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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A UTILIZAÇÃO DO ELEMENTO GROTESCO NA
CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA OBRA
O CONQUISTADOR DE ALMEIDA FARIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Nilza Mara Pereira
Santa Maria, RS, Brasil
2006
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A UTILIZAÇÃO DO ELEMENTO GROTESCO NA
CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA OBRA O
CONQUISTADOR DE ALMEIDA FARIA
por
Nilza Mara Pereira
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
Orientador: Prof.ª Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Santa Maria, RS, Brasil
2006
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
A comissão examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de
Mestrado
A UTILIZAÇÃO DO ELEMENTO GROTESCO NA CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO DA OBRA O CONQUISTADOR DE ALMEIDA FARIA
elaborada por
Nilza Mara Pereira
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO ORGANIZADORA
________________________________
Sílvia Carneiro Lobato Paraense
(Presidente/Orientadora)
_____________________________
Jane Fraga Tutikian (UFRGS)
_____________________________
Pedro Brum Santos (UFSM)
Santa Maria, 11 de outubro de 2006.
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Por muito que me agrade a travessia dos anos passados, sou obrigado
a reconhecer que não me trouxeram senão ao ponto de onde parti. (...)
Continuo ignorando quem sou eu. Se fui quem hoje julgo ser, se sou
quem dizem que fui, se nunca serei mais que não saber quem sou ou
quem serei, mesmo assim valeu a pena. E alguma coisa aprendi: quem
não quero ser. (Almeida Faria, O Conquistador, p.126)
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DEDICATÓRIA
À minha mãe - sílaba serena - pelo exemplo de força,
paciência e esperança. Aos meus irmãos, pelo cuidado e carinho.
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AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo apoio financeiro.
À Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Letras, pela orientação e pela
disponibilidade.
À Professora Sílvia Paraense, pelo exemplo de autenticidade e erudição, e,
principalmente, por, conhecendo as minhas limitações, ter-me aceitado como sua
orientanda.
A todos os meus professores, pelo conhecimento compartilhado.
À minha família, pelo apoio e incentivo.
Às minhas amigas Josiane, Aline e Fernanda, pelo companheirismo.
Ao meu noivo Márcio, pelo carinho e paciência.
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SUMÁRIO
RESUMO 08
ABSTRACT 09
INTRODUÇÃO 10
1 ALMEIDA FARIA 17
1.1 O Ambiente Literário 18
1.2 Autor e Obra 24
1.3 Revisão da Fortuna Crítica 28
2 O GROTESCO 34
2.1 Introdução ao Surrealismo 35
2.2 Sobre o Grotesco 36
3 ORGANIZAÇÃO DA NARRATIVA 45
3.1 Epígrafes 46
3.1.1 Epígrafes Iconográficas 46
3.1.2 Epígrafes Verbais 48
3.2 Narrador, Tempo e Espaço 50
3.3 Personagens 54
3.4 Matéria da Narrativa: Lembranças e Sonhos 56
3.4.1 O Nascimento 56
3.4.2 Os Sonhos 59
4. AS AÇÕES 62
4.1 As Categorias Narrativas de Todorov 63
4.2 Lógica das Ações 65
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4.2.1 O Grotesco e A Organização das Ações 69
4.3 As Relações da personagem 71
4.3.1 Catarina 72
4.3.2 Os Predicados de Base 73
5. A CONSTRUÇÃO GROTESCA 76
5.1 As Epígrafes Iconogficas 84
5.1.1 Ilustração de Fatos (capítulos 1,2 e 5) 84
5.1.2 Ilustração de Sonhos (capítulos 3,4,6 e 7) 91
5.2 A Batalha de Alcácer-Quibir 99
5.3 Singularidades da Personagem 101
5.3.1 A Tardia Aquisição da Fala 101
5.3.2 A Sexualidade 102
5.3.3 Campeonato da Mijação 106
6. A INSERÇÃO DO MITO 107
6.1 A Formação e a Progressão do Mito sebastianista 108
6.2 O Tratamento dado ao Mito em O Conquistador 115
CONCLUSÃO 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 125
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RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
A UTILIZAÇÃO DO ELEMENTO GROTESCO NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO
DA OBRA O CONQUISTADOR DE ALMEIDA FARIA
Autora: Nilza Mara pereira
Orientadora: Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Data e Local da Defesa: Santa Maria, outubro de 2006.
A obra em estudo, O Conquistador de Almeida Faria, apresenta a busca pelo
conhecimento individual do homem português contemporâneo. A personagem
Sebastião, perturbada pelas singularidades que parecem distanciá-la dos seres que a
cerca, pretende organizar o seu percurso através da narração de todas as fases de sua
vida. Inicia com o relato de seu nascimento, relaciona todos os envolvimentos amorosos
significativos para a construção da história e fecha o texto com o seu retiro, retorno ao
local onde nasceu para pensar sobre sua identidade. A crise identitária, vivida pela
personagem, fundamenta-se na sua constante relação com a personagem histórica D.
Sebastião e na necessidade que esta apresenta de diferenciar-se ou aceitar-se como um
ser especial ou predestinado. Em relação ao que o mito sebástico predissera para o
retorno do rei, Sebastião representa o anti-hei, o duplo inverso da personagem
histórica. Essa imagem que simboliza a negação na crença messiânica é construída a
através de uma linguagem irônica e parodística. Essa análise destaca como elemento
principal e desestruturador do discurso a utilização do estilo grotesco, o qual pode ser
notado de forma específica na transcrição textual das epígrafes iconográficas, nos
sonhos da personagem e na sua incomum sexualidade. um estranhamento
provocado pela narrativa dos fatos que constituem os três aspectos acima destacados
que transfigura a personagem em um ser contraditório: representante das aspirações e
esperanças portuguesas e símbolo concreto da desilusão e da fracassada expectativa
de redenção, crua realidade do momento pós-revolucionário em Portugal. Dessa forma,
a personagem descrita por Almeida Faria provoca uma reflexão que confronta o
passado, inserção do mito sebastianista, e o presente, a identidade do ser português
frente à incerta realidade contemporânea.
Palavras – chave: mito, grotesco, identidade.
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ABSTRACT
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
A UTILIZAÇÃO DO ELEMENTO GROTESCO NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO
DA OBRA O CONQUISTADOR DE ALMEIDA FARIA
(The Utilization of the grotesque element in the construction of the speech of the
novel The Conqueror by Almeida Faria)
Author: Nilza Mara Pereira
Adviser: Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Date and Place of Presentation: Santa Maria, october, 2006.
The novel in study , The Conqueror by Almeida Faria, presents the search for the
individual knowledge of the contemporary Portuguese man. The personage Sebastião,
perturbed for singularities that seem to distance him of the others, pretend to organize his
way through of the narration of all his life’s phases. He begin with his origin relate, to do a
relation of the significative loving relationships for the history construction and closed the
text with his exile, return at origin place to think about his identity. The identity crisis,
experienced for the personage, is based in his constant relation with the historic
personage D. Sebastião and in the his necessity of to be different or to accept him how
a special or predestinate creature. Respected at the “mito sebastianista” presaged to
king return, Sebastião represents the inside out hero, the double inverse of the historic
personage. This image, that symbolize the messianic belief negation, is built through of a
ironic and parodystic language. This analysis emphasize how the speech main element
the utilization of the grotesque method, that can to be noted in the textual transcription of
the iconography epigraphs, in his dreams and in his uncommon sexuality. There are a
displacement provoked for this aspects narrative that transfigure the personage in a
contradictory creature: representative of the Portuguese aspirations and hopes and
concrete symbol of the disillusion and of the failed expectancy of redemption, hard reality
of the post-revolutionary moment in Portugal. In this manner, the personage described by
Almeida Faria provoke a reflection that confront the past, introduction of the “mito
sebastianista”, and the present, the Portuguese identity front the uncertain contemporary
reality.
Keys-word: myth, grotesque, identity.
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10
INTRODUÇÃO
A literatura portuguesa, em meados do século XX, assume uma atitude de
retomada da universalidade literária. Após o sufocamento artístico desenvolvido pela
ditadura salazarista, o romance busca sua autonomia através da expressão da época
contemporânea. Quer representar o indivíduo português perdido frente à crescente crise
nacional, desbaratado pela restrita liberdade oferecida pelo fim da ditadura e voltado para o
modelo de desenvolvimento europeu.
Segundo Eduardo Lourenço, o objetivo dessa literatura é reestruturar Portugal e
situar o indivíduo português frente à disparidade nacional e européia. Nesse contexto, a
obra de Almeida Faria representa a reação dos portugueses no que se refere à situação
sócio-política e cultural do país. O Conquistador, em especial, traduz a busca do
conhecimento individual empreendida pelo homem português no período que precede e
sucede a Revolução dos Cravos.
Nessa obra, a personagem Sebastião apresenta a história de sua vida, desde o
nascimento até seus vinte e quatro anos, momento em que, perturbado por uma crise de
identidade, resolve exilar-se para refletir sobre sua existência. Sebastião fala sobre seu
nascimento, sua infância, seus sonhos e seus envolvimentos amorosos. O fato que teria
desencadeado seu isolamento está em uma disparidade sobre o que a personagem deseja
ser e o que as outras personagens dela esperam.
A vida de Sebastião é permeada por acontecimentos insólitos que o relacionam e o
aproximam do rei D. Sebastião. A coincidência dos nomes, também a coincidência entre os
nomes de seus pais e avós, assim como os traços físicos levam alguns a verem nele o rei
redivivo.
Mas, a forma como a história de O Conquistador é conduzida, faz da personagem
a negação do “rei desejado”. Sebastião foge de qualquer responsabilidade social ou
patriótica e repudia a idéia de predestinação. No entanto, algumas evidências deixam-no
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11
perturbado e, por esse motivo, a personagem retira-se para a solidão, onde principia a
narração de sua história. Sebastião teme a morte precoce que assaltou o rei português aos
vinte e quatro anos.
Resgatar a história do mito de D. Sebastião é uma maneira de influenciar a
reflexão. Almeida Faria traz o mito para sua obra com o intuito de realizar a sua
desmitificação, que se de maneira mais visível através da utilização da categoria do
grotesco. Os aspectos concernentes ao grotesco podem ser encontrados tanto na estrutura
da obra como no decorrer do discurso.
Por isso, após realizarmos um panorama acerca do momento literário em que
Almeida Faria está inserido, preocupamo-nos em descrever a presença do grotesco.
Primeiramente, na estrutura da obra e, em um segundo momento, na temática que esta
aborda. Nosso objetivo é realizar um levantamento das manifestações grotescas de grau
mais significativo no texto, a fim de entender como elas se articulam e como produzem o
efeito de ridicularização da crença messiânica. Para isso, nosso texto está dividido em seis
capítulos.
O capítulo de introdução, denominado “Almeida Faria” é de base teórica. Nele,
realizamos um panorama acerca do ambiente literário em que surgiu a obra do escritor,
apresentamos sua biografia, assim como a fortuna crítica. Para isso, trabalhamos,
principalmente, com os autores Eduardo Lourenço e Maria de Lourdes Netto Simões.
A literatura da qual Almeida Faria faz parte surge em um momento no qual a arte
era obrigada a enfrentar a censura da ditadura salazarista. Esse sufocamento artístico havia
provocado um atraso no espaço literário e o objetivo dessa geração era justamente a
retomada do processo de universalidade literária.
Para alguns críticos, a autonomização da literatura portuguesa ocorreu no momento
em que essa literatura passou a ser reconhecida pela crítica estrangeira e traduzida para
outras nguas. João Décio afirma que, além dessa questão, a autonomização decorreu do
caráter universal adquirido pela personagem, pelo tempo e pelo espaço na ficção
portuguesa. Segundo ele, esse avanço decorreu do contato dos romancistas portugueses
com obras francesas.
Eduardo Lourenço acredita que essa influência tenha sido somente na utilizão
de alguns aspectos formais e atribui a retomada da universalidade literária para atitude de
representação de uma época, a contemporânea, assumida por um determinado grupo de
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12
escritores em cujas obras podem ser lidos as perspectivas, a mitologia, os fatos
significativos, marcantes e visíveis do período ditatorial.
Para ele, a nova literatura quebra com a ordem moral, mostrando homens e
mulheres numa nova maneira de ser e de existir. A preocupação com a ética e com a moral
ganha um novo sentido, o de desmascarar a hipocrisia e a demagogia da sociedade em
geral. Lourenço destaca como tema central dessa geração o amor, mas o amor erótico,
apresentando como diferencial o tratamento dado a essa questão: a desenvoltura , a
minimização do caráter idealizado e a contestação dos valores pré-estabelecidos.
Assim, de acordo com Eduardo Lourenço, a temática que se destaca na literatura
do século XX é o amor erótico, já Maria de Lourdes Netto simões acredita que tal literatura
prioriza a utilização da temática histórica. Seja qual for a temática mais marcante, vemos em
O Conquistador um amálgama dessas tendências, tal romance pode ser considerado um
exemplo dessa literatura, tanto pela retomada do passado como pela utilização da temática
do amor erótico.
Almeida Faria nasceu em 1943 no Alentejo. Foi aluno de Vergílio Ferreira, mestre
que despertou nele o interesse pela literatura portuguesa contemporânea. O escritor formou-
se em Filosofia pela Universidade de Letras de Lisboa e atua hoje como professor
colaborador na disciplina de Estética da Universidade Nova de Lisboa. Sua obras foram
traduzidas para sete línguas e receberam quatro prêmios literários.
Escreveu Rumor Branco (1962) no contexto da ditadura salazarista; a Tetralogia
Lusitana, escrita em torno do 25 de abril e formada pelas seguintes obras; A Paixão (1965),
Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983). Escreveu também o conto
Passeios de um Sonhador Solitário (1982) e as peças teatrais Vozes da Paixão (1998) e
Reviravolta (1999). O Conquistador (1990) foi seu último romance. Diferencia-se do
restante da sua obra pela questão formal e pela crítica social realizada de forma mais
mascarada, através da ironia.
Almeida Faria é considerado como uma revelação da prosa contemporânea
portuguesa. Ele adota uma maneira de narrar que apresenta uma inovação tanto na forma
como no conteúdo. Na primeira, destacam-se o experimentalismo e a fragmentação e, na
segunda, a abordagem crítica.
Essas características acomodam-se melhor para as primeiras obras do escritor,
queremos dizer com isso que O Conquistador constitui uma exceção. De acordo com Maria
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de Lourdes Netto Simões, sua história é linearmente organizada, o enredo é progressivo
tanto no tempo como no espaço e as personagens são bem delineadas.
Em O Conquistador, a temática de crítica social é desenvolvida através da ironia.
Seu mérito está no tratamento dado à temática social e existencial. Nele, encontramos de
maneira desmedida a presença do imaginário e do insólito, traduzida pela utilização da
categoria do grotesco. A ironia é um dos aspectos salientados pela crítica como
característica mais marcante do escritor. Segundo Simões, a obra O Conquistador usa a
ironia para a dessacralização do mito sebástico e, nesse sentido, o elemento grotesco é o
método mais evidente.
O capítulo dois, “O Grotesco”, vai trazer dois subtítulos: Sobre o Grotesco e
Introdução ao Surrealismo. No primeiro, apresentamos a teoria do grotesco sob a
perspectiva de Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002), assim como de Anatol Rosenfeld
(1976). Utilizamos também alguns conceitos de Kaiser, Backtin e Hauser. A Introdução do
Surrealismo, vertente que utiliza como metodologia a técnica do grotesco, tem como texto
teórico mestre “O Surrealismo em Portugal: uma ruptura no imaginário’ de Maria cia
Lepecki.
O grotesco é uma criação que confunde realidade e imaginação, provocando uma
reação de estranhamento ou de antagonismo que, por sua vez, suscita o riso. É uma
tendência estética que, pelo ridículo ou pela estranheza, pode realizar críticas que rebaixem
qualquer entidade ou comportamento idealizado. Na literatura, a categoria do grotesco
encontra-se basicamente no conflito entre o mundo real e a excentricidade do mundo
imaginário. Enquanto técnica de oposição aos pades acadêmicos e clássicos, manifesta-
se com maior intensidade em momentos de crise profunda.
No que diz respeito à teoria do grotesco, Muniz Sodré e Raquel Paiva realizam um
panorama de sua progressão na arte e na literatura. Este elemento está presente na
antigüidade, através da identificação mítica entre homem e animal; ganha força nos
espetáculos da “Commedia dell’arte”; pode ser verificado no estilo Barroco pela atitude de
transgressão; aparece no movimento pré-romântico alemão; no século XIX adquire, com
Victor Hugo, a condição de “categoria estética”, recebendo destaque especial nos tempos
modernos; no século XX, o grotesco adquire valor positivo, que se apresenta como uma
arte contrária aos padrões.
O efeito grotesco pode ser produzido por um grande número de processos artísticos.
Anatol Rosenfeld cita, entre outras manifestações, a narração distanciada e naturalizada; as
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vinculações entre a humanidade e a animalidade; as referências às partes baixas do corpo;
a menção à sexualidade, as anormalidades gramaticais produzidas pelo manejo da
linguagem; as caricaturas, as figuras excêntricas, a desproporção e a confusão entre
mundos diversos.
O grotesco é um dos recursos de construção utilizado pelo Surrealismo. Sua
utilização atribui ao movimento o caráter de liberdade concedida à imaginação e o desejo de
transgressão. Nesse sentido, o romance O Conquistador apresenta vinculações com o
movimento surrealista, reveladas pela utilização massiva do elemento grotesco, cujas
manifestações podem ser notadas tanto na estrutura da obra quanto na história.
No capítulo três: “Organização da Narrativa” tentamos estabelecer um esboço da
estrutura textual da obra. Falamos um pouco sobre as epígrafes; sobre o narrador, o tempo
e o espaço; sobre as personagens; e sobre a matéria da narrativa, destacando as
lembranças e os sonhos da personagem.
O Conquistador é uma obra constituída por sete capítulos antecedidos por
epígrafes de duas naturezas: visuais e escritas. As figuras são desenhos de Mário Botas
desenvolvidas verbalmente no texto. Essas epígrafes contribuem para intensificar o efeito
grotesco. Todas elas apresentam elementos comuns ou passíveis de relação , tais como a
presença da sexualidade, figuras monstruosas, a mistura entre o profano e o religioso, a
fusão entre o real e o imaginário. As epígrafes escritas são sete fragmentos apresentados
em cinco línguas diferentes de autoria respectiva dos seguintes escritores: Virgílio, Daniel
Defoe, Camilo José Cela, Isak Dinesen, Giorgio Manganelli, Diderot e Cervantes. Nessas
epígrafes destacamos idéias que remetem à produção textual.
O narrador de O Conquistador pode ser classificado como homodiegético com
perspectiva passando pelo narrador. No entanto destacam-se outras perspectivas
importantes para a construção da personagem, como a da sua avó Catarina por exemplo.
Nessa categoria, o estranhamento dá-se de forma mais notável pela naturalidade com que o
narrador realiza a narração.
A questão espacial e temporal estão relacionadas às fases da vida de Sebastião e
apresentam uma estrutura cíclica. Cada local que a personagem habita revela uma faceta
nova de sua personalidade em combinação com o tempo, que é linear, mas apresenta um
grau de precocidade que o torna bastante singular.
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15
Como figura central encontramos a personagem Sebastião. Ao redor dessa
personagem organizam-se outras de menor importância e que aparecem em momentos
isolados da narrativa.
Para a estruturação da narrativa, além das categorias citadas, são utilizadas as
lembranças de Sebastião, os testemunhos de outras personagens e os sonhos.
Destacamos, para a análise, a narrativa de seu nascimento e o elemento onírico. A primeira,
por ser responsável pela aura de mistério que acompanha Sebastião e o último, por estar
presente em todo o seu percurso, como uma maneira de extravasamento do mundo
imaginário.
No capítulo quatro, trabalhamos com “As Ações”. Utilizamos, para isso, As
Categorias Narrativas de Todorov. De acordo com o modelo de análise proposto por este
autor, o plano da história pode ser dividido em dois níveis: a lógica das ações e a
personagem e suas relações. No primeiro caso, concluímos serem os relacionamentos
amorosos de Sebastião as ações que organizam a narrativa. Para a análise dessas ações,
destacamos a categoria denominada por Todorov como “lógica da repetição”, considerando
a reiteração dos relacionamentos amorosos.
Seguindo ainda a proposta de Todorov, destacamos o caráter de gradação e
paralelismo. Cada conquista que se justapõe parece significar um aperfeiçoamento no
caráter da personagem. Destaca-se o caráter fechado de cada ação. Cada relacionamento
de Sebastião constitui uma micro-narrativa independente, com início, meio e fim e as
personagens femininas não reaparecem após o rmino do envolvimento. Podemos
observar, nessas micro-narrativas, cada uma das fases que compõe a ação – aproximação,
desenvolvimento do colóquio e dissolução do namoro.
No segundo nível, de acordo com Todorov, todos os elementos da narrativa
organizam-se em torno da personagem. Nesse nível, destacamos os predicados de base,
resumidos por Todorov em três relações: desejo, comunicação e participação ou amor,
confidência e ajuda; assim como outras três relações delas derivadas pela regra de
oposição: ódio, segredo e impedimento.
No capítulo cinco, A Construção Grotesca”, estabelecemos a relação entre o
romance e o elemento grotesco. Nele, observamos a transcrição das epígrafes
iconográficas, a descrição de um dos sonhos da personagem e algumas singularidades de
Sebastião.
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16
A presença do grotesco é ainda evidente em outras passagens. No que diz respeito
ao mundo onírico, temos a fusão entre o mundo imaginário e o real, o hibridismo ser
humano/animal, a mescla entre o sagrado e o profano, a presença de monstros e
referências à questão sexual. Quanto à sexualidade de Sebastião, o efeito de grotesco é
produzido primeiramente através da naturalidade com que o assunto é tratado. Ressaltamos
também a precocidade sexual da personagem, a referência às partes baixas do corpo com
destaque ao tamanho excepcional do membro sexual de Sebastião e à sua singular
sexualidade.
O capítulo final recebe o título de “A Inserção do Mito”. Nele, tratamos da formação
e da progressão do mito sebastianista, bem como da utilização desse mito em O
Conquistador, momento em que o elemento grotesco entra como estratégia de construção
do discurso desmitificador.
As considerações acerca do sebastianismo tornam-se importantes porque a
vertente literária em que se situa Almeida Faria tem como característica marcante a
retomada do passado, mais especificamente dos momentos de glória nacional e dos mitos
fundadores da nação portuguesa. No peodo em que se situa essa vertente, Portugal
encontra-se em uma das suas mais acentuadas crises políticas. Nesses momentos de crise,
segundo Isabel Pires de Lima, o mito que aparece com maior intensidade é o sebastianista.
Também Sodré e Rosenfeld afirmam que a concepção grotesca manifesta a
representação de crises profundas. Assim, justifica-se a utilização do grotesco no tratamento
dado ao mito sebastianista. Utilizar o grotesco na construção do discurso faz com que o mito
ganhe uma nova perspectiva. A inserção do mito no enredo de O Conquistador não
pretende confirmá-lo. A personagem é construída de maneira a se contrapor ao rei
desaparecido. Apesar de todas as semelhanças que remetem à reencarnação de D.
Sebastião, a personagem apresenta-se como o oposto do salvador, seria um “D. Sebastião
às avessas”.
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1 ALMEIDA FARIA
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18
1.1 O Ambiente Literário
Durante o período denominado Estado Novo” (1933-1974) em Portugal, os meios
de comunicação e expressão sofreram forte censura. A literatura, entre eles, era obrigada a
adaptar-se ao moldes permitidos ou estabelecidos pelo governo chefiado por Salazar. O
salazarismo primou por um sistema de censura e imposição, controlando as manifestações
culturais através do domínio político e restringindo a liberdade de expressão. Essa situação,
com a degradação da ditadura e seu término, foi, gradativamente, modificando-se e o final
do século XX assistiu a uma explosão da prosa de ficção tanto em Portugal como também
nas ex-colônias portuguesas.
Em ensaio publicado em 1994, Eduardo Lourenço ainda considera difícil avaliar a
situação da Literatura Portuguesa após o período ditatorial. O certo é que se deu adeus
definitivamente a uma época, tanto no sentido político como cultural. Criou-se, assim, uma
dualidade: agora, os portugueses estão livres de um passado que não mais sobreviveria e
buscam um futuro que lhes é incerto. Os escritores ligados à ideologia do antigo regime,
agora calavam-se, ausentavam-se. Mas, afirma Lourenço, eles muito estavam
silenciados, sufocados pela “dessintonia” cultural de suas obras em relação ao tempo e à
literatura que se fazia no exterior.
Mesmo com a censura, em meados do culo XX o romance português retoma o
processo de sua universalidade literária. Mais especificamente, o processo de
autonomização da literatura portuguesa situa-se no período que compreende os anos 50 e
60, tornando-se evidente após a publicação do romance Aparição (1959) de Vergílio
Ferreira. É a partir desse escritor que a literatura de Portugal começa a ter o
reconhecimento da crítica estrangeira, principalmente francesa e espanhola, sendo as obras
traduzidas não para as línguas desses dois países, mas também para o inglês e outras
línguas do oeste europeu. Assim, após o sufocamento do desenvolvimento artístico
provocado pela censura exercida na época ditatorial, acontecimento que resultou em um
atraso do espaço literário português em relação aos outros países europeus, emerge uma
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19
nova era de escritores, cujo objetivo seria a retomada do processo de autonomia na
literatura.
A esse respeito, o crítico brasileiro João Décio (2003) acrescenta que, além e mais
do que a questão da tradução, pois obras neo-realistas haviam sido traduzidas
anteriormente, a autonomização decorreu do caráter universal adquirido pela personagem,
pelo tempo e pelo espaço na ficção portuguesa, o que vai depender da tematização de
elementos como o amor erótico, a dor, a angústia, a morte, a solidão e a comunicação entre
os seres. Pode-se dizer ainda, ressalta o autor, que esse processo teve início do contato
dos romancistas portugueses com romances e ensaios provindos da capital francesa.
Não é adequado dizer que esse fato não tenha informado e até influenciado a
Literatura Portuguesa, mas, apesar disso, constatou-se que a imitação dos autores
portugueses em relação ao exterior foi muito superficial, reduzida, afirma Eduardo Lourenço,
quase que completamente à utilização de alguns aspectos formais.
Segundo Lourenço (1994, p. 257), a atitude dos poetas portugueses foi “Nem [de]
desinteresse pelo fora cultural e literário, nem [de] idolatria, é o que se acha ‘inscrito’ no
tecido mesmo de suas obras.” Assim, a universalidade dessas obras não é alcançada pela
comparação dos autores com obras estrangeiras. Mesmo porque essa comparação é
impedida pela incompatibilidade cronológica das criações portuguesas em relação ao que
se tinha feito na literatura européia, o que o autor chama de “magnífico anacronismo” da
Literatura Portuguesa. No momento em que, em todas as partes do mundo, a Literatura se
auto-destruía, germinou em Portugal um fenômeno literário precioso, por isso anacrônico:
num momento em que a Literatura se encontra em derrocada, um grupo literário em
Portugal conhece a ascensão.
Para Eduardo Lourenço, o certo é que, a partir da segunda metade do século XX,
surge em Portugal uma nova leva de autores que possuem algo em comum, embora não
possam ser enquadrados em uma geração única. Para isso, não serve o critério de idade,
pois há diferenças diz Lourenço (p. 255): “há jovens tardios e velhos precoces”; além
disso, cada obra possui uma intenção e um “peso” específico. No entanto, o ponto de
contato entre eles pode ser encontrado facilmente ao se considerar “o tempo de eclosão de
suas respectivas obras”. Surgem entre 1953 e 1963 obras que apresentam um tom e uma
estrutura afins e que podem buscar a conformidade da sua expressão na época
contemporânea.
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20
Ou seja, a afinidade encontra-se no vel da representação de uma época, da
representação do espírito de uma época. E qual será esse espírito que encontramos em
Portugal entre 1953 e 1963? Segundo Lourenço, são as perspectivas, a mitologia, os fatos
significativos, marcantes e visíveis do período. Tudo isso pode ser lido nas obras dessa
década. O importante é que os escritores portugueses assumem uma posição de des-leitura
frente ao “lá-fora” e, diante dos grandes avanços da modernização ocidental, voltam-se para
o interior, para o “cá-dentro”. Utilizam a situação alheia como pano de fundo para a própria
mitologia portuguesa. E pensam o povo português, mesmo quando este se ausenta de si
mesmo para se iludir ou aspirar o que o exterior afirma como modelo de desenvolvimento
econômico e cultural. Diz o crítico que os escritores “não se situam num ponto exteriormente
ideal, esse mesmo que as notícias das primeiras páginas dos nossos jornais ilustram, como
se nós mesmos não existíssemos senão como espectadores.” (p. 257).
Lourenço afirma ainda que o alcance do universal não se dá através de sua busca,
o próprio exterior volta-se para o interior e a alma portuguesa tem de se adaptar ao
moderno. Nas grandes cidades, o arcaísmo português é obrigado a adequar-se à
futurização - as estruturas, o ritmo frenético, as velocidades, a modernização envolvem o
indivíduo e o maravilham. Mas o indivíduo português não é o indivíduo universal e a
compreensão disto está na nova literatura. Ela visa encaixar-se ao universal, não se
igualando ao que se pensa como um “ser universal”, mas sim diferenciando o ser português.
Constata-se, então, uma ausência do português em si mesmo, ou seja, o português
apresenta um desinteresse pelo que realmente é e visa um ser diferente, um ser que lhe é
estipulado pela sociedade européia; mas a literatura descreve esta situação de dupla
identidade através da realidade, da verdadeira vida portuguesa.
De acordo com Eduardo Lourenço, essa nova literatura apresenta um caráter
anacrônico de otimismo lingüístico incomparável a outras literaturas contemporâneas, com
exceção da vizinha Espanha. O anacronismo proviria da alma arcaica do povo português.
No entanto, essa alma alcança o futuro, ou o futuro mesmo se debruça sobre ela e, depois
de um período considerável de isolamento político-histórico, a escrita de Portugal busca,
através de uma linguagem, forma e conteúdo incomuns, recuperar seu espaço literário e
contestar a Literatura Universal ou “dos outros”. Por isso, diz o autor, que o tema desse
anacronismo é a contestação ao nível da linguagem, do que é ou quis ser a própria
literatura.
A retomada do processo de autonomia da literatura portuguesa ocorre, num
primeiro momento, pela conquista de tradução das obras portuguesas. Para Eduardo
Lourenço, é através da tradução que os escritores recebem reconhecimento dentro do
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contexto cultural europeu. João Décio concorda com o autor nesse sentido, mas diz que o
direito de tradução foi alcançado pela inovação temática e formal sob influência do material
literário importado de Paris. A esse respeito, Lourenço admite que a França tenha
influenciado a literatura portuguesa, mas, basicamente, no processo formal. Sua convicção
é de que a autonomia tenha decorrido da preocupação em abordar uma temática que
situasse o indivíduo como um ser português e refletisse acerca de sua inserção no universo
europeu.
Agustina Bessa-Luís, Fernanda Botelho, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira,
Helberto Helder, Ruben A., Natália Correia e Maria Judite de Carvalho, todos nascidos na
década de 1920 – são autores citados por Eduardo Lourenço sob o epíteto de “Uma
Literatura Desenvolta ou os Filhos de Álvaro de Campos”. Recebem essa caracterizão
porque, em suas obras, podem-se ver homens e mulheres em uma nova maneira de ser, de
existir, que quebra a ordem moral estabelecida. Quando falamos em quebra da ordem
moral, não queremos dizer que esses escritores o possuíssem uma preocupação ética,
mas que a preocupação com a moral e os bons costumes ganha um novo sentido, um
sentido que busca desmascarar a hipocrisia e criticar as atitudes demagógicas assumidas
pela sociedade em geral.
