectiva de um pesquisador, poderíamos dizer que para um
não-crente, eles podem ser ficcionais e para um crente, os textos por eles
considerados sagrados, são factuais. Embora tais índices de ficcionalidade
existam, não nos parece que sejam bem aceitos pelas religiões, justamente pela
ambigüidade que a palavra «ficção» pode sugerir. Em outros termos: a crença
na verdade é crucial para o discurso religioso e não poderia ser questionada ou
relativizada. A idéia de ficcionalidade poderia trazer dúvidas sobre a crença e,
por conseguinte, falir a idéia de Verdade Divina que sustenta as religiões.
Então, tocamos no ponto que nos interessa: o que definimos como «a
verdade»? Tal entendimento será de grande valia para a aceitação ou negação
da ficcionalidade, como o veremos adiante.
A Igreja católica, com seus mais de 2000 anos de existência, não
deixou de interferir na questão da ficcionalidade, pois, como o dissemos acima,
admitir a ficcionalidade na Bíblia, por exemplo, poderia colocar em cheque
vários de seus dogmas, até mesmo a real existência de Deus. Seria relevante
lembrar que o estado laico é uma questão relativamente moderna e que a
Igreja, durante muito séculos, esteve sempre ao lado do poder, e em algumas
épocas, ela própria constituía esse poder já que era a Igreja quem regia as
cerimônias de coroação dos reis na Europa por muitos séculos. Citemos aqui,
como exemplo, o caso de Richelieu
32
, na França. Em decorrência dos poderes
32
Para aqueles que não estão a par: RICHELIEU (Armand Jean DU Plessis,
cardeal
DE),
estadista francês (Paris, 1585 -
id.
, 1642). Durante mais de 18 anos foi o verdadeiro governante
80
outorgados à Igreja, seria natural que até mesmo as leis sofressem a influência
dos valores desta instituição religiosa e a unicidade da verdade, por sua vez,
fosse colocada como um valor inquestionável da virtude.
Para mencionar um outro caso de influência da Igreja, podemos citar
mais um fato ocorrido na França. De acordo com Zufferey (2000:475-6), no
século XVII, havia uma proibição, por parte da Igreja, de se produzir ficção
33
:
“Dans la première moitié du Grand Siècle, la production de
fictions est encore ouvertement réprouvée par l´Eglise et il
arrive que leurs auteurs soient condamnés par la censure. [...]
Néamoins, et quelle que fût leur rareté, ces inculpations se sont
trouvées legitimées par des arguments judiciaires et donc,
ultimement, par une idéologie institutionnelle reconue.”
(Tradução nossa:
“Na primeira metade do Grande Século, a produção de ficções é
ainda abertamente reprovada pela Igreja e havia casos em que
seus autores eram condenados pela censura. [...] Entretanto,
mesmo sendo raras, estas condenações foram legitimadas por
argumentos jurídicos e, portanto, em última instância, por uma
ideologia institucional reconhecida.”)
A citação acima pode ilustrar a que ponto a Igreja poderia intervir nas leis do
Estado, tornando-se um poder paralelo que decidia sobre a vida dos cidadãos.
Ainda de acordo com o autor acima citado, havia dois argumentos
que podiam justificar a prisão de um escritor de ficções: o primeiro, e mais
da França, tendo conseguido fortalecer a monarquia francesa. [...] O Papa Gregório XV fez
Richelieu cardeal em 1622. Em 1624 ele recuperou seu lugar no Conselho Real. Serviu com
grande perícia e habilidade e em breve tornou-se a pessoa de maior influência no governo
francês. Governou a França de 1624 a 1642 em nome de Luís XIII.
©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital
33
Não estamos querendo dizer que não houvesse produção romanesca na época, mas
mencionar que mesmo não sendo muito aplicada, a Igreja tinha o poder de censurar.
81
fundamental, seguiria uma razão teológica e, o segundo, seria guiado por uma
razão moral.
A razão teológica para que a ficção fosse condenada é assim descrita
por Zufferey (2000:476):
“[...] dans cette societé profondement religieuse, le monde ne
se conçoit pas en lui même, mais en tant qu´objet de la
création divine. De manière analogue la fiction elle également,
s´affiche comme création. Mais concurrance indigne, elle ne
peut être que sacrilège, insulte à la théologie. En effet d´une
part elle apparâit comme tentative d´usurpation d´un privilège
divin en ce qu´elle signe l´acte originel de la Création et,
d´autre part, elle est tromperie puisqu´elle fait ilusion sur
l´objet même de la création.”
(Tradução nossa:
“[...] nesta sociedade profundamente religiosa, o mundo não se
concebe por si só, mas como objeto da criação divina. De
maneira análoga, a ficção também se mostra como criação. Mas
concorrência indigna, ela somente pode ser sacrilégio, insulto à
teologia. De fato, de um lado, ela aparece como tentativa de
usurpação de um privilégio divino quando assina o ato original
da Criação e, de outro lado, ela é enganação, já que cria uma
ilusão sobre o próprio objeto da criação”)
Em tais argumentos, podemos ver esboçada a idéia, que é quase um estigma: a
ficcionalidade vista de forma negativa como ato de fingir, enganar. E também a
prevalência da crença em um unicidade da verdade.
A outra razão citada acima, seria de ordem moral. Segundo
Zufferey (2000:477), havia a crença de que o agir humano não seria somente
determinado pela razão, mas também pelas paixões que motivam cada
82
indivíduo. Nessa perspectiva, os romances, e por extensão a ficcionalidade,
eram maléficos:
“[...] le roman – qu´il soit heroïque, amoureux ou comique –
exhibe des passions déréglées et, de ce fait, exacerbe ces
mêmes passions chez le lecteur. Par conséquent, le grief qui lui
est fait de mettre en péril l´équilibre interne du sujet concerne
ultimement un dérèglement des habitudes comportamentales.”
(Tradução nossa:
“[...] o romance – que ele seja heróico, amoroso, cômico –
exibe paixões desregradas e, por isso, exacerba essas mesmas
paixões no leitor. Conseqüentemente, o prejuízo que ele causa
ao colocar em perigo o equilíbrio interno do sujeito tem relação,
em última instância, com um desregramento dos hábitos
comportamentais.”)
A Igreja, ao censurar os romances, estaria censurando também a ficcionalidade
e contribuindo para criar uma concepção negativa do termo. Não nos cabe aqui
mencionar todas a implicações ideológicas que tal censura representa, mas é
possível perceber que não seriam poucas.
Para finalizar esta seção, não nos contivemos em não relatar uma
história no mínimo ardilosa. Zufferey (2000) faz toda a contextualização do
status da ficção no século XVII, como o expusemos acima, com o objetivo de
fazer um estudo da obra do bispo de Belley, na França, chamado J.-P. Camus
(1584-1652). O referido bispo foi autor de trinta e cinco romances e vinte e uma
coletâneas de narrativas curtas. Como vimos, a Igreja condenava moralmente
os escritores, no entanto, J.-P. Camus, à frente de um bispado, publicou vários
romances, como isso foi aceitável? De acordo com Zufferey (2000), para fugir
de uma possível acusação de que «estivesse cometendo a heresia de criar um
83
mundo à semelhança do ato divino de criar», J.-P.Camus argumentava que
suas obras tinham uma função edificante e que, na verdade, não eram
«criação», mas sim segredos de confissão (cujas identidades reais eram
omitidas), ou seja: seus livros continha histórias reais. Ele transformava tais
segredos em romances para que servissem de exemplo ou de ensinamento de
virtudes para os fiéis, cuja finalidade era impedir que repetissem os mesmos
pecados cometidos pelas outras pessoas. Ao que nos parece, esse bispo,
astutamente, aplicou um cheque-mate: já que os segredos de confissão não são
violáveis em nenhuma hipótese, ninguém poderia provar se seus textos eram
realmente histórias reais de pessoas das quais foi confessor ou se ele as
inventava. Como diriam alguns:
touché
!
Certamente, a influência da Igreja Católica diminuiu, mas no
Brasil, pelo menos, podemos ver o surgimento e o estabelecimento de Igrejas
Evangélicas cujas regras podem variar. Há algumas em que não se pode assistir
à programação cotidiana dos canais de televisão; novelas e filmes são
considerados «obras do diabo», e em pleno século XXI muitas leituras ainda são
proibidas. Em nome de «Deus» criam seus próprios programas televisivos, seus
livros, sua música etc. No caso desta última, por exemplo, há o
White metal
(tipo de
heavy metal
que cultua deus), que foi criado em oposição ao
black
metal
(tipo de
heavy metal
que cultua o demônio).
84
Os tempos mudam e com tais transformações surgem as novas
modalidades de censura e de imposição de credos. Contudo, queiramos ou não,
a idéia de «ficcionalidade edificante» ainda permanece sendo propagada e, de
forma clara ou subentendida, os valores do catolicismo acima descritos são
passados para as outras religiões, e estas, por sua vez, os repassam para as
instituições, inclusive para as escolas.
3.5.3 - O efeito da censura em diversas épocas
Na Antiguidade Clássica, há o célebre fato de Platão ter expulsado os
poetas de sua República. A nosso ver, a atividade dos poetas somente
personificaria o que representava a ficcionalidade naquela época, em outros
termos: a ficcionalidade colocaria em questão uma «verdade» única e absoluta.
No entanto, o próprio Platão, ao escrever seus
Diálogos
, coloca Sócrates como
seu personagem, o que, na época em que vivemos, poderia ser interpretado
como um recurso ficcional, ou um efeito de ficção.
Parece-nos que, além dos fatores de coibição da ficcionalidade acima
mencionados, haveria mais um outro fator: o papel dos livros - e por
conseqüência, da aquisição da cultura e do saber, em uma sociedade.
85
Dependendo do período histórico em que se vive, o ato de escrever um livro
pode representar uma denúncia, um protesto, ou uma outra forma de ver o
mundo diferente daquela que determinadas instituições ou governos prefeririam
que as pessoas vissem. Nessas circunstâncias, alguns textos, sejam eles
ficcionais ou factuais, tornaram-se um incômodo para alguns governantes e
para algumas instituições.
Assim pensando, a história do livro e da leitura se mistura à
historia da ficcionalidade. Queimar ou censurar livros é, de alguma forma, coibir
também a ficcionalidade, pois muitos livros se valem desse recurso para se
constituírem. Um outro aspecto a ser mencionado é que a ficcionalidade pode
ser usada para denunciar situações que não poderiam ser ditas de forma literal
ou para criar em seus leitores, idéias «prejudiciais à manutenção da ordem do
sistema». Baseando-nos em Manguel (1998:377), podemos fazer uma pequena
enumeração de alguns casos em que livros foram destruídos:
“[...] Les oeuvres de Protágoras furent brûlées vers 411 à
Athenes. En l´an ~213, l´empereur de Chine Shih Huang-ti
essaya d´en finir avec la lecture em brûlant tous les livres de
son royaume. Vers 168, la bibliothèque juive de Jérusalem fut
détruite de propos déliberé pendant le soulevement des
Macchabées. Au premier siècle de notre ère, Auguste exila les
poetes Cornelius, Gallus et Ovide et interdit leurs oeurvres.
L´empereur Calígula odonna de brûler tous les ouvrages
d´Homère, de Virgile et de Tite-live (mais son édit ne fut pas
executé). En 303 Dioclétien condamna au bûcher tous les livre
chrétiens. Et ce n´était qu´um début. Le jeune Goethe, témoin
à Francfort de la destruction d´un livre par le feu eut
l´impression d´avoir assisté à une exécution. [...]”
86
(Tradução nossa:
“[...] As obras de Protágoras foram queimada por volta de 411,
em Atenas. No ano de ~213, o imperador da China Shih Huang-
ti tentou acabar com a leitura queimando todos os livros do seu
reino. Por volta de 168, a biblioteca judia de Jerusalém foi
destruída propositalmente durante o levante dos Macabeus. No
primeiro século de nossa era, Augusto exilou os poetas Cornélio,
Galo e Ovídio e proibiu as suas obras. O imperador Calígula
ordenou que queimassem as obras de Homero, Virgílio e Tito
Lívio (mas seu édito não foi executado). Em 303, Diocleciano
condenou à fogueira todos os livros cristãos. E isso era só o
começo. O jovem Goethe, testemunho em Frankfurt da
destruição de um livro pelo fogo, teve a impressão de ter
assistido a uma execução. [...]”)
Estas situações acima descritas servem para ilustrar de que maneira os textos
portadores ou não de ficcionalidade sofreram repreensões e censuras em
diversas épocas. Os livros podem permitir uma visão da realidade a partir de
muitos vieses e tal fato não é muito conveniente para posições dogmáticas.
Em sua história da leitura, Manguel (1998:377) tece
considerações sobre a censura e, na nossa opinião, mostra uma visão que cabe
tanto para textos de estatutos ficcionais ou factuais:
“La censure est par conséquent, sous une forme ou une autre,
le corrollaire de tout pouvoir, et l´histoire de la lecture est
eclairée par une suite apparemment sans fin d´autodafés, des
premiers roulaux de papirus au livres de notre temps.”
(tradução nossa:
“A censura é, conseqüentemente, de uma forma ou de outra, o
corolário de todo o poder e a história de leitura é iluminada por
uma seqüência sem fim de autos-de-fé: dos primeiros rolos de
papiro até os livros de nosso tempo”)
87
A censura como corolário do poder pode muito bem ser exemplificada com
casos que ocorreram durante o período ditatorial vivido no Brasil após o golpe
de 1964. Naquela época a liberdade de imprensa não estava assegurada e o
governo não tolerava comentários a respeito de sua conduta. Assim sendo, se
valer da ficcionalidade foi uma estratégia usada por muitos jornalistas para
poderem se manifestar. Abaixo transcrevemos uma «previsão do tempo»
publicada pelo Jornal do Brasil em 14 de dezembro de 1968, logo após a
proclamação do Ato Institucional nº 5:
“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O
país está sendo varrido por fortes ventos. Máxima de 38 graus
em Brasília. Mínima de 5 graus nas Laranjeiras.”
Esta previsão do tempo foi publicada na primeira página, no canto esquerdo do
cabeçalho, próxima ao nome do jornal. Observando alguns jornais da época,
podemos notar que era comum a previsão do tempo aparecer neste espaço e a
censura não percebeu que não se tratava de uma previsão do tempo e, sim, de
uma avaliação feita pelo jornal da situação tempestuosa em que o país se
encontrava. O jornalista autor do texto se vale da estrutura da previsão
meteorológica (ventos, temperaturas máxima e mínima, qualidade do ar etc)
para denunciar uma situação política.
É possível citar também as canções de Chico Buarque, Geraldo
Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o jornal
O Pasquim
, entre outros, que
88
fizeram suas críticas ao regime através da ficcionalidade. E tudo isso é razão
mais do que suficiente para governos ditatoriais não serem muito simpáticos a
ela.
3.5.4 - A querela dos objetivistas x subjetivistas
É plausível dizer que todos os fatos que expusemos acima são
dados empíricos e que foram apresentados de maneira condensada. Tal fato,
sabemos, pode gerar controvérsias e, ocasionalmente, acusações de
parcialidade. No entanto, mesmo expostos de forma breve, parece-nos que tais
dados vão influenciar na visão de ciência que se construiu através dos tempos,
ou seja: a razão de ser da ciência deve ser a busca de uma verdade absoluta.
Sabe-se que a ciência, no decorrer dos séculos, necessitou adquirir uma
metodologia de trabalho para que se pudesse ter mais legitimidade e
credibilidade nos resultados. Um dos primeiros filósofos a sugerir um método de
pesquisa foi Francis Bacon
34
, entre os séculos XVI e XVII.
34
Para aqueles que não estão a par: BACON (Francis), filósofo e estadista inglês (Londres, 1561
-
id
., 1626). Foi um dos defensores mais antigos e influentes do método empírico e científico na
solução de problemas.Suas principais obras filosóficas são
O Progresso do Saber
(1605) e
Novum
Organum
(1620). Estas foram as únicas que terminou de um projeto de seis volumes,
chamado
Instauratio magna
(Grande Renovação), que seria uma pesquisa sobre os métodos,
89
Com a necessidade de procedimentos de análise mais estruturados
e regularizados, surgiu, como conseqüência, a exigência da objetividade nas
pesquisas científicas. Os modelos anteriores, sem uma metodologia rigorosa,
foram então considerados subjetivistas, pois não continham regras de
procedimento e eram baseadas na percepção superficial e pessoal das coisas.
Assim, com o passar dos tempos e com o desenvolvimento dos processos de
execução das pesquisa, criou-se o que Lakoff & Johnson (2002) denominam
«mito do objetivismo» e «mito do subjetivismo».
Podemos dizer, de forma bastante superficial
35
, que durante
muitos séculos permaneceu a idéia de que ser objetivista é ser «racional», e,
por outro lado, ser subjetivista é ser «irracional e emocional». De acordo com
Lakoff & Johnson (2002:295-6), o objetivismo poderia ser assim sintetizado:
“Há uma realidade objetiva e podemos dizer coisas que são
objetivamente, absolutamente e incondicionalmente verdadeiras
e falsas sobre ela. Mas, como seres humanos, estamos sujeitos
a erros, isto é, a ilusões, a erros de percepção, a erros de
julgamento, a emoções e viéses pessoais e culturais. Não
podemos confiar nos julgamentos subjetivos dos indivíduos. A
ciência nos oferece uma metodologia que nos permite
ultrapassar nossas limitações subjetivas e atingir a compreensão
a partir de um ponto de vista universalmente válido e
desprovido de viés. A ciência pode, em última instância, dar-
nos uma explicação correta, definitiva e geral da realidade, e
teorias e realizações da ciência experimental. Bacon também escreveu ensaios originais e
espirituosos. ©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital
35
Temos plena consciência que o debate sobre o assunto é muito mais complexo e vários
outros fatores, sejam eles históricos, sejam eles filosóficos, sejam eles lingüísticos, estão
implicados. Pensamos que o objetivo de nossa tese não é discutir o mérito da questão e sim,
mostrar de que maneira o objetivismo e o subjetivismo influenciaram no estudo da
ficcionalidade.
90
graças a essa metodologia, ela progride continuamente em
direção a esse objetivo. ”
Assim, nesta visão, quando se desenvolve e se publica um trabalho científico,
devemos ser claros, objetivos e usar uma linguagem direta e sem
ambigüidades. Ainda na perspectiva de Lakoff & Johnson (2002), o uso de
metáforas, figuras retóricas, entre outros, deveria ser condenado pois “[...] seus
significados não são claros nem precisos e não correspondem de um modo claro
à realidade.” Como podemos observar, trata-se de uma posição bastante
peculiar sobre o uso da linguagem e sobre como se deve exercer a atividade
científica.
Por outro lado, no mundo subjetivo estariam valorizadas as
emoções, a sensibilidade e a intuição. Fatos estes que seriam, na visão
objetivista, desprovidos de realidade, ou, em outros termos, «irracionais». As
palavras de Lakoff & Johnson (2002:297) podem bem ilustrar o que acabamos
de dizer:
“Na maioria de nossas atividades práticas diárias, dependemos
de nossos sentidos e desenvolvemos intuições nas quais
confiamos. Quando surgem questões importantes, não importa
o que os outros possam dizer, nossos próprios sentidos e nossa
intuição são nossos melhores guias para a ação.”
“A arte e a poesia transcendem a racionalidade e a objetividade
e colocam-nos em contato com a realidade mais importante de
nossos sentimentos e intuições. Alcançamos essa consciência
mais pela imaginação do que pela razão”
91
Como podemos observar, as teses subjetivistas tentavam se colocar exatamente
no extremo oposto do que propunham as teses do objetismo. Eram duas
posições paradoxais que pareciam não querer estabelecer um mínimo laço de
compatibilidade. Ainda de acordo com os autores acima citados, a postura
«irracional» do subjetivismo seria endossada, sobretudo, pelos poetas
românticos do séc. XIX e, com o passar do tempo, ela foi se disseminando em
algumas disciplinas.
O leitor deve estar se perguntando: “qual a relação de tais
mitos com a ficcionalidade?” Gostaríamos de trabalhar com a hipótese que
explanaremos a seguir. Ao longo dos anos, houve uma busca, por parte dos
Estudos Lingüísticos, em se propor a ser uma ciência. Logo, foi necessário filiar-
se ao objetivismo, ou seja: aplicação sistemática de métodos, mensuração de
ocorrências, estatísticas de resultados, entre outros. No entanto, para ser
ciência, era necessário também que seu objeto de estudo, a linguagem, fosse
ancorada no que se supunha ser a realidade. Em outros termos: a lingüística
deveria ser uma ciência comprometida com a «verdade». Assim sendo, a
ficcionalidade com seu caráter vacilante – mais ou menos real, mais ou menos
verossímil, não se encaixaria em tais propostas. Por outro lado, Como os
sujetivistas se propuseram a estudar as produções estéticas, era natural que a
ficcionalidade fosse abarcada por essa visão. Acreditamos que seja este um dos
motivos pelos quais, na academia, a Teoria sobre a Ficcionalidade no Discurso
92
não tenha se desenvolvido. De um lado, se a as teorias lingüísticas se
propusessem a estudá-la como um fenômeno objetivo, estariam lançando mão
de seu estatuto de ciência e perderia a «racionalidade», pois a ficcionalidade
não se encaixaria nos padrões de análise usados em vários momentos da
história dos Estudos Lingüísticos. A problemática toda pode ser resumida em
uma só frase: os objetivistas estariam preocupados em provar a verdade e a
ficcionalidade não estaria neste campo, ela pertenceria a uma outra esfera. Por
outro lado, se as teorias literárias se propusessem a estudar a ficcionalidade
como fenômeno do discurso, estariam, de uma maneira ou de outra, entrando
no âmbito dos outros discursos que não seriam vinculados à arte e, com isso,
perderia seu estatuto de disciplina voltada para a «irracionalidade»: a estética,
as emoções, intuições etc.
3.6 - Enfim, subir os degraus que antecedem o palco...
Acreditamos que a união de todos os pontos que expusemos acima
componha o conjunto de razões pelas quais a ficcionalidade ainda não tenha
sido devidamente considerada como uma das abordagens de pesquisa possíveis,
não só em Teorias do Discurso como também em Teorias Lingüísticas.
93
A partir do que explanamos acima, seria plausível pensar que a
ficcionalidade, por vários séculos, tenha estado em uma posição marginal,
periférica, e que só foi legitimada como um «objeto de pesquisa» quando
recebeu estatuto de «arte». Se, de um lado, os Estudos Literários acolheram a
ficcionalidade, de outro, em muitos momentos, a estudaram como um
fenômeno «fora do real, sem relação com a verdade». Em outros termos:
segregada na esfera do subjetivismo, o seu estatuto indefinido não seria
incômodo para ninguém, pois não estava associada à verdade, logo, não estava
no rol dos «objetos de pesquisa» das ciências objetivistas.
Podemos pensar que a separação aristotélica em gêneros retóricos e
gêneros poéticos foi bem convenientes para o objetivismo e para o
subjetivismo. Os gêneros retóricos estavam compromissados com a verdade,
logo pertenceriam ao objetivismo. Já os gêneros poéticos, de estatuto ficcional,
estariam claramente instalados nas modalidades de análise subjetivistas.
Na nossa opinião, para podermos entender o que representa a
ficcionalidade nos dias atuais, seria preciso nos destituir dessa herança de
censuras, de divisões estanques e dogmáticas, de busca de uma única verdade,
e, sobretudo, nos despojarmos da crença em uma objetividade ou subjetividade
puras, da crença de que são dois conjuntos sem interseções. Na nossa opinião,
seria importante nos desapegarmos desse «legado» para podermos caminhar
em direção a uma outra compreensão da ficcionalidade, ou seja, a ficcionalidade
94
é algo que ocorre amplamente na comunicação cotidiana. Na verdade,
empiricamente, ela já ocorre de forma sistemática, somente esta ocorrência não
é muito estudada, neste momento, resta-nos somente a tentativa de explicá-la
em termos de método científico. Sabemos que não é uma tarefa fácil, mas é o
que julgamos ser necessário agora empreender nesse momento. Se a pesquisa
é uma aventura, nada mais agradável e excitante do que se lançar a ela ...
Para encerrar nossa viagem pelo tempo, no capítulo que se segue,
tentaremos fazer um levantamento das teorias que estudaram a ficcionalidade
de um ponto de vista, digamos, «beletrista». Desta forma, abordaremos
conceitos como
enunciação
e
atos de fala
nesta retrospectiva teórica. Assim
sendo, embarquemos em busca das teorias perdidas.
YZ
95
04
EM BUSCA DAS TEORIAS PERDIDAS
Da mesma forma que o interesse pelo “fazer ficcional” remonta a
vários séculos atrás, a tentativa de explicar «o
como
se caracteriza tal fazer»
também vai ser concomitante à referida produção. Se nos propusermos a
localizar no tempo o início da reflexão sobre o assunto, poderíamos citar as
obras de Platão (
República
) e Aristóteles (
Poética
e
Retórica
) como os primeiros
registros a que tivemos acesso em nossa pesquisa. No entanto, neste momento,
não gostaríamos de fazer uma extensa revisão do histórico das teorias sobre a
ficcionalidade, ou seja, adotar o procedimento clássico que parte da Grécia
Antiga e finaliza o percurso nos nossos tempos atuais
36
. Optamos, nesse
momento, por nos ater às teorias sobre a ficcionalidade desenvolvidas a partir
do século XX. Trata-se aqui somente de buscar algumas teorias já
disseminadas pelo tempo... em suma, um pouco de chá com
madeleines
.
De um ponto de vista da evolução das pesquisas sobre o tema no
século supracitado, parece-nos que o tratamento do tema «ficção» concentrou-
36
Gostaria de reportar aqui a conveniente fala do prof. Dr. Cláudio Moura e Castro, em palestra
sobre “Metodologia de Pesquisa” proferida na Faculdade Pitágoras-BH, em 09 de agosto de
2004: A revisão bibliográfica não é para você recontar a história do mundo a partir dos Gregos e
sim, para localizar o problema estudado na história do pensamento científico.
