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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO, MOTIVOS E
ESPAÇO: A GAUCHESCA EM DOM SEGUNDO
SOMBRA, DE RICARDO GÜIRALDES
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Marisa Teresinha Scotta Wilhelm
Santa Maria, RS, Brasil
2007
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CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO, MOTIVOS E ESPAÇO:
A GAUCHESCA EM DOM SEGUNDO SOMBRA, DE
RICARDO GÜIRALDES
por
Marisa Teresinha Scotta Wilhelm
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
Orientador: Professor Doutor Pedro Brum Santos
Santa Maria, RS, Brasil
2007
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a
Dissertação de Mestrado
CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO, MOTIVOS E ESPAÇO:
A GAUCHESCA EM DOM SEGUNDO SOMBRA,
DE RICARDO GÜIRALDES.
elaborada por
MARISA TERESINHA SCOTTA WILHELM
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA:
Pedro Brum Santos, Dr. (Presidente/Orientador)
José Luis Giovanoni Fornos, Dr. (FURG)
Sílvia Carneiro Lobato Paraense, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 05 de outubro de 2007.
Aos meus alunos, motivo e finalidade deste trabalho: que eu possa contribuir mais,
quando compartilhamos nossos saberes.
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Pedro Brum Santos,
por ter me conduzido neste desafio.
A inspiração está no espaço, onde se
prende o pensamento: seja o fogo, o
aquário, ou a neve caindo.
(Cláudio Bernardes)
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO, MOTIVOS E ESPAÇO:
A GAUCHESCA EM DOM SEGUNDO SOMBRA, DE
RICARDO GÜIRALDES
Autora: Marisa Teresinha Scotta Wilhelm
Orientador: Prof. Dr. Pedro Brum Santos
Data e local da Defesa: Santa Maria, 05 de outubro de 2007.
Este trabalho apresenta um estudo sobre gauchesca, motivos e espaço na obra Dom Segundo
Sombra, de Ricardo Guiraldes. Procurou-se verificar como o autor articula os motivos da gauchesca e
que status confere ao espaço-ambientação na narrativa em estudo. Como referência, foram tomados
os conceitos de gauchesca de Ludmer (2002), os de motivos de Tomachevski (1973) e Kayser (1976)
e os de espaço-ambientação de Dimas (1994), Lins (1976), Lukács (1965) e Bachelard (1996). Entre
os motivos abordados estão o escalonamento social, o uso do corpo pelo patrão, a desconfiança em
relação ao judiciário, a aversão ao contexto urbano. Ainda comentou-se sobre algumas funções
exercidas pelo núcleo espaço-ambientação como elemento atuante na implementação da
verossimilhança, na introdução de motivos recorrentes e estruturais, na construção, nas ações e no
destino do personagem, no rumo da narrativa e na introdução de novos motivos. O trabalho está
dividido em quatro capítulos, tratando, respectivamente, de literatura gauchesca e aspectos históricos
do gênero e do gaúcho; a carreira e as obras do autor; as especificidades e a fortuna crítica de Dom
Segundo Sombra; questões de gênero, motivos e espaço.
Palavras-chave: gauchesca – motivos - espaço
RESUMEN
Disertación de Maestría
Programa de Posgrado en Letras
Universidad Federal de Santa Maria
CONSIDERACIONES RESPECTO A GÉNERO, MOTIVOS Y
ESPACIO: LA GAUCHESCA EN DON SEGUNDO SOMBRA,
DE RICARDO GÜIRALDES
Autora: Marisa Teresinha Scotta Wilhelm
Orientador: Prof. Dr. Pedro Brum Santos
Fecha y local de la Defensa: Santa Maria, 05 de octubre de
2007
Este trabajo presenta un estudio sobre gauchesca, motivos y espacio en la obra Don Segundo
Sombra, de Ricardo Güiraldes. Se ha buscado verificar como el autor articula los motivos de la
gauchesca y que status le confiere al espaçio-ambientación en la narrativa en estudio. Por referencia
se ha tomado los conceptos de gauchesca de Ludmer (2002), los de motivos de Tomachevsky (1973)
y Kayser (1976) y los de espacio-ambientación de Dimas (1994), Lins (1976), Lukács (1965) y
Bachelard (1996). Entre los motivos abordados están el escalonamiento social, la utilización del
cuerpo por el patrón, la desconfianza en relación al judiciario, la aversión al contexto urbano. Además,
se ha comentado respecto a algunas funciones ejercidas por el núcleo espacio-ambientación como
elemento actuante: en la implementación de la verosimilitud, en la introducción de motivos que se
repiten en las obras del autor y de otros estruturales, en la construcción, en las acciones y en el
destino del personaje, en el rumbo de la narrativa y en la introducción de nuevos motivos. El trabajo
está dividido en cuatro capítulos, tratándose respectivamente, de literatura gauchesca y aspectos
históricos del género y del gaucho; la carrera y las obras del autor; las especificidades y la fortuna
crítica de la obra Dom Segundo Sombra; cuestiones de género, motivos y espacio
.
Palabras-clave: gauchesca – motivos - espacio
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 A LITERATURA GAUCHESCA ............................................................................ 13
1.1 Conceito ............................................................................................................ 14
1.2 Histórico .......................................................................................................... 17
1.2.1 Da palavra gaúcho ........................................................................................ 17
1.2.2 Do gaúcho platino .......................................................................................... 23
1.2.3 Do gênero gauchesco .................................................................................... 30
1.2.3.1 Representantes do gênero ............................................................................ 34
2 O AUTOR RICARDO GÜIRALDES ....................................................................... 40
2.1 Biografia ............................................................................................................ 40
2.2 Obras ................................................................................................................ 41
2.2.1 Filiação estética ............................................................................................... 42
2.2.2 Obras anteriores a Dom Segundo Sombra (1926) .......................................... 46
2.2.2.1 El cencerro de cristal (1915).......................................................................... 46
2.2.2.2 Cuentos de muerte y de sangre (1915) ........................................................ 47
2.2.2.3 Raucho (1917) .............................................................................................. 48
2.2.2.4 Rosaura (1918) ............................................................................................. 50
2.2.2.5 Xaimaca (1923) ............................................................................................ 50
3 A OBRA DOM SEGUNDO SOMBRA .................................................................. 52
3.1 Resumo ............................................................................................................. 52
3.2 Narrador ............................................................................................................. 53
3.3 Estrutura do romance ....................................................................................... 54
3.4 Apresentação de personagens ........................................................................ 55
3.5 Acolhida ............................................................................................................. 58
3.6 Fortuna crítica .................................................................................................. 60
3.6.1 Relação entre a realidade do campo argentino e a realidade expressada na
obra ........................................................................................................................... 61
3.6.1.1 Referente ao personagem Dom Segundo Sombra...................................... .61
3.6.1.2 Referente à obra .......................................................................................... 67
4 QUESTÕES DE GÊNERO, MOTIVOS DA GAUCHESCA E ESPAÇO ................ 75
4.1 O modelo de Josefina Ludmer ........................................................................ 75
4.2 Motivos e espaço .............................................................................................. 78
4.2.1 Considerações teóricas .................................................................................... 78
4.2.1.1 Motivos .......................................................................................................... 78
4.2.1.2 Espaço .......................................................................................................... 88
4.3 Ocorrências em Dom Segundo Sombra ....................................................... 100
4.3.1 – Considerações ............................................................................................ 100
4.3.2 Contribuição do espaço-ambientação na concretização dos motivos da
gauchesca ............................................................................................................... 102
4.3.2.1 Escalonamento social ................................................................................. 102
4.3.2.2 Uso do corpo pelo patrão ........................................................................... 106
4.3.2.3 Desconfiança em relação ao judiciário ....................................................... 109
4.3.2.4 Aversão ao contexto urbano ....................................................................... 112
4.3.3 Contribuição do espaço-ambientação no desenvolvimento das ações e no fluxo
da narrativa ............................................................................................................. 116
4.3.3.1 O espaço denotado ..................................................................................... 116
4.3.3.2 Funções do espaço/ambientação ............................................................... 120
4.3.3.2.1 O espaço como recurso de verossimilhança e introdução de motivos
recorrentes e estruturais ......................................................................................... 120
4.3.3.2.2 O espaço como elemento que auxilia a construção do personagem e
influencia no seu destino ......................................................................................... 123
4.3.3.2.3 O espaço como elemento hostil ou acolhedor que influencia as ações do
personagem e a influência positiva da luminosidade da manhã ............................. 125
4.3.3.2.4 O espaço-ambientação como elemento que antecipa ou adensa uma
mudança no rumo da narrativa e/ou contribui para a introdução de novos motivos
................................................................................................................................. 129
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.................................................................... 140
INTRODUÇÃO
O romance Dom Segundo Sombra (1926) é uma das obras mais
representativas da gauchesca platina e, historicamente, um dos primeiros romances
hispano-americanos a atrair a atenção da Europa e da América do Norte. Ademais,
esta obra ocupa um lugar destacado na história da literatura da América de
colonização espanhola. Os inúmeros estudos a respeito desta narrativa atestam o
interesse que ela despertou no âmbito nacional e internacional.
Em Dom Segundo Sombra, iraldes apresenta sua visão do campo
argentino e dos diferentes tipos humanos que nele habitam, em especial, o gaúcho
com seu oficio, seus costumes, sua cultura, tudo isto embasado num código de
valores próprio.
O presente trabalho propõe fazer um estudo sobre gauchesca platina,
destacando duas questões fundamentais: por um lado, a fixação do gênero e, por
outro lado, a averiguação dos motivos e do espaço. Por trabalhar uma obra e um
gênero da literatura argentina, considerou-se importante, ainda, realizar um estudo
detalhado da recepção e da fortuna crítica, de modo a destacar para o leitor
brasileiro a importância da obra.
Para o desenvolvimento, tomaram-se como conceitos-chaves a definição de
gênero de Josefina Ludmer e motivos e espaço a partir da tradição formal
estruturalista da teoria da literatura e da atualização que fizeram do tema alguns
estudiosos da questão, como os brasileiros Antonio Dimas, Osman Lins e Lukács.
Para atingir esse objetivo, o trabalho divide-se em quatro partes que tentam
dar conta dos propósitos desta dissertação.
Na primeira parte, aborda-se a formação, o conceito, as peculiaridades e os
aspectos históricos da literatura gauchesca e do tipo humano conhecido como
gaúcho platino.
Num segundo momento, realiza-se um relato acerca da carreira do autor,
Ricardo iraldes, como escritor. Também se objetiva dar uma noção das
publicações que antecederam sua obra capital. Procura-se destacar em cada uma
alguns motivos que são reaproveitados em Dom Segundo Sombra.
Em seguida, dedica-se atenção especial à obra foco desta dissertação. Esta
terceira parte relata aspectos da obra e a fortuna crítica a respeito de alguns temas
que renderam maior polêmica entre os admiradores e detratores da criação de
Güiraldes.
Na quarta e última parte, apresenta-se, primeiramente, um referencial teórico
sobre motivos e espaço-ambientação. Depois, procede-se à análise da obra com o
intuito de discutir alguns motivos da gauchesca propostos pela teoria e também o
papel exercido pelo espaço-ambientação na narrativa.
Verificar como Güiraldes concretiza os motivos da gauchesca em sua obra
capital e que status confere ao espaço-ambientação constituem-se os propósitos
deste trabalho. Para isso, tenta-se analisar trechos da obra à luz dos conceitos
teóricos apresentados, estimando-se que, nessa obra, o espaço-ambientação
contribui para a temática e auxilia na construção do sentido global da narrativa.
1 A LITERATURA
GAUCHESCA
José Miguel Oviedo (1997), em Historia de la literatura hispanoamericana,
explica que, durante o século XIX, a literatura da América de colonização espanhola
apresentou três fenômenos importantes: a escola romântica, a ação dos chamados
“proscritos” e, paralelamente e associado a estes, o mais interessante deles: o
desenvolvimento de um novo tipo de literatura peculiar da região da Bacia do Prata –
a literatura gauchesca.
Salienta este autor que a ideologia romântica contribuiu para o florescimento
e o êxito deste particular tipo de literatura porque predicava que a obra literária deve
emanar do “espírito do povo”. os denominados proscritos, grupo de românticos
argentinos que foram perseguidos e exilados pelo ditador Rosas, auxiliaram porque
passaram a ser conhecidos em todo o continente e, desta forma, propagaram o novo
gênero literário, que era um fenômeno somente conhecido no sul da América.
O tema e a linguagem da literatura gauchesca têm como matéria o gaúcho,
isto é, exploram a figura do homem da campanha do extremo sul da América Latina
e as circunstâncias que o rodeiam.
Sua manifestação escrita apareceu inicialmente em forma de poesia, de
maneira mais concreta no início do século. Dentro desse tipo de expressão
destacam-se o precursor e fundador da temática gauchesca, o uruguaio Bartolomé
Hidalgo, com a obra Diálogos y cielitos patrióticos (1818); o argentino Hilario
Ascasubi, com Santos Vega o los mellizos de La Flor (1850); Estanislao Del Campo,
com Fausto (1866) e José Hernández, com o consagrado El gaucho Martín Fierro,
poesia considerada a expressão máxima do gênero, editada em duas partes: El
gaucho Martín Fierro la ida (1873) e El gaucho Martín Fierro la vuelta (1879).
14
No que concerne ao âmbito hispano-americano, embora a figura do gaúcho
tivesse aparecido em 1848, no romance gauchesco Caramuru, do uruguaio
Alejandro Margarinos Cervantes (1825-1893), a literatura gauchesca como narrativa
começou a desenvolver-se afortunadamente no final do século XIX. Como
representantes pode-se citar Eduardo Gutierrez com o romance Juan Moreira
(1879), Benito Lynch com El inglés de los guesos (1924) e Ricardo Güiraldes com a
obra objeto desta dissertação, Don Segundo Sombra (1926).
Sobre esses destaques do gênero, tratar-se-á mais especificamente no item
1.2.3.1.
Oviedo (1997) salienta que o novo gênero literário o gauchesco - mudou
substancialmente as regras do jogo da comunicação literária. Isto porque atingiu um
público novo e mais vasto integrado por indivíduos marginalizados pelo circuito da
literatura culta, romântica ou não, e ao qual não pertenciam os autores da temática
gauchesca. Ele julga essa particularidade bastante significativa na caracterização do
gênero, ou seja, o fato de os autores da temática gauchesca não pertencerem à
classe social do tipo humano conhecido como gaúcho nem ao público ao qual eram
endereçadas suas obras.
Este estudioso destaca como um aspecto importante da literatura gauchesca
o fato de esta constituir-se um testamento antropológico bastante valioso sobre o
homem do pampa, o qual surge quando sua cultura e seus valores estavam
condenados a desaparecer, porque sofriam o embate iniciado primeiro pelas idéias
sarmentistas e depois pelo pensamento positivista.
1.1 Conceito
Para definir o gênero gauchesco, Ludmer (2002), em sua obra O nero
gauchesco: um tratado sobre a pátria, utilizou como corpus a poesia. De acordo com
esta estudiosa, entende-se por gênero gauchesco um uso letrado da cultura popular
do gaúcho, compreendida como a síntese de suas leis naturais, costumes, crenças,
ritos, regras, bem como, no caso do gaúcho platino, o folclore de origem espanhola.
De acordo com Ludmer (2002), a substância deste gênero emana da relação
entre dois estratos o popular e o culto, ou seja, as manifestações orais percebidas
dessa classe menos favorecida e as palavras escritas do intelectual, permitindo que
15
uma das vozes subalternas da sociedade seja ouvida: a do gaúcho. Este
acontecimento lhe rendeu a passagem da “delinqüência” para a “civilização”.
A leitura de La poesía gauchesca (1989), de Jorge Luis Borges, confirma o
sentido de gauchesca proposto por Ludmer. Ele afirma que a literatura gauchesca é
a conjunção de dois estilos de vida: o urbano e o pastoril.
Las guerras de la Independencia, la guerra del Brasil, las guerras
anárquicas, hicieron que hombres de cultura civil se compenetraran con el
gauchaje; de la azarosa conjunción de esos dos estilos vitales, del
asombro que uno produjo en otro, nacla literatura gauchesca (BORGES,
1989, p. 179).
Com esta definição, Borges adverte que a literatura gauchesca é fruto da
ligação de dois contextos: o da vida pastoril que era típica dos campos e das
coxilhas - do pampa, e o do caráter urbano de Buenos Aires e Montevidéu.
O autor argentino também esclarece que, pelo fato de a literatura gauchesca
não ser obra de gaúchos, esta não deve ser classificada como artificial e falsa. Para
ele, esse tipo de julgamento é pedante e ridículo. No entanto, agrega, “no hay
cultivador de ese género que no haya sido alguna vez por su generación o las
venideras acusado de falsedad” (Ibid., p. 179).
Dentro da discussão sobre a maior ou menor autenticidade dos gaúchos
escritos, Borges observa que, para a maioria das pessoas, o gaúcho é um objeto
ideal, um protótipo. Assim, devido a essa concepção, dentro da expectativa do leitor
é gerado um dilema: “si la figura que el autor nos propone se ajusta com rigor a esse
protótipo, la juzgamos trillada y convencional; si difiere, nos sentimos burlados y
defraudados” (Ibid., p. 180).
Conforme Ludmer (2002), a organização do gênero gauchesco é baseada
nas palavras uso e dom. A primeira representa o uso militar do corpo e o uso literário
da voz do gaúcho; a segunda, o patrão e o escritor que lhe dá a voz.
A estudiosa aponta as leis e as guerras como limites do gênero. No que
concerne às leis, refere-se à “ilegalidade” popular, uma vez que dois tipos de leis
- as do campo e as da cidade e a “delinqüência” do gaúcho não é nada além do
efeito da diferença entre essas duas leis e suas aplicações. No que concerne às
guerras, refere-se à revolução e à guerra da independência que “desmarginalizam” o
gaúcho.
Também destaca que, uma vez delimitado o gênero com base nas leis e nas
guerras, é possível estabelecer duas cadeias de usos que articulam o gênero. Estas
16
cadeias, ao mesmo tempo, narram a passagem entre o estágio inicial do gaúcho, a
citada “delinqüência”, e o posterior, a “civilização”.
Segundo Ludmer (2002), a primeira cadeia de uso seria constituída, em
primeiro lugar, pelo emprego do gaúcho “delinqüente” pelo exército patriota, em
segundo lugar, pela apropriação de seu registro oral (sua voz) pela cultura letrada
(gênero gauchesco) e, por fim, pela utilização do gênero para integrar os gaúchos à
lei denominada “civilizada”.
No centro da primeira cadeia, entre o uso do corpo pelo exército e o uso da
voz pela cultura letrada, Ludmer (2002) insere a segunda cadeia, a cadeia da voz e
dos sentidos da voz, que assim se configura: a) o uso do gaúcho pelo exército
acrescenta um sentido diferente à voz “gaúcho”; b) os sentidos da voz “gaúcho” são
definidos no uso da voz diferencial do gaúcho: gênero gauchesco; e c) o gênero
define o sentido dos usos diferenciais do gaúcho.
Estas duas cadeias unidas marcam o tempo do gênero na poesia (que abre
com Hidalgo e encerra com La vuelta de Martín Fierro) e lhe dão um sentido.
Também narram a passagem entre a “delinqüência” e a “civilização” do gaúcho e
apontam o gênero como um dos produtores dessa passagem. Estabelecem, ainda,
em seu interior, um paralelismo entre o uso do corpo pelo exército e o uso da voz
pela cultura da palavra escrita, que define o gênero.
Destaca Ludmer: “A segunda cadeia tem, então, um sentido transversal ao da
primeira, como de fuga e volume: do uso das vozes remete ao dos corpos. É o elo
entre o espaço exterior e o interior do gênero” (LUDMER, 2002, p. 31).
De acordo com esta estudiosa, após o fechamento da segunda cadeia, abre-
se outra cadeia de usos, nascida a partir de Martín Fierro, La vuelta. É a última
cadeia, a do uso do gênero para produzir literatura em outros gêneros como sainete
(peça popular de um ato), canto (tango, milonga), conto ou romance. Neste último
gênero, está inserida a obra Don Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes. Esta
última cadeia de usos se fechou em 1940, marco indicado pela autora como sendo
“o fim do espaço histórico que fecha o espaço lógico das cadeias de usos do gênero
a partir de Martín Fierro” (Ibid., p. 39).
Este marco parece ter sido estabelecido por Ludmer porque, a partir da
segunda metade do século XX, segundo André Jansen (1973), autor de La novela
hispanoamericana actual y sus antecedentes, o romance hispano-americano
começa a tomar um novo rumo, iniciando um novo ciclo: não se contenta mais em
17
abordar temas sociais e empreende a busca de uma nova forma de expressão
original. Jansen destaca o pensamento de Monegal que afirma que os romances
hispano-americanos logo após 1940, mantêm
la tradición de la novela de la tierra, pero aprovecha las corrientes
europeas de vanguardia, que eliminaron la herencia naturalista [...]. De
modo que las obras de Horacio Quiroga, de Lynch y Güiraldes para la
Argentina, las de Mariano Azuela y Martín-Luis de Guzmán para México,
las de Eustasio Rivera para Colombia y de Gallegos para Venezuela, serán
sustituídas por novelas míticas y de apasionado testimonio. Son las de
Astúrias, Yáñez, Carpentier, Leopoldo Marechal (MONEGAL, 1970 apud
JANSEN, 1973, p. 68 – 69).
De acordo com Enrique Anderson Imbert (1985), autor de Historia de la
literatura hispanoamericana II: época contemporânea, por volta de 1930, a Hispano-
América passa a concentrar sua atenção nos autores como Franz Kafka, Aldoux
Huxley, Virginia Woolf e, sobretudo, James Joyce. Dessa forma, ocorre uma
mudança nas características da narrativa hispano-americana, antes preocupada com
seus problemas regionais.
1.2 Histórico
1.2.1 Da palavra “gaúcho”
Até os dias atuais não se sabe com certeza a origem da palavra “gaúcho”.
Existem, na verdade, conforme assinala Héctor A. Cordero (1971), em sua obra
Valoración de Martín Fierro: estudio crítico de la poesía gauchesca, teorias
contraditórias que procuram explicar a etimologia deste vocábulo.
De um lado, algumas definições tentam certificar sua origem ligada ao
sentimento de amizade, como um apelido aplicado aos indivíduos considerados
bons, fraternais. Por outro lado, as que tentam explicar sua derivação daqueles
marginalizados pela sociedade colonial, dados à delinqüência e ao enfrentamento
constante com a denominada autoridade.
O estudioso anteriormente referido apresenta duas teses, com a finalidade de
exemplificar as duas correntes de pensamentos contrários expostas.
No pensamento daqueles que acreditam que a palavra “gaúcho” evoluiu do
sentido de amigo, os pesquisadores sustentam que o vocábulo originou-se da voz
18
mapuche, língua falada por índios araucanos provenientes do Chile que, fugidos dos
conquistadores espanhóis, alojaram-se no pampa de Buenos Aires.
De acordo com o autor de El gaúcho argentino, JoAgustín Basualdo (apud
CORDERO, 1971), o vocábulo “gaúcho” teria se originado do mapuche gachu”, que
significa amigo. Alterado em sua pronúncia, o vocábulo indígena derivou para
gaúcho”.
Era comum, na comercialização entre araucanos e mestiços instalados dentro
do território argentino, o uso da expressão cumpame gachu”, que significa entre
amigo, como saudação usada pelo índio para receber o mestiço em seus toldos e
dentrá gaucho”, usada pelo mestiço para receber o índio em seu rancho.
O gachu” dos índios araucanos evoluiu para o gaúcho dos mestiços, que se
tornaram maioria. Com esta explicação os estudiosos atestam que originariamente a
palavra “gaúcho teve um sentido de amizade. Depois, ao estender-se o vocábulo
até as cidades, admitem que este perdeu seu sentido original e converteu-se na voz
que distinguia o mestiço, o crioulo, enfim, o homem ocupado nas lidas campeiras e
que chegou a confundir-se com o vocábulo gaudério, que não significa amigo e sim
o indivíduo que é nômade.
Na tese contrária, a daqueles que acreditam que a palavra “gaúcho” não
procedeu desse melhor sentido, sustenta-se que o vocábulo gaúcho””, além de não
ser proveniente da voz araucana, tampouco é exclusivo da região hoje pertencente
à Argentina. Afirma-se ser este originário de uma região maior, que compreenderia
as terras da Argentina, do Uruguai e as sul-brasileiras que fazem fronteira
atualmente com estes países.
Na concepção dessa teoria, a palavra “gaúcho” descende do guarani, que era
a língua falada pelos mestiços que dominavam a região no decorrer do século XVIII.
Entre eles haviam perseguidos pela justiça e ladrões de gado que, em diferentes
grupos, levavam uma vida nômade e errante. Em guarani ca’ú significa
bebedeira”, “ca’ú-in”, “água de bebedeira” y “ca’úcho”, “bêbado”.
Como os índios missioneiros não se relacionavam bem com os gaudérios que
lhes assaltavam freqüentemente, não é de estranhar, dizem os investigadores, que
os chamassem depreciativamente de bêbados, ou seja, em sua língua, de “ca’úcho”,
que os espanhóis, mais tarde, transformaram em gaúcho”. Com a proliferação dos
aramados e com os câmbios políticos, aos poucos a voz gaudério, por ser mais
19
extensa foneticamente, foi cedendo lugar à voz gaúcho e, ao mesmo tempo,
adotando um sentido menos severo.
Expostas as duas correntes teóricas, Cordero (1971) salienta que é difícil
definir qual das duas realmente conseguiu decifrar a origem do vocábulo “gaúcho”. E
agrega: talvez nenhuma esteja com a razão, nenhuma seja verdadeira (Ibid., p. 134).
Não sendo possível provar a veracidade da derivação, Cordero (1971)
destaca o fato de que, desde o primeiro quarto do século XIX, com o termo “gaúcho”
se denomina toda a gente que vive no campo, independentemente de classe social.
Esta afirmação decorre do registro de J. B. Beaumont, em sua obra Viajes por
Buenos Aires, Entre Ríos y la Banda Oriental 1826 – 1827:
Gauchos es la denominación general con que se designa a la gente del
campo. Desde el rico estanciero, dueño de infinidad de acres de tierra y de
incontables cabezas de ganado, hasta el pobre esclavo obtenido por
compra son llamados gauchos y se asemejan unos a otros en lo que
respecta a vestimenta y costumbres [...] (BEAUMONT apud CORDERO,
1971, p. 135).
Em sua Prosa dos pagos, para o brasileiro Augusto Meyer (1960), a história
da palavra “gaúcho”, até chegar ao seu sentido atual, no Brasil, um nome gentílico,
percorreu uma trajetória iniciada na chamada idade do couro, que por sua vez, foi
condicionada pelo aparecimento do boi e pela multiplicação dos rebanhos. A idade
do couro foi um tipo de vida que floresceu na Bacia do Prata, durante o século XVIII.
Nesta fase, os habitantes do campo receberam o apelido de guasca, que significava
tira de couro cru, o instrumento mais grosseiro que se podia imaginar na época.
A idade do couro constituiu-se então a origem e o fundamento da civilização
de onde saiu o gaúcho.
Em pouco tempo, o sentido do vocábulo guasca foi mudando. Passou a ser
usado com intenção elogiosa, significando hombridade e destemor. Mais tarde, o
termo guasca passou a ser sinônimo do termo “gaúcho”.
A palavra gaudério apareceu em 1770 e denominava os aventureiros
paulistas que desertavam das tropas regulares e passavam à atividade de
coureadores e ladrões de gado. Também adquiriu sentido de “gaúcho”.
Registros sobre o significado do vocábulo “gaúcho”, atestam que a palavra
primeiramente foi aplicada ao indivíduo considerado ladrão, vagabundo e
contrabandista.
20
Relata Meyer (1960) que, de acordo com o pioneiro do tema, Emilio Coni,
estudioso que se baseou nas pesquisas de Dom Jo Torre Revello, o termo foi
citado pela primeira vez num documento de 1790 e estava ligada ao mesmo sentido
de gaudério, ou seja, de ladrão, desertor e, ainda, peão “de todas as castas”.
Os historiadores Rômulo Zabala e Enrique de Gandía (apud MEYER, 1960)
registram, para gaúcho e gaudério, semelhante sentido, anotando vagabundo,
changador, desocupado que vivia de gados alheios, do contrabando e da venda de
couros e graxas. E aclaram: a esses indivíduos se denominou mais tarde, no final
do século XVIII, de gaúchos ou gaudérios.
Outro historiador, Ricardo Rodríguez Molas (apud MEYER, 1960), encontrou
no Archivo General de La Nación referências parecidas para o vocábulo “gaúcho” na
segunda metade do século XVIII com o significado de ladrão de gado na região da
fronteira com o Brasil e, em 1774, os primeiros testemunhos a respeito.
Na língua portuguesa, a primeira referência conhecida é a anotada por José Saldanha e
tem relação com o sentido depreciativo do termo:
Gauches, palavra Hespanhola uzada neste País para expresar aos
Vagabundos, ou ladroens do Campo, quais Vaqueiros, costumados a
matar os Touros chimarroens, a sacar-lhes os couros, e a leva-los
ocultamente a Povoaçoens, para sua venda ou troca por outros
gêneros (SALDANHA apud MEYER, 1960, p. 22).
No que se refere ao sentido pejorativo da palavra “gaúcho”, Carlos Reverbel
(1986), em O gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande e no Rio da Prata,
ratifica que este se originou das atividades no mercado clandestino de couro. Nesta
fase, salienta a estudiosa do tema, Madeline W. Nichols (apud REVERBEL, 1986),
este tipo humano e sua classe chegaram ao extremo de serem considerados a
escória da sociedade”. O sentido depreciativo do termo perdurou até meados do
século XIX, quase sem alteração.
No dizer de Barcelos (apud REVERBEL, 1986), outro investigador do tema,
“o tipo social do gaúcho perdeu a conotação pejorativa quando, deixando de
significar gaudério, um marginal, passou a identificar o campeiro destro e desenvolto
nas lidas do pastoreio e pronto a transformar-se em soldado”.
Meyer (1960) ratifica esta afirmação, expressando que, com o aproveitamento
deste tipo humano nas arreadas e nas guerrilhas, como campeiros ou bombeiros, o
termo foi se modificando. Perdeu seu sentido primitivo para adquirir outro
encomiástico. Isto ocorreu porque o gaúcho começou a criar laços de solidariedade
21
com os estancieiros e os comandantes, para quem prestava serviços ligados ao trato
do gado e à atividade das milícias. Nesta fase, na guerra das fronteiras, pelos
capitães da milícia recebeu o apelido de bombeiro, chasque, vedeta, isca para o
inimigo; nas guerras da independência do Prata ou nas campanhas do Sul, de
lanceiro, miliciano.
Segundo Meyer (1960), com o prestigio de campeiro, rastreador, fronteiro,
vaqueano, tropeiro e campeador, retemperado nas guerras e nas revoluções, o
gaúcho entrou para a literatura, que contribuiu para o novo conteúdo semântico do
vocábulo.
Ainda de acordo com Nichols,
lo pintoresco de su carácter dió base a su éxito literario, y cuando
comenzaron a conocerse y a apreciarse las obras que lo tomaban como
protagonista, el gaucho real fue desplazado de las mentes y reemplazado
por este gaucho ideal que tanta importancia había adquirido, primero en la
guerra, y luego en las letras (NICHOLS apud REVERBEL, 1986, p. 94).
Esta afirmação vem ao encontro do proposto por Ludmer (2002), que predica
que no uso da voz do “gaúcho” define-se a palavra “gaúcho. Ao fazer uso da voz do
gaúcho patriota ou da voz do gaúcho transgressor, redefinem-se as acepções do
termo.
A literatura gauchesca do Prata utilizou-se da voz do gaúcho patriota para
propagar os ideais de liberdade, criticar e protestar contra a sociedade colonial.
Dessa forma, contribuiu com o conteúdo semântico de patriota ao termo “gaúcho”.
Com o progressivo aproveitamento do trabalho do gaúcho nas estâncias,
decresceu o nomadismo e aumentou a demanda de um meio de subsistência
regular: “o próprio gaudério, não tendo já o ensejo das antigas arreadas, submetia-
se de vez em quando a algum ajuste, ficava por mais tempo apalavrado de posteiro
ou peão; acabava agregado” (MEYER, 1960, p. 33).
Esta mudança na acepção do termo para agregado e peão de estância foi
registrada em 1831 no pampa argentino por Samuel Raig, e alguns anos mais tarde
no Rio Grande do Sul por Nicolau Dreys.
A partir daí, o conteúdo emocional do vocábulo foi se impregnando de valores
afetivos que oscilavam entre a repulsão e a simpatia e foi tecendo, aos poucos, os
contornos de alguns significados secundários: “vagabundo, mas valente nas
guerras; coureador por sua conta, mas excelente campeiro; arisco, indócil, mas
agradecido quando bem tratado...” (MEYER, 1960, p. 34) até chegar ao significado
22
mais amplo da palavra gaúcho, difundido no último quartel do século XIX: gaúcho,
um nome gentílico no estado do Rio Grande do Sul e, no caso platino, a gente do
campo, desde o primeiro quarto do século XIX.
De acordo com Reverbel (1986), tanto o sentido original do termo se desfez
como desapareceu a figura primitiva do gaúcho.
Para ilustrar, este historiador conta que nasceu no ano de 1912 e criou-se na
campanha e conheceu pessoas idosas que chamavam de gaúchos aos
denominados andarengos, isto é, àqueles campeiros que não se aquerenciavam em
nenhuma parte. Estes viviam no lombo dos cavalos “sem rumo nem pouso certo,
como os índios-vagos” (Ibid., p. 76).
Pela leitura de Ludmer (2002), o termo “gaúcho” no Prata tornou-se ambíguo
durante as guerras da independência dos Estados. Passou a significar herói e
patriota, mas em parte, conservou seu sentido pejorativo original.
Segundo Ludmer, a valorização do gaúcho deveu-se sobretudo a Artigas,
Güemes e San Martín. Em 22 de março de 1817 lê-se na Gazeta de Buenos Aires:
“o título de gaúcho dava antes uma idéia pouco vantajosa do sujeito a quem se
aplicava, e os honrados lavradores e fazendeiros de Salta conseguiram fazê-lo
ilustre e glorioso por tantas proezas que os fazem dignos de reconhecimento eterno”
(GAZETA DE BUENOS AIRES apud LUDMER, 2002, p. 28).
outro testemunho dessa mudança de acepção, registrado por um
representante do governo dos Estados Unidos, datado de 2 de novembro de 1818,
cuja tarefa era recolher informações na Argentina, sobre a situação política e social:
Assim são os vaqueiros dos pampas e planícies, que são geralmente
chamados de gaúchos, epíteto que, como o de ianqui, foi originalmente
aplicado com menosprezo, mas agora se transformou em uma designação
definidora e comum, que não é mais ofensiva (BLAND
apud
LUDMER
,
2002, p. 28).