O tema central da geração citada por Eduardo Lourenço é o amor, mas o amor em
seu sentido erótico. Pode-se dizer, afirma o autor, que a literatura portuguesa desconhecia
outra manifestação em que a relação erótica fosse tematizada de forma tão desenvolta.
Assim, é apontada como característica principal dessa nova era literária a neutralidade ética
ou indiferença ética ao se tratar do sentimento.
Ao se falar de amor, minimiza-se seu caráter idealizado e passa-se a observar uma
espécie de desconhecimento acerca dos valores que perfazem a mitologia espiritual
portuguesa. Isso se mais fortemente na temática do comportamento sexual, o que não
quer dizer que não estejam presentes outras temáticas, como a família, a pátria, Deus. O
que importa é o tratamento e o sentido dado a essas questões, ou seja, a contestação dos
valores de uma forma lúcida, implacável, não sentimental, anti-ideológica e não
demagógica.
Outra característica que pode ser observada no grupo de escritores portugueses
que vêm buscando uma expressão universal é a utilização da temática histórica, do passado
e do presente. Os escritores retomam e relacionam os mitos pátrios ou os eventos históricos
que ocorreram em um tempo bastante distante e tiveram uma importância marcante para a
constituição da nação portuguesa, assim como os eventos mais recentes como a ditadura
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salazarista, as lutas pela manutenção das colônias africanas, o processo revolucionário e a
retomada da democracia. De acordo com Maria de Lourdes Netto Simões (1996), essa é
uma tendência bastante marcante da ficção portuguesa contemporânea. É um retorno ao
passado, para, refletindo sobre ele, compreender o presente.
Um motivo para que esse país volte-se para o passado seria a crise de identidade
por ele experimentada nesse período. A partir da segunda metade do século XX, Portugal
enfrenta uma dura realidade: acabou-se a era de seu Império propiciada pelos domínios
ultramarítimos, o possui colônias, está restrito à condição decadente de parte
marginalizada da Europa. Segundo Isabel Pires de Lima (1997), nesse momento
estabelece-se uma crise de identidade. A ficção atua como condensadora desse conflito. E
faz isso através da adoção da temática histórica, retomando o passado, os momentos de
decadência nacional, o imaginado destino português e os mitos pátrios. De acordo com a
autora, dentre a multiplicidade de rituais visando um retorno às grias do passado, estão a
proliferação de ensaios acerca da identidade nacional, as novas histórias de Portugal e os
textos ficcionais de autognose nacional. Tudo isso para, em um momento de crise,
reestabelecer um imaginário nacional e cultural que possa estruturar a nação.
Pode-se dizer que o intuito dessa ligação entre passado e presente pela literatura
seria a de refletir sobre a real situação do homem português em relação à restrita liberdade
oferecida pelo fim da ditadura. O discurso ficcional prevê a invenção de Portugal, o do
passado e o do futuro. É uma tentativa de conquistar a independência tanto política como
cultural. Nas palavras de Isabel de Lima (1997, p. 253), “Continua-se a inventar Portugal, a
ficionalizar a pátria, revisitando o passado ou inventando futuros, por vezes inventado o
passado, lembrando o futuro, esquecendo o presente e, sobretudo, os portugueses.” E no
que a autora chama de ficcionalizão da pátria”, um dos aspectos recorrentes é a
revisitação dos mitos nacionais, ou de acontecimentos considerados elementos fundadores
do ser português.
Na tentativa de avaliar a tendência literária contemporânea, os autores acima
citados concordam que os escritores possuem em comum a necessidade de estruturação de
uma identidade nacional. De acordo com Lourenço, suas obras apresentam em conjunto
uma combinação criativa entre forma e conteúdo que visa à representação e à polemização
do relacionamento estabelecido entre o ser português e a crise social portuguesa, tendo
como contexto o desenvolvimento europeu. Segundo esse autor, o indivíduo português tenta
mascarar sua precária condição nacional no ímpeto de se igualar ao ser universal, o que
acaba conflagrando uma crise de identidade.
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Rastrear a estruturação da nação e situar o indivíduo frente à disparidade nacional
e européia é um objetivo para o qual os escritores utilizam o que Lourenço denominou
“indiferença ética”. Nesse sentido, temáticas tradicionais e idealizadas, como a pátria, a
religião, a família e o amor ganham uma ótica diversa. Dentro desse quadro, a temática que
se destaca é o tratamento dispensado ao amor erótico. Maria de Lourdes Sies e
Isabel Pires de Lima acreditam que para refletir sobre o povo português os escritores
priorizam a temática histórica. Para elas, o que caracteriza mais facilmente a literatura s-
revolucionária é um retorno ao passado mais longínquo para, estabelecendo sua relação
com o passado recente, procurar compreender a situação de Portugal.
O romance estudado aqui pode ser considerado um exemplo dessa literatura, tanto
pela retomada do passado como pela utilização da temática do amor erótico. Embora
transcorra inteiramente na contemporaneidade, O Conquistador (1990) traz à baila um
passado longínquo, tomando de empréstimo à história o mito de retorno do rei D. Sebastião;
também ocupa-se com um passado próximo, ao situar seu enredo no período
revolucionário.
O intuito de adaptar-se à cultura européia, visando também à apresentação do ser
especificamente português, é o contexto em que se inserem as obras de Almeida Faria. O
escritor procura adaptar sua escrita às tendências artísticas exteriores, usando uma
temática especificamente portuguesa. Herdando o princípio neo-realista de crítica social,
Faria inova a produção literária, valorizando seu texto através de uma composição textual
mais criativa. Em termos de conteúdo, o que se em seus livros é uma representação da
situação sócio-política e cultural do país. Em O Conquistador, particularmente, estamos
diante de uma personagem inserida no momento pós-revolucionário. O problema de
identidade apresentado por Sebastião é uma forma de refletir sobre o indivíduo português e
o seu mal-estar frente à indefinição que se instaurou no país quando se constatou infrutífero
o esforço revolucionário. Almeida Faria traz para a ficção o espírito português que se
encontra perdido no mundo real, o espírito de um povo que quer se definir como ser
português, ao mesmo tempo que busca adaptar-se ao modelo europeu.
Dessa forma, a personagem principal incorpora um herói às avessas, preocupado
em satisfazer seus desejos particulares, contradizendo os costumes sociais estabelecidos.
Sua conduta não visa de forma alguma assumir responsabilidades quer com família,
sociedade, religião ou pátria, sendo as normas dessas instituições satirizadas ao longo da
obra.
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O amor em sua natureza estritamente erotizada é o que predomina na conduta da
personagem Sebastião. A temática sexual é tratada não só com indiferença ética e moral,
mas com exagero, criando uma personagem de conduta sexual incomum em relação às
normas e convenções sociais. Sebastião cria regras próprias para o seu comportamento
sexual. Entretanto, o texto não possui o intento de vulgarizar a sexualidade, e a naturalidade
com que o assunto é encarado desacredita a seriedade hipócrita com que tabus são
utilizados pelas instituições.
Nessa obra, assim como a tematização do amor erótico, encontramos como
elemento bastante marcante a retomada da história de Portugal. O Conquistador retoma
um dos mitos mais importantes da constituição nacional portuguesa, o sebastianismo. Sua
ficção recupera elementos da história de Portugal no século XVI ao relacionar a personagem
Sebastião ao rei D. Sebastião, assim como elementos recentes. De acordo com Isabel
Pires, a abordagem do mito ocorre freqüentemente na história de Portugal. Sempre quando
se quer pensar a nação dentro de um momento de crise, o mito que ressurge é o daquele rei
desejado e encoberto: D. Sebastião. A constatação da autora é que
Ao longo dos tempos o sebastianismo tornou-se um paradigma para a
história da história de Portugal, capaz de incorporar as mais profundas
expectativas do país e do povo em relação a si mesmos. Tem-se prestado a
metamorfoses que lhe permitiram atravessar os séculos, sempre associado
a uma e outra forma de patriotismo, revelando-se uma das vias de
actualização e estruturação da memória e do imaginário colectivos. (LIMA,
1997, p. 254)
1.2 O Autor e a Obra
Benigno José de Almeida Faria nasceu em seis de maio de 1943 em Montemor-o-
Novo, Alentejo. Até os três anos de idade, viveu no Rossio, quando, então, sua família
mudou-se para a Rua das Pedras Negras. Iniciou o ensino secundário no Externato Mestre
de Avis e, a partir do sexto ano, passou a estudar no liceu de Évora. Seu interesse pela
literatura contemporânea foi despertado nessa época, ao ter como professor o escritor
Vergílio Ferreira. No sétimo ano, pediu transferência para o Liceu Camões, em Lisboa,
motivado pela mudança de seu professor, que passou a lecionar nesse estabelecimento.
Quando escreveu seu primeiro livro, ainda com dezenove anos, Almeida Faria
cursava Direito na Faculdade de Direito de Lisboa. Entretanto, por envolver-se em questões
de política estudantil, não terminou o curso. Depois disso, ainda foi aluno de Letras, mas
acabou formando-se em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1968, recebeu
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uma bolsa do International Writing Program, vindo a residir nos Estados Unidos e depois em
Berlim. Atualmente, atua como professor colaborador na disciplina de Estética no curso de
Filosofia da Universidade Nova de Lisboa.
Suas obras já foram traduzidas para sete línguas: alemão, francês, holandês,
sueco, espanhol, italiano e húngaro. Seu reconhecimento pode ser comprovado pelo
número de premiações recebidas por ele: de seis obras, quatro foram premiadas. Rumor
Branco recebeu o prêmio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores; com Cortes
recebeu o prêmio Aquilino Ribeiro, da Academia de Ciências de Lisboa; com Lusitânia
recebeu o prêmio D. Dinis, da fundação Casa de Mateus; e Cavaleiro Andante lhe conferiu
o prêmio Originais da Ficção, da Associação Portuguesa de Escritores.
Além das premiações conferidas aos seus romances, recebeu também a Medalha
de Mérito Cultural, atribuída pelo Ministro da Cultura e entregue na Biblioteca de Montemor-
o-Novo e o Prêmio “Vergílio Ferreira”, em 2000, atribuído pela Universidade de Évora.
Escreveu também como ensaísta. Entre suas obras nessa área podemos citar:
"Finnegan‘s Wake I 3",1968; "Peregrinação aos Lugares Selectos", 1971; "O Romance
Português Contemporâneo", na revista Studies in Portuguese Literature, 1971 e "Relato de
Curiosa Ocorrência Presenciada. Hoje, Dia 31 de Julho de 1977, no Jardim Zoológico desta
Cidade de Lisboa". Foi também autor da obra "Pessoa che pensa Campos che sente",
publicado em Pisa, em 1977; de "Portugal, meine Reue", publicado em Stuttgart, em 1982;
de "O Doktor Faustus de Thomas Mann", em 1984; "Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta",
publicado em Lisboa em 1988; de "Kefzereien über eine modische Frage", publicado em
Hamburgo em 1988 e "Ach Portugal!", na revista Raster, Amsterdam em 1991.
Almeida Faria viveu de perto as crises provocadas pela administração do Estado
Novo. Na vila em que residiu durante sua adolescência, sentia-se fortemente o clima de
repressão e revolução. Seu pai, Benigno d’ Almeida Faria, era militante democrático em
oposição à ditadura vigente, tendo apoiado as candidaturas de Norton de Matos (1948) e de
Humberto Delgado (1958) à Presidência da República. Esse histórico, a herança familiar do
pensamento democrático e a inserção no contexto revolucionário, vai moldar a consciência
política do escritor e sua ideologia i transparecer em toda sua obra.
Álvaro Manuel Machado (1996, p.181;182) traz uma síntese do que seriam as
obras do escritor: Rumor Branco, seu primeiro livro, foi publicado em 1962, ainda no
contexto da ditadura. Os quatro livros seguintes, cujo conjunto denomina-se Tetralogia
Lusitana, são escritos em torno do 25 de Abril. O primeiro e o segundo livros, A Paixão
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(1965) e Cortes (1978), apresentam um Portugal oprimido pela ditadura, o ambiente de
turbulências e as crises que antecedem a Revolução dos Cravos. Lusitânia (1980) e
Cavaleiro Andante (1983) trazem imagens da revolução e pós-revolucionárias. Escreveu
ainda o conto Passeios de um Sonhador Solitário (1982) e duas peças teatrais: Vozes da
Paixão (1998), que vem a ser uma adaptação de seu romance A Paixão, e Reviravolta
(1999).
Rumor Branco é um modelo de transgressão estética; segundo Cristina Silva
(1992), nele nos deparamos com uma linguagem diferente (utilização de palavras
compostas, jogo de palavras, sinestesias, aliterações e musicalidade) e com uma forma
romanesca diferente (a fragmentação). A obra apresenta sete fragmentos que narram fatos
acontecidos com personagens aparentemente diferentes, mas que possuem o mesmo
nome: Daniel João. Apreendemos que Rumor Branco pretende trazer para a literatura os
conflitos e crises vivenciados pelo indivíduo e pelo coletivo numa época de repressão.
Trazendo à cena personagens que refletem sobre o sistema social, econômico e
político português em uma forma romanesca que transgride qualquer tipo de regra estética,
Rumor Branco tematiza o caos em que vivem os indivíduos do campo e da cidade,
indivíduos que compartilham de uma mesma miséria, uma restrição para o povo e uma
restrição para arte – a falta de liberdade.
Este foi o primeiro passo de Almeida Faria. Depois disso, temos a Tetralogia
Lusitana uma saga protagonizada por uma família de latifundiários do Alentejo em plena
transição da época ditatorial para a chamada democracia. Nela, o escritor continua
utilizando uma forma narrativa fragmentada fragmentos em que as personagens sonham,
pensam, falam sobre suas vidas ou ainda escrevem, estabelecendo a comunicação através
de cartas.
Assim, podemos destacar na obra do escritor o caráter de crítica social,
econômica, cultural e política. Ironicamente, A. Faria mostra os verdadeiros caminhos da
revolução, a que afeta a pátria (crises coletivas) e a que afeta os patriotas (crise individual).
Além da denúncia dos problemas sociais, são elementos comuns em sua obra: a
necessidade de escrever manifestada por algumas personagens (Daniel João escreve um
diário, JC é poeta e Sebastião, em O Conquistador, escreve sobre a sua vida), o onírico (a
descrição de sonhos é constatada em suas obras), as divagações (monólogos), o
sobrenatural, a cultura popular (provérbios, simpatias, cantigas), o erotismo, bem como a
profanização de aspectos pertencentes ao campo do sagrado.
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O Conquistador, seu último romance, distancia-se um pouco da escrita praticada
pelo escritor até então, principalmente no que diz respeito à questão formal e à crítica
escancarada ao sistema. De acordo com Maria de Lourdes Netto Simões em seu artigo
“Transgressão e Conquista: O Conquistador”, nessa obra percebe-se, através da
abordagem do mito sebastianista, a intenção de desmistificar o imaginário popular português
e quebrar com os moldes tradicionais, com os valores morais pré-estabelecidos.
Salientamos aqui, ao lado da construção da identidade nacional, a questão individual: a
necessidade do ser de identificar-se consigo e com o contexto, a necessidade de
compreensão mental e espiritual. Ou seja, a busca de si mesmo e de sua missão, a carência
que acompanha o homem atual perdido no mundo caótico e catastrófico em que habita.
Apesar de diferenciar-se em termos formais em relação às obras anteriores, O
Conquistador traz como similares os aspectos de crítica ao sistema, tanto à antiga ditadura
como à democracia que se instalou no país após a Revolução. Essa aproximação em
termos temáticos propicia a relação de outras semelhanças no nível das imagens. Citemos
por exemplo, a utilização do sonho, do erotismo, do sobrenatural, da cultura ou sabedoria
popular e da dicotomia sagrado/profano.
Em termos de enredo, O Conquistador conta a história de um jovem que tenta se
definir como indivíduo social no período que antecede e compreende a Revolução dos
Cravos. No dia 20 de janeiro de 1954, nasce Sebastião Correia de Castro. Desde seu
misterioso aparecimento, a personagem passa a apresentar traços que a relacionam ao
mito, aproximando-a da figura do rei D. Sebastião. Esse fato faz com que algumas das
personagens criem esperanças de redenção a seu respeito. No entanto, a personalidade
irreverente do protagonista faz com que ele se torne o oposto do que dele se espera,
incorporando o anti-herói ou um D. Sebastião às avessas, que ignora e foge de qualquer
responsabilidade patriótica, social ou religiosa. Entretanto, o choque entre o comportamento
apresentado por Sebastião e as expectativas de predestinação que o acompanham acabam
suscitando dúvidas acerca de sua identidade e missão, sentimento que o leva a procurar
uma solução para tal incerteza.
Assim, o narrador-personagem, perturbado pela indefinição relacionada à sua
identidade, opta pelo isolamento e pela reflexão acerca da sua existência a fim de buscar
uma resposta. Sebastião, aos vinte e quatro anos, afasta-se de seu contexto social,
isolando-se em um eremitério próximo ao local em que nasceu e inicia a escritura dos fatos
que tiveram importância em sua vida. Seu intuito é repensar suas atitudes e posições,
reconstruir sua trajetória a fim de poder encontrar-se.
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Com esse objetivo, a personagem, distanciada do mundo, passa a rememorar os
fatos que fizeram parte de sua vida. Esse resgate pela memória tem início com o evento
que, supostamente, apresentaria as circunstâncias em que ela veio ao mundo, terminando
com o seu vigésimo quarto aniversário. De resto, Sebastião realiza a narração de seu
percurso utilizando-se de uma estrutura que se edifica basicamente na descrição de seus
envolvimentos amorosos. Essa narração está permeada de acontecimentos que o vão
transformar em uma figura insólita e singular, difícil de se adaptar às regras e aos moldes da
tradição portuguesa.
1.3 Revisão da Fortuna Crítica
O primeiro romance de Almeida Faria é considerado pela crítica em geral como
uma revelação promissora. O prêmio atribuído a Rumor Branco revelaria a precocidade de
um talento que, segundo Cristina Silva (1992, p. 86), “surgiu como uma pedrada no charco”,
ou seja, trouxe uma nova maneira de narrar, uma novidade tanto formal como conteudística.
Sua escrita é diferente de tudo o que se fazia na época, destacando-se o experimentalismo
formal e a abordagem crítica de seu conteúdo, no que diz respeito ao contexto
contemporâneo português.
Surgindo na década de 60, a obra de Almeida Faria sofre a influência do Novo
Romance Francês, do Neo-realismo e do pensamento existencialista. De acordo com
Massaud Moisés (2002), referindo-se a Rumor Branco, do Novo Romance o escritor traz o
ímpeto de transgressão ao cânone e as inovações na forma narrativa; do Neo-realismo,
aproveita a temática de viés social e, por fim, do Existencialismo, herda a preocupação com
a condição humana no mundo.
Notamos que o escritor aborda, de maneira aprofundada e com maior preocupação
estética, uma temática que vigorava na literatura produzida até então. Afirma M. Moisés
que Almeida Faria foi cativado pela experimentação narrativa, fugindo do Neo-realismo no
que se refere à valorização da criação artística.
Quanto às inovações formais, podemos dizer que o escritor apresenta, em Rumor
Branco, um texto predominantemente fragmentado. Recusando a forma tradicional do
romance, ressalta Álvaro Manuel Machado (1996), traz uma linguagem experimentalista
complementada por uma nova concepção de tempo, espaço e personagem.
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Essa inovação, essa maneira diferente de escrever, desenvolve-se
progressivamente, ao longo das obras da Tetralogia Lusitana. As quatro obras que a
compõem apresentam a continuidade do estilo fragmentário de Almeida Faria. Segundo
Cristina Silva, essas obras são, além de local de aperfeiçoamento de técnicas
experimentadas, também local de novas experiências. Conforme a autora, muitas das
inovações estilísticas, iniciadas com Rumor Branco, serão retomadas nos livros
posteriores, tendo havido grande aperfeiçoamento no seu manejo.
Se a ruptura com as categorias narrativas tradicionais constitui uma quebra com a
literatura Neo-realista, o estilo narrativo de seu último romance, O Conquistador, constitui
uma quebra com o estilo fragmentário do escritor. De acordo com Maria de Lourdes Netto
Simões, nessa obra estamos diante de uma história linearmente organizada, de um enredo
que se desenvolve progressivamente no tempo e no espaço, assim como de personagens
bem caracterizadas.
Cremilda de Araújo Medina (1983) afirma que, quanto ao conteúdo abordado nos
romances, podemos dizer que a temática desenvolvida é expressão das dificuldades
sociais, políticas e econômicas do país, questões que permeavam a escrita Neo-realista;
assim também, a inserção e adaptação humanas frente a tais rupturas, preocupação
característica do Existencialismo.
De acordo com Cristina Silva, a importância da obra do escritor está em tomar por
objeto tanto os aspectos sociais de seu país, quanto os aspectos que especificam o ser
humano e os diferentes estratos da “engrenagem social”. Isso significa que Almeida Faria,
através de temáticas já anteriormente abordadas, cria um conteúdo próprio em que
expressa a preocupão com a compreensão e atitudes do homem diante da realidade
caótica, não só de Portugal, mas de seu país em relação ao mundo. Fala do homem
português que deve se encontrar a si mesmo em um Portugal perturbado e decadente, para
o qual a queda do salazarismo e a Revolução não devolveram a antiga supremacia, nem
trouxeram perspectivas de salvação; que deve se encontrar em seu pequeno mundo para
poder voltar-se para o universal em que está inserido. Almeida Faria mostra, assim, a busca
do homem por uma significação pessoal e por um lugar no universo. É essa, de uma forma
geral, a temática que encontramos em suas obras.
Nesse sentido, em Rumor Branco destaca-se um protagonista que representa
diversas experiências humanas aparentemente incompatíveis, mas que deixa transparecer a
necessidade humana de estabelecer valores para a vida. Para Álvaro Manuel Machado, a
transposição entre diferentes personagens que se localizam em espaços e contextos
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diversos, mas que compartilham o mesmo nome, deixa entrever uma interrogação
permanente da existência pessoal em consonância com a sociedade.
a Tetralogia, considerada como uma saga, enfoca a vivência de duas gerações
do Alentejo, no período de 1965 a 1974; parte de uma situação de prosperidade e
acompanha a família aa sua decadência. Inicia com A Paixão, produzida no auge da
repressão e da censura ditatoriais. A obra estrutura-se em três partes: Manhã, Tarde e Noite
de uma Sexta-Feira Santa e conta a história de uma família entregue a seus sonhos,
pensamentos e reflexões, interligados pelos laços de sangue e pela terra. Cortes é o
segundo romance da tetralogia. Segundo Álvaro Machado (1996, p. 182), esse texto
seqüência à vivência iniciada ficcionalmente no dia anterior, simbolizando o “momento
histórico do “corte” com a autoridade patriarcal, com a estabilidade latifundiária, com a
ideologia totalitária, com um país retrógrado nos seus costumes e decadente nos seus
valores”.
Lusitânia prosseguimento a essa saga. Estrutura-se em epístolas e ocupa-se
da situação política do país e da crise de identidade nacional. Segundo Machado, essa obra
aborda as conseqüências da revolução, refletindo de forma irônica sobre a portugalidade de
passado heróico e de presente desencanto. Lusitânia é um olhar pessoal sobre o que foi,
tem sido e poderá ser Portugal, comenta Vasco Graça Moura (1982, p. 37). Através da
ironia, o autor faz uma reflexão sobre os “defasamentos nossos de vária ordem e
desordem”. Nela encontramos a contra-utopia de uma revolução sem resultados favoráveis
confidenciada em cartas, único meio de comunicação entre as personagens que se
espalham por Portugal, Veneza e Angola. O primeiro, simbolizando um lugar caótico, onde
não razões para ficar; a segunda, lugar de se viver “tranqüilas libertações pessoais”
frente à arte; e por último, a ex-colônia, último reduto do passado mítico português.
Por fim, Cavaleiro Andante transforma a trilogia em tetralogia e encerra a saga da
família alentejana, ultrapassando já para um estado democrático. Segundo Álvaro Machado,
o caráter de reflexão existencial de suas personagens denuncia cavaleiros andantes que
buscam a felicidade sonhada e insinua a intertextualidade com a Demanda de Santo Graal,
trazendo à pauta o elemento mítico.
O Conquistador difere da Tetralogia Lusitana, considerada como um conjunto de
obras de narração coletiva, no momento em que nos apresenta um narrador individual que
conta sua história linearmente através de uma retomada de memória. Nesta obra, o narrador
apresenta o que Saraiva e Lopes (1996) chamam de uma “parodística projeção de um dom-
joanesco presente sobre o sebastianismo nacional inveterado.” Maria de Lourdes Netto
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Simões reafirma as inferências da obra ao mito do rei português, o que a sua
personagem um caráter de paródia, mas também permite que ela seja considerada como
um indivíduo que busca conquistar a sua identidade, o seu espaço no mundo.
Podemos ressaltar que o ponto crucial da questão temática em Almeida Faria não
está somente no conteúdo por ele expresso, mas principalmente na abordagem ou, mais
precisamente, na maneira de tratá-lo. Pode ser destacada, ao longo de sua obra, a
presença do imaginário e do insólito. Assim como da ironia, aspecto salientado pela crítica
em geral. Cremilda de Araújo Medina (1983, p. 473) encarece o caráter humorístico do
escritor. Para ela, Faria possui um ideal: quer dominar o seu material, chegando a um
equilíbrio entre uma forma transparente e uma linguagem inventiva. Pretende a todo custo
evitar o patético e o metafísico e faz isso por meio da ironia em detrimento do
sentimentalismo. Homem situado no seu mundo, em finais da década de 70 o escritor
deixava transparecer a amargura frente à situação política e econômica de seu país, assim
como a desesperança com a nova geração.
Contrapondo-se à maioria dos críticos, Antônio Quadros (1989) considera a obra
de A. Faria como uma invenção e mistura de estilos que não resultam em uma literatura
interessante. E mais, critica a inserção do elemento irônico e pícaro nas obras da Trilogia,
uma das características do autor considerada por outros críticos como seu maior mérito.
Segundo ele, Almeida Faria não tem vocação para o humor.
Para Antônio Quadros, no pós-25 de abril, diante das insoluções dos problemas
nacionais, muitos autores passaram a exprimir a sua descrença no país, no povo e na
cultura, criticando o seu atraso e a sua incapacidade de desenvolvimento, como se fossem
isentos de responsabilidade e superiores no que diz respeito às frustrações vividas após a
revolução. O autor chama essa atitude de “auto-rejeição” e coloca como melhor exemplo
desse complexo a Trilogia de Almeida Faria.
Segundo Antônio Quadros, Almeida Faria não cumpre com A Paixão a promessa
que teria deixado a leitura de Rumor Branco. Afirma que, em termos estéticos, pode-se
destacar somente A Paixão como uma obra de valor, enquanto para os dois outros livros
restam
uma estagnação, uma insistência em processos agora aparentemente
inovadores, uma linguagem cada vez mais artificiosa, dura e pouco fluente,
uma progressiva debilidade romanesca e um desenho de personagens
onde se acentua a opacidade, a falta de profundidade e de consistência,
resultando no fim de contas em literatura que temos de considerar na
maioria das páginas fastidiosa e desinteressante. (QUADROS, 1989, p. 205)
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32
A Trilogia, da perspectiva de Antônio Quadros, não possui nada de positivo, em
termos de crítica social. Ele a considera como uma ficção alegórica, uma alegoria da
realidade portuguesa, da decadência social, ética e mental dessa sociedade. Mas ressalta
que “Trilogia Lusitana” remete a um tulo irônico, de negação de Portugal, e critica o
conceito de pátria estabelecido por Almeida Faria através das manifestações das
personagens. Apresenta como exemplo, o pensamento da personagem João Carlos em
Cortes: “... merda de pátria, azar ter caído aqui, ninguém nem nada me consola, desastre
de ter tomado o comboio errado, em descensão culos, apodrecido por dentro, por fora
velho cagado, arrumado em ramal fechado, atacado da demência do passado, mantido em
vida por extremo artifício, tresanda a bafio, a morte, a melancolia, a ingria”.
1
Segundo A. Quadros (1989, p. 206), este não é o Portugal real, sendo
simplesmente resultado do que ele chama de uma desafeição ou repúdio, ou pessimismo.
Em suas palavras, uma atitude “niilista em relação a qualquer ideal de portugalidade ou de
lusitanidade.” A obra de Almeida Faria comportaria, então, não uma “pobreza literária e
romanesca”, mas também uma “atitude estrangeirada”, que embora influente, felizmente, de
acordo com o crítico, não está do lado da “verdadeira inteligência portuguesa”.
para Maria de Lourdes Netto Simões, o escritor revela uma maneira especial de
pensar a situação portuguesa atual, provocando assim a reflexão em seus leitores.
Comparando suas obras podemos vislumbrar uma postura crítica e artística crescente que
vai encontrando continuidade em cada novo livro. Em relação ao seu primeiro romance,
podemos dizer que suas outras obras e principalmente O Conquistador possui uma
estrutura completamente diferente. Enquanto Rumor Branco supera todos os níveis de
fragmentação formal e conteudística, seu último romance apresenta uma estrutura bastante
simplificada. Sua forma é basicamente linear, com exceção de alguns deslocamentos do
narrador entre os tempos presente e passado. De acordo com Simões agora o “texto é leve
e comunicativo, alegre e rápido...”
Outra diferença é a reflexão ontem/hoje. Nas obras anteriores, a história era
narrada em um tempo ficcional. As personagens viviam os eventos no contexto em que
eles ocorriam. Sebastião toma um distanciamento maior, pois narra retrospectivamente
sua história, pincelada com ocorrências da história portuguesa. disse Maria de Lourdes
Netto Simões que “ao retomar o passado remoto, o narrador busca a reflexão sobre o tempo
1
FARIA, Almeida. Cortes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. (p.205)
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33
presente. A referência direta à história do 25 de Abril é eventual, mas inerente à vida da
personagem e relacionada com um passado ficcional próximo.
O escritor, no momento que faz referência ao rei D. Sebastião, aborda não o
elemento histórico, mas também o elemento mítico. A obra refere-se ao mito por uma ótica
diferenciada. Através de uma reflexão crítica entre o tempo em que a crença no retorno de
D. Sebastião tornou-se evento significativo para a cultura nacional portuguesa e o tempo
presente, Faria realiza uma narrativa despida de propósitos sebastianistas. Sua leitura
efetiva o que Netto Simões denomina de dessacralização do mito”. Segundo ela, o autor de
O Conquistador retoma o mito sebástico sem subordiná-lo à vinda de um salvador,
evidenciando a descrea no sebastianismo e a busca de outras formas de salvação.
Como síntese do que pensa a crítica acerca da obra de Almeida Faria, podemos
citar a opinião registrada em seu livro As Razões do Imaginário. Nesse texto, Simões
analisa todas as obras do autor, enquadrando-as no que denomina “literatura de
comunicação”. Em Rumor Branco, destaca o viés existencialista que desvela um ser
português atormentado pela velocidade do mundo moderno e pela opressão da ditadura.
Seus fragmentos são uma metáfora dos problemas portugueses: a guerra colonial, a
emigração, a censura, as questões agrárias e as questões estudantis transparecem nas
falas de muitas personagens de um nome. Segundo a autora, a expressão dos
problemas enfrentados pelo povo português tem continuidade na Tetralogia Lusitana, onde
o povo é representado por uma família aristocrática decadente que vive a ilusão
revolucionária e enfrenta a dura realidade pós-revolução. Por fim, O Conquistador vai
simbolizar o dilema do indivíduo português que toma consciência da inutilidade da revolução
e da necessidade de ele mesmo resolver seus conflitos.