96
se, por algum tempo, no campo dos Estudos Literários e, neste ínterim, as
teorias lingüísticas acabaram ficando um pouco distantes de tal discussão. Além
das razões já expostas no capítulo 3, uma das possíveis razões teóricas, dito a
grosso modo
, poderia ter sido até mesmo a inexistência de modelos teóricos
sobre a linguagem que fossem capazes de explicar o fenômeno.
É possível dizer que os estudos sobre o discurso ficcional, do ponto
de vista dos estudos da linguagem, ganharam fôlego com o aparecimento de
trabalhos tais como: (a) as pesquisas feitas pelos Formalistas Russos, sobretudo
Bakhtin (1970, 1978, 1982) com seus escritos sobre
polifonia
e
dialogismo
; (b)
as reflexões sobre enunciação propostas por Benveniste (1966) e Hamburger
(1983); (c) as pesquisas semiológicas de Barthes (1982, 1985, 1987), Greimas
(1981, 1993); (d) o artigo de Searle (1995) “o estatuto lógico do discurso
ficcional”; (e) Genette (1989, 1991); e, por fim, incluímos aqui as demais
pesquisas que foram desenvolvidas a partir do pensamento fundador de tais
teóricos. Estas contribuições forneceram novos instrumentos de análise e novas
possibilidades de se estudar o tema.
Embora nos últimos 50 anos do século XX e nos primeiros anos 2000
o campo teórico tenha se tornado mais fértil, o tema «ficcionalidade» ainda
permanece com aspectos um pouco obscuros e ainda encontramos lacunas
conceituais que dificultam uma explicação mais eficiente do tema. De fato,
como o mostra Montalbetti (2001:12), fazer uma abordagem sobre a
97
ficcionalidade é uma tarefa que exige atenção redobrada, visto que o assunto
possui um vasto leque de posicionamentos teóricos possíveis:
" S´interroger sur le statut de l´énoncé de fiction suppose
d´inscrire sa réflexion à l´intérieur d´une pensée plus large du
langage. Chaque théorie du langage contient sa position sur la
fiction, qui pourra tour à tour constituer le tout du langage ou à
l´inverse une part spécifique et troublante qui semble venir
transgresser les règles les plus habituelles de la pratique du
discours."
(Tradução nossa:
"Interrogar-se sobre o estatuto do enunciado de ficção
pressupõe inscrever sua reflexão em um pensamento mais
amplo sobre a linguagem. Cada teoria da linguagem contém
sua posição sobre a ficção que poderá, por vezes, constituir o
todo da linguagem ou, ao contrário, uma parte específica e
perturbadora que parece chegar a transgredir as regras mais
habituais da prática do discurso.")
É possível ainda acrescentar à fala de Montabetti as relações interdisciplinares
que são estabelecidas em tais estudos como, por exemplo, psicologia,
sociologia, filosofia, enfim, todos os outros campos do saber que se baseiam na
linguagem.
Assim sendo, no amplo – porém nem sempre satisfatório, rol das
pesquisas sobre o assunto, podemos encontrar pelo menos duas modalidades
de abordagem: (a) pesquisadores em Teoria e Crítica literária que se valem da
lingüística para estudar a ficcionalidade; e (b) lingüistas que estudam a
ficcionalidade a partir de uma focalização nas produções linguageiras e
discursivas de uma maneira geral. O objetivo de nosso trabalho é fazer uma
98
abordagem discursiva da ficcionalidade, logo, num primeiro momento,
interessa-nos os estudos ancorados na segunda perspectiva acima mencionada.
No entanto, tal escolha não impede de deixarmos de contemplar alguns pontos
da primeira perspectiva.
Os modelos teóricos que estudam a ficcionalidade de um ponto de
vista da linguagem
37
podem ser divididos em duas grandes categorias: teorias
que sustentam a existência de marcas lingüísticas nos textos ficcionais e as
teorias que negam tal existência. Estas últimas ancoram-se em abordagens que
poderíamos caracterizar como visões predominantemente discursivas sobre o
tema. A primeira categoria não encontra muitos intercessores e, não muito
raramente, pudemos observar em nossas leituras que alguns teóricos julgam a
tese controversa. Já a segunda categoria, mais freqüentada, é onde
encontramos modelos teóricos desenvolvidos a partir de várias correntes de
pensamento. Como pequena ilustração, podemos citar algumas delas: Teoria
Pragmática, Teoria Cognitiva, Teoria da Referência, Semântica dos Mundos
possíveis, Narratologia, entre outras. A seguir, faremos uma breve exposição
sobre estes dois grupos de posicionamento em relação à ficcionalidade. Caro,
leitor, acompanhe-nos por este
jardim de caminhos que se bifurcam
.
37
Abarcando aqui as abordagens feitas pelas pesquisas em Estudos Lingüísticos e Estudos
Literários.
99
4.1 - Teorias que defendem a existência de marcas lingüísticas nos
textos ficcionais
Pode-se dizer que um dos pilares dessa perspectiva de pesquisa seja
o trabalho da alemã Käte Hamburger. Partindo da noção de Enunciação em
vigor nas academias de seu país nos anos 1950, a referida autora realizou um
estudo cujo título do original em alemão é
Die logik Dichtung
38
e cuja tradução
para o português brasileiro, já nos anos 1980, resultou em
A lógica da criação
literária
. Com base em um
corpus
constituído por textos literários em língua
alemã, a supracitada pesquisadora tentou estudar o texto literário a partir dos
preceitos da Lógica e da Enunciação.
Gostaríamos de abrir um parêntese para mostrar que, naquele
momento, as concepções de Comunicação e de Enunciação eram um pouco
diferentes daquelas que lidamos atualmente. Não que as perspectivas teóricas
utilizadas em meados do século XX fossem equivocadas, pelo contrário,
podemos ver nelas esboçadas os preceitos que ainda hoje consideramos úteis
para a elaboração de nossos quadros teóricos. Uma das concepções vigentes
38
O trabalho de Hamburger foi originalmente publicado na Alemanha em 1957 e foi orientado
por H. Weinrich, que, para quem não está a par, possui vários estudos sobre a questão da
temporalidade em textos literários, trabalhos estes bastante difundidos internacionalmente no
meio acadêmico.
100
naquela época pode ser exemplificada pelo pensamento de Bühler
39
, citado por
Hamburger (1986:19): “A palavra ´eu´ representa todos os possíveis emissores
de comunicações humanas e a palavra ´tu´ a classe de todos os receptores.” A
relação “EU-TU”, proposta em 1934, foi a base de muitas teorias e é ainda hoje
considerada.
Na época em que Hamburger (1986:19-20) escreveu seu trabalho
haveria uma diferença entre Teoria da Comunicação (um EU que se refere a um
TU) e Teoria da Enunciação ( relação Sujeito-Objeto):
[...] Enquanto esta última {a enunciação} se revela como uma
teoria da estrutura e sobretudo, da estrutura oculta da
linguagem, a Teoria da comunicação ou do discurso somente
concerne à situação da linguagem falada. Verifica-se que o eu-
emissor é algo diferente do sujeito-de-enunciação da
linguagem, cuja noção oposta também não é a do Tu receptor,
mas de objeto.”
“[...]
É a enunciação que se apresenta como estrutura-sujeito-
objeto da língua
. (grifo da autora)” Em outros termos, a
enunciação contém em si “não apenas a proposição enunciativa
(isto é, a proposição declarativa), mas também a interrogativa,
a optativa, a imperativa e a exclamativa, são enunciações.
Enunciações de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-
enunciação ”
Fazendo uma breve avaliação dos trabalhos publicados desde então, é possível
notar, em vários pesquisadores
40
, uma outra tendência teórica na qual estão
unidas as duas perspectivas enumeradas por Hamburger: comunicação e
39
BÜHLER, Karl.
Sprachtheorie
. Iena: Fisher, 1934. p.90
40
Podemos mencionar alguns pesquisadores lembrando que cada perspectiva teórica guarda as
suas idiossincrasias: Jackobson (1963); Benveniste (1966); Eco (1979, 1994); Ducrot (1984);
Gilli (1982) etc
101
enunciação. Podemos citar, como ilustração, A teoria Semiolingüística na qual
Charaudeau (2001b)
41
define os sujeitos da linguagem como um
desdobramento da relação acima citada: há, no circuito externo (portanto,
situacional) da fala, um EU
comunicante
que estaria em relação com um
TU
interpretannte
; Já no circuito interno da fala (portanto, no âmbito do discurso)
encontramos um EU
enunciador
que está em relação com um TU
destinatário
. Vemos na
referida teoria a junção entre o que se pensava ser enunciação e comunicação
naquela época.
Para finalizar este parêntese, gostaríamos ainda de chamar a atenção
para o que afirma Philippe (2000:05):
“Le véritable point de départ est néamoins à placer à la fin des
années cinquante lorsque Émile Benveniste en France et Käte
Hamburger en Allemagne affirmèrent presque simultanémet
qu´on ne pouvait rendre compte des caractéristiques formelles
de certains textes narratifs qu´en sortant d´une conception
strictement «communicationelle» de la narration.”
(tradução nossa:
“o verdadeiro ponto de partida, no entanto, deve ser localizado
nos anos 50, quando Émile Benveniste, na França, e Käte
Hamburger, na Alemanha, afirmaram quase simultaneamente
que somente seria possível tratar das características formais de
alguns textos narrativos abandonando uma concepção
estritamente «comunicacional» da narração.” )
A respeito de tais palavras, podemos dizer que, para a época, reconhecer a
enunciação em um texto narrativo era algo inovador porque dissociava do texto
41
Cf. também Charaudeau (1983, 1992, 1995).
102
a idéia de «comunicação», ou seja, desvinculava as produções escritas de um
estudo que as via meramente como «uma reprodução da linguagem oral».
Talvez, naquele momento histórico, tivesse sido importante frisar as diferenças
entre a linguagem oral e a linguagem escrita.
Voltemos à exposição da tese de Hamburger (1986). Levando em
consideração as categorias aristotélicas “Lírica” e “Epopéia”, a referida autora
instituiu a classificação de uma modalidade de textos narrativos que reuniu sob
a denominação de “gênero ficcional ou mimético”. Em sua argumentação,
levantou a hipótese da existência de marcas lingüísticas mensuráveis que
seriam específicas do texto ficcional e fez a restrição de que somente os
enunciados de textos literários em terceira pessoa, ou seja, aqueles
pertencentes ao gênero Epopéia, seriam de fato ficcionais. Por outro lado, os
textos literários em primeira pessoa, pertencentes à Lírica, não o seriam.
Na pesquisa realizada por esta autora, as especificidades do discurso
ficcional produzido em terceira pessoa se apoiariam nos seguintes índices
enunciativos
42
: (a) presença de verbos que indicam processos interiores –
pensar, refletir, crer, etc; (b) emprego maciço de diálogos, do discurso indireto
livre e do monólogo interior; (c) utilização de verbos de situação em enunciados
que dizem respeito a eventos distantes no tempo e no espaço e (d) emprego
42
Tais índices enunciativos são comentados mais detalhadamente em Mendes-Lopes (2000a p.
44-61)
103
de dêiticos espaciais e temporais com o uso do tempo verbal mais-que-perfeito,
como, por exemplo, “verbo no particípio passado + agora”.
No nosso entender, tais índices não seriam muito eficientes para a
distinção entre o factual e o ficcional. É possível que as características
levantadas por Hamburger (1986) sejam encontradas em textos ficcionais, mas
poderiam, da mesma forma, estarem presentes em textos factuais. Para nós, tal
diferenciação seria frágil e dependeria do tipo de texto estudado, do estilo de
cada autor, da época em que o texto foi escrito, entre outras possibilidades.
Uma outra limitação da teoria que poderia ser apontada é o fato
de a autora defender a existência da ficção somente em textos narrados em
terceira pessoa. Este também foi um dos aspectos que contribuíram para que
sua teoria fosse amplamente criticada. Como exemplo, citamos alguns autores:
Vuillaume (1990), Genette (1991), Schaeffer (1999), Cohn (2001), Montalbetti
(2001) etc. Em suma, pode-se condensar as opiniões dos referidos autores nas
seguintes palavras: eles argumentam que os textos literários em primeira
pessoa também são ficcionais, que tais indicies enunciativos específicos do texto
ficcional não seriam mesuráveis e que seria necessário, por exemplo, analisar
todas as obras literárias de que dispomos para se obter quais marcas
lingüísticas representariam, de fato, estas especificidades. Muitos julgam que
esta seria uma tarefa inexeqüível, daí a impossibilidade de se estabelecer
categorias dessa natureza.
104
Podemos ainda acrescentar um outro ponto de vista às restrições
acima: se a questão é «delimitar a especificidade do texto ficcional literário»
não seria necessário fazê-lo em contraste com textos que não fossem literários?
Dito de outra forma, parece-nos que somente um estudo comparando «textos
ficcionais literários» e «textos factuais não-literários
43
» poderia deixar
transparecer qual é a especificidade (se ela realmente existe) de tal grupo de
textos, ou seja, somente uma análise contrastiva dessa natureza poderia
delimitar se há ou não especificidades lingüísticas no campo da ficção. Ainda
uma outra indagação a ser feita: como distinguir, no caso da pesquisa de
Hamburger, «marcas» de «estilo»? Levando-se em consideração que a prática
da escrita literária é também uma técnica do bem escrever, por que não seria
possível encontrarmos textos factuais com as mesmas marcas lingüísticas
percebidas nos textos literários e, nesse caso, usadas estrategicamente por
alguém que queira ser um exímio redator?
Embora a defesa de marcas lingüísticas no texto ficcional seja
discutível, devemos considerar que a proposta de Hamburger contribuiu para
uma reflexão sobre o assunto e ainda hoje proporciona subsídios para uma
reflexão sobre a ancoragem enunciativa das narrativas ficcionais. No histórico
de seu espólio, percebe-se que algumas teses foram abandonadas e que
permaneceram os estudos de princípios teóricos direcionados para as pesquisas
43
Como o veremos adiante, existem textos literários que são factuais, como exemplo podemos
citar a Carta de Pero Vaz de Caminha.
105
sobre o discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre, mais
especificamente na linha dos estudos anglo-saxônicos sobre a linguagem.
Na referida linha de pesquisa, destaca-se o trabalho de Banfield
(1982) intitulado
Unspeakable sentences
no qual a autora defende a tese de
que no discurso ficcional existem enunciados sem «locutores» ou sem
«enunciadores». Em outros termos, seriam enunciados que perpassariam o
texto e que não pertenceriam nem aos personagens nem ao narrador. Estes
enunciados sem locutores estariam presentes no discurso indireto livre. De
acordo com Philippe (2000), apesar de ter tido uma boa aceitação na esfera das
academias anglo-saxônicas, a teoria de Banfield foi mal recebida nos circuitos
acadêmicos franceses e criticada por conter pontos obscuros e questionáveis.
Um exemplo de tal questionamento é a pesquisa feita por Reboul
(2000) na qual recusa a hipótese de Banfield e diz que os enunciados “sem
locutores” no estilo indireto livre estariam sujeitos às mesmas regras válidas
para qualquer enunciação e, portanto, não constituiriam marcas de
ficcionalidade. Para chegar a tal dedução, Reboul procedeu à análise do
funcionamento referencial dos pronomes de terceira pessoa em enunciados
contendo o estilo indireto livre. Vejamos a conclusão do referido estudo:
“De façon générale, donc, on peut considérer que le style
indirect libre, n´est ni plus ni moins littéraire, ni plus ni moins lié
à la fiction que n´importe quelle forme linguistique. On peut en
considérer qu´il s´agit d´un type de discours interprétatif au
sens de Sperber et Wilson et que, sur une echelle qu´irait de la
106
plus à la moins grande fidélité au discours ou aux pensées
representées, il se situerait vers le pôle de la plus grande
fidélité, ce qui explique tout à la fois son poid explicatif pour
l´application de la stratégie de l´interprète et le role qui lui ont
souvent attribué les récits de fiction.” Reboul (2000:28)
(Tradução nossa:
“De maneira geral, então, pode-se considerar que o estilo
indireto livre não é nem mais nem menos literário, nem mais
nem menos ligada à ficção que qualquer outra forma lingüística.
Pode-se considerar que se trata de um tipo de discurso
interpretativo no sentido de Sperber e Wilson e que, de uma
escala que iria de uma maior a uma menor fidelidade ao
discurso ou aos pensamentos representados, ele se situaria em
direção ao pólo da maior fidelidade, o que explica, ao mesmo
tempo, seu peso explicativo para a aplicação da estratégia do
intérprete e o papel que lhe atribuem as narrativas ficcionais.” )
É possível perceber na citação acima uma estrutura de argumentação
que quase sempre perpassa as refutações sobre a existência de marcas
lingüísticas no âmbito da ficção: o uso da língua é o mesmo tanto em textos
factuais quanto em textos ficcionais. Seriam os fatores extralingüísticos - ou
situacionais, os responsáveis pelo estatuto “factual” ou “ficcional” de um texto.
4.2 - Teorias que não reconhecem a existência de marcas lingüísticas
nos textos ficcionais
Esta categoria abrange um número bem mais considerável de pontos
de vista do que aquela que defende a existência de marcas lingüísticas. Pode-se
107
dizer que o texto fundador dessa perspectiva de pesquisa seja “The Logical
status of Fictional Discourse” publicado por J. R.Searle
44
, na Inglaterra, em
1974. No Brasil, o artigo ganhou o título de “O estatuto Lógico do discurso
ficcional” e está inserido no livro
Expressão e significado,
na edição nacional de
1995.
A argumentação sobre a inexistência de marcas lingüísticas em
enunciados de ficção pode ser assim exposta, de acordo com Searle
(1995:106): “…
Não há nenhuma propriedade textual, sintática ou semântica
que identifique um texto como obra de ficção.
” Na concepção deste autor, se
postularmos que existe uma linguagem específica usada em textos ficcionais,
estaríamos dizendo, de uma certa maneira, que usaríamos a língua de outra
forma quando construímos a ficção – ou seja, as palavras não teriam o mesmo
sentido que possuem usualmente e nos valeríamos de um dispositivo específico
para interpretá-las. Dessa ótica, a diferença entre o estatuto factual e ficcional
de um texto não residiria exatamente no âmbito lingüístico, mas na situação de
comunicação na qual o texto está inserido.
Ainda na perspectiva de Searle (1995:106), fazer ficção seria
fingir realizar atos ilocucionários
”. Para este autor, “fingir” é um ato linguageiro
intencional e convencional. Tais considerações geraram o aparecimento de
vários outros pontos de vista. Citemos, como exemplo, alguns autores que
desenvolveram reflexões sobre o assunto a partir dessa visão da
Teoria dos
44
Artigo publicado no periódico:
New Literary history
, V (1974): 319
108
Atos
de Fala:
Iser (1979), Genette (1989), Maingueneau (1990), Reboul(1992),
Tadié (1998), Schaeffer (1999), Cohn (2001), Montalbetti (2001), entre outros.
De uma maneira geral, os autores acima citados concordaram com
as posições de Searle (1995) e tentaram estudar o texto literário (que aqui se
confunde com ficcional) como um macro ato de linguagem que se subdividiria
em micro atos. Parece-nos que embora Searle tenha aberto caminho para uma
reflexão sobre a ficcionalidade de um ponto vista extra-literário, muitos
pesquisadores se mantiveram no campo dos Estudos Literários, ou se
empenharam em realizar pesquisas em áreas limítrofes como autobiografia,
narrativas históricas, entre outras .
Consideramos que a perspectiva de Searle (1995) contribuiu para
ampliar a noção de ficcionalidade no campo dos estudos sobre a linguagem e
nossa pesquisa, de certa forma, tem o seu ponto de partida no trabalho do
referido teórico. No entanto, parece-nos que desenvolver um trabalho de
teorização ampla sobre ficcionalidade tendo como base a Teoria dos Atos de
Fala não seria possível nesse momento. A nosso ver, a referida teoria não
possuiria a abrangência necessária para realizar tal tarefa. Assim sendo,
gostaríamos de desenvolver uma reflexão sobre a ficcionalidade tendo como fio
condutor a Teoria Semiolingüística de P. Charaudeau.
Apesar de também nos valermos do clichê, observamos que nas
últimas décadas tornou-se um lugar comum em pesquisas que tentam teorizar
109
sobre a ficcionalidade o seguinte procedimento: num primeiro momento,
expõe-se o pensamento de Hamburger com o objetivo de criticá-lo para, num
segundo momento, deter-se na perspectiva apresentada por Searle(1995), mas
sem apresentarem avanços consideráveis sobre os pontos que são levantados
pelo teórico. A nosso ver, a questão parece girar em círculos. Na maioria dos
trabalhos que lemos no decorrer desta pesquisa, nos deparamos com uma
ampla discussão sobre os dois autores, mas observamos uma escassez de
propostas alternativas que pudessem ser mais convincentes ou que pudessem
lançar um modelo sobre a ficcionalidade no discurso.
Gostaríamos de frisar que os estudos de Hamburger(1986) e
Searle (1995) são importantes e seus escritos são fundadores de qualquer
caminho que queiramos trilhar para estudar o estatuto ficcional/factual dos
gêneros do discurso. No entanto, é preciso se desvencilhar desse círculo vicioso
de existência de marcas lingüísticas/ inexistência das mesmas.
Polêmicas ou não, questionáveis ou aceitáveis, todas essas
reflexões são de grande valia porque testaram modelos sobre o estudo da
ficcionalidade e, por isso, são de suma importância no quadro de uma revisão
teórica sobre o tema. Pensamos que não poderíamos chegar ao estágio em que
estamos sem as tentativas de explicação, sem os erros e acertos do passado.
Parece-nos que nenhuma teoria é totalmente inválida, somente algumas
110
parecem ter mais pontos convergentes com a análise que queremos fazer do
que outras.
Nesse mundo de escolhas, de modas e de possibilidades, cabe ao
pesquisador respeitar e reconhecer o pensamento daqueles que produziram e,
principalmente, saber situá-los historicamente. A nosso ver, esta é uma das
ricas possibilidades da pesquisa acadêmica. Da mesma forma que precisamos
ter um pé no passado, é necessário também que lancemos um passo e um
olhar em direção ao futuro e tentemos analisar as produções discursivas sob a
luz da atualidade. Se a querela é existência de marcas lingüísticas
versus
abordagem discursiva, vamos nos valer de uma das máximas de Machado de
Assis para ilustrar a situação: “Ao vencedor, as batatas!” E que elas fiquem com
a segunda opção.
Atualmente, parece-nos que o tema “ficcionalidade” tem interessado
a pesquisadores das mais diversas áreas, podemos mencionar publicações de
obras de autores como Schaeffer (1999) e Cohn (2001), mas gostaríamos de
chamar a atenção para o número 128 da revista francesa
Langue Française
,
publicada em 2000. No referido volume, podemos ver estampados,
democraticamente: (a) posicionamentos a favor da tese da presença de marcas
lingüísticas nos textos ficcionais: G. Philippe e A. Rabatel; e (b) posicionamentos
que apontam para uma abordagem discursiva do tema: A. Reboul, D.
Maingueneau, J-M. Adam & G. Lugrin e F. Atlani-Voisin.
111
Os trabalhos dos autores enumerados acima no grupo (b)
apontam para questões que julgamos serem pontos de partida para uma
reflexão, nos dias atuais, sobre como caracterizar a ficcionalidade. Uma das
posições que consideramos relevantes é a de Atlani-Voisin (2000: 124):
“Tout d´abord, puisque les énoncés fictionnels sont des formes
possibles, observables et qui font sens, ils doivent être
considerés comme les traces d´opérations énonciatives qui
dévoilent l´activité de langage au même titre que tout autre
mode d´énontiation. En deuxième lieu, le choix d´un texte écrit
ficcionnel montre à l´évidence qu´il est impossible de
considérer l´énoncé, fictionnel ou non, comme résultant de la
transformation d´une phrase hors situation en un énoncé
subjectif: la construction des valeurs référencielles fait partie
integrante de l´énontiation, fictionnelle ou non-fictionnelle.”
(tradução nossa:
“Inicialmente, já que os enunciados ficcionais são formas
possíveis, observáveis e que possuem sentidos, eles devem ser
considerados como os traços de operações enunciativas que
desvelam a atividade de linguagem ao mesmo título que
qualquer outro modo de enunciação. Em segundo lugar, a
escolha de um texto escrito ficcional mostra, de forma evidente,
que é impossível considerar o enunciado, ficcional ou não,
como resultante da transformação de uma frase fora de
situação em um enunciado subjetivo: a construção dos valores
referenciais é parte integrante da enunciação, ficcional ou não
ficcional.”)
Assim, a relação linguagem/ficcionalidade não teria “especificidades” de uso,
como o defendem alguns autores, como por exemplo, Philippe (2000b).
Parece-nos que o caminho a ser seguido para o estudo da ficcionalidade está
relacionado aos modos de organização do discurso, à situação de comunicação,
112
aos paratextos, entre outros. É perceptível que alguns autores já direcionem
seus posicionamentos a fim de endossar tal pespectiva.
No volume do periódico supracitado, temos a posição de Adam &
Lugrin (2000:111) que caminha para a identificação da ficcionalidade a partir
dos dados paratextuais: “Dans tout les cas, c´est d´une interprétation et d´une
atribuition guidée par la frange paratextuelle des énoncés que relève
l´interpretation ficcionnelle ou non.[...]” (Tradução nossa: Em todo caso, é de
uma interpretação e de uma atribuição guiada pela franja paratextual dos
enunciados que se origina a interpretação ficcional ou não.[...]”). Com base nas
conclusões apontada em Mendes-Lopes (2000), os paratextos constituem um
dado importante para o reconhecimento da ficcionalide, mas outros elementos
também devem entrar em ação, como o veremos na parte II do presente
estudo.
4.3 – Uma querela sem fim
De uma maneira geral, é possível observar que o estudo da
ficcionalidade sempre esteve ligado aos Estudos Literários, mesmo no exemplar
Langue Française
acima mencionado, a grande maioria dos textos traz análises
113
de obras literárias. É compreensível que as coisas sejam dessa forma se
levarmos em consideração o que já foi exposto no capítulo 03.