Segundo Lynch, destacado por Ludmer, na terminologia rosista, o uso da
palavra “gaúcho” apresentava dois significados, dependendo da situação que se
apresentava:
Em público, usava-se como um termo de estima e perpetuava a idéia de que
o gaúcho, como o fazendeiro, era um modelo de virtudes nativas e que os
interesses de ambos eram idênticos (...). Privadamente, no entanto,
especialmente no uso policial, gaúcho significava vadio, baderneiro,
delinqüente. O primeiro uso representava propaganda política. O significado
pejorativo expressava diferença de classe, preconceitos sociais e atitudes
econômicas: era utilizado pelo fazendeiro necessitado de trabalhadores, para
enfrentar o homem do campo que desejava permanecer livre (LYNCH apud
LUDMER, 2002, p. 29).
23
De acordo com Cordero (1971), o novo matiz de patriota, creditado à conduta
corajosa e arrojada do gaúcho nas batalhas, em defesa da pátria, não foi consenso.
Alguns pesquisadores não aceitam de modo algum a transformação do gaúcho em
patriota. Argumentam que esse tipo de indivíduo só se incorporava à causa da pátria
porque dessa maneira poderia vingar-se das ofensas recebidas da Coroa Espanhola
e “exercer uma atividade adequada ao seu modo de ser” (CORDERO, 1971, p. 135).
Discordâncias à parte, a história do termo indica as mutações do tipo humano
desde os primeiros registros de cronistas e historiadores até tornar-se protagonista
literário.
1.2.2 Do gaúcho platino
Sem o gaúcho não se teriam formado os países platinos com as
características que os individualizam, assevera Reverbel (1986). Os papéis cultural,
social e histórico desse tipo humano foram muito importantes.
Durante dois séculos, o gaúcho constituiu-se o elemento característico do
pampa argentino. De acordo com Reverbel (1986), este tipo humano apareceu, em
sua feição primitiva, primeiramente nas terras do Rio da Prata e, posteriormente, em
terras do Rio Grande do Sul e começou a esboçar-se como tipo social, a partir de
1536, data da primeira fundação de Buenos Aires.
Segundo Darcy Ribeiro (1987), autor de As Américas e as civilizações, os
gaúchos, indivíduos mestiços, cresciam junto com o gado nas primeiras vilas
famintas ao redor de Buenos Aires. Tinham como tarefa servir aos nobres
espanhóis e aos criollos ricos, “orgulhosos de sua nobreza de estirpe ou de
branquidade” (RIBEIRO, 1987, s.p.).
O desenvolvimento do gaúcho foi favorecido pela existência de enormes
rebanhos sem dono que se alimentavam das pastagens abundantes que ali
existiam. Neste contexto, o gaúcho montado a cavalo caçava o gado cimarrón para
sacar-lhe o couro, que era utilizado para benefício próprio e, principalmente, para o
contrabando. O gado chimarrão constituía-se o gado selvagem que descendia dos
vacunos deixados no pampa quando Buenos Aires fora abandonado em 1541, cinco
anos depois de sua primeira fundação. Este tipo de gado havia se multiplicado
24
rapidamente devido à extensão e riqueza natural do pampa, que não possuía
árvores, só capim de até dois metros de altura.
Nichols, referindo-se ao gaúcho platino, observa que “o couro foi o principal
produto do meio onde apareceu o gaúcho e o contrabando foi o maior fato isolado
de sua origem” (NICHOLS apud REVERBEL, 1986, p. 71).
Darcy Ribeiro (1987), ao abordar a história do gaúcho platino, estabelece uma
diferenciação entre o ladino e o gaúcho, ambos mestiços que habitavam a região do
Prata. Os dois tipos eram resultantes do cruzamento de um pequeno número de
conquistadores europeus com uma variedade de mães indígenas, nas quais
concorriam o sangue primeiramente Guarani, depois Missioneiro, mais tarde de
Charrúas, de Minuanos e também dos índios coletores e caçadores seminômades
que dominavam os campos e o gado que neles se multiplicava. O domínio destes
coletores e seminômades em certas áreas era tão imperioso que no final do século
XVII, ”alcançaram um modus vivendi com os exploradores neoamericanos dos
rebanhos, cobrando direitos de coureada e admitindo em suas tendas alguns
fugitivos que entre eles se casavam e procriavam gentes que seriam novos gaúchos”
(RIBEIRO, 1987, s. p.).
Segundo Ribeiro (1987), os ladinos eram os mestiços que habitavam os
vilarejos ou se ocupavam principalmente da lavoura e do artesanato. Assim,
acabaram por ser menos mestiçados e mais europeizados, em decorrência da
constante incorporação de uma pequena quantidade de espanhóis que vinham à
região do Prata.
Por sua vez, acrescenta Ribeiro (1987), os gaúchos eram os mestiços
resultantes do caldeamento de índias e espanhóis. Habitavam os amplos espaços
pastoris, dedicando-se ao gado que se multiplicava no campo. Mantiveram pela
endogamia, suas características biológicas. Em razão de seu isolamento, tendiam a
conservar as técnicas de subsistência, as formas de organização social, a visão de
mundo, os hábitos e a língua.
O ladino era influenciado principalmente pelo porto que o colocava em contato
com o mundo, o que o levou a torná-lo cada vez mais exógeno. Já o gaúcho, explica
Ruben Oliven (200-), em seus comentários sobre o texto Gaúchos e ladinos de
Darcy Ribeiro, era influenciado principalmente pela campanha, que o deixava
atrelado ao país e dedicado ao pastoreio.
25
O pastoreio, que inicialmente era livre, aos poucos deixou de sê-lo. Isso
impulsionou o processo de exclusão e marginalização que sofreria progressivamente
este tipo humano, o mestiço e, em especial, o gaúcho que vivia livre nos campos.
As condições nas quais sobreviviam os gaúchos se tornaram mais difíceis
quando diminuíram os rebanhos de gado alçado, começaram a entrar os brasileiros
na disputa das vacas e dos couros, fixou-se uma fronteira e a oligarquia rural e o
patriciado empreenderam esforços de limitação de desfrute das riquezas do pampa.
A partir daí, inicia-se uma disputa sangrenta pelo gado e pelo território ainda
não ocupado, na qual engalfinham-se mestiços e índios em sucessivos combates.
Na primeira etapa do conflito se lançariam todos, ladinos e gaúchos, contra
os índios. Sucedem-se, então, os bandos que, tanto na Argentina como no
Uruguai, percorrem os campos para assaltar os toldos indígenas e dizimar
grupos inteiros. Era preciso limpar os campos do antigo ocupante humano
para que neles melhor e mais controladamente crescesse o gado. O índio
reage e leva seus ataques a quantos núcleos pode, dificultando o acesso
aos territórios mais ermos e a vigilância das fronteiras. Alguns se associam
aos brasileiros que descem do Rio Grande para a Colônia do Sacramento
{...}ou que atravessam a fronteira para negociar couros e vacas por
ferramentas e por armas (RIBEIRO, 1987, s.p.).
Dessa forma, iniciou-se o peculiaríssimo conflito entre a cidade e o campo
que perdurou latente na história da Argentina por vários séculos e deixou marcas
que se estendem até os dias atuais. O extermínio dos indígenas se levará a cabo na
denominada “Campanha do Deserto”, expedição chefiada pelo General Julio Roca
1
contra os índios do pampa, no final do culo XIX, o que garantiu vastíssimas terras
para a criação de gado e, sobretudo, de ovelhas destinadas à produção de lã. As
marcas do preconceito contra os mestiços ainda podem ser sentidas nos dias de
hoje.
Salienta Ribeiro (1987) que, com a ocupação humana e a apropriação das
terras latifundiárias, iniciaram-se os primeiros cleos urbanos, formados por
habitantes que eram obrigados a se retirar do campo que agora possuía dono.
Também se criaram companhias militares e outros núcleos com a finalidade de
amparar aos colonos vindos da Espanha e prioritariamente para agregar a gente
dispersa nos campos, coagindo o gaúcho em suas andanças e impondo a
autoridade e o domínio dos estancieiros.
1
O general Julio Argentino Roca (1843-1914) posteriormente foi presidente da República Argentina
no período de 1880 a 1886 e, novamente, de 1898 a 1904. Suas principais contribuições foram: o
desenvolvimento das comunicações, a organização do exército nacional e a instituição do ensino
leigo.
26
Em meados do século XVIII, o gaúcho encontrava-se recolhendo o gado
cimarrón para levar às estâncias dos que se apropriaram das antigas terras
devolutas e dando cabo dos cães selvagens que atacavam os rebanhos vacunos e
as ovelhas. Desse modo, executa a “derradeira tarefa econômica que ainda o
vincula ao sistema produtivo e o integra à sociedade global por lhe assegurar um
papel e um lugar nela” (RIBEIRO, 1987, s. p.).
Ainda neste século, além do couro, do sebo e da gordura, a carne do gado
passa a ser valorizada principalmente devido à produção de charque. Dessa forma,
o gaúcho não possuía mais a liberdade de carnear para se alimentar. Como seguiu
na atividade, ingressou na chamada delinqüência. Por não ser proprietário de terras,
não ter trabalho nem moradia fixa, transformou-se em ladrão, jogador, vadio e
bárbaro. Diante desta situação, entrou em conflito com o poder da cidade e dos
estancieiros, gerando a contrapartida destes poderes:
Para acabar com esta “praga dos campos”, as autoridades citadinas,
mancomunadas com os proprietários de terras, decretam um regime de
vigilância que obriga todo individuo da campanha que não seja proprietário,
a colocar-se a serviço de um patrão. Doravante, quem fosse encontrado
nos campos, sem a competente “papelada”, estava sujeito aos rigores da
lei. Assim, todos os gaúchos são declarados vadios, sujeitos à prisão por
transitar sem documentos ou ordem expressa de um juiz. Na efetivação do
novo regime, todo um serviço policial é montado na campanha para caçar
“gaúchos-vagabundos”, a fim de condená-los a anos de serviço militar na
fronteira ou colocá-los compulsoriamente a serviço dos estancieiros
(RIBEIRO, 1987, s. p.)
Salienta Ribeiro (1987) que a marginalização do gaúcho é conseqüência da
redução do gado alçado, da apropriação da terra inteira pelos afazendados e das
novas formas de coação.
A desmarginalização do gaúcho, em contrapartida, ocorreu durante as
guerras da independência nas quais ele se redimiu ao incorporar-se como soldado.
Chegou a atingir o patamar de herói e patriota, conforme abordado anteriormente,
fato este que, conforme Ludmer (2002) lhe rendeu a passagem da delinqüência para
a civilização.
De acordo com esta autora, a desmilitarização dos gaúchos ocorreu até 1820.
Os que saíam dos exércitos passavam a serem requeridos para a força de trabalho
na pecuária.
A condição de não-marginal durou até que se consolidassem os objetivos
dos comandantes e dos estancieiros. De fato, a partir daí, esgotada sua serventia,
ele seria descartado, conforme destaca Oviedo:
27
Esa fase “civilizada” resultará pasajera, pues en las primeras décadas
republicanas la utilidad del gaucho será olvidada en medio de las lutas pelo
poder, en las que aparece como aliado de la dictadura y el caudillismo
retrógrado, como un elemento renuente al progreso. Con el estigma de
anárquico, con un apego recalcitrante a sus propias tradiciones, “desertor
o “matrero”, volverá a ser visto como socialmente irrecuperable; con los
“instintos de destrucción y carnicería” que ve en él Sarmiento, se
transforma en otra clase de proscrito argentino, siempre empujado a una
tierra de nadie, mas allá de la civilización y la legalidad (OVIEDO, 1997, p.
50).
Após a independência, a função social do gaúcho, sujeito aos estancieiros,
passou à de combatente dos caudilhos no conflito entre o campo e a cidade.
Este conflito ocorreu porque as populações do interior não concordavam com
a dominação e a exploração a que eram submetidos pelos portenhos e
motevideanos. Assim, líderes do interior, os denominados caudilhos, formaram seus
exércitos de gaúchos e peões para combater os citadinos e defender seus
interesses.
A causa interiorana reivindicava a quebra do monopólio de importação ditado
por Buenos Aires, a livre navegação pelos rios Paraná, Uruguai e Paraguai e a
nacionalização das aduanas cujas rendas beneficiavam aos portenhos.
Posteriormente, assevera Ribeiro (1987), lutaram também em favor da proteção de
suas indústrias artesanais e por medidas de amparo aos ladinos e gaúchos que se
encontravam em situação de extrema pobreza.
Na virada do século XIX, o gaúcho foi visto como símbolo do atraso em
oposição aos imigrantes europeus. Quando estes imigrantes chegaram na
Argentina, em 1880, iniciou-se uma cultura diferente da trazida pelos espanhóis e a
da possuída pelo ingena. Assim, enfatiza Bella Josef (1982), em História da
literatura hispano-americana, o pampa deixou de ser gaúcho para ser europeizado.
Essa mudança deveu-se à implantação dos projetos políticos e econômicos
de Mitre
2
, Sarmiento
3
e Avellaneda
4
, que se concretizaram depois de 1880, época
2
Bartolomé Mitre (1821-1906), político, militar, escritor e jornalista, foi presidente da República da
Argentina no período de 1862 a 1868, tendo estimulado fortemente a imigração e os investimentos
externos. Terminado o mandato, foi eleito senador. Fundou La Nación, um dos diários mais influentes
da América Latina, que até hoje é publicado e dirigido por seus descendentes.
3
Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888), político e escritor, sucedeu Mitre na presidência da
República, no período de 1868 a 1874. Deu prosseguimento ao programa de incentivo à imigração
européia e investimentos externos de seu antecessor. Contribuiu com a causa da educação, tendo
duplicado o número de escolas públicas e construído cem bibliotecas públicas na Argentina. Como
escritor, destacou-se por sua obra Facundo: civilização e barbárie (1845).
4
Nicolás Avellaneda (1837-1885) foi presidente da Argentina no período de 1874 a 1880. Sucedeu
Sarmiento. É considerado o grande promotor da imigração por ter sacionado, em 1876, a Lei da
28
das grandes transformações da Argentina. Tal projeto incluía, além do estimulo à
imigração, os investimentos externos
5
.
De acordo com Darcy Ribeiro, esse projeto visava:
Primeiro, o aproveitamento das imensas disponibilidades de terras fiscais
para a venda ou a outorga maciça na forma de grandes propriedades, que
permitiram alargar enormemente as bases do sistema de fazendas.
Segundo, pelo esforço de modernização reflexa, através do livre-comércio
e da injeção de capitais estrangeiros, principalmente ingleses que
possibilitaram a construção de ferrovias, implantação de uma economia
especializada na exportação de carne e de cereais. Terceiro, pela
importação maciça de mão de obra estrangeira [...] (RIBEIRO, 1987, s. p.).
Para realizar este projeto, explica Ribeiro (1987), seus condutores se
propuseram
à tarefa gigantesca, de refazer a face e o corpo da nação, inspirados por
ideais europeus e pela maior animosidade antigaúcha, sob o punho do
imperialismo inglês e fundados num pacto do patriciado urbano com a
oligarquia territorial (Ibid., s. p.).
Este projeto estava fundamentado na ideologia traduzida por Sarmiento, em
seu Facundo: civilización y barbárie
6
, editado em 1845.
Sarmiento escrevera esta obra quando estava exilado no Chile para
desprestigiar a embaixada presidida por Dom Baldomero García, enviado por
Rosas
7
para este país, conforme esclarece Josef (1982).
Na obra Facundo, Sarmiento pregava a total destruição da etnia gauchesca,
considerada a responsável pelo atraso econômico e cultural da Argentina. Também
estabelecia a oposição entre o campo, lugar da barbárie, e as cidades, lugar da
civilização, modelo da cultura, do progresso e da riqueza.
Essas oposições eram ao mesmo tempo políticas (combatiam os federalistas
que lutavam pelo campo – Rosas e os caudilhos) e culturais (o mundo letrado contra
Imigração, conhecida como lei Avellaneda, a qual prometia terras e trabalho aos camponeses
europeus. Ao deixar a presidência foi eleito senador.
5
Os governos depois de Urquiza (1821-1906) – Mitre, Sarmiento, Avellaneda, Roca - abriram
caminho para o fortalecimento do comércio estrangeiro na Argentina e a atuação dos europeus em
todos os segmentos políticos, econômicos e sociais. Justo José de Urquiza, militar e político, foi
presidente de 1864 a 1860.
6
Facundo: civilización y barbárie, do argentino Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888), é
considerado um clássico do pensamento político latino-americano. Ver em português: Sarmiento, J. F.
Facundo: civilização e barbárie. Tradução de Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
7
O federalista Juan Manuel de Rosas (1793-1877) foi governador da Província de Buenos Aires de
1835 a 1852 e exerceu vigorosa hegemonia sobre os caudilhos das demais províncias. Na luta contra
os unitários, contou com o apoio da Igreja, de estancieiros, de gaúchos e de parte da população
urbana (sobretudo dos numerosos homens de cor), simpatizantes do federalismo. Derrotado por
Urquiza em 1853, se refugiou na Inglaterra.
29
a tradição oral), enfatiza Maria L. C. Prado (1997), ao escrever o prefácio da edição
brasileira de Facundo: civilização e barbárie.
Os objetivos de Sarmiento com essa obra era atacar Rosas e lutar por sua
derrubada. Ao mesmo tempo, desejava indicar uma proposta alternativa de governo
e determinar um projeto político para a futura Argentina, livre dos federalistas.
Com a implementação das idéias sarmentistas e do projeto político do
governo que beneficiava a imigração em detrimento dos mestiços, o gaúcho
praticamente foi excluído da sociedade.
A partir de1920, ganhou força uma corrente que fazia crítica ao Estado
Liberal, fundamentada numa ótica nacionalista. Conforme esta ideologia, Rosas teria
o papel de “verdadeiro” representante da “argentinidade” e o gaúcho do campo
transformar-se-ia na expressão da “essência do ser nacional”, de acordo com o que
observa Prado (1997).
A obra de Ricardo Güiraldes, Dom Segundo Sombra, foco desta dissertação,
vem ao encontro de tais idéias e insere-se na cronologia desta corrente integrada
pelos denominados “revisionistas”, pois é considerada uma tentativa de resgatar as
raízes da nacionalidade no gaúcho platino e na natureza do pampa no qual este tipo
humano estava inserido.
Atualmente, a população da Argentina é composta quase que totalmente por
descendentes de imigrantes. De acordo com Ribeiro (1987), somente nas zonas
mais ermas ou nas camadas sociais mais pobres é que sobrevive pequena parcela
de gaúchos, com imensa dificuldade de superar o sentimento de inferioridade
imposto em relação ao patriciado.
Tal sentimento de inferioridade é decorrente do sentimento dos vencidos e
constitui-se o resquício de um ódio pelos espanhóis nutrido desde o início da
conquista.
De acordo com Moisés Vellinho (1962), em sua obra O gaúcho rio-grandense
e o gaúcho platino, desde a primeira mestiçagem quando surgiu o gaucho platino ele
veio
não para tomar o partido do progenitor branco, mas para engrossar com
os seus ressentimentos o irredutível ódio que o aborígene nutria contra os
conquistadores. Com efeito, a conduta arrogante e cruel do espanhol havia
de incompatibilizá-lo fundamente com seus descendentes mestiços e
mesmo com os crioulos. Fora da satisfação dos instintos, que nada têm
com os preconceitos sociais, nenhum entendimento com a gente que ele,
do alto de sua empáfia, considerava inferior e desprezível. Tratado com
dureza por quem era tão cioso de seus foros radicais, esses rebentos
30
espúrios só tinham um caminho a seguir: ganhar o pampa, que era a
liberdade, e reforçar a frente inimiga. Outra alternativa não lhes cabia, por
certo, diante do conquistador intolerante e duro, cuja arrogância, presente
em todas as manifestações da raça, tem para Carlos Otavio Bunge a
poderosa justificativa de uma fatalidade geográfica (VELLINHO, 1962,
p.
56
).
A arrogância mencionada, considerada como decisiva na formação do caráter
do gaúcho platino, deve-se ao fato de os espanhóis que aportaram nas terras
platinas terem visto aí uma oportunidade de ostentar seus títulos de nobreza que, na
pátria de origem, devido ao grande número desses, não lhes rendiam tantas
reverências. Por essa razão, e convencidos de sua grandeza e posição social
superior na Colônia, mantinham-se à distância dos aborígenes, mestiços e crioulos,
numa atitude orgulhosa e empafiosa, comportamento que acirrava o ressentimento e
a revolta entre a população vencida e acabou acarretando graves conseqüências
históricas e sociológicas, como a luta entre o campo e a cidade, traduzida na
dicotomia civilização-barbárie que se embateu mutuamente por vários séculos.
Sobre este fenômeno, registra Vellinho:
Foram, sem dúvida, as arbitrariedades cometidas em larga escala pelos
espanhóis, vítimas de inveterada soberbia, que atuaram no
desenvolvimento histórico da personalidade argentina no sentido de que
jamais se pudessem conciliar, maugrado vários séculos de experiência em
comum, os componentes hispânicos e indígenas (Ibid., p. 57).
Assim, observa-se que o gaúcho platino, fruto da miscigenação entre
europeus e indígenas, foi forjado dentro de permanente conflito. Pressionado
constantemente pela falta de gado e de terras, foi direcionado para o exército, para o
trabalho de empregado nas estâncias ou para as cidades. Este fato fez com que
progressivamente este tipo humano, em suas características primitivas,
desaparecesse completamente.
1.2.3 Do gênero gauchesco
Na região platina, a literatura denominada gauchesca formou-se entre os
anos de transição dos séculos XVIII e XIX e desenvolveu-se a partir daí,
constituindo-se num fenômeno peculiar dessa região.
O pampa havia entrado para a literatura pelas os do poeta romântico
Esteban Echevería (1805-1851). Sua tese era que a poesia da América deveria
aparecer revestida de um caráter próprio e original,
31
[...] reflejando los colores de la naturaleza física que nos rodea, sea a la
vez el cuadro vivo de nuestras costumbres, y la expresión más elevada
de nuestras ideas dominantes, de los sentimientos y pasiones que
nacen del choque inmediato de nuestros sociales intereses, y en cuya
esfera se mueve nuestra cultura intelectual (ECHEVERÍA apud JOSEF,
1982, p. 70).
Na obra de Echevería ainda não aparecia a figura do gaúcho, mas ele é
considerado o iniciador da literatura tipicamente nacional na Argentina porque foi o
primeiro a poetizar a geografia americana.
Segundo Ana Pizarro (1994), em sua obra América Latina: palavra, literatura
e sociedade, a gauchesca surgiu em circunstâncias sócio políticas peculiares,
quando os grupos postergados ou marginalizados pelo regime colonial levantaram a
voz ou se animaram a articular suas opiniões. No entanto, como sistema político
auto-suficiente nunca teria existido se não fosse mediada pela intervenção dos
poetas letrados, para quem a sátira sobre os costumes era uma fórmula conhecida.
Para esta autora, a poesia gauchesca se originou de uma imposição dos
líderes do partido unitário portanto contrários a Rosas e aos caudilhos - a um
versificador com facilidade de criação como Hilário Ascasubi. Este poeta foi quem
consolidou o gênero gauchesco iniciado por Hidalgo.
Esta afirmação encontra amparo no registro de Carlos Alberto Leumann
(1953), autor de La literatura gauchesca y la poesía gaucha, que afirma que este tipo
de literatura se fez ruidosa ao invadir abertamente a política e servir, em Montevidéu,
de propaganda contra Rosas e, mais tarde, em Buenos Aires contra Urquiza.
Esclarece Pizarro (1994) que o gênero gauchesco foi considerado útil para
atuar politicamente sobre um público rural, sedento de novidades, agrupações
políticas e entretenimentos. Este público tomava conhecimento dos versos
gauchescos através da audição, em diferentes lugares de reunião de pessoas, como
nas pulperías ou nos acampamentos militares.
Leumann (1953) aponta como um dos motivos que contribuiu para o
desenvolvimento afortunado da literatura gauchesca a miséria das letras urbanas
nos países da Colônia.
De acordo com este autor, os poetas urbanos da Colônia encontravam-se
engessados pelas normas rígidas da criação poética, da Academia e dos
gramáticos, não conseguindo, por essa razão, expressarem-se dentro de um estilo
próprio. A exteriorização de suas idéias e sentimentos era cerceada pela Coroa
Espanhola que se baseava na premissa de que a imaginação nos seus domínios da
32
América constituía-se em um grande perigo à manutenção de suas conquistas. Tais
poetas, então, com sua capacidade criadora amplamente reduzida, conformavam-se
somente com a imitação submissa de uma literatura estrangeira.
Desta forma, a literatura gauchesca apresentou-se como um recurso para
preencher este vazio que, segundo Leumann (1953), existia nas letras.
Mafud destaca que a literatura gauchesca, assim como o lunfardismo, o
sainete e as letras de tangos, “surgiram pela necessidade vital de expressar uma
realidade que certo tipo de literatura culta e letrada havia deixado oculta e
subjacente” (MAFUD apud JOSEF, 1982, p. 88).
Uma questão que tem sido discutida é se a poesia gauchesca,
originariamente, é uma ramificação da poesia letrada como entende Jorge Luis
Borges, Ana Pizarro, José Miguel Oviedo ou se ela é um prosseguimento do canto
improvisado e competitivo dos gaúchos pajadores das pajadas (Ricardo Rojas
8
,
Carlos Alberto Leumann, Héctor Adolfo Cordero).
Pizarro argumenta a favor da primeira hipótese, destacando o fato de que
desde sus antecedentes más remotos (el romance Canta un guaso en
estilo campestre las hazañas de Don Pedro Cevallos, de Baltasar
Maciel, datable hacia 1775) hasta el poeta considerado “fundador” del
género, Bartolomé Hidalgo, dicha veta gauchesca alterna con sonetos,
himnos y odas compuestas según los cánones seudoclásicos
(PIZARRO, 1994, p. 129).
Esta afirmação vai ao encontro do asseverado por Jorge Luis Borges (1989),
em seu ensaio El escritor argentino y la tradición, que expressa que se constitui um
erro grave considerar a poesia dos gaúchos como uma continuação, derivação ou
magnificência da poesia dos pajadores. Chamar de pajador a Bartolomé Hidalgo é
outro equívoco, porque ele começou compondo versos endecassílabos, metro
naturalmente vedado aos pajadores que não percebiam sua harmonia.
A diferença fundamental entre a poesia dos pajadores e a poesia gauchesca
é assim explicada por Borges:
Basta comparar cualquier colección de poesías populares con el Martín
Fierro, con el Paulino Lucero, con el Fausto, para advertir esa diferencia, que
está no menos no léxico que en el propósito de los poetas. Los poetas
populares del campo y del suburbio versifican temas generales: las penas del
amor y de la ausencia, el dolor del amor, y lo hacen en un léxico muy general
también; en cambio, los poetas gauchescos cultivan un lenguaje
deliberadamente popular, que los poetas populares no ensayan. No quiero
8
Ricardo Rojas, apenas mencionado neste trabalho, é historiador da literatura hispano-americana.
Seus estudos incluem a poesia dos escritores gauchescos Bartolomé Hidalgo, Hilário Ascasubi,
Estanislao del Campo e José Hernández. Em Historia de la literatura argentina, expressa que a
poesia gauchesca deriva da espontânea poesia dos gaúchos.
33
decir que el idioma de los poetas populares sea un español correcto, quiero
decir que si hay incorrecciones son obra de la ignorancia. En cambio, en los
poetas gauchescos hay una busca de las palabras nativas, una profusión de
color local. La prueba es ésta: un colombiano, un mejicano o un español
pueden comprender inmediatamente a las poesías de los payadores, de los
gauchos, y en cambio, necesitan un glosario para comprender, siquiera
aproximadamente, a Estanislao del Campo o Ascasubi (BORGES, 1989, p.
268).
A opinião de Oviedo (1997) aproxima-se da emitida por Borges. Afirma que a
gauchesca não é “poesia dos gaúchos” e sim poesia “à maneira dos gaúchos”,
exatamente como indica a desinência da palavra “gauchesca”.
Acrescenta este autor que, embora este tipo de poesia apresente
características orais e aproveitamento dos motivos das pajadas, não é diretamente
um produto folclórico nem campesino. Seu ambiente de origem é o urbano e sua
veiculação ocorre através da letra escrita por meio de folhas de jornais, folhetos ou
livros.
Sobre a linguagem usada na poesia gauchesca, adverte este estudioso:
Aunque se presenta como una mimesis con todos sus giros y
distorsiones pintorescas del habla de los gauchos, es en verdad una
reelaboración artística hecha a partir de ella; una estilización, no su copia o
reflejo servil: una verdadera creación literaria que emanaba del “espíritu del
pueblo” tan predicado por el romantismo. Quizá no sea del todo ocioso
aclarar que, teniendo bases tradicionales, la gauchesca no es “poesía de
los gauchos” (OVIEDO, 1997, p. 48).
Oviedo destaca ainda que, sem o impulso romântico, a gauchesca o teria
florescido como ocorreu depois de Hidalgo porque
literariamente, es un corpus textual de otro orden, pues su cauce incorpora
distintas formas de la vertiente popular; ideologicamente es la contradicción
más viva de las teorias liberales sobre el gaucho y la barbárie expuestas
por Sarmiento y otros “proscritos” (Ibid., p. 49).
Borges (1989) reconhece que a literatura gauchesca produziu obras
admiráveis, mas adverte que a poesia gauchesca é um gênero tão artificial como
qualquer outro:
En las primeras composiciones gauchescas, en las trovas de Bartolomé
Hidalgo, ya hay un propósito de presentarlas en función del gaucho, como
dichas por gauchos, para que el lector las lea con una entonación
gauchesca. Nada más lejos de la poesía popular. El pueblo y esto yo lo
he observado no sólo en los payadores de la campaña, sino en los de las
orillas de Buenos Aires -, cuando versifica, tiene la convicción de ejecutar
algo importante, y rehuye instintivamente las voces populares y busca
voces y giros altisonanates. Es probable que ahora la poesía gauchesca
haya influido en los payadores e éstos abunden también en criollismos,
pero en el principio no ocurrió así (BORGES, 1989, p. 269).
34
Oviedo (1997) destaca que a tradição gauchesca influenciou obras de autores
cultos como Bartolomé Mitre, autor de “A Santos Vega” (1838), Rafael Obligado,
autor de outra composição “Santos Vega” (1877 e 1906), dedicada ao mesmo
personagem que já havia feito famoso ao poeta Hilário Ascasubi. Também estimulou
gêneros como o sainete crioulo que tem a mesma origem do teatro gauchesco e
deste sofreu influências. O sainete é uma peça de teatro popular. Ademais,
impulsionou as novelas de folhetim de tema gauchesco de Eduardo Gutiérrez, como
seu Santos Vega (1880 1881). A gauchesca ainda penetrou em romances como
de Acevedo Dias, Lugones, Borges e Güiraldes.
1.2.3.1 Representantes do gênero
Embora o primeiro escrito com lampejos do gênero possa ser encontrado no
ano de 1777, no poema Canta un guaso en estilo campestre el triunfo del Exmo.
Señor Don Pedro de Cevallos, do sacerdote santafesino Baltazar Maziel (1727
1788); e a este tenham sucedido outros escritos de autores anônimos ou não, é
com o poeta precursor Bartolomé Hidalgo (1788-1822) e sua obra Diálogos y cielitos
patrióticos (1818), de temática gauchesca, que o novo gênero se inicia.
Poeta urbano, sem nunca ter residido no pampa, acostumado a produzir
composições dentro das regras literárias acadêmicas, serviu nas fileiras militares,
onde teve a oportunidade de conviver com a gauchada.
Através de sua poesia gauchesca fez-se ouvir rapidamente ao utilizá-la como
recurso de protesto contra a política ditatorial de Rosas e Urquiza. De acordo com
Enrique Anderson Imbert (1991), em sua obra Historia de la literatura
hispanoamericana I: la colonia cien años de república, Hidalgo criou formas
carregadas de tons patrióticos e de raízes crioulas que se fizeram aceitáveis, mas
que não deixavam de ser literariamente humildes e em estado embrionário.
Segundo Imbert (1991), a figura do gaúcho criada por ele, no entanto, se
converteu no símbolo das classes campeiras crioulas em oposição ao estrangeiro e
ao senhorio da cidade. Seu gaúcho não era a expressão espontânea de um suposto
pajador do pampa, mas sim uma criação artística com antecedentes na literatura
costumbrista, figura que os românticos apressaram-se em converter em um nobre
mito.
35
O grande valor de Hidalgo, segundo Borges, resume-se no fato de ele ter
descoberto a “entonação do gaúcho” (BORGES, 1989, p. 181).
O novo gênero literário fundado por Hidalgo agitou e modificou as concepções
literárias da época e influenciou várias obras e escritores importantes.
A consolidação do gênero gauchesco ocorreu com Hilário Ascasubi (1807
1875) que, servindo-se de versos satíricos e violentos, utilizou a poesia gauchesca
como arma e instrumento de sua propaganda política contra os governantes
opressores, principalmente contra a ditadura de Rosas. No embate entre os federais
partidários de Rosas e os unitários não partidários do ditador, rosistas e anti-
rosistas lançavam volantes de propaganda, servindo-se da voz dos gaúchos na
defesa de ambas as causas.
Argentino nascido em Bell Ville, homem de vida ativa e jornalista, participou
da política, das frentes militares, cumpriu várias missões na Europa comissionado
pelo governo de Bartolomé Mitre. Sua obra mais importante, escrita em um período
mais sereno de sua vida, é o poema denominado Santos Vega o Los Mellizos de “La
Flor” ( editado em folhetim em 1850 e na íntegra, em Paris, em 1872), extenso relato
de cerca de treze mil versos, no qual narra o drama entre dois gêmeos da estância
La Flor. Seu poema se destacou pelas descrições escritas em estilo gauchesco,
repletas de informações sobre o pampa, seus homens, seu meio de vida e conferiu
ao gênero o status de literatura.
Ascasubi é reconhecido também por fornecer o primeiro retrato do gaúcho
literário que será o protagonista de uma longa progênie na literatura:
El gaucho es el habitante de los campos argentinos; es sumamente experto
en el manejo del caballo y en todos los ejercicios del pastoreo; Por lo
regular es pobre, pero libre e independiente a causa de su misma pobreza y
de sus pocas necesidades; es hospitalario en su rancho; lleno de
inteligencia y de astucia, ágil de cuerpo, corto de palabras, enérgico y
prudente en sus acciones, muy cauto para comunicarse con los extraños,
de un tinte poético y supersticioso en sus creencias y lenguaje, y
extraordinariamente diestro para viajar solo por los inmensos desiertos del
país, procurándose alimentos, caballos, y demás con solo su lazo y las
bolas (ASCASUBI apud ACADEMIA ARGENTINA DE LETRAS, 2005, s. p.).