Os aspectos destacados pela crítica se fazem presentes na última obra do escritor
através de um processo de “relativização” dos enunciados do narrador. Uma das estratégias
por ele utilizadas para construir o discurso é a utilização do elemento grotesco,
procedimento muito utilizado pelo movimento surrealista, do qual se encontram muitos
exemplos no texto de A. Faria. Os surrealistas defendiam o primado da imaginação na
criação artística, procurando abolir as fronteiras entre o real e o irreal, entre o sonho e a
realidade. Para isso, utilizaram largamente em suas obras exercícios de automatismo
subconsciente, humor negro, utilização do acaso e associações verbais. Tudo isso
combinado em autobiografias romanceadas e fantasia livre em que se transfigura a
experiência vivida e a experiência histórica ou regional.
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2 O GROTESCO
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35
2.1 Introdução ao Surrealismo
Entre os movimentos de vanguarda surgidos no início do século XX, aquele que mais
conseqüências trouxe à literatura portuguesa foi o Surrealismo.
Surgido em Paris no período que compreende as duas Grandes Guerras, teve
origem do encontro entre André Breton, Phillipe Soupalt, Louis Aragon e Paul Éluard. Seu
marco inicial foi a publicação dos Champs magnetiques por Soupault em 1919, sendo o
grupo dissolvido apenas em 1966 pelo seu principal ideólogo e líder, André Breton. Alguns
críticos o consideram o último grande movimento de vanguarda da Europa, outros, devido a
sua duração e amplitude, consideram-no como uma filosofia de vida que ultrapassa os
domínios da arte. Concorda-se, no entanto, com o fato de que o Surrealismo constitui, sem
dúvida, um importante movimento estético.
Em 1924, Breton publica o Primeiro Manifesto Surrealista, no qual se evidenciam as
características principais do movimento: uma revolta contra a lógica, o racionalismo, a moral
e o gosto. Essa revolta preconizava a destruição dos valores burgueses, a libertação do
desejo e do imaginário e a valorização da sexualidade. Para os surrealistas, o sexo era o
principal responsável pelo desencadear da evolução ética e social do homem.
O que marca especialmente a concepção surrealista é a liberdade concedida ao
imaginário, expressa através da exploração de todas as formas de transgressão da lógica,
pela valorização do acaso, da farsa, do jogo e da gratuidade; pela valorização de interditos
através do erotismo; da loucura; do sonho; da alucinação; das imagens incongruentes; do
maravilhoso; e do insólito. Por esses estratagemas e influenciados pela psicanálise, os
surrealistas procuravam alcançar uma “realidade absoluta”, na qual os contrários seriam
conciliados.
O movimento surrealista, da França, com maior ou menor velocidade, espalhou-se
por todo o Ocidente, chegando a Portugal somente após a Segunda Grande Guerra. Nesse
país, seu introdutor e mentor foi Antônio Pedro. Em Lisboa, o grupo surrealista foi fundado
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36
em 1947, contando também com a participação de José-Augusto França, Marcelino
Vespeira, Alexandre O’Neill e Mário Cesariny de Vasconcelos. Mais ou menos um ano
depois, em função de conflitos internos, formou-se o Grupo Surrealista Dissidente composto
por Mario Cesariny de Vasconcelos, Antônio Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Pedro
Oom e Carlos Eurico da Costa. Por toda uma década, ambos os grupos disputaram entre si
a condição de surrealistas “verdadeiros”, aque em 1952, com a dispersão dos grupos,
rio Cesariny passou a ser o nome referencial do Surrealismo português.
Em relação à ideologia política, o movimento atacava os valores impostos pela
ditadura salazarista. Preconizavam uma liberdade ilimitada, independente das regras
impostas pelas instituições estabelecidas como base do regime ditatorial: a Religião, a
Pátria, a Autoridade, a Família e o Trabalho. Por outro lado, também divergiam do Neo-
Realismo, considerando-o uma corrente de escassos recursos estéticos e, por conseguinte,
de fraco efeito na busca pela transformação nacional, além de criticar veemente sua
concepção de realidade incondicional.
Os surrealistas defendiam o primado da imaginação na criação artística, procurando
abolir as fronteiras entre o real e o irreal, entre o sonho e a realidade. Para isso, utilizaram
largamente em suas obras exercícios de automatismo subconsciente, humor negro,
utilização de acaso objetivo e associações verbais. Tudo isso combinado em autobiografias
romanceadas e fantasia livre em que se transfigura a experiência vivida e a experiência
histórica ou regional portuguesa.
Os procedimentos preconizados pelo movimento surrealista encontram-se
desenvolvidos no romance de Almeida Faria sobretudo através da utilização do grotesco
como recurso de construção de situações, acontecimentos e, especialmente, das
personagens.
2.2 Sobre o Grotesco:
Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002) iniciam sua obra O Império do Grotesco
citando uma rie de 12 situações em que o grotesco é produzido de maneiras diferentes.
Não sendo aqui necessário descrever todas as situações, destaca-se, porém, que algo
em comum em todos os casos: o rebaixamento, “operado por uma combinação insólita e
exasperada de elementos heterogêneos, com referência freqüente a deslocamentos
escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e
dejetos...” (p. 17). O fenômeno provocado por essa combinação recebe o nome de
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37
“desarmonia do gosto” ou disgusto. O confronto e compreensão dessa combinação provoca
reações de riso, horror, espanto e repulsa.
Sodré e Paiva chamam a atenção para o fato de que, sendo o gosto relacionado
com a idéia de beleza, o disgusto não deve ser confundido, entretanto, com o feio. Um
objeto pode causar estranhamento ou riso sem ser considerado feio e pode se encontrar
beleza em expressões que provocam, num primeiro momento, antagonismo. Quando isso
ocorre se está diante do grotesco, criação que se confunde com as fantasias da imaginação
e que provoca o riso.
Embora receba destaque especial nos tempos modernos, o grotesco é uma
tendência estética presente desde a Antigüidade. Os autores citam como exemplo a remota
identificação mítica entre o homem e o animal. Dessa analogia entre o homem e o animal
nasceu a Fisiognomonia, ciência que teria orientado gregos e latinos na pretensão de
decifrar um conhecimento moral sobre o homem a partir de suas características físicas. Mais
tarde, na Idade Média tal ciência juntou-se à astrologia, associando o corpo humano a
formas animais e à configuração do céu. Esse fato povoa a literatura e o imaginário de seres
híbridos, figuras que transgridem as fronteiras entre mundos diversos.
A transgressão é uma característica marcante do Barroco, sendo considerada como
a sua vertente grotesca. Essa vertente é caracterizada pela utilização excessiva de um
naturalismo rústico na área arquitetônica; pela utilização do mundo onírico, ligação entre o
espaço visível e oculto; e pela utilização de expressões grotescas do corpo.
Embora o estilo Barroco apresente algumas caracterizações definidoras do
grotesco, é importante, porém, que não se confunda um e outro estilo. A transgressão
barroca pode levar a um tipo de elevação ou progresso. o grotesco não prevê nenhuma
elevação. trata-se apenas de quebras, mutações e deformações bruscas e inconciliáveis.
Por essa razão, Sodré e Paiva preferem classificar a variação grotesca do Barroco
como maneirista, estilo estudado por Arnold Hauser (Maneirismo, 1965), que o define como
aquele que expressão à crise européia na transição entre o Renascimento e a fase
barroca. Os artistas do maneirismo utilizam-se dos motivos híbridos encontrados nas
“grutas” italianas, propiciando ligações entre os fenômenos mais desencontrados e
revelando o lado monstruoso das coisas.
Quanto à origem e significado do termo, os autores esclarecem que a palavra
grotesco origina-se de gruta (grotta, em italiano), tendo surgido pela primeira vez no
século XV, através da descoberta de “ornamentos esquisitos, primeiramente, no porão do
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palácio de Nero e, depois, nos subterneos das Termas de Tito. Então, fascinando os
artistas da época, as formas estranhas passaram a se dispersar pela Europa Ocidental.
Com seu significado associado ao disforme e ao onírico, a palavra grotesco vai
adquirindo, ao longo dosculos, novos matizes que se somam aos primeiros e, da
avaliação estética de obras de arte, passa para a qualificação de gostos da vida social em
geral. Sodré e Paiva registram que, em fins do século XVII, podem ser encontrados os
seguintes significados para a palavra: “aquilo que tem algo de agradavelmente ridículo”,
segundo o dicionário de Richelet e “ridículo, bizarro, extravagante”, de acordo com o
dicionário da Academia Francesa. O termo era algumas vezes substituído por “burlesco” em
textos literários ou teatrais ou por “arabesco” na pintura e na arquitetura. Em Portugal, o
fenômeno é conhecido como “brutesco” e se expressa na arte em azulejo praticada por
artesões ou artistas populares.
Entretanto, será apenas no século XIX que o grotesco vai adquirir a condição de
categoria estética. Isso ocorre com a adesão de Victor Hugo ao cômico e ao estranho,
presentes nas formas populares de diversão e sarcasmo.
Sodré e Paiva também esclarecem que, através do reconhecimento do fenômeno
como uma categoria estética, críticos puderam localizar, na Antigüidade clássica,
manifestações do fenômeno grotesco antes mesmo da sua definição. Nas narrativas míticas
gregas, por exemplo, o grotesco pode ser encontrado sob a forma de brincadeiras
escatológicas, obscenidades, ditos provocativos capazes de suscitar o riso. No
Renascimento, Mikhail Bakhtin (A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
1977) localiza imagens grotescas ligadas à cultura popular, sentidas mais fortemente nas
manifestações carnavalescas em que se expressam resíduos de antigas mitologias orientais
preservadas nas liturgias religiosas e a heterogeneidade presente na austeridade
eclesiástica. Nesse caso, o grotesco passa a funcionar como uma modalidade de crítica não
meramente reativa, que ameaça qualquer representação ou comportamento marcado pela
excessiva idealização. “Pelo ridículo ou pela estranheza pode fazer descer ao chão tudo
aquilo que a idéia eleva alto demais” (SODRÉ; PAIVA, p.39).
Ao passar em revista os autores que pensaram o grotesco, Sodré e Paiva registram
que muitos autores fizeram referência ao fenômeno, tendo sido, no entanto, Victor Hugo o
primeiro a teorizar sobre o assunto no prefácio de Cromwell. Procurando romper com a
tradição clássica, Hugo pretende fundar uma estética capaz de rebaixar os valores clássicos
através do extravagante, do feio, do incongruente em detrimento do “bom gosto” instaurado.
Hugo tinha o intuito de criticar as idealizações artísticas de uma forma que chocasse,
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provocando mal-estar. Para isso, utiliza-se da categoria estética do grotesco. O objetivo de
Hugo é demonstrar que, ao lado do grandioso e do belo, está o feio e o disforme ocupando
uma mesma categoria hierárquica que os valores consagrados tradicionalmente pela arte.
Assim, o grotesco vem se adicionar a uma nova concepção do fato estético que desponta
em qualquer manifestação simbólica. No entanto, para definir a categoria do grotesco, Hugo
foi buscar inspiração no passado, utilizando-se de argumentos semelhantes àqueles
empregados pelos críticos neoclássicos: “o poder da opinião corrente e a autoridade do
mito” (SODRÉ; PAIVA, p.43).
Muniz Sodré e Raquel Paiva traçam um panorama dos valores estéticos, da Idade
dia ao século XIX, com a finalidade de salientar o aspecto de ruptura da proposta
romântica defendida por Victor Hugo. Apontando as relações entre as doutrinas artísticas e
o caráter moralizador fortemente presente nessas doutrinas, observam que o objetivo de
Hugo, que encontrava forte sustentação na tendência do século XIX para o confronto de
posições estéticas em nome da liberdade, consistia em separar, através do disgusto
romântico, as posições moralistas, identificadas com as posições também moralistas
adotadas pela burguesia triunfante. Assim, observam na Idade Média as teorias tomistas,
voltadas mais para os aspectos instrutivos do que prazenteiros da arte. A partir do
Renascimento, com a difusão da obra de Aristóteles. Surge, então, a preocupação com a
catarse e com a verossimilhança, e o estilo dramático introduz aspectos de mistura entre
ficção e realidade, assim como a poetização do fato histórico. Essa mistura ganha força no
espetáculo da Commedia dell’arte, criada no século XV, na Itália. Nela misturavam-se o
erudito e manifestações populares.
Shakespeare, assumindo um papel de subversão à ordem artística tradicional, se
utiliza do grotesco para efeitos geradores de catarse. Por sua vez, os românticos, de uma
forma geral, reagem contra as doutrinas moralistas que buscam o absolutismo do gosto
estético, impondo um alargamento desse conceito. Referem a observação de Anatol
Rosenfeld (Texto / Contexto, 3. ed. 1976), que aponta no Sturm und Drang, movimento pré-
romântico alemão, a utilização do grotesco por alguns dramaturgos. Esses artistas inspiram-
se em Shakespeare, apresentando também influência da Commedia dell’arte,
particularmente no estilo de movimentação das figuras.
Os efeitos desse alargamento, ainda segundo Sodré e Paiva, somente serão
reconhecidos no fim da segunda metade do século XIX, com Nietzsche. Contrariando a
racionalidade como atributo maior do homem e definindo-o como “uma corda estendida
entre o animal e o ultra-humano” Nietzsche acredita na universalidade do mau gosto,
erigindo como sujeito estético o “animal da boa consciência”, o indivíduo em sua realidade
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40
visceral, incluindo literalmente em seu ser vísceras e dejetos corporais. “São precisamente
afecções corporais, e não afetos espirituais, o que Nietzsche mais valoriza, ao dar estatuo
pleno ao mau gosto” (SODRÉ; PAIVA, p.49). Talvez o filósofo tenha herdado essa atitude de
Schopenhauer, que expunha seu gosto pelo fisiologismo e corporalidade, abordando
espirros, vômitos, coceiras e outras afecções corporais.
Depois do século XIX, as discussões acerca do elemento grotesco permanecem
suspensas, sendo retomadas novamente após a Segunda Grande Guerra por Mikhail
Bakhtin e Wolfang Kayser (O grotesco, 2003).
Kayser busca, intrigado, a definição do grotesco, fazendo uma incursão histórica
por obras que já tivessem até então abordado o assunto. Para ele, o grotesco é um “mundo
alheado”, tornado desarticulado e estranho, que obedece a singularidades em termos de
criação, composição e efeito. No que se refere à criação, Kayser afirma que o grotesco pode
ter origem no sonho, no devaneio, numa visão desencantada da existência, assumindo
formas fantásticas, causadoras de horror, satíricas ou absurdas. Quanto à composição, o
monstruoso seria o traço mais marcante. O grotesco visa, em termos de efeito, a reação de
medo ou “riso nervoso”, para que seja criado o estranhamento” do mundo através de uma
sensação de absurdo, de inexplicável.
A teoria de Bakhtin é considerada por Sodré e Paiva como um complemento da
teoria de Kayser, com a diferença de que o primeiro vai considerar, para a compreensão do
fenômeno, além dos produtos da cultura oficial, a criatividade da cultura popular. Para
Bakhtin, o grotesco não mais depende da obra de arte. Em sua concepção, que elege como
termos de investigação o carnaval e o rebaixamento, o elemento estranho está no “realismo
grotesco” que gira em torno do “corpo grotesco”.
para [Bakhtin], a ligação com a cultura popular é que margem ao
correto entendimento do fenômeno, uma vez que concebe o corpo grotesco
como um corpo social, cujo princípio es contido “não no indivíduo
biológico, não no ego burguês, mas no povo que está continuamente
crescendo e se renovando.” (SODRÉ; PAIVA, p.58)
É a partir da modelagem carnavalesca que o grotesco vai subverter as figurações
clássicas do corpo, valorizando as vinculações corporais com o universo material, seus
orifícios, protuberâncias e partes baixas. São imagens do grotesco: alimentação, dejeção,
cópula, gravidez e parturição. Diferente do corpo perfeito do cânone clássico, o corpo
grotesco forma-se pela metamorfose e pela mistura, ensejando uma “bicorporalidade” em
que elementos diversos se encadeiam.
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41
Muniz Sod e Raquel Paiva apresentam, no capítulo intitulado neros e
espécies, uma taxonomia da categoria do grotesco. Assim, quanto à forma discursiva,
defendem que a categoria reparte-se entre um grotesco representado e um grotesco atuado.
O primeiro abarca toda espécie de cenas ou situações ligadas à comunicação indireta
(literatura, imprensa, pintura, escultura, arquitetura, desenho, fotografia, cinema e televisão);
o segundo trata das situações de comunicação direta, vividas na existência comum
(espontânea), nos palcos (encenada) ou nos ritos e festas carnavalescas (carnavalesca).
Em ambas as modalidades, o grotesco formas modalidades expressivas diversas:
- escatológica: referência a dejetos humanos, secreções, partes baixas do corpo, etc;
- teratológica: referências risíveis a monstruosidades, aberrações, deformações,
bestialismos, etc;
- chocante: provoca um choque perceptivo com intenções sensacionalistas, pode ser tanto
da espécie escatológica como teratológica;
- crítica: discernimento do que está oculto no objeto, recurso estético próprio para
desmascarar convenções e ideais. São exemplos a paródia, a caricatura e a charge.
Nessa modalidade, o grotesco mostra-se como uma experiência criativa comprometida
com a reflexão sobre a existência cotidiana. Essa reflexão ocorre através do
desvelamento das dimensões escondidas e secretas, no sentido de se fazer pensar
acerca das estruturas estabelecidas.
Como se pôde notar, a categoria estética em pauta transita por rios meios ou
veículos de expressão, assumindo diferentes intuitos de acordo com o tipo de manifestação,
embora haja em comum o desejo de desarmonia do gosto. Na literatura, tanto em autores
medianos como nos já literariamente consagrados, encontra-se a tetica do grotesco em
situações de conflito entre a realidade e a excentricidade da imaginação. Essa temática
caracteriza-se por manifestações de espírito antiacadêmico, que acompanham sempre a
produção artística, mas que podem se intensificar em períodos de crises profundas.
A arte e a literatura grotesca ganharam, no século XX, um destaque positivo. De
acordo com Anatol Rosenfeld (1976), o conceito de grotesco é uma concepção bastante útil
para a compreensão da arte moderna, já que se define como uma arte contrária aos
padrões acadêmicos e clássicos, manifestando, como argumenta Sodré, a representação de
crises profundas. Nessa concepção, exprime-se a desorientação face uma realidade
estranha e incompreensível.
Mesmo estando situada no campo da fantasia e do maravilhoso, a arte grotesca
difere das histórias de fadas, nas quais o fantástico e o estranho possuem uma lei própria,
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sem entrar em choque com a realidade do mundo cotidiano. Nas manifestações grotescas,
por outro lado, o entrechoque dessas duas esferas, o insólito interfere na realidade
cotidiana, suspendendo a sua ordem habitual. Sua excentricidade traz, diante da comum
alienação frente aos acontecimentos do mundo, reações de horror, espanto, nojo e, por
vezes, de riso arrepiado”.
A ligação entre fenômenos desencontrados é uma maneira de se pensar o abismo
existente entre a criatura pensante e o mundo exterior, o disparatado projeta uma luz sobre
o mundo enigmático que já não possui ordem ou coerência.
As manifestações grotescas trazem ao primeiro plano o irracional, acabam com a
lógica das categorias do mundo ordenado e jogam o indivíduo no meio do pesadelo e do
absurdo. Na essência do irracional, o homem já não difere dos animais, ou das plantas, ou
dos objetos, “A ordem é apenas aparente, no fundo reina o caos.” (ROSENFELD, p.66)
Vive-se em um mundo irreal, usam-se máscaras, representa-se, quando, no fundo, se
deseja representar o ser humano como um boneco sem vontade própria movimentado pelo
inconsciente.
O efeito grotesco pode ser produzido por grande número de processos artísticos.
Rosenfeld cita, entre eles, a narração distanciada e naturalizada, que aparenta ser a
descrição real de um fato insólito. Como exemplo, comenta a obra de Wilhelm Busch, cuja
personagem, depois de sofrer transformações de estado fisicoquímico, é colocada, por seus
pais, em uma conserva de alimentos.
Outro artista lembrado pelo autor, no intuito de descrever os processos de produção
do grotesco, é Callot, ilustrador famoso da Commedia dell’arte. Suas figuras são excêntricas
e caricatas. Mas, para além disso, apresentam traços especiais: exibem máscaras com o
aspecto de animais estranhos, seus gestos assemelham-se aos de marionetes. Os seres
perdem o aspecto familiar, a desproporção do miúdo sugere uma desarmonia universal, o
homem reduz-se a um autômato movido por forças misteriosas, confunde-se a hierarquia
dos seres (homem, animal, objeto), o mundo orgânico confunde-se com o inorgânico.
Dentro do grotesco, afirma Rosenfeld, assumem caráter especial as vinculações
entre a humanidade e a animalidade, tema que simboliza a dificuldade de lidar com o
parentesco corporal entre o homem e o bicho. Derivam do tema da animalidade as
constantes referências do grotesco às partes baixas do corpo. A inquietação das
consciências provocada pelo grotesco situa-se nas tão temidas, mas também tão visíveis
similitudes entre uma e outra categoria.
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43
No Maneirismo, Rosenfeld aponta que o grotesco era freqüentemente produzido
pela utilização ao extremo de motivos ornamentais da Antigüidade encontrados em grutas,
assim como pela mistura dos mundos humanos, animais e vegetais. No mesmo sentido, é
importante destacar a criação de personagens animais antropomorfizados ou homens
animalizados; assim como a de homens com aparência de objetos ou objetos que adquirem
vida humana.
Entre esses processos, Rosenfeld aponta a linguagem como importante expressão
do grotesco, principalmente através da utilização de trocadilhos. A língua pode invadir uma
nova dimensão através de um fluxo exagerado de sinônimos, antônimos, assonâncias e
associações, criando um mundo desproporcional e desconhecido. Um processo de
produção do grotesco está na criação de vocábulos estranhos, capazes de trazer um efeito
de pavor frente o que não é mais familiar, mas sim desconhecido. Outra forma de produzir o
grotesco é levar ao pé da letra provérbios populares; também a criação de palavras
compostas cria animais fabulosos. O uso excessivo do diminutivo cria um mundo liliputiano,
e uma confusão gramatical grotesca é facilmente produzida por verbos que tomam a flexão
de substantivos ou o contrário, e também por outras anormalidades gramaticais.
A língua nos aprisiona, nela vivemos frente a uma enormidade de clichês que
falsificam as nossas experiências. Seu poder de criação impõe dúvidas a respeito do caráter
básico do cotidiano. Este ceticismo lingüístico combinado com uma atitude lúdica da
linguagem constitui, portanto, segundo Rosenfeld, um importante caráter de definição para o
grotesco. Como exemplo, cita poemas alemães que brincam com a estrutura da língua, com
sua sintaxe e vocabulário, produzindo um mundo irreal.
Desse modo observa-se que o grotesco é um recurso eficiente para apresentar
uma perspectiva desestruturadora da cisão convencional da realidade.
A categoria do grotesco, buscando uma perspectiva desestruturadora, é,
confirmadamente, uma estratégia de transgressão ao cânone. Na literatura contemporânea,
a ruptura com a forma tradicional do romance e o tratamento despojado dado a temáticas
antes censuradas é o que caracteriza a atitude de transgressão ou estranhamento. Assim,
narrador, personagens, tempo e espaço ganham perspectivas novas e por vezes de difícil
definição; ao mesmo tempo em que se elege uma nova maneira de tratar assuntos como a
política, a pátria, a sociedade, a família e seus respectivos valores. Pressuposto disso é que
as manifestações do estilo grotesco podem ser encontradas tanto na estrutura da obra
quanto no tratamento dado à temática nela abordada. E, por esse motivo, apresentamos a
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organização da narrativa nos dois capítulos que se seguem, para depois verificar a
ocorrência do grotesco dentro da história de O Conquistador.
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3 ORGANIZAÇÃO DA NARRATIVA
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46
No capítulo anterior, argumentamos que o grotesco, como estratégia de
transgressão, pode ser verificado tanto na abordagem temática como na composição da
obra. A fragmentação é o dado inovador em relação à literatura tradicional, nela podem ser
observados traços relacionáveis à categoria do grotesco no que se refere aos elementos
constituintes da narrativa. Essa quebra com a forma clássica de narrar é uma característica
comum em Almeida Faria, desenvolvida em quase todas as suas obras e mais fortemente
notada em Rumor Branco. Em O Conquistador, no entanto, a atitude narrativa é
completamente diversa e o estranhamento não é provocado pela fragmentação e sim pela
reutilização da forma tradicional. Embora a estrutura dessa obra nos apresente um texto
linear, não quer dizer, entretanto, que ela não possa estar permeada por caracteres que a
façam ultrapassar as normas artísticas. Dentro da estrutura, o estranhamento é provocado
pela aparente simplicidade com que se organiza a narrativa, na qual aparecem elementos
sutis e intrigantes que reforçam o caráter de subversão assumido pela obra.
3.1 Epígrafes
O Conquistador é um romance constituído por sete capítulos, sendo que cada um
deles é antecedido por epígrafes de duas naturezas, visuais e escritas. Os fragmentos
lingüísticos que antecedem cada um dos blocos narrativos não fogem ao padrão de
expectativa, por estarem convencionalmente postos ao início de textos, como “tema” do que
os segue. No caso do romance, o imprevisto é dado pela presença de epígrafes visuais,
desenhos que, também eles, condensam visualmente o sentido do segmento que a eles se
seguem.
3.1.1 Epígrafes Iconográficas
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47
As sete figuras utilizadas na obra, assim como a ilustração da capa, são desenhos
caracteristicamente surrealistas de autoria de Mário Botas
1
e vêm desenvolvidas
verbalmente na história de O Conquistador. Quatro delas expressam iconicamente alguns
dos sonhos de Sebastião: as ilustrões que antecedem os capítulos três, quatro e seis
remetem aos seus relacionamentos amorosos (os envolvimentos sucessivos com Justina,
Clara e Helena); a do capítulo sete, ao seu isolamento. As outras três remetem a
acontecimentos de sua vida: a figura do primeiro capítulo ao seu nascimento; e nos
capítulos dois e cinco também são evocados relacionamentos amorosos, os envolvimentos
com Dora Bela e com Julieta.
Nesse sentido, o primeiro capítulo é antecedido por uma ilustração que sustenta o
surgimento de uma lenda, ou um sinal de predestinação, que remete ao contraste entre a
realidade da personagem e o que alguns passam a esperar de sua conduta. A figura
anteposta ao capítulo dois estabelece a “anormalidade” da personagem, expressa pela sua
incomum capacidade de imaginação e por uma sexualidade exacerbada e precocemente
despertada. Isso sugeriria algum tipo de predestinação da personagem. A epígrafe do
capítulo três apresenta a cena do primeiro envolvimento sexual de Sebastião, relacionando
a concepção do pecado original vinculada à previsão de sucesso sexual. No quarto capítulo,
pode-se observar a constatação de uma transgressão social e seu conseqüente julgamento,
transgressão esta vinculada aos meios ilícitos necessários para a concretização do objetivo
final. No capítulo cinco, temos a ilustração do sexo vulgarizado. Uma espécie de exorcismo
vinculado com a utilização da mentira e da falsidade, na narrativa do que a personagem
considera como a realização de sua missão, pode ser visualizado na epígrafe do capítulo
seis. E, por fim, na epígrafe iconográfica do capítulo sete temos a imagem de um “outro”,
integração dos elementos constitutivos da identidade do narrador-protagonista, vinculada à
constatação final do romance.
Todas as figuras trazem algum traço que remete a um sentido sexual, com
exceção das que ilustram o nascimento e o isolamento da personagem. Também
encontramos nelas, elementos monstruosos mesclados a elementos de transgressão
religiosa. Ao longo do texto, mais especificamente no sexto capítulo, a personagem
comenta o fato de receber todos os meses desenhos de um amigo seu. Segundo ele, estes
desenhos são muito próximos às imagens que nascem de seus sonhos, sendo que, às
vezes, nem ele próprio as sabe distinguir, fundindo ficção e realidade. Todos esses
1
Pintor português nascido em 1953. Sua obra começa a prosperar a partir de 1977. No que se
relaciona às tendências por ele assumidas, articula o poético e o fantástico, integrando a herança
surrealista a uma atmosfera onírica e simbolista. É peculiar em sua pintura o cruzamento com
referências literárias.
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aspectos, a presença da sexualidade, de figuras monstruosas, da mistura entre o profano e
o religioso, assim como da fusão entre o real e do ficcional, encontrados nos desenhos de
rio Botas, contribuem para que as epígrafes iconográficas assumam a função de ilustrar
e intensificar o clima de estranheza e grotesco das passagens correspondentes.
3.1.2 Epígrafes Verbais
A utilização de elementos pertencentes a realidades distintas está presente
também nas epígrafes verbais. Nelas, temos sete fragmentos, em cinco idiomas diferentes,
respectivamente de autoria de: Virgílio, Daniel Defoe, Camilo José Cela, Isak Dinesen
2
,
Giorgio Manganelli
3
, Diderot e Cervantes. Uma estratégia utilizada para se produzir
estranhamento, dentro da categoria do grotesco, é a fusão entre mundos diversos. Ao
utilizar autores de vários tempos e várias tipologias textuais, o narrador mistura concepções.
Causa, com isso, um aparente disparidade, mas, após uma análise das epígrafes, podemos
perceber que há uma forte relação entre elas e entre o texto que precedem.
No capítulo um, temos a citação Si vera est fama”, referida na obra como epitáfio
do túmulo de D. Sebastião. De acordo com Maria de Lourdes Netto Simões, esta inscrição
está relacionada ao processo de validação, ou ilusão de veracidade no texto ficcional. Para
Sebastião, desde o seu nascimento mítico, foi construída uma determinada imagem que lhe
atribuía um destino assinalado. A responsabilidade por essa construção ele transfere para a
perspectiva de outras personagens como sua avó, seu pai e as testemunhas do seu
nascimento. Há um conflito sobre o que dele se pensa e o que ele conta sobre si mesmo. As
circunstâncias de seu nascimento o aproximam da figura de D. Sebastião. Angustiado com
as conseqüências de tal identificação, ele prefere fingir desconhecer ou ignorar tais ligações.
O capítulo dois traz como epígrafe o fragmento “In speech an irony, in fact a
fiction”. Netto Simões afirma que tal epígrafe também remete a uma característica da
construção do discurso ficcional. A construção do discurso lança mão da ironia e da paródia,
ao mostrar o comportamento desregrado da personagem em relação aos valores pré-
estabelecidos e às expectativas de predestinação que se vão construindo a seu respeito.
“El número siete, hijo mio, es un número muy importante, ya lo verás” é a citação
que encabeça o terceiro capítulo. Para Netto Simões, este fragmento destaca-se pela
2
Isak Dinesen é um dos pseudônimos de Karen Blixen (1885-1962) autora dinamarquesa que
escrevia em inglês; com sua obra Entre dois Amores (1941) foi indicada ao prêmio Nobel.
3
Escritor italiano do século XX. Escreveu: Pinóquio: um Livro Paralelo, Centúria: Cem Pequenos
Romances-Rio e Hilarotragoedia.
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49
referência ao número sete, o número de capítulos do romance, considerado como um
número misterioso. É através desse mero, juntamente com a exposição da história de
Santa Justina, que Sebastião inicia a conquista de sua professora. Alega ele serem sete as
letras de seu nome e a compara a eventos relacionados com o número sete, como os dias
da criação e as maravilhas do mundo. Esse mero seria, segundo a personagem, sinal de
felicidade e dos destinos raros.