Parece-nos, entretanto, que a Análise do discurso poderia
contribuir para que façamos um estudo sobre a teoria da ficcionalidade em
geral, ou seja, ela seria um fenômeno passível de ocorrer em qualquer discurso.
Nas páginas subseqüentes pretendemos desenvolver melhor o assunto.
YZ
114
PARTE II:
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS AO ESTUDO
DO CONCEITO DE FICCIONALIDADE
115
05
FICCIONALIDADE: MODOS E TIPOS DE
OCORRÊNCIA
Diante do que já foi exposto nos capítulos precedentes, resta-nos
indagar: o que representaria efetivamente, na fase de estudos em que nos
localizamos, adotar uma perspectiva discursiva sobre o tema?
Grosso modo
,
seria observar, em nossa comunicação cotidiana, em suas mais diversas formas,
como utilizamos e como percebemos a ficcionalidade.
Para explicarmos essa visão discursiva que pretendemos
desenvolver, estruturaremos o presente capítulo em duas partes
complementares: num primeiro momento, faremos a exposição de alguns
conceitos que nortearão nossa linha de pensamento e, num segundo
momento, traçaremos algumas considerações sobre as tipologias de ocorrências
da ficcionalidade.
116
5.1- Definições
Na linha de pensamento que gostaríamos de trabalhar, a
ficcionalidade seria considerada um fenômeno da comunicação em geral,
podendo, assim, ocorrer em maior ou menor grau em qualquer gênero de
discurso
45
.
Para uma maior inteligibilidade, vamos tentar esboçar alguns
conceitos, já que as noções com as quais lidamos são muito delicadas e exigem
uma observação minuciosa de seus limites. Gostaríamos de ressaltar que
faremos definições operacionais
, pois não seria possível, em um único capítulo
de uma tese, tratar de conceitos que a Filosofia vem desenvolvendo ao longo
dos séculos, como «verdade» e «mentira», sem sermos acusados,
merecidamente, de reducionistas. A tentativa de estabelecer limites tem o
objetivo de tornar a nossa pesquisa exeqüível, mesmo que nossas definições
possam parecer polêmicas. Desta forma, seguem abaixo as noções com as
quais trabalharemos ao longo corpo da tese:
45
Durante todo nosso trabalho vamos nos valer da noção de «gênero de discurso» postulada
em Charaudeau (2004). Essa perspectiva considera que os gêneros são determinados
situacionalmente e que são categorias maleáveis e em constante transformação.
117
i. A
ficção
é a simulação de uma situação possível, seja ela de ordem
semiolingüística, discursiva (em termos de modo de organização do
discurso), psicossocial ou espacial.
ii. A
ficcionalidade
é o mecanismo de produção da ficção, ou da ativação da
ficção - seria algo como uma «
mise en fiction
», por assim dizer. A
ficcionalidade pode perpassar qualquer gênero de discurso e pode alterar
ou não o estatuto de um texto. Tal alteração dependerá do intuito com o
qual a ficcionalidade for utilizada – podendo estar presente em maior ou
menor escala. Devemos dizer que o estatuto é externo ao gênero, isto é,
encontra-se em um nível situacional já que é o resultado da união de
várias das condições de funcionamento da genericidade. Estatutos podem
ser classificados em: ficcional, factual e não-factual. Já a ficcionalidade
pode ser tanto interna quanto externa ao gênero.
iii. O
fato
está ligado às ações, aos eventos, à existência e demais situações
com as quais temos contato, que vivenciamos ou somos testemunhas em
nosso cotidiano. Tais situações podem ser de ordem subjetiva ou
objetiva.
iv. A
factualidade
é o mecanismo de produção do fato, ou seja, ela permite
o reconhecimento de uma situação possível. Assim como a
ficcionalidade, a factualidade pode perpassar qualquer gênero de
discurso e pode alterar ou não o estatuto de um texto
118
v.
«Ficcional»
é a classificação dada ao estatuto de um texto em que há
predomínio de
simulação
de situações possíveis
vi.
«Factual»
é a classificação dada ao estatuto de um texto em que há
predomínio de situações possíveis
vii. A
verdade
,
grosso modo
, é um conjunto de situações factuais.
viii. A
mentira
é não-factual, é de ordem ética e é contrária à verdade.
Podem existir conjunturas em que é usada como um recurso de polidez,
nesse caso, está bem próxima da ficcionalidade.
Para ilustrar, podemos citar o gênero «carta comercial». Se
tomarmos um exemplar desse gênero enviado, suponhamos, pelo Banco do
Brasil cujo conteúdo seja informações sobre tarifas e serviços prestados pelo
banco. A referida carta comercial é factual: a instituição Banco do Brasil é
legitimada, o conteúdo da carta deve trazer informações suscetíveis de serem
comprovadas etc. Contudo, se fizermos uma paródia desta mesma carta, seu
estatuto migrará de factual para ficcional, pois estaremos lidando com a
simulação de uma situação possível. A nosso ver, a classificação do estatuto é
externa, embora parta de dados internos ao discurso. Por outro lado, se nesta
mesma carta comercial, é usado um caso hipotético para ilustrar uma situação,
por exemplo, a simulação da taxa de juros cobrada pelo empréstimo de um
valor «X», teremos a ficcionalidade como uma das restrições que compõem o
119
gênero «carta comercial». No entanto, o estatuto, que é externo, permanecerá
factual.
Em uma outra situação, se enviarmos uma carta comercial
oferecendo um produto - com a clara intenção de fraudar um consumidor, o
estatuto da referida correspondência será não-factual. Porém, a ficcionalidade
pode ser um recurso usado para descrever as funções do produto que se
pretende vender e, assim, seduzir e levar o consumidor a comprar tal
mercadoria. Se o produto não funcionar como deveria, estaremos diante de
uma situação ética que envolve direitos do consumidor.
Em suma, seria dizer: a
ficção
é o produto e a
ficcionalidade
, o
processo. No entanto estes dois conceitos não estão desvinculados dos demais
acima listados. Interessa-nos, no presente estudo, saber quais são os
mecanismos de atuação da ficcionalidade, pois, parece-nos, será a partir deles
que poderemos estabelecer quais são as restrições acionadas quando o estatuto
de um texto é classificado em: ficcional, factual ou não-factual. O levantamento
de tais condições de funcionamento será desenvolvido no capítulo 6 do presente
estudo.
Na nossa opinião, a ficcionalidade perpassaria um grande número
de fenômenos que poderiam ser construídos seja através da língua, seja através
de outros sistemas. No entanto, pensamos que a existem graus de presença da
ficcionalidade, ou seja, em alguns casos ela é preponderante, em outros casos
120
ela somente auxilia a construção de uma produção discursiva. A seguir,
citaremos alguns exemplos com os quais lidamos com relativa freqüência:
romances; contos; alguns aspectos de biografias e autobiografias; os casos de
alguns prefácios; charges; histórias em quadrinhos; crônicas; piadas;
zombarias; paródias; peças teatrais; publicidades; telenovelas; filmes; pintura;
desenhos animados; tiras de humor; brincadeiras de crianças; alguns
brinquedos eletrônicos como o japos tamagochi; ensaios fotográficos
publicados em revista de modas; fotos artísticas; exemplificações que se valem
de casos hipotéticos; programas partidários; projetos de qualquer natureza;
reconstituições de fatos em jornais televisivos; Algumas peças musicais que
simulam o som de trens, do mar, dentre outros; letras de músicas; a
matemática - (o sistema numérico
,
o sistema digital,
as estatísticas (por
constituírem a seus resultados por «amostragem de dados», é uma simulação
de um resultado); os processos de realidade virtual, focalização em três
dimensões, hologramas, cibernética etc; algumas posturas de usuários de
chats
na Internet (o uso de pseudônimos, a criação de outras personalidades, por
exemplo); alguns aspectos de comportamentos de participantes de
reality
shows;
jogos eletrônicos (do tipo
Tomb Raider, Mortal combat
); RPG, e assim
por diante.
121
5.1.1 – Breves considerações sobre o uso da ficcionalidade nos dias
atuais
Nesta seção, selecionamos duas situações em que a ficcionalidade
pode operar: a prática pedagógica e lugares ficcionais. Nosso objetivo, neste
instante, é somente ilustrar como a ficcionalidade pode ser um fenômeno da
comunicação em geral. Nos dois capítulos seguintes, o tema será estudado de
forma mais aprofundada.
5.1.1.1- Ficcionalidade e prática pedagógica
Não muito raro, nos deparamos com a utilização de metáforas
originárias do teatro para descrever a atividade pedagógica: o professor é um
ator que precisa fazer uma encenação convincente e adequada ao seu auditório
(os alunos). Em um dos atos dessa peça intitulada «A sala de aula»,
determinadas atuações são necessárias. Com o objetivo de desenvolver e
despertar o interesse pelo conhecimento, o professor precisa simular
determinadas situações para que a aprendizagem seja bem sucedida. Por
122
exemplo, um professor, cujo objetivo seja o de despertar o raciocínio lógico e
investigativo em um aluno, pode simular não saber um determinado conteúdo
para que o aluno, a partir de seu próprio esforço, construa o conhecimento. O
professor, nesse caso, não está «mentindo não saber» e sim «simulando,
encenando não saber», ou seja, se valendo da ficcionalidade como um recurso
para o desempenho de sua atividade didática.
Em geral, as exemplificações dadas em sala de aula também são
permeadas de ficcionalidade. Não raro elas são introduzidas por: suponhamos
que..., pensemos que... imaginemos que..., e assim por diante. Em outros
casos, tais expressões podem vir subentendidas, mas não deixam de ser um
dos componentes das formas de se exemplificar. Parece-nos que, em uma
parcela considerável dos casos, a ficcionalidade é a essência da exemplificação
didática e, em algumas ocorrências, tal recurso pode ser usado por uma
questão de «economia». É muito mais simples, barato e prático simular uma
dada situação do que reproduzi-la no «aqui e agora» da sala de aula.
A ficcionalidade, na atividade didática, pode vir a ser um dos
componentes das questões de algumas avaliações e dos exercícios em sala de
aula. Vejamos três exemplos que foram retirados do
Exame Nacional de Cursos
,
vulgo
Provão
, elaborado pelo INEP
46
. Trata-se de questões aplicadas para os
alunos dos cursos de Administração. Ao observarmos as questões formuladas
pelo referido instituto, nas avaliações aplicadas no intervalo entre 1996 e 2003,
46
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
123
podemos constatar um número razoável de questões em que existem
simulações de casos, ou seja, as questões têm a ficcionalidade como parte
integrante de sua composição. Citaremos abaixo fragmentos de questões
presentes em exames ocorridos nos respectivos anos: 1997, 1998 e 2003:
“23
47
. Paulo possui um carro com três anos de uso, que
começou a apresentar problemas de desempenho.. Por isso,
pensa seriamente em adquirir um carro novo, mas está
preocupado em virtude das poucas informações a respeito do
mercado de carros e de sua limitada disponibilidade financeira.
Assinale a opção que identifica a situação de Paulo em relação
a envolvimento, freqüência e percepção dessa compra. [...]”
“Questão nº 5
48
. A empresa “Doce Tabaco”, após dois anos de
intensas pesquisas, lançou finalmente o revolucionário cigarro
sem fumaça. O termo revolucionário cai bem ao novo produto
porque, além de não produzir fumaça, ele apresenta outras
importantes inovações. [...]”
“Questão 1
49
. A diretoria da Companhia Exemplo está reunida
para, atendendo a um apelo do Presidente da República, inserir-
se no Programa Fome Zero. Há consenso entre os diretores de
que a Responsabilidade social é item importante para a
imagem da Companhia, Após inúmeros debates, antecedidos
por apresentações sobre a situação da companhia, chegou-se
â conclusão de que tal inserção somente seria possível
reduzindo-se os desperdícios as Empresa: contribuições ao
Programa Fome Zero somente com desperdício zero.[...]”
Nos exemplos acima, podemos perceber que situações supostamente
cotidianas são simuladas para testar a competência dos formandos do curso em
demonstrar a compreensão da realidade que os cercam e que perpassa a vida
47
Fonte: www.inep.gov.br/superior/provão/provas/1997/admini.htm
48
Fonte: www.inep.gov.br/superior/provão/provas/1998/admini.htm
49
Fonte: www.inep.gov.br/superior/provão/provas/2003/admini.htm
124
de uma empresa. Enfim, o recurso à ficcionalidade tem o papel de auxiliar na
verificação da aprendizagem das habilidades ensinadas durante o curso de
Administração.
Em determinadas áreas do conhecimento, a simulação de uma
situação possível é imprescindível, como por exemplo, na medicina, na
odontologia, na enfermagem, na química etc. Nos cursos de licenciaturas, o
futuro professor começa por simular como seriam suas atividades em sala de
aula, para, em um segundo momento, efetivamente lecioná-las. Um futuro
profissional da área do direito também necessita simular a sua participação em
audiências para que esteja preparado para uma defesa em uma situação
factual.
Levando-se em consideração o que expusemos acima, pode-se
chegar à conclusão que a aprendizagem pode se dar, em parte – é preciso dizê-
lo, pela simulação, logo, pelo viés da ficcionalidade.
5.1.1.2 – A topografia e a imaginação
Em nossa definição de ficção dissemos que ela pode ser uma
simulação de ordem espacial, ou seja, podemos ter situações em que há
125
simulações de eventos em cidades, planetas, regiões geográficas existentes na
vida real ou não. Alguns destes casos seriam encontrados em filmes, na
literatura, no teatro, entre outros. Cidades como Paris e Nova York são
constantemente mostradas em filmes, mas as caracterizações da vida cotidiana
destas cidades são relativamente diferentes em um filme e em uma reportagem,
por exemplo. Quando se trata de um filme, seria uma simulação da vida
parisiense ou nova-iorquina, que corresponderia ou não à rotina que os
habitantes do lugar estariam acostumados. Já em uma reportagem, a filmagem
necessita ser factual, embora saibamos que o ato de filmar, de montagem da
reportagem e a narrativa que é feita podem ser perpassados pela ficcionalidade.
No entanto, o gênero reportagem é factual. O mesmo que acabamos de dizer
vale para a visão que se teria de outras cidades, ou outras regiões. Para fazer
uma ilustração mais próxima de nossa realidade, mencionamos duas cidades
brasileiras: de um lado, temos o Rio de Janeiro e a São Paulo que são
retratados nas novelas da Rede Globo de televisão (cidades glamourosas,
pessoas felizes, os conflitos de classes são mínimos, ricos e pobres convivem
quase em harmonia...); de outro lado, temos o Rio de Janeiro e a São Paulo
que vemos nas reportagens e nos noticiários (cidades com inúmeros problemas
sociais, favelas, tráfico de drogas, crime organizado, violência, má distribuição
de renda, pobreza etc).
126
Além dos espaços factuais que são simulados em várias situações,
outros espaços imaginários foram criados na literatura, no cinema, no teatro,
entre outros. Gostaríamos de chamar a atenção para o livro
Dicionário de
lugares imaginários
de Manguel & Guadalupi (2003). Neste volume podemos
encontrar, em um inventário de 494 páginas, lugares que foram criados por
escritores e filósofos nas mais variadas épocas. Na topografia imaginária
brasileira temos: o Sítio do Pica-pau Amarelo - Monteiro Lobato; Liso do
Sussuarão e as Veredas Mortas - J. Guimarães Rosa; Ilha do Pavão - João
Ubaldo Ribeiro; Passárgada – Manuel Bandeira; etc. Já na topografia imaginária
dos demais países, estampam-se inúmeros casos – muitos verbetes vêm até
mesmo acompanhados de mapas do local. Podemos citar alguns: Atlântida –
Platão; Condado, Mordor, Terra Média, Rohan e todo o universo criado por J. R.
R.Tolkien; As cidades invisíveis - Ítalo Calvino; o País das Maravilhas de L.
Carroll; O Castelo – Kafka; dentre vários outros. Somente como ilustração
vamos reproduzir o mapa de
Utopia
, da obra de Thomas More
50
:
50
MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Marin Claret, 2004. (Para aqueles que não estão a par, ele
era também conhecido como Thomas Morus)
127
Ilustração 1: Fonte: Manguel & Guadalupi (2003: 446)
Na ilustração acima, constata-se uma referência ao «Oceano
Atlântico» e à «América do Sul». More escreveu seu livro em 1516 e é muito
provável que não tivesse o conhecimento de um mapeamento factual da região.
Em uma breve apreciação da obra de Manguel & Guadalupi
(2003), verifica-se que embora sejam lugares imaginários, eles obedecem a
critérios geográficos como: relevo, condições atmosféricas, fronteiras, estações
climáticas, entre outros, logo, são a simulação de um espaço passível de
existência. Em geral, tais espaços são criados a partir dos dados referentes ao
mundo que habitamos, caso contrário, não seria possível compreendê-los.
A ficcionalidade pode permear até mesmo a cartografia. No livro
Atlas
da Experiência Humana,
os autores Swaaij & Klare (2004) fazem, a partir de
128
altas factuais, o que ele denominam « cartografia do mundo interior». Vejamos
abaixo um fragmento do mapa do conhecimento:
Ilustração 2: detalhe do mapa «conhecimento» In: Swaaij & Klare (2004:21)
Os autores, a partir de noções topográficas tentam ilustrar o que é
a experiência humana. No fragmento que expusemos acima, notamos que para
se chegar à sabedoria é preciso ultrapassar a «cordilheira da educação». Assim,
metaforicamente, são abordados vários conceitos da psicologia, de condutas de
vida, e da própria experiência.
129
Por vezes, a ficcionalidade «topográfica» é usada com fins
didáticos: é o caso de um guia de turismo de Marte, lançado recentemente na
França. A citação que se segue foi retirada do caderno
Sinapse
51
:
“Você já pensou em visitar o Valles Marineris, um longo canal de
4.000 quilômetros de comprimento (equivalente à largura dos
EUA) e seis quilômetros de profundidade? Ou quem sabe o
vulcão Olympus Mons, de 21 quilômetros de altura? Se essas
atrações marcianas o tentam, você já pode se preparar para a
viagem com a ajuda do "guia" de Marte "Sur Mars - Le Guide du
Touriste Spatial" (Sobre Marte - O Guia do Turista Espacial), um
detalhado manual lançado recentemente na França. O livro, que
à primeira vista pode aparentar uma despretensiosa brincadeira,
é, na realidade, resultado de anos de trabalho do historiador e
sociólogo da ciência Pierre Lagrange, 40, pesquisador do
Laboratório de Antropologia do CNRS (sigla em francês para
Centro Nacional de Pesquisa Científica).”
A intenção de Lagrange, ao fazer um guia turístico de um lugar até então nunca
visitado concretamente pelo homem é uma tentativa de tornar acessível o
conhecimento científico, como o próprio autor o afirma em entrevista concedida
ao
Sinapse
52
:
“Sinapse - Sua intenção, com esse guia, é contribuir
para uma outra forma de popularização da ciência?
Pierre Lagrange - Na maioria dos casos, quando se escreveu
sobre Marte para o grande público, se falou bastante sobre
geologia, atmosfera etc. Eu sentia falta de ver o todo. Um guia
51
Caderno Sinapse, Folha de São Paulo, 30 de março de 2004
52
Folha de São Paulo, 30 de março de 2004
130
turístico me parecia uma fórmula que serviria bem para misturar
os dados científicos com os aspectos culturais.”
Como podemos observar, a ficcionalidade com fins didáticos é amplamente
usada e pode ser um instrumento de grande valia na transmissão dos saberes.
5.2 – Intermezzo
Depois de alçar este longo vôo pela geografia dos mundos
possíveis, retomemos nosso caminho e voltemos à árdua tarefa de escalar a
«cordilheira da educação» que temos pela frente, já que nosso objetivo
encontra-se depois dela: adquirir um pouco de sabedoria. Interessa-nos um
estudo de fenômenos que envolvam o discurso e é nessa perspectiva que
encaminharemos nossas reflexões nesse momento.
Foi possível, no item 5.1, definir noções básicas para o nosso
estudo e mostrar a incidência da ficcionalidade em alguns gêneros. Porém,
resta-nos ainda várias indagações e uma delas é: será que a ficcionalidade, de
um ponto de vista da Análise do Discurso, se manifesta da mesma forma em
todos os casos acima mencionados? Em outros termos, haveria um padrão de
funcionamento detectável? Estas serão questões que tentaremos responder no
próximo item...
131
5.3 – Tipologia da ficcionalidade
Na nossa percepção, a ficcionalidade não ocorreria da mesma
maneira em todos os gêneros do discurso. Existem alguns nos quais ela é mais
preponderante e outros em que ela o é menos. Assim, gostaríamos de distinguir
três tipos de ficcionalidade:
constitutiva
,
colaborativa
e
predominante
. Contudo,
em todos os tipos, veríamos o processo de simulação em operação.
5.3.1 – Ficcionalidade Constitutiva
Trata-se de um tipo simulação encontrado «fora» da esfera do
discurso e que, por este motivo, não influenciaria o estatuto - ficcional ou
factual - dos gêneros. O mecanismo de simulação, nesses casos, seria
constitutivo de tais fenômenos, operaria como um dos elementos de sua
produção. Como exemplo, podemos citar a própria relação mundo/palavra. A
língua representa os objetos no mundo. Trata-se de uma problemática da
132
Teoria da Referência
na qual se postula que as palavras designam classes de
coisas e não as coisas elas mesmas. As palavras serviriam, assim, para
«representar» as coisas existentes no mundo. Por exemplo, quando utilizamos
a palavra “cadeira” não estamos nos referindo a uma única cadeira, mas a uma
classe de objetos contendo uma mesma característica. Nessa perspectiva, a
ficcionalidade é inerente à língua, pois é um elemento que é interno à
operacionalização da mesma.
O aspecto verbal «futuro» também possuiria a ficcionalidade
constitutiva. Trata-se, neste caso, da simulação de algo que ainda não ocorreu,
mas que poderá ocorrer – por exemplo, o futuro do presente do Indicativo; ou
de algo que poderia ter ocorrido – por exemplo, o futuro do pretérito do
Indicativo. Em ambos os casos, são situações simuladas que não encontram,
ainda, uma comprovação no «presente», elas são virtuais, «são o que poderiam
ser, mas não o são». Parece-nos que o ato de prometer seguiria o mesmo
raciocínio que acabamos de expor, visto que a promessa é um engajamento da
realização de uma ação a ser concretizada no futuro. Em suma, poderíamos
dizer que os procedimentos lingüísticos e discursivos que se projetam para o
«futuro» teriam a ficcionalidade constitutiva como um de seus componentes.
Um outro exemplo que podemos citar é o caso do código binário
usado em todos os comandos de informática. De acordo com Schaeffer
(1999:28-29):
133
"(...) C´est ce qui se passe chaque fois que j´entre des lettres
ou de chiffres sur le clavier: à chaque lettre ou chiffre (et plus
généralement à tout symbole digital du clavier) correspond une
combinaison binaire donée (par exemple 00101111010). Dans
ce cas, le codage binaire fonctionne par rapport à l´écriture
alphabétique comme celui-ci fonctionne par rapport à la langue
orale, c´est à dire qu´il s´agit d´um métacode déjà digital."
(Tradução nossa:
" É o que se passa cada vez que eu digito letras ou cifras no
teclado: a cada letra ou cifra (e de uma maneira geral, todos os
símbolos digitais do teclado) corresponde uma combinação
binária dada (por exemplo 00101111010 ). Neste caso, o código
binário funciona em relação à escrita alfabética como esta, por
sua vez, funciona em relação à língua oral, isto é, trata-se já de
um meta-código digital."
Assim, a simulação na linguagem, seja ela de que natureza for, é um processo
que integra a sua constituição e é, sobretudo, um sistema de economia
necessário em tais mecanismos. O Próprio sistema numérico também pode ser
aqui mencionado. Quando falamos 20.000 não precisamos, necessariamente,
ter o valor daquele número presencialmente, unidade por unidade. Em se
tratando de uma transação financeira, por exemplo, dinheiro, cheques ou outra
forma de representação de tal valor é usado.
A nosso ver, a ficcionalidade constitutiva estaria presente em
projetos - independente do objetivo de realização: projetos acadêmicos; planos
de governo lançados por candidatos em épocas de eleições; projetos
arquitetônicos e de engenharia; entre outros. Tomemos um exemplo bem
próximo para uma melhor explicitação de nossos pensamentos: um projeto de
134
tese de doutorado. Ele é a simulação do que um aluno pretende pesquisar e
escrever num período de quatro anos. Ali estão expostos os objetivos, a linha de
pesquisa que se pretende seguir, a abordagem teórica a ser feita, o cronograma
a ser cumprido etc. No entanto, trata-se somente de uma projeção de tarefas, a
realização das mesmas vão se dar de forma mais ou menos coincidente com o
que se pensou inicialmente. Há casos em que se percebe uma incongruência
entre o projeto e o texto a ser feito e, por isso, o projeto é reformulado. Um
projeto de pesquisa, como sempre foi dito pelo Prof. Dr. Hugo Mari, é uma
«declaração de intenções» e, assim sendo, é constitutivamente ficcional, pois é
a simulação, a projeção, do trabalho que será desenvolvido.
De maneira geral, poderíamos ainda encaixar nesta categoria:
orçamentos; previsões do tempo, de gastos; estatísticas; cartografia; planos de
cursos; enfim, qualquer tipo de prognóstico que venha a ser feito.
5.3.2 – Ficcionalidade colaborativa
Tipo de simulação de situação possível que contribuiria para a
constituição de determinados gêneros. Embora o estatuto do referido gênero
seja factual, há um considerável entrelaçamento de efeitos de real e de efeitos
135
de ficção. A ficcionalidade colaborativa seria uma modalidade que se realizaria
no discurso. Como exemplo, podemos citar alguns casos: processos
metafóricos, reportagens ou notícias que contêm reconstruções de eventos em
jornais televisivos, o uso da exemplificação em várias situações – inclusive no
discurso didático como o mencionamos anteriormente, publicidades,
correspondências pessoais, brincadeiras entre amigos, na conversação
cotidiana
53
sob as mais diversas modalidades, entre outros. A seguir, vamos
falar brevemente de alguns casos.