Discípulo de Ascasubi, o argentino Estanislao del Campo (1834 – 1880),
moço de família abastada, viveu na capital argentina na época em que esta se
tornava uma grande cidade. Assistiu às lutas do regime ditatorial bem como a queda
de seu tirano. Embora urbano, conhecia o homem campeiro o suficiente para
expressar-se com autoridade sobre o mundo gauchesco que o rodeava, visto que
36
atuou como coronel do exército de Mitre e teve sob suas ordens nas empresas e
lutas militares autênticos personagens característicos do campo argentino.
No que se refere à sua literatura, é apontado como menos afortunado que
seus antecessores, o que não abdica o valor literário de sua obra.
Além de versos satíricos, sociais e políticos compôs versos puramente
literários como em sua principal obra, chamada Fausto: impresiones del gaucho
Anastasio el Pollo en la representación de esa obra (1866). Esse livro cômico
descreve as impressões de um gaúcho ao assistir a ópera Fausto, de Gounod.
O gaúcho de Estanislao é um crioulo que vive próximo da capital e alterna sua
permanência no campo e na cidade, constituindo-se, portanto, numa figura diferente
em relação ao gaúcho forjado pelos outros poetas gauchescos que o antecederam.
A conformação da figura do gaúcho exibida por del Campo agitou os intelectuais e
propiciou ampla discussão sobre a verdadeira identidade do homem do campo
argentino.
Percebendo a necessidade de definir essa identidade e de preencher tal
lacuna da cultura argentina, a literatura do Prata recebe a intervenção daquele que
daria transcendência ao gênero gauchesco, seu mais digno representante: Jo
Hernández (1834 – 1886), com seu Martín Fierro, obra-prima dessa vertente.
Nascido nas redondezas de Buenos Aires, como seus antecessores, lutou no
exército e editou primeiramente seus escritos em periódicos. Homem culto,
participava das discussões sobre literatura nacional argentina, era simpatizante da
causa em defesa dos gaúchos e avesso aos políticos europeus da época. Escreveu
o poema que consagrou o gênero em duas partes: Martín Fierro – La Ida, em 1872 e
La Vuelta, em 1879.
Nesta obra clássica da literatura argentina, Hernández se dirige a dois
segmentos de público, ou seja, aos leitores cultos e aos gaúchos. Utilizando as
mesmas palavras que compõem seu poema, endereça duas mensagens diferentes,
uma política e outra pedagógica: para os cultos, reclama justiça para os gaúchos;
para os gaúchos, procura dar-lhes lições morais que melhorem sua condição.
A popularidade desta obra, cujo personagem protagonista converteu-se em
um representante do homem rural argentino, rapidamente ultrapassou fronteiras,
vindo a influenciar diversos escritores estrangeiros. A parte mais discutida de seu
poema foi a de protesto social, na qual defende a classe social do gaúcho,
37
marginalizada e perseguida. Pelo teor humanitário, é considerada não como uma
simples obra do gênero, mas um tratado a favor do respeito pela condição humana.
Na narrativa gauchesca, um primeiro destaque cabe para o argentino
Eduardo Gutiérrez. Nasceu em Buenos Aires em 1851 e faleceu em 1890. Era
sobrinho de Bartolomé Hidalgo, e cunhado de Estanislao del Campo. Foi militar,
jornalista e autor de diversos livros e folhetins.
Alguns desses folhetins eram gauchescos e o mais famoso deles foi Juan
Moreira (1879), publicado em Buenos Aires, no qual Gutiérrez personificava o
gaúcho valoroso e nobre, perseguido e injustiçado, que se constituía um produto da
época e do lugar.
Segundo Leumann,
Ninguna novela, extranjera o argentina, había tenido hasta entonces tanta
difusión como la tuvo ésta, que pretendía ser la historia de un gaucho
llevado a la desdicha – como Martín Fierro – por arbitrariedad de las
autoridades rurales (LEUMANN, 1953, p. 49).
Gutierrez compôs uma série de romances em folhetim semelhantes a Juan
Moreira, cujas características são apresentadas por Leumann;
En todas ellas los paisanos hablan bridamente, y alternan términos y
modismos camperos con el lenguaje urbano del autor y a veces con una
grandilocuente quejumbre romântica o con lugares comunes de la retórica
escolar. Sobreabundan situaciones dramáticas, crímenes, peleas con la
partida, amores, raptos y episodios de fantasía (Ibid., p. 49).
Os folhetins de Eduardo Gutiérrez e, em especial Juan Moreira, foram
responsáveis pelo grande impulso do teatro cênico no Rio da Prata, destaca Josef
(1982). Em 1884, um empresário do circo chamado José Podestá, criador do popular
palhaço Pepino adaptou em pantomina o protagonista Juan Moreira do romance
epônimo de Eduardo Gutiérrez, levando-o a consideração do público. As
apresentações atingiram extensa popularidade, e dessa forma, se assentaram as
bases do teatro nacional.
Segundo Leumann, até a apresentação de Juan Moreira, ”tanto en Buenos
Aires como en Montevideo sólo hubo, anteriormente, representaciones ocasionales,
sin consecuencia, de obras argentinas” (LEUMANN, 1953, p. 50).
Outro destacado representante da narrativa gauchesca é Benito Lynch.
Nasceu em La Plata, Argentina, em 1885 e faleceu em 1951. Escreveu obras
realistas inspiradas no campo e consideradas pela crítica entre as melhores que
foram produzidas pela novelística argentina. Segundo Gutiérrez e Calimano (1961),
38
em Historia de la literatura americana y argentina con antología, “es el escritor que
mejor ha sabido ver y captar la vida de nuestras pampas, el paisaje, los hombres, la
vida en las estancias, etc.” (GUTIÉRREZ; CALIMANO, 1961, p. 578).
De acordo com Rudolf Grossmann (1972), autor de Historia y problemas de la
literatura latinoamericana, Linch foi um dos poucos escritores que, nas décadas de
1920 e 1930, viveu longo tempo e de maneira bastante intensa entre os gaúchos.
Seu propósito era conhecer a essência do ser do gaúcho, ou seja, o sentimento da
solidão: de um lado “la soledad erótica en la infinita vastedad de la pampa” e de
outro, “la soledad frente a la civilización que avanza con las filas cerradas”
(GROSSMANN, 1972, p. 545).
Seu romance mais difundido e considerado o melhor de sua obra se intitula El
inglés de los guesos (1924). Em seu livro capital, Lynch descreve o despertar do
amor numa alma de adolescente. Trata-se de um arqueólogo inglês, jovem e culto,
chamado de mister Gray, que vem à Argentina realizar escavações em busca de
fósseis de índios. Alojado em um humilde rancho de um peão, por ele se apaixona
uma rústica criolla, de nome Balbina, filha do dono do casebre, que se suicida
quando ele retorna à sua pátria.
Imbert (1991) expressa que a trama empobrecida não a idéia da
complexidade interior do romance no qual “el color local, las pinceladas
costumbristas, la sabrosa lengua rural, el hábil tejido de circunstancias y
acontecimientos, están al servicio de una fina observación del despertar del amor”
(IMBERT, 1991, p. 470).
Gutiérrez e Calimano (1961) afirmam que, neste romance, se evidencia a
visão profunda de Lynch sobre o campo argentino, seus costumes e a maneira de
ser de seus habitantes. Destacam, também, que esta obra é inesquecível para o
leitor devido ao seu realismo nobre e viril.
Segundo Bella Josef (1982), em sua narrativa principal, Lynch estampa o
conflito entre a vida civilizada a do arqueólogo inglês - e a instintiva da moça
nativa. Sobre este tema, em A literatura hispano-americana, Joset (1987) afirma que,
através da narrativa de El inglés de los guesos, se produz “uma transformação a
mais na oposição civilização-barbárie” (JOSET, 1987, p. 76). Este autor justifica sua
assertiva expressando que nesta obra
são ultrapassadas as simplificações psicológicas do naturalismo: os
caracteres são matizados, contrastados; a intriga é conduzida com
habilidade até a tragédia final; os diálogos, notáveis pela precisão, são o
39
meio preferido de Lynch para nos explicar as reações de seu herói
(JOSET, 1987, p. 76).
O tema da violência, característico da maioria das obras do gênero
gauchesco reaparece no final desta obra, com o enforcamento de Balbina. O que
leva a moça a este final trágico são os ciúmes do personagem que era enamorado
dela e seu prometido. Segundo Grossmann, este personagem está descrito ainda
como “el gaúcho de pura cepa, totalmente enraizado en la Pampa, pero la
descripción está psicológicamente cimentada, vigorosamente tallada y mantenida
libre del romantismo antes usual “ (GROSSMANN, 1972, p. 545).
Vale dizer que todos os autores anteriormente citados como figuras
importantes na tradição gauchesca produziram outras obras dessa natureza, das
quais somente se destacou a considerada mais importante. Isto denota que, quando
Güiraldes começa a escrever Dom Segundo Sombra, o gênero se encontrava
desenvolvido.
2 O AUTOR RICARDO GÜIRALDES
2.1 Biografia
Ricardo iraldes nasceu em Buenos Aires, Argentina, a 13 de fevereiro de
1886 e faleceu em Paris, a 8 de outubro de 1927. Era um homem de boa posição,
de família aristocrática e de grandes propriedades, teve a vida moda dos jovens
ricos da época. Um ano depois de nascer se mudou com os pais para a Europa e
retornou à terra natal aos quatro anos, conhecendo francês e alemão.
Ao regressar à Argentina, sua infância transcorreu no sítio Caballito,
propriedade de seu avô paterno, e em La Porteña, estância de Manuel Güiraldes,
seu pai, situada em San Antonio de Areco, na qual passou longas temporadas em
contato com a vida paisana.
Sua aprendizagem escolar esteve primeiro a cargo de professoras
particulares no ambiente doméstico e, depois, a partir de 1897, de Lorenzo Ceballos,
jovem engenheiro civil mexicano. Cursou estudos secundários no colégio Lacordaire,
no Instituto Verdiz e no Instituto Libre de Segunda Enseñanza de Buenos Aires. Em
1904, ingressou na faculdade de Arquitetura que foi abandonada em favor da
faculdade de Direito que também não concluiu, definindo-se, então, pela literatura.
Em 1910, com 24 anos, decidiu embarcar com destino a Paris. Em 1911,
visitou vários países da Europa, Ásia e África e, após, casou-se com Adelina del
Carril. Em 1914, recorreu parte da América Latina. Em distintas ocasiões viajou
novamente à Europa França e Espanha. Visitou brevemente Cuba em 1917. Sua
infância, sua juventude e sua vida se repartiram, então, entre a estância,
41
temporadas em Buenos Aires e viagens, as leituras e a vida social, acabando
sempre em Paris, onde aprendeu a ser escritor.
Güiraldes foi narrador e poeta. Fundou e dirigiu conjuntamente com Jorge
Luis Borges, Alfredo Bradán Caraffa e Pablo Rojas Paz, a revista Proa (segunda
época 1924 1925). Colaborou também em La Nación, Plus Ultra, Martín Fierro,
Valoraciones e outras. Através de Proa e Martín Fierro se vinculou às correntes
consideradas mais representativas do movimento vanguardista de seu país. Entre
1914 e 1926 publicou várias obras.
Em Paris, em 1919, iniciou o livro que iria publicar sete anos mais tarde e
consagrá-lo internacionalmente: Dom Segundo Sombra (1926). Ainda nessa cidade,
recebeu o Premio Nacional de Literatura por esta obra. Admirador dos saberes
orientais, morreu em 1927, rodeado de filosofia hindu. Seus restos foram
transladados a Buenos Aires e seguiram para San Antonio de Areco, ocasião em
que foi acompanhado pela última vez por Segundo Ramírez, personagem que
inspirou a figura central de sua obra maior.
2.2 Obras
Os primeiros poemas e contos de Ricardo Güiraldes foram publicados na
revista argentina Caras e Caretas, a partir de 1914. Seus dois primeiros livros os
publicou em 1915: El cencerro de cristal (poemas), e Cuentos de muerte y de
sangre. Posteriormente escreveu três romances curtos: Raucho “Momentos de uma
juventude contemporânea” (1917); Rosaura (publicada pela primeira vez em 1918
com o título Um idilio de estación”, em El Cuento Ilustrado, dirigido por Horacio
Quiroga); e Xaimaca (1923). Em 1926, apareceu Don Segundo Sombra,
considerada desde logo, como um clássico. Por essa obra recebeu o Prêmio
Nacional de Literatura.
Postumante foram publicados Poemas místicos (1928); Poemas solitários
(1928); Seis relatos (1929) El Sendero: notas sobre mi evolución espiritualista em
vista de um futuro (1932); El libro bravo (1936); El pájaro blanco (1952); Pampa
(poemas inéditos, 1954).
Além dessas obras, Güiraldes escreveu em 1916: El reloj (“Capricho teatral”);
y Caapo (poema cênico para um ba em colaboração com Alfredo González
42
Garaño). Em 1975, veio a público o conto Andando”, que havia sido publicado na
revista Plus Ultra, de Buenos Aires, provavelmente no final de 1921.
Ricardo Güiraldes era mais poeta que romancista. Ele afirma que, desde seus
primeiros momentos de escritor, ambicionava cultivar uma nova poesia: o poema em
prosa, e não segundo as regras rígidas ditadas pela academia européia.
2.2.1 Filiação estética
Os historiadores da literatura divergem um pouco ao enquadrar Ricardo
Güiraldes nas diferentes escolas estéticas.
Villar Raso (1987), em Historia de la literatura hispanoamericana, classifica a
obra Dom Segundo Sombra como um dos romances mais significativos dentro do
período realista, cujo tema é a exaltação dos valores do gaúcho. Esta opinião é
compartilhada por Jean Franco (1996), autor de Historia de la literatura
hispanoamericana: a partir de la independencia.
Já Imbert rechaza esta afirmação, apontando a obra como modernista:
Se creyó que era novela realista, casi novela telúrica... Nada de esto [...] A
pesar de sus diálogos tan realistas, de todo su folklore, de sus
comparaciones campesinas y de su dialecto rioplatense de peones y dueños
de estancia, Don Segundo Sombra es novela artística. Cáceres, sin salirse
de su pampa, ambiciona un estilo de imágenes brillantes y raras (IMBERT,
1985, p. 124 – 125).
Este historiador da literatura hispano-americana define o autor como
participante de uma geração filha da estética modernista, destacando-o como um
dos mestres da escrita com decoro estético e técnicas impressionistas.
Outro autor, Iñigo Madrigal (1999), em sua Historia de la literatura
hispanoamericana, também classifica Güiraldes como prosador modernista.
Na opinião de Alberto Zum Felde (1975), expressa no ensaio La realidad
poética en Don Segundo Sombra, o fato de o autor Ricardo Güiraldes devotar um
culto fervoroso a Paris o aproximava da geração realista, mas na verdade, ele
pertencia à geração seguinte.
Para este historiador, a obra Dom Segundo Sombra, apesar de suas grandes
pinturas de paisagens, de tipos e de costumes, ultrapassa a época do objetivismo
realista, devido ao valor poemático da evocação e ao simbolismo do mito literário
43
que cria. Fora desse sentido, esta obra entra na definição geral do costumbrismo
9
narrativo americano, pela preponderância dos aspectos pictóricos-regionais.
Para Felde (1975, p. 129), “La herencia modernista en Don Segundo se da
en rasgos del estilo, pero más en la delectación estética de sus motivos”.
Bella Josef (1971) aponta o autor de Dom Segundo como um prosador que
antecedeu o ultraísmo
10
e a vanguarda em muitas características. “Alcançou grande
maestria na depuração extremada da linguagem crioula. Impressionismo e
Expressionismo alternam-se em sua prosa artisticamente depurada que recolheu a
lição surrealista” (JOSEF, 1971, p. 173). Ela afirma que, ao estilizar a realidade em
Dom Segundo, Güiraldes se afastou da objetividade realista.
Güiraldes, por sua vez, sempre negou pertencer a determinada escola ou
tendência literária.
O que ele almejava era concretizar seu desejo de representar em literatura a
identidade dele próprio e de sua gente. Aspirava a uma cultura argentina
independente da Europa e não nacional, mas composta pela de todos os paises
hispano-americanos. Pautado neste ideal procurou fomentar a referida idéia na
revista Proa. No primeiro número da revista afirmava-se:
Proa surge en un medio de florecimiento insólito. Jamás nuestro país ha
vivido tan intensamente como ahora la vida del espíritu. La alta cultura que
hasta hoy había sido patrimonio exclusivo de Europa, de los pocos
americanos que habían bebido en ella, empieza a trasuntarse en forma
milagrosa, como producto esencial de nuestra civilización (GÜIRALDES
apud SAZ, 1975, p. 127).
Em carta a Larbaud, seu amigo pessoal, na qual contava porque havia
decidido cancelar uma viagem que preparara para Paris, em junho de 1921,
expressa:
El motivo principal de mi permanencia aquí es la necesidad de ponerme en
contacto con las cosas que pueden servir de base a mi obra literaria. Me
parece que hay tanto que decir en este país que me desespera no ser un
hombre orquestra, capaz de desentrañar el aspecto poético, filosófico,
musical y pictórico de una raza inexpresada (GÜIRALDES apud SAZ, 1975,
p. 126).
Por ter nascido em 1886 e se integrado ao projeto literário que desejava
representar a cultura hispano-americana, Güiraldes é apontado como um dos
9
Tendência ou gênero literário que se caracteriza por recolher e retratar os costumes e tipos
característicos de uma determinada região ou época. Historicamente, surgiu na metade do século
XIX, tendo se situado entre o Romantismo e o Realismo.
10
Movimento poético promulgado em 1918 e que durante alguns anos agrupou os poetas espanhóis
e hispano-americanos que, mantendo cada um seus particulares ideais estéticos, coincidiam em
sentir a urgência de uma renovação radical do espírito e da técnica.
44
representantes do Mundonovismo. Esta expressão foi criada pelo chileno Francisco
Contreras para denominar a norma que caracterizou a geração de escritores
hispano-americanos de 1912 formada pelos nascidos entre 1875 e 1889.
Tal norma que regia o Mundonovismo, afirma Cedomil Goic (1975), ao
escrever sua Historia de la novela hispanoamericana, fundamentava-se na opção
pelo nacionalismo e seu compromisso com a expressão original da terra e sua
cultura. O aspecto dominante dentro desse movimento das letras é a representação
cíclica da vida dos países com o intuito de registrar suas particularidades típicas até
integrar uma vasta imagem da totalidade.
Dom Segundo Sombra é considerada uma das três obras fundamentais
dentro da geração dos mundonovistas; as outras são os romances La vorágine
(1924), do colombiano José Eustásio Rivera (1888-1928) e Doña Bárbara (1929), do
venezuelano Rômulo Gallegos (1884-1969).
A ambição dos escritores pertencentes ao Mundonovismo era
definir la realidad propia con apego a la visión del mundo y del hombre
como naturaleza y a la representación de los rasgos míticos que alcanza la
vida colectiva en América y puede sorprenderse en las entrañables
relaciones de hombre y mundo ( GOIC, 1975, p. 152).
Segundo Contreras, relata Goic (1975), este movimento das letras, depois de
assimilar as “verdadeiras conquistas do Modernismo”, tinha como aspiração criar
uma literatura “autônoma e genuína”, buscando instintivamente sua inspiração no
“nosso tesouro tradicional e característico”, ou seja, nas riquezas próprias com a
finalidade de refletir “as grandes sugestões da terra, da raça e do ambiente”.
Nas grandes obras inseridas dentro da nova visão, adquire relevo
la mitificación de la naturaleza y de las grandes figuras representativas en
una configuración excepcional de lo grotesco, las narraciones folklóricas y
primitivas, las danzas y cantares, las supersticiones y hábitos tradicionales y
característicos (GOIC, 1975, p. 153).
Goic (1975) explica porque Dom Segundo Sombra é considerada a obra mais
notável dentro do Mundonovismo argentino: por exaltar o vernáculo, o que se liga
essencialmente a terra e à peculiaridade da natureza do pampa, condicionando as
relações entre homem e mundo.
Outros aspectos permeiam freqüentemente o conjunto da criação güiraldiana,
entre eles a subjetividade e a religiosidade.
45
No que se refere à presença da subjetividade, costuma-se classificar sua obra
como autobiográfica ou com pendores autobiográficos, que o itinerário de sua
ficção é considerado semelhante ao de sua vida, conforme descrição de Galaos:
Su itinerario podría condensarse así: la Pampa, seguida del inevitable Paris;
el Pacífico y las Antillas le suceden, iniciado ya el retorno a su tierra;
termina con lo que se ha denominado “la vuelta del gaucho pródigo”,
culminación de su obra y de su vida, la pampa de nuevo y para siempre en
su imperecedero personaje Don Segundo Sombra (GALAOS, 1964, p. 215).
Essa trajetória pode ser percebida em Raucho, Xaimaca e Dom Segundo
Sombra. O jovem Güiraldes percorre o mundo e vem encontrar sua realização nos
valores emanados do pampa e da alma de seu principal personagem.
Para exemplificar essa possível cogitação, de que o autor Güiraldes aparece
quase sempre inserido em sua obra, pode ser referida Xaimaca. Este romance trata
de recordações de viagens e aventuras pelas Antilhas, jornada igualmente feita pelo
autor anteriormente à escritura da obra.
A preocupação com a morte e a presença do aspecto religioso é também
freqüente no conjunto de sua produção literária. Ele se interessava pelo
espiritualismo hindu e suas leituras teosóficas influenciaram o conteúdo e a forma de
seus escritos. Em seus últimos anos de vida, as preocupações religiosas de
Güiraldes se intensificaram. Faleceu rodeado de centenas de livros de misticismo,
das mais variadas religiões.
No que concerne à temática do conjunto de suas obras, Josef (1971, p. 183)
observa que se pode afirmar que Güiraldes privilegiou a vida “numa dupla orientação
terrestre e supra-terrestre, na tentativa de abarcar a natureza material e espiritual do
universo e a unidade cósmica dos seres e das coisas”.
Como autor, até a publicação de Dom Segundo Sombra, Güiraldes, enfrentou
uma má fortuna crítica daqueles que na época regiam a atividade literária nos países
do Prata. Em carta a Valéry Larbaud, datada de 5 de julho de 1924, desabafa:
Mi situación, o mejor dicho mi no situación literaria sigue aquí lo mismo.
Mando mis libros a Lugones, Rojas, Quiroga , etc... pongo en cada envío
una dedicatoria diciendo a cada cual el bien que de ellos pienso. De Rojas y
Lugones no recibo ni una línea de respuesta, ni los libros que publican.
Quiroga es más gentil pero tampoco se compromete con un juicio pues si yo
le dedico Xaimaca como a “nuestro admirable cuentista” él me responde
como “viejo compañero”. Esto es como decía un chistoso, estar a media
correspondencia: yo le escribo y ella no me contesta. Lugones me ha dicho
oralmente que no publica un artículo sobre Xaimaca porque tendría que
ponerle sus “cortapisas” y no quiere hacerlo. Yo nada le he pedido por
supuesto y creo que lo de “cortapisas” es tan aplicable a su propia obra que
no debería tirar así la primera piedra (GÜIRALDES apud BLASI, 1986,
p.30).
46
Mesmo afetado pela crítica, chegando ao extremo de lançar no poço de La
Porteñaquase todos os exemplares de seus dois primeiros livros, Güiraldes não se
afastou do ideal estético no qual acreditava:
En arte hay dos actitudes: la de mirar al público y hacer las piruetas de
histrión necesarias para que los espectadores le arrojen moneditas de su
simpatía (gloria mundana) y la de encararse con el misterio inexpugnable
del arte mismo, siempre capaz de ennoblecer con su perenne juventud a
los que se dan de cuerpo y alma (GÜIRALDES apud LARRAYA, 1962, p.
280).
A leitura da obra de Güiraldes confirma a sua opção pela segunda alternativa.
Independente da má crítica que recebia, produziu sua obra baseado em concepções
artísticas próprias. Acrescentou matizes peculiares ao gênero gauchesco, sendo
esta uma das razões que o imortalizou.
2.2.2 Obras anteriores a Dom Segundo Sombra
Ricardo Güiraldes trabalhou diferentes temas em seus romances, entre eles a
gauchesca presente na obra objeto desta dissertação.
As publicações que antecederam Dom Segundo Sombra apresentavam
alguns indícios do livro capital como: o registro depurado da linguagem crioula, a
intenção poética; o destaque para a forma de vida dos gaúchos: os usos, costumes,
forma de trabalho, cenas típicas da campanha, código de valores morais; culto ao
tradicional; simpatia pelo ambiente rural e rechaço ao contexto urbano; motivo da
viagem (em Raucho e Xaimaca); presença forte do pampa; personificação da
natureza e crítica à forma como é professada a religiosidade.
Alguns personagens também foram antecipados nas obras anteriores a Dom
Segundo, como o próprio Dom Segundo, que aparece no conto Al rescoldo
integrante do livro Cuentos de Muerte y de Sangre (1915). Outros são o patrão Don
Rufino, o personagem Nuñez, o capataz Victor Taboada, o domador Ramón
Cisneros e José Hernández e seu filho.
2.2.2.1 El cencerro de cristal (1915)
Este livro de poemas é considerado a obra mais afrancesada de Güiraldes e o
precursor do vanguardismo argentino, que se imporia uma década depois na
47
literatura do país. Antecipou em muitos de seus jogos poéticos o que mais tarde se
denominou creacionismoe ultraísmo”. É uma espécie de exercício literário que o
poeta tentava:
Huir lo viejo
Mirar el hilo que corta un agua espumosa y pesada
Arrancarse de lo conocido
Beber lo que viene
Tener alma de proa (GÜIRALDES apud PARKINSON, 1986, p. 40).
Nesta coleção lírica, destaca-se o espírito místico do autor que tornou uma
religião o culto ao tradicional, característica que perdurará em toda sua obra.
Em El cencerro de cristal, que apareceu simultaneamente com Cuentos de
muerte y de sangre em 1915, o poema Al hombre que paanuncia, em figura e
símbolo, o perdurador motivo de Dom Segundo:
[...]
pero hoy el gaucho, vencido
galopando, hacia el olvido
se perdió.
Su triste ánima en pena
se fue, una noche serena,
y en la Cruz del Sur, clavado,
como despojo sagrado
lo he visto yo (GÜIRALDES apud LARRAYA, 1962, p. 280).
2.2.2.2 Cuentos de muerte y de sangre (1915)
Este livro consiste em uma rie de relatos nos quais fica refletido o profundo
conhecimento de Güiraldes sobre o idioma nacional. O autor escreveu os contos
desejando manifestar seu carinho pelas coisas simples do folclore argentino.
Em carta a Valéry Larbaud, o autor comenta o objetivo estético dessa obra:
En Cuentos de muerte y de sangre traté de plegar mi estilo a las virtudes
del hablar gaucho que me parecían esenciales. Así traté de forzar la
síntesis hasta conseguir violencia. De haberme puesto entonces el título de
un ismo me hubiese llamado esencialista. Siéndome habitual fijar en tarjetas
mis propósitos, como para que no se me escaparan, apunté: Quisiera que
mi prosa fuera extractada, brava, fuerte; lo que más me gusta de la mano es
su capacidad de convertirse en puño (GÜIRALDES apud LARRAYA, 1962,
p. 277).
Verifica-se nesta obra a antecipação de tipos que, mais tarde, aparecerão no
livro principal, como o patrão Don Rufino, o trançador Nuñez e principalmente Dom
Segundo no conto Al rescoldo”, a quem Silvério incita para que conte algo
48
engraçado da mesma maneira que empregará Perico no capítulo XII de Dom
Segundo Sombra.
A simplista do povo, a ignorância e a superstição também são criticadas
pelo autor que as considera como as causas que realmente matam os homens do
povo de seu país. Um dos contos, El pozo”, relata a história de um paisano que
dorme na borda de um poço e pela noite resvala e cai dentro. Com muito esforço
consegue subir até a borda. sem forças e moribundo, avista a figura de um
gaúcho e tenta chamá-lo. Este, assustado pelo aspecto do paisano, crê que é uma
aparição do diabo e depois de se benzer, atira uma pedra na testa do pobre homem,
fazendo-o cair outra vez no poço, e levando-o à morte. As últimas palavras do conto
são cheias de ironia: “Ahora todo el pago conoce el pozo maldito, y sobre su brocal,
desdentado por los años de abandono, una cruz de madera semipodrida defiende a
los cristianos contra las apariciones del malo” (GÜIRALDES apud PARKINSON,
1986, p. 40)
2.2.2.3 Raucho (1917)
É um romance autobiográfico, naturalista em grande parte, e a mais sensual
de suas obras, na qual ocorre o enfrentamento do jovem argentino com o europeu.
No protagonista de Raucho vemos a mesma conformação de Güiraldes, farto
de Buenos Aires, farto da Paris, com simpatia pelo campo. Começou, segundo
confessa o autor, como uma autobiografia de um “eu diminuído” e provavelmente é o
fiel reflexo de certas experiências do escritor quando era jovem. Mais tarde
confessaria:
Los vicios nada aportan, fuera de un frenesí barato que luego, muy luego,
naufraga en cansancio.No rabio casi y en el fondo soy indiferente a la mayor
parte de los pequeños caprichos y placeres mundanos. La vanidad tampoco
me parece ser un enemigo terrible. En cambio mi sensualismo lo es. He
vivido demasiado sobre mis sentidos y sobre mis pasiones sexuales para
poderme descargar de ellas en un solo golpe de hombro. Pero eso vendrá
(GÜIRALDES apud PARKINSON, 1986, p. 43).
Esta idéia pode ser encontrada no ensaio “Don Segundo Sombra” y el
retorno, de Antonio Pagés Larraya (1962). Ele diz que Raucho é um personagem
essencialmente argentino, um “hijo del país inconfundível, um criollo autêntico,
cujos pais tiveram fortuna. Trata-se da história de um menino que após perder a
mãe, se inicia na vida livre do campo. Güiraldes o apresenta desde sua infância
49
campeira e vulgar até suas andanças em Paris, que marcam o cume da degradação.
E entre sua entrada na vida desprevenido e ingênuo e o adeus do último capítulo, o
faz viver cenas de um realismo admirável cheias de verdade, de colorido e de
emoção. Raucho, arrastado por uma vida de irresponsabilidade, se satura de Paris,
de Montecarlo, de ócio, amantes, jogo e álcool, degenera-se moral e psiquicamente,
até chegar à borda da loucura. Após um tratamento em um hospital, regressa a seu
pampa, maternal e acolhedor, recupera sua saúde física e mental e inicia uma nova
vida: “Raucho, inefablemente quieto, se duerme de espaldas, los brazos abiertos,
crucificado de calma sobre su tierra de siempre” (GÜIRALDES, 1986, p. 43)
Ao final, expõe Larraya (1962), alcança o romance uma profunda tensão
metafísica, quando o protagonista expressa seu drama, que foi o drama de toda uma
geração hispano-americana. Raucho pensa como quis ser tudo menos o que era. A
volta à mansa companhia da terra é segura cópia de uma volta do próprio Güiraldes,
Diante dessas idéias, evidencia-se o culto ao tradicional iniciado em Cencerro de
cristal, e que permeia a obra de Güiraldes, em especial em Dom Segundo Sombra.
Outra técnica usada em Raucho é a personificação da natureza, característica
do romantismo, conforme se pode observar no fragmento A lo lejos, um ladrido se
aislaba y silenciaba la vida, como oprimida por el derrumbe negro del anochecer”
(GÜIRALDES apud SAZ, 1975, p.123). Esta técnica será constante em Dom
Segundo Sombra.
O motivo da viagem, que aparecerá também em Xaimaca e em Dom Segundo
Sombra, está presente nesta obra, visto que a história de Raucho nada mais é que
uma penosa travessia que se inicia e termina no pampa.
Segundo Eduardo Romano (1975), autor do ensaio Camino de Don Segundo,
como em Cuentos de muerte e de sangre, em Raucho, outras figuras que
aparecerão em Dom Segundo foram antecipadas, desta vez, em maior número: o
capataz Víctor Taboada, o domador Ramón Cisneros; José Hernández e seu filho.
Também a presença forte do pampa, os ciclos inflexíveis da natureza, o rude
trabalho campeiro, as cenas típicas como o arreio, o apreço aos animais que lhe
servem e o desprezo pelos daninhos, como os caranguejos, que vivem na
“escravidão reprodutora”.
50
2.2.2.4 Rosaura (publicada como Un idílio de estación pela primeira vez em 1918 e
depois como Rosaura em 1922)
Rosaura é considerada uma historia sentimental simples, melancólica, de uns
amores interioranos.
Exemplar de romance romântico, um pequeno livro sem mais transcendência,
observa Imbert (1985). No entanto, destaca este historiador, a unidade construtiva e
a unidade emocional em Rosaura são muito mais visíveis que em todo resto da obra
de Güiraldes. Bastante presente também a influência de Laforgue na linguagem
poética, metafórica, impressionista, irônica na expressão da ternura.
Este romance conta a história de uma moça do interior que se atira nos
trilhos do trem, símbolo da civilização e progresso da época, por um desengano
amoroso. O que contribui para a tragédia da personagem Rosaura, entretanto, é a
“moral de solteirona”, dentro da qual ela deve moldar-se e que predomina em Lobos.
A moral da gente de Lobos é estreita e cheia de preconceitos. Esta é a mesma
moralidade hipócrita que Güiraldes condenará mais adiante ao princípio de Dom
Segundo Sombra, antes que o personagem protagonista Fabio abandone o
povoado. A preocupação das tias de Fabio é com as aparências do exercício da
religião, razão pela qual levam o menino à missa e insistem que apreenda o rosário.
2.2.2.5 Xaimaca (1923)
Xaimaca pertence a um gênero intermediário entre ficção e poema puro, é
conhecido por ser um romance poemático. Güiraldes iniciou sua carreira de escritor
escrevendo versos e essa atitude marcou suas obras posteriores. Admirava o
poema em prosa dos franceses como Baudelaire, Flaubert e Bertrand.
Para José Antonio Galaos (1964), autor de Sobre la trayectoria espiritual de
Ricardo Güiraldes, é uma obra de intenso lirismo, sustentada por dois temas
fundamentais: amor e natureza. Este livro pode ser relacionado com o diário de um
poeta recém casado. Como Raucho, é breve. Contudo, não são os quadros de
viagem nem a intriga amorosa o que ele apresenta, mas sim a plena sensação vital
que pulsa no relato composto com arte que recorda alguns dos romancistas
franceses últimos: arte de seleção, o distanciada do meticuloso catalogar
naturalista como da atitude submissa dos românticos. Este romance não é um
51
romance com uma trama amorosa. Paisagem e amor estão subordinados a
Guiraldes como autor. Profundamente egocêntrico, todo o livro é um mero pretexto
para expandir seu lirismo às vezes, seu eu pessoal sempre, opina Galaos (1964,
p.219).