A quarta epígrafe traz as seguintes palavras: “Madame, to my mind there never
was a great artist who was not a bit of charlatan; nor a great king, nor a god”, requisitos de
um artista maior, segundo Maria de Lourdes Netto Simões. Nesse capítulo, Sebastião
ressalta a necessidade de certas artimanhas para a concretizão de seus objetivos. Entre
elas estão as mentiras para livrar-se das aulas e da conseqüente “segregação sexual”, os
artifícios para conduzir as mulheres a locais apropriados para conquistas amorosas e as
práticas de sedução por ele utilizadas.
No quinto capítulo, podemos ler o seguinte fragmento: “Lo sai, dunque, che questa
è la descrizione del nostro amore, che io non sai mai dove sei tu, e tu non sai mai dove sono
io?”. Para Netto Simões, esta citação constitui a definição do propósito amoroso do
conquistador. A primeira frase deste capítulo remete ao capítulo anterior e à partida de
Clara: “Sem Clara fiquei órfão de mim.”, sendo essa a descrição de seu amor, a separação
entre ele e sua conquista mais significativa. Ao longo desse capítulo, Sebastião vai
conhecer, com Julieta, um tipo de amor bastante diferente do que havia vivido com Clara; a
dúvida expressa na citação mostra a impossibilidade de reencontrar novamente o mesmo
amor.
Ainda de acordo com Netto Sies, a citação que encabeça o sexto capítulo está
também relacionada à relação entre realidade e verdade ficcional. Nela, podemos ler: “Il y a
peu de relations auxquelles on ne puisse appliquer ces que Strabão de celle de Ménélas: je
vois bien que tout homme qui écrit ses voyages est un menteur”. Nessa parte do texto,
Sebastião nos conta sobre seu relacionamento com Helena, sua viagem e aventuras em
Paris. Assim como as epígrafes dos capítulos um e quatro, aqui temos a inferência à
mentira, ao fingimento e ao artifício, prerrogativas não necessárias como também
inerentes à narrativa ficcional.
Finalmente, no último capítulo, encontramos a egrafe “Su libro tiene algo de
buena invención, propone algo, y no concluye nada: es menester esperar la segunda parte
que promete: qui com la enmienda alcanzará del todo la misericordia de ahora se le
niega...”, que, para Netto Simões, significa uma referência à inventiva do texto e a sua
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50
perspectiva de recepção. Sebastião, narrando sua história, propõe uma reflexão acerca da
situação do homem no que se refere às incongruências que perpassam tanto a situação
nacional como a mundial. Fala sobre qual deverá ser o local e a postura desse homem para
alcançar um objetivo ainda incerto. “Nada conclui” remete à estrutura cíclica de sua obra, a
história continua e talvez uma “segunda parte” traga o final da discussão.
Para Maria de Lourdes Netto Simões, as epígrafes verbais estão relacionadas com
a universalidade da criação artística e com a sua construção. Segundo suas palavras:
através dos respectivos autores das epígrafes (Vergilius, Defoe, Cela,
Dinesen, Manganelli, Diderot e Cervantes), percorre tempos e
nacionalidades, que a arte de criar não tem tria única, é transcendental,
universal. As epígrafes apontam a estrutura circular do texto. Tal estrutura
promove o recomeçar incessante da leitura, que vai sendo gradativamente
insinuada pelo produtor e descoberta pelo leitor.
Sem dúvida, podemos retirar das epígrafes verbais idéias que remetem à produção
textual, por exemplo: o primeiro texto deixa entrever a estratégia de construção da
personagem; a seguir, temos a característica do discurso ficcional; no texto três, vemos uma
referência à perfeição e ao aspecto cíclico da história. Na quarta epígrafe, assim como na
sexta, percebemos uma clara inferência ao fingimento poético e à relação entre a obra
ficcional e a História. Na epígrafe cinco, ressaltamos uma preocupação com o conteúdo da
obra. E por fim, a citação do capítulo sete remete-nos à conclusão do romance, uma
conclusão que fica em aberto. É importante salientarmos, entretanto, a relação entre as
epígrafes iconográficas e verbais, o que estende a estas últimas a função de complementar
e intensificar a proposta de estranhamento da obra.
3.2 Narrador, Tempo e Espaço
De acordo com a nomenclatura de Gérard Genette (1976), o narrador de O
Conquistador pode ser caracterizado, predominantemente, como homodiegético com
perspectiva passando pelo narrador; tipologia que marca as narrativas autobiográficas ou
relatos nos quais o narrador conta a sua própria história, retrospectivamente. Neste caso, o
narrador (Sebastião) participa da história, sendo sua personagem principal. Isto significa que
possuiria um saber mais significativo em relação aos fatos de sua vida, sentindo-se,
portanto, autorizado a interferir na narrativa, para explicar e comentar os fatos que narra.
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51
O que difere do modo tradicional da narrativa, nesse caso, e, por conseguinte,
produz um efeito de estranhamento, é a utilização de outras vozes, combinadas com o
objetivo de isenção de responsabilidade requerida pelo narrador-personagem, assim como a
naturalidade com este apresenta sua história. Sebastião trata assuntos de naturezas
divergentes com a mesma “seriedade”, colocando num mesmo patamar temas como o culto
à sexualidade e o respeito às normas sociais e religiosas.
Assim, a possibilidade de definição da tipologia de narrador utilizada na obra não
exclui, entretanto, a constatação de outras perspectivas narrativas, cujo efeito é o de
contribuir para a construção de uma dupla identidade de Sebastião. Com efeito, para a
narração de sua vida, o narrador utiliza as vozes de sua avó, de seus pais, de vizinhos e do
cavaleiro que presenciou o seu nascimento.
A narrativa de seu nascimento, por exemplo, é de responsabilidade de sua avó. É
Catarina quem informa à criança as circunstâncias míticas em que ela teria vindo ao mundo.
A utilização dessa voz contribui para expressar a idéia das outras personagens acerca de
Sebastião e de sua possível predestinação. Tira também da personagem principal a
responsabilidade pela veracidade dos fatos, que essa história foi-lhe narrada por
terceiros. Nesse caso, a verdade do acontecimento está condicionada à máxima de que “as
avós nunca mentem” (p. 11) e ao fato de ninguém nunca ter tido coragem de contradizê-la.
À avó também está designada a responsabilidade pelas narrativas da história da vida de seu
avô aventureiro de quem Sebastião teria herdado o gosto pela aventura, e da história do rei
desaparecido em combate.
A voz de seu pai também contribui para a construção da narrativa que conta de
seu insólito aparecimento. A avó conta sob a perspectiva de João de Castro o episódio em
que este teria saído para caçar polvos, o que possibilitou que encontrasse a criança. Seu pai
relatava o aspecto apocalíptico da praia no momento em que encontrou Sebastião e
caracterizava a tempestade que antecedeu esse encontro da seguinte forma: “naqueles
momentos a Serra era um ventre de grávida percorrido pelos abalos que antecedem o
parto.” A esse respeito, contribui também a perspectiva de sua mãe: “Minha mãe garantira
que três vezes a terra tremera.” (p. 13).
De responsabilidade de seu pai e sua mãe são ainda a narração da misteriosa
mudez que acometeu a criança até os três anos e da forma como tal enfermidade foi
vencida. Ambos, ao presenciar o suposto milagre, contam como viram o sobrevoar de uma
ave estranha sobre a casa, fato que a transfigurava em incomum luminosidade. Destacam-
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se ainda a narração da vida de Santa Justina por sua mãe, o que o auxiliou na conquista da
mestra e a narração do período em que uma forte doença quase o levou à morte.
A interferência de vizinhos juntamente com a de seu pai, trazem para a obra o
elemento da sabedoria popular. Isso ocorre através da citação de provérbios: “relâmpagos
ao norte e vento forte, se do sul vem, chuva também” (p. 13); superstições: “Houve quem
garantisse que eu beijara um espelho de algibeira que me emprestavam para brincar, e
criança que beije espelho fica muda para sempre” (p. 28); e simpatias: “... e mataram um
piolho da minha cabeça na asa de um cântaro de barro, remédio com fama de nunca falhar”
(p. 29).
O cavaleiro Alcides de Carvalho, testemunha presencial do encontro do recém-
nascido, contribui para confirmar o incvel aparecimento de Sebastião, para espalhar essa
lenda e para, sendo membro fundador do cleo Sebastianista de Lisboa, fazer com que a
personagem tivesse conhecimento dos detalhes que permearam a vida do rei D. Sebastião.
A maneira natural como o texto é narrado possui certa responsabilidade sobre a
construção do efeito de grotesco, que o estilo, à primeira vista descuidado e
despretensioso, permite a mistura entre a realidade e a ficção, entre o real e o imaginário,
entre o sagrado e o profano, entre o culto e o popular. A simplicidade das perspectivas
utilizadas vêm, através da sua transparente credulidade, confirmar as suspeitas a respeito
de Sebastião.
Todas essas interferências são perspectivas utilizadas na construção da narrativa,
dando mais autoridade à história de Sebastião. Outro efeito é o de construir uma identidade
paralela à sua, mostrando a opinião e às expectativas das outras pessoas em relação ao
seu trajeto. Assim se estabelece o que foi Sebastião e o que pensava e esperava um certo
grupo em relação à personagem.
Quanto à questão temporal, podemos perceber que o narrador-personagem traça
um paralelo entre dois momentos da narração: o momento presente, onde temos a ação de
isolar-se para melhor recuperar o passado, no qual se desenrolam as outras ações
constituintes da história. Assim, ao mesmo tempo que organiza os fatos de sua vida no
passado, Sebastião retorna algumas vezes ao presente para refletir sobre esses
acontecimentos. Esses retornos e avanços na narrativa, mesmo apresentando uma
ocorrência constante, não alteram a ordem linear assumida pelo relato.
O tempo cronológico em que se inicia a ação será designado no primeiro capítulo.
Trata-se de 19 de janeiro, dia no qual ocorre a tempestade que antecederá o aparecimento
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do recém-nascido. E, mais adiante: vinte de janeiro de 1954, data que consta na carteira de
identidade. Sabendo, como nos informa o narrador no final do primeiro capítulo, “De nada
mais preciso neste dia do meu vigésimo quarto aniversário” (p. 20), que a história está
sendo contada vinte quatro anos depois do acontecimento em que surgiu para a vida,
podemos inferir ser este o ano de 1978.
Segundo a lógica da sucessão temporal, o primeiro capítulo mostra o momento do
nascimento da personagem em contraposição ao seu aniversário de vinte e quatro anos. No
segundo capítulo, nos é apresentada a primeira infância da personagem (“No meu primeiro
dia de anos....” (p. 25), ou “Melhor prenda tive por volta do meu segundo aniversário...” (p.
26); “Até aos três anos não articulava uma única palavra.” (p. 28)) e o momento em que este
passa a freqüentar a escola (Na primeira festa carnavalesca em que participei, tinha seis ou
sete anos, dancei todo o tempo com Alia [...] Daí que ela fosse decretada minha
namorada, coisa em que acreditou e que levei, durante dois anos, muito a sério” (p. 34)),
cobrindo, mais ou menos, o período que transcorre entre um e oito ou nove anos. O terceiro
capítulo apresenta Sebastião com essa idade, em sua relação com Justina, que durou
aproximadamente por dois anos (“Na terceira classe essa fatalidade começou a agradar-
me...” (p. 43), “No fim do ano lectivo [...] reprovei redondamente.” (p. 49), “Fiquei bem nos
exames finais, deixei a escola da Azóia para freqüentar o secundário em Sintra” (p. 52). No
quarto capítulo, a personagem está, aproximadamente com quatorze (“...andei em bolandas
nos três anos seguintes.” (p. 57), “Até que em abril, dez anos exactos...” (p. 58) ), idade
em que conhece Clara. No início do quinto capítulo, que apresenta Sebastião entre quinze e
dezesseis anos, ele passa a morar com a avó (“Aos quinze anos e nove meses, passei a
morar em sua casa, o que nos aproximou cada vez mais.” (p. 17), “No dia de meus anos
estava um sol de primavera...” (p. 83)). No final do capítulo, Sebastião escom 19 anos
(“Nos quatro anos em que fui seu hóspede...” (p. 92)). É com essa idade que Sebastião
aparece no início do sexto capítulo, quando se envolve com Helena e parte para Paris
(“Calhavam optimamente as férias parisienses, visto que em breve completaria vinte anos...”
(p. 111). Finalmente, no sétimo catulo, estando isolado na Ermida da Peninha, a
personagem completa seu ciclo, fechando vinte e quatro anos.
O inesperado no que se refere ao tempo do romance é a relação entre a sucessão
temporal e os eventos da vida da personagem. Cada fase da vida, naturalmente, está ligada
a uma idade determinada. No caso de Sebastião, todas as fases apresentam uma
precocidade muito grande, assim, acontecimentos que deveriam ocorrer em estágios de
maturidade, assaltam a personagem ainda na infância e adolescência. Essa disparidade
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causa estranhamento, revelando a presença do grotesco, principalmente quando se refere
aos envolvimentos sexuais da personagem.
O espaço onde se desenrolam os acontecimentos da vida de Sebastião perfaz um
ciclo completo, no qual temos como espaço inicial e final o Cabo da Roca, na Serra de
Sintra. Este é o local onde, inicialmente, vivem Jo de Castro e sua esposa Joana,
supostos pais da personagem. É neste local que Sebastião vive sua infância, e é também
neste local, depois de residir em Sintra, Lisboa e Paris, que a personagem vem buscar o seu
refúgio, no eremitério da Peninha.
A questão espacial está relacionada às fases da vida de Sebastião. Sua primeira
infância transcorre no Cabo da Rocca, onde convive com seus pais, com sua avó Catarina,
que o visita, e com Dora Bela, seu primeiro relacionamento amoroso. Em idade de
freqüentar a escola, Sebastião passa a percorrer a distância que o separa do local onde
reside e a aldeia mais próxima, a Azóia. Assim, conhece Amélia, sua “segunda namorada”.
Como o namoro das crianças ocorre no caminho entre a casa e a escola, podemos concluir
que este deslocamento representaria uma transição entre a primeira e a segunda infância.
Ao fim desse relacionamento e à beira de alcançar a adolescência, Sebastião passa a
relacionar-se com sua professora Justina, na escola da Azóia. Freqüentar o secundário em
Sintra lhe traz a oportunidade de conhecer e conviver com Clara, a mais significativa entre
as mulheres de quem se aproxima. Mais ou menos aos quinze anos, muda-se para a casa
da avó em Lisboa, onde inicia o relacionamento com Julieta e conhece Helena, que o leva a
Paris na chegada de sua maioridade.
A mudança de espaço representa mudanças e avanços na vida da personagem.
Essa relação, assim como a ligação de alguns dos locais ficcionais com os locais habitados
ou visitados pela personagem histórica D. Sebastião (Serra de Sintra, onde caçava e Ermida
da Peninha, onde descansava) trazem para a narrativa o elemento insólito e mítico.
3.3 Personagens
A narrativa de O Conquistador tem como figura central a personagem Sebastião.
Não há, na obra, nenhuma outra personagem que a ele se iguale, em termos de
importância. Deparamo-nos, ao longo do texto, com um número significativo de
personagens, predominantemente femininas. Podemos dividi-las em dois grupos: as que
estão ligadas a Sebastião por relações familiares e as que a ele estão ligadas por relações
amorosas. Todas elas são local de manifestação do grotesco, tanto por auxiliarem na
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construção de uma personagem mítica, quanto pela expressão da sexualidade incomum de
Sebastião.
A forma como essas personagens aparecem na história está relacionada com as
fases da vida de Sebastião. Cada personagem aparece em um momento específico, sendo
que sua participação não se estende a outras ações, com exceção da participação de sua
avó Catarina, que apresenta uma importância maior na história e que aparece repetidas
vezes.
As personagens que fazem parte de suas relações familiares, seus pais e avó,
surgem no início da história, na narração de seu nascimento e de sua primeira infância. Os
vários relacionamentos amorosos principiam com a presença de Dora Bela, no despertar da
sexualidade; temos a menina Amélia, no momento em que começa a freqüentar a escola;
aparece a professora Justina em sua iniciação sexual; a estrangeira Clara vem trazer para a
personagem a sensação de um amor intenso; Julieta aparece no momento em que a
personagem muda-se para Lisboa; e Helena está relacionada a seu exílio em Paris.
A participação de seus pais tem a função de estabelecer a estrutura familiar da
personagem, e expressar as misturas de crenças que geram a possibilidade de
predestinação, motivo pelo qual estas personagens tomam parte na história somente no
início do texto. sua avó possui uma significação maior para Sebastião, é ela quem lhe
conta as histórias de sua infância e do rei com quem compartilha o nome e a data de
nascimento. A proximidade de Catarina durante a infância vai estender-se para outras fases
de sua vida, principalmente no momento em que Sebastião vai morar com ela em Lisboa e
seu relacionamento amadurece, estabelecendo-se um comportamento invulgar entre netos
e avós.
As mulheres que tomam parte na história expressam o desempenho sexual de
Sebastião e estão, cada uma, situadas em um momento específico, sendo que sua
participação completa um ciclo narrativo, ou seja, o envolvimento com a personagem
principal está condicionado por uma ação que possui início, meio e fim. Por esse motivo,
nenhuma das personagens femininas irá aparecer outras vezes durante a narrativa.
Assim, vemos que a personagem principal vai, no decorrer de sua vida,
conhecendo um grande número de pessoas que a ajudam no cumprimento do que pensa
ser a sua missão e contribuem para a construção da sua dupla identidade. No entanto,
essas personagens vão ficando para trás na história e ao cabo da obra, a personagem
encontra-se sozinha, isolada dos locais e das pessoas que fizeram parte de seu percurso.
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3.4 Matéria da narrativa: lembranças e sonhos
Por se tratar de um narrador que busca compreender um percurso de vida com
vistas ao futuro, para a estruturação dessa narrativa são utilizadas as lembranças de
Sebastião, os testemunhos de outras personagens como seu pai, sua mãe e principalmente
sua avó, assim como imagens que vêm a sua mente através de sonhos e devaneios.
O narrador-personagem realiza uma retomada dos eventos que fizeram parte de
sua vida, iniciando com o seu nascimento, história pela qual sua avó Catarina assumia a
responsabilidade. O relato do nascimento de Sebastião é importante para a compreensão
da personagem como um todo, porque estabelece a aura de mistério que o vai acompanhar
ao longo da história, ao mesmo tempo que constitui a indicação da presença constante do
estilo grotesco na obra.
A forma como se a narrativa do aparecimento de Sebastião envolve a
personagem numa rede de excepcionalidade, cujo efeito é o de explicitar sua importância
como instrumento de alguma missão redentora. A partir desse relato, as pessoas passam a
esperar algo especial da personagem e alguns fatos de sua vida parecem confirmar essa
esperança. No entanto, Sebastião assume uma conduta contrária a da sua predestinação e
é esse choque de perspectivas que provoca a dúvida identitária que culminará com a
necessidade de revisão constituinte do romance.
3.4.1 O Nascimento
O relato do nascimento da personagem Sebastião, dentro da perspectiva grotesca,
assume um caráter sobrenatural. Segundo o que lhe contaram, ele não teria nascido como
as outras pessoas. Teria surgido do mar, após uma terrível tempestade. Naquela manhã de
nevoeiro, em que grande parte da praia da Adraga havia sido destruída pelo fenômeno, seu
pai saíra para apanhar polvos nas rochas, encontrando-o dentro de um ovo à beira do mar.
Depois de disputar a criança com uma cobra marinha que a guardava, João de Castro
levou-a para sua casa.
A personagem afirma acreditar nessa versão de seu nascimento por dois motivos.
Primeiro, porque quem lhe contava sobre a catástrofe era sua ae, máxima citada por
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Sebastião, “as avós nunca mentem” (p. 11). Além disso, ninguém ousava contradizê-la: nem
o pai nem a mãe de Sebastião desmentiam essa versão de sua origem.
Quanto à caracterização do ambiente em que ocorre o nascimento, o estilo
grotesco manifesta-se pelo uso do exagero e pela personificação dos elementos da
natureza. Podemos dizer que estamos diante de um fenômeno natural nunca antes
registrado: uma tempestade que se assemelha ao fim do mundo. Sobre a catástrofe, diria
sua mãe que “... três vezes a terra tremera.” (p.13) e seu pai: “...naqueles momentos a serra
era um ventre de grávida percorrido pelos abalos que antecedem o parto.” (p. 13) Essas
observações fazem parecer que o ambiente estava se preparando para o parto de
Sebastião, apontando para duas possibilidades: Sebastião teria vindo do mar, pois era
guardado por uma serpente marinha ou teria sido parido pela Serra de Sintra, vindo portanto
da terra? Essas imagens trazem a idéia de gênese mítica, reforçada pelo aparecimento da
criança na praia envolvida por um ovo.
Contrasta com o nascimento o aspecto apocalíptico do acontecimento, sugerido
pela tempestade que, como foi observado, assemelhava-se ao fim do mundo. Assim,
configura-se um paradoxo. Ao mesmo tempo que, frente ao nascimento do protagonista
acompanhamos uma gênese sobrenatural, a caracterização desse nascimento lembra uma
imagem de destruição total e a descrição das testemunhas confirma o “aspecto apocalíptico
da praia.(p. 15) Constatamos também a presença de dois elementos escatológicos que
provocam uma vasta destruição: o fogo e a água.
Uns uivos surdos, curtos, seguidos de outro mais demorado, desvairaram os
animais das vizinhanças, lançaram o pânico entre os humanos que viram
telhas e tectos abrindo, paredes estalando, soalhos rachando ou pegando
fogo quando as brasas das lareiras se espalharam, quando a fraca chama
das velas de repente incendiou panos que estavam perto, quando as
chaminés de vidro dos candeeiros a petróleo explodiram estilhaçadas.
Houve quem corresse para fora de casa, preferindo o dilúvio ao estoirar dos
telhados. [...] O pior viria pela tarde, quando as trevas antecipadas
impediram de perceber a extensão das enxurradas. Na cerração da noite,
as bátegas batidas por rabanadas de vento arrancaram grandes árvores
que as levadas arrastavam contra as pontes de pedra, em pouco tempo
destroçadas, arrasando então tudo à volta, currais e gado, carros e
carroças. Até dois ou ts velhos levados na torrente, desapareceram sem
deixar rasto. (FARIA, 1993, p.13; 14)
As imagens de destruição que se sobressaem no exemplo acima estão
relacionadas à caracterização do vento que, por seu “uivo”, deixava tanto animais como
humanos transtornados e em pânico. As casas eram destruídas e o fogo alastrava-se de
todas as formas: através das brasas das lareiras, das chamas das velas e dos candeeiros.
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Destacamos o fogo, mas também a água, associada ao vento, provocava destruição:
através das enxurradas que não podiam ser percebidas nas trevas, das árvores arrancadas
pela ventania e que eram arrastadas pelas águas e destruíam pontes, da violência da
torrente que levava animais e até alguns velhos.
É nesse ambiente de terror e destruição, onde se acreditava estar presenciando o
fim da humanidade, que, supostamente vem à vida a misteriosa personagem.
O narrador vale-se, para compor este quadro, em especial do depoimento da avó,
assim como de comentários de sua mãe, de seu pai e das testemunhas (um cavaleiro
maneta e três peões de brega). Duas outras imagens por ele utilizadas também sobressaem
por traduzirem a situação de catástrofe em que se encontra o ambiente. São elas:
O horizonte desapareceu completamente, uma escuridão de estanho
esfumado avançara dos lados do Norte da África à velocidade de um
tornado, atroando tudo com o barulho de todos os bombos e tambores do
universo. (FARIA, 1993, p. 13)
e
Vindas do mar, lufadas de névoa avançavam em direção à Serra, como um
exército desordenado recuando em debandada. (FARIA, 1993, p. 15)
No primeiro fragmento, o horizonte é tomado pela escuridão. Novamente o vento é
responsável pela destruição, pois essa escuridão, provocada pelas nuvens de tempestade,
é acompanhada da violência do vento, ameaçador pelo barulho que anuncia a destruição
que pode causar. A imagem de um exército, no segundo fragmento, remete a uma batalha,
outro elemento que lembra destruição e morte.
O aspecto contrastante nessa passagem em relação ao fato que poderia ser
considerado aceitável por ser natural - encontrar uma criança abandonada na praia - está na
forma como a criança é encontrada, envolvida em um ovo enorme e guardada por uma
serpente marinha. Soma-se a isso a batalha entre seu pai e o réptil, na qual João de Castro
decepa o animal com uma simples lança de apanhar polvos. E não podemos deixar de
mencionar as testemunhas, figuras ridículas, que confirmam o episódio: um cavaleiro
maneta e três peões de brega. Tudo isso traz para o acontecimento, caracteristicamente
grotesco, um aspecto insólito e duvidoso.
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59
3.4.2 Os Sonhos
Um aspecto bastante significativo na construção da personagem é a alise de
seus sonhos e devaneios, somente esse aspecto já bastaria para comprovarmos a presença
do insólito na obra. O elemento onírico é considerado uma das formas mais expressivas de
produção de efeito grotesco, cuja categoria pode ser confirmada na estrutura de O
Conquistador pela sua ocorrência massiva. A primeira alusão do narrador-protagonista aos
seus constantes sonhos aparece no primeiro capítulo, no momento em que apresenta as
circunstâncias de seu nascimento. Afirma haver um sonho que sempre o persegue, desde
muito cedo na infância, com as imagens da tempestade que antecedeu seu nascimento:
”Muitas vezes, hoje mesmo, os sonhos me trazem imagens da catástrofe. Sinto arrepios ao
evocar as circunstâncias que precederam e que de certo modo predisseram o instante em
que vi a luz do dia” (p. 13).
Encontrando-se em uma fase em que a construção da história pode ser levada
adiante por sua própria rememoração dos eventos de sua vida, Sebastião afirma lembrar-se
de que, constantemente, tinha pesadelos com as imagens da catástrofe de 19 de janeiro.
Assim, o sonho funciona como um ativador da memória, ou seja, as imagens sonhadas por
Sebastião contribuem para a construção do ambiente e, em conseqüência, da narrativa de
seu nascimento, tanto quanto o testemunho de outras personagens.
Sebastião sonha ou divaga durante toda a narrativa, até o último parágrafo da
obra, que constitui a transcrição de um sonho seu. Através do sonho, temos a expressão de
suas dúvidas e temores; neles encontramos imagens da tempestade que teria antecipado
seu aparecimento, lembranças da batalha de Alcácer-Quibir; as incertezas sexuais dos
primeiros relacionamentos; o domínio dessas incertezas na idade adulta; e, por fim, a
conclusão acerca de suas reflexões, no último sonho.
No segundo capítulo, temos a descrição de outro sonho também recorrente, mas
apenas no período de zero a três anos. Seu conteúdo atormenta a criança porrias noites,
terminando somente quando esta domina a capacidade de falar.
Esse pesadelo relata uma batalha de que a personagem, involuntariamente,
participa. Essa batalha, assemelha-se à Batalha de Alcácer Quibir, na qual D. Sebastião
teria desaparecido.
Na descrição dessas imagens, que Sebastião considera uma manifestação do
inferno, de algum “limbo ou zona turva”, são utilizadas sensações, representações bastante
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verossímeis no que se refere a uma guerra, criando assim forte impressão de realidade,
como se tal cena tivesse realmente sido vivida.
Ocorre, ainda, nesse sonho, a justaposição entre as figuras da personagem e do
rei desaparecido no Marrocos, em Alcácer-Quibir. Observa-se uma descrição da batalha em
que D. Sebastião perdeu a vida: gente de turbante representa o exército mouro, inimigos do
protagonista, portanto dos cristãos; a localização da batalha, em local onde o sol e a poeira
impedem a visão, a figura do inimigo com o rosto desfigurado pelo lupus, reencontrada no
marroquino de Paris, muitos anos depois.
O pesadelo se desvanece no momento em que Sebastião, incapaz de falar até os
três anos, conquista a fala ao expelir pela boca um bocado de carne esponjosa.
Na terceira manifestação onírica relatada (capítulo três), encontramos Sebastião
em estado de vigília. Trata-se de um devaneio. Sebastião tem, ou acredita ter uma visão, ao
encontrar-se com Justina, sua professora, na praia. Esse devaneio está relacionado à
iniciação sexual da personagem, na passagem, portanto, da infância para a adolescência. A
cena horroriza a personagem, que se sente como alguém flagrado a cometer um ato ilícito.
O que vê cria nele uma expectativa de punição. Com medo, reage rezando e, assim,
consegue vencer o temor. Em Justina, a aparição provoca apenas indiferença.
No quarto capítulo, após a primeira relação sexual com Clara, Sebastião sonha
com um tribunal, ao qual é levado pelo ato praticado.
Os sonhos do quinto e sexto capítulo revelam preocupações não mais associadas
a interdições à sexualidade, mas à concretização progressivamente infratora das relações
estabelecidas por Sebastião.
A conclusão do romance traz uma imagem sonhada por Sebastião que se
diferencia dos outros sonhos pela debilidade do elemento grotesco. Através dele, Sebastião
parece encontrar a paz de espírito que procurava, não com a solução de seus problemas,
mas com a certeza de que sua missão secumprida e alguém de guiá-lo nessa tarefa.
Seu último sonho nos é apresentado ao término de suas reflexões, depois de sete meses de
retiro:
Seja sonho meu ou desenho de meu amigo que todos os meses me traz
novos esboços, ultimamente aparece-me de noite uma figura nua que podia
ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvas compridas, usando na
cabeça a mitra dos dignatários e príncipes. Pára diante de mim e apoia
numa rocha a grossa espada, de punho escamoso terminada em boca de
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drago. Es rodeado por quatro monstruosos animais, como os símbolos
dos Evangelistas cercam o Filho do Homem nalguns ícones, e representam
o sal do desejo, o pez da nostalgia, o mercúrio do movimento, o enxofre da
melancolia. Como se fosse um sol, sete estrelas giram à minha volta. São
as Plêiades, da constelação do Touro, e de repente tranquiliza-me a
evidência de que aquele Sete-Estrelo me de guiar pela vida fora e me
há-de defender de morrer cedo. (FARIA, 1993, p.130)
A personagem não consegue definir-se como um indivíduo, mas seus temores são
arrefecidos. Em seu sonho, ela encontra o outro, um ser semelhante a ele que o protegerá.
Esse outro, uma segunda (ou a verdadeira) faceta de seu ser. Importa é que a personagem
encerra uma fase de indecisão para voltar-se ao futuro, onde espera poder se realizar.
Afirma não ter descoberto quem é, mas quem não quer ser. “Continuo ignorando quem sou
eu. Se fui quem hoje julgo ser, se sou quem dizem que fui, se nunca serei mais que não
saber quem sou ou quem serei, mesmo assim valeu a pena. E alguma coisa aprendi: quem
não quero ser.” (p. 126)
É essa a mensagem do último sonho. Os primeiros mostravam as dúvidas da
personagem em relação a si mesma. Agora, estamos em um momento de encontro. A
narração do sonho encerra o romance. Abrem-se as portas para um outro indivíduo um
indivíduo capaz de aceitar a vida como processo, em constante movimento.
O sonho mistura a realidade vivida pela personagem com seu imaginário individual e
com o imaginário coletivo. Seja estabelecendo a aura de mistério para seu percurso,
relacionando-a a uma figura ilustre da história portuguesa, mostrando a repressão sexual
oculta em seu inconsciente, trazendo expectativas de punição sexual, banalizando sua
conduta infratora, seja pondo fim às suas preocupações; o onírico constitui um efetivo portal
para a inserção do grotesco.