5.3.2.1- Metáfora
Nas teorias a respeito desse tema, temos duas formas de ver a
Metáfora: como processo de significação (Lakoff & Johnson (2002)) e como
figura retórica. Parece-nos que se tomarmos a metáfora na acepção dos autores
acima mencionados, ela também teria a ficcionalidade constituitiva. Se a
tomarmos como figura retórica, a encaixaremos na ficção colaborativa. Na
verdade, pensamos que a metáfora, de uma maneira geral, agrupa esses dois
tipos de ficcionalidade. Por exemplo, poderíamos nos basear no seguinte slogan
53
Cf.: BANGE, Pierre. Une modalité des interactions verbales : fiction dans la conversation.
DRLAV
. Paris : centre de recherche Paris VIII, 1986, n°34-35, p. 215-232.
136
de uma campanha publicitária feita para um órgão público: «Vamos declarar
guerra ao mosquito da dengue». Temos, nesse caso, a simulação do que seria
uma situação de guerra: um inimigo a ser abatido, um vencedor, um vencido,
armas, disputa entre outros. Assim, a noção de simulação de guerra coopera na
construção do enunciado, logo é uma ficcionalidade colaborativa. No entanto o
estatuto do texto permanece factual, haverá uma tentativa real de erradicação
do mosquito, a doença «dengue» é um problema de saúde pública no Brasil,
entre outras coisas.
Em outros exemplos corriqueiros podemos citar: «estou morrendo
de fome», «morri de medo», «estou morta de cansaço», entre outros. Tais
enunciados demonstram que meu sentimento é tão extremo que seria o mesmo
se estivesse morrendo, assim sendo, haveria uma simulação de uma situação
efetivamente com um efeito hiperbólico, mas o enunciado teria um estatuto
factual. Poderíamos citar ainda alguns enunciados como ilustração e que
seguiriam o mesmo esquema: «Ele virou uma fera», «Ela ficou uma arara» -
para designar irritação; «Ele escorrega como quiabo» – para designar
dissimulação; entre outras tantas possibilidades
5.3.2.2 - Publicidades
137
Parece-nos que a ficcionalidade colaborativa estaria presente na
Publicidade em todas as suas formas de manifestação. O contrato que regula o
discurso publicitário seria assim caracterizado segundo Soulages (2001b: 02):
" On peut rappeler que le `rituel socio-langagier´ qui caractèrise
le
contrat de communication
du discours publicitaire consiste à
proposer des messages d´implication reposant sur la mise en
relation de deux instances empiriques, partenaires dans l´acte
de communication,
un sujet communicant
– un annonceur
(publicitaire) determiné - et des sujets interpretants – un
ensemble indifférencié de consommateurs, acheteurs potentiels
du produit. À ce circuit externe correspond une mise en scène
de leur double figuré à l´intérieur de chacun de textes,
un
énonciateur
et un destinataire ´présents´en tant que
protagonistes dans les traces langagières de l´échange ou de la
scène représentée. Le projet de parole du sujet communicant
vise délibérément à transformer, au moyen d´un certain acte de
persuasion, un consommateur de publicité en un
consommateur effectif de marchandises."
(Tradução nossa:
"Lembramos que o `ritual sócio-linguageiro´ que caracteriza o
contrato de comunicação
do discurso publicitário consiste em
propor mensagens de implicação que repousam sobre o
relacionamento de duas instâncias empíricas, parceiras no ato
de comunicação: um
sujeito comunicante
– um anunciante
(publicitário) determinado; e
sujeitos interpretantes
– um
conjunto indiferenciado de consumidores, compradores
potenciais do produto. A este circuito externo corresponde uma
encenação de seu duplo figurado no interior de cada um dos
textos, um
enunciador
e um
destinatário
`presentes´ enquanto
protagonistas nos traços linguageiros das trocas ou da cena
representadas. O projeto de fala do sujeito comunicante visa
deliberadamente transformar, por meio de um determinado ato
de persuasão, um consumidor de publicidade em um
consumidor efetivo de mercadorias")
138
Traçando um paralelo entre discurso publicitário e ficção, SOULAGES
(2001a:04) aponta a existência de laços estreitos entre essas duas dimensões,
tendo por base a publicidade francesa:
"(...) En tournant le dos aux visées informatives et
argumentative, elle [la publicité] s´est considérablement
raprochée du genre fictionnel dans la structure même de ses
messages (élaboration et mise en narration d´un univers avec
sa diégèse et ses personnages, ses quêtes, etc.)."
(Tradução nossa:"(...) Virando as costas para as visadas
informativa e argumentativa, ela [a publicidade] aproximou-se
consideravelmente do gênero ficcional na própria estrutura de
suas mensagens (elaboração e narração de um universo com
sua diegesis, seus personagens, suas buscas, etc.).")
Ao nosso ver, no que se diz respeito ao Brasil, a publicidade veiculada
pela mídia se comportaria da mesma forma descrita pelo teórico acima citado. É
possível mencionar alguns estereótipos de comerciais para a televisão ou para
revistas nos quais aparecem a encenação de uma família feliz porque faz uso de
determinado produto, um homem ou uma mulher que conquista o sexo oposto
após se valer de determinados artefatos, crianças que estão contentes com o
surgimento de um novo brinquedo ou uma novidade no campo das guloseimas,
e assim por diante.
Para exemplificarmos, vamos analisar o caso abaixo em que a
ficcionalidade colaborativa é usada para construir uma publicidade. É mostrada
a figura medieval de Joana D´arc que tem em uma das mãos uma lança e em
139
outra um sabão em pó. Assim, opera-se a simulação de uma situação possível
na qual Joana D´Arc seria uma mulher moderna, ocupada com grandes causas
e, por isso, utilizaria aquela marca de sabão em pó.
Ilustração 3: Joana D´arc - in: Revista Cláudia, nov./2001
Contudo, quando analisamos o contrato de comunicação da
publicidade podemos observar que se trata de um anúncio factual, pois o
produto existe e pode ser encontrado nas gôndolas dos supermercados. Utilizar
140
a figura de Joana D´arc é somente uma estratégia de sedução para vender o
produto.
É possível também encontrar a ficcionalidade colaborativa em
anúncios. Vejamos a ocorrência abaixo
Ilustração 4: Jornal Balcão. Edição nº 1350 – 20 a 23 de julho de 2003
Pode-se observar no exemplo acima que existem vários dados
factuais que comportaria o gênero anúncio em classificados: objeto a ser
vendido, garantia, qualidade e o número do telefone. No entanto, quando há a
frase “Ambas são muito boas, não falam mal de ninguém”, a nosso ver, trata-se
de uma ficcionalidade colaborativa. O referido enunciado também pode ser visto
como um efeito de ficção, pois simula uma situação na qual aparelhos de
televisão teriam atitudes e qualidades humanas.
5.3.3 – Ficcionalidade predominante
141
Este tipo abarcaria a percepção mais clássica que temos do termo.
Tal divisão agruparia os gêneros textuais que possuiriam estatuto ficcional. É
um tipo de produção que se constituiria predominantemente de simulações de
situações possíveis e seria permeada de efeitos de real e de ficção. Seria
interessante ressaltar que qualquer gênero de discurso cujo estatuto seja
factual é passível de se transformar em um gênero de estatuto ficcional.
Como exemplo de ficcionalidade predominante, podemos citar:
Romances, contos, poesia, cinema, teatro, letras de música, histórias em
quadrinhos, alguns tipos de crônicas, charges, receitas ficcionais, paródia, jogos
eletrônicos, desenhos animados, etc.
Gostaríamos de chamar a atenção para o surgimento, nesse
mundo virtual da Internet, de
sites
e
Blogs
que publicam notícias totalmente
ficcionais, como é o caso do www.cocadaboa.com
. Há também a coluna de
Arthur de Carvalho no Diário de Votuporanga (www.votuporanga.com.br
). O
jornal traz notícias factuais, mas o jornalista publica notícias ficcionai. Um outro
caso que nos chamou a atenção, foi o lançamento do caderno “Mais!”
54
,
publicado pela Folha de São Paulo, intitulado «É tudo mentira». O caderno traz
a publicação de entrevistas simuladas com sete autores e ainda uma crítica
literária fictícia sobre notas inéditas feitas por Mário de Andrade. A partir de tal
observação, podemos ver que a ficcionalidade predominante perpassa muitos
gêneros de discurso.
54
Caderno Mais! Nº 636, Folha de São Paulo, 25 de abril de 2004
142
Para detalhar melhor como se processa esse tipo de ficcionalidade,
escolhemos uma charge feita por Angeli:
Ilustração 5: Angeli - In: Folha de São Paulo, 11/03/2003
O gênero
charge
seria assim definido por Ferreira (1986:392): "
Representação pictórica, de caráter burlesco caricatural, em que se satiriza um
fato específico, em geral de caráter político e que é do conhecimento público
"
Dessa forma, podemos observar na ilustração acima a retratação de uma favela,
de um grupo de adolescentes armados e que parecem vigiar a área. Existe uma
crítica social a respeito da violência e da relação de adolescentes com o tráfico
de drogas, temas estes que poderiam ser constatados como presentes na mídia.
Embora o tema seja real, a situação e os personagens são ficcionais.
143
Assim, Angeli cria uma situação possível ficcional, semelhante a um
situação possível factual, na qual há a possibilidade de acontecer a cena por ele
desenhada. Convivem nesse mundo efeitos de real - a situação da marginal de
adolescentes oriundos de baixa renda e efeitos de ficção - os personagens e a
situação na qual são produzidos os enunciados.
Embora tenhamos apontado alguns dados, parece-nos que uma
indagação paira no ar: como definir o estatuto ficcional de um gênero? De
acordo com o trabalho que desenvolvemos em Mendes-Lopes (2000), este tipo
de estatuto seria reconhecido situacionalmente e as condições contratuais,
baseando-nos em Charaudeau (1993) seriam as seguintes:
(a)
Domínio de referência -
é onde temos representações tipificadas do
saber: jurídico, político, científico, estético, etc.
(b)
Instituição social
– é o campo das estruturas sociais estabelecidas pela
tradição: Literatura, Teatro, Jornal, Televisão, etc.
(c)
Identidades sociais
- seriam de ordem sócio-profissionais: médico,
professor, ator, escritor, jornalista, dramaturgo, entre outros.
(d)
Formas de troca
– têm natureza interacional. É onde temos retratados os
sujeitos do ato de linguagem. Por exemplo: um Eu
comunicante
escritor que
se endereça a um Tu
interpretante
leitor; um Eu
comunicante
ator que se
endereça a um Tu
interpretante
espectador.
144
(e)
Dados periféricos
– seriam dados que auxiliariam na compreensão do
contrato situacional, mas que sozinhos não seriam suficientes para
estabelecê-lo: paratextos (título, sub-título, prefácio, índice, entre
outros), gêneros textuais, dados icônicos do tipo: aspas, negritos, etc.
5.4- Algumas considerações finais
Vimos, nesta seção vários conceitos sobre a ficção, mentira,
verdade, ficcionalidade, factualidade, entre outros. Pudemos perceber que a
ficcionalidade colaborativa e a ficcionalidade predominante se diferenciam por
um estatuto: factual e ficcional respectivamente. No entanto, em relação à
ficcionalidade, nosso objeto de estudo nesse instante, será que realmente um
contrato situacional identificaria um estatuto? Será que não haveria algum outro
viés discursivo que também pudesse auxiliar em tal tarefa?
Para tentar responder a estas indagações, no capítulo seguinte,
vamos tratar de alguns conceitos relativos à Análise do Discurso. Vamos nos
propor a fazer uma relação entre ficcionalidade e conceitos como competências,
efeitos de real, efeitos de ficção e gêneros.
145
YZ
146
06
A TEORIA SEMIOLINGÜÍSITICA E A QUESTÃO DA
FICCIONALIDADE
No capítulo anterior, demarcarmos o que nomearemos aqui as
«noções de base» para a compreensão da ficcionalidade. Neste momento, nos
proporemos a fazer uma relação entre a ficcionalidade e a Teoria
Semiolingüística. Buscaremos, assim, realizar mais uma parte de nosso
percurso: partimos da definição e dos valores do termo «ficção» para
chegarmos a uma visão teórica de como se opera a ficcionalidade.
6.1 - Situação de comunicação e os sujeitos da linguagem
A comunicação, na perspectiva da Teoria Semiolingüística
55
,
funcionaria da seguinte forma. Haveria um espaço externo das trocas no qual se
55
O quadro citado nos foi exposto no curso
Langue, discours et communication
pelo
Prof. : P.
CHARAUDEAU na Universidade de Paris XIII, França, em 16 de janeiro de 2002. Não temos
ainda conhecimento de uma publicação que obedeça a esses moldes.
147
estabeleceriam as identidades sociais e onde seriam encontrados os sujeitos
comunicante (S.C.) e interpretante (S.I). No espaço interno, teríamos o espaço
da encenação do discurso, do dizer e do estabelecimento dos contratos
comunicacionais. Nesta instância seriam estabelecidas as identidades discursivas
cujos protagonistas seriam: os sujeitos enunciador (S.E.) e destinatário (S.D.) :
Ilustração 6: Situação de comunicação e os sujeitos da linguagem
Dessa forma, de acordo com o quadro acima, seriam estes os
preceitos da Teoria Semiolingüística. No espaço da comunicação, teríamos de
Espa
ç
o externo
Espaço interno
Dizer
S.C./ ID.
Social
S. I. /
ID. Social
S.E./ ID.
discursiva
S.D./ ID.
Discursiva
Encenação do discurso
Contrato
Troca
148
um lado: Um
sujeito comunicante
, com uma ou várias
identidades sociais
que
variariam de acordo com a situação de comunicação em que este sujeito se
encontra. Haveria, no momento da enunciação, uma projeção de um
sujeito
enunciador
com uma ou várias
identidades discursivas
que seriam estabelecidas
em função das posições tomadas pelo sujeito comunicante. De outro lado,
teríamos:
um sujeito interpretante
, com uma ou várias
identidades sociais
, que
faria uma interpretação (ou múltiplas interpretações) de um
sujeito destinatário
a partir de uma ou várias
identidades discursivas
.
Para uma maior clareza de nossa exposição, devemos mostrar que a
Identidade social
, na perspectiva da Teoria Semiolingüística, caracteriza-se por:
(a) ser uma troca verbal, portanto linguageira; (b) estar sempre ligada ao
princípio da alteridade; (c) dar o direito à fala e (d) dever ser reconhecida para
ser legitimada. Já a
identidade discursiva
está sempre sendo construída e, por
isso, construindo sempre uma imagem do sujeito. A
identidade social
instruções para a criação da
identidade discursiva
do sujeito enunciador e do
sujeito destinatário. As identidades são maleáveis, pois adquirem novos papéis
em função da credibilidade e da legitimidade que uma pessoa passa a ter, ou
passa a não ter.
Com a finalidade de ilustrar o que acabamos de dizer,
mencionamos o caso do atual Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva.
Algumas de suas identidades sociais seriam: Presidente da República, militante
149
político, sindicalista, pai de família, homem, pessoa de origem nordestina,
latino-americano, brasileiro, ex-metalúrgico, entre outras. Ao se pronunciar
como chefe de nossa nação, será produzida uma identidade discursiva diferente
daquela que se produziria num discurso como militante político do PT nos anos
1980, como sindicalista ou nas suas relações familiares, por exemplo. A citação
abaixo pode ilustrar o que acabamos de dizer:
(01) " A sociologia não previa que um mesmo ser humano
pudesse ser respeitado em Porto Alegre e em Davos
56
. Eu
disse ao pessoal de Porto Alegre que iria a Davos porque
não era mais um militante de oposição, mas o presidente
de um país de 175 milhões de brasileiros. Então eu não
tinha mais que apenas contestar, eu tinha que fazer."
(FOLHA DE SÃO PAULO, Brasil, 28/01/2003)
Assim, ao assumir a identidade social de Presidente da República, o
Presidente Lula necessitaria assumir uma identidade social diferente daquela
que teria um militante de oposição, como ele mesmo afirma. Por causa desse
deslocamento de papéis, a identidade discursiva também vai sofrer alterações,
visto que «local de onde se fala» é diferente. Dessa forma, a identidade social
«presidente da república» dá instruções, cria regras, para a constituição da
identidade discursiva do sujeito enunciador e do destinatário. Este último seria
constituído por um público que entendesse que o Presidente Lula não está mais
falando como militante e, sim, como governante de um país.
56
Trata-se dos eventos: 3º Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre/BR e Fórum
Econômico Mundial, em Davos/CH. Ambos se realizaram nos dias 26,27 e 28 de janeiro de 2003
150
Com a finalidade de ilustrar flexibilidade das identidades, vamos nos valer
da charge abaixo:
Ilustração 7: Glauco – Folha de São Paulo, 23/05/2003
No primeiro quadro
57
, temos a caricatura do Presidente Lula perguntando “Eu
era assim” referindo-se a uma antiga imagem sua transmitida pela TV. Ao fundo
podemos observar seus assessores confirmando. No segundo quadro, a reação
do personagem ao, de alguma forma, negar - “Que horror!” - a própria
identidade social que possuía anteriormente, antes de ser eleito presidente da
república. Parece-nos que no caso da referida charge, lembremos, gênero que
tem a função de satirizar fatos políticos, há a negação tanto de da identidade
social, quanto da identidade discursiva.
57
Considerando que a impressão da charge possa estar ilegível, estamos reproduzindo as falas
no corpo do texto para que nossa argumentação seja mais clara.
151
De que maneira poderíamos relacionar os tipos de ficcionalidade e
a Situação de Comunicação? A resposta, caro leitor, é o que tentaremos
fornecer no item que se segue.
6.2 - Situação de comunicação e ficcionalidade
Embora tenhamos escolhido como modelo teórico a Teoria
Semiolingüística, não temos conhecimento de publicações feitas por Charaudeau
sobre a ficcionalidade vista de um ponto de vista da comunicação em geral.
Assim, resolvemos tentar estabelecer, dentro de nossas limitações teóricas
pessoais, uma relação entre a ficcionalidade e a Semiolingüística.
Parece-nos que a ficcionalidade estaria apta a perpassar tanto o
espaço externo quanto o espaço interno da situação de comunicação acima
representada. Ela agiria no espaço externo onde operaram as identidades
sociais. Como exemplo podemos citar o caso do uso de pseudônimos. Temos o
caso de Fernando Pessoa e seus mais de 72 heterônimos; Nelson Rodrigues
que usava o nome Suzana Flag
58
para escrever romances e manter a sua
identidade camuflada, entre tantos outros casos. A ficcionalidade também
perpassaria o espaço interno das trocas linguageiras, pois, a nosso ver, os dois
58
Podemos citar: FLAG, Suzana.
Meu destino é pecar
. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998
152
espaços da situação de comunicação são articulados e dependentes um do
outro, ou seja, estariam em uma constante relação de determinação e de
complementação.
Em termos de tipos de ficcionalidade poderíamos pensar o
seguinte: a ficcionalidade constitutiva somente poderia aparecer no espaço
externo das trocas. Já a ficcionalidade colaborativa e a ficcionalidade
predominante perpassariam tanto o espaço externo quanto e espaço interno das
trocas linguageiras.
O esquema que proporemos a seguir seria um desdobramento do
espaço da situação de comunicação proposta por Charaudeau (2002) e por nós
transcrita acima. Na nossa óptica, a relação factual/ficcional seria assim
estabelecida:
153
Ilustração 8 : A ficcionalidade no mundo da linguagem
situações
Factuais
(a)
Articulação de situações possíveis ou
simulações de situações possíveis
Entrecruzamento de
efeitos de real e efeitos de ficção
Estabelecimento de tipos de ficcionalidade
Gêneros de discurso
(c)
situações
ficcionais
(b)
Em uma tal perspectiva, o mundo da linguagem teria três espaços e a
ficcionalidade constitutiva transpassaria todos eles. No espaço (a)
encontraríamos gêneros de discurso cujo estatuto estaria mais próximo da
factualidade, ou seja, estariam ligados aos fatos, às ações, aos eventos, à
própria existência e demais situações com as quais temos contato, que
vivenciamos ou somos testemunhas em nosso cotidiano. Podem ser de ordem
subjetiva ou objetiva. A ficcionalidade colaborativa poderia perpassar este
universo. Localizados no espaço (b), estariam gêneros de discurso em que
podemos identificar a simulação de situações possíveis, verossímeis. Seria onde
encontraríamos a ficcionalidade predominante. Já na esfera (C), seria um
154
espaço onde encontraríamos gêneros mais flutuantes, que oscilariam em seu
estatuto. Haveria, aqui, a convivência entre a ficcionalidade colaborativa e a
ficcionalidade predominante. Como isso seria possível? De acordo com Pavel
(1988:104), “la fictionalité est une proprieté historiquemente variable” (tradução
nossa: “a ficcionalidade é uma propriedade historicamente variável”). Partindo
dessa perspectiva, podemos dizer que o que pode se caracterizar como uma
ficcionalidade predominante em uma época, pode vir a ser, em outra, uma
ficcionalidade colaborativa. Por exemplo, poderíamos ter um trecho de uma
obra de Machado de Assis (estatuto ficcional) citado em um texto jornalístico
(estatuto factual) com o objetivo de ilustrar uma situação (ficcionalidade
colaborativa).
Na nossa opinião, não existiriam gêneros puros, totalmente
despidos de efeitos de real e efeitos de ficção. É por este motivo que em nosso
quadro as fronteiras entre as situações reais e as situações factuais são
representadas como sendo porosas, possuem permeabilidade e permitem uma
série de movimentações e deslocamentos que seriam representados pela dupla
orientação das setas: o que, em um dado momento, seria aceito como factual,
em outra circunstância, poderia se tornar ficcional. Dessa forma, os mundos
factuais e ficcionais somente poderiam ser categorizados se vistos de um ponto
de vista dinâmico e como processos que necessitariam, constantemente, de
rearranjos que seriam impostos e regulados pela situação de comunicação. Em
155
síntese, seria dizer que a situação agiria como uma espécie de maestro que
coordenaria o espaço do ficcional, do factual e do não-factual na cena da
linguagem.
Para ilustrar o que acabamos de dizer, gostaríamos de retomar a
pintura de Albers, retirada de Felici (2000:12), que estampamos na capa do
presente trabalho.
Ilustração 9: Joseph Albers. «figure» (1925), Bâle, Kunstmuseum
Parece-nos que esta figura pode retratar o nosso pensamento.
Suponhamos que o vermelho seja a situação de comunicação - onde, de alguma
forma predominaria a factualidade, que o branco represente a ficcionalidade e
que o preto, os enunciados não-factuais. No nosso entender, a figura acima
apresenta um sistema em constante mutabilidade e os encaixes dos traços vão
criando situações que se engrenam, criando composições as mais diversas e
permitindo uma permeabilidade, uma mesclagem entre factual, não-factual e
ficcional. Na primeira seqüência de «engates», A factualidade é permeada pelo
não-factual (preto) e pelo ficcional (branco), em seguida pelo factual (vermelho)
156
e assim por diante. Existiria uma movimentação que transformaria a cena da
comunicação a cada encaixe que se estabeleceria na figura, ou seja, uma
situação não-factual se transformaria em uma situação factual, mas poderia ser
permeada por situações ficcionais em um encadeamento dinâmico e plástico.
Poderíamos dizer que o sistema operaria em uma espécie de moto-
contínuo da linguagem, sempre se transformando, constantemente se
renovando, permanentemente em um vir a ser que não poderíamos conjecturar
em termos teóricos. É por esta razão, a nosso ver, que a interpretação da
ficcionalidade seria feita quase sempre em um
a posteriori
, já que a
ficcionalidade, como o disse Pavel (1988) acima, é historicamente mutável.
No quadro «A ficcionalidade no mundo da linguagem» mencionamos
algumas noções que ainda não foram explicitadas aqui: situação factual,
situação ficcional e situação possível. A seguir, tentaremos expor a abrangência
de cada um destes itens.
6.2.1 - Situação factual
Parece-nos que esse mundo poderia ser definido como o espaço
onde, a partir de conjunturas situacionais específicas, os fatos seriam tidos
157
como reais, como passíveis de serem submetidos a provas. No entanto, tal
definição estaria subordinada às identidades dos parceiros da situação de
comunicação, à finalidade da troca linguageira, à proposição formulada e às
circunstâncias materiais que determinam certos espaços, nos valendo aqui de
conceitos de Charaudeau (1995).
Na verdade, pensamos que definir o que é factual é tão complexo
quanto definir o que é ficcional. De acordo com Bange
59
(1986:215),
poderíamos ter a seguinte visão:
" En effet la realité ne doit pas être regardé comme une donnée
objective que le langage se contente d´enregistrer et de
traduire. Elle est construite sur les données situationnelles às
partir des savoirs et des croyances en fonction d´intentions liées
à des valeurs et préférences."
(Tradução nossa:
" De fato, a realidade não deve ser vista como um dado objetivo
que a linguagem se contenta em registrar e traduzir. Ela é
construída sobre os dados situacionais a partir de saberes e
crenças em função de intenções ligadas a valores e a
preferências.")
Assim, o que é real em uma dada situação para uma dada sociedade,
pode não ser para outra. Como ilustração, poderíamos dizer que seria
perfeitamente admissível para um brasileiro constatar como «fato real» que o
sol nasce e se põe todos os dias, com uma variação relativamente pequena de
horário considerando estarmos no solstício ou no equinócio. Tal fato seria, ao
59
De alguma maneira, a visão de Bange vai ao encontro da discussão proposta por Lakoff &
Jonhson (2002) sobre uma visão experiencialista do discurso.