Escrito na França, entre seus amigos europeus, Xaimaca está baseado em
umas notas de Güiraldes durante uma viagem que fez com sua mulher e o casal
Alfredo González Garaño, em 1916-1917, compreendendo o percurso desde Buenos
Aires, seguido do pampa argentino, Chile, Pacífico, Canal de Panamá aa poética
Jamaica:
Ya veo lo que es Jamaica. Placer del habitante no nos vendrá ninguno, a no
ser el de su alegría infantil. Para la India, China y Egipto queda el privilegio
de asombrarnos con los poemas de sus grandes religiones. Aquí el
poblador primitivo ha desaparecido sin dejar huella interesante. Todo el
encanto está en la tierra misma (GÜIRALDES apud GALAOS, 1964, p.
219).
A trama é simples. São três personagens - Marcos Galván, Clara de Ordóñez
(mulher casada com quem Marcos se envolve em um romance) e seu irmão,
Peñalva - que fazem juntos uma viagem que Marcos prolonga até a Jamaica, a
pedido de Peñalva.
Em Xaimaca, Güiraldes expressa o desejo de buscar a eternidade e,
conseqüentemente a Deus, não através da religião, mas sim mediante a paixão
amorosa, caminho eleito por Marcos e Clara:
Mientras callamos, crece mi exaltación, si es que puedo llamar así al estado
de sereno éxtasis que me enajena. Tengo de pronto la certeza de que el
infinito está presente. Lo veo y abrazo en mí, con una facultad momentánea
más fuerte que toda razón. definitivamente lo que es. A pesar del
desenlace forzoso de mi vida, comprendo que he vencido la muerte y el
tiempo en ese instante en que, fuera de mi limitación individual, unido con
Clara, he sido el amor mismo en todo su poder abstracto, que rige el
universo nacido de su serenidad (GÜIRALDES apud GALAOS, 1964, p.
44).
O motivo da viagem presente nesta obra reapareceu posteriormente em Dom
Segundo Sombra, onde Fabio e Dom Segundo deslocam-se por diferentes lugares
do pampa.
A personificação da natureza, freqüente em Dom Segundo, em Xaimaca pode
ser observada em passagens como “La noche se enfría sobre los hombros
escotados de Clara” (GÜIRALDES apud SAZ, 1975, p.123).
Após estas obras, a próxima publicação de Güiraldes foi Dom Segundo
Sombra, em 1926, foco desta dissertação.
3 A OBRA DOM SEGUNDO SOMBRA
3.1 Resumo
Escrito em primeira pessoa, na forma de memórias, trata-se da história de
Fabio Cáceres, narrador e protagonista, que relata sua vida desde a condição de
bastardo a a de rico estancieiro, conduzido sob a maestria e proteção de Dom
Segundo Sombra.
Fabio é um menino que não conheceu o pai. Viveu seus primeiros anos com a
mãe, de quem foi afastado com a desculpa de cursar o colégio. Desse modo, passou
a morar com as tias solteironas, Asunción e Mercedes, em um povoado da província
de Buenos Aires. Tendo sua educação negligenciada pelas tias, quando o romance
começa, o leitor encontra-o justamente a vagar pelas ruas do lugar, servindo de
distração a alguns habitantes que o utilizavam como instrumento de suas picardias.
Para conseguir alguns centavos, guloseimas ou cigarros, pescava e vendia
pequenos bagres no comércio.
Certo dia conheceu Dom Segundo Sombra, gaúcho solitário que vivia
itinerante realizando trabalhos de estância em estância e, fascinado pela figura, foge
de casa e passa a acompanhá-lo em suas andanças pela imensidão das planícies
argentinas, com o intuito de viver em liberdade e converter-se em um verdadeiro
homem do pampa, atitude que o afasta do provável destino de marginal.
A partir daí, durante cinco anos, Fabio é ensinado por Dom Segundo,
exemplo de honradez e de boa conduta, a ser um gaúcho de verdade, através do
exercício nas duras tarefas de tropeiro e de peão.
53
Enquanto descreve essas peripécias pelo pampa em companhia de Dom
Segundo, o narrador apresenta aos leitores sucessivas estampas da vida campeira
como domas, arreios, rinhas de galos, carreiras, bailes, rodeios, superstições, contos
tradicionais, duelos, feiras comerciais, bem como oferece um mostruário da
paisagem e da forma de vida no povoado, nas estâncias, no descampado e no
agreste da zona litorânea, tudo com o objetivo de registrá-las, que alguns
aspectos tendem a desaparecer devido à marcha das transformações que
tamborilam a vida dos indivíduos da zona rural argentina.
Estas descrições são interrompidas quando, certo dia, o tropeirinho
retornando ao seu povoado recebe uma carta que revela sua paternidade e lhe
concede nome e herança. De posse de ricas e extensas propriedades, a princípio
tutelado por Dom Leandro Galván, vai tornando-se homem culto, viajado e com
vocação para escritor.
A história termina com a partida de Dom Segundo que, tendo permanecido
com Fabio na estância durante três anos, resolve abandoná-lo. De natureza errante,
incapaz de fixar-se em um determinado lugar, despede-se de seu afilhado para
seguir seu destino itinerante. Fabio, desta vez, não o acompanha, preferindo
dedicar-se aos negócios. Desse modo, separa-se daquele que lhe ensinara a vida
de gaúcho.
3.2 Narrador
O romance Dom Segundo Sombra é narrado em primeira pessoa pelo
personagem culto em que se transformou o protagonista Fabio. Através da narrativa,
ele verbaliza sua experiência sensorial e emotiva. Embora protagonista e narrador
sejam a mesma entidade, neste livro dois pontos de vista preponderantes que se
alternam: o de um Fabio que é protagonista e o de um Fabio que relembra a
experiência.
O protagonista provém da vivência diária e relata em primeira pessoa os fatos
no momento de sua construção. No plano temporal privilegia o presente, no
fraseológico a linguagem popular, e no espacial narra de dentro do mundo das
ações. O memorialista se situa no plano da enunciação. É um narrador ideológico ou
avaliador, entendido o termo como um sistema geral para conceituar o universo
54
narrado. Expressando-se também em primeira pessoa, este núcleo narrativo
privilegia o uso do pretérito.
O que diferencia as instâncias é o tipo de linguagem empregada, que permite
distinguir entre a distância temporal frente à experiência narrada e o grau de
conhecimento de cada um. Desta forma, afirma Reynaldo L. Jiménez (1986), em seu
ensaio Don Segundo: razón y signo de una forma narrativa, “tenemos un
protagonista que participa y un narrador que ha participado, un Fabio inmaduro y un
Fabio maduro, un iniciado y un iniciador, un aprendiz de la verdad relativa y un
poseedor de la verdad absoluta” (JIMÈNEZ, 1986, p. 81).
3.3 Estrutura do romance
Dividido em 27 capítulos, a narrativa abarca as recordações da infância e da
adolescência de Fabio até alcançar a idade de adulto. A vida narrada engloba
aproximadamente vinte e dois anos, distribuídos em três etapas: a primeira
compreende o capítulo I, a segunda, os capítulos II a XXVI e a terceira, o último
capítulo, o XXVII.
A primeira etapa sintetiza os seis ou oito anos do narrador junto a sua mãe,
cujo transcurso de vida é apenas mencionado como coisa do passado; seguem-se
três anos de colégio e junto às tias; um ano de travessuras; outro ano em que Dom
Fabio Cáceres, pai biológico cuja identidade o protagonista conhecerá no final do
romance, apresentando-se como seu protetor, lhe atenção e logo se esquece
dele. No total, na primeira etapa, são catorze anos da infância de Fabio
concentrados no capítulo I do romance.
A segunda etapa, compreendida entre os capítulos II e XXVI narra cinco anos
de andanças pelo pampa argentino e pelas terras costeiras, bem como a passagem
da vida de tropeiro e peão para a de rico estancieiro. Relativamente aos últimos
sucessos, nos capítulos XXV e XXVI, o tempo se concentra em três dias.
A terceira e última etapa, encerrada no capitulo XXVII, o final, resume três
anos na nova condição de patrão de estância até a despedida de Dom Segundo.
As citadas etapas são divididas de forma assimétrica pelo próprio narrador
que, no capítulo XXVII, determina três momentos dominantes na reflexão sobre sua
vida. O primeiro momento é quando, à beira de um arroio, recorda sua infância; o
55
segundo, quando às margens de um rio recorda suas andanças gaúchas e o
terceiro, quando adulto, como patrão de estância, recorda toda sua vida diante de
uma lagoa nas propriedades que herdara.
3.4 Apresentação de personagens
Eduardo Romano (1975), em Camino de Don Segundo, distribui os
personagens que povoam a ficção da principal obra de Güiraldes de acordo com sua
importância em relação a Fabio, protagonista e personagem-narrador, em cinco
diferentes grupos: protagonistas, secundários, episódicos, instantâneos e
decorativos.
No primeiro grupo estão aqueles que assumem um papel de parente dentro
da postiça família de Fabio, já que ele até o início do desfecho do romance é
considerado como órfão. Movendo-se em torno de Fabio, órfão travesso que se
converte em gaúcho através dos ensinamentos de Dom Segundo e do convívio com
o pampa, os personagens protagônicos que compõem o primeiro grupo têm a
função de proteger Fabio no andamento da história. Exercem o papel de pais como
Dom Segundo Sombra, Dom Fabio Cáceres, Valério, Dom Juan e Dom Galván; de
cunhado, como Patrocínio e de irmãos como Goyo, Horacio, Pedro Barrales, Antenor
e Raucho.
Nessas relações que os personagens estabelecem entre si, Dom Segundo
Sombra, gaúcho platino depositário de todas as virtudes, torna-se padrinho e mestre
de Fabio, acompanhando seu aprendiz nas três fases de sua vida. No último
segmento do romance, o papel de pai ou Tata (termo carinhoso para designar
papai em espanhol) - é com satisfação reconhecido por Fabio, no final do episódio
onde é censurado por Dom Segundo devido à ofensa dirigida a Pedro Barrales:
Compreendi que uma resistência de minha parte encontrar-se-ia com uma
sova e alegrei-me de um modo que talvez outros não teríam compreendido.
Para Dom Segundo eu continuava sendo o mesmo guachinho, e quis
significar-lhe minha gratidão:
- Está bem “tata”.
- Se sou teu “tata”, vai pedir desculpas a este homem que agravaste
(GÜIRALDES, 1997, p. 222 – 223).
A proteção paternal também emana de Dom Fabio Cáceres, que cumpre o
papel de pai biológico, deixa-lhe o nome e o torna rico em propriedades e de Valerio,
56
índio forte, calado e simpático, domador da estância de Galván que o auxilia sem
cessar durante a primeira gineteada. Quando, na tentativa fracassada de domar um
potrilho, Fabio cai violentamente, Valério, ao contrário de outros que se divertem
com o ocorrido, apressa-se em socorrê-lo: “-Te machucaste? perguntou-me
Valério, que não se apartara de meu lado durante minha má gineteada” (Ibid., p. 63).
E quando Fabio insiste em seguir com a doma, Valério o impede para mais
uma vez protegê-lo: “- Deixe para amanhã ordenou sem brincadeiras Valério.
Olhe que temos de andar e o trabalho não é diversão” (Ibid., p. 63).
Dom Juan, outro personagem com função de pai, integrante do círculo
protetor do adolescente, é um patrão de estância considerado bondoso, que oferece
a Fabio emprego estável de domador. Ao saber que Fabio não possuía pais ou
qualquer família, Dom Juan manifestou que essa era uma boa razão para que
ficasse na estância, sob sua proteção:
- Como se chama ? – perguntou-me o patrão.- Quisera saber, senhor. [...]
- Não sabe de onde vem, tampouco? [...]
- De modo que nem seus pais saberás nomear?
- Pais? Não sou filho mais que do rigor; fora desta casta não tenho
nenhuma; nos meus pagos alguns me chamavam “o Guacho”.
O patrão puxou os bigodes, depois olhou-me de frente. Nunca ninguém me
olhara tão de frente, nem tão por partes.[...]
- Razão a mais – disse-me – para que fiques comigo (Ibid., p. 201- 202).
O velho domador da estância, que nela havia trabalhado toda a sua vida,
aconselha Fabio a aceitar a proposta, pois sendo o patrão generoso, poderá
desfrutar de uma vida mais tranqüila que a de tropeiro.
Dom Leandro Galván, nomeado tutor de Fabio por Dom Fabio Cáceres,
também tem a função de zelar pelo guachito como se fosse seu pai, devendo
orientá-lo até a maioridade na administração de suas posses.
Na função de cunhado aparece Patrocínio Salvatierra, companheiro de
rodeio, moço que se intitula neste grau de parentesco devido ao interesse de Fabio
por Paula, sua irmã. É outro protagonista que, assumindo um papel familiar, presta
auxílio a Fabio, amparando-o após ele ser ferido por um touro:
- Patrocínio!
- Deixe estar no mais e não se mova.[...].
- Que tenho?
- Quebrou-se a clavícula e pisou a cabeça. Parece que as costelas também
estão machucadas. [...]
Estava em uma ampla peça de rancho, deitado num catre. Patrocinio,
sentado em um banquinho baixo, espiava-me de vez em quando (Ibid., p.153
- 154).
57
No papel de irmão, Goyo pez é um caráter discreto, empregado na estância
de Galván. Conhecido de Fabio desde o povoado, tratado por este de hermanito,
Goyo demonstra amizade e dispensa proteção ao recebê-lo e ao ajudá-lo a iniciar
seu primeiro trabalho. Apesar de conhecer suas picardias no povoado, Goyo guarda
segredo e procura ambientar Fabio entre os outros companheiros:
Não posso dizer a minha alegria quando na mesa flanqueada por vinte
homens, tomei lugar entre Goyo e um gringote velho, que tratava da quinta.
- Cozinheiro, disse Goyo -, passe-lhe um prato e uma colher ao novo
mensalista (Ibid., p. 34).
Horacio, também intitulado hermanito, é um peão amigo que lhe presta auxílio
para comprar um potro na chácara de Cuevas, na sua preparação para a primeira
tropeada, além de facilitar sua entrada na nova forma de vida gaúcha pelo pampa:
- Sabes irmão?
- Quê?
- Que me vou com a tropa!
- Que sorte pra estância! – exclamou Horácio [...] (Ibid., p. 47).
Outro amigo que assume a posição de irmão é o personagem Pedro Barrales,
peão da estância de Galván. Ele ajudou Fabio em sua primeira tropeada.
Companheiro de baile, é mais um que lhe dispensa boa acolhida e a cordialidade,
traços centrais no desenvolvimento da formação moral e aprendizado
experimentados pelo protagonista.
A galeria de hermanitos se completa com dois personagens mais: Antenor e
Raucho.
Antenor, peão de agilidade e força extraordinárias, é amigo e confidente de
Fabio. Os dois consideram-se irmãos:
Entrementes, nas casas, tinha feito um amigo... Antenor Barragán [...]
Fazia-me contar minhas andanças de vagabundo, nas quais encontrava
gosto para suas fantasias, relatando-me em troca suas façanhas nunca mal
intencionadas. [...] Aos poucos dias nos tuteávamos, tratando-nos por
irmão (Ibid., p. 204).
Raucho, também com função protetora de irmão, é filho de Dom Leandro
Galván. Acostumado às lidas do campo é classificado como cajetilla agauchao,
expressão que em português significa almofadinha agauchado. Exerce proteção,
ajudando Fabio a iniciar-se em sua nova vida de estancieiro. Referindo-se a Raucho,
Fábio confessa: “falava-lhe confiando fraternalmente, como não o teria feito com
nenhum outro rico” (Ibid., p. 231).
58
No grupo dos personagens secundários, Romano (1975) insere aqueles que
em algum momento dedicam atenção preferencial ao protagonista-narrador, como
os velhacos do povoado que o utilizam para suas maldades; o menino de doze anos
que lhe confere admiração; Dom Candelario que o recebe de forma hospitaleira;
Numa, com quem Fabio duela enciumado de Paula e a velhinha curandeira que
atende seus ferimentos após a luta com o touro.
O terceiro grupo, o dos episódicos, engloba personagens como o cabo e o
comissário, Dom Sixto Gaitán, o bolicheiro e o forasteiro que procurava vingança e,
o quarto grupo, o dos personagens instantâneos, aqueles de silhueta efêmera, como
a cozinheira Remigio e o médico. Enfim, no último grupo, concentram-se os
personagens decorativos, exemplificados por Feliciano Gómez, Fabián Luna, el
bastonero, Dona Encarnación no baile; o rematador, os ingleses do frigorífico, os
invernadores, os açougueiros – na feira; Dona Ubaldina e as três mulheres magras –
no rancho; o gringo, a mulher das tortas, o menino pedinte, o velho rifador; o
bêbado, os tropeiros amigos de Dom Segundo; o homem desconfiado, o barrigudo,
a gente rica – nas carreiras.
Todos compõem rica galeria com diferentes funções. Os dominantes
concorrem para fixar a ação entre a cultura gauchesca.
3.5 Acolhida
Quando Dom Segundo Sombra foi publicado, em 1926, houve aplausos da
totalidade da crítica literária do mundo hispânico. No mesmo ano em que a obra veio
à luz, foram esgotadas duas edições, o que significou, na época, imenso êxito de
público. Atualmente, o livro já foi editado inúmeras vezes em diversos países.
A boa fortuna crítica, que foi unânime nos primeiros anos, foi liderada por
Jorge Luís Borges, Leopoldo Lugones e Leopoldo Marechal.
Borges (apud BERLANGA, 2002) elogiou o livro de Güiraldes, registrando que
o autor havia dado outra significação à imagem do gaúcho que, até esse momento
era brutal. Lugones enalteceu a obra de seu contemporâneo, comparando o gaúcho
de Güiraldes ao clássico de Hernández: “Don Segundo Sombra, como Martín Fierro,
es el gaucho mismo. Representa en prosa lo que aquel otro en verso: una vida
viviente. ¡Esto sí que es cosa nuestra y nadie más...!” (LUGONES apud ALCALÁ,
1979, p. 213).
59
Marechal (apud BERLANGA, 2002), por sua vez, manifestou que lhe parecia
a obra mais honrada que se havia escrito até aquele momento pelo crioulismo.
Ressaltou que o autor desterrara o tipo de gaúcho inepto, sanguinário e viciado que
louvou uma má literatura popular.
Através dessas exemplificações de crítica favorável que circundou o
aparecimento da obra nos seus primeiros anos, pode-se inferir o alto grau de
sentimento nacional que emanava de Dom Segundo Sombra e a excelente
receptividade da crítica e dos leitores, que rapidamente a reconheceram como uma
obra representante da genuína argentinidade.
As inúmeras interpretações e enfoques que se seguiram à crítica inicial, tendo
sido a obra objeto de livros inteiros, reforçam o interesse e a popularidade que esta
produção tem despertado até os dias de hoje.
De acordo com Larraya (1962), um ano antes de sua publicação, Jorge Luis
Borges, escrevendo na revista Martín Fierro, de agosto de 1925, a qual fundara junto
com Güïraldes, havia intuído sua glória, expressando que Dom Segundo seria um
herói imortal.
O êxito de Dom Segundo Sombra parte do fato de que Güiraldes, o autor, era
um intelectual atento às modificações que se operavam em sua terra natal.
Percebeu que não o campo estava em crise, como também a identidade do
homem argentino. Por essa razão, buscou na idiossincrasia do gaúcho e no pampa
os valores capazes de fazer ressurgir um mundo que se extinguia e apresentou-os
ao seu país concretizados na figura de Dom Segundo Sombra. Sua criação veio ao
encontro do que buscavam seus contemporâneos: a identificação com um símbolo
que representasse o ideal do povo genuinamente argentino.
Para Jacques Joset (1987) Güiraldes, consciente da morte definitiva do tipo
conhecido como gaúcho na vida real, tratou de ressuscitá-lo para sempre,
metamorfoseando-o em um personagem mítico. Ressalta que, para que se creia no
mito, este deve ser fundamentado na realidade mais comum. Por essa razão é que o
autor utilizou-se de enorme documentação sobre a vida no pampa e de termos
técnicos de criação de gado e do trabalho no campo. Assim, além de criar um
personagem com o qual se identificou o gaúcho argentino, o sucesso de Dom
Segundo também se deve ao fato de que Güiraldes conseguiu universalizar um
personagem americano, feito que lhe abriu espaço não entre os grandes
60
prosadores do Prata como também entre os criadores do romance hispano-
americano moderno.
Além dos méritos literários e do sentimento nacionalista do leitor, Imbert
(1985) aponta outros fatores que contribuíram para a boa acolhida e o êxito de Dom
Segundo como a surpresa de reconhecer, dentro do gênero gauchesco, a linguagem
metafórica que estava em moda na literatura do pós-guerra, além do uso de uma
concepção de romance, que também era moda na época, segundo a qual o tom
poemático era mais importante que a ação e a caracterização.
No decorrer dos anos que se seguiram ao seu lançamento, alguns críticos
mudaram de tom. Referindo-se àqueles que criticaram a obra, Hugo Rodríguez
Alcalá (1973), autor de Narrativa hispanoamericana: Güiraldes, Carpentier, Roa
Bastos, Rulfo., considera que estes não souberam entendê-la, concentrando
excessiva atenção na figura do autor: “Se vio en ella más al señorito, al cajetilla, que
era su autor, y no lo que en ella mismo era como invención original y con un sentido
claro sólo a la luz que en ella brilla cuando se la mira atentamente en su totalidad“
(ALCALÁ, 1973, p. 7).
Os apelativos mencionados por Alcalá de senhorito e almofadinha
respectivamente foram utilizados devido à condição de Güiraldes como integrante
da classe alta do país (era um homem rico, filho de político, patrão de estância) e à
sua formação adquirida principalmente dentro dos moldes europeus (era um homem
culto, viajado, cosmopolita, educado nas últimas correntes literárias francesas).
Essas características, diante de uma obra tipicamente gauchesca, que defende e
exalta o tipo comum do campo, totalmente oposto à condição de seu autor,
influenciaram e foram usadas como argumento para fundamentar grande parte da
crítica negativa à sua obra.
O fato é que em meio ao alvoroço dos críticos, alheio aos comentários contra
ou a favor, Dom Segundo, depois de encarnado no coração dos argentinos, cruzou
fronteiras e seguiu seu destino em vários idiomas, conquistando sempre mais
leitores.
3.6 Fortuna crítica
61
Como se afirma, a obra de Güiraldes tem recebido variadas avaliações, desde
seu lançamento, em 1926: de um lado, encontram-se críticos que lhe atribuem
grande valor; do outro lado, aqueles que a rechaçam parcial ou completamente.
As razões de tão contrapostas críticas são assim aclaradas por Trinidad
Pérez, autor do prólogo e organizador da obra Recopilación de textos sobre tres
novelas ejemplares (1975): Güiraldes escreveu a obra Dom Segundo Sombra com a
intenção de glorificar a medida de um passado perdido e, por essa razão, idealizou
poeticamente seu personagem. A análise e a atribuição de valor a essa obra têm
suscitado diferentes e numerosas interpretações, apesar de sua aparente evidência
simbólica. Critérios em sua maioria baseados em apreciações às vezes de caráter
muito parcial proclamaram seu pleno reconhecimento ao romance, devido a sua
acertada realização poética, ou, pelo contrário, patentearam sua apaixonada
rejeição devido a algumas indeterminações de seu conteúdo social, desvirtuado e
diluído em um fundo de afetividades e dualidades paradoxas.
A crítica sobre a obra Dom Segundo Sombra tem se ocupado prioritariamente
dos seguintes aspectos, a saber: relação existente entre a realidade do campo
argentino e a realidade expressada na obra e relação da condição social do autor
com os sentimentos que expressa.
3.6.1 Relação entre a realidade do campo argentino e a realidade expressada na
obra
3.6.1.1 Referente ao personagem Dom Segundo Sombra
O personagem Dom Segundo Sombra recebeu inúmeras críticas: algumas
positivas, outras negativas. A diversidade das críticas que se contrariam ao julgar a
maior ou menor autenticidade dos gaúchos descritos parece ser esclarecida por
Borges, que observa:
[...] para casi todos nosotros, el gaucho es un objeto ideal, prototípico. De
ahí un dilema: si la figura que el autor nos propone se ajusta con rigor a ese
prototipo, la juzgamos trillada y convencional; si difiere nos sentimos
burlados y defraudados (BORGES, 1989, p. 180).
Dom Segundo Sombra, personagem epônimo da obra, teve sua composição
inspirada numa pessoa real, num homem simples, Dom Segundo Ramírez, que
morava nas redondezas da estância La Porteña”, da família de iraldes, na
62
localidade de San Antonio de Areco, na província de Buenos Aires. Seu ofício era de
tropeiro e bolicheiro.
O modelo adotado pelo autor para compor seu personagem não se calca,
pois, em um homem selvagem. Ao contrário, trata-se de um gaúcho civilizado assim
como civilizados são também os lugares por onde anda.
Uma das mais severas críticas que a obra tem recebido é acerca desse
personagem, Dom Segundo Sombra. Güiraldes é acusado por alguns críticos de dar
uma noção falsa do gaúcho argentino, ou ainda, arbitrária, desvirtuada, fictícia,
alheia à realidade. Tais críticos reclamam que Güiraldes criou uma imagem perfeita
do gaúcho, completamente dissociada da imagem real. Alegam que seu
personagem é forte, independente, enquanto que o tipo humano encontrado na
realidade era marginalizado, pobre, explorado e sofria sob o jugo da classe
estancieira.
Ciro Alegria (1975), em Notas sobre el personaje en la novela
hispanoamericana, critica veementemente o personagem Dom Segundo Sombra de
Güiraldes, definindo-o como “uma imagem arbitrária do gaúcho e classificando-o
como “altamente artificial”.
Güiraldes ha forjado su personaje a base de acumularle condiciones
pintorescas, de acentuar el mérito de sus conocimientos de resero y
domador, de destacar su astucia y su baquía frente a pequeños problemas
que resuelve como un héroe, de quererlo con un amor de hijo y admirarlo
con un fanatismo de catecúmeno. Por esto mismo, quizás, la esencia del
personaje novelesco se le ha escapado [...] (ALEGRÍA, 1975, p. 36).
A artificialidade, defeito do personagem apontado por Alegría, é acentuada,
segundo ele, quando se compara o gaúcho de Güiraldes com o gaúcho de
Hernández. Este autor, segundo Alegria (1975), mostrou através das palavras de
Martín Fierro, como uma testemunha fiel, um indivíduo capaz de amor e ódio, de
valor e temor, de constância e desalento, de risos e lágrimas, enfim, um ser humano,
um gaúcho arrancado da existência, do mundo real.
Dom Segundo, ao contrário, foi desumanizado por Güiraldes e, por esta
razão, não pode representar, como deseja, o gaúcho real.
Alegría (1975) diz que se a intenção do romance de Güiraldes é representar a
imagem ideal do tipo humano conhecido como gaúcho, essa representação não
pode basear-se num “simple conjunto de virtudes y sucedidos aptos para el
consumo de mentalidades escolares” (Ibid., p. 36), e ironiza ratificando a
imaterialidade do personagem:
63
Veamos a don Segundo Sombra. Jamás le ocurre algo malo, fuera del
pequeño lío de pulpería con que empieza la novela. Es física y
espiritualmente perfecto y nunca tiene ningún problema. La única trastada
que ha hecho es cambiar un zaino por unas tortas, en una borrachera para
más disculpa, y su solo problema consiste en que, si permanece mucho
tiempo en una estancia, quiere mandar más que el patrón y entonces tiene
que irse. Al comienzo de la novela, parece que anduvo en líos con la policía
y hasta ‘carneó un ajeno’ que era ‘cristiano’. Pero luego resulta que no hay
tal cosa, al menos no se ve la menor justificación de esa fama en la novela,
y don Segundo seguramente ha aprendido el arte del cuchillo a fuerza de
fintas, porque él mismo confiesa que no mató a nadie. Y allí va por la
pampa, llanura a la cual el autor condiciona para el paseo y que resultaría
una perfecta églota de pasto, horizontes y cielos si no fuera por unos
cuantos porrazos, otras dos peleas y los cangrejales. Quienes partieron en
pos de la camisa del hombre feliz, fracasaron por no encontrarse con don
Segundo (Ibid., p.35).
O crítico reprova o recurso que ele denomina de desumanização do
personagem utilizado pelo autor, ou seja, a construção de uma figura embasada
somente em um feixe de virtudes, no qual não se encontra nenhum defeito, o que
ele considera anormal na representação de um tipo humano. Assim configurado, o
personagem aparta-se da condição humana e este, segundo o estudioso, não é um
recurso necessário a fim de que o personagem represente algo, muito menos o tipo
humano argentino, como deseja seu autor. Para Alegría (1975), embora Güiraldes
tenha afirmado no início da obra que o personagem é mais uma idéia do que um ser
e ao final que é mais uma idéia do que um homem, o importante, em se tratando de
um romance, é que a idéia se faça ser e que o personagem seja um ser. Em sua
opinião, o personagem deveria representar algo humanamente, como Martín Fierro.
Outro crítico que condena a irrealidade de Dom Segundo Sombra é Juan
Marinello(1975), em seu ensaio Treinta años después: notas sobre la novela
lationamericana. Cubano socialista, ele havia elogiado a obra de Güiraldes em 1927
e depois mudou seu discurso. Esse autor concorda com Ciro Alegría, classificando o
personagem Sombra de desnutrido, de “infiel encarnación gauchesca”, sem negar,
no entanto, o seu valor artístico.
Segundo Marinello (1975), Güiraldes tenta reviver uma fase de uma realidade
decadente e provocar admiração por um herói que representa o resíduo vergonhoso
de uma determinada etapa da história.
Zum Felde (1975) também aponta como grave defeito da obra de Güiraldes a
composição do personagem-título. Segundo ele, o verdadeiro retrato do
personagem, conforme a técnica do romance, deve compor-se na sua própria
atuação dentro do relato e não através de opiniões e conceitos emitidos sobre ele
64
pelo narrador, ou seja, o personagem deve manifestar-se ele mesmo ao leitor e não
esperar que o narrador-autor o explique em uma apologética que não responde aos
fatos do romance.
Felde (1975) ainda agrega que, no relato, Dom Segundo Sombra não
corresponde às virtudes paradigmáticas que o autor exalta em sua apresentação. O
personagem Sombra aparece apenas como um gaúcho de caráter pobre, reservado,
tranqüilo e não como o autor o descreve. Por essa razão, é que Felde acredita que é
possível que o personagem careça da personalidade que lhe atribui o narrador. Para
esse crítico, a entidade Dom Segundo é mais um símbolo, uma personificação
conceitual, um ente arquetípico que uma personalidade real, concreta, psicológica. A
identidade de Dom Segundo, para ele, é puramente ideal, ou seja, uma encarnação
de caracteres morais, um exemplo de virtudes que fazem parte do conceito do
escritor e que são atribuídos ao personagem.
Ramón Doll (1975), em Otras opiniones, capítulo integrante de Recopilación
de textos sobre tres novelas ejemplares, discorrendo sobre a realidade de Dom
Segundo, expressa que esse personagem é um tipo completamente literário, ou
seja, um gaúcho que nunca existiu e que nem sequer representa aquilo que o
gaúcho real gostaria de ser. O gaúcho Dom Segundo é apenas uma concepção
idealizada da classe estancieira, isto é, o que esta classe crê ou o que deseja crer
que seja o gaúcho: uma alta classe argentina que se divide entre o campo e a
cidade e às vezes se envergonha do campo.
Afirma também que Dom Segundo não tem ligação nenhuma com o trabalho
crioulo do pampa: ”El que crea que Segundo Sombra es un paisano real o una
exaltación de las calidades del campesino argentino, o mejor, de las clases
trabajadoras rurales del país, no conoce al paisano (DOLL, 1975, p. 317).
Doll (1975) justifica porque o tipo de gaúcho apresentado por Güiraldes não
se identifica com o homem rural argentino que o autor tenta retratar:
El trabajador criollo de la campaña bonaerense no era ya en 1900 un
hombre de la independencia de Don Segundo Sombra; vencido
irremisiblemente por el hombre de la ciudad que le dictó leyes inicuas de
servidumbre militar, que le puso dificultades en la adquisición de la tierra, la
que acaparó en grandes extensiones, ya en 1900 se había convertido en un
verdadero siervo de la burguesía argentina (DOLL, 1975, p. 317).
Pagés Larraya (1962) contesta a ausência de realidade de Dom Segundo
apregoada por Alegría, Marinello, Felde e Doll.
65
Ele reclama que o caráter simbólico e ideal do personagem foi exagerado
pela crítica, uma vez que Dom Segundo, no relato, surge firme, corpóreo, talhado
com força e somente aparece visto indiretamente em alguns momentos precisos
que, por sua importância e sua densidade emotiva, saturam o leitor da intuição do
personagem. Conforme ele, a força artística do velho gaúcho controla o conjunto do
romance; todos os motivos adquirem cálida conexão ao subordinar-se à sua figura.
Agrega, ainda, que, embora sua recordação esteja envolta por uma aura de
mistério e fantasia, não há ambigüidade nem irrealidade no personagem. O que
ocorre é que seu criador teve a sabedoria de mostrá-lo com precaução, dentro de
um clima de revelações pausadas.
Compartilha da mesma opinião Enrique Caracciolo (1975), que expressou
suas idéias em Otro enfoque, um dos textos integrantes de Recopilación de textos
sobre tres novelas ejemplares. Para este crítico, o personagem Dom Segundo é real
e não se pode afirmar sua inexistência física, visto que Güiraldes o descreve em sua
“corporeidad maciza, vigoroso, de carne y hueso” (CARACCIOLO, 1975, p. 254).
Caracciolo (1975) acredita que a intenção de Güiraldes com a obra é mais a
exposição de um problema humano o da lei cega que governa a vida e o destino
de todos os indivíduos e os seres que o rodeiam - do que a representação de uma
sólida realidade tempo-espacial.
Rodríguez Alcalá (1973) reforça o pensamento de Larraya e Caracciolo. Ele
alerta que alguns críticos utilizam-se de argumentos frágeis para objetar a obra de
Güiraldes.
Para Alcalá (1973), as afirmações de que Dom Segundo o é um
personagem real e a negação de sua caracterização e verossimilhança por parte da
crítica m sido baseadas em duas observações feitas por Güiraldes no capítulo II e
no capítulo XXVII, onde o narrador expressa que seu padrinho lhe pareceu mais
uma idéia do que um homem.