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4 AS AÇÕES
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63
Os vários relacionamentos amorosos de Sebasto, ligados ao grotesco através da
manifestação da sexualidade, organizam o plano das ões em O Conquistador. Podem
ser considerados como as ações principais da narrativa, queo reger o romance, fazendo
avançar a história e estabelecendo uma cronologia cuja função é mostrar a progressão da
vida da personagem. Assim, ao isolar-se do mundo em que até então vivera, voltando ao
ponto de partida para relembrar e escrever sobre sua vida, Sebastião relaciona oito grandes
acontecimentos, responsáveis pela disposição sucessiva dos anos que compõem sua
existência. A esses segmentos denominamos õesda narrativa. São elas: o nascimento
da personagem Sebastião; o reconhecimento da sua potencialidade sexual, que se dá
durante o breve relacionamento com Dora Bela; a descoberta do ser feminino e de suas
particularidades, em seu namoro com Amélia; a experiência sexual com a professora
Justina; a descoberta do amor com Clara; seu relacionamento vulgar com Julieta; seu caso
com Helena, o que propicia sua viagem a Paris; e, por fim, seu isolamento e a escrita do
livro que vai narrar a sua vida.
A história de O Conquistador está constituída através da coordenação de
pequenas histórias correspondentes a cada uma das ações acima enumeradas, o seu
nascimento, seus envolvimentos amorosos e seu isolamento. Cada narrativa é fechada em
si mesma, uma vez que apresenta um princípio, um desenvolvimento e um desenlace, com
exceção de seu retiro, cujo desfecho nos é negado. As personagens que “contracenam”
com Sebastião não voltam a aparecer na história, as narrativas não se misturam, ocorrem
cada uma a seu tempo. A única personagem que o acompanhará ao longo da vida é sua
avó. Com ela Sebastião manterá um relacionamento diferente e especial.
4.1 As Categorias Narrativas de Todorov
O modelo proposto por Todorov (1973) em “As Categorias da Narrativa Literária”
prevê o estudo não da literatura, mas da “literariedade”. Com isso, visa-se uma redefinição
do objeto da literatura e passa-se a estudar não a obra, mas “as virtualidades do discurso
literário” (p. 209) que tornam possível a criação da narrativa.
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Para introduzir a metodologia que será apresentada em seu texto, o autor faz duas
diferenciações importantes: estipula a diferença entre SENTIDO e INTERPRETAÇÃO e
entre HISTÓRIA e DISCURSO.
Segundo Todorov, o SENTIDO e a INTERPRETAÇÃO de uma obra são duas
noções preliminares que facilitam o reconhecimento do que pertence ou não ao domínio
literário. O SENTIDO de um elemento qualquer de uma obra é a sua capacidade de
relacionar-se com os outros elementos dela constituintes ou ainda com a obra como um
todo. Essa noção está, portanto, dentro da constituição da narrativa. a
INTERPRETAÇÃO, desloca-se para fora do texto, pois será diferente de acordo com alguns
aspectos externos ao nível textual, tais como a personalidade do crítico, suas posições
ideológicas ou a sua época.
Para o autor uma obra literária apresenta ainda dois aspectos distintos importantes
para a sua compreensão: ela é, ao mesmo tempo, HISTÓRIA e DISCURSO. Enquanto
HISTÓRIA, a obra identifica-se, de uma certa forma, com a vida real ao evocar fatos que
teriam acontecido e personagens que se confundem com personagens da realidade. Nesse
nível, temos o relato dos acontecimentos que vão compor a obra. Como DISCURSO,
reconhecemos a forma pela qual o narrador mostra o texto ao leitor, a forma como são
relatados os fatos que compõem a HISTÓRIA.
No que se refere à HISTÓRIA, em O Conquistador temos um jovem que, aos
vinte e quatro anos, isola-se do mundo para pensar acerca de sua identidade e do sentido
de sua vida. Esse jovem, que se apresenta como o narrador-personagem Sebastião, passa
assim a uma narração detalhada de seu percurso existencial, no qual acredita encontrar
equivalências com a vida de D. Sebastião, um dos reis de Portugal. No momento em que
temos a inserção desse narrador dentro do texto, passamos ao nível do DISCURSO. É
nesse nível que estão as estratégias e o método utilizado pelo narrador para desenvolver a
história.
Assim, de acordo com o modelo de análise da narrativa proposto por Todorov, o
estudo da história pode ser subdividido em dois grupos: a lógica das ões e as
personagens e suas relações. No primeiro item nos são apresentados alguns modelos de
organização das ações, que, segundo ele, estão presentes em todas as obras. Para a
análise de O Conquistador adotamos a categoria destacada pelo autor como lógica da
repetição, escolha justificada pela tendência à reiteração das ações que traduzem os
relacionamentos amorosos de Sebastião.
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65
Assim, o que se repete na exposição da história é o relacionamento estabelecido
entre Sebastião e as mulheres. Dessa perspectiva, a ação responsável pela narrativa de seu
nascimento estaria excluída. Entretanto é através dela que se estabelece a descrição inicial
do envolvimento do narrador-personagem com a mulher cuja importância não encontrará
equivalente em nenhuma outra figura feminina que passa por sua vida. A avó, Catarina, é a
segunda personagem mais atuante da obra. É a única mulher que vai acompanhar todo o
percurso de Sebastião, sendo responsável pela rememoração de muitos dos
acontecimentos de sua infância, assim como pelo conhecimento da história do rei desejado.
4.2 Lógica das Ações
Nas ações seguintes, acompanhamos o colóquio amoroso entre Sebastião e Dora
Bela, o afeto por Amélia, o envolvimento sexual com a professora Justina, o namoro com
Clara, o caso com Julieta e Helena. Conclui-se, então, ser pela repetição desses fatos que
se estabelece a lógica das ações. Seguindo a proposta de Todorov, nessas repetições,
salientamos o caráter de gradação e de paralelismo.
Reconhecemos a gradação em um conjunto de ações, quando cada ação posterior
ganha a adição de um indício suplementar. É dessa forma que ocorre o desenvolvimento
das relações amorosas ou conquistas da personagem Sebastião. Cada conquista parece
significar um aperfeiçoamento no caráter da personagem. Com Dora Bela, o menino vai
tomar consciência da existência de um sexo que pode despertar sensações agradáveis em
seu corpo. Com Amélia, já tendo conhecimento do “amor erótico”, ele vai descobrir um amor
sem contatos ou referências sexuais, passando a conhecer melhor o sujeito e o rebro
femininos. Com Justina, o aperfeiçoamento -se no campo sexual: o que ele havia
descoberto com Dora Bela será posto em ptica. com Clara, Sebastião aperfeiçoará o
sentimento experimentado com Amélia. Ele envolve-se realmente com Clara e nesse
relacionamento se dará a união do prazer carnal ao prazer do sentimento. Com Julieta,
temos um relacionamento vulgarizado. Com Helena, a segunda mulher casada com a qual
se envolve, resta um relacionamento no qual ele deve assumir deveres masculinos que não
se referem apenas à questão sexual, embora principalmente.
O paralelismo é percebido na forma como são dispostas as ações, independentes
umas das outras, mas de estrutura semelhante. Cada relacionamento pode ser dividido em
três etapas: a forma como determinada mulher entra na vida de Sebastião, a forma como o
relacionamento se desenvolve e o fim do relacionamento.
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Fases do
relacionamento
Dora Bela
Início
(capítulo II)
Um casal de anões fixa-se na Azóia e passa a freqüentar a casa de seu pai.
Desenvolvimento A criança experimenta sensações eróticas provocadas pelas canções e embalos
de Dora Bela.
Fim D. Rodrigo percebe os erectivos feitiços de sua Bela” (l. 23-24) e desaparece da
casa de Sebastião, levando consigo a mulher.
Amélia
Início
(capítulo II)
Ao iniciarem-se as aulas, a filha de um outro faroleiro, sua colega de classe, torna-
se também sua companheira no caminho para a escola.
Desenvolvimento Os dois percorrem juntos o caminho até a escola; Sebastião a protege e tenta
compreender suas reações.
Fim Amélia descobre o lado do relacionamento que pertence ao campo da sexualidade
e encabula-se.
Justina
Início
(capítulo III)
Por ser o menor de sua turma, Sebastião deveria sentar-se na primeira fileira de
classes, passando, assim, a observar os encantos da professora. Impressionando-
a com sua erudição e descobrindo que ela também nutria por ele um certo desejo,
consegue conquistá-la.
Desenvolvimento Passam a manter furtivos encontros sexuais.
Fim Justina parte em férias e Sebastão passa a interessar-se por outras garotas. Ela o
surpreende com uma colega e rompem.
Clara
Início
(capítulo IV)
Encontra a americana na praia e a convence a entrar com ele no mar.
Desenvolvimento Passam a se encontrar todos os dias com a desculpa de aprenderem a língua um
do outro e se apaixonam.
Fim Clara retorna para seu país, e é grande o sofrimento de Sebastião.
Julieta
Início
(capítulo V)
Conhece, nas festas de Natal, a esposa do seu professor de história, Gabriel Gago
de Carvalho.
Desenvolvimento Visita algumas vezes a casa de Julieta mas, desencorajado com sua vulgaridade,
passa a evitá-la.
Fim Sebastião foge da amante, refugiando-se na Roca durante as férias.
Helena
Início
(capítulo VI)
Flerta com ela em um jantar em que está acompanhado por sua avó, marcando
um encontro no hotel em que a “beldade” estava hospedada.
Desenvolvimento Acompanha Helena em compras e passeios, passando uma noite com ela ainda
em Lisboa. Ao ir para Paris, hospeda-se em sua casa e passa a servir todas as
associadas da “Société pour l’Usage Convenable des Hommes”.
Fim Sendo requisitada sua transferência para a sede internacional da SUCH em Nova
Iorque, Sebastião desiste de sua posição na Sociedade e retorna a Portugal.
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Atras da distribuição das ações que representam os relacionamentos amorosos
de Sebastião neste esquema, foi possível constatar o caráter fechado de cada
envolvimento, ou seja, cada envolvimento da personagem constitui uma micro-narrativa
completa, independente.
Além da forma de repetição, outras duas maneiras de descrição apontadas por
Todorov para a apresentação da lógica das ações. Tratam-se do modelo triádico e do
modelo homológico. O primeiro considera a narrativa como um encadeamento de micro-
narrativas, nas quais devem constar obrigatoriamente certos elementos como “trapaça”,
“contrato” e proteção”. A segunda prevê a existência de um denominador comum entre os
componentes da narrativa.
Cada relacionamento amoroso de Sebastião pode ser considerado, assim, como já
destacamos, uma micro-narrativa passível de ser decomposta, segundo o modelo triádico
em: contato inicial, envolvimento e rompimento. Mais esquematicamente, podemos ilustrar
essa organização narrativa da seguinte forma:
Desejo de Sebastião por
Dora Bela
Contato inicial
Envolvimento
Rompimento
visitas do casal de anões
carinhos de Dora Bela
desaparecimento do casal
Amélia
Contato inicial
Envolvimento
Ruptura
partilha do caminho para a escola
companheirismo e proteção
desinteresse de Sebastião
Justina
Contato inicial
Envolvimento
Ruptura
sedução da mestra
encontros sexuais
partida de Justina
Clara
Contato inicial
Envolvimento
Ruptura
encontro na praia
paixão entre ambos
partida de Clara
Julieta
Contato inicial
Envolvimento
Ruptura
convite de Julieta
assédio de Julieta
fuga de Sebastião
Helena
Contato inicial
Envolvimento
Ruptura
encontro no restaurante
integração de Sebastião na SUCH
retorno a Portugal
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68
É importante, nesse caso, observarmos o que há de comum nas ações que
desencadeiam, estabelecem ou finalizam os relacionamentos. Sebastião alimenta um
desejo de conquista para com todas as mulheres, mas o envolvimento não é duradouro,
apresenta um caráter cíclico, porém incompleto.
Considerando os substantivos escolhidos para representar as ações que encetam
seus namoros, aspecto aqui denominado como “contato inicial”, percebemos o sentido de
aproximação. Não é certo dizer que todos os substantivos poderiam ser utilizados como
sinônimos, mas, em seu conjunto, remetem a sentidos similares. Relacionando visitas,
partilha, sedução, encontro, convite e, novamente, encontro, podemos caracterizar um
campo semântico referente ao momento de conhecimento entre os pares. No envolvimento,
temos palavras mais profundas, que traduzem o desenvolvimento de uma relação: carinhos,
companheirismo e proteção, encontros sexuais, paixão, assédio e integração. Por fim, o
rompimento dos namoros de Sebastião apresenta a constante fuga, distanciamento do ser
anteriormente desejado. Em oposição aos substantivos que representam aproximação,
citamos, agora: desaparecimento, desinteresse, partida, fuga e retorno. A impressão é de
que cada relacionamento constitui um complemento para o relacionamento anterior.
Outra forma de organizar a estrutura da história de O Conquistador seria
simplesmente dispor os acontecimentos de uma forma aleatória, procurando neles um ponto
em comum. Assim, de acordo com a sugestão apresentada por Todorov, teríamos o
seguinte esquema:
Sebastião deseja ser
embalado por Dora
Bela
Dora Bela brinca com a
criança
D. Rodrigo descobre os
efeitos causados no
pequeno por essas
brincadeiras
O casal de anões vai
embora
Sebastião se encanta
com Amélia
Amélia aceita Sebastião
como seu namorado
Amélia descobre a
sexualidade
Sebastião se interessa por
mulheres mais velhas
Sebastião deseja
Justina
Justina deixa-se seduzir
Justina viaja em férias Sebastião se interessa por
outras garotas
Sebastião se apaixona
por Clara
Clara se apaixona por
Sebastião
Clara deve voltar para
seu país
Clara parte de Portugal
Sebastião deseja
Julieta.
Julieta provoca
Sebastião
Julieta torna-se muito
vulgar e insistente.
Sebastião foge da amante
Sebastião flerta com
Helena.
Helena interessa-se por
Sebastião
Sebastião passa a
atender muitas
mulheres na SUCH.
Sebastião retorna a
Portugal
Nesse caso, na primeira coluna temos as atitudes de Sebastião em relação às
mulheres com as quais se envolve. Na segunda temos o inverso, a atitude dessas mulheres
em relação ao narrador-personagem. Na terceira coluna vemos o que se pode chamar um
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obstáculo para os relacionamentos. E por fim, na última coluna, a rejeição ou fuga, a forma
como cada relacionamento termina.
Adotando-se uma ou outra forma de organização da história, o que pode ser dito
com certeza é que a forma de progressão da narrativa utilizada pelo narrador centra-se na
seqüenciação das ações que contam os vários relacionamentos amorosos. Dora Bela e
Amélia fazem parte da sua primeira infância; Justina e Clara estão presentes em sua
adolescência; já Julieta e Helena surgem em sua fase adulta, quando habita em Lisboa.
4.2.1 O Grotesco e a Organização das Ações
As representações do grotesco encontradas em O Conquistador podem ser
situadas nas ações que fornecem os alicerces da história. O primeiro momento de
estranhamento está relacionado à ação do nascimento da personagem, tornando-a um fato
insólito.
A ão em si poderia ser descrita da seguinte maneira: um faroleiro, após uma
noite de tempestade, encontra, sob o testemunho de outras quatro pessoas, uma criança
abandonada na praia. Com a inserção do elemento insólito, temos o relato apocalíptico do
cenário, o testemunho de um cavaleiro maneta e três peões idiotas, e o achado de uma
criança semi-envolvida por um ovo. Esse faroleiro, com sua lança de apanhar polvos, em
um duelo atípico, decapita o monstro marinho que guardava o pequeno. Nesse caso, o
grotesco serve para configurar o caráter de anormalidade ou de mistério que vai
acompanhar Sebastião ao longo do texto.
Assim, também as outras ações que compõem a história possuem uma versão
simplificada e uma versão na qual a ironia atua através da técnica do grotesco. Os
envolvimentos amorosos da personagem podem ser destacados como as grandes ações da
história e ocasião excelente de manifestação do grotesco.
A segunda grande ação do romance centra-se no envolvimento com Dora Bela e no
descobrimento da sexualidade. O que constrói a imagem cômica do acontecimento são as
circunstâncias grotescas em que isso ocorre, a começar pela idade da criança e pelo perfil
do ser feminino que desperta a sua atenção.
Desse modo, a segunda ação da obra, esquematizada da seguinte maneira: visitas
de um casal de liliputianos/ carinhos de Dora Bela/ objeção de D. Rodrigo ou
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70
desaparecimento do casal, configura um fato cômico através do estranhamento provocado
pela anormalidade da situação.
Dando prosseguimento ao texto, encontramos o segundo envolvimento amoroso da
personagem, seu namoro com Amélia. A companhia diária no caminho da escola desperta o
sentimento de companheirismo e proteção mútua, até o momento em que Sebastião passa
a desacreditar do relacionamento pela imaturidade sexual da menina. O final do namoro
ocorre exatamente pela interferência da sexualidade anormal da personagem, num
momento em que as brincadeiras partilhadas provocam em Sebastião uma ereção. Esse
fato deixa os namorados inibidos e acaba por afastá-los definitivamente: “Os nossos jogos
de cócegas terminaram no dia em que, sem querer e sem saber, Amélia tocou naquela parte
que desata a crescer sob certos efeitos e se assustou de tal maneira que deu um grito e
corou. E eu corei também.” (p. 34)
Após esse incidente, Sebastião passa a construir para si uma imagem de don juan.
Convive com meninos que não fazem outra coisa além de aprender nomes proibidos disto
ou daquilo, geralmente daquilo”” (p.35), passa a imaginar a nudez da professora por baixo
da roupa, e a inventar histórias eróticas. Tal comportamento fez com que sua precocidade e
fama de conquistador se espalhasse pela Roca, chegando aos ouvidos de seus pais,
lisonjeando João de Castro e preocupando Joana, que tenta livrar seu filho do “mal da lua”
através de orações.
As histórias que Sebastião inventa para si mesmo chamam a atenção de sua
professora e a terceira ação da obra trata então do relacionamento entre ambos. Justina e
Sebastião passam a manter encontros ao momento em que a mestra viaja em férias
deixando Sebastião sozinho e livre para investir em novas conquistas. Nesse caso, o
grotesco é manifestado através da descrição do momento em que as duas personagens têm
sua primeira relação sexual. Ocorre através do devaneio de Sebastião quando perde sua
virgindade.
O que deveria ser apenas um encontro sexual à beira da praia ganha um caráter
insólito quando Sebastião o animal, misto de homem e serpente, sair de trás de uma
árvore, ameaça que o faz murmurar uma oração. A inseão do elemento grotesco,
manifestado também pela atipicidade do acontecimento: um envolvimento sexual entre uma
criança de aproximadamente nove anos e sua professora, manifesta a hipocrisia dos
padrões sociais estabelecidos para a sexualidade.
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71
A figura híbrida entre homem/serpente mistura a concepção sexual estipulada pela
igreja e pela sociedade, sendo que essa represo é repudiada pelos poderes divinos.
Nesse caso, a manifestação do grotesco está na inversão de valores. Tradicionalmente se
pensa que Deus preconiza a atividade sexual somente como meio reprodutivo e não como
meio de obtenção de prazeres mundanos. Não é o que afirma Sebastião em: “Só um
Criador muito coca-bichinhos podia inventar a engenhosa manigância de nos fazer
mergulhar noutro corpo e tirar disso deleites divinos.” (p. 46-47)
Prossegue a história de O Conquistador com a ação que apresenta o
envolvimento amoroso entre Sebastião e Clara. O correspondente grotesco que vai ser
encontrado nessa passagem está na ocorrência de um sonho imaginado por Sebastião logo
após a sua primeira relação sexual com a garota estrangeira.
Nesse sonho também se repete a aparição de um híbrido entre animal e ser
humano quando a personagem imagina uma loba com pernas de mulher e a presença de
monstros que se movimentam irrequietos enquanto assistiam ao seu julgamento pelo pai de
Clara. Aqui também encontramos um forte traço de repressão social para o envolvimento
sexual de ambas as personagens, coibição especificamente familiar nesse caso.
Depois do envolvimento amoroso com Clara, como grandes ações da história ainda
temos a relação estabelecida entre Sebastião e Julieta e entre Sebastião e Helena. No
primeiro caso, o grotesco es na caracterização das personagens que participam da ação:
Julieta, o cavalheiro Alcides e seu primo Gabriel Gago de Carvalho, que vem a ser esposo
de Julieta. Os primos apresentam um caráter animalizado e Julieta um sensualismo vulgar.
Também contribui para o efeito de estranhamento o mistério que envolve o tipo de
relacionamento que se estabelece entre essas três personagens.
Em sua relação com Helena, o grotesco manifesta-se novamente através de um
sonho. Nele são apresentadas figuras desproporcionais e animalizadas que acentuam a
sexualidade existente na cena. Também uma mescla entre o campo do sagrado e do
profano.
Assim, através da exposição dessas relações, podemos defender uma estreita
afinidade entre a estrutura textual e a história desenvolvida na obra, no que se refere a
produção de comicidade e riso decorrentes da utilização do estilo grotesco.
4.3 As Relações da Personagem
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Outra categoria destacada por Todorov como o segundo nível das ações diz
respeito à personagem e suas relações. Segundo esse autor, todos os outros elementos da
narrativa organizam-se em torno desse elemento, ou seja, da personagem. Assim, a
narrativa de O Conquistador incorpora-se à figura de Sebastião, personagem de primeira
ordem. Não na obra outra personagem que possa ser igualada a ele em termos de
importância na ação. Considerando as suas relações com as outras personagens podemos
destacar em matéria de importância também a sua avó Catarina, mulher que o vai
acompanhar desde o início da obra até sua ida para Paris. Quanto às outras figuras,
decrescentemente citamos: Clara, Helena, Justina, Amélia, Julieta, Dora Bela e demais
personagens secundárias.
A construção dessas personagens, assim como o relacionamento estabelecido
entre elas e Sebastião deixam entrever traços indicativos do grotesco na obra.
4.3.1 Catarina
É Catarina quem conta a Sebastião acerca de seu nascimento e não uma, mas
várias vezes. Sebastião nutre por Catarina um sentimento diferente daquele que aproxima
um neto de sua avó. O rapaz desenvolve por ela um sentimento de confiança provocado
pelas atenções que Catarina sempre lhe dispensou. no primeiro parágrafo do romance,
podemos constatar o respeito e a confiaa de Sebastião pelo relato da avó, uma vez que é
a palavra dela que sustenta a veracidade daquilo que pretende narrar. Para atestar a
credibilidade do narrado, Sebastião afirma que “as avós nunca mentem”.
Catarina é caracterizada como uma mulher forte e autoritária, portanto, exemplo de
vida. Sebastião nunca duvida dela, seus pais não ousam contradizê-la ou desmenti-la. Por
lhe relatar sua origem, contar-lhe outras histórias, ouvi-lo e aconselhá-lo, a avó ocupa uma
posição de destaque em sua vida, como a própria personagem declara: Esta avó Catarina
viria a ser decisiva em minha vida”, (p. 17). Aos quinze anos Sebastião muda-se para sua
casa em Lisboa e Catarina passa a exercer o papel de sua confidente, controlando seus
namoros, como fez com seu marido.
Também é Catarina quem o faz tomar conhecimento da história do rei com quem
compartilha o nome. Dessa forma, o narrador-personagem faz a inserção do mito no seu
texto,
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A minha história preferida que não me cansava de ouvir, era a daquele Rei
com quem me orgulhava de partilhar o nome e que nasceu quatro culos
antes de mim. Hoje concordo que nomen est omen. E Catarina achava que,
por S. Sebastião ter sido o mártir da Cristandade, o rei seu homônimo se
sentiu provavelmente obrigado a lançar-se numa absurda batalha contra os
árabes, em pleno deserto, no mês de agosto, sob um sol de quarenta graus.
Com arrepiantes requintes, Catarina descrevia o massacre sofrido pelo
exército, que incluía milhares de mercenários vindos de variados países.
Vendo-me mortificado por tão terrível sina, a avó dava-me alento dizendo
que um dia o rei voltaria, numa certa madrugada, no meio da neblina.
(FARIA, 1993, p. 19)
Desse modo, a influência da avó em sua vida pode ser dividida em dois momentos:
na infância e na fase adulta. Na infância esta avó lhe contava histórias: “Assim que a avó
chegava, o mundo mudava de cor. Dormíamos no mesmo quarto, ela contava-me histórias,
passeava comigo, punha o meu mimo em dia.” (p. 18) Na fase adulta, a avó lhe dá
conselhos e instrui o neto na maneira de se comportar com as mulheres, para escapar de
seu domínio:Ela própria me diria, anos mais tarde, quanto se orgulhava do domínio que
exerceu sobre o marido, e me recomendava cautela para que não me acontecesse o
mesmo caso caísse na asneira de casar.” (p. 17) No primeiro momento, sua relação com o
grotesco estabelece-se através da responsabilidade pela construção de um mito. Depois, o
envolvimento de ambos ganha caracteres grotescos pela sua dessemelhança relativa a um
envolvimento considerado normal entre parentes tão próximos.
4.3.2 Os Predicados de Base
Muitas vezes, fica difícil estabelecer e classificar as relações entre as personagens.
Para isso, Todorov estabelece os “predicados de base” resumidos aqui em três relações:
desejo, comunicação e participação; ou, retrospectivamente, amor, confidência e ajuda. No
âmbito do desejo, destacam-se as personagens que fazem parte das conquistas amorosas
de Sebastião, principalmente Clara, que foi a mulher mais marcante em sua vida. Na
comunicação encaixamos Catarina, cuja personagem alimenta em Sebastião, desde
criança, uma ligação diferenciada, quando ela lhe contava histórias, dava-lhe conselhos e
assumia o papel de sua confidente. No âmbito da participação podemos destacar Helena.
Ela foi a personagem responsável pela viagem de Sebastião a Paris, assim como de seu
ingresso na sociedade como conquistador de mulheres provenientes de todas as partes do
mundo. Auxilia-o também quando do seu isolamento, ao mediar sua correspondência.
Considerando os predicados de base amor, confidência e ajuda em contraposição
aos predicados ódio, tornar um segredo público e impedir, derivados dos primeiros pela
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regra de oposição estabelecida por Todorov, podemos organizar eixos que traduzam o
sentimento de Sebastião em relação às personagens femininas de considerável relevância
em sua vida: Catarina, Dora Bela, Amélia, Justina, Clara, Julieta e Helena.
SEBASTIÃO
Ódio
Amor
Julieta D. Bela Justina Helena Amélia Catarina Clara
SEBASTIÃO
Segredo
confidência
Julieta D. Bela Amélia Helena Justina Clara Catarina
SEBASTIÃO
Impedir
Ajuda
Julieta D. Bela Justina Helena Amélia Catarina Clara
No eixo ódio/amor, levamos em consideração o sentimento de Sebastião pelas
personagens femininas. Sebastião sente-se atraído por todas as mulheres. No entanto,
algumas que assumem uma importância mais ou menos significativa para a sua história. Em
primeiro lugar está Clara, essa mulher une em Sebastião o amor, o encantamento pelo ser
feminino e a sexualidade. Ambos estabelecem um relacionamento completo, chegam a
morar juntos durante um período e Sebastião sofre quando da sua partida. Depois dela,
destacamos Catarina, a avó que representava para a personagem um envolvimento, uma
cumplicidade mais profunda do que seria usual entre um neto e uma avó. A essas duas
personagens seguem Amélia, por ser seu primeiro amor; Helena, por ter exercido sobre ele
certo fascínio; Dora Bela, por ser seu primeiro desejo sexual e, por fim, Julieta. Esta última
aproxima-se mais do predicado ódio, por não ter nenhuma significação sentimental para
Sebastião, causando nele inclusive um sentimento de repúdio.
No que se refere ao eixo segredo/confidência, destacamos, em primeiro lugar,
Catarina, pois é a ela que Sebastião revela suas vidas, é dela que, antes, ouvia histórias
e, posteriormente, conselhos sobre a vida amorosa. Também Clara tem significação
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especial em relação ao predicado “confidência”. Ambos descobriram-se mutuamente e
revelaram-se segredos; com ela, Sebastião perde inclusive o receio de mostrar seu dedo
extra no pé direito. As outras personagens estão mais próximas do predicado “segredo”.
Julieta e Helena por serem mulheres casadas, seu relacionamento deveria ser mantido em
segredo. Já Dora Bela, Alia e Justina estão relacionadas a tabus sexuais como as
primeiras ereções e o primeiro relacionamento sexual. A descoberta do segredo existente
entre Sebastião e a anã traz como conseqüência o fim do relacionamento; quando Amélia
descobre o desejo sexual de Sebastião, ambos inibem-se a ponto de não mais
conversarem; e a relação entre ele e Justina não poderia ser descoberta, pelo perigo de
provocar um escândalo moral na sociedade.
Por último, no eixo impedimento / ajuda destacamos novamente a importância de
Clara e Catarina. Amélia por ter-lhe desvendado os segredos da alma feminina; Helena, por
ter-lhe propiciado, através da participação na SUCH, uma difusão mais abrangente da sua
“crença na conversão sexual”. Justina e Dora Bela por terem-no iniciado nos prazeres
carnais. E por fim Julieta, que se aproxima mais da questão do impedimento, por ter sido
difícil pôr fim ao relacionamento.
As ações e as relações entre as personagens estão ligadas ao grotesco no
momento em que constituem um retrato do comportamento sexual da personagem. Mesmo
nos predicados de base, vemos que todos os tipos de relacionamentos estão centrados nas
dificuldades e superações de Sebastião no que diz respeito à sua conduta para o contexto
sexual.
Concluímos assim, através da análise dos elementos descritos nesse capítulo e no
capítulo que o precedeu, que, atrás da aparente linearidade e simplicidade da estrutura
formal, que reaproxima o escritor da maneira tradicional de narrar, podemos encontrar
elementos e singularidades que deixam transparecer a presença da categoria do grotesco
também na organização textual. Portanto, a estrutura de O Conquistador conspira com a
temática para a produção de um texto inesperado e perturbador.
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5 A CONSTRUÇÃO GROTESCA
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O romance O Conquistador, de Almeida Faria, apresenta vinculações com o
movimento surrealista, reveladas pela utilização massiva do elemento grotesco. Descrever a
utilização de tal elemento é o propósito deste capítulo. As passagens escolhidas para
demonstrar a presença do grotesco são, primeiramente, os textos que consistem na
transcrição verbal das epígrafes iconográficas. Depois, pretendemos trabalhar também com
outros episódios, tais como o sonho em que Sebastião supostamente “revive” a batalha de
Alcácer-Quibir; o relato da aquisição tardia da linguagem pelo protagonista; e também a
cena do campeonato da “mijação”.
5.1 As Epígrafes Iconográficas
As epígrafes iconográficas que antecedem cada capítulo apresentam um
correspondente textual na narrativa. Essas passagens verbais serão aqui analisadas com o
intuito de desvelar o elemento grotesco nelas inserido. As sete figuras em destaque
representam visualmente dois tipos de passagens textuais. Antecedendo os capítulos 1, 2 e
5, as imagens são a ilustração de fatos ocorridos na história. As outras, nos capítulos 3, 4, 6
e 7, são a ilustração dos sonhos da personagem. Usaremos essa distinção para tornar mais
clara a apresentação do elemento grotesco dentro da obra.
5.1.1 Ilustração de Fatos (capítulos 1, 2 e 5)
- Capítulo 1:
A epígrafe iconográfica que introduz o primeiro capítulo de O Conquistador ilustra
o aparecimento da personagem Sebastião. Para começar, destacamos o caráter insólito do
“aparecimento” da criança, tal como é narrado pela avó. Sebastião é encontrado na praia
“metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora” (p.11). O
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estranhamento, nessa passagem, não só é provocado pelo fato de a criança ser encontrada
dentro de um ovo, contrariando a natureza humana, mas também pela comicidade do
quadro. É uma figura grotesca: uma criança dentro de um ovo com os membros de fora. No
caso do estranhamento gerado pelas condições de aparecimento do menino, há dois
aspectos do gênero grotesco que devem ser destacados: a mistura entre aspectos humanos
e animais e o exagero. Quanto à fusão entre humano e animal, observamos que Sebastião
apresenta a aparência de uma criança humana. No entanto, seres humanos não nascem de
um ovo, à semelhança dos répteis. A relação com os pteis, apontada pelo ovo, vem
acentuada pelo fato de ser ele guardado por uma serpente marinha, figura que pode ser
igualada às imagens teriomórficas encontradas nos sonhos. O narrador ainda lança mão do
exagero, destacando a apancia do ovo, um ovo de dimensões anormais, através do qual
se podem ver os membros da criança. Na ilustração desse episódio por Mário Botas,
podemos ver um esquisito invólucro que parece costurado lateralmente e do qual se
projetam, juntamente com os membros da personagem, outros membros semelhantes aos
de um animal marinho.