158
menos para a maioria, um dado real praticamente indiscutível. Por outro lado,
se tomarmos como referência o movimento do sol em regiões que se localizam
no extremo norte do globo terrestre, como, por exemplo, o estado
estadunidense do Alaska e países da Europa Nórdica, essa realidade não é um
fato, pois, devido a sua posição do globo, tais países possuem períodos nos
quais o sol é predominante nas 24 horas do dia. Assim, o que é um fato comum
para uma determinada situação de comunicação pode parecer um fato estranho
para outra. Vejamos um outro caso:
(02) "Estamos às vésperas do ano 5.761 e, ao contrário das
muitas previsões, ainda não conseguimos contato com
outra inteligência extraterrestre e nem mesmo resolver os
mesquinhos conflitos do nosso planeta.
Não se exaspere, leitor. Não estamos escrevendo nenhum
texto de ficção científico-gastronômica, e sim nos
preparando para as comemorações de mais um Rosh
Hashaná, o ano novo judaico, que acontece na noite do dia
30" (FOLHA DE SÃO PAULO, Ilustrada, 22/09/2000)
A citação acima pode ilustrar a nossa hipótese de que o real e o
ficcional somente são delimitados situacionalmente. O calendário judáico, como
foi mencionado, é diferente do gregoriano adotado por alguns países ocidentais,
logo, é factual para os judeus estarem comemorando o ano de 5.761 quando
vivíamos o ano de 2000. O autor do texto ao escrever "
Não se exaspere, leitor .
Não estamos escrevendo nenhum texto de ficção científico-gastronômica
."
159
brinca com essa diferença que para a nossa realidade pareceria um pouco
exótica, uma ficção científica. Logo em seguida, é feita uma localização que
permite reconhecer o texto como factual: " (...)
e sim nos preparando para as
comemorações de mais um Rosh Hashaná, o ano novo judaico(...)"
.
Ainda em relação aos procedimentos de contagem do tempo, se o
calendário judeu nos soaria como «futurista», o calendário mulçumano, ao
contrário, estaria em «atraso»: segundo o calendário
Hijra
60
os mulçumanos
encontram-se no ano de 1424, enquanto o calendário gregoriano apontaria o
ano de 2003.
Dessa forma, pensamos que a delimitação do factual poderia ser
estabelecida a partir da situação de comunicação onde estariam compreendidos:
dados culturais, institucionais, históricos, geográficos, étnicos, saberes
científicos, entre outras possibilidades.
6.2.2 – Situação ficcional
Seria, ao nosso ver, onde se realizaria a simulação do situação
factual. Neste caso, a simulação obedeceria a um preceito regulador: estar
subordinada ao princípio da verossimilhança. Poderíamos nos perguntar:
60
Conforme FOLHA DE SÃO PAULO, Mundo, 21 /03/2003.
160
existem coisas puramente ficcionais? No nosso entender, isso não seria possível,
pois a ficção é criada a partir da língua, dos objetos e das sensações humanas.
Estes, por sua vez, não «apresentariam nada de novo» quando atuam na esfera
da ficção, caso contrário, não seriam compreendidos. Lembremos que a
produção do sentido é social e se não há entendimento do que é dito em pelo
menos em uma determinada comunidade discursiva, a comunicação ficará
deficiente ou será inexistente.
Para argumentar que somente instauramos a ficcionalidade a partir
de dados já conhecidos, poderíamos pensar, por exemplo, na figura de um
unicórnio. A priori, não existem unicórnios no mundo factual, mas a noção do
que constitui este animal faz parte de um conhecimento do real que possuímos,
isto é, um unicórnio seria um cavalo com um chifre na testa. Os conceitos de
cavalo
e de
chifre
são triviais para a nossa realidade e localizáveis em qualquer
dicionário da língua portuguesa feito no Brasil. O mundo dos unicórnios é um
mundo de palavra onde é possível existir um cavalo com chifres. Mesmo quando
nos deparamos com o gênero ficção científica, o que se pode observar é que
não haveria, por exemplo, grandes disparidades nas organizações sociais, nas
maneiras das pessoas se relacionarem, ou seja, os laços amorosos, familiares,
as relações hierárquicas, amigáveis, entre outros se assemelham aos modelos
que temos conhecimento no mundo real. As noções de espaço, de forma e de
tempo também não destoariam daquelas que possuímos, pois, caso contrário,
161
os romances de ficção científica seriam incompreensíveis e impossíveis de serem
lidos.
Existem casos isolados de alguns escritores, como James Joyce ou
Guimarães Rosa, por exemplo, que criam neologismos em suas obras. Parece-
nos que tais neologismos se valem de recursos já existentes na língua, pois
somos capazes de inferir seus significados. Assim, em termos de ficção,
pensamos que uma reedição da máxima de Lavoisier seria uma boa síntese: na
ficção nada se cria, tudo se transforma. Não estamos dizendo, com isso, que as
criações feitas a partir da linguagem sejam triviais, muito pelo contrário. A
nosso ver, a ficção é um espaço que não só privilegia a criatividade humana
quanto enriquece e contribui para a compreensão do mundo real.
6.2.3 - Situação possível
É aquela em que as restrições da situação de comunicação
permitem a inteligibilidade de uma produção discursiva. Ela pode tanto ser
perpassada pela factualidade quanto pela ficcionalidade em uma maior ou
menor escala. Nesse caso, os gêneros seriam coadjuvantes na determinação do
estatuto do texto.
162
Gostaríamos de citar o livro
As notícias mais malucas do planeta
de Brender (2004). Neste volume são concatenados fatos reais mas nada
corriqueiros: No Quênia, o resgate de um celular que havia caído em um vaso
sanitário deixa três mortos; um jogo em Madagascar termina em 149 a 0;
Berlusconi promete prender jogadores italianos se não ganharem a copa.
6.3 - Efeitos de real e efeitos de ficção
Buscaremos definir os efeitos de real e os efeitos de ficção a partir da
Teoria Semiolingüística de Charaudeau (1983). No momento em que o referido
autor escreveu sobre o tema, a sua postura de caracterizar o real e o ficcional
se ancorou em um pensamento clássico sobre o assunto, ou seja, a dicotomia: o
real é objetivo e o ficcional é subjetivo. Em Mendes-Lopes (2000a:74) esta
classificação foi discutida ressaltando-se algumas particularidades e pudemos
concluir que uma tal divisão seria problemática para a diferenciação entre as
instâncias do factual e do ficcional. Contudo, embora problemáticas, pensamos
que não deveriam ser descartadas, mas rearranjadas.
163
Faremos, em seguida, uma pequena recapitulação de alguns
aspectos do tema e discorreremos sobre a maneira pela qual tal perspectiva
pode ser contemplada.
Na óptica da Semiolingüística, o ato de linguagem é permeado por
efeitos de real e efeitos de ficção. Assim, de acordo com Charaudeau
(1983:95), haveria duas cenas:
“Notre hypothèse est que ces effets de parole - aussi divers qu’il
soient - et les moyens qui permettent de les engendrer
concourent à créer deux espaces scèniques de langage:
- Une scène de Fiction mise en place par toutes les procedures
discursives qui produisent des effets de fiction.
- Une scène de réel mise en place par toutes les procedures
discursives qui produisent des effets de réel.”
(Tradução nossa:
“Nossa hipótese é a de que esses efeitos de fala – por mais
diversos que eles sejam – e os meios que permitem engendrá-
los contribuem para criar dois espaços cênicos da linguagem:
- uma cena de ficção pontuada por todos os procedimentos
discursivos que produzem efeitos de ficção.
- Uma cena de real localizada por todos os procedimentos
discursivos que produzem efeitos de real.”)
Assim, de acordo com Charaudeau (1983:96), os procedimentos
discursivos que produzem os efeitos de ficção estariam reunidos na figura do
inteligível, com as seguintes variações: (a) a distância no tempo e no espaço;
(b) as desproporções das dimensões (o monstruoso); (c) as desproporções das
quantidades (o enorme) e (d) as desproporções das noções (o inacreditável).
164
Por outro lado, quando utilizamos os procedimentos discursivos que
produzem os efeitos de real, conforme Charaudeau (1983:97), estaríamos
fazendo apelo a um consenso que pode se apresentar sob diferentes figuras:
(a) Figura do
tangível
- permitiria verificar o real através dos sentidos (olfato,
tato, visão etc.); estabeleceria um contato direto com o mundo que
engendra o mito do testemunho do espectador.
(b) Figura da experiência - que permitiria verificar o real a partir de uma
vivência própria ou da de alguém; o partilhar do vivido.
(c) Figura do
dizer
- que constrói lugares de evidência, alguns institucionalizados
(dicionários, por exemplo), outros registrados na memória coletiva e
configurados em provérbios, máximas, expressões idiomáticas, estereótipos,
enfim, toda fala que tenha um valor de aforismo.
(d) Figura do
saber
- mais ou menos codificada pelas ciências, representa as
técnicas que permitiriam construir e verificar o verdadeiro pelo raciocínio; é
o mundo do inteligível estruturado pela racionalidade.
(e) Figura do
fazer
- representa a fala injuntiva e/ou performativa que institui a
verdade do dizer pela verdade do fazer que o acompanha (é uma das chaves
do discurso totalitário).
165
Parece-nos que tais divisões entre os efeitos não seriam tão
estanques como elas se apresentam. Alguns critérios, ao nosso ver, podem
ocorrer tanto em situações factuais quanto ficcionais. O monstruoso, que é um
item pertencente aos efeitos de ficção, por exemplo, é relativo: pode-se dizer
que o personagem Drácula seja monstruoso, mas também é possível ter o
mesmo julgamento a respeito de Hitler e seus atos durante a II Guerra Mundial.
Em termos de efeito de real, tomemos o item (d)
a figura do saber
: as ciências
tanto podem produzir experiências verificáveis e de grande utilidade pública
quanto produzir saberes que devido a uma mudança de paradigma ou a alguma
outra descoberta, podem se mostrar equivocadas.
Assim, de que forma poderíamos delimitar o que caracteriza um ou
outro efeito? A nosso ver, os efeitos podem apresentar os dados acima
apontados na Teoria Semiolingüística, mas o que os determinam é uma
competência que possuímos para identificá-los. Na nossa opinião,
"aprendemos" esta competência ao longo de nossa vida e ela se caracterizaria
por possuir uma certa plasticidade. Um tal reconhecimento teria o auxílio dos
gêneros discursivos, dos intra e interdiscursos, de dados sociais e históricos, etc.
Como ilustração, podemos citar o caso de alguns gêneros
discursivos que se transformam ou acabam por mesclar outros gêneros. Para
que possamos reconhecer tais operações seria necessário uma espécie de
166
"adaptação" de nosso saber para que passemos a reconhecê-los.
Exemplificando, gostaríamos de citar o poema de Manuel Bandeira (1970:117):
"POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
[morro da Babilônia num barracão
sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu
afogado."
Neste poema, o gênero "notícia de jornal" - que teria o estatuto factual,
mescla-se a um outro gênero, a poesia - cujo estatuto é ficcional. Assim, é uma
dada competência que adquirimos ao longo de nossa vida que nos faz
reconhecer o que é poesia e o que é notícia de jornal e que, também, nos
permite entrar no jogo ficcional/factual proposto pelo escritor no exemplo
acima.
Efeitos de real e efeitos de ficção seriam assim caracterizados,
porém de quais recursos nos valeríamos para reconhecê-los? Parece-nos que a
noção de competência seria uma possível resposta a tal indagação.
167
6.4 – Competências e efeitos de real e efeitos de ficção
De acordo com Charaudeau (2001)
61
, a competência
linguageira
poderia ser repertoriada em três níveis:
situacional, discursivo e
semiolingüístico
. A seguir exporemos o que cada competência propõe.
6.4.1 - Competência situacional
Esta seria a competência que determinaria a expectativa (
enjeu
) de
um ato de linguagem. Conforme Charaudeau (2001:06):
" La
compétence situationnelle
exige de tout sujet qui
comunique et interprète qu´il soit apte à construire son discours
en fonction de l´
identité
des partenaires de l´échange, de la
finalité
de l´échange, du
propos
em jeu et des
circunstances
matérielles
de l´échange."
(tradução nossa:
"A
competência situacional
exige de todo sujeito que comunica
e interpreta que ele esteja apto a construir seu discurso em
função da
identidade
dos parceiros da troca, da
finalidade
da
troca, da
proposição
em jogo e das
circunstâncias materiais
da
troca.")
61
Este texto foi enviado ao Núcleo de Análise do Discurso da FALE/UFMG pelo autor e não traz
uma referência bibliográfica exata.
168
Assim, a competência situacional é responsável pela construção do
discurso. De um ponto de vista da ficção, o sujeito, para poder reconhecer o
discurso ficcional, deveria saber como ele é estruturado.
6.4.2 - Competência discursiva
Conforme aponta Charaudeau (2001:07):
"La
compétence discursive
exige de tout sujet qui communique
et interprète qu´il soit apte à manipuler(Je)-reconnaître(Tu) les
procedes de mise en scène discursive
qui feront écho aux
contraintes du cadre situationnel. Ceux-ci (qu´il ne faudra pas
confondre avec les procédés proprement linguistiques), sont de
trois ordres:
énonciatif
,
énoncif
e
sémantique
."
(tradução nossa:
A competência discursiva exige de todo sujeito que comunica e
interpreta que ele esteja apto a manipular(Eu)-reconhecer(Tu)
os procedimentos da encenação discursiva que farão eco às
restrições do quadro situacional. Tais procedimentos (que não
poderão ser confundidos com os procedimentos propriamente
lingüísticos) são de três ordens: enunciativo, enuncivo e
semântico." )
Dessa forma, a competência discursiva possibilitaria o
reconhecimento das instâncias produção e recepção implementadas
respectivamente pelo sujeito enunciador e pelo sujeito destinatário. Esta seria
ainda a competência que permitiria a percepção da situação de enunciação, dos
modos de organização do discurso e do ambiente cognitivo mutuamente
169
partilhado. Parece-nos que seria a competência situacional que nos permitiria
reconhecer o estatuto ficcional ou factual que operaria na competência
discursiva. No entanto, seria plausível pensar que a interdicursividade também
pode ser um dado a considerar na delimitação do ficcional e ele se produziria
justamente nesta esfera. Nesses casos, pensamos que o interdiscurso teria o
estatuto de efeito de ficção.
6.4.3 - Competência semiolingüística
Por fim, Charaudeau (2001:09) explicaria da seguinte forma a
competência homônima a sua teoria.
La compétance sémiolinguistique exige de tout sujet qui
communique et interprète qu´il soit apte à manipuler-
reconnaître la forme des signes, leurs règles de combinaison et
leurs sens, sachant que ceux-ci sont employés pour exprimer
une intention de communication, en relation avec les données
du cadre situationnel et les contraintes de l´organisation
discursive.
C´est à ce niveau que se construit le texte, si l´on entend par
texte, le résultat d´un acte produit par un sujet donné dans une
situation d´échange sociale donnée et ayant une forme
particulière.
(Tradução nossa:
"A competência semiolingüística exige de todo sujeito que
comunica e interpreta que ele esteja apto a manipular-
reconhecer a forma dos signos, suas regras de combinação e
seus sentidos, e que saiba que estes são empregados para
170
exprimir uma intenção de comunicação relacionada aos dados
do quadro situacional e às restrições da organização discursiva.
É neste nível que se constrói o texto, se entendemos por texto o
resultado de um ato produzido por um dado sujeito em uma
dada situação de troca social e tendo uma forma particular.")
Segundo Charaudeau (2001:09), este seria o espaço no qual se
evidenciariam a composição textual e paratextual, a construção gramatical e o
emprego apropriado das palavras do léxico.
Parece-nos que as três competências seriam responsáveis, tanto na
instância da produção quanto da recepção, pela habilidade que um sujeito
possui de identificar em uma dada situação de comunicação os seguintes itens:
de onde se fala, o discurso que se produz e o objeto que seria o canal por onde
os dois itens anteriores perpassariam. De um ponto de vista da ficcionalidade,
seria vital para a identificação dos processos de simulação a compreensão
destas instâncias.
6.5 – Considerações finais sobre a relação ficcionalidade &
Semiolinguistica
Parece-nos que podemos encontrar ferramentas para efetuar uma
análise da ficcionalidade a partir da Teoria Semiolingüística. Assim sendo,
171
conceitos como: situação de comunicação, identidade social, identidade
discursiva, contrato, gêneros, efeitos de real e efeitos de ficção, dentre outros
auxiliariam em nosso objetivo de buscar uma explicação teórica para a
ficcionalidade. No entanto, ainda percebemos um outro fator que talvez possa
vir a influenciar na determinação da ficcionalidade: o estilo. Assim, continuamos
nossa jornada rumo a mais este porto.
YZ
172
07
FICCIONALIDADE E ESTILO: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES DO PONTO DE VISTA DA
ANÁLISE DO DISCURSO
«Prezado leitor, quisera eu aqui tecer, munida dos delgados
áureos fios que as palavras ourivam, um trançado das dádivas do conhecimento
que agora, em êxtase, ofertaria-lhe, mas temores me percorrem, o suor do
opróbrio apodera-se de mim e vejo-me estagnada....» Imaginemos que um
texto se inicie assim. Como poderíamos dizer se ele é ficcional ou factual? Qual
é a influência do estilo no estatuto de um texto? Tentaremos discutir a questão
a partir de alguns dos preceitos da linha de pesquisa que temos seguido.
Parece-nos que os estudos sobre estilo, de um ponto de vista da
Análise do Discurso, ainda não são muito numerosos, ou pelo menos, no Brasil,
não temos conhecimento de que o sejam. Embora se trate de um assunto que
vem sendo estudado já há algum tempo, o estilo ainda permanece difícil de se
apreender.
Ao tentar relacionar análise do discurso e estilo, surgiram-nos algumas
indagações: o estilo poderia constituir um discurso? Haveria estilos
173
institucionalizados? O estilo seria uma restrição imposta pelos gêneros de
discurso? Seria possível determinar a ficcionalidade ou a factualidade de um
texto através do estilo nele empregado? Estas seriam algumas das questões que
gostaríamos de tratar nesta parte de nosso estudo.
Assim sendo, o presente capítulo será composto de três partes
complementares: num primeiro momento, faremos algumas reflexões sobre
análise do discurso e estilo, passando pelo viés teórico da Semiolingüística; num
segundo momento, abordaremos as relações entre ficcionalidade e estilo e,
finalmente, num terceiro momento, tentaremos abordar alguns aspectos das
questões acima mencionadas.
7.1 – Análise do Discurso e Estilo
É possível pensar que há uma estreita relação teórica entre o que
propunha a Estilística de C. Bally no início de século XX e o que as teorias sobre
a análise do discurso de vertente francesa têm evidenciado nessas últimas
décadas. De acordo com Charaudeau & Maingueneau (2002:552):
“Il est très difficile de définir la ligne de partage entre stylistique
et analyse du discours, car la stylistique (...) peut prendre des
formes extrêmement diverses. Les phénomènes qu´envisageait
174
la stylistique d´un C. Bally au début du XX
e
siècle sont
aujourd´hui distribués entre les théories de l´énontiation
linguistique, la pragmatique, la sociolinguisque, l´analyse
conversationnelle, l´analyse du discours...”
(Tradução nossa:
É difícil definir uma linha divisória entre estilística e análise do
discurso porque a estilística (...) pode tomar formas
extremamente diversas. Os fenômenos que eram considerados
pela estilística de C. Bally no início do século XX estão hoje
distribuídos entre teorias da enunciação, lingüística, pragmática,
sociolingüística, análise conversacional, análise do discurso...)
Mesmo tendo em vista tal ramificação, gostaríamos de expor aqui algumas
reflexões sobre a abordagem que a análise do discurso poderia fazer do estilo.
De um ponto de vista da Teoria Semiolingüística, qualquer
produção linguageira pode ser vista a partir destas três dimensões: a
situação
de comunicação, as categorias de discurso e as categorias de língua
. Cada uma
delas obedece a restrições de uso que podem estar relacionadas a dados
externos ou dados internos ao ato de linguagem. Vale dizer que esta tríplice
repartição existiria somente para efeito didático, pois, de fato, estariam todas
em uma relação de complementaridade, ou de «consubstancialidade».
As restrições da situação de comunicação devem ser consideradas
como dados externos à instância da enunciação e sua única razão de ser é ter
por finalidade a construção do discurso. Na visão de Charaudeau (2004), elas
respondem à questão «Estamos aqui para falar do quê?» e, assim sendo,
engendram instruções que devem encontrar seu correspondente em um «Como
175
dizer». A definição da situação de comunicação se dá em quatro termos: (i) a
finalidade da troca (Falar para atingir qual objetivo?); (ii) a identidade dos
parceiros (Quem se endereça a quem?); (iii) a proposição (Falar do quê?) e (iv)
o dispositivo (Falar em qual quadro?).
Os dados externos e a construção discursiva não são
desmembrados e estão em contínua inter-relação, como o afirma Charaudeau
(2004:15):
“A ligação entre os dados externos e a construção discursiva é
de causalidade, mas ela não se estabelece em uma
correspondência termo a termo. Os dados determinam o que
deve ser o quadro do tratamento linguageiro no qual eles vão
se ordenar.”
Ainda na visão do teórico acima citado, pode-se observar que os dados da
finalidade, pelo viés de suas visadas
62
, determinam uma certa escolha de
modos enuncivos (descritivo, narrativo e argumentativo) que o sujeito falante
deve empregar. Os dados da identidade dos parceiros determinam alguns
modos enunciativos (alocutivo, elocutivo e delocutivo
63
) nos quais ele deve se
engajar. Os dados do propósito determinam alguns modos de tematização, isto
é, a organização dos temas e sub temas a serem tratados. Os dados das
62
São elas: prescrição, solicitação, incitação, informação, instrução e demonstração.
63
L´allocutif se caractérise par le fait que le «locuteur implique l´interlocuteur dans son acte
d´énontiation et lui impose le contenu de son propos»; le locutif se caractérise par le fait que
«le locuteur situe son propos par rapport à lui même; le délocutif se caractérise par le fait que
«le locuteur laisse s´imposer le propos en tant que tel, comme s´il n´en était nullement
responsable». (MAINGUENEAU & CHARAUDEAU (2002:354)) [Tradução nossa: O alocutivo se
caracteriza pelo fato de que o locutor implica o interlocutor em seu ato de enunciação e lhe
impõe o conteúdo do seu propósito; o elocutivo se caracteriza pelo fato de que o locutor situa
seu propósito em relação a ele mesmo; o delocutivo se caracteriza pelo fato de que o locutor se
deixa impor o propósito, como se ele não fosse responsável.]
176
circunstâncias materiais (ou dos dispositivos) determinam alguns modos de
semiologização e a organização da
mise en scène
material (verbal e/ou visual)
do ato de comunicação.
A título de ilustração,
grosso modo
, podemos pensar na situação
de comunicação “mesa redonda em um encontro sobre estilo cujo tema é a
relação entre análise do discurso e estilo.” Qual será finalidade da troca? Nesse
caso, é acionar a visada de informação. Qual a identidade dos parceiros? De um
lado, temos um sujeito comunicante, membro da mesa redonda, em uma
posição de “fazer saber”, que dever estar qualificado para esta posição – ou
seja, possuir legitimidade, fazendo uma análise que traga um ponto de vista
relevante para o estudo do assunto; de outro lado, temos os sujeitos
interpretantes - o auditório - que estão em uma posição de “dever saber” sobre
o tema abordado e reconhecem a legitimidade do sujeito comunicante para
tratar do tema. Se o palestrante aborda somente assuntos que já são do
conhecimento do auditório, a comunicação se torna enfadonha e a legitimidade
torna-se problemática. Falar do quê? É necessário que o orador se restrinja a
fazer uma abordagem do tema “estilo e análise do discurso”. Caso o orador
comece a falar de outro assunto, ele estará rompendo o contrato e se
mostrando impertinente. Falar em qual quadro? É preciso saber de que “lugar”
falamos. No caso de nosso exemplo, estamos inseridos no discurso acadêmico,
177
ou seja, em uma situação formal que exige o uso de linguagem culta e um
relativo “ineditismo” do assunto.
A nosso ver, a dificuldade de se apreender o estilo está no fato de
que ele pode ser determinado por todas as instâncias acima citadas. Há uma
multitude de possibilidades de situações de comunicação nas quais o texto –
ou qualquer outra produção lingüística – pode se encontrar. Nessa linha de
raciocínio, o estilo seria “detectado” nas três dimensões abaixo:
Na situação de comunicação: (instância extralingüística ) através do
comportamento dos sujeitos falantes e das instituições às quais pertencem.
Estes sujeitos podem “optar” pelo estilo que vão empregar em seu discurso
a partir da sua ancoragem social. Em outros termos: o estilo também pode
ser definido como “
um conjunto de traços formais que caracterizam o modo
de uma pessoa se expressar
.” Segre (1989:116). Desse modo, cada “lugar
social” exige traços formais adequados àquela situação.
Na instância do discurso, o estilo seria percebido levando-se em
consideração as escolhas dos modos de organização narrativo, descritivo ou
argumentativo que vão ser empregados. Por exemplo, um jornalista, ao
optar pela organização narrativa ou descritiva de um texto, está também
fazendo uma opção estilística.
Na instância da materialidade lingüística, onde é possível extrair diversas
marcas estilísticas que qualquer gênero de discurso eventualmente possua.
178
Para ilustrar, podemos citar o “caro leitor” na obra de Machado de Assis ou
o mote utilizado por José Simão em sua coluna na Folha de São Paulo:
Buemba! Buemba! Macaco Simão urgente! O braço armado da gandaia
nacional.
” . Também é possível mencionar os manuais de estilo de jornais
que trazem restrições e normas de uso de determinadas palavras e
expressões. No caso do
Manual da Redação da Folha de São Paulo
, no
capítulo “padronização e estilo”, vemos enumeradas várias regras estilísticas
que os jornalistas da empresa devem empregar.
7.2 – Combinações entre ficcionalidade estilo
A partir do que foi acima mencionado, a relação entre estilo e
ficcionalidade, pensamos, se daria da seguinte forma: o estilo não determinaria
a ficcionalidade ou factualidade de um texto, mas pode insinuar efeitos, sejam
eles de real ou de ficção. Vejamos o caso da carta que Guimarães Rosa
escreveu a Paulo Dantas em 05 de março de 1957 . Gostaríamos de chamar a
atenção para o trecho que se inicia na linha (08):
(...) moro muito defendidamente, escondido nos grotais de um
altozinho, depois de muita volta, nas batoqueiras da caatinga.