Reforça que se tem destacado em demasia a idealidade de Dom Segundo,
até o ponto de se desconhecer o óbvio, ou seja: que o personagem está
apresentado com uma corporeidade realíssima, que seu retrato físico e espiritual é
uma das maiores conquistas da narrativa hispano-americana. Segundo Alcalá
(1973), a crítica tem se concentrado muito no que de passada anota Fabio, o
narrador, nos dois capítulos citados anteriormente, o II e o XXVII. Esta atitude fez
com que a interpretação correta da mensagem do romance tardasse muito tempo
66
em superar as conclusões de uma perspectiva da crítica que Alcalá classifica como
míope. Se Güiraldes tivesse podido adivinhar a compreensão que nas duas
passagens citadas se ia fundar, expressa Alcalá (1973), teria facilmente evitado o
desconcerto dos críticos: em meia hora de trabalho poderia ter mudado a redação de
umas frases, e seu famoso herói teria suscitado interpretações mais acertadas.
Efetivamente, conclui Alcalá (1973), riscadas algumas palavras, não muitas,
ninguém teria podido utilizar-se destas para pôr em questão a “realidade” do gaúcho
epônimo nem a extraordinária potência caracterizadora que colocou o escritor em
seu relato.
E agrega ainda mais: para evitar que mal o entendessem, em vez de dar ao
seu herói o sobrenome de Sombra, iraldes lhe teria dado outro qualquer. Porque
para os menos sagazes, Sombra potencializa essa não realidade, que se projeta
justamente sobre um personagem de muito sólido volume corpóreo a quem tanto
crítico quis descorporificar.
Explicando o motivo do sobrenome Sombra ser escolhido pelo autor, Alcalá
(1973) expressa que a opção de Güiraldes deve-se ao fato de que, na intempérie do
pampa, o menino gaúcho ia achar em Dom Segundo um protetor, um padrinho,
como quem à sombra de uma grande árvore se ampara na imensidão da planície. O
nome de Sombra é bonito e sugestivo, e uma crítica mais penetrante, desde o
princípio, teria achado nele não um argumento para espectralizar a figura do herói,
mas sim para compreender adequadamente o simbolismo dos dois ginetes, que
Güiraldes faz cavalgar pelo pampa: o do gaúcho professor de “gauchía” que era
Dom Segundo e o do gaúcho aspirante a gaúcho, que era Fabio Cáceres, cuja
personalidade se desenvolve à sombra protetora de seu padrinho.
Para Cemil Goic (1975), a diversidade de interpretações que se fizeram da
figura de Dom Segundo Sombra provém da própria ambigüidade da caracterização
do personagem, ou melhor ainda, parece que a dita ambigüidade as autoriza. De um
lado, os termos que caracterizam o personagem deixam a figura aberta e misteriosa.
De outro, a caracterização dinâmica que constrói a imagem do professor, do
padrinho, do “pai” confirma a condição de ser imitável, modelo, para a formação de
Fabio.
Eduardo Romano (1975) assevera que tal ambigüidade se origina do
contraste entre a escassa consistência material silhueta, idéia, que surge de um
67
misterioso fundo paradigmático - com que Dom Segundo aparece, e a sua massa
física, grande e vigorosa.
Em meio às críticas, pois, Dom Segundo se afirma a seu modo e por sua
própria força se consolida como um clássico da literatura hispano-americana.
3.6.1.2 Referente à obra
Não só o personagem Dom Segundo tem sido criticado como artificial e alheio
à realidade. Também a obra como um todo. Todavia, essa linha de raciocínio não é
consenso, ou melhor, as correntes que exaltam e as que desabonam a obra
parecem que se dividem mais ou menos eqüitativamente.
A obra de Güiraldes retrata a pátria, ignorando em seu conteúdo a verdadeira
realidade, expressa Francisco Ayala (1975), em El gaucho como símbolo nacional,
ao criticar a obra Dom Segundo Sombra.
Para este autor, a obra de Güiraldes
quiere cantar, y por cierto en tono elegíaco, a esa patria vislumbrada cuya
imagen se idealiza en la figura del gaucho Sombra, dando así una versión
literaria del país, grata para el argentino [...] y como pintoresca, igualmente
satisfactoria para quienes, a la distancia, pueden llevar en su imaginación
el cuadro de una realidad ignorada por el contenido de tan hermosa ficción
literaria (AYALA, 1975, p. 212 – 213).
Ayala (1975) justifica seu pensamento, argumentando que as características
efetivas do ruidoso centro comercial que se tornou a Argentina depois do enorme
contingente de imigração que ali se instalou, estavam muito pouco de acordo com os
valores de caráter e conduta rudes, sóbrios, austeros, que embasaram a construção
do personagem que se erguia como arquétipo nacional deste país.
Juan Marinello (1975) também critica, como Ayala, o fato de a obra de
Güiraldes, segundo ele, não incorporar a realidade, estabelecendo uma analogia do
livro com as pinturas do Renascimento nas quais “la gracia de la composición y lo
seductor del gesto distraen del monstruo andamiaje de la Iglesia que origina y
sustenta tanta maravilla (MARINELLO, 1975, p. 46). Ele diz que o é possível
desvincular uma obra da realidade na qual ela está inserida e que tal atitude é um
68
compromisso político. Manifesta que o ingrediente simbólico e místico de Dom
Segundo está terminantemente dissociado do solo e da história argentina.
Outro crítico que compartilha da mesma opinião é Zum Felde (1975). Afirma
este autor que a pintura estética que Güiraldes faz do campo argentino é alheia à
dura realidade social, ou seja, o livro não mostra o que Felde considera a autêntica
vida no meio rural, mas somente a imagem poemática dela, diferentemente do que
supõe a condição pessoal do autor. No entanto, pondera que embora seja difícil para
um homem rico como Güiraldes sentir essa rude realidade, é verdade também que a
sua versão idealizada contém um ingrediente emocional que lhe humaniza e que se
constitui no ponto alto naquelas peripécias onde o jovem narrador evoca sua
adolescência e, através dela, o quadro de paisagens e de figuras que se
engrandecem na lembrança.
A respeito da referida desvinculação da realidade, Felde (1975) considera
tratar-se de uma atitude natural se for levada em conta a situação do narrador no
momento em que conta a história. Registra que é normal que o narrador - o jovem
Fabio Cáceres,
después de sus años de intensa vida europea, saturándose intelectual y
experiencialmente de las más refinadas y artificiosas esencias de la
civilización -, vuelto al solar nativo, no refleje sino aquello que impresiona su
sensibilidad estética; toda otra forma de realidad campera está ausente de
su visión y de su memoria, no tanto por deliberado propósito literario cuanto
por espontáneo fenómeno de conciencia (FELDE, 1975, p. 230).
Conclui Felde (1975) que, por ser o romance de Güiraldes poemático em
grande parte e em sua parte mais significativa -, o realismo vacilante da versão
não deve ser contrariado, que, se não copia uma verdade objetiva, expressa uma
verdade ideal que é a verdade do autor.
Dentro dos posicionamentos contra e a favor do livro Dom Segundo Sombra,
é consenso de vários críticos a existência de valor artístico na obra como, por
exemplo, se pode verificar em Ayala, que a qualifica de “tan hermosa ficción literária”
(AYALA, 1975, p. 213).
Outro exemplo que se enquadra nesta afirmação é o do crítico Leopoldo
Marechal (1975), presente no texto de Otras opiniones, citado. Este autor, em sua
avaliação, ressalta o romance de Güiraldes, em primeiro lugar, como uma obra bela
e, por conseguinte, uma obra de arte. Ele expõe que uma obra de arte tem uma
razão primeira de ser, necessária e suficiente, que é a beleza. Segundo seu
raciocínio, o romance Dom Segundo Sombra está marcado por esta qualidade. De
69
acordo com Marechal, “la belleza de Don Segundo Sombra está en las cosas que
pinta y en las acciones que narra” (MARECHAL, 1975, p. 321).
O crítico também explica porque a obra é considerada mais um poema do que
um romance. Para este autor, Güiraldes como poeta o pampa argentino e, por
esse motivo, nomeia esse fragmento da criação em poesia, assim aclarando:
Ver en poeta es ver las cosas en el ‘esplendor de su forma’, vale decir, en
su hermosura; y nombrar en poeta es nombrar las cosas de tal modo que el
esplendor de la forma nombrada se encarne y viva en la palabra nombrante
(MARECHAL, 1975, p. 321).
Marechal, respondendo à questão da correspondência da obra com o mundo
real, avalia que Güiraldes entendeu imitar uma realidade de acordo com as
condições particulares do lugar e do tempo em que agem os personagens. Enfatiza
que a obra corresponde à realidade, considerando-se o “aqui” e o “agora” do
romance e cabe ao crítico medir o grau de verossimilhança se conhecer a realidade
imitada. Para este estudioso, se a maioria dos leitores que conheceram o tempo e o
lugar no qual se passou o romance pensam que Dom Segundo vai ao encontro da
realidade, então esse testemunho já é suficiente para atestar sua “realidade”.
Imbert (1985), em sua crítica, enfatiza em primeiro lugar que a perspectiva
com que o protagonista contempla o pampa argentino, seus tipos humanos e suas
próprias peripécias é sempre idealizadora e poética.
Para este autor, o romance de Güiraldes é essencialmente artístico; não é
romance realista nem telúrico, ou seja, o retrato do campo argentino apresentado
pelo autor de Dom Segundo é dissociado da realidade. Argumenta que Güiraldes
era um homem rico de educação francesa, um patrão de estância, que não
expressou o ponto de vista autêntico dos tropeiros:
[...] al hacer hablar a Fabio Cáceres le puso en la boca símbolos de lejanía
(“para aquella gente”), juicios extemporáneos, reflexiones filosóficas ajenas
al mundo gaucho y, sobretodo en el capítulo XXVII, desprecios a la riqueza
y a la comodidad que falsificaron la realidad del campo argentino” (IMBERT,
1985, p. 124).
Imbert (1985) acrescenta que o livro é convincente porque Güiraldes faz seu
narrador dar um salto de peão para homem letrado e culto, ou seja, ele criou um
espaço entre o tempo das aventuras vividas e o das memórias evocadoras. Dessa
forma, ao escrever suas lembranças, Fabio evoca atividades consideradas comuns
por Dom Segundo que era homem rural como laçar, domar - mas que o público
letrado da cidade considera como façanhas.
70
Imbert (1985) salienta que, quando o livro foi lançado, se pensou que o
romance de iraldes dava uma versão realista do campo argentino, mas isso,
segundo ele, é uma inverdade:
Un análisis estilístico probará las complicadas operaciones inventivas con
que se creó Don Segundo Sombra. Operaciones muy sutiles, muy líricas,
muy cultas. Una de ellas se propuso objetivar el alma colectiva de la
Argentina criolla tradicional y este logro de diafanidad descriptiva fue lo que
ganó a la novela un favor internacional (IMBERT, 1985, p. 124).
Jorge Luís Borges, ao classificar a obra Dom Segundo Sombra de Güiraldes
como elegia, abriu uma discussão entre os críticos. Seu posicionamento acirrou o
aparecimento de duas vertentes: a dos apreciadores e a dos difamadores.
Primeiramente, quando o livro veio à luz, este escritor, como se registrou
anteriormente, elogiara o romance, destacando que teria um interesse nacional e
universal e que autor e obra seriam imortais, assim profetizando:
La pátria – si nuestra observación y nuestra esperanza son, de hecho,
proféticas seguirá escuchando con ganas a Don Segundo Sombra y a
cuanto se relacione con él. Ricardo, creador o historiador de esa imortalidad
sufrida y fornida, ocupará los años también (BORGES apud ALCALÁ, 1979,
p. 212).
Também se manifestou a favor do reconhecimento e exaltação do romance,
argumentando que seu autor havia re-significado a imagem até então brutal do
gaúcho, bem como apontou Güiraldes como uma figura chave e renovadora das
letras do primeiro quarto de século.
Com o passar do tempo mudou de opinião e lhe lançou pesadas críticas:
El narrador de Don Segundo no es el chico agauchado escribió -; es el
nostálgico hombre de letras que recupera, o sueña recuperar, en un
lenguaje en que conviven lo francés y lo cimarrón, los días y las noches
elementales que aquél no hizo más que vivir (BORGES apud BERLANGA,
2002, s. p.).
Na revista bonairense “Sur”, em 1952, Borges escreveu uma nota de título
Sobre Don Segundo Sombra-, na qual discutia, primeiramente, o gênero da obra
de Güiraldes. Ele propunha a qualificação de elegia em vez de relato proposto pelo
autor de Dom Segundo.
Justifica seu posicionamento dizendo que, no fundo, nota-se um pesar talvez
ignorado por Güiraldes e também um pesar explícito. O primeiro seria o temor, que
ele adjetiva como inconcebível e absurdo, de que terminada a Primeira Guerra, o
mundo entrasse em um período de paz interminável:
Escreve Borges em sua nota:
71
En los mares, en el aire, en los continentes, la humanidad había celebrado
su última guerra; de esa fiesta fueron excluidos los argentinos; Don
Segundo quiere compensar esa privación con antiguos rigores. [...] No sólo
dicha quiere el hombre sino también dureza y adversidad (BORGES apud
ALCALÁ, 1979, p. 205).
O segundo pesar alegado por Borges o pesar explícito é a própria razão
do livro. Explica que a Argentina passou da criação de gado à agricultura e
Güiraldes o sentiu profundamente essa mudança, nem sequer pareceu percebê-
la. No entanto, ironiza Borges (apud ALCALÁ, 1979), Güiraldes deseja resgatar, o
passado eqüestre de terras descampadas e de homens animados e pobres.
A crítica de Borges, assim, impinge o caráter elegíaco à obra de Güiraldes:
Don Segundo es, como el undécimo libro de la Odisea, una evocación ritual
de los muertos, una necromancia. No en vano el protagonista se llama
Sombra; “un rato ignoré se veía o evocaba... Aquello que se alejaba era
más una idea que un hombre”, leemos en las últimas páginas. Percibido ese
carácter fantástico, se ve lo improcedente de la comparación habitual de
Don Segundo Sombra con Martín Fierro [...] Don Segundo ha sido esos
gauchos o es, de algún modo, su tardío arquetipo, su idea platónica (Ibid.,
p. 207).
Outra severa crítica que Borges dirige a Dom Segundo Sombra, em diferente
nota, intitulada “The Purple Land”, é sobre seu caráter hiperbólico:
Don Segundo Sombra, pese a la veracidad de los diálogos, está maleado
por el afán de magnificar las tareas más inocentes. Nadie ignora que su
narrador es un gaucho; de ahí lo doblemente injustificado de ese gigantismo
teatral que hace de un arreo de novillos una función de guerra. Güiraldes
ahueca la voz para referir los trabajos cotidianos del campo; Hudson (como
Ascasubi, como Hernández, como Eduardo Gutiérrez) narra con toda
naturalidad hechos acaso atroces (Ibid., p. 208).
Em seu ensaio, Jorge Luís Borges y Don Segundo Sombra, Rodríguez Alcalá
(1979) critica Borges porque ele classificou Dom Segundo Sombra de elegia. Afirma
que o crítico não compreendeu o caráter de romance preceptivo e de formação,
além de não ter intuído na obra um simbolismo de significação nacional. Por estas
razões é que Alcalá entende que Borges incorreu em erros de interpretação.
Alcalá (1979) alega a impossibilidade de Güiraldes lamentar a não
participação da Argentina na Primeira Guerra, que são conhecidas as opiniões de
Güiraldes a respeito da violência, isto é, o autor de Dom Segundo abominaria com
veemência a Primeira Guerra.
¡Que a Güiraldes le doliera el que la Argentina no hubiese participado en
aquella fiesta terminada en 1918! Si hay algo que a Güiraldes deprimy
repugnó y asqueó, fue precisamente la Primera Guerra Mundial. Nunca el
autor de la máxima novela gaucha compartió con Borges el entusiasmo por
lo épico, ni mucho menos por los cuchilleros (ibid., p. 205).
72
Alcalá (1979) reprova os críticos como Borges, que se utilizaram de frases,
entre elas as do próprio Güiraldes, para fazer-lhe dizer aquilo que os críticos pensam
que o poeta pensa. Por outro lado, concorda, em parte, com a opinião de Borges ao
considerar a despedida de Dom Segundo, no final do livro, como profundamente
melancólica. Sem dúvida, afirma, o narrador tem o cuidado de fazê-la o mais
patética possível, mas isso não quer dizer que todo o romance se converta em uma
elegia, porque toda a obra está repleta de otimismo, alegria de viver, esperança e
confiança.
Este estudioso também não concorda com o teor da crítica de Borges que
considera injustificada a excessiva importância dada por Güiraldes ao trabalho
cotidiano do campo, cujas tarefas são naturais para o homem rural. Alega o crítico
que se deve, antes, observar quem narra a história. Se fosse Dom Segundo o
narrador, ele aceitaria essa afirmação. Porém, observa, o narrador é outro. O
narrador não é um gaúcho e sim um menino apicarado que certo dia compreendeu
que devia mudar de vida. Sentindo urgência desse câmbio, buscou sua liberdade e
sua dignidade através do aprendizado e da conversão em gaúcho. Por essa razão é
que suas experiências têm, para ele, um menino de catorze anos, uma grande
importância.
Para o contestador das notas Sobre Don Segundo Sombra e The Purple
Land”, Borges não percebeu que toda a obra gira em torno da educação de Fabio, o
que faz com que tudo que em sua vida de tropeiro tenha contribuído para sua
formação espiritual, seja objeto de emocionada evocação, suscitada pelas grandes
recordações.
Sobre o que Borges chamou de “gigantismo teatral”, Alcalá (1979) lembra que
Güiraldes acreditava que o habitual e o cotidiano são, efetivamente, dignos de
especial atenção. É possível representá-los sem cair no vulgarismo ou no
costumbrismo.
A esse respeito, o autor de Dom Segundo havia manifestado: “Yo entiendo
el patriotismo o el localismo así: facultad de querer lo que nos es habitual y de ver en
lo cotidiano virtudes susceptibles de exaltarse(GÜIRALDES apud ALCALÁ, 1979,
p. 209).
Sobre essa afirmação de Güiraldes, comenta Alcalá:
Esta convicción de Güiraldes en lo que mira al amor a la patria grande la
Argentina y la chica – el Pago de Areco -, lo hubiera llevado a no
desdeñar lo que otros autores pasan por alto. En el caso de Fabio, lo
73
habitual y cotidiano en la vida del resero, se rodeaba, por lo ya dicho, de un
prestigio y significación que justificaban plenamente las evocaciones del
aprendiz de gaucho (ALCALÁ, 1979, p. 209).
Ivonne Bordelois (1999)
11
, em “El Sur”: la reescritura de don Segundo Sombra
por Borges, contrariando Borges e também o aspecto da crítica de Alcalá, a qual
afirma que a melancolia se concentra na despedida de Fabio e de Dom Segundo,
expressa que o que existe, é o que ela denomina de “uma espécie de juízo final”
(BORDELOIS, 1999, s. p.). Esta autora adota essa expressão baseada na idéia de
que “el maestro siempre desborda al discípulo y que el llamado bárbaro profesa
acaso una lejana compasión por el pueblero que trata de afincarse en sus valores”
(Ibid, s. p.).
Destaca que o que separa Borges de Güiraldes são os ideais estéticos - gosto
pelo épico no primeiro, gosto pela não violência no segundo. Como Alcalá, acusa
Borges de ser pró-cuchillero”. Ambos os críticos utilizam como argumento
passagens do poema Tango”, onde Borges evoca “aquellos que pasaron dejando a
la epopeya um episodio, una fábula al tiempo, y que sin ódio, lucro o pasión de amor
se acuchillaron(BORGES apud BORDELOIS, 1999, s. p.).
Bordelois (1999) salienta a diferença de ideais estéticos e, em função dela,
refuta a crítica de Borges no ponto em ele afirma que o capítulo II do livro, no qual
Dom Segundo é provocado para um duelo com el Tape Burgos seja o mais fraco de
todos mais precisamente flojo”, qualifica Borges. Ivonne Bordelois lembra que é
neste capítulo que Güiraldes reescreve o tema do racismo e da violência crioula
apresentado na primeira parte de Martín Fierro, no episódio em que este, em um
baile, encontra a companheira desaparecida de par com “el Moreno”.
O duelo entre o personagem Fierro e um negro termina com sangrenta
violência em Hernández ao passo que, em Güiraldes, entre Dom Segundo
provocado devido à cor escura de sua pele e um índio, o sangue não se produz e
acaba pacificamente, porque Dom Segundo desarma Burgos e este, reconhecendo
seu erro, lhe oferece amizade.
Desse modo, acrescenta Bordelois (1999), Güiraldes frustrou aqueles que
esperavam a costumeira violência da tradição gauchesca dos duelos.
11
Os estudos de Ivonne Bordelois sobre Dom Segundo Sombra foram recomendados por Trinidad
Pérez, no prólogo de Recopilación de textos sobre tres novelas ejemplares, (p. 32), obra amplamente
utilizada neste trabalho.
74
Raso (1987) concorda com o caráter elegíaco da obra. Ele classifica o
romance como uma elegia semelhante à de Hernández, em homenagem a uma
classe de homens os gaúchos. Reconhece o valor do livro, ressaltando que ele
não é uma simples história de vaqueiros, em muitos casos hostil e que o homem
deve aprender a dominar, mas um romance muito elaborado e complexo, uma
exaltação dos valores do gaúcho. Qualifica-o também como um tratado de
misticismo, de um ideal de vida, longe da vida primitiva e da sociedade corruptora.
A estudiosa do tema, Ofélia Kovacci (apud ALCALÁ, 1979), também não
concorda com a nota The Purple Land e com o que Borges denomina de
“gigantismo teatral”. Argumenta que, assim como a dor e não alheia a ela, o trabalho
é instrumento do tornar-se humano com uma nova projeção transcendente que é o
sentido festivo da vida.
E agrega:
Donde se ha visto gigantismo teatral... hay una manifiesta raíz de alegría
por la entrega total del hombre a algo que se le está mostrando desde
ángulos diversos, algo que está descubriendo en el juego de entrega y de
resistencia: nuevas posibilidades vitales que ayudan a estructurar la
cosmovisión (KOVACCI apud ALCALÁ, 1979, p. 209).
Alcalá, concordando com o que apresenta esta autora, registra:
Tiene plena razón esta autora al aseverar la primacía de lo ético-ontológico
en la formación del héroe güiraldino cuando lo vemos realizar sus tareas
gauchas aceptando sin rezongos las pruebas penosas del trabajo (ALCALÁ,
1979, p. 209).
E conclui aludindo ao que avaliou Borges em sua juventude, julgando, com
base no sucesso e repercussão do livro, estar se cumprindo e preponderando a
profecia exaltante sobre as criticas emitidas na maturidade.
4 QUESTÕES DE GÊNERO, MOTIVOS DA GAUCHESCA E
ESPAÇO
4.1 O modelo de Josefina Ludmer
Ludmer (2002) relata que o gênero gauchesco, na Argentina, iniciou com os
Cielitos Patrióticos de Bartolomé Hidalgo, onde canta o gaúcho patriota. Cada vez
que um texto funda um novo gênero, ele é, a princípio, o próprio gênero. Um texto
do gênero sempre deixa pistas para a literatura do futuro. O gênero, portanto,
desenvolve-se através de uma seqüência de idas e voltas entre as obras que o
compõem.
Hidalgo, o primeiro escritor, deu voz ao gaúcho patriota, o qual é considerado
“o bom”, “o legal” pela lei da cidade. Aquele que luta nos exércitos da revolução é o
tipo de gaúcho que empresta sua voz ao gênero de Hidalgo. Ao mesmo tempo, este
autor registrou o silêncio e nomeou o gaúcho rebelde, “o mau”, “o ilegal” (denomina
“malevos” em seu poema), bem como o amputado pela guerra e o que foi
descartado por ela, ou seja, aquele cujo corpo já foi usado e não é mais conveniente
para a luta. Um exemplo é o personagem índio Pelao que perdera uma perna em
combate e agora já não pode ser mais soldado.
Dessa forma, sobram opções para que outros escritores expressem essas
vozes posteriormente em suas obras. Essas brechas são aproveitadas pela literatura
do futuro, como em Ascasubi. Em sua obra Santos Vega, a voz do “malevo”
constitui-se voz central que ataca o gaúcho patriota. Hernández também deu voz ao
“ilegal“ (Fierro) e também ao amputado. As brechas foram novamente aproveitadas
por Güiraldes que deu voz à picardia.
76
De acordo com Josefina Ludmer (2002), o gênero gauchesco provém da
aliança entre a cultura letrada e a cultura oral do gaúcho. A primeira faz uso da voz
(e com ela de uma acumulação de sentidos - um mundo) da segunda. O gênero
gauchesco é, então, um universo verbal e sonoro, cuja substância é a relação entre
as vozes ouvidas e as palavras escritas.
O escritor do gênero gauchesco usou as posições e tons da voz do gaúcho
para escrevê-lo e, nesse mesmo momento, deu-lhe a voz. Uso (uso literário e uso
econômico dos corpos) e dom (do escritor que dá a voz e do patrão) são as palavras
que organizam o gênero. Através da literatura gauchesca permitiu-se que fossem
ouvidas as vozes de um corpo usado para a guerra, para a economia e também para
o sexo.
O conceito de Borges (1989), conforme explicitado no capítulo I, vem ao
encontro do sentido de gauchesca proposto por Ludmer. Ele afirma que a literatura
gauchesca é a conjunção de dois estilos de vida: o urbano e o pastoril.
Ludmer (2002) ressalta que este tipo de literatura foi escrito ou culminou em
épocas em que as economias regionais entravam no mercado mundial e, portanto,
no momento em que o gaúcho era produtor da riqueza nacional.
O gênero gauchesco está limitado por dois demarcadores fundamentados nas
leis e nas guerras, a saber: a atribuição de ilegalidade popular ao gaúcho e o
desdobramento da revolução e da guerra da independência, segundo o dizer de
Ludmer (2002).
O primeiro limite do gênero, a ilegalidade popular, é oriunda da delinqüência e
do contraste entre dois tipos de leis a lei do campo e a lei da cidade. A forma de
imposição desta última aos gaúchos amplia este contraste porque é aplicada de
forma distinta para atender à necessidade de uso dos fazendeiros que precisam de
mão-de-obra para o trabalho nas estâncias e do exército que carece de soldados
para as guerras.
O segundo limite se constitui na revolução e nas guerras de independência,
porque possibilitam o aproveitamento militar dos gaúchos e, dessa forma, o
desmarginalizam.
A partir desse binômio, ela apresenta duas cadeias de usos que articulam e
dão sentido ao gênero. A primeira cadeia é composta dos seguintes itens: a)
utilização do delinqüente gaúcho pelo exército patriota; b) utilização de seu registro
oral (sua voz) pela cultura letrada e c) utilização do gênero para integrar os gaúchos
77
à lei civilizada (liberal e estatal). A segunda cadeia de usos é a cadeia de voz e dos
sentidos da voz. Fazem parte dessa cadeia as asserções: a) o uso do gaúcho pelo
exército acrescenta um sentido diferente à voz “gaúcho”; b) os sentidos da voz do
gaúcho são definidos no uso da voz diferencial do gaúcho: gênero gauchesco e c) o
gênero define o sentido dos usos diferenciais do gaúcho.
Ludmer (2002) explica, como ocorre através do texto de Hidalgo, o fundador
do gênero gauchesco por meio do sistema de marcas textuais (títulos, subtítulos,
cena oral, narrador final), a ligação entre a zona verbal oral e a escrita. Para isso,
utiliza o poema Novo diálogo Patriótico, de 1821, apontando as duas fronteiras que
estabelecem o anel da aliança entre o oral e o escrito. Baseada neste exemplo,
Ludmer apresenta a primeira regra do gênero: a ficção de reprodução escrita da
palavra oral do outro, como palavra de outro e não como a de quem escreve.
A segunda regra é a construção do espaço oral, o marco da “voz ouvida”, no
espaço interior do texto. Em Hidalgo, é uma palavra escrita impessoal e informativa
que diz como se chamam os que dialogam (Ramón Contreras e Chano), que lugares
ocupam (gaúcho do exército e capataz de uma fazenda) e de onde provêm (da
Guarda do monte e de uma fazenda nas ilhas de Tordillo):
Ligam-se assim a entonação da voz do gaúcho e o enunciado militar e
político, e esta relação opera, ademais, a conjunção do contexto tradicional
de difusão oral com o jornalismo moderno. O gênero aparece de saída
como uma forma de jornalismo popular [...] (LUDMER, 2002, p. 65).
Entre as asserções de Ludmer está a de que não relação entre culturas
sem política, porque entre elas guerra ou aliança. A literatura quando trabalha
a duas vozes, com as duas culturas, politiza-as imediatamente. O gênero gauchesco
constitui-se uma língua literária política, politizou a cultura popular e deixou essa
marca fundadora na cultura da Argentina. “E também popularizou e oralizou e
argentinizou os escritos da cultura européia, e não texto do gênero que não os
contenha: desde as paráfrases do Contrato Social em Hidalgo até o relato da ópera
Fausto” (Ibid., p. 78).
A mesma estudiosa do gênero gauchesco ressalta que, dentro do espaço
interno do gênero, os textos se debatem não com seus contemporâneos, mas
também com os anteriores e posteriores que os reescrevem. O objeto de debate das
alianças é a discussão sobre que lugar deve ocupar o gaúcho, como usar seu corpo,
78
que leis devem regulá-lo, a quem deve se subordinar e quem deve educá-lo. Cada
qual quer definir a voz “gaúcho” e tal disputa é feita através dessa mesma na voz.
Assim, Ludmer tenta definir e estruturar o gênero gauchesco, baseada na
tradição de suas primeiras obras. Como ela própria afirmou, persistem as brechas
que podem ser exploradas por outros escritores, como Güiraldes. Dessa forma, o
gênero se desenvolve e, devido aos novos matizes que lhe são acrescentados, ele
se renova e se multiplica. Cada nova obra insere-se na discussão que tenta definir a
“voz gaúcho”, enriquecendo, assim, o debate em torno da existência deste tipo
humano, do personagem literário e do próprio gênero.
4.2 Motivos e espaço
4.2.1 Considerações teóricas
4.2.1.1 Motivos
Em literatura, motivos são unidades narrativas simples, o decompostas,
que se combinam entre si, formando a fábula e a trama de um texto literário, explica
o formalista russo Tomachevski (1973), em seu capítulo Temática, do livro Teoria da
Literatura. Isto quer dizer que o trabalho do escritor é organizar essas células
estruturais esteticamente, é ajustá-las e coordená-las harmonicamente dentro de um
tema geral, a fim de que contribuam, cada uma com seu significado, para a
produção do significado da obra em sua totalidade.
O escritor, ao compor sua obra, seleciona dentro do universo de opções as
unidades que convém ao tema eleito e aos seus propósitos. Essas unidades podem
ter caráter tradicionalmente literário, serem típicas de uma escola ou época a que o
autor pertença, podem ser inusitadas, podem ser particulares de um autor.
Inversamente à composição da obra, a análise literária, através de um
minucioso e paciente trabalho de decomposição, pode tentar descobrir os sentidos
dos diferentes motivos selecionados pelo autor e como eles se relacionam e
contribuem para o significado do todo da obra literária.
Wolfgang Kayser, em Análise e interpretação da obra literária (1976),
apresenta uma visão que se tornou paradigmática do conceito. Para ele, motivo é o
termo com que se designa “as unidades que se repetem nas mais diversas
79
combinações em diferentes obras literárias” (KAYSER, 1976, p. 56). É, pois, “uma
situação típica que se pode repetir indefinidamente” (Ibid., p. 57).
Ele introduz a noção de motivo relacionada com a noção de assunto do
romance. Para discorrer sobre o conceito de motivo na ciência da literatura, ele
estabelece um paralelo entre estes dois elementos. Por assunto, Kayser conceitua
“o que vive em tradição própria, alheio à obra literária, e vai influenciar o conteúdo
dela [...]” (Ibid., p. 52). E agrega que o assunto necessariamente está ligado a
determinadas figuras e contém um decurso no tempo, fixando-se, desse modo, mais
ou menos, no tempo e no espaço. O assunto é característico de obras onde
aparecem figuras e se realizam acontecimentos, como o romance. uma poesia
lírica, por não apresentar estas peculiaridades, não possui assunto, adverte o
teórico.
Quando o autor empreende suas energias para produzir sua criação literária
ele tem a liberdade de escolher o assunto. O assunto freqüentemente não é
novidade, ele se repete nas diferentes obras literárias. Por essa razão, Kayser
(1976) assevera que o conteúdo narrativo não tem muita importância para a maneira
de ser poética e para a categoria artística da obra, mas sim como o autor trabalha e
apresenta este conteúdo.
É comum o poeta buscar seus assuntos em fontes como outras obras
literárias, em crônicas, em estudos de história, em jornais, em narrativas e
comunicações orais. Ele ainda pode buscar seu assunto na sua própria observação
e vivência. Neste caso, enfatiza Kayser:
a investigação recebe um novo e especial impulso daquele princípio basilar
da correlação da obra com o autor. Precisamente para os maiores poetas foi
possível juntar, assim, um material de infinita riqueza com que se pretende
provar a dependência da obra poética, quanto ao assunto, da vida do autor
(Ibid., p. 53).
O importante no estudo das fontes não é listar os empréstimos de um autor,
mas sim analisar como o assunto foi modificado, como foi trabalhado artisticamente
pelo poeta.
A cuidadosa análise da maneira como a fonte é aproveitada, no todo e nos
pormenores, a observação demorada e interpretação de todas as
modificações, prometem por um lado reconhecimentos profundos da obra e,
mais ainda, da essência poética, e, por outro lado, favorecem o
conhecimento do poeta, da corrente, da época (Ibid., p. 55).
Kayser (1976) esclarece que um assunto inclui muitos motivos. Se o assunto
é fixo quanto às figuras, ao tempo e ao espaço, o mesmo não ocorre com o motivo.
80
O motivo é apreendido quando ocorre a abstração de qualquer fixação individual.
O motivo possui firmeza estrutural; é uma situação típica que pode ser repetida
indefinidamente, nas mais diversas combinações. Para aclarar esses conceitos,
assunto e motivo, Kayser (1976) toma como exemplo o drama Romeu e Julieta: o
assunto de Romeu e Julieta é a história de um mancebo chamado Romeu e de uma
rapariga chamada Julieta, filhos de seus respectivos pais que vivem numa cidade
italiana e têm um determinado destino. Um motivo, dentro do assunto de Romeu e
Julieta, é o amor entre descendentes de duas famílias inimigas ou o mal-entendido
da morte aparente, que pode ser encontrado em diversas obras literárias e nas mais
diversas relações individuais.
O uso recorrente dos motivos pode apresentar traços característicos. “As
concretizações típicas do motivo respectivo” denomina-se traço. Assim o conceitua
Kayser (Ibid., p. 57) e, como exemplo, cita o motivo do mal-entendido da morte
aparente, onde muitas vezes aparece o traço de ser um dos enamorados que
interpreta falsamente a morte aparente, tentada ainda como meio de salvação.
Segundo o teórico, “o motivo é uma situação típica que se repete e, portanto, cheia
de significado humano” (Ibid., p. 57). Neste caráter de situação reside a capacidade
dos motivos de apontar um “antes” e um “depois”. Quando surge uma situação, a
sua tensão exige uma solução. O termo “motivos” é derivado do termo “movere”.