O efeito grotesco ainda é intensificado pela presença de figuras insólitas, as
testemunhas presenciais do fato: um cavaleiro maneta, mestre eqüestre acompanhado de
três peões de brega, recrutados entre os mais aparvalhados das aldeias. Aqui, para
desmoralizar ou ridicularizar o testemunho, o narrador argumenta com deficiências física e
psicológica: o cavaleiro não possuía uma das mãos e seus peões eram idiotas.
A criança é guardada por uma cobra marinha, que possui uma “cabeçorra
diabólica”. Seu pai disputa, num primeiro momento, com os demais presentes e, por fim,
com a serpente, o direito de ficar com a criança. um combate entre o “herói e o
“monstro”, no qual João de Castro decepa o animal com a lança de caçar polvos. Destaca-
se aqui a imagem da serpente cabeçorra diabólica e a imagem da lança, instrumento
fálico de poder. Isso contrasta com a banalidade do “duelo”, que ao contrário do que se
espera de uma batalha tradicional, na qual o herói é um cavaleiro ou nobre que manipula
uma espada, traz como vencedor um faroleiro que empunha uma simples lança de apanhar
polvos.
Confirmando as circunstâncias excepcionais que cercaram seu aparecimento, e, ao
mesmo tempo, em contraposição a essa apresentação da personagem, que a trata como
um achado ímpar e como um prêmio disputado entre as pessoas e um monstro marinho,
temos a caracterização por ela utilizada para se auto-definir. Sebastião apresenta-se como
uma criança rejeitada, anormal e de origem misteriosa. Usa uma palavra de exclusão para
falar de si: “enjeitado”, um enjeitado “quase normal uma vez saído da casca”. A situação em
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que se encontrava, envolvido pelo ovo, marca-o com um índice de anormalidade. A
personagem utiliza também o sintagma “filho-mistério”, admitindo algo duvidoso e
inacreditável envolvendo a sua origem. Sua anormalidade é estendida ao campo biológico
pelo desvio a um padrão humano relativo à constituição física normal – “tinha seis dedos no
direito” característica que o aproxima da figura de D. Sebastião. A personagem ainda
se auto-denomina: “uma ave-rara”.
Também relacionada com o episódio do aparecimento da personagem e permeada
pelo grotesco está a descrição do ambiente que antecedeu o momento em que Sebastião foi
encontrado. Nessa descrição destacam-se o cater de exagero, estabelecido pelo elemento
noturno e pela sonoridade que marca esses instantes, bem como a construção de uma
imagem apocalíptica: “não faltou quem se preparasse para o fim do mundo”. (p.13). Para
determinar o primeiro aspecto destacado, o narrador utiliza imagens do campo noturno
como “cúmulos em forma de couve-flor de chumbo” e “escuridão de estanho esfumado”
(p.12, 13). Utiliza também uma linguagem que representa a idéia de sonoridade da
tempestade, acompanhada de barulhos aterrorizantes: a “secura dos trovões”; a escuridão
que vinha “atroandotudo com o “barulho de todos os bombos e tambores do universo; os
“uivos surdos, curtos, seguidos de outro mais demorado” que enlouqueceram os animais;
paredes estalando; soalhos rachando; candeeiros que explodiram; estourar dos telhados e o
“último estertor”. Além desses componentes, também são utilizadas imagens de movimento
para compor a cena: “catarata caída do firmamento”; “mar inchado do furor das vagas”;
“velocidade de um tornado”; “três vezes a terra tremera”; telhas e tetos abrindo” e “a Serra
era um ventre de gvida percorrido pelos abalos que antecedem o parto”. Nesta última
imagem, o grotesco está presente através da personificação da serra, isto é, pela sua
comparação a uma mulher grávida, na qual a protuberância do ventre e os movimentos do
parto são responsáveis pela iia de repulsa. Importa ainda ressaltar o cruzamento entre
aspectos antagônicos nesse relato, em que a “gênese prodigiosa” ocorre em um ambiente
apocalíptico.
Todos os elementos acima destacados contribuem para compor a imagem
apocalíptica da praia, mas dois elementos que podem ser destacados nessa passagem do
texto constituem o esquema principal dessa idéia: o fogo e a água. O fogo é apresentado
numa expansão do seu caráter utilitário para o caráter de destruição: são as brasas da
lareira que se espalham e pegam fogo, são as chamas da velas que incendeiam os panos,
são as chaminés dos candeeiros de petróleo que explodem. A água que, desde o
aparecimento da personagem, vai assumir um papel importante ao longo de toda a
narrativa, também é apresentada sob um caráter ameaçador: “tempestade”, aéreas águas”,
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“catarata caída do firmamento”, “mar inchado”, “dilúvio”, “águas engrossadas”, cursos
desmesurados”.
Mais adiante, um prolongamento da descrição da catástrofe, iniciada
anteriormente. , podemos observar outros termos que remetem à escuridão e à
destruição: “trevas antecipadas”, “cerração”, “enxurrada” e “torrente”. Destacamos a
violência dos ventos, através dos verbos utilizados: arrancaram, arrastavam, arrasando,
levados, foram arremessados, despregaram-se, cederam, rolaram, ficaram enterrados.
Insere-se um elemento de estranhamento no momento em que o narrador relata, com toda
naturalidade, que “Até dois ou três velhos, levados na torrente, desapareceram sem deixar
rasto”. (p.14)
Em seguida, o narrador apresenta o espaço/ambiente em que a criança foi
encontrada, repleto de desolação e morte. É apresentado o “aspecto apocalíptico da praia”:
“cascatas de lodo e lamaçal”, “caminhos cortados”, “covas e barrancos e buracos”,
“cadáveres de bezerros e vacas semi-soterrados”, “um cavalo morto, de patas para o ar e
ventre inchado, de uma brancura baça”, “o paredão parcialmente destruído, coberto de água
parda” e o segmento: “Vindas do mar, lufadas de névoa avançavam em direção à Serra,
como um exército desordenado recuando em debandada” (p.15).
Sebastião afirma ver essas imagens em sonhos. Na apresentação de seu primeiro
sonho, narração de uma batalha, também é desenhado um ambiente de conflito, nele
estando presentes novamente o pânico e a escuridão. Essa tempestade que assola Portugal
no dia 19 de janeiro pode ser comparada ao conteúdo do primeiro sonho de Sebastião, cujo
relato, feito pela personagem, é qualificado como uma amostra do que será o inferno, se
existir. O sonho é comparado a uma imagem do inferno, a tempestade ao apocalipse. São
duas batalhas: uma travada pela natureza e a outra entre os humanos.
Nessas passagens, uma forma bastante evidente de apresentação do grotesco está
na maneira como a linguagem é utilizada. Desde o princípio do texto, o narrador faz uso de
verbos no pretérito perfeito/imperfeito e presente, enquanto conta como nasceu a
personagem, em uma narrativa próxima do estilo biográfico convencional, a não ser pela
estranheza de alguns fatos. A partir do parágrafo cinco, no entanto, ao narrar a tempestade
ocorrida na véspera de seu nascimento, o narrador passa a utilizar uma linguagem marcada
pela solenidade, utilizando os verbos no pretérito-mais-que-perfeito e termos próprios de um
registro mais elevado da linguagem: “Na véspera de meu nascimento caíra sobre a serra de
Sintra a tempestade mais tremenda de que as pessoas se lembram” (p.12). Entretanto, essa
linguagem sofre intercalações de um registro mais popular e de imagens mais simples,
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causando quebras, oscilações entre um e outro estilo de narração. Assim, verbos como
“caíra”, “chegara”, “observara”, “avançara” e palavras como aurora”, “nimbos”, “cúmulos”,
“rifão”, “repositório”, “áureas águas” são intercalados com palavras que remetem a um
registro mais oral como “catarata”, “inchado”, ”couve-flor” e também com ditos da sabedoria
popular: “se trovão seco no céu reboa, tempo violento nos apregoa.” Ou “relâmpagos ao
norte e vento forte, se do sul vêm, chuva também.”
É importante notar também os adjetivos utilizados pelo narrador, com intuito de
intensificar a grandiosidade do acontecimento; citamos alguns: “ovo enorme”, “estranhíssimo
espetáculo”, “cabeçorra diabólica”, “pedregosas alturas”, “tempestade mais tremenda”, “dia
memorável”, “cursos desmesurados”, “derradeira madrugada”.
- Capítulo 2:
Na segunda epígrafe, temos a ilustração de um dos envolvimentos amorosos do
protagonista. Nela somos apresentados a Dora Bela, seu marido Rodrigo, os pais da criança
que a trazem ao colo e os brinquedos constituintes da imaginação que perfaz o período de
sua primeira infância.
Ao realizar a descrição de sua casa, Sebastião fala sobre seu berço e brinquedos.
Esses elementos trazem sensações que remetem a altura (ascensão) e ao movimento
(viagem imaginária). Seu beo era um triciclo reaproveitado sobre o qual havia um móbile
de peixe nadando no ar à mais ligeira brisa, ou ao meu espernear” (p.25). Aqui, embora a
narração traga uma ligação de estranhamento - um peixe que nada no ar, a imagem do
móbile e a ação de balançar o brinquedo trazem a idéia do alto e também do inacessível
para a criança. Entretanto, em oposição ao local do inatingível, essa imagem instigava
devaneios na personagem, permitindo que ela viajasse por “mares imaginários,
sobrevoados por peixes-voadores e percorridos por extravagantes bichos, perdidos em
profundos precipícios, entre turbulências e redemoinhos” (p.25).
O efeito grotesco é provocado nesse fragmento pela inadequação das imagens ou
objetos. Um triciclo que é adaptado a um berço, um peixe que nada no ar e que provoca na
criança devaneios nos quais ela vislumbrava acontecimentos impossíveis para o
pensamento gico. Ocorre uma mistura entre real e imaginário que traduz a
incompatibilidade entre alto e baixo, ascensão e queda.
O estranhamento é provocado também pela utilização de elementos teriomórficos,
arquétipos da simbologia animal. Nesse caso, trata-se de elementos híbridos como o peixe-
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voador e os extravagantes bichos. Nesse sentido, outro brinquedo, também ligado à questão
de elevação ou ascensão é o que a criança chama de presente “ainda mais bizarro”
recebido de seu pai ao completar um ano. Trata-se de “um pássaro munido de um bimotor
que lhe movia os vários pares de asas”. Este pássaro, entretanto, não teve vida longa,
estragou-se, pois se agitava rapidamente no ar e enrolou-se no pprio fio. Dentro do
esquema ascencional, Sebastião cita, ainda, um “balão azul, com uma estrela vermelha
rodeada de pintalgada poeira”, metaforizando o céu, presente do casal de anões.
Essa lembrança desencadeia a narração de seu envolvimento com Dora Bela, a
anã cantora “meio-soprano de um metro”, mulher miniaturacujos embalos e canções lhe
causavam volúpias. Esse relacionamento amoroso e sexual, excessivamente precoce, pois
a criança completara recentemente dois anos de idade, é responsável pela primeira menção
da personagem a sua sexualidade incomum. Abordar a sexualidade, pela referência ao
ventre digestivo e/ou sexual, também é ato considerado como uma estratégia de produção
do grotesco. No caso de Sebastião, temos o desenvolvimento do erotismo em um momento
inesperado, na primeira infância. Além disso, o objeto de atenção sexual da personagem é
um ser caricato, vítima de uma anormalidade física, o nanismo. O fato em si é ridículo: a
criança sentia-se excitada pelos embalos da anã e o marido, também figura burlesca, em
uma crise de ciúmes pelos “erectivos feitiços” da esposa, leva Dora Bela embora para
sempre, deixando a criança decepcionada.
No meu corpo operavam-se mudanças nada desagradáveis, as quais
abruptamente terminaram no dia em que D. Rodrigo, esse desmancha-
prazeres, se aproximou do meu berço e esbugalhou os olhos ao ver os
erectivos feitiços da sua Bela. Fez um escândalo que mais ninguém
entendeu, e assim desapareceu da minha vida a mulher-miniatura e o seu
nimo marido. Mas nunca esqueci as canções com carícias desta Fada
que tão cedo trouxe os meus dotes à luz do dia. (p. 26)
A referência às partes baixas do corpo está aqui simbolizada pela perceptível
ereção apresentada pela criança. Ao longo do texto, são várias as vezes em que Sebastião
porá em evidência o tamanho excepcional e o desempenho de seu órgão sexual. Outro
elemento que provoca o riso, neste caso, é o tratamento dado à mulher. Pela sua descrição
podemos afirmar tratar-se de um ser aparentemente desproporcional e disforme, mesmo
assim, as denominações pelas quais o narrador a caracteriza, começando por seu nome,
indicam uma beleza exuberante: “erectivos feitiços de sua Bela” e “Fada”. Acrescentando a
característica de mulher portadora de luz e energia pprias, o narrador afirma que a partida
de Dora Bela provoca em Sebastião um efeito negativo, um “efeito de eclipse” e segundo
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ele: “O manto da apatia voltou a cobrir a minha meninice, nada de excepcional me sucedeu,
ou de nada me lembro” (p.26-27).
- Capítulo 5:
Ao término de seu relacionamento com Clara, Sebastião é acometido por uma
grande tristeza. “Sem Clara fiquei órfão de mim”, declara no início do quinto capítulo. Então,
convidado pela avó e incentivado pelo cavaleiro Alcides, Sebastião vai residir em Lisboa. Lá
passa a estudar no Lyceu Central de Pedro Nunes, cujo patrono havia sido mestre de D.
Sebastião. Lá conhece um primo de Alcides, Gabriel Gago de Carvalho, professor de
história, e sua esposa Julieta, com quem vem a ter um caso.
Os três amigos convidam Sebastião para um encontro em casa do professor no dia
de seu aniversário, passagem que encontramos como ilustração na epígrafe do quinto
capítulo. Sebastião descobre um ambiente suspeito, parecia haver entre eles um
relacionamento tríplice, do qual ele não queria participar, pois, se desejava dedicar sua vida
ao sexo, pensava nele como uma arte ou religião.
Ia jurar que ouvi uns urros, uns uivos, uns rugidos ou grunhidos impróprios,
que de repente se acalmaram e calaram.
“Estamos aqui”, gritou enfim uma voz feminina que não reconheci de
seguida. A luz provinha de um salão cheio até o teto do mais repugnante
bricabraque. Num sofá enorme, de compactas rodas, que me fez pensar
num velho Chevrolet, estava sentado o primo Alcides, cujos poucos
cabelos, despenteados dos lados, pareciam, contra a luz do candeeiro, um
par de cornos ou umas orelhas de bode. A seu lado Julieta, de faces
afogueadas, endireitava apressada o vestido amarrotado, enquanto o
marido, limpando a baba da boca, procurava uma posição mais respeitável.
Entre os três reinava a cumplicidade de quem é interrompido em pleno
bacanal de bordel. Toda a divisão, aliás, tinha um ar de casa de putas em
dia de Entrudo, numa algama de tralha colonial onde nem faltava um
jacaré-be embalsamado no topo de uma coluna, entre plantas de plástico
e penas de avestruz.” (p.85-85)
O burlesco nesse caso está na descrição do ambiente, impróprio para uma casa de
família. A decoração está totalmente em contraste, misturando objetos espalhafatosos e de
mau gosto, aos quais o narrador chama de “repugnante bricabraque” onde se vêem
inclusive um jacaré empalhado, penas de avestruz entre plantas de plástico e um sofá de
rodas.
É interessante também observar como o narrador utiliza características de animais
para descrever os dois homens: “disse cumplicemente o cavalar Carvalho, e soltou uma
série de relinchos” (p.83); o primo Alcides, “cujos poucos cabelos, despenteados dos lados,
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pareciam, contra a luz do candeeiro, um par de cornos ou umas orelhas de bode” (p. 84-85);
“Custava-me ficar diante daquela cara de cágado fora da água, com óculos de aros de
tartaruga que lhe aumentavam a exoftalmia dos espantados olhos de pékinois, ou melhor:
de pescada no prato” (p. 86); “E o marido, sofrendo de rinocerôntica miopia, nada via(p.
86). Também a alusão a vozes de animais contribuem para intensificar o efeito grotesco.
Quando Sebastião entre na casa ouve urros, uivos, rugidos e grunhidos.
Sebastião inicia um breve relacionamento com Julieta cujo cabo, a despeito das
insistências da mulher, é dado por ele mesmo, contrariando o final dos seus outros
relacionamentos. Depois dela, Sebastião conhece Helena e seu relacionamento em Lisboa
é uma pvia das funções que dele seo esperadas como membro da SUCH (Société pour
l’Usage Convenable des Hommes) em Paris: encontra-se com ela algumas vezes, fazem
passeios, acompanha a moça em algumas compras e só então consegue compartilhar de
sua cama.
Ao completar vinte anos Sebastião devia apresentar-se ao serviço militar, porém a
idéia de “ir às sortes, ser apurado para todo o serviço e enlatado num avião ou num paquete
para “defender as províncias ultra-marinas” contra a insurreição dos povos colonizados,
“instigados por uma campanha de intoxicação internacional” (p.111) não lhe era agradável.
Assim, passa a programar sua fuga para Paris, a convite de Helena.
Sebastião vive três anos em Paris. Entre suas atividades estão a serviência ao leito
de Helena, um curso de história na Sorbonne, a atenção aos desejos das mulheres
membros da SUCH e outras conquistas femininas empreendidas nas horas vagas. Disso
decorre o seu esgotamento físico e mental, motivo pelo qual deixa a associação,
desligando-se de suas “venéreas venerações” já próximo de um colapso.
5.1.2 Ilustração dos Sonhos (capítulos 3,4,6 e 7)
- Capítulo 3:
Dentro do contexto erótico, destacado no capítulo 2, a figura que encabeça o
terceiro capítulo da obra mostra o colóquio sexual empreendido entre Sebastião e sua
professora. Nesse caso, como no envolvimento com Dora Bela, a sexualidade também é
apresentada de forma incomum. Este encontro simboliza a primeira relação sexual do
menino que ocorre, também precocemente, por volta dos nove anos de idade.
Aqui, além do caráter prematuro da sexualidade, o grotesco é provocado, em um
primeiro momento, pela descrição do ato sexual:
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Para não repetir as preliminares que toda gente está farta de saber,
começarei in media res. Com espanto verifiquei que essa Justina não era
nada inexperiente. Não tirou as meias pretas nem o soutien florido, sob o
qual meti os dedos frios, rapidamente repelidos. Protestando contra a
qualidade dos servos, ela indicou à minha boca o caminho até o seio
maior. Para quem só mamara biberão, esta sensação era nova e
portentosa. Não me descalcei nem me despi, a fim de não espantar Justina
com o meu dedo extra nem me ensarilhar nos prosaísmos de desabotoar o
complicado fato-macaco e o resto da farpela que minha mãe costurara.
Retardando e travando se eu me precipitava, obrigando-me a voltar ao
princípio sempre que a minha beijoquice deixava a desejar, Justina
instigava-me a melhorar o teor do meu trabalho. Até que as fintas a
fatigaram e, quando eu já julgava perdida a partida, ela mostrou-se disposta
a consentir. (pp.45-46)
Essa descrição mostra a inexperiência de Sebastião e a sua imaturidade diante do
ato que estava realizando, em contraste com a perícia da professora. Justina mostrava-se à
vontade para instruir seu aluno, o qual se atrapalhava com as atitudes e as roupas infantis.
O texto, em sua naturalidade, assemelha-se a uma aula, como se Justina estivesse a
ensinar uma lição à personagem.
Em um segundo momento, vemos o grotesco transparecer na escolha e
caracterização da mulher. Não é comum que adolescentes iniciem sua vida sexual com sua
mestra colegial. Quanto ao que dela informa o narrador, destacamos a caracterização das
qualidades da professora através da negação: “Justina não era, benza-a Deus, tão agreste
quanto as rochas de arestas afiadas” (p.45); ou “Justina não era nada inexperiente(p.45);
ainda “Justina não se intimidou, como se estivesse habituada às aparições e máscaras
maléficas” (p.46); e “enquanto a esquerda, mais desastrada, lhe segurava a não delgada
cinta” (p. 46).
O segmento textual que corresponde ao desenho traz à pauta a terceira
manifestação onírica da personagem. Nela, encontramos Sebastião em estado de vigília.
Trata-se de um devaneio. Sebastião tem, ou acredita ter uma visão, no momento em que se
dedica ao colóquio sexual. Portanto, esse devaneio está relacionado com a iniciação sexual
da personagem. No que diz respeito às fases vividas por um indivíduo, essa ocorrência dá-
se em um momento de transição da infância para a pré-adolescência. Dentro da história,
situamos a visão no princípio de um relacionamento afetivo.
A alucinação proveniente do devaneio faz com que Sebastião fique horrorizado.
Sente-se como se estivesse sido flagrado cometendo um ato ilícito. O que cria nele uma
expectativa de punição. Entretanto, mesmo com medo, a personagem reage. Sua reação
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dá-se através de uma demonstração de religiosa reza e, assim, consegue vencer o
temor. Já em Justina, a aparição provoca apenas indiferença.
Nesse instante ouvi um silvo, e da árvore saiu uma horrenda cabeça de
homem com bigode e corpo de serpente. Pronto, pensei, estou tramado.
Afinal o meu confessor tinha razão. Deus vê tudo. Até a minha mão entre as
cochas da mestra.
Justina não se intimidou, como se estivesse habituada às aparições e
máscaras maléficas. Fechei os olhos, rezei um padre-nosso e,
despachando o “não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do Mal,
ámen”, a medo espreitei a árvore. O bicho careta enrolou-se sobre si
mesmo à maneira untuosa dos répteis, e desandou de vez. (p.46)
Essa descrição aproxima-se da cena do pecado original no Jardim do Éden,
assemelhando-se à encenação do mito bíblico de origem. No momento da descoberta do
sexo, a personagem é atormentada pela aparição de uma figura monstruosa, misto de
serpente e de homem. Essa imagem surge como uma forma de repressão ao ato sexual,
uma repressão que não parece ser de ordem divina. O fato de a serpente possuir cabeça de
homem aponta para as regras e imposições sociais, que geram sentimentos de culpa por
determinadas atitudes julgadas impróprias. Esse não é um julgamento de origem divina, e o
artifício utilizado por Sebastião para se livrar da figura é a oração.
O grotesco é produzido pela fusão entre os campos imaginário e real, o devaneio. A
figura monstruosa que a personagem visualiza também é responsável pelo caráter insólito
da cena. Trata-se de um ser híbrido entre a condição bicho/ser humano (serpente/homem)
que evoca a serpente bíblica, animal que induz ao pecado no paraíso. Com essas
aproximações, o narrador estabelece a mescla entre o religioso e o profano, provocando o
efeito grotesco. Essa mistura tem continuação no momento em que, ao ir à missa com sua
mãe, Sebastião lembra-se de Justina ao ver o padre empunhar os símbolos da Santa Ceia e
proclamar as palavras de Jesus: “tomai e comei, este é o meu corpo, tomai e bebei, este é o
meu sangue.” Sebastião concluía que sua religião era feita dos “fluidos, eflúvios, calores e
tremores do corpo da professora”.
No fim, podemos ver que a importância de Justina reside no fato de mostrar a
Sebastião uma outra forma de consagração: “Só um criador muito coca-bichinhos podia
inventar a engenhosa manigância de nos fazer mergulhar noutro corpo e tirar disso deleites
divinos” (p.47). Segundo ele, Justina o ensinou a amar as mulheres, a desenvolver uma arte
para a qual nasceu fadado.
Após manter com a professora um relacionamento bastante estável, Sebastião é
surpreendido pela partida da mestra em férias para Lisboa. Sentindo-se sozinho, sofre,
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tranca-se em casa, mas logo recomeça novas conquistas. Entre elas está Clara, seu
relacionamento amoroso mais significativo.
- Capítulo 4:
O início do quarto capítulo mostra Sebastião deslocando-se até Sintra todos os
dias, a fim de freqüentar o liceu. Nesse período, declara ter sofrido uma “drástica
segregação sexual: meninas de manhã, rapazes à tarde, nada de promiscuidades” (p.57).
Por esse motivo, e para que pudesse continuar sua especialização na arte da conquista,
Sebastião recorre a atestados falsos, conseguidos das mãos de um médico indiano. Essa
estratégia permite à personagem dedicar suas tardes “às artes de abordagem”, entretanto,
relata, Laquesis, irritada com o abuso, acabou mandando-lhe uma doença perigosa, “que
me deixou com o do outro lado”. Sebastião é acometido de uma febre altíssima, cuja
causa não é diagnosticada. “Parecia algo nunca visto.” Algumas das possíveis suspeitas
estavam entre hepatite e hipersônia, segundo um médico de Sintra, e doença do sono,
segundo seu pai.
Essa enfermidade desperta em Sebastião o medo de morrer ou, como ele mesmo
declara, o medo “de não ter vivido” e a superstição de nunca mais recorrer a atestados. “A
doença alertou-me para o perigo de cada dia perdido, quando tanto havia que ser
aprendido” (p.59).
Falando da necessidade de melhorar as suas práticas sedutivas, Sebastião
comenta sobre os medos e preconceitos acerca dos métodos anticoncepcionais: a
clandestinidade da pílula, a vergonha das camisinhas, o policiamento do confessionário e da
província. Outra dificuldade foi a moda dos collants, que ele considerava verdadeiros “cintos
de castidade em versão mais suave, revista e actualizada.” (p.59)
Desistindo por esse motivo dos namoros do cinema, Sebastião desenvolve
estratégias de conquistas próximo à praia, onde passa a conhecer todo local propício a um
bom esconderijo para amantes. Numa dessas excursões, conhece a americana Clara,
concretizando, assim, suas fantasias com estrangeiras. No entanto, Clara representou um
desafio, nenhuma de suas técnicas amatórias funcionou com a garota. Sebastião apenas
consegue convencê-la a nadar com ele, arrastando-a depois para um dos seus
esconderijos, não conseguindo entretanto seu objetivo maior. Por essas dificuldades, a
personagem acaba interessando-se mais por Clara, a ponto de apaixonar-se pela garota. No
início de seu envolvimento, mais especificamente após sua primeira relação sexual,
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Sebastião sonha. Isso se no quarto capítulo e encontra-se ilustrado na epígrafe que o
encabeça.
Novamente, a manifestação onírica possui um caráter de repressão ao contato
sexual. A história do sonho, narrada por Sebastião, assemelha-se a um julgamento,
referente a sua atitude com relação a Clara na tarde anterior, quando ambos mantêm
relações sexuais. A personagem encontra-se numa espécie de tribunal, no qual as outras
personagens o pai de Clara (acusador), Clara (vítima e defensora), “John Ford”
(testemunha) – esperam uma explicação.
Diante do ocorrido em seu sonho, Sebastião fica transtornado, sente-se
pressionado e espera ansioso o veredicto, mas recebe a absolvição de acordar em sua
cama.
O realizador [John Ford], ladeado por Clara e pelo progenitor dela, estava
num estrado à minha espera. Enquanto eu ia ao encontro dos três,
apareceu uma loba com pernas de mulher, o que me atormentou por
completo. Clara recuou assustada e os dois cavalheiros ficaram com cara
de caso. Ao fundo uns monstros inquietantes assistiam irrequietos.
Acusador, o pai de Clara exigia que eu esclarecesse a situação. Clara,
transformada em Virgem Sábia, veio em minha defesa, recusando acreditar-
me culpado. O veredicto nunca mais chegava, e a única absolvição foi
acordar na minha cama. (p.64)
Aqui, destacamos o caráter proibitivo de algumas instituições ao pleno exercício da
sexualidade. Sebastião é levado a julgamento por ter mantido relações com Clara. A
restrição é familiar, a família possui valores que regem um determinado comportamento
sexual para as mulheres. A quebra desses valores deve ser punida.
A situação insólita é trazida, nesse segmento pela nova aparição de um ser híbrido,
uma loba com pernas de mulher. Também pelo fato de “monstros inquietantes” assistirem
ao julgamento.
Nos dois segmentos abordados ao momento - a visão da serpente enquanto
mantém relações com Justina e o sonho que representa o seu julgamento - o elemento
onírico tem surgido como uma representação da repressão sexual. Sebastião está
descobrindo o sexo, tomando conhecimento de suas facetas, de forma que essa atividade
ainda traz temores. No momento em que a personagem obtém domínio sobre sua
sexualidade, livra-se dos tabus e o sonho passa a liberar imagens positivas. Assim, nas
situações seguintes, o sonho vai se transfigurar em um instrumento de desempenho sexual
para a personagem, os desejos por ele experimentados durante o dia terão prosseguimento
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no seu sono através dos sonhos. “Mas as noites prolongavam os desejos do dia, fazendo-
me acordar no instante em que os sonhos se liquefaziam. Detestava que Catarina, ao
arranjar-me o quarto de manhã, descobrisse indícios de meus desaforos oníricos” (p.87); e
“Hoje ainda, isolado nas serranias tenho saudades das suas onirocríticas ao pequeno-
almoço, quando lhe contava sonhos da noite anterior e ela os interpretava sem hesitações e
sem nenhum tabu, libertando-me dos nocturnos morticínios...” (p.92)
A interpretação dos sonhos realizada pela a tranqüilizava Sebastião. Essa
afirmação reforça a idéia de que os sonhos são imagens perturbadoras liberadas pelo nosso
inconsciente. Imagens que necessitam ser interpretadas para que o indivíduo delas se
desligue e possa continuar sua vida livre da desestruturação sofrida pela tomada de
consciência. Sebastião temia incomodar sua avó com os resultados de seus sonhos, no
entanto a interpretação sem preconceitos que ela realizava livrava-o desse temor.
Na época em que conhece Clara, Sebastião influenciado pelo cavaleiro Alcides de
Carvalho, uma das testemunhas de seu nascimento, passa a participar de reuniões
clandestinas com pessoas que acreditavam ser ele a reencarnação de D. Sebastião Era no
Núcleo Sebastianista de Sintra. O cavaleiro achava que Sebastião devia desempenhar em
sua vida aquilo que D. Sebastião não havia feito: dedicar-se ao “belo sexo”, às mulheres. Os
membros da associação animavam-se pelo fato de Sebastião conhecer tão bem a Serra de
Sintra, provavelmente lembrança de outra vida, e pelas semelhanças que existiam entre ele
e o rei.