Vivo num istmo, sofrendo o mar e me alembrando do campo.
179
Mas tenho janelas que dão para um matinho, bamburral e
amendoeiras bravas; lá vêm pássaros, borboletas, e existem
uns dignos gatos independentes. (grifo nosso)
Do ponto de vista dos gêneros de discurso, temos uma correspondência pessoal
cujo estatuto é factual. Podemos identificar nesta correspondência uma
ficcionalidade colaborativa, ou seja, há um processo de simulação de um mundo
possível que auxilia na construção do texto. Em outros termos, seria dizer que
ao descrever a cidade do Rio de Janeiro com “ingredientes” que seriam do
Sertão, o autor está criando um mundo no qual é possível que se veja uma
cidade - urbanizada, portanto, longe do protótipo de uma região sertaneja -
como uma cidade provinciana localizada em uma outra região geográfica, a
caatinga.
Guimarães Rosa, se fizermos uma análise à luz dos preceitos da
Teoria Semiolingüística, poderia falar de diversos “lugares sociais”, visto que foi
médico, diplomata, escritor, sertanista, entre outros. No entanto, ao escrever a
carta, vale-se do estilo usado nos seus textos literários e o utiliza em outro
gênero. Tal deslocamento estilístico ativa algumas competências e estas fazem
com que um leitor que conheça a obra de Guimarães Rosa associe o estilo
utilizado na carta ao estilo utilizado em sua obra literária. É dessa associação
que vai surgir a identificação do efeito de ficção. Em resumo, a carta é factual
mas é construída a partir de uma ficcionalidade colaborativa que não influencia
no estatuto factual do gênero carta pessoal. Ver a cidade do Rio de Janeiro
180
como uma cidade sertaneja é um mundo possível na realidade de Guimarães
Rosa e isso não implica em valor de mentira ou de verdade, embora seu estilo
possa, eventualmente, nos levar a pensar que se trata de uma carta “não real”.
7.3- Ser ou não ser....?
Para concluir, gostaríamos de tentar responder às questões que foram
colocadas no início deste capítulo. Trata-se, na verdade, de respostas breves e
superficiais, pois temos consciência da complexidade de tais perguntas.
1- O estilo poderia constituir um discurso?
– A questão é controversa, mas
parece-nos que certas ocorrências estilísticas podem ser usadas para se
classificar determinados discursos. Por exemplo, seria possível dizer que o
emprego de expressões como “caro leitor”, “leitor amado”, “ingênua leitora”
poderiam ser usadas para identificar o discurso machadiano. No entanto, ele
não foi o único autor a fazer uso de tal estratégia. Talvez pudéssemos fazer um
levantamento do estilo usado em textos ou obras tomadas isoladamente, porém
não poderíamos tornar tal levantamento uma regra. Estabelecer um único
parâmetro de ocorrência estilística no discurso não nos parece possível, pois
181
cada situação de comunicação imporá uma restrição estilística pertinente para
aquele momento. Além disso, o estilo é instável, pode sofrer influências de
dados históricos, da moda, das mídias, entre outros.
2 - Haveria estilos institucionalizados?
A resposta a essa pergunta seria positiva.
Determinadas instituições convencionam os estilos que são aceitáveis. A título
de ilustração, mencionamos: os já citados manuais de redação dos jornais; a
ABNT que impõe regras de formatação de relatórios, dissertações, leis, teses;
textos administrativos; determinados vestibulares que exigem uma redação
dissertativa; entre outros exemplos.
3- O estilo seria uma restrição imposta pelos gêneros de discurso?
Sim, seria
pertinente pensar que esta seria uma das restrições impostas pelos gêneros.
Nessa ótica, haveria, de um lado, gêneros com restrições estilísticas rígidas,
como por exemplo : cartas comerciais, atas, leis, manuais de instruções, entre
outros, e, de outro lado, haveria gêneros com restrições estilísticas flexíveis,
como por exemplo: correspondência pessoal, publicidades, crônicas, ensaios
etc.
4- Seria possível determinar a ficcionalidade ou a factualidade de um texto
através do estilo nele empregado?
Em nossa perspectiva de pesquisa, o estilo
182
não determinaria a ficcionalidade de um texto. Certos procedimentos estilísticos
podem estar presentes tanto num texto factual quanto num texto ficcional. A
carta de Guimarães Rosa acima mencionada é um exemplo do que acabamos de
dizer. Em termos de ficcionalidade, o estilo pode contribuir para a identificação
de efeitos de real e efeitos de ficção.
Um exemplo da dificuldade de se identificar o estatuto factual ou
ficcional de um texto através do estilo são os casos em que há uma forte
influência de uma determinada identidade social de quem escreve. Um dado
recurso estilístico pode ser visto em diversos outros gêneros de discurso, com
estatutos variáveis. Vejamos o exemplo abaixo:
“Profunda reflexão de Iberê. Fico esperando. Até que ele diz:
após a realização de um quadro, ou de uma série, segue-se um
esvaziamento que por seu turno é substituído por uma gestação
que se processa, e o período criador renasce então. Você tem a
mesma experiência?”
__ Igual. Sinto um esvaziamento que quase se pode chamar
sem exagero de desesperador. Mas para mim é pior: a
germinação e a gestação podem demorar anos, anos esses em
que feneço. (...)”
Em uma primeira leitura e ignorados os paratextos, o trecho acima tanto pode
ser factual quanto ficcional. Talvez possamos ser levados a pensar, através de
uma competência discursiva que possuímos, que se trata de um estilo
pertencente ao gênero romance – identifica-se uma narração, há um travessão
indicando diálogo... Na verdade, a citação acima é um trecho de uma entrevista
183
de Iberê Camargo concedida a Clarice Lispector
64
. A identidade social de Clarice
Lispector “escritora de romances” influencia no estilo escolhido para o relato da
entrevista. Assim, a partir desse exemplo, mostramos como pode ser
problemático definir a factualidade ou a ficcionalidade de um texto somente por
um viés estilístico. Este é também o caso da carta de Guimarães Rosa
anteriormente citada. O estatuto factual dos gêneros “entrevista” e
“correspondência pessoal” vão ser estabelecidos através da situação de
comunicação na qual estão inseridos.
7.4 – Com que roupa eu vou?
Como o vimos acima, a relação entre estilo e ficcionalidade não é
nada simples. Pensamos que se trata de macro campos, podendo ou não se
entrecuzarem. A escolha de se valer de um determinado estilo e permeá-lo ou
não de ficcionalidade estará ligada às restrições impostas pela situação de
comunicação – que pode ser uma «estilista» de bom gosto ou de gosto
duvidoso... Em outros termos, poderíamos pensar que não só os gêneros – que
são situacionais, podem influenciar na escolha do estilo de uma produção
lingüística, mas também a identidade social daquele que a produz e a
adequação exigida pela situação de produção daquele discurso.
64
Cf. LISPECTOR (1992: 108)
184
Devido a essa riqueza de possibilidades, o estilo torna-se difícil de
ser definido com precisão. Por conseqüência, complica-se também a tarefa de
diferenciar ficcionalidade e estilo. O que vale como marca estilística para uma
determinada situação de comunicação, não vale, obrigatoriamente, para uma
outra similar. Além disso, é sabido que os fatores determinantes da
ficcionalidade ou da factualidade estão em constante transformação, o que
dificultaria ainda mais um levantamento dessa natureza. A conclusão mais
plausível a que podemos chegar é que a situação de comunicação é quem vai
definir localmente o que é estilo e o que é ficcionalidade, factualidade, efeitos
de real, efeito de ficção e assim por diante. Nossa posição não deixa de ser
relativista, compreendemos plenamente que se faça tal crítica. No estágio atual
de nossas pesquisas, infelizmente, não poderíamos apresentar uma posição
mais consistente.
No capítulo subseqüente, vamos fazer uma análise de um caso
envolvendo a questão dos gêneros e, por conseguinte, da possibilidade dos
dados paratextuais serem «mascarados». Para uma maior clareza, os índices
paratextuais podem se tornar um dado de indeterminação do estatuto de
ficcionalidade ou de factualidade de um gênero.
YZ
185
08
FICCIONALIDADE E GÊNEROS: CLASSIFICAÇÕES
INSTÁVEIS
Pretendemos, nesta parte de nosso estudo, fazer uma breve
reflexão sobre a questão dos gêneros na perspectiva do conceito de cena de
enunciação. Vamos nos valer da teoria de Maingueneau (2004), que, ao que nos
parece, é compatível com a Semiolingüística e com o a linha de raciocínio que
temos empreendido nesta pesquisa.
Para tanto, examinaremos dois
corpora
que foram construídos a
partir de um mesmo tema, que foram escritos por um mesmo autor, mas que
foram publicados em momentos diferentes. Trata-se, de um lado, do “
Diário de
Bagdá
” coluna escrita por Sérgio Dávila, jornalista e enviado especial da
Folha
de São Paulo
para a cobertura da Guerra do Iraque de 2003 e, de outro lado, do
livro, também publicado pelo referido jornalista, “
Diário de Bagdá: a guerra do
Iraque segundo os bombardeados
”.
Para aqueles que não conhecem os textos acima mencionados,
faremos aqui uma pequena nota introdutória. A coluna
Diário de Bagdá
foi
publicada durante o período de 19 de março a 15 de abril de 2003, sempre em
186
forma de fragmentos de textos
65
e trazia considerações sobre o local, a guerra,
a população e outros temas variados. Era veiculada no caderno
Mundo
, na
seção “Ataque do Império”. Na mesma página, eram publicadas fotos do
fotojornalista Juca Varella, que poderiam, ou não, estar ilustrando a coluna, e
também outros gêneros jornalísticos como: artigos, notícias, reportagens que
informavam sobre o conflito. Já o livro “
Diário de Bagdá: a guerra do Iraque
segundo os bombardeados
” foi publicado após o retorno dos supracitados
jornalistas. A edição é bem cuidada, estão dispostos trinta textos agrupados por
temas, perde-se a referência a datas específicas - há somente a indicação “dia
01, 02, 03”, e assim por diante
66
. São também publicadas fotos inéditas e outras
ilustrações do que poderíamos chamar de
souvernirs
de viagem: crachás
utilizados, autorizações de circulação, exemplares de jornais locais, carteiras de
identificação do hotel no qual estavam hospedados, entre outros itens.
Considerando que há uma multiplicidade de materiais, optamos por trabalhar
somente com a parte textual dos
corpora
. Eliminamos, assim, fotos e outras
ilustrações.
No presente capítulo, selecionamos dois textos para a análise:
corpus
(01) “Quando bigode vale mais que mulher” de 28 de março de 2003 e
corpus
(02) “Dia 14 – [o mentiroso]
67
”. Doravante, para maior clareza,
nomearemos a coluna
Diário de Bagdá
publicada pelo jornal (DBJ) e o livro
65
Cf.
corpus
1
66
Cf. anexo,
corpus
2
67
Cf. anexo
187
Diário de Bagdá
(DBL); O
corpus
(01) será representado por (DBJ-01) e o
corpus
(02) (DBL-02). Ambos estão transcritos integralmente na seção
«Anexos» a partir da página 209.
Com o intuito de analisar o gênero “diário” nos
corpora
escolhidos,
teceremos, num primeiro momento, breves considerações sobre algumas
abordagens que podem ser feitas da genericidade e, em seguida,
prosseguiremos a uma análise dos
corpora
a partir de uma visão teórica de
Maingueneau (2002, 2004).
8.1 - A questão dos gêneros
Desde a Antigüidade, os critérios de classificação das produções
lingüísticas em gêneros compartimentados vêm sendo discutidos e, em
decorrência desse debate contínuo, o assunto acabou sendo abordado sob os
mais diversos prismas. Atualmente, é possível localizar algumas correntes de
estudos sobre este assunto na área de Letras: gêneros literários, gêneros
retóricos, gêneros de discurso e também o que os pesquisadores anglo-
americanos denominam “
genre analyses
”. Interessa-nos, neste momento, fazer
188
uma reflexão sobre os gêneros de discurso
68
. Pode-se enumerar, com base em
CHARAUDEAU (2001), alguns critérios usados para se determinar a
genericidade: (i) determina-se os
lugares de fala
(lugares sociais) que são o
resultado da maneira pela qual uma sociedade estrutura, institucionalmente,
suas práticas sociais a partir de grandes setores da atividade: o político, o
religioso, o jurídico, o científico, o educativo, etc.; (ii) determina-se as grandes
funções de base da atividade linguageira de acordo com a direção em que o
ato de comunicação é orientado (Funções de Jakobson, Halliday etc.); (iii)
fundamenta-se na natureza comunicacional da troca verbal (Bakhtin); (iv)
apóia-se no aparelho formal da enunciação (Benveniste e Cullioli); (v) tenta-se
definir tipos de atividade linguageira com um valor mais ou menos prototípico:
narrativo, argumentativo, explicativo e descritivo; (vi) descreve-se as
características formais de um texto e reúne-se as marcas mais recorrentes para
concluir a determinação de um gênero textual; (vii) busca-se determinar um
domínio de produção do discurso de acordo com textos fundadores cuja
finalidade é determinar os valores de um certo domínio de produção discursiva
como discurso filosófico, científico, religioso, etc.
A partir do que foi brevemente enumerado acima, pode-se perceber que
estabelecer uma teoria dos gêneros é ainda uma tarefa um pouco complexa,
pois, se de um lado, temos critérios lingüísticos, discursivos e situacionais que
68
Estamos aqui nos valendo de tal divisão somente para preservar uma visão burocrática de
linhas de pesquisa, pois, ao nosso ver, todos os gêneros são,
a priori
, gêneros de discurso.
189
poderiam auxiliar em tal classificação, de outro, temos a plasticidade dos
gêneros, ou seja, os usuários lhes atribuem movimentos dinâmicos que os
colocam constantemente em transformação. É de tal mobilidade que surge a
limitação de se criar um modelo teórico que seja capaz de explicar com rigor o
funcionamento dos gêneros.
Diante de tantas abordagens teóricas, optamos por trabalhar com a visão
de Dominique Maingueneau que vê a questão dos gêneros a partir da noção de
cena de enunciação e, de certa maneira, se inscreve no item (vii) acima
mencionado. Pretendemos, simplesmente, fazer uma aplicação da referida
teoria, pois, ao nosso ver, ela é compatível com os
corpora
escolhidos.
8.2 - Cenas e diários: um estudo de caso
De acordo com Maingueneau (2002:515), o termo
cena de enunciação
seria uma noção próxima daquela de situação de comunicação. Nesta
perspectiva, “
a enunciação acontece em um espaço instituído, definido pelo
gênero de discurso, mas também em uma dimensão construtiva do discurso,
que se coloca em cena e instaura seu próprio espaço de enunciação
.”
190
Em uma mesma cena de enunciação existem três cenas que agem
em planos complementares:
a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.
A seguir, teceremos algumas considerações sobre elas e os
corpora
acima
mencionados.
8.2.1 – A cena englobante
De acordo com Maingueneau (2004)
“A cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de
discurso. Quando recebemos um panfleto na rua, devemos ser
capazes de determinar se ele se origina do tipo de discurso
religioso, político, publicitário... ou seja, sobre qual cena
englobante é preciso se posicionar para o interpretar, de que
maneira o leitor é interpelado. (...) ela define o estatuto dos
parceiros em um certo espaço pragmático.”
No caso do DBJ, a cena englobante é o discurso jornalístico. Um leitor
que se deparasse com a coluna inserida no jornal deveria saber identificar que
se tratava de um diário feito por um jornalista para a cobertura de um evento: a
guerra.
Já para o DBL, a cena englobante não vai ser a mesma pelo
simples fato de que o texto não está mais inserido no discurso jornalístico, pois,
além de estar publicado em um outro suporte, ou seja, “livro”, perdeu também
191
vários das marcas indicativas do discurso jornalístico: datas, publicação
simultânea ao evento, as indicações de localização dentro do jornal, entre
outros. Assim, parece-nos que os textos estariam mais próximos dos relatos
pessoais, portanto, a cena englobante será aquela do tipo de discurso
memorialístico. Tal percepção é endossada pela própria catalogação da obra
que segue os critérios adotados pela Câmara Brasileira do Livro, onde se lê:
Guerra do Iraque, 2003 – Narrativas pessoais
”. Não há referência a discurso
jornalístico.
Uma outra observação que pode ser feita é em relação aos títulos
dos textos que, pensamos, refletem a mudança da cena englobante. No DBJ os
títulos vêm em forma de manchetes, o que dentro do discurso jornalístico tem
características específicas tais como: produzem um efeito de instantaneidade da
informação, obedecem a regularidades impostas pelo jornal, devem atrair a
atenção do leitor, entre outras. De acordo com Souza (2000:06) os títulos, que
constituem o peritexto jornalístico, têm a seguinte função:
“O peritexto jornalístico desempenha um papel comunicacional
muito importante na imprensa de hoje. Ao mesmo tempo em
que serve para deter o olhar do leitor, para orientar sua leitura
num determinado sentido, serve também para constituir a
imagem da marca de um jornal, sua face mais típica e
reconhecível.”
69
69
Tradução nossa
192
Como se pode observar a partir da citação acima, existem várias implicações em
uma manchete e elas vão estar refletidas também no título do texto selecionado
no
corpus
01: “Q
uando bigode vale mais que mulher
”. Na nossa opinião, este
título produz um efeito lúdico e demonstra bom humor por parte do autor, fatos
estes que seduzem o leitor e fazem com este último empreenda a leitura de
todo o texto a fim de descobrir quando isso acontece, ou seja: bigode valer
mais que mulher.
Já no DBL, os títulos não são atribuídos seguindo as mesmas
restrições impostas pelo jornal. Observa-se que ora podem obedecer à forma
clássica de se intitular, ou seja, síntese do que o texto diz [
Os sons da guerra
(p.38),V
ivendo sob bombas
(p.44), F
uga de Bagdá
(p.99), etc]; ora podem ser
o resultado de impressões pessoais, como, por exemplo, o título do
corpus
02:
O
mentiroso
[ e ainda: T
udo por um toblerone
(p.20), O
s loucos e seus
banheiros
(p.24), A
liás, onde estão as mulheres
?(p.63) e assim por diante]. A
nosso ver, o título “o mentiroso” produziria um juízo de valor que o discurso
jornalístico não comportaria, ou, se o fizesse, isso seria de forma mais
protocolar, mais institucionalizada, já que tal ato poderia ser visto como uma
acusação passível de sanções. Já na cena englobante memorialística, o título
acima citado é mais aceitável, pois não se trata mais de uma filiação à
instituição «Jornal», mas sim de um jornalista que não está mais sob as
193
mesmas condições restritivas anteriormente descritas e que narra em um livro
fatos dos quais foi testemunha.
Na nossa opinião, no DBL, os títulos perdem a premência de se
deter o olhar do leitor, ou pelo menos, a atração exercida pelo título não está no
mesmo patamar daquela exercida pelo jornal; Em outros termos, o títulos têm
funções diferentes tanto no livro quanto no jornal. É evidente que o livro
também possui suas qualidades sedutoras, mas tal sedução se dá por vários
outros meios como: forma de abordar o assunto, aspecto gráfico, ilustrações,
qualidade do papel, capa etc. De alguma maneira, o texto inserido em um jornal
“concorre” com os outros textos presentes não só na mesma página, mas
também no exemplar do jornal como um todo; já no caso do livro, essa
“disputa” inicial não é necessária. Assim, a cena englobante do jornal exigiria
uma maior sedução de leitura devido a um grande número de textos publicados
em um mesmo espaço e, nesse sentido, a cena englobante do livro seria menos
complexa. É bem verdade que existe “concorrência” entre jornais de mesma
linha editorial, entre livros que tratam do mesmo tema e assim por diante.
Nesse caso, pesamos que o assunto não concerne mais à cena englobante e
que seria um aspecto a ser tratado pela cenografia, cujo conceito será abordado
no item 8.2.3 deste texto.
194
8.2.2 – A cena genérica
Na perspectiva teórica da cena de enunciação, reconhecer um tipo de
discurso não é suficiente para que se tenha acesso ao funcionamento das
atividades verbais, já que um tipo pode ter várias subdivisões. Como exemplo,
citamos o discurso jornalístico que pode se dividir em: notícia, reportagem,
editorial, artigo, crítica, entre outros. É dessa diversidade que se torna
necessário a especificação de uma outra cena, esta última assim determinada
por Maingueneau (2002:516):
“A cena genérica é definida pelos gêneros de discursos
particulares. De fato, cada gênero de discurso implica em uma
cena específica: papéis para os seus parceiros, circunstâncias
(em particular um modo de inscrição no espaço e no tempo),
um suporte material, um modo de circulação, uma finalidade,
etc.”
Em se tratando do DBJ, a cena genérica pode ser identificada
como “diário”. Vale dizer que o referido gênero pode se subdividir em vários
subgêneros: diário íntimo, diário de bordo, diário de viagem, diário comercial,
diário de obras, diário de guerra, diário de classe, entre outros. De uma maneira
geral, pode-se pensar que o referido gênero poderia ter as seguintes
regularidades: ser um relato cotidiano de atividades; ser escrito
simultaneamente aos eventos e, por isso, possuir uma datação mais ou menos
195
precisa; poder conter percepções subjetivas ou objetivas de acordo com o
subgênero no qual está inscrito (diário íntimo, no primeiro caso e diário de
bordo, no segundo) etc.
Parece-nos que, no
corpus
em questão, a composição da cena
genérica é feita por um processo de mixagem de subgêneros. Ao nosso ver, a
mixagem
70
ocorre quando há uma simples junção de gêneros ou de subgêneros.
Observa-se que nesses casos não haveria, necessariamente, uma mudança nas
restrições do contato de comunicação. No DBJ é possível perceber o
agrupamento de pelo menos três subgêneros que seriam: o diário íntimo, o
diário de guerra e o diário de viagem. No caso em questão, haveria somente a
união de três procedimentos discursivos para auxiliar a construção do texto. As
restrições impostas pelos subgêneros não seriam “desrespeitadas”, ou seja, o
contrato de comunicação não é mudado. A seguir faremos algumas ilustrações
sobre o que acabamos de mencionar.
Pode-se perceber no DBJ traços de
diário íntimo
: há uma inclusão
da vivência particular do jornalista, embora tais ocorrências não sejam muito
numerosas: “
Os jornalistas acabávamos de deixar a recém-destruída sede ao
lado da Torre Saddam na tarde de ontem quando algo estourou ao lado do
70
Termo utilizado pela Profa. Dra. Ida Lúcia Machado na disciplina:
Seminário de Tópico
Variável em Análise do Discurso: Gêneros trangressivos
. Pós-graduação em Estudos Lingüísticos
– Faculdade de Letras/UFMG, segundo semestre de 2003
196
ônibus
71
”; “
Há hoje em dia seis brasileiros oficialmente no Iraque. Os dois acima
assinados
(...)
72
”ou ainda, “
Some a isso as bombas, que continuam caindo, o
ar, que continua irrespirável e seco, e a água, que sai suja das torneiras e deixa
todos
com a cara e o cabelo do Taleban americano quando este foi capturado, e
eis o quadro geral do jornalista médio
em Bagdá.
73
” (grifos nossos) Também
são descritas dificuldades para se dormir e para se fazer refeições, fatos estes
que, a nosso ver, estariam mais próximos de serem fatos da vida privada do
que constituírem fatos jornalísticos.
Por se tratar de uma guerra, é previsível que se tenha também um
pouco de
diário de guerra,
porém, esta modalidade não chega a ser
dominante
74
. Citamos somente um exemplo: “
A área em que se encontra o
ministério [da informação] foi uma das mais visadas pelas forças anglo-
americanas (...) e voltou a ser atacada no começo da semana. Próximos do local
estão pelo menos dois palácios presidenciais, um já atingido, e a sede do
escritório de segurança da região, também atingida
75
.”
E, por fim, o aspecto predominante, na nossa opinião, seria o
diário de viagem
. A estrutura fragmentada do texto possibilita a abordagem de
71
Folha de São Paulo, 29/03/2003, coluna: Diário de Bagdá, p. A19
72
Cf. Anexo,
corpus
1
73
Folha de São Paulo, 27/03/2003, coluna: Diário de Bagdá, p. A19
74
De acordo com DÁVILA (2003:44), não era esse o objetivo da coluna: “É da resignação do
povo que nos veio a idéia da cobertura da guerra do ponto de vista dos bombardeados.
Julgamos que daí virão as melhores histórias, justamente do aspecto menos coberto pela
imprensa internacional, especialmente a americana, mais preocupada com estratégias militares,
sofisticação de armamentos e o “quem é quem” do regime. Diário de Bagdá, seção diária e
sugerida pela Folha será conseqüência natural desta decisão.”
75
Folha de São Paulo, 27/03/2003, coluna: Diário de Bagdá, p. A19
197
vários temas: a maneira de viver dos bagdalis, seus valores religiosos e morais,
seus costumes, o aspecto da cidade sucessivamente bombardeada, entre
outros. Vejamos alguns exemplos: “
Cada iraquiano pode casar legalmente com
até quatro mulheres. A maioria da população masculina urbana tem uma só,
não por ocidentalização ou pudor, mas por falta de dinheiro mesmo. Os homens
de classe média geralmente têm duas. Três ou quatro só os membros da elite
ou do governo, o que quase sempre é a mesma coisa
76
”;
Mas mais do que
dinheiro, poder e mulheres, o que o iraquiano inveja mesmo é um bom
bigode
77
” e “(...)
A parte da anatomia feminina mais desejável, segundo nos
dizem os homens, é o antebraço
78
.”
Em termos dos papéis desempenhados pelos parceiros da troca
linguageira, encontramos, de um lado, o jornalista, enviado a Bagdá, e que
deve informar sobre o que se passa na referida cidade durante o conflito entre
as forças iraquianas e aquelas anglo-americanas; e de outro, temos o leitor da
Folha de São Paulo que tem interesse em ser informado sobre o desenrolar do
supracitado conflito.