São dotados de força motriz, o que justifica a sua designação de motivos.
Quando a citada tensão atuante relativa ao motivo não se liberta na obra e a
ação derivada de tal motivo toma outro rumo, depara-se com um caso de motivo
cego. Este tipo de motivo é usado, geralmente, no início de dramas ou de filmes
para atrair a atenção ou, de maneira proposital, para induzir a conclusões falsas.
Kayser reconhece uma qualidade que ele considera especial do motivo:
além da sua unidade estrutural como situação típica e significativa, além da
sua concretização, além do seu carácter transcendente a si próprio,
pertence-lhe uma essência em especial, que favorece o seu uso em
determinados gêneros (Ibid.,, p. 58).
Por exemplo, o motivo do reconhecimento por meio do sapato que serve só a
um determinado pé é entendido como um motivo típico dos contos populares e o
motivo do príncipe apaixonado disfarçado de servo predomina mais na narrativa do
que no drama, por necessitar vasto espaço para desenvolver-se adequadamente.
Kayser (1976) classifica os motivos de uma obra literária por ordem de
importância, quanto ao decorrer da ação, em motivos centrais e motivos
81
subordinados. Os subordinados ainda podem dividir-se em motivos copulados com o
motivo central e os outros que não passam de motivos expletivos, isto é, aqueles
que podem ser dispensados. Esta classificação engloba os motivos diretamente
ligados ao desenrolar dos acontecimentos, característica presente nos gêneros
romance e drama.
Este teórico também considera outros aspectos do motivo que não estão
somente ligados ao aspecto da ação. Ele os denomina de motivos líricos, que estão
presentes na lírica, como a corrente do rio, o túmulo, a noite, o erguer do sol, a
despedida, etc., cujas imagens podem transformar-se em motivos se sentidas e
vivenciadas com intensidade.
A sua transcendência não consiste, neste caso, no desenvolvimento da
situação de acordo com uma ação, mas sim em se tornarem vivência para
uma alma humana, em se prolongarem interiormente na sua íntima
vibração (Ibid., 1976, p.59).
Dentro do estudo dos motivos, Kayser também aborda o conceito de alguns
tipos de motivos bastante particulares, ou sejam, leitmotiv, topos e emblemas.
a) De acordo com este investigador (1976, p. 69), leitmotiv são os motivos
condutores que têm função de ligação. São os motivos centrais que se repetem
numa obra, ou na totalidade da obra de um poeta e, em outra acepção mais restrita,
leitmotiv é tomado também para designar o sucessivo aparecimento de um objeto
em lugar significativo, ou para ilustrar repetidamente um personagem, ou registrar
invariáveis maneiras de dizer, pequenas situações repetidas, que pode ocorrer nos
romances e nos contos. o meios cnicos de construção e composição. Pode-se
verificar em romances e contos o aparecimento repetido de determinado objeto em
lugar significativo. Um exemplo ocorre no romance de Proust, A la recherche du
tempus perdu, o qual repete em diversas situações o mesmo pequeno tema musical
ou, possivelmente, mais próximo de nós, o punhal em O tempo e o vento, de Érico
Veríssimo e o canário que termina cada capítulo de Fogo Morto.
b) Alguns motivos possuem extensa tradição literária e o amplamente
utilizados por diferentes autores em diferentes épocas. Os estudos desses motivos
foram organizados por Ernst Robert Curtius, em sua investigação constante na obra
Literatura européia e Idade dia latina (1979). Tais motivos receberam a
denominação de “topos”, que significam
os clichês fixos ou sistemas do pensar e da expressão” provenientes da
literatura antiga e que, através da literatura do latim medieval, penetraram
nas literaturas das línguas vernáculas da Idade Média e, mais tarde, no
82
Renascimento e no período barroco. Nestas épocas, a corrente da tradição
aumenta poderosamente de volume, alimentada pelas contribuições vindas
do imediato e intenso estudo da literatura antiga (Ibid., p. 70).
Através do conhecimento dos topos compreende-se a riqueza existente de
imagens poéticas, fórmulas fixas e maneiras técnicas de expor que estão à
disposição para serem aprendidas e utilizadas até pelo maior poeta. Kayser adverte:
Quem não conheça a origem antiga e a transmissão retórica desse material
poético praticará graves erros de interpretação, e quem não souber integrar-
se em tal prática da vida literária nunca encontrará o verdadeiro acesso a
largas épocas da história da literatura (Ibid., p. 70).
Ao estudar-se os topos”, investiga-se em primeiro lugar a tradição literária de
certas imagens fixas e concretas, de motivos ou de rmulas estereotipadas e, em
segundo, busca-se a tradição de certas maneiras técnicas de expor, explica Kayser
(1976). Dentro da primeira possibilidade, um exemplo muito importante para a
história da literatura é o da tradição da paisagem amena, exposto por Curtius e
retomado por Kayser:
Uma paisagem completa é transmitida através dos séculos, acompanhada
sempre de determinados cenários; os prados, o ribeirinho, as brisas
suaves, o canto das aves, etc. Sem o conhecimento da tradição deste topo,
que, por vezes, se torna motivo autêntico, especialmente na lírica do século
XVII, todas as investigações se perdem no vácuo, quando queiram
determinar o sentimento da natureza do respectivo poeta a partir destas
cenas (Ibid., p. 71).
Curtius, abordando este tema, demonstrou historicamente que o locus
amoenus é um topo bem delimitado na descrição da paisagem. Segundo este
pesquisador alemão, a paisagem amena que constitui o motivo principal de toda
descrição da natureza
é uma bela e ensombrada nesga da Natureza. Seu mínimo de
apresentação consiste numa árvore (ou várias), numa campina e numa
fonte ou regato. Admitem-se, a título de variante, o canto dos pássaros e
flores, quando muito, o sopro vento. (CURTIUS, 1979, p. 202).
A mitificação deste lugar de delícias, o locus amoenus, perpassa quase que
exclusivamente pelo recurso da descrição presente em diferentes contextos
narrativos; veio sendo construída lentamente, em tempos e lugares bem distantes,
conforme enfatiza Antonio Dimas (1994), em Espaço e romance.
Por intermédio da descrição “a natureza foi ornamentando-se mais e mais, a
ponto de converter-se, durante a vigência romântica em terras americanas, em
imperativo também ideológico, além de estético” (DIMAS, op. cit., p. 39).
83
Outro tópico estudado por Curtius é a simbologia da natureza como livro do
mundo.
A idéia do mundo ou da natureza como um livro surgiu na eloqüência
sagrada, foi adotada depois pela especulação filosófico-mística medieval e
passou enfim ao uso geral da linguagem. No curso desse desenvolvimento,
o livro do mundo foi laicizado, isto é, alheado de sua origem teólogica,
algumas vezes, porém nem sempre (CURTIUS, op. cit., p. 334).
Partindo desta exposição, Curtius apresenta o processo de metaforização da
natureza como livro superior a todos os outros, porque ela tem sido tradicionalmente
concebida como um livro doado por Deus para observação e aprendizado dos
homens desde os arredores da latinidade medieval. Os versos de Francis Quarles
(1592 1644) “O mundo é um livro in-fólio, impresso com as obras de Deus, em
letras capitais: cada criatura é uma página e cada aspecto uma bela estampa, isenta
de defeitos” (QUARLES apud CURTIUS, 1979, p. 337), exemplificam os matizes que
adquiriu o sentido da natureza como livro do mundo em determinada época em sua
trajetória. Tais matizes, aliados a outros registrados historicamente por Curtius,
contribuíram para fundamentar e preencher de significação esta concepção a
natureza como livro do mundo - que se tornou tradicional.
c) O terceiro tipo particular de motivo citado por Kayser (1976), o “emblema”,
é uma espécie de alegoria; “é um sinal a que está inerente um determinado sentido
(KAYSER, 1976, p. 74). Por exemplo, a palmeira considera-se símbolo da fidelidade,
o camaleão, da lisonja. Nestes casos, a palmeira e o camaleão constituem-se figuras
que simbolizam uma abstração ligada ao seu significado, ou em outras palavras, são
uma espécie de código que traduz o sentido comum tomado pelos poetas. Estes
exemplos fazem parte da compilação presente na coleção de Emblemata, publicada
pelo italiano Alciatus, pela primeira vez, no ano de 1552, em Milão, anota Kayser
(1976).
A familiaridade com a emblemática contribui para a análise literária, pois
permite que muitas sutilezas das obras poéticas sejam compreendidas. Sem
conhecer o sentido da palmeira, por exemplo, o leitor não compreenderia porque
Bocage elegera, em sua poesia Ciúme, as palmeiras para se lamentar da
infidelidade da amada, adverte Kayser (1976).
Com a conceituação de leitmotiv, topos e emblemas, Kayser discorre sobre
tipos peculiares de motivos que podem concorrer em uma obra literária.
84
De leitmotiv depreende-se que este tipo de motivo caracteriza-se pela
repetição em um corpus literário mais ou menos reduzido, ou seja, em determinada
obra ou conjunto de obras de um autor. Por não aparecer de forma unitária, o
leitmotiv pode ser facilmente perceptível.
Os topos também se caracterizam pela repetição, no entanto estão diluídos
numa maior amplitude temporal, isto é, encontram-se distribuídos historicamente na
tradição literária desde a literatura antiga até a literatura dos dias atuais. São mais
difíceis de perceber porque requerem conhecimento apurado da história e do
exercício literário.
Os emblemas, como os topos, exigem perspicácia e conhecimento da arte da
literatura. Sua compreensão se depreende, em primeiro lugar, do conhecimento
desses símbolos e da prática analítica, pois a sucessiva identificação destes adverte
o leitor experimentado. E, em maior grau, deriva da capacidade do leitor de efetivar
as relações. A decodificação dos emblemas, efetuada corretamente, permite
estabelecer ligações de sentido satisfatórias entre este tipo de motivo e a situação
em particular na qual ele está inserido ou, ainda, em relação ao restante da obra, por
conseqüência. Dessa forma, é possível inferir que significado da obra o emblema
busca enfatizar.
As diferentes classificações de motivos organizadas por Kayser (1976)
auxiliam no enriquecimento do conceito de motivos e contribuem para a análise das
obras em seus diferentes segmentos. Ao mesmo tempo, por sua complexidade,
constituem um desafio para o investigador literário.
Tomachevski (1973) propõe uma classificação de motivos distinta de Kayser.
A heterogeneidade dos motivos que participam do tema de uma narrativa levou este
teórico a classificá-los em associados e livres.
Por motivos associados, entende-se aqueles que são imprescindíveis para a
fábula, ou seja, aqueles que não podem dela ser excluídos sob pena de ser
modificada a ligação de causalidade que une os acontecimentos e, desse modo,
destruir a sucessão da narração.
os motivos livres, diferentemente dos associados, podem ser omitidos da
narrativa sem interferir na fábula, ou seja, sem prejuízo a sua sucessão cronológica
e causal. Todavia, na trama, por exercerem uma função dominante, determinando a
construção da narrativa, se descartados, podem danificá-la.
85
Antonio Dimas (1994) auxilia no entendimento da funcionalidade dos motivos
livres propostos por Tomachevski:
[...] constituem eles os reforços periféricos de uma narrativa, importantes na
medida em que funcionam para caracterizar uma ação (dinâmica/estática;
agressiva/amistosa; noturna/diurna; terrível/aprazível etc.); um personagem
(seu porte, sua indumentária, seu físico, seu perfil moral e emocional, seus
prazeres e desprazeres, suas manias, suas lembranças e expectativas, etc.);
um ambiente (claro/escuro; agradável/desagradável; benéfico/maléfico;
espaçoso/constrito etc.) o eles, em última análise a carnadura e o recheio
daquela ossatura composta de motivos associados. Depende desses
detalhes o significado maior ou menor de um romance, na medida em que,
atuando como aparelho auxiliar, na designação de Nelly Cormeau, são
capazes de instaurar uma “cumplicidade rítmica entre o clima físico e o clima
humano, dentro da obra” (DIMAS, 1994, p. 35-36).
Essa distinção deve ser abordada com cautela, pois a natureza dos motivos
não é rígida, ela pode ser reversível no decorrer da narrativa, conforme aponta
Dimas (Ibid., p. 36). Isto quer dizer que um motivo livre pode tornar-se associado e
um motivo associado, tornar-se livre.
Os motivos também são classificados por Tomachevski (1973) segundo a
ação objetiva que descrevem. Nesse sentido podem ser dinâmicos ou estáticos. Os
motivos dinâmicos, centrais ou motores da bula são os que dentro dela modificam
uma situação, e estáticos, os que não a modificam. Estes últimos acentuam-se mais
na trama. Tomachevski (1973) classifica como motivos dinâmicos os fatos e gestos
do herói e como estáticos, as descrições da natureza, do lugar, da situação, dos
personagens e de seus caracteres.
Os motivos assim classificados associados e livres; dinâmicos e estáticos
formam um sistema de procedimentos. O teórico russo entende que é desse sistema
que decorre “a introdução de motivos particulares e seus conjuntos” (Ibid., p. 14). A
motivação é necessária para conferir uma unidade estética ao conjunto de motivos
que constituem a temática de uma obra. Segundo a natureza e o caráter, os
procedimentos de motivação são variados e classificam-se em motivação
composicional, motivação realista e motivação estética.
A motivação composicional baseia-se no princípio da economia e utilidade
dos motivos, na medida em que se tornem úteis à trama. Segundo Tomachevski
(1973), “os motivos particulares podem caracterizar os objetos colocados no campo
visual do leitor (os acessórios) ou então as ações dos personagens (os episódios)”
(Ibid., p. 184). Este é o primeiro caso de motivação composicional. O segundo caso
é a introdução de motivos como procedimentos de caracterização, que podem
86
permanecer em harmonia com a dinâmica da fábula (Ibid., p. 185), por analogia
psicológica ou por contraste. Uma analogia psicológica pode se dar, conforme os
exemplos de Tomachevski, entre o luar e uma cena de amor; a tempestade ou
borrasca e as cenas de morte ou crime. Por contraste, o motivo da natureza pode
permanecer indiferente à peripécia que naquele tempo e lugar ocorre. Em outras
palavras, Dimas explica que a motivação caracterizadora “é a que confirma um
estado de coisas ou a ele se opõe” (DIMAS, 1994, p. 37), podendo ser homóloga ou
heteróloga.
A motivação ainda pode ser falsa. Nesse caso, visa a desviar a atenção do
leitor e induzir a narrativa a um desfecho inesperado. Tomachevski (1973) aponta a
ocorrência deste tipo de motivação quando os acessórios caracterizadores induzem
o leitor a uma determinada expectativa que não se cumpre.
Outro tipo de motivação, a realista, procura criar uma ilusão de realidade no
leitor.
Anota Tomachevski: Para um leitor mais informado, a ilusão realista toma
uma forma de exigência de verossimilhança” (Ibid., p. 187). Diz-se ilusão porque
mesmo ciente do caráter inventivo da obra, até o leitor conhecedor das leis de
composição artística não consegue deixar de exigir uma determinada
correspondência entre a obra e a realidade, conferindo valor a essa obra nessa
ilusão de realidade. Desse modo, cada motivo deve ser introduzido como um
provável motivo para a situação que se apresenta.
a motivação estética atende às exigências da construção estética da obra
literária. A escolha dos temas deve ser justificada esteticamente. Este teórico
apresenta como um caso particular de motivação estética o procedimento de
singularização. Afirma que
a introdução do material extra-literário numa obra deve justificar-se por sua
novidade e individualidade a fim de que não se oponha aos outros
constituintes dela. É preciso falar do antigo e do habitual como do novo e
do não-habitual. O usual deve ser tratado como insólito (Ibid., p. 191).
As discussões entre as antigas e novas escolas literárias surgem devido a
este tipo de motivação: “a antiga corrente, tradicional, nega a existência do caráter
estético das novas formas literárias” (TOMACHEVSKI, 1973, p. 191). Toma como
exemplo o caso do léxico poético que deve harmonizar-se com as tradições literárias
estáveis (fontes de prosaísmos, palavras proibidas à poesia).
87
A diversidade de motivos agrupados sustentação ao tema da narrativa,
conforme observa Tomachevski (1973). Para este formalista, tema significa a
unidade composta pelas significações dos elementos particulares da obra. Ele
também ensina como o tema se sintetiza: “no decorrer do processo artístico, as
frases particulares combinam-se entre si segundo seu sentido e realizam uma certa
construção na qual se unem através de uma idéia ou tema comum” (Ibid., p. 169).
A designação de tema o se restringe somente ao todo da obra, mas se
estende, também, às partes que o integram. Por isso, se deseja-se estudar um dos
elementos que compõe a narrativa, como por exemplo o espaço, é necessário,
primeiramente, efetuar sua decomposição em fábula e trama. Neste trabalho deve-
se dispensar especial atenção aos motivos livres e aos motivos associados
escolhidos pelo narrador, pois estes estão ligados a esses dois componentes da
narrativa.
De acordo com Tomachevski, fábula é “o conjunto de acontecimentos ligados
entre si que nos são comunicados no decorrer da obra” (TOMACHEVSKI, 1973, p.
173), ou seja, a bula é a história propriamente dita, nela estão presentes os
motivos centrais do desenvolvimento da ação. Acrescenta o crítico formalista:
Ela [a fábula] poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo
com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica e causal dos
acontecimentos independentemente da maneira pela qual estão dispostos
e introduzidos na obra (TOMACHEVSKI, 1973, p. 173).
A fábula é bem mais simples e mais resumida do que a trama. Por trama,
compreende-se o conjunto dos mesmos acontecimentos, mas respeitando “sua
ordem de aparição na obra e a seqüência de informações que se nos destinam
(Ibid., p. 173). A trama é, então, como se conta a história, como ela se constrói. É a
ordem de aparição dos acontecimentos na narrativa, a disposição formal dos
mesmos, o que ocorre não necessariamente numa seqüência cronológica.
Uma obra pode ser decomposta até chegar a sintagmas indecomponíveis,
que são os motivos nela presentes. Conforme abordado no início deste pico, os
motivos são entendidos por Tomachevski (1973) como sendo o tema das unidades
narrativas mínimas obtidas através da sucessiva decomposição de uma obra literária
em unidades temáticas. Assim sendo, os motivos, conforme assinalado, ligam-se
à fábula e à trama.
88
4.2.1.2 Espaço
Próximo aos motivos e, algumas vezes, amalgamado com eles, está o
espaço. Para desenvolver a noção de espaço, Antonio Dimas utiliza-se da
conceituação de motivos e tema propostos por Tomachevski (1973), tal como está
explicitado no tópico anterior.
A atenção aos motivos é importante no estudo do espaço porque neles estão
contidas as unidades de maior ou menor significação espacial na narrativa. Através
da significação dessas unidades narrativas mínimas, o autor fornecerá ou não ao
elemento espaço, matizes, cores, olfato, sensações, particulares, enfim, um conjunto
de pistas que permitirão ao leitor atento interpretar a forma e avaliar o estatuto que o
autor deu ao elemento espaço e também à ambientação na narrativa.
A valorização do espaço na construção do texto literário está diretamente
ligada à sua funcionalidade e organicidade, à medida em que o espaço pode ser
utilizado pelo autor como recurso para dar maior significação à determinada
narrativa.
Quando o espaço atua no desenvolvimento do enredo, ampliando seu
significado, o estudo deste torna-se elemento deveras importante na análise,
assumindo valor inestimável caso se deseje melhor compreender a criação literária
de determinado autor. Assim sendo, os resultados da tentativa de buscar a relação
entre o espaço e os demais componentes da narrativa, pode aproximar o
pesquisador da significação mais profunda da obra, e, portanto, é um trabalho que
não deve ser desmerecido.
O espaço pode apresentar-se sob diferentes níveis de importância em um
texto literário, dependendo dos critérios adotados pelo autor para o tratamento do
tema. Através da análise, é possível determinar-se o grau de importância com que o
autor contemplou este componente em sua criação literária.
Baseado nesta concepção, Dimas (1994) antecipa possibilidades de
reconhecimento da utilização do elemento espaço, que podem ser averiguadas pelo
leitor atento, registrando que ele pode encontrar narrações em que esse
componente pode estar severamente diluído e, por esse motivo sua importância
torna-se secundária ou, ao contrário, em outras, o espaço poderá ser prioritário e
fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante. Dimas (1994)
ainda considera uma terceira hipótese de averiguação, a qual julga bem mais
89
fascinante para o leitor, que é a de ir-se descobrindo a funcionalidade e organicidade
do espaço na obra gradativamente, uma vez que o escritor, neste caso, “soube
dissimulá-lo tão bem a ponto de se harmonizar como os demais elementos
narrativos, não lhe concedendo, portanto nenhuma prioridade” (Ibid., p. 6).
Historicamente, a análise do espaço não tem recebido muita atenção da
crítica, conforme afirma Dimas:
No quadro da sofisticação crítica a que chegaram os estudos sobre o
romance, é fácil perceber que alguns aspectos ganharam preferência sobre
outros e que o estudo do espaço ainda não encontrou a receptividade
sistemática (DIMAS, 1994, p.6).
Dentro deste cenário, os estudos sobre o espaço em romances têm oscilado
entre uma abordagem simples, apenas ilustrativa e uma mais complexa, analítico-
interpretativa. Esta classificação exposta por Dimas (1994) define o primeiro caso
como um estudo menos importante em relação ao segundo, que quase não contribui
com a literatura, uma vez que somente interessa-se em recolher o espaço do texto
literário de maneira fotográfica, ou seja, o pesquisador reduz seu trabalho à
constatação, compilação e apresentação para o leitor da imagem visual de
determinado espaço verbalizado em determinada narrativa, sem tentar especular
sua eventual funcionalidade.
Sobre a tendência de estudos de caráter ilustrativo, Dimas aponta:
Nesse tipo de geografia literária, o que está em pauta não é a visão do
mundo transfigurada e remodelada pelo artista, capaz de dotar a realidade
histórica de atributos outros que não os simplesmente exteriores, mas,
antes, a insistência em localizar o modelo que funcionou como ponto de
partida (Ibid., 1994, p. 7).
os estudos que se enquadram na tendência do segundo caso, o analítico-
interpretativo, contribuem para os estudos literários, porque analisam e exploram
intimamente a questão do espaço apresentado ao leitor, tentando extrair deste
componente narrativo sua funcionalidade, os significados mais íntimos nele
presentes, ocultos à primeira vista. Diferentemente da observação geográfica, que
se limita a verificar como foi realizada a transposição do plano geográfico histórico
para o literário, um estudo deste tipo tenta apreender o significado novo que brota
desses mesmos espaços, a partir da manipulação pessoal e artística da palavra”
pelo autor, afirma Dimas (Ibid., p. 12).
90
De acordo com essa perspectiva, Dimas aponta o trabalho de Osman Lins,
autor de Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), que contribuiu com dois
conceitos: espaço e ambientação.
Por espaço no romance Lins define como sendo:
[...] tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que,
inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela
personagem, sucedendo, inclusive, ser constituído por figuras humanas,
então coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para zero (LINS,
1976, p. 72).
por ambientação ele entende “[...] o conjunto de processos conhecidos ou
possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado
ambiente” (LINS, 1976, p. 77).
Lins (1976) alerta que o espaço distingue-se da ambientação na análise do
texto literário, devido às seguintes características: a aferição do espaço é baseada
na experiência de mundo do leitor; o espaço é denotado, é simples e explícito,
contém dados da realidade que mais tarde podem alcançar dimensão simbólica. Por
sua vez, o juízo da ambientação é mais complexo. É necessário possuir um certo
conhecimento da arte narrativa para poder detectar e interpretar os recursos
expressivos utilizados pelo autor. Para compor a ambientação, o espaço, a princípio
puro e simples, articula-se com um conjunto de significados mais complexos que
participam da ambientação. Diferentemente do espaço, a ambientação é conotada, é
subjacente e implícita.
Lins (1976) classifica a ambientação em três tipos, a saber: a franca, a reflexa
e a dissimulada ou oblíqua. Ele chegou a esta classificação baseado nas relações
do espaço com o fluxo da narrativa, e levando em conta o narrador e os
personagens. O envolvimento destes do narrador e dos personagens prende-se
ao fato de que é através deles que é revelada a ambientação.
A ambientação franca caracteriza-se pela descrição feita por um narrador
independente, que não participa da ação. O narrador suspende o relato das ações
para explicar o ambiente.
Neste caso, torna-se nítido um certo exibicionismo técnico, o que, muitas
vezes dá margem à gratuidade do recurso, já que o momento não adere de
forma plena à ação em curso (DIMAS, 1994, p. 20).
Esse tipo de ambientação pode tornar-se enfadonha para o leitor interessado
somente no dinamismo das ações porque pode criar um vazio narrativo. No entanto,
91
qualquer avaliação a respeito desse recurso deve ser avaliada no contexto do
romance.
Na ambientação reflexa “as coisas, sem engano possível, o percebidas
através da personagem” (LINS, 1976, p. 82). Neste tipo de ambientação, explica
Dimas (op. cit., p. 26), o narrador passa para um personagem a tarefa de expor o
ambiente das ações a partir de sua perspectiva que é quase sempre compartilhada
pelo narrador. Por ser um recurso que busca evitar as pausas descritivas que
ocorrem na ambientação franca, a ambientação reflexa mantém em foco o
personagem e assim não favorece o vazio e não compromete o ritmo da narrativa.
Esclarece ainda Lins que “a personagem, na ambientação reflexa, tende a
assumir uma atitude passiva e a sua reação, quando registrada, é sempre interior”
(LINS, 1976, p. 83), ou seja, este tipo de ambientação não provém da ação da
personagem propriamente dita.
Estas duas ambientações a franca e a reflexa - são facilmente
reconhecíveis no texto literário, afirma Lins (1976). O narrador seja ele um
narrador oculto ou um personagem narrador - interrompe o relato da continuidade da
ação e direciona sua atenção para os elementos do contexto onde elas ocorrem.
Aparecem inseridas no texto literário sempre em bloco de até vários parágrafos,
devido ao seu caráter compacto ou contínuo. Apresentam-se constituídas de uma
unidade temática que pode ser perfeitamente identificada como o ocaso, o desfile, a
sala, a casa, a estação, a tarde, a cidade, exemplifica Lins (1976).
Já a ambientação dissimulada ou oblíqua não é tão fácil de ser identificada no
texto. Isto porque não aparece após uma interrupção do relato do desenvolvimento
das ações e sim em harmonia com o fluxo narrativo. Ao contrario da ambientação
reflexa que não requer do personagem uma ação, este tipo de ambientação exige
uma personagem ativa, que assuma a tarefa de enlaçar e harmonizar espaço e ação
de forma altamente satisfatória. Para reconhecer seus limites, é necessário um leitor
paciente e educado, porque nela “imiscuem-se e interpenetram-se seres e coisas
que somente a leitura demorada poderá separar, hierarquizar e avaliar”, completa
Dimas (1994, p. 26).
Dentro da dissimulação ambiental os “atos da personagem [...] vão fazendo
surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos” (LINS,
op. cit., p. 84).
92
A utilização destes recursos depende dos critérios adotados pelo autor ao
compor seu tema, uma vez que este, em seu processo criativo, tem a liberdade de
escolher como deseja apresentar a ambientação onde ocorrem as ações. Os três
tipos de ambientação podem aparecer em conjunto ou um determinado tipo pode
predominar em uma mesma narrativa.
Outro aspecto abordado por Osman Lins (1976) em sua teoria diz respeito às
diferentes funções que pode assumir o espaço na medida em que se interliga com o
personagem. Nessa relação, este elemento da narrativa pode contribuir para
caracterizar o personagem, pode influenciá-lo ou pode assumir a tarefa explícita de
somente situá-lo.
O espaço com função de caracterizador do personagem é, em geral, o
espaço doméstico. Na escolha dos objetos de um quarto ou de uma sala, por
exemplo, na sua disposição e conservação, pode refletir-se a maneira de ser do
personagem. Já através dos elementos exteriores, como o bairro ou a situação
geográfica na qual está inserido o personagem é possível deduzir sua inserção
social.
Da mesma forma que o espaço tem a possibilidade de informar sobre o
personagem, pode ocorrer que ele o influencie. Assim, o espaço pode propiciar uma
ação e, também, pode provocá-la, conforme assinala Lins:
O fato de o espaço, em certos casos, provocar uma ação desatando,
portanto, forças ignoradas ou meio ignoradas -, relaciona-o com o
imprevisto ou surpresa; enquanto isso, os casos em que o espaço propicia,
permite, favorece a ação, ligam-se quase sempre ao adiamento: algo
esperado adensa-se na narrativa, à espera de que certos fatores, dentre os
quais o cenário, tornem afinal possível o que se anuncia (LINS, 1976, p.
101).
Quando a função do espaço se resume, exclusivamente, a situar o
personagem, configura-se uma ambientação totalmente impessoal que não informa
sobre o personagem nem o influencia. Neste caso, não é possível perceber “um
nexo entre a personagem, a ação cumprida e o cenário em que a cumpre ensina
Lins (1976, p. 101).
É importante destacar que a utilização de um recurso não deve sobrepor-se
ao uso de outro. Segundo Lins “o estudo do espaço pode revelar-se fascinante e
cheio de surpresas exatamente nos casos em que a sua funcionalidade nos parece
menos ostensiva” (LINS, 1976, p. 106). Isto quer dizer que a pertinência ou não de
determinada função exercida pelo espaço não deve ser avaliada pela sua
93
classificação, mas sim pela engenhosidade e criatividade do autor, ou seja, deve
partir do reflexo positivo no conjunto da obra e do êxito obtido através de
determinada escolha.
Esta avaliação, no entanto, não é fácil. Ampliando o estudo do espaço
narrativo em uma obra literária proposto por Lins, Dimas (1994) expõe que o grande
desafio, nesta temática, é reconhecer que elementos verbais utilizados pelo narrador
contribuem ou não com um contexto narrativo:
Na questão do espaço narrativo, o ponto central que orienta a discussão e
que divide as suas águas diz respeito à utilidade ou à inutilidade dos
recursos decorativos empregados pelo narrador em sua tentativa de situar
a ação do romance, ou seja, até que ponto os signos verbais utilizados
limitam-se apenas a caracterizar ou a ornamentar uma dada situação ou
em que medida eles a ultrapassam, atingindo uma dimensão simbólica e,
portanto, útil aquele contexto narrativo. O que é acidental e extrínseco à
ação; o que lhe é essencial e, portanto, intrínseco? Qual é, enfim, o grau de
organicidade/inorganicidade de um determinado elemento narrativo?
(DIMAS, 1994, p. 33).
Outra questão abordada por Dimas é a funcionalidade da descrição no texto
literário. Pondera este autor que a critica reconhece na descrição outras
possibilidades além da tarefa de exaltar ou condenar um espaço ou ajudar na
elaboração externa/interna do personagem. O parêntese descritivo também pode
auxiliar na criação de um ritmo narrativo, precipitando-o ou retendo-o.
Desse modo, a descrição, segundo estudos de Bourneuf e Ouellet, apontados
por Dimas, pode funcionar como:
1. “desvio depois de uma passagem muito ativa e agitada, a descrição
de um ambiente oferece a promessa de um repouso;
2. suspense a inserção de uma passagem descritiva num momento
crítico com o objetivo de aguçar nossa curiosidade factual;
3. abertura – ao antecipar o andamento de um romance;
4. alargamento ao verticalizar a informação, complementando dados
anteriores, num esforço de microscopia” (BOURNEUF E OUELLET apud
DIMAS, 1994, p. 41).
Com estas possibilidades, Dimas acrescenta ao estudo de Lins outras
funções exercidas pelo espaço-ambientação.
A proposta de Dimas se aproxima da proposição de Lukács exposta no
ensaio Narrar ou Descrever (1936). Lukács sugere uma noção próxima da
ambientação, mostrando o papel que ela exerce na seqüência das ações. Com isso,
ao abordar as potencialidades da descrição e da narração, amplia as idéias
propostas por Tomachevski. Lukács adverte que os motivos livres que ele chama de
acidentais são muito importantes.
94
Sem elementos acidentais, tudo é abstrato e morto. Nenhum escritor pode
representar algo vivo se evita completamente os elementos acidentais; mas,
por outro lado, precisa superar na representação a casualidade nua e crua,
elevando-a ao plano da necessidade (LUKÀCS, 1965, p. 46).
Lukács contribui com a noção de espaço-ambientação ao analisar as
diferentes funções dos objetos do mundo. Ele afirma que estes podem servir como
“instrumentos da atividade e do destino dos homens”; podem constituir-se “pontos
cruciais das experiências vividas pelos homens em suas relações sociais decisivas
ou podem ser, ainda, “meros cenários da atividade e do destino deles” (LUKÁCS,
1965, p. 47).
O primeiro e o segundo caso está ligado ao plano da necessidade, onde os
personagens relacionam-se com os acontecimentos e, conseqüentemente, com o
ambiente e neles realizam seu destino. O terceiro caso está ligado à casualidade,
isto é, o cenário constitui-se um pretexto para a descrição de determinada cena, não
tem quase relação com os acontecimentos nem provém do íntimo valor humano dos
acontecimentos narrados. Por acreditar que os motivos acidentais devem advir deste
valor humano que lhe é dado e que a necessidade deve superar a casualidade é
que Lukács estabelece a primazia da narração dos acontecimentos e do ambiente
sobre a descrição de tais elementos.
Por narrar Lukács (1965) define o que provém da participação do escritor que
narra acontecimentos humanos ao invés de descrevê-los por imagens. Ao participar,
o escritor faz o público viver os acontecimentos, devido à participação ativa do
personagem que torna esses acontecimentos importantes para as relações e o
desenvolvimento da vida humana. por descrever, o que provém do ponto de vista
do observador que apenas descreve algo. Ao observar, o escritor transmite os
acontecimentos ao leitor em forma de uma rie de quadros porque neste caso o
personagem é apenas expectador.
É importante salientar que nenhum escritor renuncia totalmente ao narrar ou
ao descrever. A utilização destes fenômenos de forma pura não é importante, o que
é importante são os princípios da estrutura da composição, ensina Lukács (1965).
Dentro dessa concepção, em seu ensaio, o teórico húngaro se propõe a
investigar como e porque a descrição, que originariamente era um entre os muitos
recursos empregados na criação artística e, portanto, de importância secundária,
tornou-se, segundo sua concepção, o princípio fundamental da composição. Lukács
centrou seus estudos na literatura burguesa posterior a 1848. A alternativa Narrar ou
95
Descrever constitui-se uma questão ligada à posição adotada pelos escritores diante
dos acontecimentos do mundo que os rodeava nesta época.
A mudança radical da forma de utilização da descrição como recurso ocorreu
com o romantismo, assevera Lukács (1965), devido à necessidade de configurar
adequadamente as novas formas que se apresentavam na vida social da segunda
metade do século XIX. Para expressá-las fazia-se necessário descrever os
pormenores, as minúcias do ambiente, para, através da riqueza de detalhes
completar individual e socialmente os diferentes tipos de personagens.