Havia também especulações acerca do “real quinto membro” e da enfermidade de
que sofria o rei, impossível de ser detectadas pelos médicos da época. Motivos pelos quais,
supunha-se, o rei teria sentido aversão pela ptica carnal. Falavam também sobre as
candidatas a rainha de Portugal, entre elas a infanta castelhana Isabel Clara Eugênia, com
a qual D. Sebastião havia contratado casamento para depois da batalha de Alcácer-Quibir,
deixando para D. Felipe II duas opções: “se Sebastião vence, ganho um genro; se morre,
ganho um reino.” (p.71)
Sebastião costumava esconder de Clara essas especulações acerca de sua
pessoa, já que a garota considerava ridículas as esperanças de retorno para reis há muito
desaparecidos. Nem ele mesmo dava muita importância ao que dele se dizia, embora às
vezes a dúvida pairasse sobre seus pensamentos: “Mas a idéia perseguia-me contra a
minha vontade, apanhando-me desprevenido nos momentos mais inesperados.” (p.72)
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Quando se aproximava o momento da partida de Clara, os namorados foram fazer
um passeio e visitaram o local onde D. Sebastião estava enterrado, “insepulto e sepultado
contudo”. O monumento funerário, um túmulo em “tristes tons de mármore, suportado por
dois elefantes negros”, em cujo epitáfio, em latim, Sebastião descobre a inscrição: SI VERA
EST FAMA. A personagem impressiona-se a ponto de ter uma forte vertigem, sendo
obrigado a deixar o local, levando, entretanto, anotada a inscrição do mulo do rei. “Anotei
e guardei, até hoje, na carteira, esta inscrição talhada em lápide calcária, declaração de
ausência e de presença. Os ossos, supostamente trazidos de África, não são decerto os
seus. Só raramente a fama é verdadeira.” (p.73)
- Capítulo 6:
Na sua chegada a Paris, Sebastião é apresentado a Jacques, o marido de Helena.
Segundo esta, por ele não seriam atrapalhados, pois o marido, enquanto estava em Paris,
dedicava-se a sua única paixão: o orientalismo, seita dedicada ao Espírito Santo, assim
como a devoção de sua mãe à terceira pessoa da Santíssima Trindade, Spiritus Inteligentae
Sanctus. Esse fato resulta no quarto sonho, ilustração da sexta epígrafe.
Sonhei com um ritual triádico em que Jacques, paramentado em trajes
prelatícios que lhe não ocultavam as pernas demoníacas, segurava entre
dentes um dos braços do crucifíxo igualmente metido na boca de uma feia
figura feminina com um godemichet ridículo, a qual com a mão esquerda
ajudava a levitar um hominídeo que por sua vez abocanhava com apetite o
cimo do crucifixo. De num trapézio e empunhando uma corneta,
testemunhei contra a vontade a repugnante dança em volta do Crucificado.
(p.114)
Sua descrição mostra a cena de um encontro sexual, mesclando imagens
grotescas com imagens referentes ao cristianismo. Trata-se da realização de um ritual,
como é nomeado no texto, que estaria sendo celebrado por Jacques, marido de Helena.
Esta personagem estaria personificando o demônio, ao mesmo tempo que representava,
através dos paramentos cristãos, um sacerdote católico, seguidor e difusor da palavra de
Cristo. O crucifixo, elemento simbólico dessa religião, estaria sendo manipulado por ele,
sendo profanado aqui pelo contato com a boca do “hominídeo”, numa alusão à forma de
sexo oral. Formando um trio, nas outras pontas, estariam uma mulher e um homem
caracterizados por motivos caricatos.
Compreendemos melhor a participação de Jacques neste rito quando relembramos
o convite recebido por Sebastião para participar de uma sessão da seita da qual o marido de
Helena era adepto. Segundo Helena, o Orientalismo, divisão que acreditava no sincretismo
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entre o hinduísmo e o cristianismo. Assim, reunindo aspectos concernentes a uma e outra
religião e profetizando o poder do princípio triádico. Em seu sonho, Sebastião junta estes
conceitos ao que ele considera a sua religião: a sexualidade. Vemos, então, o amálgama de
elementos sagrados (os paramentos e o crucifixo) e profanos (pernas demoníacas, o
abocanhar do crucifixo e a ridicularização das figuras humanas). A tríade sustentada pelo
crucifixo remete ao envolvimento amoroso das três personagens que formam um triângulo.
Dessa forma, o protagonista expressa sua insegurança frente à natureza do sexo, que ele
acredita ser sagrado, mas que a sociedade denomina como algo profano e que deve ser
refreado. Após esse sonho, Sebastião aceita o convite de Helena para participar na SUCH e
passa a difundir pelo mundo a sua religião.
O grotesco está presente nessa passagem também através da hibridização. Se
observarmos a figura que início ao capítulo, visualizamos esta estratégia em “pernas
demoníacas” e hominídeo”. O primeiro é representado pela imagem de um homem vestido
de padre (Jacques) que possui pernas de um animal, provavelmente bode pela alusão ao
demônio e um longo rabo. O hominídio é representado por uma imagem humana de cujo
pescoço parte um terceiro membro semelhante a um falo que termina com a boca de uma
serpente.
- Capítulo 7:
O último sonho, descrição da última epígrafe, traz Sebastião fechando um momento
de crise existencial e abrindo-se para um novo momento no qual as perguntas não são mais
as mesmas e onde há uma certeza: sabe quem não quer ser.
Seja sonho meu ou desenho de meu amigo que todos os meses me traz
novos esboços, ultimamente aparece-me de noite uma figura nua que podia
ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvas compridas, usando na
cabeça a mitra dos dignatários e príncipes. Pára diante de mim e apoia
numa rocha a grossa espada, de punho escamoso terminada em boca de
drago. Es rodeado por quatro monstruosos animais, como os símbolos
dos Evangelistas cercam o Filho do Homem nalguns ícones, e representam
o sal do desejo, o pez da nostalgia, o mercúrio do movimento, o enxofre da
melancolia. Como se fosse um sol, sete estrelas giram à minha volta. São
as Plêiades, da constelação do Touro, e de repente tranquiliza-me a
evidência de que aquele Sete-Estrelo me de guiar pela vida fora e me
há-de defender de morrer cedo. (p.130)
Nessa passagem, a idéia de grotesco está sublimada, já que este possui um
contexto positivo de encontro da personagem consigo mesma. Mas, analisando-o,
encontramos alguns elementos como a comparação entre a figura vista por Sebastião e a
imagem de Cristo “Está rodeado por quatro monstruosos animais como os símbolos dos
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Evangelistas cercam o Filho do Homem nalguns ícones.”, a alusão aos “monstruosos
animais” e a grossa espada empunhada pelo homem. A posição da espada, voltada para
baixo, contrariando a posição esperada quando significa a vitória, voltada para cima, mostra,
finalmente, que o Desejado, ou Messias, não vem para salvar, como acreditamos, mas para
mostrar que o indivíduo deve encontrar a sua função na terra e agir por si próprio, realizar
seus próprios milagres.
5.2 A Batalha de Alcácer-Quibir
No segundo capítulo, temos a descrição de um sonho que ocorre ainda antes de
Sebastião completar três anos, sendo recorrente nesse período. Seu conteúdo atormenta a
personagem por rias noites, assim como os pesadelos que dão corpo à catástrofe de 19
de janeiro. A diferença é que esse flagelo possui um fim, ou trégua, como denomina
Sebastião.
A história desse pesadelo, em especial, relata uma batalha em que a personagem,
involuntariamente, participa. Sebastião declara não saber contra quem luta, nem a favor de
quem. Vê homens que o querem assassinar sob várias formas e defende-se, por instinto,
entre o mal-estar que lhe provoca o campo de batalha, onde o sol e a poeira prejudicam a
sua visão.
...eram homens que me queriam estrangular, trespassar à espada, à lança
ou à facada. Quando agora fecho os olhos, no deserto desse ascético
fevereiro, regressam com violenta nitidez as lutas de dois gangs rivais que
mutuamente tentam liquidar-se. Num dos bandos abunda gente de turbante,
que pelos vistos me considera seu inimigo, não sei porquê, nem conheço os
meus inesperados aliados. Por palpites distingo quem é quem, sob o sol e a
poeira que não me deixam ver e me fazem vacilar de tonturas e vómitos. (
FARIA, 1993, p..31)
Essas imagens, Sebastião denomina como a manifestação do “inferno”, de algum
“limbo ou zona turva”, temores ocultos procedentes de algum local obscuro e imperceptível.
Em sua descrição, utiliza-se de sensações, representações bastante verossímeis no que se
refere a uma guerra, criando assim uma forte impressão de realidade, como se tivesse
realmente vivido tal cena.
Durante noites e noites seguidas, como num livro de muitos capítulos,
vinham até mim amostra do que será o inferno, se existir. Mesmo que não
exista, haverá um qualquer limbo, zona turva de onde saem esses terrores
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não vividos ou esquecidos. Convencido de que uma ordem obscura se
oculta sob o caos noturno, escapam-me as razões desses pavores: a carne
queimada, o cheiro a e a pólvora, o fumo escuro ardendo nos meus
olhos, o pânico da dor, um tipo de cara repugnante, coberta por pústulas e
úlceras que lhe dão o aspecto de um lobo com febre. A recorrência deste
sonho tornou-se para mim mais inquietante ao encontrar, anos mais tarde,
um marroquino que eu juraria ter conhecido e que sofria de lupus
eritematosus, moléstia que tanto aparece na pele como pode concentrar-se
num órgão, e este, como uma bomba explode. (FARIA, 1993, pp. 31-32)
Em um primeiro momento, os pesadelos provocam pavor, assombram o sono da
criança que acorda a berrar como se estivesse tido contato com demônios. A personagem
convence-se inclusive de que a noite oculta alguma “ordem obscura” que provoca a
emersão dessas imagens perturbadoras. Em um segundo momento, a personagem
inquieta-se e questiona-se sobre a natureza de seu sonho (terrores vividos ou esquecidos),
principalmente quando, coincidentemente, algum tempo depois, conhece um “marroquino”
semelhante ao homem doente que se lhe afigura em seus sonhos.
Nessa manifestação orica, o grotesco manifesta-se através da presença da
morte, do mal-estar que provoca a participação na batalha, inclusive com a citação de
algumas enfermidades, através da presença do elemento negro e do medo.
No parágrafo quatorze, o caráter negativo dessa manifestação onírica é reiterado
por algumas metáforas, havendo, inclusive a mistura de campos semânticos relacionados
ao caráter de “baixo” ou “queda”.
Os súcubos e íncubos que saltam de subterrâneos sinistros e de criptas, de
túmulos e de prisões de negras aranhas espreitando nos cantos, esperando
que eu adormeça para me morderem; as flores pútridas, infestadas por
fungos, que me crescem na boca e me sufocam; tudo isso se desvaneceu
durante uns tempos para ir atormentar outras vítimas, talvez. (p. 32)
Por fim, a partida dessas perturbações traz a Sebastião tranqüilidade e coragem.
Permanece por algum tempo ainda protegido pelo aconchego de sua cama e de sua casa,
até que, no outono, passa a freqüentar a escola da Azóia.
Também ocorre, nesse sonho, um ponto de ligação entre a personagem Sebastião
e a personagem histórica D. Sebastião, figura com a qual é comparada o hei no decorrer
da obra. Essa comparação ficção/História estrutura a questão identitária apresentada por
Sebastião, é a partir dela que surge a crise por ele protagonizada. Particularmente, nesse
sonho temos uma suposta descrição da batalha em que D. Sebastião perdeu a vida
Alcácer-Quibir. Podemos levantar essa hipótese, levando em consideração as imagens
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apresentadas na passagem – uma batalha em que “gente de turbante” representa o exército
mouro, inimigos do protagonista, portanto dos portugueses; uma batalha em um local no
qual “o sol e a poeira” impedem a visão, ou seja, possivelmente, em um deserto, no Norte
da África.
Em termos de objetivo, não há nada no texto que nos permita afirmar com certeza
ser este sonho uma lembrança de algo já vivido por Sebastião, a menos se o considerarmos
como uma reencarnação do rei D. Sebastião, hipótese já referida no primeiro capítulo da
obra. Por outro lado, o sonho não parece ter caráter de premonição, embora possamos
encará-lo como uma manifestação da preocupação identitária apresentada pela
personagem.
5.3 Singularidades da Personagem
Sebastião apresenta algumas singularidades que fazem com que se crie uma
impressão estranha a seu respeito. Dentre esses aspectos, destacamos a mudez enquanto
criança e a sua exacerbada sexualidade. No primeiro caso, o comportamento peculiar de
Sebastião ganha destaque não apenas através da sua dificuldade com a aquisição da
linguagem mas também pelo episódio pelo qual o problema se resolve. Quanto à
sexualidade, temos, desde o precoce envolvimento com Dora Bela e das referências ao
membro sexual da personagem, um comportamento bastante atípico. Nesse sentido,
destacamos seus relacionamentos amorosos e o “campeonato da mijação”, brincadeira
utilizada para reforçar publicamente a fama do “conquistador”.
5.3.1 A Tardia Aquisição da Fala
Uma importante passagem em que deve ser destacada a ocorrência do estilo
grotesco é o episódio do mutismo da criança. A personagem não falava aos três anos de
idade, sendo que o término de seus pesadelos referentes à batalha coincidiu com a tardia
manifestação da linguagem por Sebastião. O fato é que a ocorrência dos pesadelos é
relacionada pelo narrador à sua impossibilidade de comunicação verbal.
No capítulo dois revela Sebastião: “Levava um vida soturna e embotada” (p.28).
Não sendo capaz de falar até os três anos, essa deficiência levou os vizinhos e seus pais a
proferirem vários diagnósticos e a buscarem receitas populares que pudessem resolver o
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102
problema. Sua mãe rezava para Santa Clara preceptora e protetora da linguagem”. Foi
perto do Pentecostes, comemoração da descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos,
concedendo-lhes o dom da possibilidade de pregação universal, que Sebastião, depois de
uma vertigem em que vomita uma “papa repulsiva”, começa finalmente a falar. Sua mãe
encara essa cena como uma luta entre o Santo Espírito e o Maligno e, a partir daí, passa a
reconhecer em seu filho um sinal de predestinação.
Os pais de Sebastião acreditaram nesse suposto sinal da descida do Espírito Santo
sobre o menino quando João de Castro presenciou um fato singular. Ao subir para o farol, o
pai de Sebastião viu “uma grande ave branca” que voava sobre a casa. “E a ave girava
devagar, vogava sem bater as asas, em círculos concêntricos à volta do cabo, sobre a
nossa casa transfigurada por uma brancura fora do normal.” (p.30) Nesse caso, o texto
remete a um dos mitos bíblicos, parodiando assim a história sagrada. Os apóstolos
esperaram, após a morte de Jesus a descida do Espírito Santo sobre eles a fim de liberar o
Dom de profetizar a verdade de sua crença em todas as línguas do mundo.
Nessa passagem observa-se ainda a paródia de um mito profano ligado às origens
da nacionalidade. Registrado no Livro de Linhagens encontra-se o mito da D. Marinha,
mulher encontrada pelo nobre Dom Froiam na praia semelhança da personagem de
Almeida Faria) e que, sendo muda, teria começado a falar também de uma forma análoga a
Sebastião, ou seja, depois de “deitar pela boca ua peça de carne”.
As cores destacadas nesse segmento do texto, assim como os próprios vocábulos
de designação de luz, trazem uma idéia de luminosidade que se coloca em contraposição
ao efeito noturno destacado na maior parte do texto: a ave que sobrevoa a casa de
Sebastião é branca, gira em torno de holofotes cuja forte luz fura as nuvens; este ato
transfigura a casa, tornando-a de uma brancura fora do normal. A ave, ao desaparecer no
horizonte “tornou luminoso o nevoeiro” e os pais ficam, então, “longamente olhando o
oceano passar do violeta-imperial ao magenta” (p.30).
5.3.2 A Sexualidade
Apesar de a personagem ter começado a falar com três anos, a tardia aquisição da
fala é um fato posterior à descoberta da sua sexualidade. O menino toma conhecimento de
sensações eróticas ainda com dois anos de idade. Essa descoberta dá-se através de um
colóquio amoroso entre ele e a anã de circo que freqüentava sua casa. Sebastião sente-se
excitado pelos embalos e cantigas de Dora Bela, que ele considera a sua primeira
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namorada. A brincadeira dura pouco, entretanto, pois o marido da anã descobre os efeitos
da presença de sua esposa e leva-a embora. Sua importância, porém, não está no
relacionamento em si, mas no despertar da sexualidade de Sebastião, segundo ele, foi ela
que lhe mostrou a existência de seu “dom”: “Mas nunca esqueci as canções com carícias
desta Fada que tão cedo trouxe os meus dotes à luz do dia” (p.26)
A precocidade sexual da personagem não essomente na descoberta do sexo,
mas também na sua iniciação, a qual ocorre três anos depois de ele começar a freqüentar a
escola. Sua primeira relação sexual dá-se com a professora, Justina, e, a partir de então,
Sebastião dedica-se ao aperfeiçoamento das técnicas de sedução e de relacionamento
sexual.
No que diz respeito à iniciação sexual da personagem, podemos colocar em uma
posição de simetria a devoção de D. Sebastião ao Cristianismo e o empenho sexual da
personagem Sebastião, que denomina o sexo a “sua religião”. Sabe-se do rei, em relação à
sua sexualidade, que este, por cultuar os preceitos da cavalaria cristã, optou pela castidade,
até mesmo resistindo ao casamento. Sebastião toma conhecimento e desenvolve sua
potencialidade sexual ainda na infância. A partir de seu relacionamento com a professora
Justina, todos os seus esforços de crescimento pessoal estão direcionados à prática sexual,
até o momento em que esta se torna a causa de um esgotamento físico e mental.
A descrição de sua sexualidade é uma forma de conhecer a personagem. Por tal
razão mapeamos seus relacionamentos amorosos, na medida em que são esses os eventos
responsáveis pela progressão e organização da narrativa.
- Dora Bela
Sebastião conta, como uma de suas recordações mais antigas, a chegada em sua
casa de um casal de liliputianos”, anões de circo aposentados, que se fixaram na Azóia. O
contato com Dora Bela excitava o menino, que experimenta, precocemente, determinadas
sensações inesperadas. D. Rodrigo, porém, percebendo e escandalizando-se com as
reações da criança, distanciou-se do convívio familiar, interrompendo suas visitas. Sebastião
reconhece a importância dessa mulher por lhe ter desvendado os segredos do corpo e
magoa-se com sua partida. Dora Bela é considerada, por ele, a sua primeira namorada.
- Amélia
No outono em que começa a ir para a escola, Sebastião conhece Amélia, filha de
um colega de seu pai. Ambos se dirigem para a aldeia, fazendo-se companhia no percurso.
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Esse relacionamento apresenta um aspecto mais convencional, isento de contatos sexuais.
Segundo Sebastião, seu namoro, agora, era “mais conforme com os sentimentos nobres”
(p.32). Na verdade, sua relação com Amélia não instigava diretamente seu instinto sexual
como aconteceu com Dora Bela. Com Amélia, Sebastião experimenta a vontade de
proteger, o fascínio pela fragilidade feminina.
O narrador-personagem está diante do ser feminino e perplexo com os seus
mistérios. Seu desejo é o de desvendar a mente e compreender as atitudes das mulheres.
Observando e analisando sua namorada, Sebastião se convence de que “a constante
modificação definia as mulheres” (p.33) e depara-se com uma tarefa mais árdua: “definir o
que era modificação e o que era permanência nelas.” (p.33)
Sebastião e Amélia mantiveram seu relacionamento por dois anos, em que o herói
satisfez-se com festas no nariz, cócegas e beijos roubados. O encanto termina quando, em
uma dessas brincadeiras, Amélia descobre a excitão de Sebastião, ao tocar-lhe o membro
sexual. A partir daí, o protagonista passa a não se sentir à-vontade na companhia de
Amélia. O fim desse namoro provoca nele uma infinidade de complexos que ele supera
através da amizade com meninos que eram os “maiores cábulas da classe(p.35). Para
despertar a atenção dos colegas, relata-lhes cenas fantasiosas de aventuras sexuais que
teria protagonizado com estrangeiras.
Na terceira classe, mais ou menos com nove anos, o interesse por Amélia que,
“ainda não tinha idade para aquelas inchações peitorais” (p. 35), foi substituído pelo
interesse pelas “formas e feitios” do que Sebastião imaginava “sob a saia, sob a camisa” da
mestra.
- Justina
Sebastião tenta impressionar a mestra com sua erudição, a estratégia funciona e
ela corresponde ao “descaramento de seus olhares”. Assim, em uma tarde em que Justina
olha o poente, à beira-mar, justamente no cenário das fingidas conquistas de Sebastião,
acontece o encontro entre ambos. Justina inicia Sebastião na arte do sexo e o ensina como
aperfeiçoar seu dom. Esse namoro dura todo o ano letivo, até que Justina viaja para Lisboa
de férias. Sebastião perturbado pela solidão acaba deprimindo-se e fechando-se em casa.
Curto isolamento, entretanto, superado pelas idas à praia para assediar as meninas de sua
idade.
No outono em que as aulas recomeçam, Sebastião retoma as suas conquistas com
as colegas. Justina surpreende-o, o que provoca uma briga que põe termo ao
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105
relacionamento. Afirma Sebastião: “Foi o fim. Nunca mais me recebeu em casa nem me
falou nas aulas. Fiquei bem nos exames finais, deixei a escola da Azóia para freqüentar o
secundário em Sintra. Quanto a Justina, nunca mais a vi.” (p.52)
- Clara
A conquista seguinte foi a americana Clara. Conheceu-a numa tarde em que fora à
praia nadar. Impedido na comunicação verbal, pois os dois não conseguem se entender,
uma vez que falam línguas diferentes, Sebastião testa outras artimanhas para persuadi-la.
No entanto, acaba fracassando, e constata que seus truques de sedução precisavam ser
revistos. Combinam, porém, encontrar-se todos os dias, para ensinarem-se suas respectivas
línguas.
Esse namoro é o mais importante para a vida da personagem. Sebastião e Clara
apaixonam-se e passam a morar juntos em Sintra. Mas Clara está em Portugal para realizar
uma pesquisa e não tarda a retornar aos Estados Unidos, deixando Sebastião acometido
por uma grande tristeza, expressada pela seguinte assertiva: Sem Clara fiquei órfão de
mim.” (p.81)
- Julieta
Aos quinze anos, Sebastião passa a morar com a avó em Lisboa. No colégio,
conhece Julieta, esposa de seu professor de história, mais uma de suas mulheres.
Convidado à casa do casal, Sebastião depara-se com uma situação inusitada que sugere
uma orgia entre ela, o marido e o primo. Perturbado pela vulgaridade do ambiente, vai
embora, mas não resiste, mais tarde, aos assédios da “espampanante Madame” (p.83) e
mantém com ela um furtivo e curto caso. Curto, porque ele próprio, desencorajado pela
obscenidade do envolvimento, foge às constantes investidas de Julieta. Sebastião acaba
concluindo que: “Se é fácil iniciar ligações sensuais, difícil é pôr-lhes fim.”
- Helena
Por fim, conhece Helena, uma brasileira casada com um diplomata francês que
estava de visita em Lisboa. Acompanha-a em compras e em alguns passeios turísticos,
alcançando, com esses sacrifícios, o direito de compartilhar sua cama. Helena parte. Deixa,
entretanto, o convite para que se junte a ela em Paris. Sebastião, assustado pela
perspectiva de servir à pátria nas guerras coloniais, opta, então, pelo exílio voluntário no
estrangeiro. Lá atinge o ponto alto de “sua missão”, passando a fazer parte de uma
sociedade em que deveria satisfazer todos os desejos das associadas do mundo inteiro.
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106
Continua, também, seu relacionamento com Helena, até que a proximidade do seu vigésimo
quarto aniversário e um esgotamento físico e mental, fazem-no retornar a Portugal.
5.3.3 Campeonato da Mijação
Por último, destacamos como momento de inserção do grotesco na obra, uma
brincadeira realizada por Sebastião e seus colegas ainda no colégio, assim como a maneira
como o menino encarava as denominações com que se alcunhavam os órgãos sexuais
tanto feminino com masculino. A Sebastião irritava a atitude dos amigos de denominar de
forma depreciativa o sexo feminino e engrandecer as denominações do sexo masculino.
Isso, para ele, era uma forma de “minimizar o medo do desconhecido.” (p.48) Contrariando
as palavras desprezíveis utilizadas pelos meninos como racha, fenda e pássara, Sebastião
adequava mais seu léxico a coisas sagradas. É comum, ao longo do texto, a relação do
sexo ao sagrado por meio da apropriação de símbolos cristãos. Como exemplos, temos a
opinião de Sebastião sobre a origem divina do sexo, a comparação da Santa Ceia ao corpo
da professora, seu léxico sexual/religioso.
Como comprovação dessa relação e também da valorização do falo, o narrador
conta o episódio do “campeonato da mijação”, competição realizada no colégio para ver
quem possuía o pênis maior. Aqui, novamente a mistura entre um ritual profano e o
componente de profanação de comportamento religioso. Para descrever o concurso são
utilizadas expressões como “ciência hidráulica”, “canalização mais comprida”, “proprietário
da suprema aparelhagem”, “calibre” (p.48). A idéia do concurso veio de um menino que
havia sido expulso do seminário e que, vestido para a ocasião numa gabardina, pronunciava
em latim as palavras utilizadas para benzer os fiéis: asperges me, Domine...” Sebastião
vence o certame, confirmando os boatos acerca do tamanho do seu membro sexual.
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6 A INSERÇÃO DO MITO
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A personagem Sebastião, desde a narrativa de seu nascimento e ao longo da obra,
apresenta determinadas particularidades que o aproximam da entidade mítica central do
movimento sebastianista. Sebastião, de acordo com o mito do rei desaparecido relacionado
aos indícios encontrados no texto, poderia ser D. Sebastião redivivo.
6.1 A Formação e Progressão do Mito sebastianista
A crença no sebastianismo é um traço muito forte da nação portuguesa, tanto que
ela pode ser reconhecida em qualquer um dos momentos de crise da nacionalidade. Sua
criação -se no momento em que Portugal perde sua autonomia em favor da Espanha em
1580; sua confirmação ocorre no momento da Restauração; em sua última manifestação,
revive quando da invasão francesa. Só depois disso é que se pode falar de sua decadência,
mas não por inteiro, pois a idéia messiânica permanece na memória e no caráter nacional.
De acordo com Azevedo (1947), a persistência do messianismo em Portugal é um
fenômeno sem comparação. O autor o relaciona à saudade, quando define ambos os
sentimentos como “feição inseparável da alma portuguesa”.
O sebastianismo representa a espera do salvador predestinado, que virá para
realizar feitos grandiosos e transformar Portugal no Quinto Império. Esse redentor, após a
batalha de Alcácer-Quibir passa a ser corporificado pela figura do rei desaparecido
Entretanto, essa crença no messianismo está presente no país desde 1530, através da
difusão das profecias ditadas por Gonçalves Annes Bandarra em suas Trovas, obra que,
adaptada ao sebastianismo, vai se tornar o verdadeiro evangelho” da crença.
Bandarra teria escrito suas profecias inspirado na blia, a troco disso, teve
rapidamente a adesão dos cristãos-novos, que criam na chegada de um messias. Além
dessa fonte, juntam-se ao engenho do sapateiro de Trancoso resquícios de vaticínios
messiânicos vindos da Espanha e também de algumas lendas do ciclo arturiano. Assim
nasce o sebastianismo. Segundo Azevedo:
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109
Nas Trovas pela primeira vez se materializa o estado de alma, tão peculiar,
que por tanto tempo distingue a raça portuguesa; e ao autor delas coube o
dar-lhe expressão, com o que, por apagados que sejam seus méritos, tal foi
a sua acção que de nenhum modo o podemos excluir da história da
literatura nacional. (Azevedo, 1947, p.9)
D. Sebastião nasce em 1554. Antes disso já havia recebido a alcunha de O Rei
Desejado, pois seu pai, sucessor de D. João III, morrera ainda antes do seu nascimento;
portanto, se o pequeno não resistisse à gestação e à infância, Portugal ficaria sem herdeiro
para o trono, seria o fim da dinastia de Avis. D. Sebastião assume o trono bastante jovem e,
por uma fatalidade, desaparece, aos 24 anos, em batalha contra os mouros no norte da
África. Isso ocorre em 1578. E o que aconteceria com as esperanças do povo português
depositadas no jovem rei? É nesse momento que o sebastianismo ganha maior prestígio. O
reino, estando prestes a cair sob a dominação espanhola, necessitava de um alento: o
retorno de D. Sebastião. Foi D. João de Castro, considerado o profeta do sebastianismo,
quem interpretou as Trovas de Bandarra e passou a incutir nas mentes portuguesas a
esperança na ressurreição ou reaparecimento do rei Encoberto, que deveria destruir o turco,
retomar a Terra Santa e dominar o judaísmo para alcançar o Império Universal.
Apesar das esperanças no retorno do rei, a crise domina por anos durante o
governo de Filipe II. Essa crise, ao invés de arrefecer os ânimos, torna cada vez mais forte e
crescente a crença no Salvador.
D. João de Castro adapta as Trovas de Bandarra à situação estabelecida pelo
desaparecimento de D. Sebastião. Assim, ao texto são adicionadas passagens ou
modificações ao prazer ou necessidade do novo profeta, a fim de justificar a tomada do rei
como o messias esperado desde 1530. o se pode, entretanto, acusar João de Castro de
agir com fé em relação ao caso, o profeta, a partir do estudo das profecias, passa
fielmente a acreditar no retorno do rei e passa então a disseminar a idéia entre os adeptos
do messianismo. O Encoberto estaria vivo por uma razão: era dele a missão de ser
Imperador do Mundo. E dele não se tinham notícias porque, no momento, andava a
peregrinar por lugares distantes de sua pátria, conhecendo seu futuro império.
Com a restauração, ocorrida em 1640, o sentimento nacional que havia aclamado
D. Sebastião como rei Encoberto volta-se para D. João IV. Contribuem para isso os jesuítas
e alguns religiosos, destacando-se a figura do padre Antônio Vieira, que virá a reinterpretar
as Trovas de Bandarra de acordo com o novo contexto português.
Como D. João IV não confirma as aspirações profetizadas por Bandarra, vindo a
morrer em 1656, Vieira passa a pregar o seu ressurgimento. D. João haveria de ressuscitar
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para dar cabo de seus desígnios. O jesuíta comprova suas afirmações com as Trovas, mas
há, então, messianistas que abandonam essa crença, tendo-a como um engano, e
passam a crer novamente na chegada de D. Sebastião, o verdadeiro rei Encoberto.
Seguindo esse rumo, ou seja, da renovação da esperança messiânica a cada
decepção provocada pela estabilização ilusória da crença; o sebastianismo perde as foas
e inicia a sua derrocada. Transforma-se, então, em uma presença passiva de esperança
que convive com o estado nacional de apagamento da luz portuguesa. Nas palavras de
Azevedo (1947, p.90), o sebastianismo “transmuda-se numa espécie de mania mansa,
fatalismo tranqüilo, que aguardava em sossego a redenção prometida”. -se que não se
fala em extinção da crença sebástica, mas de sua transformação, posto que esse traço,
depois de uma permanência tão longa, não pode mais ser separado do caráter nacional
português. É uma das imaginações nacionais que contribuem para a construção da nação.
O tempo messiânico, responsável pela crença no retorno do rei pelo que Anderson (1989)
denomina de “poder da divina providência”, próprio ainda da Idade Média, passa agora a
sua dissolução no pensamento português e, através do esclarecimento na visão do mundo
desse povo, o messianismo passa a dar lugar a uma realidade conduzida pela lógica, pela
concepção da história como “causa e efeito”. Porém, a sua idéia já não pode mais ser
extinta ao caracterizar-se Portugal, nação construída e desenvolvida em uma base mítica,
desde a famosa batalha de Ouriques.
Novamente, em 1808, quando da invasão francesa em Portugal, o sebastianismo
institui alguns suspiros, despertando no ânimo nacional a em um tempo melhor que
estava por vir. Entretanto, a “energia desse sentimento esgotara-se” e já não existiam mais
sebastianistas fervorosos que tentassem pela ação estabelecer suas aspirações. A crença
estava agora somente na esperança e seus adeptos passivos, quase que incrédulos,
somente esperavam.
Em 1813, surge nas ruas de Portugal um homem vestido de mouro que anuncia a
chegada de D. Sebastião. Alcunhado de O Último Sebastianista, o crente simplesmente é
levado pela polícia sem atrair maior atenção dos portugueses, filhos do sebastianismo, em
que já não tinham esperanças.