É possível perceber uma regularidade na publicação do diário que
naquele momento coincidia com a periodicidade de circulação do jornal.
Observa-se uma concomitância entre a escritura do diário e o desenrolar da
guerra: o jornalista estava
in loco
enquanto escrevia seu texto. De certa forma,
76
Cf. Anexo,
corpus
1
77
Cf. Anexo,
corpus
1
78
Folha de São Paulo, 29/03/2003, coluna: Diário de Bagdá, p. A19
198
a temporalidade presente no diário corresponde factualmente à temporalidade
vivida pelo jornalista, ou seja, há efetivamente um efeito de “aqui e agora”. Esta
temporalidade também era compartilhada pelos leitores e na proporção em que
os eventos se sucediam, havia a atualização dos fatos através dos textos
publicados com um “atraso” temporal não muito significativo. Assim sendo,
embora tenha havido uma mixagem de subgêneros, a cena genérica continua
sendo “diário” e as restrições impostas pelo contrato são preservadas.
Em uma primeira análise, poderíamos dizer que o DBL também
estaria inserido na cena genérica “diário” e que seria um misto de diário íntimo,
diário de guerra e diário de viagem. O título do livro fazendo referência à coluna
publicada no jornal poderia ser um indicativo de tal semelhança. No entanto,
quando observamos alguns dados, podemos ver que existem alterações em
relação ao DBJ.
Parece-nos que a primeira grande diferença entre DBJ e DBL é o
fato de que o primeiro é escrito simultaneamente ao evento e o segundo é uma
reorganização do primeiro. Assim sendo, há uma perda do efeito de
temporalidade e da simultaneidade da narração: os fatos ocorridos na guerra já
são de conhecimento do leitor do livro, mesmo que este último não tenha lido a
coluna na época em que era publicada no jornal. O acesso a essa informação
pode ter sido proveniente de diferentes veículos de comunicação tais como:
canais de televisão, outros jornais, revistas, emissoras de rádio, internete...
199
A seguir, discorreremos mais detalhadamente sobre alguns itens
que julgamos relevantes para a compreensão do que acabamos de dizer:
i.
Datas
– são apagadas e substituídas pelo que vamos denominar uma
contagem neutra (dia 01, dia 02, dia 03...) pois não se refere
pontualmente a uma data como no caso do DBJ.
ii.
Temas
– no DBJ eram expostos de forma aleatória e pareciam refletir a
pluralidade de eventos cotidianos, ou, em outros termos: o diário era a
“transcrição” dos vários acontecimentos de um dia. Já no DBL, os textos
anteriormente publicados no jornal são reagrupados por assunto e estão
dispostos em seções não datadas. Aqui ocorre o movimento contrário:
vários eventos tematicamente lineares são reunidos em um só texto. Se,
de uma parte, temos a fragmentação e a diversidade, de outra, temos a
unidade e a pontualidade temática. Para exemplificar, vamos citar a
abordagem que é feita sobre a representação do bigode. No
corpus
01,
a descrição do valor do bigode se dá em função de uma caracterização
cultural do povo iraquiano e também para mostrar que tal valor cultural é
tão arraigado que está até mesmo inserido em expressões lingüísticas.
Outros temas também são abordados no mesmo texto: casamento,
nomes, sobrenomes e carros. No
corpus
02, a menção ao valor do
bigode aparece em função da descrição que é feita do então Ministro da
Informação e Cultura do Iraque Al-Sahaf, ou mais especificamente, em
200
razão do fato do referido ministro não possuí-lo, como podemos ver na
citação: “
Para começar,
[Al-Sahaf]
é o único ministro-general (e são
todos ministros e generais) que não usa bigode. No ritualístico mundo
árabe-mulçumano, o fato equivale a um executivo de uma multinacional
americana pintar o cabelo de verde
”. Há uma unidade temática que gira
em torno da figura de Al-Sahaf e nenhum outro assunto é abordado. Se
seguirmos essa linha de pensamento, pode-se afirmar que não é mais o
relato sucessivo de um cotidiano visto de diversas perspectivas que está
em questão, mas a narração de um evento em função de um momento
da vida de uma pessoa. Em outras palavras, não estamos mais na esfera
do “diário” e sim, na esfera da “narrativa pessoal”.
iii.
Tempo e espaço
– seria onde a diferença entre DBJ e DBL estaria mais
acentuada. Citemos alguns exemplos:
a.
O uso dos tempos verbais
- O presente do indicativo é
predominante no texto, o que pode sugerir um efeito de “diário”
que está sendo escrito simultaneamente aos acontecimentos. No
entanto, há algumas referências temporais que destoam e
demonstram um deslocamento no tempo que não seria possível,
ou, em outras palavras, não seria acessível, para alguém que
estivesse vivendo no “presente”. Vamos nos valer de dois
exemplos DBL-02:
“(...)
termo que virará mania nas ruas
201
iraquianas
” (parag. 08) e “(...)
entrarão
para a história como a
maior negação sistemática da realidade
” (parag. 09) [grifos
nossos]. Os verbos grifados encontram-se no futuro do presente
do indicativo, mas de um ponto de vista do aspecto verbal, eles
têm valor de passado. Nesse caso, o autor teve acesso a um
futuro que já se tornou passado, logo, para quem escreve um
diário no presente, trata-se de uma inadequação. Somente alguém
que tivesse o dom da vidência (se isso realmente existe) poderia
ter tal acesso.
b. R
eferência espaço-temporal –
Além do deslocamento indicado pelo
uso dos tempos verbais, podemos também detectar referências
que descaracterizam o gênero diário (DBL-02):
No fim da guerra”
(parag. 05), “N
a volta ao Brasil”
(parag. 13). Tais referências
relacionadas ao uso do presente do indicativo também podem
causar estranheza ao leitor e demonstram um deslocamento no
tempo e no espaço. As restrições impostas pelo gênero diário não
seriam tão flexíveis a ponto de suportar o uso do presente do
indicativo e do futuro do presente do indicativo com valor de
passado. Nesse caso, parece-nos que se confirma a nossa
afirmação anterior, endossada pela cena englobante, de que se
trata de uma narração de memórias e não da descrição de fatos
202
vividos mais ou menos simultaneamente à escritura, como requer
o diário. É certo que o gênero diário permite o relato de memórias,
mas há a restrição de que estas tenham um valor pretérito, a
presença do futuro do presente em um diário pode significar seja
uma promessa, seja uma suposição do que vai acontecer; jamais a
certeza do acontecido.
c.
Dêiticos
– Na frase “
O bigode é um adereço muito importante por
aqui
”(parag. 03) [grifo nosso] há uma indicação dêitica que tenta
criar um efeito de presença do autor em Bagdá, seria ainda um
vestígio do texto publicado no jornal. No entanto, a frase “
Na
volta ao Brasil
” (parag. 13) quebra este efeito.
Parece-nos que ao adaptar a coluna
Diário de Bagdá
para o
formato em livro, o autor tentou preservar algumas marcas lingüísticas que
pudessem fazer referência ao gênero diário anteriormente publicado. No
entanto, há uma mudança no estatuto dos textos ao serem passados para o
livro e o gênero diário, ao nosso ver, é desfigurado. O deslocamento no tempo e
no espaço que são operados no DBL estariam coerentes com as restrições
impostas pelo gênero narrativas pessoais.
Assim sendo, se no DBJ havia uma mixagem de subgêneros, no
DBL vai se operar uma transgressão do gênero diário. De acordo com
203
CHARAUDEAU (2001), a
transgressão
ocorre seguindo o seguinte esquema:
Contrato 1Æ individualização Æ transgressão ou variante Æ contrato 2
”.
Seguindo este raciocínio temos: o contrato 1 que regula as restrições impostas
pelo gênero diário já descritas acima; a individualização que se caracteriza
pela adaptação do referido diário, pelo autor, para formato em livro; a
transgressão
que representa a ruptura da localização espaço-temporal
existente no diário publicado no jornal; e, finalmente, o contrato 2, que regula
as novas restrições impostas pelo gênero narrativa pessoal. Dessa forma, a cena
genérica sofre influência dessa transgressão e passa a ser outra, a das
narrativas pessoais.
Os parceiros da troca linguageira que interagem no DBL podem ser
assim definidos: De um lado, temos um jornalista que fez a cobertura da Guerra
do Iraque e que está publicando um livro sobre sua experiência a partir de
textos já publicados no jornal
Folha de São Paulo
. De outro lado, podemos ter,
ao menos, dois tipos de leitores: (a) um leitor do supracitado jornal que
acompanhou a coluna “Diário de Bagdá” e que gostaria de tê-la em livro como
forma de documento, ou por uma outra razão qualquer; (b) um leitor que não
leu a referida coluna, mas que gostaria de ler o livro. Em ambos os casos,
pressupõe-se que estes leitores já tenham conhecimento do que foi, em seu
início, a Guerra do Iraque e deduzam, assim, que o livro não tenha mais a
204
função jornalística de «informar», e sim a função de complementar as
informações desse leitor.
8.2.3 - Cenografia
De acordo com Maingueneau (2002: 516) “
a cenografia não é imposta
pelo tipo ou pelo gênero de discurso, mas instituída pelo próprio discurso
.”
79
Nesta perspectiva, a cenografia, que ocuparia um primeiro plano, é responsável
por definir em qual quadro a cena genérica e a cena englobante, situadas num
segundo plano, devem ser compreendidas.
“Assim, a cenografia implica em um processo circular. Desde a
sua emergência, a enunciação do texto supõe uma certa cena
que, de fato, se valida progressivamente através desta mesma
enunciação. Desse modo, a cenografia aparece, ao mesmo
tempo, como ponto de origem do discurso e também o que o
engendra; ela legitima um enunciado que, em contrapartida,
deve legitimá-la, deve estabelecer que esta cenografia da qual
vem a fala é precisamente
a
cenografia requerida para narrar
uma história, denunciar uma injustiça, apresentar sua
candidatura a uma eleição etc.”
80
Maingueneau (2002: 516)
Como pode ser observado na citação acima, é possível dizer que a
cenografia articula a situação na qual as produções lingüísticas devem ser
79
Tradução nossa.
80
Tradução nossa
205
interpretadas. Em se tratando do DBJ e do DBL, parece-nos que a cenografia
requerida seria a mesma nos dois casos: uma visão sobre a guerra do Iraque de
2003, ou, em outras palavras: um relato do ponto de vista dos bombardeados
81
.
Embora os textos tenham suas diferenças do ponto de vista da cena genérica e
da cena englobante, ambos se referiam ao mesmo evento. Para que se possa
entender a cena genérica e a cena englobante é necessário que se entenda o
que significou a Guerra do Iraque de 2003. Tudo isso mostra que uma mesma
cenografia pode gerar cenas englobantes e genéricas diversas.
8. 3- Gêneros, diários e prefácios
Parece-nos que os
corpora
acima comentados podem indicar a
fragilidade das classificações que, por vezes, se tenta fazer dos gêneros. Atribuir
uma etiqueta genérica a uma produção discursiva é algo bem mais complexo,
pois não se trata de, simplesmente, estabelecer a genericidade enumerando
“regularidades” e “variações” de tipologias textuais. Não é somente uma
81
Pode-se argumentar que os jornalistas não eram os “bombardeados” por não serem
iraquianos. A nosso ver, eles também seriam “bombardeados” pelas seguintes razões: (a) eles
estavam presentes no conflito; (b) o hotel Palestine no qual estavam hospedados vários
jornalistas foi bombardeado; (c) o Ministério da Informação, que era o local onde os jornalistas
se reuniam todos os dias, era alvo militar e, por fim, (d) de acordo com texto publicado na Folha
de São Paulo em 23 de novembro de 2003, 16 jornalistas morreram ou desapareceram durante
o início do conflito.
206
questão de “arquivar” os textos em determinados compartimentos, o que, a
nosso ver, seria uma solução simplista já que as divisões e os limites entre os
gêneros podem ser bem mais tênues, permeáveis e complexos do que
supomos. Na verdade, os textos são dinâmicos, assim como os indivíduos que
os produzem e as necessidades comunicacionais às quais respondem. Assim
pensando, pode-se afirmar que uma teoria dos gêneros de discurso deve prever
tal mobilidade e possuir um arcabouço teórico que possa adaptar-se a essa
maleabilidade.
Uma mudança, seja nos aspectos lingüísticos, seja nos aspectos
discursivos, seja nos aspectos situacionais, pode fazer com que a cena genérica,
a cena englobante ou a cenografia sofram alterações. É devido a essa influência
que se torna necessário considerar todos os aspectos acima mencionados para
se determinar a genericidade.
Notamos, ao longo deste texto, que a cena genérica, a cena
englobante e a cenografia estão de tal forma amalgamadas que não seria
possível considerá-las separadamente. Se o fizemos, foi por uma razão
puramente didática. No entanto, resta-nos ainda algumas questões: de qual
destes três pontos partimos quando classificamos uma produção lingüística?
Será que partimos de uma visão ascendente – da cena genérica para a
cenografia – ou ao contrário, de uma visão descendente – da cenografia para a
cena genérica? Quando percebemos a mudança entre o DBJ e o DBL estamos
207
levando, primeiramente, qual critério em consideração? Por que percebemos a
mudança nos dois Diários: pela forma de dizer ou por identificar um gênero?
Nesse caso, a cena genérica seria percebida em primeiro lugar ou a cenografia é
que delimitaria a nossa compreensão?
Não podemos fornecer nenhuma resposta neste momento, mas
percebemos que, de alguma forma, cada caso vai ter a sua categorização, a sua
forma de abordagem. De certa maneira, cada época vai estampar a sua própria
especificidade genérica, o que impede que se tenha uma teoria geral e definitiva
sobre os gêneros, ou, em outras palavras: existem tempos em que bigodes
valem mais que mulheres e tempos em que mulheres valem mais que bigodes...
é uma questão de ponto de vista, depende do que cada época quer valorizar.
O leitor deve estar se perguntando: «afinal, qual é a relação entre
o que foi aqui exposto e a ficcionalidade?» Quando percebemos a operação de
mudança de «gênero diário» para «gênero narrativa pessoal» poderíamos
dizer que há uma ficcionalização do valor do gênero. Este último permanece
como uma «etiqueta», mas suas restrições não são validadas pelos dados da
situação de comunicação. A nosso ver, ocorre uma simulação do que seriam as
restrições de um contrato, mas o contrato, em si, não é implementado.
Um outro exemplo a ser citado são os prefácios de
Tutaméia
, obra
de João Guimarães Rosa. Eles possuem a etiqueta «prefácio», mas não seguem
as restrições que o gênero impõe: “Texto preliminar escrito pelo autor ou por
208
outrem e colocado no começo do livro”
82
. Como é possível observar na referida
obra, existem 4 «prefácios», o primeiro obedeceria o critério «preceder o
texto», mas os demais estão inseridos em meio aos contos que compõem o
livro. O teor dos «prefácios» também não segue o que determinaria o gênero:
apresentar o conteúdo da obra, relacioná-la com outras etc. Desta forma,
poderíamos dizer que há uma ficcionalização do gênero e «prefácio» passa a ser
uma etiqueta e não a determinação de um gênero.
8.4- Considerações finais
Poderíamos sintetizar o que foi acima discutido com estas
palavras: a ficcionalidade pode perpassar as restrições que circunscrevem um
gênero. Pensamos que, em tais casos, entraria em ação a ficcionalidade
colaborativa. Os gêneros e a ficcionalidade agem de maneira complementar. Em
alguns casos as restrições genéricas delimitam o campo de ação da
ficcionalidade, mas, por vezes, a ficcionalidade pode ajudar a mascarar um
gênero que foi transformado.
82
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209
ANEXOS
CORPUS 1
QUANDO BIGODE VALE MAIS QUE MULHER
28/03/2003
Autor: SÉRGIO DÁVILA, JUCA VARELLA;
Editoria: MUNDO Página: A20
Edição: São Paulo Mar 28, 2003
Observações: ATAQUE DO IMPÉRIO; SUB-RETRANCA
Vinheta/Chapéu: DIÁRIO DE BAGDÁ
Assuntos Principais: EUA; IRAQUE; COALIZÃO ANGLO-AMERICANA; GUERRA; AÇÃO
MILITAR; COMPORTAMENTO; POPULAÇÃO CIVIL
Cada iraquiano pode casar legalmente com até quatro mulheres. A maioria da
população masculina urbana tem uma só, não por ocidentalização ou pudor, mas por
falta de dinheiro mesmo. Os homens de classe média geralmente têm duas. Três ou
quatro só os membros da elite ou do governo, o que quase sempre é a mesma coisa.
*
Mas mais do que dinheiro, poder e mulheres, o que o iraquiano inveja mesmo é um
bom bigode. Quanto mais basto, bem cortado e cheio, mais hombridade o acessório
natural transmite a seu dono. Quem não tem é considerado imaturo ou contaminado
demais pelos hábitos ocidentais.
*
Os homens que ouvi me ensinam que os fios não podem cair sobre o lábio superior. E
que pintar o cabelo tudo bem, mas pintar o bigode seria de uma gafe inacreditável. E
confirmam: "harabichueba", o popular xingamento árabe que os brasileiros aprenderam
a falar de brincadeira, continua na ativa. Mas a grafia e a pronúncia corretas aqui são
outras.
*
"Harabishuarbek" seria certo, sendo "hara" gíria para fezes e "shuarbe" a tradução de
bigode. "Merda no seu bigode!", xingam os iraquianos.
210
*
Quando querem garantir que vão cumprir uma promessa, dizem "eu corto o meu
bigode!". E quando estão com muita raiva de uma pessoa, gritam "eu amaldiçôo o seu
bigode!", como fez antes da guerra o embaixador do Iraque na ONU falando ao
embaixador do Kuait.
*
Como o chefe, todos os ministros-generais de Saddam Hussein têm bigode. A exceção
é Mohammed Said Al-Sahaf, da Informação. É também o que fala o melhor inglês e, de
longe, o mais irônico e mordaz da turma.
*
Pergunte o nome completo a qualquer iraquiano de mais de 30 anos e ele vai se
atrapalhar de cara. A gagueira temporária não é necessariamente má-fé. Quando
assumiu o poder, Saddam Hussein fez passar uma lei que obrigava as pessoas a
assinar com o nome próprio seguido do nome próprio do pai seguido do do avô, e não
mais da maneira tradicional, que era nome próprio + nome da tribo/clã/vila de origem.
*
O que o motivou foi o alto número de pessoas no alto escalão de seu governo que
traziam o sobrenome Tikritis, ou seja, originário da vila de Tikrit, no norte.
*
Tikrit é a cidade natal de Saddam, onde fica sua tribo.
*
Há hoje em dia seis brasileiros oficialmente no Iraque. Os dois acima assinados, um
funcionário do Itamaraty que cuida da sede da ex-embaixada do país, hoje desativada,
duas senhoras que moram há muito tempo por aqui, casaram-se com iraquianos e
fogem da imprensa e o fotógrafo do "New York Times", que nasceu em São Paulo, mas
deixou o Brasil antes de aprender a falar.
*
Ainda os carros: os ministros-generais iraquianos fazem questão de dirigir seus próprios
carros. Os assessores vão no banco de trás ou ao lado, dependendo da graduação. Ser
conduzido não é visto com bons olhos.
*
211
O modelo escolhido depende do cargo ocupado. Para os ministros, o Lumina da
Chevrolet, geralmente branco, ou os tradicionais BMW e Mercedes; para as altas
patentes militares, os jipes Land Cruiser da Toyota.
*
Detalhe: todos são equipados com quatro tapetinhos persas, no lugar do tradicional de
borracha.
*
Ahmed e Mohammed são o equivalente de José e João de Bagdá. Em toda a roda tem
pelo menos um com este nome.
CORPUS 2
FONTE: DÁVILA, Sérgio.
Diário de Bagdá: a guerra do Iraque segundo os
bombardeados
(Imagens: Juca Varella). São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 82-85
DIA 14
[O MENTIROSO]
Assim como o povo iraquiano, os jornalistas vivemos sob controle total do
governo. Em nossa caso, o Grande Irmão está personificado na figura do titular do
Ministério da Informação e Cultura, Mohammed Said al-Sahaf, uma das figuras mais
pitorescas e interessantes do círculo de Sadam Hussein.
Para começar, é o único ministro-general (e são todos ministros
e
generais) que
não usa bigode. No ritualístico mundo árabe-mulçumano, o fato equivale a um
executivo de uma multinacional americana pintar o cabelo de verde.
O bigode é um adereço muito importante por aqui. Significa que o menino
passou a ser homem e que, quanto mais farfalhudo e bem cuidado o acessório, mais
bem-sucedido é esse homem. Os iraquianos não se vexam de pintar os cabelos nem de
se submeterem a processos rudimentares de entrelaçamento e implante de cabelo, mas
o bigode é intocável. Pintá-lo seria o fim social de seu possuidor.
Deve estar sempre bem aparado, sem que os fios mais longos alcancem o lábio
superior, é protagonista dos principais xingamentos. “Harabichueba”, por exemplo,
popularizado no Brasil pela extensa colônia sírio-libanesa,é na verdade
harabishuarbek
,
em que
hara
é gíria egípcia para “merda” e
shuarbe
é “bigode”.
Além de merda no seu bigode, os iraquianos amaldiçoam os fios subnasais do
inimigo, como fez antes da guerra o embaixador na ONU, Mohammed al-Douri, falando
ao embaixador do Kwait. (No fim da guerra, Al-Douri seria o autor de outra frase
célebre, quando disse em Nova York “O jogo acabou” ). E garantem uma promessa
gritando: “Pelos fios do meu bigode!”
212
Por isso, e por falar um impecável inglês britânico, Al-Sahaf é considerado o
mais ocidental dos ministros. Suas entrevistas coletivas, que acontecem pelo menos
uma vez por dia num espaço contíguo ao do ministério, são concorridíssimas. Nelas,
atrás de um pequeno púlpito, ele dá as últimas informações militares e lança
expressões que, no dia seguinte, estarão nos jornais do mundo inteiro. Chama
jornalista de
my dear
(termo que, aliás, virou moda entre as autoridades iraquianas,
por ser o mais próximo da árabe
habibi
, “querido”, que usam para pontuar cada frase)
e dá preferência aos mais antigos (que conhece desde a Guerra do Golfo, de 1991) e
às mulheres.
Sempre de uniforme verde-oliva e boina preta, à Che Guevara, ele
constantemente acaricia o cabo cromado de sua pistola automática enquanto ajeita os
óculos, que corrigem a sua vesgueira crônica. Sahaf causa espécie com sua voz de
barítono, que ecoa pelas paredes da pequena sala de entrevistas, interrompida ao meio
por uma escada espanhola.
Só se refere a George W. Bush como “Bush Júnior”, termo que virará mania nas
ruas iraquianas: muitos entrevistados nossos só chamarão o presidente dos EUA assim.
O ministro classifica a coalisão de “gangue de bastardos”; os soldados invasores são
“infiéis sanguinários” e os EUA “a superpotência de vilões” ou (o melhor de todos) “a
superpotência de Al Capone”.
Suas freqüentes e veementes negativas do avanço das tropas inimigas em
território iraquiano, sempre repetindo que o “glorioso Exército iraquiano” está
“esmagando a cabeça da serpente no deserto”, entrarão para a história como a maior
negação sistemática da realidade. (Não que seu colega do outro lado do Atlântico, o
secretário de Defesa Donald Rumsfeld, seja muito mais sincero; afinal, onde estão as
armas de destruição de massa iraquianas que motivaram os EUA a invadirem o país em
primeiro lugar?)
Indagado já no segundo dia de guerra se tinha se avistado com seu chefe
ultimamente (quando os rumores davam conta de que Sadam Hussein podia ter sido
morto no primeiro ataque da coalizão), Said al-Sahaf, com fleuma e ironia, respondeu
apenas isso: “Não seja ridículo,
my dear
. Agora me pergunte algo sério, por favor”.
O ministério sob o seu comando é o que zela pela propaganda e controla o fluxo
de informações de todo o regime. É da sede plantada entre os hotéis Al-Rasheed e Al-
Mansur (não por acaso pontos tradicionais de repouso dos jornalistas estrangeiros
antes da guerra) que saem todos os jornais e revistas produzidos no Iraque, todos
estatais e previamente censurados. Toda manifestação cultural também precisa ter a
aprovação prévia dos barnabés de seu ministério, desde peças até exposições,
passando pelos programas de TV e de rádio, pelos livros e pelos (ainda raríssimos)
sites locais.
Pouco se sabia de Sahaf antes deste conflito. Nas guerras anteriores (a Irã-
Iraque nos anos 80, e a do Golfo em 1991), quem ganhou a mídia internacional como
locutor do regime com o Ocidente foi o vice-primeiro-ministro perene Tareq Aziz, outra
personalidade destoante da cúpula, por ser o único não-mulçumano.
Na volta para o Brasil, percebemos que o tonitruante Al-Sahaf virou figura
cult
,
com direito a diversos sites humorísticos em sua homenagem. Mas, segundo
reportagens de junho, o ex-ministro não estava rindo por último: foi encontrado
213
escondido numa casa da periferia de Bagdá, vivendo na miséria, deprimido e temeroso
de perder a vida. Com os cabelos grisalhos: Al-Sahaf não usa mais tintura.
214
PARTE III:
POR UMA INTEGRAÇÃO ENTRE ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS E ESTUDOS LITERÁRIOS
215
09
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS & ESTUDOS
LITERÁRIOS: BEM ME QUERES, MAL ME QUERES?
A finalidade deste capítulo é fazer algumas considerações sobre a
relação entre Estudos Literários e Estudos Lingüísticos. Na verdade, aqui
retomamos uma questão que foi discutida na Parte I do presente estudo: “Por
que a ficcionalidade não seria vista como um fenômeno da comunicação em
geral?