Relata Lukács que “a relação entre o indivíduo e a classe tornara-se mais
complexa do que nos séculos XVII e XVIII” (LUKÁCS, 1965, p. 51). Desse modo,
não era mais satisfatória a indicação sumária e simplificada do ambiente, do aspecto
exterior, dos hábitos do indivíduo para obter-se uma clara e completa caracterização
social.
Dentro desta transformação da descrição, Lukács (1965) aponta as duas
posições, anteriormente referidas, oriundas da necessidade social assumidas pelos
escritores em dois sucessivos períodos do capitalismo: participar ou observar. A
opção participar está ligada ao narrar e a opção observar está ligada ao descrever.
Assim, a alternativa narrar ou descrever, que título ao ensaio de Lukács,
corresponde aos dois métodos fundamentais de representação da realidade próprios
dos dois períodos capitalistas assinalados. Tais opções, segundo Lukács (1965),
são oriundas da pressão exercida pelo capitalismo e não porque os escritores
desejavam representar de forma diferente um determinado conteúdo ou parte deste
conteúdo. Assim, a mudança ocorrida no recurso da descrição é devido a fatores
históricos e sociais nos quais estão inseridos os grandes escritores.
Explica o teórico:
Os novos estilos, os novos modos de representar a realidade, não surgem
jamais de uma dialética imanente das formas artísticas, ainda que se
liguem sempre às formas e sentidos do passado. Todo novo estilo surge
como uma necessidade histórico-social (Ibid., 1965, p. 53).
Lukács expõe que, quando a literatura artística não consegue encontrar o elo
existente entre a prática e a riqueza de desenvolvimento da vida íntima das figuras
típicas do tempo, o interesse do blico recorre a “sucedâneos abstratos e
esquemáticos da literatura” (Ibid., p. 59), fato que aconteceu na segunda metade do
século XIX. Em sua avaliação, “a literatura baseada na observação e descrição
96
elimina sempre, em medida crescente, o intercambio entre a praxis e a vida interior”
(Ibid., p. 59).
Para ele, a narração distingue e ordena e a descrição nivela todas as coisas.
Assim, Lukács (1965) considera o método descritivo inferior ao narrativo porque o
primeiro leva à monotonia da composição, enquanto que o segundo, o narrativo, ele
considera uma arte porque propicia e estimula uma variedade infinita de formas de
composição. No entanto, Dimas adverte que:
[...] é preciso estar atento para não se condenar a priori o processo
descritivo, sem antes avaliar seu significado no interior de um texto ficcional.
Não repousa, necessariamente, na forma (e nem no conteúdo!) a
condenação ou a absolvição prévia de uma obra, mas sim na sua
organicidade (DIMAS, 1994, p. 43).
Lukács (1965) critica o método da observação e descrição, alegando que ela
pode trazer como conseqüência além do mero nivelamento das coisas, algo pior,
uma ordenação hierárquica às avessas. Para incorrer neste perigo e provocar tal
ordenação “basta o fato de descrever com a mesma insistência os elementos
importantes e os elementos inessenciais, que permite uma inversão de sentido e a
passagem do segundo ao primeiro plano” (Ibid., p. 67). E acrescenta: “Em muitos
escritores, essa característica vem unida a uma forma apagada, que dilui toda
significação humana” (Ibid., p. 67). Neste sentido, Lukács (1965) adverte e Dimas
(1994) enfatiza que as coisas só têm significado se estão imbuídas de valor humano.
Por si mesmas não tem valor nem são relevantes.
Outra conseqüência negativa da descrição, segundo Lukács (1965), é o
perigo de que as particularidades a dissociem da evolução dos acontecimentos ou
do destino dos personagens e adquiram autonomia e valor próprio, individualizando-
a. Assim ocorrendo, pode ficar comprometida a ligação artística dessas
peculiaridades com o conjunto da composição literária.
No dizer de Lukács (1965), o método descritivo rebaixa os homens ao nível
das coisas inanimadas”; encaixa-se perfeitamente na imagem “feita e acabadado
capitalismo, ou seja, tal método espelha a transformação operada no homem real
pelo capitalismo real” (Ibid., p. 81).
No que diz respeito à narração, recurso considerado superior à descrição pelo
teórico, Lukács (1965) destaca que é preciso narrar bem. Para conseguir isto, é
preciso que o escritor tenha uma concepção de mundo própria, oriunda da síntese
da soma de suas experiências concretas elevada a certo grau de abstração. Com
97
isto ele quer dizer que a boa narração depende da riqueza íntima do escritor,
manifestada pelo conhecimento dos diversos vieses que pode assumir determinada
temática no mundo. É através dessa riqueza íntima que lhe confere uma profunda
visão de mundo, que ele consegue enlaçar com habilidade e conferir valor poético
aos motivos que compõem ou completam o espaço-ambientação, os acontecimentos
e os personagens, formando um todo onde as partes se ajustam e se harmonizam.
Além de uma visão estrutural da narrativa, o espaço e o motivo também
comportam uma leitura simbólica, ainda que sucinta, tendo em vista as
peculiaridades de nosso trabalho. Nessa perspectiva destacam-se os estudos de
Gaston Bachelard e sua Poética do Espaço. O estudioso francês reitera a
funcionalidade do espaço na narrativa e o apresenta como essencial na arte de
narrar. Acredita que, além da materialidade do espaço, um significado intrínseco
em cada um dos elementos que o compõem. Isto quer dizer que ele extrai
significados dos “objetos”, das “coisas” que ultrapassam a sua função material.
Bachelard (1996) destaca que é através do espaço e não do tempo que
concretizamos nossas lembranças, ou seja, é através do espaço que a memória é
ativada e não através do tempo.
Dedicado ao “estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida
íntima” (Ibid., p. 202), ou o que ele denomina de topoanálise, Bachelard examina
imagens da intimidade do ser humano (casa, ninhos, conchas, recantos, gavetas,
cofres, armários) ou o que ele denomina espaço feliz. Isto porque todo o espaço de
intimidade é um espaço feliz, que remete à sensação de tranqüilidade, conforto e
bem estar. Suas investigações objetivam determinar o “valor humano dos espaços
de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados”
(Ibid., p. 19).
Dentro das imagens produzidas pela imaginação, Bachelard dedica-se ao
estudo daquelas que povoam a região da intimidade, entre elas a imagem da casa
ou a poética da casa. A casa é a habitação particular do indivíduo em relação ao
universo, que é a morada dos homens.
Toda grande imagem é reveladora de um estado de alma. A casa, mais ainda
que a paisagem é “um estado de alma”. Mesmo reproduzida em seu aspecto
exterior, fala de uma intimidade (Ibid., p. 243).
A casa é sempre um espaço amado porque este espaço tem valor de concha,
de abrigo e qualquer abrigo supõe impressão de conforto, de proteção. Isto porque
98
“a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de
estabilidade”, completa Bachelard (Ibid., p. 208).
Outro valor da casa é o valor maternal, ou seja, ela se protege e,
conseqüentemente, seu habitante das forças que a sitiam. Por essa razão,
Bachelard (1996) também estuda a casa em relação ao exterior, ao universo. Os
temas da casa e o do universo originam diferentes devaneios - a casa, de segurança
e o seu exterior, o universo, de insegurança. Bachelard (1996) diz que o espaço da
casa adquire um aumento de intensidade dos valores de intimidade
proporcionalmente ao aumento do grau de hostilidade do mundo exterior.
Com a remissão a Bachelard concluímos a apresentação dos conceitos de
motivo, tema e espaço, tópicos que, como se viu, costumam ser apreciados de modo
interligado dentro de uma obra.
O motivo é uma célula da narrativa, ou seja, a narrativa decorre do
agrupamento de motivos de diversas naturezas. A forma como eles se harmonizam
é muito importante porque todos devem contribuir, segundo sua função, para a
concretização do tema e para o significado da narrativa. Nenhum dos motivos deve
adquirir valor próprio, todos eles devem ter valor na medida em que se tornam úteis
à organicidade e à poética da obra.
Kayser (1976) e Tomavchevski (1973) procuraram classificar os motivos para
melhor estudá-los. Kayser (1976) os dividiu, por ordem de importância, dentro do
desenvolvimento das ações, em centrais e subordinados. Também é dele a
conceituação de motivos específicos, cuja identificação exige um pouco de
conhecimento da técnica literária, como os leitmotiv - aqueles que assumem a
função de ligação, os topos ligados à tradição literária, e os emblemas alegorias
que remetem a determinados sentidos.
Tomachevski (1973) dividiu-os segundo sua heterogeneidade em
associados e livres e, segundo a ação, em dinâmicos e estáticos. Dentro da bula,
os associados são responsáveis pela ligação de casualidade, os livres são os
podem ser descartados; e os dinâmicos são os que modificam uma situação. os
estáticos, presentes mais na trama, são os que não modificam a fábula.
Dimas (1994), na esteira de Lukács, chama a atenção para a importância dos
motivos livres de Tomachevski que são dominantes na trama. Estes são
responsáveis pela maior ou menor significação da obra literária, devido a sua
capacidade de harmonizar o conjunto dos motivos.
99
O espaço, em uma narrativa, encontra-se ligado aos motivos. Lins, Dimas,
Lukács e Bachelard têm como ponto comum o interesse pelo espaço. Através da
análise dos motivos relacionados com o espaço, Dimas diz que é possível tentar
estabelecer o status que lhe conferiu o narrador dentro do texto literário bem como o
significado que emana deste espaço.
Uma das preocupações de Lins (1976) foi diferenciar espaço de ambientação.
O espaço é simples e denotado; a ambientação é complexa porque advém da
interpretação de um conjunto de recursos utilizados para compor determinado
ambiente.
Lins (1976), ao relacionar o espaço com o personagem, aponta algumas
funções decorrentes desta ligação: o espaço pode simplesmente situar o
personagem, pode caracterizá-lo ou pode influenciá-lo.
Dimas (1994) amplia as funções do espaço-ambientação, relatando que a
descrição de um ambiente pode ser utilizada como recurso de desvio, suspense,
abertura e alargamento dentro da narrativa.
Lukács (1965) considera as funções do espaço imprescindíveis na arte de
narrar. Ele preocupa-se em estudar as funções dos diferentes objetos do mundo que
compõem a ambientação. Estes objetos podem servir de instrumentos da atividade e
do destino dos homens, podem constituir-se pontos importantes das experiências
vividas nas relações sociais ou podem simplesmente ser cenários da atividade e do
destino humano. Para ele, o importante na narrativa é que os motivos estejam
dentro das duas primeiras possibilidades, pois nestes casos eles são vivenciados.
Segundo ele, um motivo é vivenciado quando se encontra intimamente ligado ao
fluxo narrativo.
Por fim, Bachelard (1996) também enfatiza a importância da funcionalidade
do espaço na narrativa, direcionando seu estudo para os espaços mais íntimos e
que, para o ser humano, são sinônimos de aconchego e prazer, como a casa, o
ninho, as conchas. Estes espaços, na narrativa, podem servir de ponto de partida
para desencadear a imaginação do narrador.
Desejando-se analisar o espaço-ambientação na narrativa, faz-se necessário
subsidiar-se nas diversas teorias abordadas, visto que elas buscam auxiliar o
pesquisador neste trabalho. A opção de diferentes estudiosos pelo estudo do espaço
confirma a importância que passou a adquirir este aspecto na significação da obra
literária.
100
4.3 Ocorrências em Dom Segundo Sombra
4.3.1 - Considerações
Em Dom Segundo Sombra de Güiraldes, o herói e personagem epônimo da
obra exerce uma ascensão espiritual sobre o protagonista Fabio, enriquecendo,
deste modo, a distribuição dos papéis na trama. Sabe-se que o personagem é um
habitante da realidade ficcional e participa como elemento principal da narrativa.
Segundo Antonio Cândido, em A personagem de ficção (1981), a “vida” de um
personagem depende da sua situação diante dos demais elementos que o
constituem: outros personagens, ambiente, duração temporal, idéias. Esta afirmação
é desenvolvida por Beth Brait, em sua obra A personagem (1999), na qual esta
autora diz que os personagens agem uns sobre os outros e revelam-se uns pelos
outros, não dependendo somente de si para existir. Deste modo, Fabio não teria
grande êxito se não contasse com o modelo inspirador e o apadrinhamento de Dom
Segundo em sua viagem pelo pampa. O personagem Dom Segundo Sombra, por
sua vez, não teria destacada sua nobreza e condição de herói, se não lhe tributasse
grande admiração Fabio, o personagem-narrador. E este, para concretizá-la, não
tivesse usado dos diferentes artifícios de que dispõe o narrador como o uso da
própria narração, da descrição, dos diálogos, dos discursos enfocados para os
momentos de sucesso do herói.
A composição dos personagens gaúchos de Dom Segundo Sombra conta
com a contribuição primordial do espaço, pois sem ele não seria possível compor
tais personagens com as características que estes apresentam. Ademais, além de
conhecedor da região do pampa platino, Güiraldes pesquisou detalhadamente o
ambiente do campo a fim de compor sua obra. Buscou nomes de plantas, de
animais, investigou costumes e objetos da vida campeira e também baseou sua obra
em uma pessoa real, Dom Segundo Ramírez. Desse modo a importância do espaço
também fica enfatizada na narrativa.
A voz central pertence ao protagonista e personagem-narrador Fabio, que é
completada pela de outros gaúchos: a dos trabalhadores, a dos despolitizados, a
dos que não o soldados, nem heróis de guerra, nem rebeldes, nem delinqüentes.
101
O personagem Dom Segundo assim como os outros gaúchos que figuram no
romance estão inseridos na civilização e já incorporaram a lei estatal.
Mesmo em outra voz e em outra condição social, trazem consigo marcas das
obras e dos personagens que os antecederam e que caracterizam o gênero como o
uso do corpo pelo estancieiro; a indisposição e desconfiança frente ao judiciário; a
impotência diante de sua condição social oprimida entre os grandes proprietários de
terra, o comércio estrangeiro e as decisões governamentais; resquícios de ódio
racial que pautou a história da Argentina desde que nela chegaram os primeiros
exploradores espanhóis; o rechaço ao estrangeiro e à sua dominação; a pobreza e
condição social inferior do gaúcho e a conseqüente marginalização por o
pertencer à elite proprietária dominante ou estar ligado à organização
governamental; a permanência de um código consuetudinário moral que rege a
hierarquia de valores distante do materialismo e ligada principalmente ao desejo de
liberdade; a aversão ao contexto urbano; o desejo de solidão; a posição inferior da
mulher no escalonamento social e a situação dramática do índio.
Ademais, a obra Dom Segundo Sombra também entra no debate com outras
obras do gênero, tentando por sua vez incutir no leitor a sua versão da imagem e
significação do gaúcho, baseada na não violência e no heroísmo do trabalho
cotidiano, apresentando um código de honra que deve pautar as ações e os destinos
do homem argentino. Também há a preocupação em definir a questão da identidade
nacional como ocorre com Hernández, em Martín Fierro.
No que concerne à linguagem, o texto de Dom Segundo traz consigo uma
variedade de metáforas, de comparações próprias do mundo rural e estranhas ao
urbano, bem como faz uso de imagens para expressar suas idéias filosóficas. Na
narrativa em estudo, a linguagem é um elemento que contribui muito para dar vida à
trama, visto que ela cria um efeito de verossimilhança ao adotar termos específicos
ligados à vida campeira. As comparações, a animação dos objetos e a
personificação da natureza auxiliam na valorização do ambiente do pampa, pois são
nomeadas diferentes espécies da fauna, da flora, dos objetos típicos e instrumentos
de trabalho bem como particularidades geográficas do território argentino.
As marcas européias apontadas por Ludmer como pertencentes a todo texto
do gênero gauchesco se encontram na obra de Güiraldes sob a influência francesa
que deixou transparecer e que são apresentadas por Giovani Previtalli em seu
ensaio Dom Segundo e os simbolistas franceses (1969), o qual estabelece diversas
102
relações de semelhança entre o texto de Güiraldes e o de poetas simbolistas
franceses como Valéry Larbaud, seu amigo e confidente.
4.3.2 Contribuição do espaço e da ambientação na concretização dos motivos da
gauchesca
As marcas do gênero gauchesco, anteriormente citadas, evidenciam-se na
concretização dos diferentes motivos desenvolvidos pelo narrador. Estes motivos
adquirem maior significação e se ajustam melhor ao tema, através da contribuição
que recebem do espaço-ambientação. A seguir, discorre-se sobre algumas das
unidades temáticas desenvolvidas por Güiraldes em Dom Segundo Sombra e sua
implicação com as características deste gênero literário.
4.3.2.1 Escalonamento social
No sentido social, um dos motivos concretizados por Güiraldes em Dom
Segundo Sombra, que conta com a colaboração do espaço e da ambientação, é a
expressão do escalonamento das classes sociais vigentes, com destaque para o
patamar ocupado pelo gaúcho. O autor distribui os personagens no espaço,
segundo o papel social que ocupam. No caso dos personagens gaúchos, a
disposição espacial destes em relação aos personagens do patrão, dos
estrangeiros, da polícia e da instituição da igreja, freqüentemente os relegam a um
plano inferior com o objetivo, parece, de enfatizar outro motivo recorrente nas obras
gauchescas: o uso do corpo pelo patrão (e pelo exército).
No capítulo XIII, quando Dom Segundo e Fabio fizeram a “cavalerada”, ou
melhor, tiveram a audácia de almoçar no restaurante Fonda del Polo, no importante
povoado de Navarro, buscaram para comer “um lugar de sombra” num canto do
comedor. Posicionada atrás deles, havia uma mesa com um jovem estrangeiro
“rosado” que parecia ser o representante de alguma casa cerealista.
Relata Fabio: “O garçom saudou-nos com um sorriso de cumplicidade, que
não chegamos a compreender. Talvez lhe parecesse uma excessiva “cavalerada”
para dois paisanos isto de almoçar na Fonda del Polo” (GÜIRALDES, 1997, p. 104).
O sorriso do garçom, semelhante ao sorriso malicioso do patrão será
recorrente em vários trechos da obra.
103
A atitude do garçom revela que aquele lugar não é destinado para ser
freqüentado por indivíduos da posição social de Fabio e Dom Segundo que são
gaúchos tropeiros. O restaurante costuma ser freqüentado pelos estrangeiros, em
sua maioria, e na distribuição espacial eles é que ocupam o centro da sala. Isto
parece estar de acordo com o papel que os estrangeiros passaram a exercer na
sociedade, quando a Argentina, no intuito de modernizar-se, desejou tornar-se um
país de brancos e desprezou publicamente o tipo humano conhecido como gaúcho,
por considerá-lo o responsável pelo atraso econômico e social do país.
Num lugar ao centro, três espanhóis falavam forte e duro, chamando a
atenção para suas caras de verdureiros ou caixeiros de loja. Perto da
entrada, um casal irlandês esgrimia os talheres como lapiseiras; ela tinha a
cara e as mãos sardentas que nem ovo de quero-quero; o homem mirava
com olho de peixe, e sua cara estava cheia de veias rebentonas, como pança
de ovelha recém-coureada. [...] Outro da mesma mesa dialogava com o
vizinho sobre o preço dos porcos, e o cerealista intervinha opinando com
arrastados erres alemães (Ibid., p. 104 - 105).
Contrariamente à posição central dos estrangeiros, em outro canto estão
assentados dois gaúchos “em silêncio”, “empurrados pelo ruído”, “apressados”, um
deles “com uma escura mecha derrubada sobre o olho esquerdo e as “bocas sem
voz sumidas nos guardanapos”.
No canto oposto ao nosso, como empurrados pelo ruído, um par de
gaúchos olhava em silencio. Um deles tinha uma escura mecha derrubada
sobre o olho esquerdo e ambos estavam tostados pelo ar do campo.
Comeram apressados. À sobremesa riram sem voz, as bocas sumidas nos
guardanapos (Ibid., p. 105).
O ruído a que se refere o narrador e que “empurra os gaúchos” é provocado
pelos estrangeiros que relatam suas viagens e discutem seus lucros. A imagem
desses gaúchos demonstra que eles estão perdendo sua pátria e, com ela, sua voz
e sua parcela de participação nos destinos e no aproveitamento das riquezas do
país. Suas atitudes parecem ser de indivíduos “acuados” pelos estrangeiros
presentes, os quais detêm a palavra “forte e dura”, dominam os negócios e
abocanham seus postos de trabalho.
Assim, temos três patamares na disposição espacial dos elementos: os
estrangeiros no plano central, ou seja, em primeiro plano; num segundo plano, a
posição de Fabio e Dom Segundo também em um canto, porém com uma mesa de
estrangeiros atrás deles e, por último, os gaúchos trabalhadores “tostados pelo sol”
completamente relegados a um terceiro plano, em um canto e sem voz.
104
A localização dos protagonistas num plano espacial secundário, superior ao
outro par de gaúchos, significa que Dom Segundo, de “espírito anárquico” e livre,
ainda não está completamente subjugado pelo sistema e nem será, porque se
recusa a proletariar-se. Fabio, junto com ele, por inexperiência, desconhece o
significado do sorrisinho do garçom, então não se sente inferior. O significado do
sorriso malicioso entenderá quando em condição de homem culto, após ter sido
treinado pelos constantes sorrisinhos dos patrões. Ademais, a profissão de tropeiro
do afilhado e padrinho, ainda conservava alguma dignidade ao gaúcho que
ambicionava a antiga liberdade. Quando saíam a tropear “todos pareciam maiores e
mais robustos” (Ibid., p. 53). Por essas razões, estão inseridos entre as mesas dos
estrangeiros, mas não no centro.
Assim, a referida disposição espacial dos gaúchos silenciosos nos cantos da
sala e dos estrangeiros e proprietários no centro, que parece enfatizar-se com a
maior ou menor intensidade de luz, seja pelo vocábulo “sombra” no caso do lugar
buscado por Dom Segundo e Fabio ou “escura” no caso dos gaúchos sem voz, ou
“canto” no caso de ambas duplas, parece aludir à situação social que vivia a
Argentina, durante as grandes transformações iniciadas na segunda metade do
século XIX e que se intensificaram a partir de 1880, com a consolidação do Estado.
Numa época em que se concretizava o ideal desenvolvimentista com a aplicação de
capital estrangeiro, com o aumento das exportações e com a invasão dos imigrantes
europeus, a Argentina estava se tornando um país de brancos e estes tinham
prioridade.
O sorriso malicioso anteriormente citado parece sintetizar o que acontecia no
decorrer do século XIX. Estando a Argentina dependente economicamente da
Europa, tudo que vinha do velho mundo era indiscutivelmente “melhor”. As elites
presentes no território argentino faziam da europeização uma qualidade de sua
condição de classe, um símbolo de status e de distinção e desprezavam os
mestiços. Isto porque a gente da Europa era considerada “civilizada” e a gente
latino-americana, a “barbárie”. Além disso, no caso do sorrisinho dos patrões
também parece estar incluído o sentido da exploração do corpo do gaúcho que se
debatia entre as oligarquias nacionais e internacionais.
Para melhor fundamentar a idéia de que a invasão estrangeira constrangia os
nativos, julga-se pertinente relatar que o governo argentino (a partir da segunda
metade do século XIX) havia mobilizado fortemente os europeus para que
105
ocupassem suas regiões mais férteis. Vale dizer que, no ano da sua independência,
em 1816, a população da Argentina era de menos de 400.000 habitantes. Devido ao
estímulo da imigração, em 1860, a população havia subido para 700.000
habitantes e meio século depois haviam afluído ao país 6 milhões de imigrantes
oriundos de regiões agrícolas da Europa (em sua maioria italianos e espanhóis),
somados a um contingente originário da própria América do Sul. O governo alegava
como razão a necessidade de produzir alimentos como o trigo, carne, charque, e
também que seriam exportados para pagar as importações provenientes da
Europa. Conforme já exposto, as elites vigentes consideravam os gaúchos, símbolos
do interior, como incapazes e como um dos responsáveis pelo subdesenvolvimento
que havia até então experimentado a nação, ou seja, a barbárie, amplamente
apregoada por Domingos Faustino Sarmiento e os simpatizantes de sua teoria.
Contribuiu para reforçar a inferioridade dos nativos, a promulgação de leis pelo
governo argentino, as quais davam vantagens aos estrangeiros em relação aos
nativos, concedendo terras, dinheiro e ferramentas. Dessa forma, dentro da história
da Argentina que se conhece, os gaúchos foram relegados a um plano inferior em
relação aos estrangeiros e proprietários de terras, ao analisar-se o escalonamento
social. Essa atitude gerou conseqüências que podem ser sentidas até os dias atuais,
pois nas vilas argentinas mais pobres, é que se concentram os mestiços.
Disposição espacial semelhante a do restaurante Fonda del Polo pode-se
encontrar no capítulo XIV, no episódio da feira, desta vez levando-se em conta o
binômio interior exterior. A fronteira visível do galpão estabelece quem está
“dentro” e quem está “fora” da distribuição de riquezas e da discussão dos temas
importantes que movimentam a nação.
Os donos da feira, assim como os estancieiros e os clientes de
consideração, tinham no interior acomodada uma comprida mesa, com
muitos copos e guardanapos e jarras e garrafas, e até garfos [...] Logo que
Suas Mercês da mesa se fartaram de embuchar, saíram o rematador e sua
comitiva num carrinho descoberto, e começou a função. O rematador fez
um discurso cheio de palavras como “rebanhos nacionais”, “porvir
magnífico”, “grandes negócios”... e “deu princípio à venda” com um ”lote
excepcional”. Em redor do carrinho, a ou montados em cavalos dos
peões da feira estavam os ingleses dos frigoríficos, barbeados, vermelhos
e gordos como frades bem comidos. Os invernistas, tostados pelo sol,
calculavam ganhos e perdas, puxando os bigodes ou coçando o queixo
(Ibid., p. 115).
Esta imagem contrapõe-se à posição humilde da gente trabalhadora presente
no local da feira:
106
À sombra de um umbu, ao lado do grande galpão do local, assava-se carne
para os peões e o pobrerio [...]. Os carniceiros do lugar espreitavam uma
pechincha, com caras de rapaz que vai levantar as achuras de uma
carneada. E o público, formado de gente andeja e de estância, conversava
sobre qualquer coisa (Ibid., p. 115).
Assim, enquanto os donos da feira, os estancieiros e os ingleses “gordos
como frades bem comidos”, no local central, discutem o “porvir magnífico” e “os
grandes negócios”, a maioria dos “peões”, “os carniceiros”, a “gente andeja” e a
gente de estância”, relegados ao lado de fora “conversam sobre qualquer coisa” e,
no caso dos açougueiros, também “espreitam uma pechincha”, ou seja, a sobra, com
cara de quem vai levar os miúdos de uma vaca.
Então, dentro da disposição espacial temos outra vez, além dos grandes
proprietários, os estrangeiros aqui, os ingleses - em situação privilegiada. Eles
ocupam o interior da edificação e alguns também se deslocam em cima de um
carrinho e montados em cavalos entre o povo, o que os coloca outra vez num plano
espacial superior. Reforça o fato de que mais uma vez são eles que detêm as
discussões importantes. A gente andarilha e de estância, ou seja, muitos mestiços,
estão fora destas discussões. Tendo a sombra do umbu por proteção, “conversam
sobre qualquer coisa”. Dessa forma, neste trecho da obra, são apresentados
radicalmente isolados do espaço das decisões e da participação no contexto
nacional. Configura-se, assim, no exercício do cotidiano, as conseqüências da
prática sarmentista e da ideologia governamental vigente, que priorizou o
estrangeiro branco e ajudou a marginalizar de todas as formas o mestiço. Embora a
Argentina fosse um país independente, com esta medida deu-se prosseguimento
aos problemas de exclusão iniciados na era colonial.
Assim, o motivo do escalonamento social expressa a situação de
marginalidade em que vivia o gaúcho, ligando-se diretamente ao motivo do uso do
corpo pelo patrão, marcas características da gauchesca que, conforme se verificou,
para sua concretização, recebe a contribuição do espaço-ambientação.
4.3.2.2 Uso do corpo pelo patrão
Como exemplo de desenvolvimento do motivo do uso do corpo pelo patrão,
que escarnece o trabalhador necessitado e para o qual contribuem o espaço e a
ambientação, cita-se a passagem da narrativa em que ocorre a doma, no capítulo
107
XXII. Fábio está refletindo sobre como ganhar a vida, após perder todo o seu
dinheiro e, depois de quatro dias de marcha junto a Dom Segundo, chega a uma
estância nova. Recebe a proposta de amansar doze potros. Receberia dois desses
animais como pagamento pelo trabalho, os quais, o patrão não revelara que eram
considerados os mais difíceis de domar.
Éramos quatro no curral de pau-a-pique. O patrão, a cavalo entre nós, não
nos perdia de vista, nem ocasião de espicaçar-nos com alguma caçoada.
Como seria ele na hora do aperto? perguntava-me a mim mesmo.[...]
[...] O patrão sorria.
Dado que o bagual era um dos que serviam de pagamento pelo trabalho,
desconfiei de uma cilada. Como, se não tinha nenhum defeito ou mancha
de chucro, fora escolhido para desfazerem-se dele, sendo o de melhor
presença?
Não querendo passar por tolo, disse alto ao homem de tostado:
- Este é reservado pros forasteiros, não?
O paisano respondeu apenas meneando a cabeça e o patrão conservou
seu sorriso. [...]
Deixou-se encilhar sem muitas cócegas. Mau cheiro ia tomando a coisa.
Todos se mantinham no silencio de igreja. [...]
Sentia atrás de mim o sorrisinho do patrão, mas não era coisa de perder a
cabeça (Ibid., p. 197-198).
O narrador cria um ambiente de apreensão no leitor ao posicionar a figura do
patrão e seu sorrisinho de escárnio espacialmente atrás da figura do gaúcho que
havia empreitado o trabalho. O objetivo de exploração do corpo através do trabalho
confirma-se quando Fabio percebe que o patrão pretende usufruir de seu trabalho e
enganá-lo no pagamento. Tal propósito é confirmado pelo “paisano”. Além disso,
pode-se considerar a disposição espacial do patrão a cavalo entre os empregados,
controlando-os sem “perdê-los de vista”, o que indica uma posição de domínio.
Outro exemplo ocorre na cena do baile natalino, no capítulo XI, em que a
gauchada está reunida no salão improvisado, presente em grande número. Iniciada
a polca, tocada pela acordeona e os violões, ninguém era capaz de mover-se.
Güiraldes compara o ambiente no qual ocorre o baile com uma paisagem, uma
plantação de trigo, que se curva sob a ação do vento. Através desta imagem
paisagística, ele sintetiza a idéia do uso do corpo destacada por Ludmer, da
exploração e da alienação que atingia o trabalhador das estâncias. Inicialmente, o
narrador introduz a cena através do destaque das mãos e do contraponto trabalho e
ócio. Na referida cena, observa-se a passividade e a falta de atitude dos
trabalhadores, homens e mulheres, para iniciar uma simples dança.
Uma acordeona e dois violões iniciaram uma polca. Ninguém se movia.
108
Tive ilusão de que toda paisanada não tinha mais razão de ser que a de
suas mãos, inábeis no ócio. Eram elas sombras pesadas e fortes, que as
mulheres deixavam mortas sobre as saias, e os homens levavam
penduradas aos braços, como um estorvo (Ibid., p. 84).
No quadro do baile, o destaque das mãos, principal parte do corpo utilizada
na realização do trabalho, resume todo o sentido do uso do corpo. Os trabalhadores
da estância valiam por suas mãos.
Taciturnos, desorientados, totalmente vencidos, dominados, treinados a
obedecer; este é o estágio final do uso do corpo que passou pela disciplina do
exército e das estâncias. Como um exército, suas ações regulam-se pelas ordens do
patrão:
Nisso, todos os rostos voltaram-se para a porta, como um trigal que se
curva olhando vento abaixo.
O patrão, homem dobrado e de barba tordilha, dava-nos as boas-noites,
com um sorriso malicioso:
- Vamos ver, rapaziada, toca a dançar e divertir-se como Deus manda! Tu,
Remigio, e tu, Pancho: o senhor, Dom Primitivo e os outros; Felisário,
Sofanor, Ramón, Telmo... sigam-me e vamos tirando par.
Por um momento, sentimo-nos empurrados por todos os lados e tivemos
que abrir cancha aos nomeados. Sob a voz nítida de um homem, os
demais sentiram-se unidos como para uma carga (Ibid., p. 84).
A voz do gaúcho rebelde que pregava que homem algum deveria baixar a
cabeça por qualquer motivo, do patriota que lutava pela liberdade de sua pátria e
pela sua liberdade própria, do herói que alardeava seus feitos magníficos e sua
habilidosa investida contra o dominador, nenhuma das vozes está presente na
imagem configurada no baile. Há, sim, o silêncio dos indivíduos autômatos,
desprovidos da emoção do rebelde, do patriota e do herói. Não existe motivação
para buscar horizontes, nem para sonhar, nem para lutar. Em nada se parecem com
o personagem de Hernández, Fierro, que alardeava ser um gaúcho livre e
autônomo. Em Dom Segundo Sombra:
“[...] Moços, velhos, todos dançavam sérios, sem que um gesto lhes
delatasse o contentamento. Gozava-se com um pouco de assombro [...]
os aloucados deixavam escapar o grito necessário de toda emoção” (Ibid., p.
85).
Portanto, a definição do ambiente comparada à imagem do trigal que se
curva, por sua associação com a imagem de um exército ou à de um grupo de
trabalhadores que obedece, resume a condição do gaúcho após sua passagem pela
disciplina do estado e da estância.
A disposição espacial e a atitude dos trabalhadores presentes no baile
demonstram que eles seguem inseridos numa estrutura em que a submissão e a
109
obediência aos latifundiários é comum. Daí a tendência à passividade ou a uma
mobilização bastante lenta.
Um trecho da narrativa que também pode ilustrar essa ideologia está em
outra imagem semelhante elaborada pelo narrador, que denota a ausência da voz
do gaúcho trabalhador. É a do posteiro sem nome e de “bigodes caídos e ralos” da
estância de Dom Candelario, o qual figura no capítulo XIX. Não possui opinião
própria, limita-se a repetir e concordar com tudo que lhe dizem, sem avaliar se o que
lhe afirmam é verdadeiro ou não. Totalmente alienado e esterilizado, sem
capacidade de raciocínio, é mais uma imagem da automatização do trabalhador
controlado pelo sistema ao qual está subjugado.
O posteiro era homem afável, embora de poucas palavras. Interrogava
sempre em tom suave e comentava as respostas com exclamações de
admiração:”Ah, pois muito bem! Não diga!“Ãaa!” Erguia as sobrancelhas
aumentando os olhos para exprimir surpresa, com o que corrigia a
indiferença de seus bigodes caídos e ralos.