Da aceitação do Duque de Bragança como substituto de D. Sebastião, surge em
Portugal uma literatura que pretende aclamar os feitos e acontecidos da nação lusitana. De
acordo com Azevedo, essa literatura corresponde ao estado da mentalidade nacional. “É a
megalomania dos tempos sebásticos que ressuscita.”
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111
Semelhante a essa vertente na temática e também correspondendo a um estado de
alma português, que ressuscita o mito de D. Sebastião, no final do século XX, muitas são as
leituras do sebastianismo na ficção portuguesa. Citam-se O Mosteiro (1980) de Agustina
Bessa-Luís; O Viúvo (1986) de Fernando Dacosta; As Naus (1988) de Lobo Antunes;
Jornada de África (1989) de Manuel Alegre; Vida de Sebastião Rei de Portugal (1993) de
Antônio Cândido Franco e O Conquistador (1990) de Almeida Faria.
6.2 O Tratamento dado ao Mito dentro da Obra O Conquistador
Em O Conquistador, o caráter sobrenatural do nascimento da personagem é a
primeira relação realizada na obra entre as duas figuras: Sebastião e D. Sebastião. Do mito
de retorno de D. Sebastião criou-se a crença de que o rei voltaria para Portugal, em
circunstâncias míticas: vindo do mar, em uma manhã de nevoeiro. Assim, o aparecimento
da personagem Sebastião corresponderia à história criada para o retorno da personagem
mítica, ainda mais por se ter realizado exatamente na data de nascimento do monarca.
comentadas quando da descrição do ambiente em que ocorre o aparecimento da
personagem Sebastião, duas são as passagens que se sobressaem e merecem ser
retomadas:
O horizonte desapareceu completamente, uma escuridão de estanho
esfumado avançara dos lados do Norte da África à velocidade de um
tornado, atroando tudo com o barulho de todos os bombos e tambores do
universo. [...] Vindas do mar, lufadas de névoa avançavam em direção à
Serra, como um exército desordenado recuando em debandada. (FARIA,
1993, p. 13; p. 15)
No primeiro fragmento, tem-se uma alusão à escuridão que provinha do norte da
África, ou seja, aproximadamente do local onde D. Sebastião enfrentou os mouros na
batalha derradeira, Alcácer Quibir. A seguir, tem-se o elemento voa, remetendo ao
ambiente no qual se espera a chegada do rei. A imagem “exército desordenado recuando
em debandada” lembra uma cena bélica, simbolizando a derrota das tropas portuguesas e a
sua necessidade de recuar perante os mouros.
Também na relação das semelhanças estão o nome dos pais e avós da
personagem, comuns à personagem histórica: João e Joana/ João e Catarina e as
semelhanças físicas e psicológicas (o gosto pelo desconhecido e pela aventura). Soma-se a
isso o nome da personagem que teria encontrado Sebastião e que viria a ser o seu pai
João. Mas não João. João de Castro. Sabe-se que o homem considerado o profeta do
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sebastianismo no século XVI assim se denominava. João de Castro foi o responsável pela
interpretação e apropriação das Trovas de Bandarra, assim como, pela sua disseminação
no universo português. O pai do sebastianismo na História e o pai de Sebastião na fião.
Quando fala sobre sua origem, Sebastião realiza sua descrição física, ressaltando
as diferenças entre ele e seus prováveis progenitores, notada por muitas pessoas. A
descrição realizada pela personagem assemelha-se a de D. Sebastião, “louro, de olhos
claros, curto o nariz, redonda a cara, a boca de carnudos lábios, o debaixo decaído como o
de Catarina...” (p. 16). Tanto que uma das personagens, Helena, impressiona-se com as
semelhanças frente ao retrato de D. Sebastião em comparação com o próprio Sebastião.
Não lhe faltava nem um sexto dedo no pé direito.
Todos esses fatos fazem com que a personagem passe a considerar a
possibilidade de ser a reencarnação do rei D. Sebastião. As circunstâncias que o aproximam
do rei e o medo de morrer precocemente sem ter compreendido o sentido de sua vida,
contribuem para a necessidade de definição identitária manifestada pela personagem.
Nesse sentido, segue-se a construção da personagem ficcional, com o intuito não
de torná-la igual à personagem histórica, mas de construir pontos de ligação entre ambas;
como se o Sebastião de O Conquistador pudesse vir a ser o D. Sebastião redivivo, como
se houvesse uma possibilidade de reencarnação. Em resumo dessa aproximação pode-se
citar Lima:
Com O Conquistador, estamos perante um romance de primeira pessoa em
que o narrador, Sebastião, num registo algo pícaro, nos conta a história de
sua vida, desde o insólito nascimento numa praia, “metido num ovo
enorme”, qual Vênus, até o momento da escrita, o dia do seu vigésimo
quarto aniversário. Entretanto, as coincidências entre a personagem e o rei
D. Sebastião vão muito para além do nome e manifestam-se quer a nível de
caracterização da personagem, quer a vel diegético: nascem na mesma
data, no dia do santo do mesmo nome, apenas com quatrocentos anos de
diferença (20 de janeiro de 1554-1954); os pais adoptivos de um e reais de
outro têm os mesmos nomes; os traços físicos são idênticos, inclusivamente
nos seis dedos do direito; psicologicamente muito os aproximava: a
imaginação feroz, a índole introvertida, a atração pelo desconhecido; e,
enfim, dados de diversa ordem, mais ou menos subtis provocam a
intersecção constante da história com minúscula e da História com
maiúscula. (LIMA, 1997, p.261-262)
Portanto, não as semelhanças físicas aproximavam as personagens, mas
também seu caráter. Ambos acreditavam possuir uma tarefa específica. D. Sebastião queria
ser o difusor do cristianismo, combater os infiéis e conquistar as terras que estes habitavam.
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113
Sebastião queria ser o difusor do amor, conquistar as mulheres e convertê-las à sua religião
– o sexo.
Notamos que, através da inserção do mito e da História portuguesa no enredo de O
Conquistador, o autor não pretende enfatizá-los ou confirmá-los. Como já constatou Maria
de Lourdes Netto Simões, ele pretende sim desmitificar a figura do rei. Para isso constrói
sua personagem de uma maneira antagônica ao rei desaparecido. Apesar de todas as
semelhanças que remetem à reencarnação de D. Sebastião, a personagem apresenta-se
como o oposto do salvador, seria um “D. Sebastião às avessas”.
A desmitificação pode ser claramente inferida ao se analisar a postura da
personagem em relação à Pátria, assim como o conceito que ela mesma apresenta em
relação ao mito. Cita-se: Eu porém, por natural pacifismo, não estava disposto a matar
inocentes, a perder muitos e muitos dias e quem sabe se a vida. A minha missão específica,
se a tinha, não se compadecia com guerras sem sentido.” (p.111) Sebastião, contra a
guerra, foge do exército na idade de se alistar, sendo que deveria participar na disputa pelas
colônias africanas, assume uma posição pacifista, completamente diferente da assumida
pelo rei: D. Sebastião entrou para a história e originou um mito ao embarcar com seus
homens para defender e cristianizar as colônias portuguesas, a personagem que deveria
incorporar sua figura e completar sua missão, tendo oportunidade para tal façanha, foge
para Paris. Não quer responsabilidades maiores. São palavras suas: “Quando cresci e vi
que algo se esperava de mim, preferi, por instinto, fingir que não era nada comigo.” (p.16)
É importante também destacar o conceito da personagem em relação ao mito do
sebastianismo: “Por ironia da história, o Rei Virgem, passou a ser alvo dos fascínios
femininos e, após a sua morte numa batalha ominosa, muito boa gente caíra num
masoquismo coletivo que define bem o fraquinho deste país por tudo o que seja fracasso,
amadorismo e misticismo de pacotilha.” (p.125)
Essa opinião, emitida pela própria personagem, contribui para o efeito de crítica à
crença no mito sebastianista que se quer representar na obra de Faria. A intenção do autor
é, utilizando-se de uma imagem imanente ao sentimento nacional, instigar a reflexão acerca
da nação portuguesa, sem as idealizações e esperas por um tempo utópico de glória, que
está no passado.
Como se sabe, D. Sebastião assumiu o compromisso de cristianizar o mundo,
expulsar o os mouros e conquistar assim suas terras. Se sua empresa tivesse sido positiva,
Portugal elevaria sua condição de país decadente a de grande império. No entanto, com seu
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fracasso e com a difusão da crença que preconizava o seu retorno para o cumprimento de
tal missão, foram transferidas todas as esperanças para o indivíduo que se revelasse o rei
redivivo. Se comprovada a sua predestinação, Sebastião deveria tomar uma posição na
sociedade e realizar a missão de D. Sebastião, o que acarretaria a desistência de seu
objetivo, a propagação do amor erótico, e a incorporação e uma ideologia alheia a seus
preceitos, como a ideologia da guerra, por exemplo.
Notamos que durante seu tempo de vida, Sebastião foge às circunstâncias que o
aproximam da figura do rei. Entretanto, a chegada da época em que este teria desaparecido
traz a ameaça da morte precoce, evento que leva nossa personagem ao isolamento e à
exposição de sua biografia.
Esses indícios de desmitificação encontram-se na história de O Conquistador,
dizem respeito às atitudes assumidas pela personagem. Nesse estudo, entretanto estamos
dando prioridade ao elemento que, dentro do discurso, constrói a iia de estranhamento e
contradiz, dessa forma, a História tradicional. Dentro dessa perspectiva de negação do mito
sebastianista temos, então, como principal estratégia o discurso paródico assumido pelo
narrador; e o elemento que se sobressai nesse sentido é o estilo grotesco.
O grotesco é uma criação que confunde realidade e imaginação, provocando uma
reação de estranhamento ou de antagonismo que, por sua vez, suscita o riso cômico. É uma
tendência estética que, pelo ridículo ou pela estranheza, pode realizar críticas disfarçadas
que rebaixem qualquer entidade ou comportamento idealizado demais. Na literatura, a
categoria do grotesco encontra-se basicamente no conflito entre o mundo real e a
excentricidade do mundo imaginário. É considerada uma arte contrária aos padrões
acadêmicos e clássicos que se manifesta com maior fulgor em momentos de crise profunda.
O efeito grotesco pode ser produzido por uma infinidade de composições artísticas.
Em O Conquistador destacamos os processos que dizem respeito à origem da
personagem, ao mundo onírico e à sua sexualidade. No primeiro caso, o grotesco se
manifesta basicamente pela utilização do exagero e imagens noturnas na descrição do
ambiente que antecedeu o nascimento de Sebastião. No momento em que a criança é
encontrada, destacamos o hibridismo homem/animal e a presença de seres teriomórficos,
como a serpente. No que diz respeito ao mundo onírico, temos a fusão entre o mundo
imaginário e o real, o hibridismo ser humano/animal, a mescla entre o sagrado e o profano,
a presea de monstros e referências à questão sexual. Quanto à sexualidade de
Sebastião, o efeito de grotesco é produzido primeiramente através da naturalidade com que
o assunto é tratado; ressaltamos também a precocidade sexual da personagem, as
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115
referência às partes baixas do corpo com destaque ao tamanho excepcional do membro
sexual de Sebastião e a sua singular sexualidade.
Todos esses elementos e a maneira como suas relações são estabelecidas dentro
do texto fazem de Sebastião uma figura insólita e especial. A forma como acredita ter
nascido, seu comportamento nos envolvimentos amorosos, os sonhos, sua ideologia anti-
social e patriótica o distanciam da personagem histórica com quem ele é comparado. Mas
ao mesmo tempo, apontam uma existência invulgar. Sebastião parece ser alvo de uma
predestinação, a personagem que quer fugir desse acaso, acaba, entretanto, sendo tima
do imaginário social que repudia.
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CONCLUSÃO
No ímpeto de representar os conflitos e a precariedade do homem em um mundo
perturbado por constantes transformações, a arte contemporânea apresenta, de uma forma
geral, uma atitude diferenciada em relação às expressões artísticas que a antecedem. No
romance ocidental do século XX, manifestar essa discrepância significa assumir uma outra
forma de narrar que inova tanto na estrutura textual como na temática abordada. Essa
diferença é bastante marcante quando consideramos as categorias fundamentais do
romance: o narrador, o tempo, o espaço, a noção de causalidade e a personagem. Estamos
falando da supressão da mediação antes realizada pelo narrador, das oscilações em relação
à continuidade temporal, da indefinição do espaço, da perda do encadeamento lógico no
enredo e da queda da personagem bem delineada. E, no que diz respeito ao assunto,
segundo Rosenfeld (1976), falamos de uma literatura povoada pela irrealidade, por mitos e
pelo elemento onírico.
Em Portugal, essa literatura de fragmentação ganha um objetivo mais específico:
hostilizar o momento potico de repressão imposto pela ditadura salazarista. O romance
português viveu um período de nacionalidade extrema no qual a liberdade de expressão era
controlada pelo governo, cuja queda propiciou uma explosão de textos voltados para a
busca da autonomia literária e da universalidade.
De acordo com Eduardo Lourenço, nessa fase, cujo princípio compreende os anos
50 e 60, surge uma era de escritores comprometidos não com a retomada do espaço
literário, mas principalmente com a representação do espírito e do universo português. A
temática abordada pretende situar o indivíduo como um ser especificamente português,
refletindo acerca da sua inserção no mundo europeu, o que sugere a busca de uma
reestruturação da identidade nacional.
Nesse contexto, inserem-se as obras de Almeida Faria, estudante de filosofia, que
presenciou e sofreu a crise provocada pela administração do Estado Novo. O escritor
adapta a temática portuguesa às tendências artísticas exteriores, principalmente à francesa.
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Essa união resulta em uma literatura de consciência e crítica social, assim como na
representação da situação sócio-política e cultural do país.
Sua primeira obra, Rumor Branco (1962), foi considerada um modelo de
transgressão das regras estéticas tradicionais, as quatro obras que a sucedem, conjunto
denominado de “Tetralogia Lusitana”, seguem o mesmo caminho e apresentam a
continuidade de seu estilo fragmentário. A temática nelas desenvolvidas encontra também
um ponto comum: a expressão das dificuldades sociais, políticas e econômicas do país.
O Conquistador, escrito em 1990, distancia-se das obras anteriores,
principalmente se considerarmos a sua estrutura textual. O romance segue a linearidade
dos textos tradicionais, não havendo traços aparentes de fragmentação na forma como é
narrado. Quanto à questão temática, temos uma similaridade, já que nele são desenvolvidos
também aspectos de crítica ao sistema, tanto à antiga ditadura como à democracia s-
revolucionária. A diferença está no tratamento dado a essa temática, desenvolvida de forma
mais leve, com humor dissimulado e com atitudes surrealistas.
Com efeito, na construção do discurso de O Conquistador, são encontrados traços
bastante marcantes da concepção surrealista. De acordo com Maria Lúcia Lepecki (1979), o
surrealismo foi o movimento de vanguarda que trouxe mais conseqüências para a literatura
de Portugal. O movimento atacava os valores impostos pela ditadura e buscava uma
liberdade de expressão sem limites em detrimento da moral estabelecida pela sociedade,
pela religião e pela família. Em sua essência, visava a uma revolta contra a lógica e o
racionalismo, valorizando, por esse motivo, a libertação do desejo, do imaginário, da
sexualidade, da loucura, do sonho, do incongruente e do insólito. Essas características
mostram-se com constância na obra de Almeida Faria, inclusive no romance em estudo.
Mas o procedimento discursivo que obtém maior destaque em O Conquistador e que
parece ser antese de muitos dos aspectos acima citados é a categoria estética do
grotesco.
A categoria do grotesco, sendo uma figura de transgressão, constitui uma maneira
indireta de se praticar a crítica. Através de uma “combinação insólita e exasperada de
elementos heterogêneos” (Sodré e Paiva, 2002, p.17), de referências à sexualidade, ao
imaginário e à animalidade, pode realizar o “rebaixamento” de qualquer pessoa, entidade ou
instituição antes valorizada demais. A maneira de expressão do grotesco provoca, num
primeiro momento, antagonismo, que, por sua vez, leva a reações de riso e repulsa. Dessa
forma, o grotesco, criação que se confunde com as fantasias da imaginação e que provoca
o riso, constitui uma estratégia eficiente de crítica dissimulada.
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118
Em O Conquistador, o grotesco parece querer levar à percepção dos desmandos
e das hipocrisias políticas e sociais, através da satirização de uma característica inerente ao
imaginário português: a crença no sebastianismo. Além disso, também sobressai-se a
maneira irônica com que se vê a situação atual do país, a crise econômica e a sua
inadaptação ao contingente europeu.
Nessa obra, as manifestações grotescas estão presentes principalmente na
maneira como é conduzida a história, o que não quer dizer que não estejam presentes
também na estrutura textual. Analisando as categorias fundamentais da narrativa, pudemos
perceber que, a despeito de sua aparente linearidade, tornam-se sutilmente visíveis
aspectos de transgressão ligados ao grotesco. No que diz respeito à temática desenvolvida
no texto, o grotesco pode ser percebido de maneira mais acirrada. A tipologia estética faz-se
notável nas situações em que são apresentadas a origem de sebastião, os seus sonhos e a
sua sexualidade.
Considerando o grotesco como uma estratégia de transgressão, pareceria óbvio
afirmar que a sua manifestação dentro da estrutura textual estaria ligada à fragmentação
narrativa. Em O Conquistador, entretanto, não é isso o que acontece; nesse texto, o
estranhamento é provocado pela reutilização da forma tradicional, procedimento que se
opõe aos moldes do romance contemporâneo em geral. O que se destaca em O
Conquistador é que, embora sua atitude narrativa recorra novamente à estrutura clássica,
seu desenvolvimento apresenta caracteres que a fazem ultrapassar os limites artísticos.
Nesse estudo, realizamos, em um primeiro momento, a análise dos seguintes
elementos: epígrafes, narrador, tempo, espaço, personagens e matéria da narrativa.
Percebemos que todos eles possuem traços de estranhamento facilmente relacionáveis à
categoria do grotesco.
No primeiro caso, o estranhamento é estabelecido através da utilização de duas
tipologias diversas de epígrafes: textuais e iconogficas. As epígrafes textuais são
convencionais, embora apresentem aspectos bastante específicos, tais como seus autores e
registros em várias línguas, o que prevê a fusão entre estilos diversos. Através delas, o
escritor mistura concepções, causando uma aparente disparidade. No que se refere à
função narrativa dessas epígrafes, compreendemo-nas como uma prerrogativa da produção
textual, assim como da proposta de estranhamento assumida pelo texto que precedem e
que será intensificada pela análise das epígrafes iconográficas.
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119
As figuras utilizadas na obra são desenhos do artista Mário Botas, cuja produção
artística apresenta forte caráter surrealista. Todas elas possuem um correspondente textual,
ou seja, encontram-se descritas dentro de cada capítulo, constituindo a ilustração da matéria
narrativa.
As imagens que precedem os capítulos de O Conquistador estão ligadas ao
caráter insólito e stico da personagem. Nelas, vemos respectivamente os seguintes
aspectos: o nascimento mítico que assinala a predestinação de Sebastião; a anormalidade
sexual; a sexualidade precoce; a repressão sexual; a sexualidade vulgar; a aproximação
entre sexualidade e religião; a identidade da personagem. Ao analisarmos esses aspectos,
percebemos claramente a presença de traços grotescos, entre eles: exposição da
sexualidade, seres monstruosos, profanação religiosa, fusão entre ficção e realidade e entre
o imaginário e o real.
Seguindo nossa análise, constatamos que o narrador de O Conquistador também
é lugar-comum no que se refere à tipologia autobiográfica. O que foge ao tradicional é a
naturalidade com que os fatos são narrados, mesmo assuntos considerados tabus ou “anti-
éticossão tratados com a mesma leveza. Outra questão interessante é a utilização de
perspectivas de outras personagens, procedimento que produz um efeito de isenção pela
veracidade do que o narrador apresenta. Tanto a naturalidade quanto as perspectivas
várias, nesse caso, permitem que o narrador insira elementos insólitos na narrativa e jogue
com eles sem responsabilidade com a verossimilhança.
Quanto ao tempo, apesar das intercalações entre o presente e o passado, possui
uma ordem predominantemente linear. Essa tranqüilidade cronológica não impede,
entretanto, que o estilo grotesco encontre espaço também nessa categoria. O inesperado
aparece na ligação entre a sucessão temporal e os eventos da vida de Sebastião.
Comparando com as etapas consideradas normais para a um indivíduo comum, esta ligação
apresenta uma precocidade gritante. E, na antecipação dos estágios, o grotesco encontra
oportunidade de manifestar-se, principalmente, no que se refere à precocidade sexual.
Essa relação com as etapas da vida da personagem ocorre também no que diz
respeito ao espaço. Mudanças no espaço correspondem a mudanças ou avanços no
percurso de Sebastião, é como uma relação de crescimento pessoal. uma dependência
entre tempo, espaço e os acontecimentos da história que revela um comprometimento entre
as categorias da narrativa, no intuito de intensificar o efeito de estranhamento da obra.
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120
A análise das personagens revelam-nas como figuras bem delineadas, claramente
identificáveis entre o que denominamos relações familiares e relações amorosas. Apesar
disso, consideramos essa categoria como expressão do grotesco por auxiliarem na
construção mítica da personagem, principalmente o primeiro grupo. E, por protagonizarem o
desenvolvimento da sexualidade incomum da personagem, segundo grupo.
Por fim, a matéria narrativa constitui o berço para a criação e desenvolvimento do
efeito grotesco. A retomada dos eventos que efetivaram a existência da personagem possui
dois pontos altos para a apresentação do insólito. Trata-se do nascimento de Sebastião e
dos sonhos. No primeiro caso, temos o episódio responsável pela caracterização mítica e
sobrenatural da personagem. Já os sonhos permitem a veiculação entre o imaginário e o
real, sendo o onírico uma característica marcante do estilo grotesco. Através deles, pode-se
revelar um mundo inconsciente de temores e incertezas, um mundo onde não se conhece a
lógica.
Todas as relações acima estabelecidas, assim como a análise das ações da
narrativa, segundo Todorov, nos levam à constatação de que toda a obra está em sintonia
com o fim de intensificar a presença da categoria do grotesco. São as ações da narrativa
que ilustram com maior precisão a afinidade entre a estrutura e a história, no que se refere à
produção da comicidade e do riso decorrentes do grotesco. Os relacionamentos amorosos
de Sebastião ligam-se ao grotesco através da manifestação da sexualidade. E é por esse
viés que a obra estimula a desmitificação e o desvelamento de valores sociais e culturais da
nação portuguesa.
Como foi observado desde o início de nossa dissertação, os procedimentos
oriundos da categoria estética do grotesco apresentam uma presença massiva em O
Conquistador. Sua presença é detectada na análise estrutural, mas a ocorrência mais
importante encontra-se na temática. As passagens textuais que escolhemos para essa
demonstração mostraram a riqueza desse processo.
Em suma, os momentos em que o grotesco se torna mais visível estão na
transcrição textual das epígrafes iconográficas, nos sonhos e nas passagens que
apresentam o comportamento sexual de Sebastião. É difícil efetuar uma apresentação
distinta desses momento, porque todos esses aspectos encontram-se em confluência; isso
quer dizer que, na análise das epígrafes, encontramos presente o elemento onírico e
menções à sexualidade. Os sonhos e a sexualidade estão dentro das epígrafes, assim como
a sexualidade está dentro dos sonhos.
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Para tornar mais clara a apresentação do grotesco, utilizamos uma distinção entre
as epígrafes: as que ilustram fatos e as que ilustram sonhos. No primeiro caso, temos as
figuras dos capítulos um, dois e cinco. No segundo, dos capítulos três, quatro, seis e sete.
No capítulo um, vemos a maneira como se deu o nascimento da personagem. O
grotesco, aqui, pode ser visto se levarmos em conta o caráter insólito do acontecimento”. O
estranhamento é provocado pela mistura entre a natureza humana/animal, assim como pelo
exagero utilizado na descrição do ambiente e intensificado pelas cômicas figuras que
presenciaram o nascimento, cuja descrição predomínio a deficiências físicas e
psicológicas. A presença do grotesco no princípio do primeiro capítulo é levada a efeito
ainda pela banalização do duelo entre o “monstro” e o “herói”.
No capítulo dois, que ilustra o primeiro envolvimento amoroso de Sebastião, a
categoria do grotesco pode ser destacada nos seguintes aspectos: oposição entre real e
imaginário, despertada na criança pela inadequação dos objetos que fazem parte da sua
primeira infância; pela presença de elementos teriomórficos e arquétipos da simbologia
animal. Mas o estranhamento maior é provocado, principalmente, pela abordagem da
sexualidade; a precocidade sexual da criança despertada pelos embalos de um ser caricato.
No capítulo cinco, também o grotesco ganha corpo através da sexualidade. Trata-
se da ilustração do relacionamento entre Sebastião e Julieta. O grotesco é provocado pela
vulgaridade do envolvimento, mostrando uma cena em que a personagem presencia o que
parece ser um triplo relacionamento entre a amante, o marido e o primo. Aqui, o narrador
explora o contraste da decoração do “suposto” ambiente familiar, que mistura objetos
espalhafatosos e de mau gosto. Utiliza também características de animais para descrever os
homens e características que ressaltam a exagerada sensualidade da amante.
No que diz respeito aos sonhos, o desenho do capítulo três ilustra o primeiro
encontro sexual de Sebastião. Aqui, além da prematuridade sexual, o grotesco é
desenvolvido através da escolha da mulher: professora de Sebastião, que não parecia ter
uma aparência provida de belos dotes. Destaque maior nessa passagem é a presença do
elemento onírico: o devaneio, fusão entre os mundos imaginário e real. Sebastião uma
figura monstruosa, híbrida entre ser humano e serpente, que afugenta através de uma
oração, fusão entre religioso e profano.
Depois, no capítulo quatro, temos novamente o elemento onírico. O sonho de
Sebastião é ilustrado na epígrafe e o grotesco é provocado pela nova aparição de um ser
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híbrido, loba com pernas de mulher, assim como a presença de “monstros inquietantes” que
assistem à repressão sexual.
No capítulo seis temos a ilustração do quarto sonho de Sebastião. Trata-se de um
encontro sexual que mescla imagens grotescas com imagens cristãs: um homem personifica
o demônio, ao mesmo tempo em que, vestindo paramentos, alude à pessoa de um
sacerdote cristão e um crucifixo é profanado pelo contado com a boca de um hominídeo
bizarro. O estranhamento ocorre pela exposição da sexualidade, pelo amálgama do
elemento sagrado e profano e pela hibridização demoníaca.
Por fim, no capítulo sete temos a descrição do último sonho da personagem. Este
possui um caráter grotesco mais fraco, o que não impede, entretanto, verificarmos sua
presença na comparação entre a figura vista por Sebastião e a imagem de Cristo, na alusão
aos “monstruosos animais” e na posição invertida da espada do redentor.
ainda outros episódios que revelam o grotesco através do elemento onírico e
da sexualidade. Destacamos o sonho em que Sebastião participa de uma misteriosa batalha
e o “campeonato da mijação”.
No sonho, Sebastião parece reviver a batalha de Alcácer Quibir. O grotesco
aparece basicamente através da evidente presença da morte, do mal estar, do medo e da
escuridão. Mas o estranhamento é mais significativo quando consideramos a ligação entre
a personagem Sebastião e o rei D. Sebastião que teria desaparecido em uma batalha
semelhante. É como se a personagem ficcional estivesse revivendo outra vida através do
sonho.
No “campeonato da mijação”, verificamos a alusão da sexualidade através da
valorização das partes baixas do corpo, especificamente do membro sexual de Sebastião,
cuja vitória no campeonato lhe angariou a fama de ter o maior pênis, confirmando os boatos
acerca de sua sexualidade incomum.
Dessa forma, através da exposição da sexualidade exacerbada de Sebastião
dentro das epígrafes e dentro dos sonhos, o narrador utiliza o elemento grotesco para
construir uma personagem anti-heróica em relação ao seu duplo histórico, o rei D.
Sebastião. Essa posição anti-heróica de Sebastião é confirmada tanto na sua
irresponsabilidade com as regras ou concepções sociais e patrióticas, quanto na sua opção
de ignorar qualquer sinal de predestinação.
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123
O discordante, nesse sentido, é a atitude de isolamento da personagem na
chegada de seu aniversário de vinte e quatro anos. Ou seja, mesmo não acreditando nas
evidências que fariam de si um ser invulgar, Sebastião acaba cedendo ao imaginário social
que lhe impõe a figura mítica de D. Sebastião e foge do mundo em busca de sua identidade.
A crise de identidade apresentada pela personagem é o que corpo à história de
O Conquistador. Essa crise é provocada pela interelação realizada entre Sebastião e D.
Sebastião, rei do século XVI que incorporou um dos mais importantes mitos da nação
portuguesa, originando a crença no sebastianismo. Na obra em estudo, a ligação entre
essas duas personagens ocorre ao longo de todo o texto, começando pelo nascimento de
Sebastião. O misterioso aparecimento dessa personagem assemelha-se ao “retorno de D.
Sebastião” preconizado pelo mito. São pontos de ligação a coincidência das datas de
nascimento, vinte de janeiro, e as circunstâncias míticas: um ser vindo do mar em uma
manhã de nevoeiro.
Em um fluxo contínuo, seguem-se a coincidência dos nomes de seus progenitores,
pais e avós; assim como as semelhanças físicas e psicológicas entre a personagem
ficcional e o rei português. Todos esses traços, assim como outros pontos de ligação
estabelecidos durante a história aproximam as duas figuras, causando em Sebastião, a
despeito de sua incredulidade, um forte sentimento de indefinição identitária.
Construir uma personagem que resgate a imagem de D. Sebastião é o
procedimento responsável pela inserção do mito sebastianista e da história de Portugal em
O Conquistador. No entanto, o resgate dessa parte fundamental do sentimento nacional
português não prea sua reafirmação. O narrador de O Conquistador, criando um conflito
de expectativas, ao descrever sua personagem, constrói um D. Sebastião às avessas. Seu
objetivo é a desconstrão, a negação do mito com o fim de provocar a reflexão acerca da
situação sócio-política e cultural do país.
A desmitificação ocorre através da história e do discurso. No primeiro momento,
ressaltamos a concepção da própria personagem, que não crê na sua predestinação. Mais
importante, porém, é a utilização da categoria do grotesco. Com o grotesco, pode-se realizar
a desconstrução, o rebaixamento, nesse caso, da crença passiva pelo redentor.
A opção pela retomada de um mito de destaque no passado português pode ser
explicada pela evolução do mito mesmo. Segundo alguns estudiosos, o mito de D.
Sebastião sempre aparece em momentos de crise, pois está solidificado no imaginário
nacional. Sempre que se está passando por dificuldades, renasce o sentimento de espera
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pelo messias que, com seu retorno, resolverá todos os problemas e devolverá à Portugal a
antiga supremacia. Com a utilização do grotesco, o narrador de O Conquistador põe abaixo
essa concepção. A história se passa em uma época de forte crise nacional. Tem como pano
de fundo o final da ditadura, a Revolução dos Cravos e o período pós-revolucionário, que
duramente se mostrou sem efeitos positivos. Ou seja, a crise continua, a despeito da
esperança coletiva.
Desmitificar essa esperança é o que predomina na desconstrução do mito. O rei
redivivo às avessas faz com que o povo reflita a sua situação atual de acordo com as
experiências do passado: o longínquo e o recente. Conclui-se portanto, que O
Conquistador traz uma mensagem de mudança, mostra a necessidade de uma reação
ativa frente à diversidade. A experiência de Sebastião requer como fechamento um “querer
mudar por si mesmo”, em vez do sentimento inerente à nacionalidade portuguesa: a reação
de espera por redenção.
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