Dissemos, num determinado momento, que veríamos a questão da
ficcionalidade de um ponto de vista das Belas-letras e a reflexão que neste
instante exporemos, irá em tal direção. Temos a impressão de que talvez
estejamos tão emaranhados no fio da História
83
e tal visão esteja tão arraigada
nas Faculdades de Letras que o reconhecimento da ficcionalidade - como
fenômeno da comunicação em geral, já tenha se tornado uma questão
burocrática e departamental.
Assim, resolvemos fazer um estudo de como Estudos Lingüísticos e
Estudos Literários abordam o tema. Desta maneira: a exposição do presente
capítulo será feita em duas etapas complementares: num primeiro momento,
83
Cf. Capítulo 3 da presente tese.
216
falaremos de algumas vertentes teóricas adotadas pelos estudos lingüísticos e
literários em épocas distintas e também trataremos de alguns pontos de
confluência e de divergência entre estas duas áreas do saber; num segundo
momento, faremos algumas reflexões sobre análise do discurso e poesia a partir
de algumas breves considerações do
soneto nº 09
de Camões.
9.1 - Entre o bem querer e o mal querer
Tomando por base Ducrot & Schaeffer (1995:88), pode-se
considerar que os Estudos Literários tenham surgido com a
Poética
de
Aristóteles onde são esboçadas considerações sobre gênero, sobre estrutura e
composição das obras que lhe eram contemporâneas. Num segundo momento,
já na era cristã, tais estudos foram consolidados por uma abordagem Retórica,
o que permaneceu até a renascença. Em seguida adotou-se uma perspectiva
hermenêutica da obra para se chegar, então, ao paradigma romântico.
Conforme os autores acima citados, atualmente, os estudos literários seguem
basicamente três orientações: análise hisrica e institucional, teorias da leitura
e da recepção e as disciplinas interpretativas (pragmática, intencionalidade...).
217
Na perspectiva de Ducrot & Schaeffer (1995:17), a teoria
lingüística nos moldes hoje conhecidos teria surgido no século XVII com a
Grammaire de Port-Royal
. Esta, por sua vez, tinha como objetivo “
enunciar um
conjunto de princípios aos quais obedecem todas as línguas e explicar, a partir
deles, os usos específicos da línguas
”.
De acordo com os teóricos acima citados, no âmbito das
discussões geradas pela
Grammaire de Port-Royal
, surge, de um lado, a questão
da representação, ou seja, “
a língua tem por função representar os
pensamentos”
e, de outro lado, a questão da categorização, ou seja, algumas
palavras significam os objetos de pensamento (nomes e os adjetivos) e outras
significam a forma ou a maneira de nossos pensamentos (verbos). E é do
seguimento deste debate que surgiu um outro preceito:
(...) existe uma ordem das palavras (aquela que coloca o
nome antes do adjetivo, o sujeito antes do verbo) que é natural
e universal porque para compreender a atribuição de uma
propriedade a um objeto, é preciso representar para si mesmo o
objeto e somente em seguida é possível afirmar alguma coisa
sobre ele.”
Ducrot & Schaeffer (1995:20)
Este postulado, de acordo com os referidos teóricos, colocaria a Teoria das
Figuras como indispensável a todas as gramáticas gerais. No entanto, naquela
época, figuras retóricas eram consideradas uma maneira de falar artificial e
imprópria, usadas por razões de elegância e expressividade e para serem
218
compreendidas deveria-se restabelecer a maneira de falar natural para que a
frase fosse entendida.
Parece-nos, então, que este seria o primeiro momento de contato
entre Teorias Lingüísticas e Literárias. Dessa forma, quando a Retórica é usada
para explicar fenômenos semânticos, a lingüística de então está se valendo de
toda uma longa tradição de análise usada para o texto literário. Com a
retomada da Retórica, a noção de figura é estendida à linguagem cotidiana
como podemos ver na citação abaixo extraída de Ducrot & Schaeffer (1995:20):
“(...) de acordo com as gramáticas gerais encontramos tais
figuras não somente na literatura, mas na língua em si: isso se
dá porque a língua, destinada primitivamente à representar o
pensamento puro, encontra-se, de fato, a serviço das paixões.”
Neste primeiro momento é possível observar um pequeno esboço de conflito
entre: uso
primitivo
da língua,
pensamento puro
e uso
patético
da língua. Mais
tarde, em Austin (1975:104) podemos observar a classificação de
uso
parasitário
– para enunciados ficcionais- e uso
não parasitário
da língua – para
enunciados factuais. No nosso entender, tais classificações estariam dissociando
os dois campos do saber.
Assim, ao pensar na relação entre estudos literários e estudos
lingüísticos de um ponto de vista diacrônico, sempre me vem à mente a imagem
de alguém que arranca, numa atitude sincopada e cheia de apreensão, as
219
pétalas de uma margarida e diz: bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal
me quer.... e por fim sobra aquele caule com o núcleo amarelo, que o impele a
tomar uma outra flor e continuar viciosamente a série de questões.
Nesse impasse entre bem querer e mal querer, parece-nos que
estas duas áreas do saber têm dois pontos em comum: o primeiro, é o fato de
que ambas possuem o mesmo objeto: a linguagem. De um lado, temos a
lingüística estudando o uso cotidiano da língua e, de outro, vemos a Teoria e a
Crítica Literárias discutindo o uso artístico da linguagem. No nosso entender, o
objeto seria o mesmo porque a língua usada no discurso ficcional seria a mesma
que seria empregada no discurso factual. Nesta perspectiva, o que diferencia
um estatuto do outro seria um contrato de comunicação. Assim, não haveria
«especificidades do texto literário» de um ponto de vista enunciativo conforme
postulam alguns autores, dentre eles Hamburger (1986). A segunda
convergência é de ordem física, ou seja, quase sempre os departamentos de
Lingüística e Literatura estão dividindo o mesmo espaço físico nas
Universidades. Mas nem mesmo esta proximidade física e o fato de
compartilharem o mesmo objeto podem gerar um consenso duradouro entre os
Estudos Lingüísticos e os Estudos Literários.
No rol das mazelas históricas, podemos enumerar dois pontos de
divergência:
220
Para a Lingüística, em determinadas épocas, a análise dos textos
literários era tabu. Tal fato, pensamos, dava-se porque, de fato, o escopo
de algumas teorias não era suficiente para se estudar alguns casos.
Como exemplo, podemos citar: análises meramente lexicográficas,
teorias com o objetivo descritivista da língua, como a Gerativista, que
permanecem num nível lingüístico, não chegando a um patamar
discursivo.
Uma outra questão a ser apontada é a ficcionalidade nos textos, que era
um dado de difícil teorização e também de aceitação. Para ilustrar tal
dificuldade, pode-se citar teorias lingüísticas que tinham por base a
Lógica, logo, o valor de verdade dos enunciados seria imprescindível para
a execução da análise. Então surgia uma questão paradoxal: como lidar
com enunciados de verdade em textos de ficção – termo do qual uma
das acepções é fingimento
84
?
No entanto, há um dado curioso nesta relação: se, de um lado, as
Teorias Lingüísticas não dispunham de muitas ferramentas para fazer um
trabalho descritivo do texto literário, por outro, fragmentos de obras cânonicas
por vezes figuraram nas gramáticas como exemplo de “bem escrever” e de total
domínio do uso das regras impostas pela norma culta.
84
Vale dizer que nem mesmo a teoria e a crítica literárias conseguiram estabelecer de forma
efetiva o que caracteriza um discurso ficcional.
221
Do ponto de vista da Teoria e da Crítica Literárias, parece-nos que
a Lingüística, em determinados momentos, foi considerada a prima pobre da
família. Ancoradas em uma perspectiva romântica, a crítica e a teoria seriam
melhores porque lidariam com arte, com a expressão mais elevada do
sentimento humano e não com essa «reles linguagem do cotidiano, sem
criatividade nem inventividade, esse amontoado de objetos, sujeitos e
complementos». Um outro argumento era o de que a Lingüística, com sua
rigidez metodológica, impedia uma interpretação mais livre da obra literária.
Mas, no nosso ponto de visa, a ausência de metodologia nos Estudos Literários
acabou fazendo com que as análises dos textos se perdessem em uma certa
superficialidade, sem uma ancoragem lingüístico-discursiva que pudesse
comprovar o que se argumentava, e de certa forma, se tornaram análises
impressionistas.
Contudo, felizmente, não existem somente mazelas no
relacionamento entre Estudos Literários e Estudos Lingüísticos. Existem
momentos em que, fortuitamente, resta aquela pétala do bem querer e
podemos ver que as duas disciplinas poderiam andar juntas, estabelecer uma
cooperação fraternal, enfim.
Em se tratando de Estudos Literários, podemos observar algumas
contribuições para os estudos sobre a linguagem: a Teoria dos Gêneros, a
Polifonia e demais formulações dos Formalistas Russos, a Narratologia, dentre
222
outros. Entre as contribuições dos estudos lingüísticos podemos citar: Teoria da
Enunciação, Pragmática, Teorias sobre Leitura, Teoria dos Mundos Possíveis e
assim por diante.
Na nossa opinião, foram os Formalistas Russos e os preceitos do
Estruturalismo que conseguiram, enfim, fazer com que as duas disciplinas
tivessem uma melhor relação. Os Estudos Literários ganharam uma metodologia
«científica» de análise e uma ancoragem enunciativa para seus estudos; já a
Lingüística pôde ter uma franca expansão de seus conceitos devido à
pluralidade que o texto literário possui.
Acabado o ciclo estruturalista, estas duas áreas do saber
novamente se distanciaram. Após este divórcio de pelo menos 20 anos,
pensamos que talvez a Análise do Discurso seja uma nova chance de
reconciliação. Parece-nos que algumas Teorias da Análise do Discurso são
exatamente a interseção entre estudos literários e estudos lingüísticos.
Tomando por base a Teoria Semiolingüística de P. Charaudeau (1983) podemos
observar que os fundamentos desta proposta teórica reúnem, de um lado, as
categorias de língua
- onde se inscrevem: teoria da enunciação, Semiologia
Saussureana, outras teorias semânticas, etc; e de outro, as
categorias de
discurso
– que partem de correntes como Narratologia, Teoria Polifônica,
Semiologia, Semiótica, somente para citar algumas influências.
223
A visão acima exposta pode ser respaldada pelo que diz
Maingueneau (2001:01) em uma conferência sobre a identidade da Análise do
Discurso e a didática do texto literário:
"(...) estamos vivendo um período de profunda transformação
(na qual a análise do discurso desempenha um papel essencial)
das relações entre ciências da linguagem e literatura. A didática
da literatura não pode ignorar esta reconfiguração dos estudos
literários; o ensino não é o mesmo de uma época dominada
pela retórica e depois pela filologia: ele será inelutavelmente
modificado em um mundo onde prevalecem as correntes
pragmáticas e a análise do discurso."]
A seguir, faremos algumas breves considerações sobre os possíveis
enfoques que a Análise do Discurso pode dar ao gênero poesia.
9.2 - Leituras possíveis
Não gostaríamos de fazer leituras prescritivas e nem imposições de
nossa linha de pesquisa como a «panacéia» atual, sabemos, pelo que foi acima
citado, que as modas vêm e vão... Nosso objetivo, nesse momento, é
meramente ilustrativo, por isso, vamos nos valer do poema de Camões aqui
transcrito para fazermos algumas considerações.
224
O amor é fogo que arde sem se ver, (A)
É ferida que dói e não se sente; (B)
É um contentamento descontente,(B)
É dor que desatina sem doer;(A)
É um não querer mais que bem querer (A)
É solitário andar por entre a gente; (B)
É nunca contentar-se de contente; (B)
É cuidar que ganha sem se perder; (A)
É querer estar preso por vontade (C)
É servir a quem vence o vencedor (D)
É ter com quem nos mata, lealdade.(C)
Mas como causar pode seu favor (D)
Nos corações humanos amizade (C)
Se tão contrário a si mesmo é o amor (D)
1- Do ponto de vista do
contrato de comunicação
85
, temos um texto com
estatuto ficcional. De um lado, na
instância
da
produção
encontramos:
sujeito comunicante
“Camões”, ser histórico que viveu em Portugal por
volta do séc. XVI e cujas obras fazem parte do cânone literário em língua
portuguesa. Este
sujeito comunicante
, por sua vez, faz a projeção de um
sujeito enunciador
que é a voz que profere o poema. De outro lado,
temos a
instância de recepção
: um
sujeito interpretante
que pode ser
representado por qualquer leitor não importando em que época ele viva.
Há também nesta instância um
sujeito destinatário
, que,
grosso modo
,
abarcaria as possibilidades de leitura que consciente ou
inconscientemente foram apontadas pelo
sujeito enunciador
. No caso
85
Os conceitos aqui utilizados são encontrados em Charaudeau (1983)
225
deste poema, vale dizer que por ser uma obra do séc. XVI é possível que
se estabeleçam várias leituras, pois cada época tem a sua própria
maneira de “ler”as suas produções. Assim, além de fatores históricos,
políticos, sociais, entre outros que poderiam ser levados em conta, há
também o deslocamento temporal que pode constituir um dado para a
análise. Parece-nos que para estabelecer uma análise discursiva deste
poema seria necessário recuperar alguma de suas formas de leitura.
Nesse caso, entendemos que seria preciso considerar a versificação e as
rimas porque na época em que foi escrito era vigente esse tipo de
procedimento, tanto na criação como na análise das obras. Não dizemos
aqui que devamos ver a obras somente da forma que elas eram estudas
numa dada época, mas pensamos que as múltiplas possibilidades de
leitura devem ser acopladas à análise que fazemos hoje. No caso do
poema de Camões, não podemos ignorar a forma – soneto – e nem o
uso das rimas. Então surge a questão: como esses elementos poderiam
servir de instrumentos para o analista? No caso do soneto nº 09 é
possível verificar que em todos os versos cria-se um discurso da definição
do amor como contradição. E este discurso vai também ser marcado na
escolha das rimas que o poeta faz. Nas duas primeiras quadras do poema
são usadas rimas
opostas
(abba) endossando a idéia de que o amor é
contrário a si mesmo. Nos dois tercetos são usadas rimas
alternadas
226
(cdc-dcd), que, na nossa opinião, também refletem as oscilações das
definições dadas sobre o que é o amor. Assim, estes dados formais do
poema endossam o que é proposto pela linguagem. No entanto, outros
pontos devem ser observados e estes dados devem ser somente um dos
itens de complementação da análise.
2- Também a forma
soneto
vai representar uma interdiscursividade entre o
texto de Camões e o soneto
Pace non trovo e non ho da far guerra
de
Petrarca, que na verdade foi quem originou “a discussão” sobre o caráter
contraditório do amor. Ao popularizar o soneto, Petrarca criou também
um discurso sobre o amor que encontrou eco em várias gerações de
poetas e dramaturgos. Nesse percurso feito pelo soneto de Petrarca
podemos observar um movimento que vai do “cortejar”, como é o caso
de Camões, até a ironia como é o caso da peça
Romagem de Agravados
de Gil Vicente e também do poema
Definição do amor
de Gregório de
Matos.
3- Na nossa opinião, várias outras pesquisas seriam ainda possíveis tendo
como suporte as teorias da Análise do Discurso. Como exemplo citamos:
estudo da crítica de determinada época e também o estabelecimento de
estudos comparativos nesta área; análise do discurso das
correspondências, das dedicatórias, dos prefácios, dos manifestos
227
literários; estudos sobre a representação da mulher, do homem, das
instituições sociais em determinadas épocas, entre outras possibilidades.
Para aqueles que tenham interesse em conhecer leituras mais
aprofundadas sobre as possibilidades de estudo oferecidas pela Análise do
Discurso, dentre outros estudos, recomendamos: Charaudeau (1983); Machado
(1999, 2000, 2003); Mello (2002, 2003); Santos (2002), entre outros.
9.3 – Considerações finais
Á guisa de conclusão, pensamos que a Análise do Discurso (AD) atual
pode vir a ser um viés de integração entre estudos lingüísticos e estudos
literários. Devido à natureza interdisciplinar da AD, o objeto a ser pesquisado
pode ser visto por, pelo menos, três dimensões: uma esfera lingüística, ou seja,
uma abordagem no nível do enunciado; uma esfera discursiva onde se
estabeleceria a organização dos discursos; e por fim, a esfera do situacional,
onde se encontrariam os aspectos sociológicos, históricos e psicológicos que
estariam relacionados à situação de comunicação.
228
Nessa atual conjuntura, prezaríamos muito uma conciliação. Em meio às
margaridas despetaladas, um final “bem querer” poderia ser bastante
consolador, que ele seja eterno enquanto dure.
YZ
229
CONCLUSÃO
230
CONCLUSÃO
Consideramos que a presente tese representa somente mais um
estágio de nossa pesquisa que está sendo concluído. Acreditamos que ainda há
muitas terras a serem exploradas, muitos mares a serem navegados, viagens a
serem feitas no futuro, sempre com o enriquecedor acréscimo de visões que os
estudos e o amadurecimento
86
podem nos oferecer. Pensando no
Atlas da
Experiência Humana
87
, diríamos que é melhor estarmos sempre escalando a
“cordilheira da educação”, ela é vasta e pode sempre constituir uma rica viagem
de exploração (nem o olhar do viajante e nem o lugar revisitado nunca são os
mesmos quando retornamos.). Se observarmos bem, a sabedoria está em uma
planície, parece um pouco monótono lá... e ademais, somos de Minas, as
montanhas nos aprazem mais.
Assim sendo, gostaríamos de fazer uma conclusão apontando
questões e esboçando respostas congruentes com a fase atual de nossa
pesquisa. Gostaríamos de construir nossas interrogações a partir da finalidade
que norteou o presente trabalho: mostrar que a ficcionalidade pode ser um
86
Talvez possa parecer imprópria uma nota com este teor, mas nos arriscamos. Perguntaram,
em uma entrevista, a Nelson Rodrigues qual conselho ele daria aos jovens e ele respondeu:
“Jovens, envelheçam!”
87
Cf. SWAAIJ & KLARE (2004)
231
fenômeno passível de ocorrência na comunicação em geral. Assim, nos
lancemos nesse mar de indagações:
1- O que é ficção?
Trata-se de um termo polissêmico. Pode ser visto como vocábulo e
como conceito. O uso da acepção de ficção pode ser uma estratégia de polidez,
ou seja, uma tentativa de abrandar o peso ético da palavra «mentira», entre
outras possibilidades. Como conceito, a ficção, em nossa perspectiva de
estudos, é a simulação de uma situação possível e estaria ligado à idéia de
ficcionalidade, ou
mise-en-fiction.
Esta, por sua vez, é a operacionalização desta
«simulação de uma situação possível». Como decorrência de tal demarcação,
postulamos a existência de três tipos de ficcionalidade:
constitutiva
(é inerente
aos fenômenos em que ocorre – por exemplo, a língua, o sistema numérico
etc.);
colaborativa
(ocorre em gêneros de discurso cujo estatuto é factual – por
exemplo, publicidades, discurso didático etc.);
predominante
(está presente em
gêneros de discurso cujo estatuto é ficcional – por exemplo, piadas, charges,
contos, romances etc.).
232
2- Por que a ficcionalidade não seria vista como um fenômeno da
comunicação em geral?
Diante do que argumentamos, a razão é de ordem histórica.
Pudemos observar que a influência da censura, de instituições como a Igreja e,
sobretudo, a prevalência de uma idéia de ciência obrigatoriamente objetivista
são os responsáveis por este encarceramento da noção de ficcionalidade nos
Estudos Literários. A tradição escolar, ao preservar a visão aristotélica de divisão
dos gêneros na
Poética
e na
Retórica
, também teria contribuído para o
encobrimento da possibilidade de uma visão mais ampla do referido conceito.
3- Atualmente, quais seriam os caminhos para se compreender a
ficcionalidade?
Embora alguns pesquisadores defendam a existência de marcas
lingüísticas na ficcionalidade, não estaríamos de acordo com tal posicionamento.
Nesta escolha na encruzilhada existente no jardim dos caminhos que se
bifurcam, escolhemos desenvolver uma visão discursiva sobre o tema. Assim
sendo, com base na Semiolingüística, a ficcionalidade seria vista a partir de:
categorias de língua
(porém, não como marcas de especificidades);
categorias
233
de discurso
(modos de organização enunciativo, descritivo, narrativo e
argumentativo) e
categorias situacionais
(contrato e situação de comunicação).
4- Como poderíamos distinguir o que é factual do que é ficcional?
A princípio, seria a partir de um contrato situacional. No entanto,
as noções de competências (situacional, discursiva e semiolingüística) são
cruciais em tal distinção, pois são elas que auxiliam na compreensão das
restrições impostas pelos contratos. As competências são constantemente
construídas, aprendidas, reformuladas, ou seja, estão constantemente em
transformação. Nunca estão em um estágio estagnado e se desenvolvem
durante toda a vida de uma pessoa. Logo, possuem um caráter plástico de
adaptação e de mobilidade. Em bom português, seria dizer: quem se preocupa
em estar informado em todos os sentidos, em ler e compreender o tempo em
que se vive, estaria mais apto a compreender a ficcionalidade (e não só ela).
Não se trata aqui de dizer que as pessoas devem ser todas «intelectuais em
potencial», mas seria dizer que aqueles, mesmo as pessoas mais simples, que
nem mesmo têm contato com a academia, podem ser bem informadas e ter
uma leitura interessante de seu tempo. Às vezes, é possível encontrar na
academia pessoas que não possuem estas qualidades. Parece-nos que não é
uma questão do lugar que se ocupa, mas uma postura diante da vida e das
234
experiências que nos são oferecidas. A nosso ver, é uma questão complexa e no
momento, não estamos aptos a estabelecer uma explicação teórica.
5- Qual a relação entre crença e ficcionalidade?
Ao respondermos esta questão, estaríamos lidando com um
problema cultural. Cada sociedade possui as suas crenças e a ficcionalidade é,
assim, determinada localmente. Não podemos impor a uma pessoa religiosa a
crença de que a Bíblia ou o Alcorão, por exemplo, podem ser ficcionais, que
deus pode ter sido uma invenção do homem e assim por diante. A nosso ver,
cada comunidade discursiva vai construir o que é factual ou o que é ficcional em
suas relações.
6 – Em termos da teoria semiolingüística, quais seriam as noções para
se detectar a ficcionalidade?
Pensamos que a ficcionalidade é determinada por um conjunto de
noções que agem simultaneamente. Determinar o estatuto «ficcional» é somar
a presença de algumas ocorrências. Um gênero de discurso, para ter um
estatuto ficccional ou factual possui alguns traços que determinam o fato e a
ficção. Seria o mesmo que dizer: cada caso é um caso e a situação de
235
comunicação é quem vai determinar o estatuto. Mesmo diante de tal oscilação,
podemos enumerar algumas das «ferramentas» que ajudariam a compor o
estatuto de um gênero de discurso: situação de comunicação; contrato
situacional; índices paratextuais; efeitos de real e efeitos de ficção;
competências situacional, discursiva e semiolingüística; estilo; restrições
impostas pelos gêneros de discurso; entre outros.
Certamente, o número de questões que poderíamos colocar aqui é
bem maior, mas deixemos tais indagações para uma próxima e oportuna
ocasião. Esperamos, caro leitor, que nossa reflexão tenha podido lhe trazer
indagações e almejamos estarmos aptos a respondê-las.
YZ
236
“Lecteur,
joie, salut, et santé disaient autrefois nos bons aïeux après avoir fini leur
conte.
Pouquoi craindre leur politesse et leur franchise?
Je dirai donc comme eux: Lecteur, salut, richesse et plaisir; si mes
bavardages t´en ont donné, place-moi dans un joli coin de ton cabinet;
si je t´ai ennuyé, reçois mes excuses
et jette moi au feu”
88
Marquis de Sade
In: Historiettes, contes et fabliaux
88
(tradução livre) Leitor, alegria, sucesso e saúde, diziam antigamente nossos antepassados
após acabar a sua história. Por que temer a sua polidez e franqueza? Eu direi então como eles:
Leitor, sucesso, riqueza e prazer. Se minhas tagarelices puderam isso te proporcionar, coloque-
me no aconchego de sua estima; se te entediei, receba as minhas desculpas e lance-me ao
fogo.
237
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PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
NOTA PRELIMINAR
:
O objetivo desta seção em nosso trabalho é auxiliar às
pessoas que queiram iniciar uma pesquisa, ou queiram somente se
informar, sobre o tema «ficcionalidade». Muitos dos textos citados
abaixo não foram utilizados no corpo da tese, por isso resolvemos
fazer esta listagem dos livros e artigos que encontramos em livrarias
e bibliotecas brasileiras e francesas. Esta coleta foi feita durante seis
anos e meio de pesquisas sobre o tema (incluídos os cursos de
mestrado e doutorado).
Inicialmente, para um maior efeito didático, começamos a
agrupar o material por temas, mas percebemos que alguns textos
traziam muitas informações e poderiam ser encaixados em várias
categorias, o que tornava repetitiva a nossa classificação. Então,
248
optamos por fazer uma lista corrente, que julgamos de mais valia e
praticidade. Uma outra conseqüência advinda de uma listagem por
temas seria estar impondo perspectivas teóricas e direcionando
leituras. Esse não era o nosso objetivo. No entanto, para aqueles que
gostariam de ter sugestões bibliográficas delimitadas por áreas,
sugerimos Montalbetti (2001: 249-254). Assim sendo,
grosso modo
,
os textos abaixo se referem a temas e a disciplinas tais como:
conceito de ficção, ficcionalidade e teoria dos atos de fala,
narratologia, semântica, comunicação, cognição, psicologia, filosofia,
história, literatura, cinema, biografia e autobiografia, teorias da
conversação, entre outros.
Gostaríamos de chamar a atenção para o site
www.fabula.org
. composto por pesquisadores, em sua maioria,
franceses. O site traz um enfoque da ficcionalidade de um ponto de
vista dos Estudos Literários e contém colóquios e textos disponíveis
em versão integral que podem auxiliar a quem trabalha nessa linha
de estudos.
Por fim, esperamos que nossa coleta bibliográfica possa
orientar o percurso de algum pesquisador que venha a se interessar
sobre o tema. Temos a expectativa de que possam ser muitos.
249
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