Falando com ele, tinha-se sempre a sensação de estar dizendo coisas
extraordinárias. Perguntava:
- São campos bons os de lá, não?
- Muito bons, sim senhor. Campos altos e de bom pasto.
- Imagine! (Os olhos arregalavam-se.)
- Do que costumam sofrer é da seca.
- Ora veja!
- Ah! Sim. Quando pra não querer chover, pode ir levantando
acampamento com o gado.
- Faça-se idéia!
- E às vezes não se tem mais que ir coureando pelo caminho.
- Que barbaridade! (Ibid., p. 162-163).
Através desta passagem pode-se inferir, também, quão isolado encontrava-se
o gaúcho, antes senhor dos pampas, em relação ao espaço de seus domínios de
outrora, ou seja, cada vez mais sedentário, distante da imensidão do campo e,
portanto, desconhecedor das peculiaridades do território. Então, observa-se que, ao
ser segregado do espaço no qual sua figura foi forjada, o gaúcho perde as
características que em outras obras do gênero lhe são atribuídas.
4.3.2.3 Desconfiança em relação ao judiciário
No mesmo capítulo da passagem anterior, o XIV, a ambientação contribui
para enfatizar o poder que a lei estatal exercia sobre os andarilhos gaúchos, o que
parece aludir à realidade histórica que se conhece. Ou seja, em determinado
momento da história, o gaúcho que não tinha patrão nem servia ao exército era
considerado delinqüente, ladrão e vagabundo e, portanto, devia ser preso.
110
Na passagem em questão, Dom Segundo e Fabio estão comprando na
pulpería:
Surpreendeu-nos, como uma paulada, uma voz autoritária:
- Teje preso, amigo!
Na porta se erguia a desagradável figura de um polícia, cujas mangas eram
sublinhadas pelos magros galões de cabo (Ibid., p. 112).
Quando a figura do cabo se ergue na porta do armazém é a lei que se ergue
para atacar o gaúcho andarilho, com “voz autoritária”, “como uma paulada” enquanto
o vendeiro, “farejando barulho, desarrumava com mãos trêmulas seus trastes,
completamente esquecido dos pedidos que lhe tinham feito” (Ibid., p. 113).
Dom Segundo consente em apresentar-se na delegacia:
Em um grande salão desguarnecido, diante de um enorme mapa da
província, estava sentado o comissário, pançudo e bigodudo [...].
-São forasteiros, aqui, não? -inquiriu o mandão.
-Sim, senhor.
-E no seu povo se passa galopando em frente da Comissária? [...]
-Que ofício têm?
-Tropeiros.
- De que partido são?
Como se não entendesse o caráter político da pergunta, meu padrinho
respondeu sem pestanejar:
- Eu sou de Cristiano Muerto...; meu companheirinho, de Callejones.
- E as cadernetas?
Continuando a burla que fizera com nossas procedências, Dom Segundo
inventou um personagem:
- Está com elas Dom Isidro Melo.
- Muito bem. Pra outra vez sabem onde é a Comissária, e se
esquecerem eu vou ajudar-lhes a memória (Ibid., p. 115).
O tamanho grande da figura do cabo no momento do decreto da prisão e
depois a ambientação da delegacia está impregnada de figuração. Estabelece-se o
contraponto do grande e do pequeno. Em um salão imenso, diante de um enorme
mapa da província está sentado o mandão, pançudo e bigodudo que inquire Dom
Segundo e o seu companheirinho. A posição do delegado como se a ele
pertencesse a província, a adjetivação bem como as desinências aumentativas
remetem ao peso e à rigidez da lei para com os gaúchos andantes.
Da aplicação diferenciada da lei estatal decorre a indisposição e a
desconfiança dos homens do campo em relação ao judiciário, característica do
gênero presente nesta obra. Na ocasião em que Fabio está viajando pela zona
costeira, ao referir-se aos areais traiçoeiros que quase engoliram cavalo e cavaleiro,
expressa o protagonista: “Essa praia saiu-me como beiço de comissário” (Ibid., p.
136).
111
Isto ocorreu porque o gaúcho, em sua trajetória histórica, freqüentemente
enfrentou um duplo sistema de justiça: o do campo e o da cidade. O segundo lhe foi
aplicado, muitas vezes, de modo diferenciado, pois a obrigatoriedade do exército
não incluía os estrangeiros ou os indivíduos abastados das povoações ou das
estâncias bem como os ligados ao governo.
A lei da cidade, a legal, era adaptada de modo que beneficiasse os
latifundiários que, desejando cada vez mais expandir suas propriedades, contavam
com ela para expulsar camponeses e índios de suas terras, anexando estas frações
de terras aos seus domínios.
Por essa razão, o gaúcho, acostumado a sofrer as injustiças que lhe impõe o
código de leis urbanas, desconfia de todo e qualquer elemento que ele represente.
Essa desconfiança em relação àqueles que detêm o poder da lei e, portanto,
exercem a autoridade, aparece em Dom Segundo da seguinte maneira: Ao
apresentar-se na delegacia, de imediato o gaúcho Sombra, convencido de que o
delegado está lhe lançando uma armadilha, adapta suas respostas às perguntas
dessa autoridade, de forma a não ser surpreendido por ela. Dom Segundo, de
antemão, sabe que será preso ou não pelo “delito” de passar galopando em frente
da delegacia, dependendo do partido político a que pertença. Na Argentina da
época, a filiação partidária encontrava-se registrada nas denominadas cadernetas,
que era uma espécie de identidade onde constavam todos os dados sobre o
indivíduo e que servia para controlá-lo.
Assim, a ambientação da delegacia e a posição espacial do cabo no armazém
auxiliam a ratificar uma das características do gênero recorrente nas obras
gauchescas.
Outros elementos ambientais presentes na obra, materialmente grandes
como a delegacia, cumprem a tarefa de impor silêncio ao menos favorecido. Tratam-
se da riqueza material e da igreja. Sobre a casa de Dom Fabio Cáceres, o pai, relata
o protagonista: “[...] Conheci a casa suntuosa como não havia igual no pueblo,
impondo-me um respeito silencioso como o da igreja [...] “ (Ibid., p. 14).
O ambiente da casa impõe silêncio porque representa um dos poderes ao
qual está submetido o gaúcho o do estancieiro. o silêncio imposto pelo
ambiente da igreja, mais de uma vez registrado na narrativa, parece servir para
concretizar uma das características recorrentes na obra de Güiraldes que é a crítica
à forma como era professada a religiosidade. Ou também pode aludir ao
112
constrangimento gerado no gaúcho pelo fato histórico da época da colonização, no
qual a igreja auxiliara a Coroa Espanhola a conquistar e até a suprimir os nativos
dos quais provém o gaúcho, bem como a apoderar-se de suas terras.
4.3.2.4 Aversão ao contexto urbano
O pampa para o protagonista de Dom Segundo Sombra é o espaço que ora
acolhe, ora castiga, mas sempre confere liberdade e dignidade ao indivíduo. O
mesmo não ocorre com as povoações. O espaço das povoações, sob a perspectiva
de Fabio, é sempre depreciativo e, situado nelas, alguns espaços restritos
concentram a degradação, a putrefação da sociedade. O autor, ao compor seu
universo ficcional organizou os motivos de modo a firmar sua tese de sobreposição
do valor do campo sobre o valor das povoações, na tentativa de convencer o leitor
da superioridade das raízes de onde emanam os valores verdadeiros. Assim, os
valores emanados do campo são apresentados como superiores aos do contexto
urbano, considerados degradados.
Para atingir seu propósito, então, recorre como um dos recursos à relação de
Fabio com o ambiente e ao próprio espaço, utilizando-se de motivos que favoreçam
a referida teoria.
Desse modo, os motivos do contexto urbano hostil, que causa insatisfação no
personagem e que abriga certos valores degradados é desenvolvido por Güiraldes.
Como exemplo, cita-se a passagem a seguir, localizada no início da narrativa, na
qual o contexto do povoado causa descontentamento ao protagonista.
Aquele dia, como de costume, eu fui me esconder à sombra fresca da
pedra [...]. Com as pálpebras caídas para não ver as coisas que me
distraíam, imaginei as quarenta quadras do lugarejo, suas casas baixas,
divididas monotonamente pelas ruas traçadas a esquadro, sempre
paralelas ou perpendiculares entre si. Em uma dessas quadras, sem mais
luxo nem pobreza que as outras estava a casa de minhas presumidas tias,
minha prisão (Ibid., p. 13).
A descrição da geografia do povoado está de acordo com a sensação de
insatisfação exteriorizada por Fabio. O personagem sente-se oprimido, aprisionado
e, em sua avaliação, leva uma vida monótona no contexto urbano. Tal estado
emocional combina com as expressões “casas baixas” que supõe pouco espaço e
se contrapõem ao infinito do campo, ou tortura como o próprio Fabio expressa: “A
rua foi meu paraíso e a casa minha tortura” (Ibid., p. 15). A expressão “divididas
113
monotonamente pelas ruas a esquadro, sempre perpendiculares ou paralelas entre
si” supõe repetição e falta de novidade. A monotonia geográfica do lugarejo está
intimamente ligada à situação emocional de Fabio porque este se sente enjoado e
fatigado com a vida que está levando. Assim, pode-se presumir nesta passagem o
aparecimento do motivo da separação que se concretizará na fuga do protagonista
para o campo. Isto porque o campo é o oposto da povoação que reduz Fabio a um
jovem triste e descontente com a forma de vida que leva e também porque o
jovenzinho possui o costume de esconder-se “à sombra fresca da pedra” à beira
de um arroio. Os elementos “sombra”, “frescor, “pedra”, “arroio” constituem uma
redução da zona do campo que, por extensão, representa inicialmente o locus
amoenus temporário, onde se refugia o protagonista.
A atitude de esconder-se está ligada à introspecção, a qual na narrativa está
bastante alicerçada na contemplação do espaço. Sabendo-se que o espaço pode
evocar felicidade ou tristeza, medo ou impulso positivo, de acordo com a percepção
do narrador, pode-se verificar que o motivo livre de descrição do povoado auxilia na
construção do sentido da narrativa. A razão é porque ele parece estar de acordo
com o motivo associado que é a situação inicial de descontentamento do
protagonista, referente à sua vida no contexto urbano.
A geografia do povoado é tão monótona quanto os “insulsos dias da
existência vilareja” (Ibid., p. 78) do protagonista. Este opina classificando o povoado
como “lugarejo miserável” (Ibid., p. 22) e ambiciona fugir deste lugar para desfrutar
de uma “vida nova, feita de movimento e espaço” (Ibid., p. 22).
Para a miserabilidade do povoado concorrem a pobreza material e a pobreza
moral que este lugar abriga.
A descrição do modesto quarto de Fabio é fornecida sob a perspectiva deste
narrador-protagonista. Através dos elementos ambientais revelados é possível obter-
se uma idéia do tipo de vida que levava o jovem. Com um sentimento de “ódio”,
Fabio observa as “desmanteladas paredes” que abrigam poucos objetos de sua
propriedade: “uma cama, umas rédeas, um buçalzinho, um prego na parede, um par
de botas sovadas, um poncho e as escassas peças de roupas” (Ibid., p. 30). Estes
elementos demonstram a pobreza material em que vivia o órfão na “triste casa de
suas tias” (Ibid.,p. 78).
A avaliação do ambiente do quarto torna-se mais depreciativa porque é
influenciada pelos ruídos da casa que, segundo ele, não pode mais suportar porque
114
“lhe falam da estupidez das miudezas cotidianas” e, por isso, estão ligados à
mesquinharia das tias. Em situação posterior, após ter ido embora da casa e do
povoado, o protagonista expressa que faria qualquer coisa para não voltar àquele
lugar: Antes me zamparia num perau ou me faria estropear pelos cachorros
chimarrões, para não aceitar aquele destino. De nenhum modo voltaria a
vagabundear pelas ruas ermas” (Ibid., p. 44).
Dessa forma, também o narrador início ao desenvolvimento de sua
afirmação da superioridade do valor do campo em relação ao dos povoados, que se
estenderá pelo restante da narrativa.
Outra imagem que sugere a insatisfação de Fabio e seu rechaço ao contexto
do povoado pode ser a descrição da asfixia lenta dos bagrezinhos. Estabelece-se
uma analogia entre a situação de Fabio que se sente oprimido e não consegue
decidir-se por ir embora do povoado e a situação dos animais.
Fabio está refletindo junto ao rio sobre sua vida e as desvantagens de viver
no povoado, mas não consegue tomar a atitude de ir embora daquele lugar. A
imagem dos peixinhos e sua asfixia lenta remetem à condição emocional de Fabio
neste momento que, sentindo-se preso, não consegue encontrar uma saída.
O barro das margens e os barrancos tinham-se tornado cor de violeta. As
toscas ribanceiras exalavam um resplendor de metal. As águas do rio
fizeram-se frias a meus olhos e o reflexo das coisas na superfície serenada
tinha mais colorido que as próprias coisas. O céu distanciava-se.
Mudavam-se as tintas áureas das nuvens em vermelho, o vermelho em
pardo. Junto a mim, tomei a fieira de bagrezinhos “duros pra morrer”, que
ainda pululavam no desespero de sua asfixia lenta [...] (Ibid., p. 20).
O motivo do desprezo pelo contexto urbano é desenvolvido em outras
passagens da narrativa. Estando no povoado de Navarro, Fabio opina:
Ajuntamentos nunca me agradaram [...] e espiei o que se passava ao meu
redor sem me entreverar (p. 103); Uma hora passou para mim sem
diversão vendo entrar e sair a gauchada endomingada (p. 104) e Para mim,
todos os pueblos eram iguais, toda gente mais ou menos da mesma laia, e
as lembranças que tinha daqueles ambientes, pressurosos e inúteis, me
causavam antipatia (Ibid., p. 104).
Assim, os ambientes urbanos provocam no protagonista uma sensação de
insatisfação e de nervosismo.
A miserabilidade moral revela-se nos espaços restritos da barbearia e da
pousada. Nestes locais emergem e exercitam-se os valores degradados cultivados
pelos habitantes do povoado. Era comum na pousada se reunirem personalidades
destacadas da sociedade, cuja diversão era divulgar boatos e escarnecer os mais
115
fracos e os sem posses, como o dependente da bebida ou o próprio Fabio, que era
órfão. Relata Fabio: “Visto que me davam fama de vivaracho, fiz ofício disso,
satisfazendo com cruel inconsciência de criança, a maldade dos fortes contra os
débeis” (Ibid., p. 16).
Também é nestes lugares que desembocam e se expõem as mazelas da
sociedade, como a questão dos embrulhos comerciais dos Gambutti, da reputação
ambígua do relojoeiro Porro, das relações do comissário com a viúva Eulália, do
gringo Culasso que vendera por vinte pesos a filha de doze anos ao dono do
prostíbulo e, inclusive, é na pousada onde ocorre, no início da narrativa, a
insinuação sobre um mistério a respeito da família do protagonista.
Os valores degradados cultivados no povoado também são revelados quando
Fabio, no final do livro capítulo XXV, recebe sua herança e se torna rico. Devido a
sua nova condição, alguns personagens passam a tratá-lo de forma diferente: seu
amigo Pedro Barrales que lhe entrega a carta o trata formalmente; Dom Leandro
Galván que havia sido seu patrão e na ocasião escrevera a carta o trata de senhor;
o pulpeiro que trocava seus bagres, pagando-os com moedas ou cigarros, lhe
palmadinhas nas costas, colocando seus produtos à disposição, o barbeiro o saúda
de senhor, reverenciando até cansar e o recebe como um príncipe; o ourives lhe
rende homenagens; os “graudões”, que se divertiam com ele quando era jovem e
desprotegido, mostram-se carinhosos.
Sobre isto escreve o narrador: De todos estes, o tratamento que lhe causou
menos repugnância foi o do pulpeiro. No entanto, este lhe roubou de passagem uma
tabaqueira bordada.
Fabio, no início da narrativa, reflete e deseja afastar-se dos valores
degradados que embasam determinadas atitudes dos personagens do povoado e
percebe como única saída a fuga para a liberdade do pampa e a imitação da figura e
exemplo de Dom Segundo Sombra, homem típico do pampa, depositário de virtudes.
Por essa razão, ele abandona o povoado e segue Dom Segundo:
Com a visão dentro de mim, alcancei as primeiras veredas sobre as quais
pude apurar o passo. Mais forte que nunca, apoderou-se de meu ser o
desejo de ir-me para sempre daquele lugarejo miserável. Entrevia uma vida
nova, feita de movimento e espaço (Ibid., p. 22).
O adjetivo miserável sugere o sentimento de desprezo que nutre Fabio pelo
espaço urbano e seus valores degradados, em contraposição ao espaço do pampa
116
que simboliza a honra e a liberdade e que abriga os valores verdadeiros que devem
pautar o gaúcho.
Respirei fundamente o alento dos campos adormecidos. Era uma
obscuridade serena, alegrada de estrelas luzentes, como chispas de um fogo
crepitante. Ao deixar que entrasse em mim aquele silencio, senti-me mais
forte e maior (Ibid., p. 52).
As descrições dos ambientes urbanos não recebem muita atenção do
narrador na obra em estudo, como a casa das tias, a igreja, e outros espaços do
povoado relacionados no início deste capítulo, como a barbearia e a pousada, onde
ocorrem as primeiras ações. Talvez uma das razões seja a de enfatizar a ânsia do
protagonista de fugir de suas limitações e ingressar numa realidade mais ampla.
Outra razão pode ser o fato de que é comum o narrador abordar vagamente os
motivos espaciais que são passageiros e secundários e descrever mais
detalhadamente aqueles nos quais os personagens vivem a parte mais significativa
de sua experiência.
4.3.3 Contribuição do espaço-ambientação no desenvolvimento das ações e no fluxo
da narrativa
4.3.3.1 O espaço denotado
O espaço no qual se desenvolve a narrativa de Dom Segundo Sombra é
bastante peculiar, é o pampa argentino, extensa planície que faz parte do que se
conhece por pampa da América do Sul. Por este território maior entende-se o
espaço geográfico que compreende as terras existentes entre a costa Atlântica até a
Cordilheira dos Andes, abrangendo terras do Rio Grande do Sul, Uruguai e
Argentina.
De forma mais específica, as ações da narrativa ocorrem nos seguintes
espaços, cuja localização textual optou-se por indicar pelo número correspondente
da página da obra onde tal informação se insere:
a) no pequeno posto campeiro onde Fabio vivia com a mãe na primeira parte
de sua infância (p. 47), com destaque para o espaço restrito da cozinha onde a mãe
trabalhava e a parte externa onde o personagem brincava (p. 15). No decorrer da
117
narrativa os postos campeiros, situados em estâncias, aparecem freqüentemente
citados como lugar de parada dos tropeiros;
b) no puebloonde Fabio morava com as tias. Pela caracterização do lugar infere-
se um espaço civilizado, planejado e organizado pelo Estado. Esse povoado é
formado por casas baixas distribuídas em quarenta quadras, com “ruas traçadas a
esquadro sempre paralelas ou perpendiculares entre si” (p. 13 14). Situado perto
de um rio sobre o qual passa uma ponte (p.13), o pueblopossui uma praça central
(p. 13), uma igreja (p. 14), armazéns (p. 15 e 19), serviços de correio (p. 15),
pousada (p. 16), barbearia (p. 18), relojoaria (p. 16), delegacia de polícia (p. 17),
local de carreiras (p. 16), casa pública (p. 18), loja (p. 19), cemitério (p. 21), ranchos
de empregados de estâncias (p. 42), cancha de bocha (p. 42). Além desses espaços
que, na maioria, foram meramente aludidos no decorrer da trama, outros dentro do
povoado, concentraram um pouco a ação, como a casa das tias Asunción e
Mercedes, onde Fabio viveu a segunda parte de sua infância (p. 14) e a pulpería La
Blanqueada (p. 19), local onde Fabio se diverte e presencia o enfrentamento de
Dom Segundo Sombra com o índio Burgos. Ademais, alguns elementos de
modernidade aparecem sutilmente inseridos como a linha férrea (p. 31), o moinho (p.
19), ambos frutos dos investimentos do capital inglês na Argentina, e, de forma mais
tácita, a presença do colégio (p. 14-15), onde Fabio iniciara sua educação.
c) na chácara de Cuevas (p. 47), onde havia um pequeno mato, um rancho coberto
de palhas, um arvoredo, milharal, pátio, curralzinho (p. 58), local ambientado para a
defloração de Aurora por Fabio;
d) em campo aberto. Em suas andanças pelo campo com seu padrinho, os
protagonistas transitam por estradas (p. 66), por caminhos entre os alambrados (p.
57), atravessam rios (p. 56), coxilhas, canhadas, lombas, banhados e transpõem
diferentes acidentes naturais como na zona costeira (p. 120), os cómoros, os areais,
os caranguejais, além de visualizarem o mar;
e) em locais particulares e típicos do pampa. Em tais andanças, Fabio e Dom
Segundo chegam a postos conforme explicado, espécies de ranchos de
descanso e abastecimento, segundo pode verificar-se no capítulo VIII da narrativa,
onde Fabio e Goyo param para carnear um cordeiro a fim de alimentar a tropa que
segue caminho e depois é alcançada por eles (p. 67) -, chegam à pulperías de
campo - uma delas foi descrita mais demoradamente pelo narrador nas páginas 59 e
60, nas quais o proprietário ficava “enjaulado em grades de ferro”. Outra pulpería
118
que propicia e ambienta a ação é a pulpería perto da estância de Dom Juan, onde
ocorreu o duelo entre Antenor Barragán e um forasteiro (p. 209). Outro local típico do
campo é um bolicho (p. 172), encontrado durante a viagem deles rumo ao norte, em
cujo local Fabio e Dom Segundo participaram de carreiras, evento também descrito
com pormenores pelo narrador;
f) em estâncias de terra boa, no pampa úmido, distantes da costa marítima, como:
- na estância de Dom Leandro Galván (p. 25). O espaço desta estância é assim
determinado: conjunto de casario, também com destaque para a cozinha de uma
das casas (p. 37), local onde está o fogo e ocorre a roda de mate (p. 53), para o sino
(p. 32) que chama os trabalhadores e o quarto rústico (p. 35) com catre (p. 51) e baú
(p. 53) – só mais tarde, no final da trama, em outra posição social, Fabio tem acesso
a um quarto na casa principal com cama, paredes empapeladas e lavatório (p. 231).
Outros elementos da referida estância são o galpão (p. 32) e suas manjedouras (p.
34), o bebedouro dos animais (p. 33), os chiqueiros (p. 231), o potreirinho de colocar
cevada para os animais (p. 34), o curral de ovelhas (p. 36), o curral das éguas (p.
40), a cancha de doma (p. 40), o pátio de cinamonos (p. 42) e os sangões (p. 34).
Ligado a esta estância por motivo de posse, porém distante geograficamente,
aparece outro campo de Dom Leandro, destino da primeira tropa de gado que foi
levada com a ajuda de Fabio (p. 45). Neste campo também aparecem galpões (p.
51) e potreiro (p. 54).
- na estância de Dom Fabio Cáceres, até o final da trama desconhecido pai de
Fabio, onde aparece a suntuosa casa principal (p. 14), a extensão de campo onde
criação de gado (p. 15), o potreiro (p. 234), o galinheiro (p. 15), e, mais tarde,
quando Fabio torna-se estancieiro, a casa em que passou a morar seu padrinho
Dom Segundo;
- em outras estâncias, de campo bom”, ou seja, aquelas situadas longe da costa,
como a estância de Dom Feliciano Ochoa (p. 64) onde os tropeiros fizeram parada
durante a primeira tropeada da qual participou Fabio. Os elementos que compõem
este espaço são semelhantes aos da estância de Dom Leandro Galván. Também
aparecem o arvoredo (p. 64), a aguada (p. 64), o potreiro (p. 64), o chão do pátio
de tijolos (p. 65), a cozinha com destaque para o fogão e os costumes de nela comer
churrasco e matear (p. 65);
- na rica estância de Dom Fabián Luna (p. 86), configurada como extensa e bem
povoada (p. 81): abrange dez léguas, oito postos, grande matagal com alamedas
119
bem cuidadas, galpões, luxuosa casa principal, jardim florido (p. 81) e, para a
realização da festa, aparece o costume de providenciar-se a ornamentação de um
galpão a fim de que se transforme em salão de baile e o da construção de carpas
para abrigar as guloseimas e as bebidas (p. 82). A par da configuração de outras
estâncias na narrativa, em especial, através da descrição espacial desta
propriedade, o narrador expõe a posição econômica confortável da qual usufruíam
os estancieiros, fazendo alusão ao que ocorria na realidade, conforme se conhece
através da História: Em “A estância era grande e bem povoada. Dez léguas, oito
postos, grande matagal, com alamedas bem cuidadas, galpões, casa luxuosa e um
jardim de flores como nunca vi” (Ibid., p. 81), pode-se deduzir, além da riqueza, o
status social que mantinha o estancieiro. Esta estância, como as anteriores, está
situada longe do litoral;
- na estância de Dom Juan (p. 202), onde Fabio domou potros durante seu retorno
do litoral;
g) em estâncias das terras costeiras, consideradas por Fabio como sendo secas,
fracas e pobres, como:
- na estância de Dom Sixto Gaitán, perto da parte costeira, fazenda de “terra baia e
magra como estonteada pela febre” (p. 120), formada por quarenta léguas em forma
de quadro (p. 120). À leste de suas divisas estava o mar, o qual poderia ser
alcançado após vencer-se os terríveis caranguejais (p. 120). Em direção oposta,
terra adentro, “havia bons campos de pastoreio” (p. 120). Diferentemente dos outros
proprietários das estâncias anteriormente citadas, Dom Sixto vive num rancho
solitário (p. 121), separado de sua família que reside em uma casa distante, mesmo
assim situada dentro do território de suas posses, o que enfatiza a imensa extensão
deste latifúndio;
- na estância de Dom Candelário (p. 162), também na zona costeira, local onde
Fabio se recuperou da quebradura que tivera em razão da luta com um touro;
h) no movimentado povoado de Navarro (p. 103), local do almoço na hospedaria, da
rinha de galos, da feira, do episódio da delegacia de polícia, eventos descritos
minuciosamente pelo narrador.
Ainda alusão, por nomeação, a locais como as estâncias de Acosta (p.
132), de Roca, de Anchorena, de Paz, de Ocampo, de Urquiza, os campos de La
Barancosa, de Las Víboras, de El Flamenco, de El Tordillo (p. 80), os campos do
General Roca que ficavam na localidade de San Antonio (p. 80 e 132). Observa-se
120
aí, a presença de nomes de militares e políticos - Paz, Ocampo, Urquiza, Roca. O
general Julio Roca (1843 1914), por exemplo, político e militar, é figura destacada
na história da Argentina por ter comandado a expedição que levou a cabo a
exterminação dos índios do pampa na denominada “Campanha do Deserto”, evento
que abriu vastíssimas terras para a criação de gado, sobretudo de ovelhas,
destinadas à produção de lã. De 1880 a 1886 e, outra vez, de 1898 a 1904, foi
presidente da república.
Ademais, referências breves à localidade de San Pedro (p. 23), local de
origem de Dom Segundo Sombra; à Las Heras (p. 58), local para onde o gaúcho
Pedro Barrales levara uma tropa de gado; ao Rincão de López, onde Fabio comprou
a égua Garúa (p. 123); à Luján (p. 226), lugar onde Fabio se hospedara antes de
assumir sua herança; às partes da província argentina que os protagonistas
recorreram trabalhando no ofício de tropeiro como os distritos de Ranchas,
Matanzas, Pergamino, Rojas, Baradero, Lobos, Azul, Las Flores, Chascomús,
Dolores, El Tuyú, Tapalqué, entre outros (p. 80); e à cidade de Buenos Aires (p.
235).
4.3.3.2 Funções do espaço/ambientação
Em Dom Segundo Sombra o espaço funciona como fator de verossimilhança
e auxilia a evidenciar motivos recorrentes da obra de Güiraldes. Entre eles
destacam-se os motivos da viagem e da preocupação com a morte bem como a
presença do subjetivismo. O espaço ainda serve de referência para a estruturação
da narrativa, auxilia na construção do herói e dos personagens gaúchos bem como
propicia a transformação do protagonista-narrador Fabio. Em algumas passagens,
assume características de hostil ou acolhedor e provoca ações porque influencia o
protagonista, favorece o aparecimento de motivos que vêm se adensando na
narrativa, ou constitui-se, às vezes, como mero cenário por opção do narrador.
4.3.3.2.1 O espaço como recurso de verossimilhança e introdução de motivos
recorrentes e estruturais
Através das características dos locais que se apresentaram e da identificação
de espaços reais no texto ficcional (bolichos, pulperías, estâncias, paisagens em
121
campo aberto, nomes reais de lugares, etc.), uma das funções do espaço na obra de
Güiraldes é atuar como fator de verossimilhança. Isto porque apresenta
semelhanças entre o espaço em que se desenrolam os acontecimentos e o espaço
vivido pelo leitor, o que permite que o autor aproxime o ilusório do verdadeiro e, com
isso, reinvente a realidade. Ocorre que a descrição do espaço físico onde atuou o
gaúcho, sua maneira de viver e de trabalhar para se sustentar condizem com o que
é de conhecimento geral dos leitores que têm uma noção da condição deste espaço
e das transformações pelo qual ele passou na História, enquanto este tipo humano
habitava o pampa. Daí a aproximação da realidade e da fantasia, que contribui para
a exigência de verossimilhança.
Ao analisar-se a trajetória dos lugares por onde passaram os personagens na
narrativa, comprova-se que o espaço é evidenciado através do motivo da viagem
recorrente em outras obras de Güiraldes como Raucho e Xaimaca. Na obra em
estudo, este motivo reaparece através das andanças dos protagonistas, ou seja, por
meio da viagem que Fabio e Dom Segundo empreendem pelo pampa, em busca de
trabalho e aventuras. Uma trajetória geográfica circular é delineada pela sucessão
das ações presentes na narrativa. Num primeiro momento, estas ocorrem nos
espaços da infância de Fabio, num segundo momento, no âmbito central do pampa,
depois, na zona costeira e, por último, após o retorno, praticamente no local de
saída, ou seja, na estância de Galván e de Dom Fabio Cáceres, próximas ao
povoado onde residiram as tias de Fabio. Vale lembrar que, inicialmente, Fabio
visitara algumas vezes a estância de seu pai Dom Fabio Cáceres mesmo
desconhecendo sua paternidade e a estância de Galván é o lugar de onde havia
partido em sua viagem pelo pampa com seu padrinho, Dom Segundo Sombra, a fim
de tornar-se um “gaúcho de verdade”.
A preocupação com a morte, outro motivo recorrente das obras de Güiraldes,
também emana do espaço/ambientação. Impressionado por quase ter perdido sua
égua Garua e seu cavalo Comadreja, afundados no caranguejal, Fabio inicia sua
reflexão sobre a morte a partir da lembrança deste local:
Não podia eu deixar de pensar nos caranguejais. [...] Que momento, sentir
que o solo afrouxa. Ir-se consumindo pouco a pouco. E o lodaçal que deve
apertar as costelas. Morrer afogado em terra! E saber que a bicharada lhe vai
arrancar aos beliscões a carne... Sentir-lhes chegar ao osso, ao ventre, às
partes, convertidas em uma almôndega de sangue e imundices, com ilhares
de cascareadas dentro, remexendo a dor numa vertigem de voracidade...
(Ibid., p. 125).
122
Sabendo-se que o valor da casa como refúgio está diretamente ligado à
hostilidade do meio, pensa-se que é interessante observar, nesta passagem, o fato
de que, sentindo-se desamparado após o episódio que quase lhe custou os cavalos
no território abandonado e agreste do litoral e, diante da iminência de uma possível
morte, Fabio valoriza por um momento este espaço restrito:
A casa é a casa, em qualquer parte que esteja e por pobre que seja. O
rancho, antes tão miserável, tornava-se à minha volta um palácio. E senti
bem seu abrigo de lar humano, tão seguro quando se pensa no que vai
mundo afora (Ibid., p. 124).
Na narrativa da obra em estudo, nota-se que o espaço aparece intimamente
ligado ao personagem e à ação, ao considerar-se que seus elementos também
funcionam como elemento estrutural e sintetizante da narrativa. As unidades
temáticas “arroio”, “rio” e “lagoa” servem para estruturar a obra em três partes. No
capítulo I, à margem de um arroio, Fabio evoca sua infância; no capítulo X, à
margem de um rio, lembra os cinco anos de vida comum com seu padrinho Dom
Segundo e, no capítulo XXVI, às margens de uma lagoa, seus três anos de vida
como patrão de estância. Da mesma maneira que a narrativa, a existência de Fabio
se condensa nos três espaços físicos. Assim, os elementos ambientais - arroio, rio e
lagoa - apresentam-se conforme as fases de vida de Fabio, estabelecendo, dessa
forma, um nexo entre o estado emocional do personagem, as ações respectivas de
cada fase e o cenário onde acontecem tais ações e suas cavilações. O arroio
sintetiza o início da vida de Fabio e sua infância; o rio, a vida dinâmica, plena, cheia
de imprevistos e desafios e a lagoa, a vida adulta em sua serenidade e dentro de um
cotidiano estável. A contemplação destes três espaços finitos provoca emoções,
depois devaneios no protagonista e desencadeiam suas memórias que são
registradas em três momentos.
Uma atitude que parece destacar-se e que decorre da observação destes
espaços é a de reflexão do protagonista sobre o sentido e o destino de sua vida.
Pensa-se que este motivo esteja bastante ligado ao subjetivismo de Güiraldes, outro
motivo recorrente em sua obra. Estabelece-se esta hipótese porque ele era um
grande apreciador e estudioso de filosofia, o que supõe a prática da introspecção e
da reflexão.
123
4.3.3.2.2 O espaço como elemento que auxilia a construção do personagem e
influencia no seu destino
O espaço também adquire bastante importância na narrativa de Dom
Segundo Sombra, porque ele auxilia na construção dos personagens gaúchos e na
do herói Dom Segundo Sombra, conforme assinalado, através de suas relações
com os elementos espaciais. Também auxilia na metamorfose de Fabio, que passa
de jovem contraventor a gaúcho experiente nas lidas do campo e, depois, a
estancieiro. Isto porque através das relações dos personagens com o espaço do
pampa e com os objetos do mundo gauchesco que compõem a ambientação, sejam
estes naturais ou construídos pelo homem, o espaço adquire condição de co-
responsável pelos seus destinos. As mudanças de caráter moral e o ajuste social de
Fabio, embora alicerçadas no aconselhamento de Dom Segundo, ocorrem
concretamente à medida que se estabelece o conflito entre o indivíduo (Fabio) e a
natureza (inclusive animais) e a capacidade de enfrentamento e superação do
homem.
Na condição de tropeiros, os personagens têm uma ligação muito forte com o
ambiente. O espaço por onde andam sozinhos ou em pequenos grupos levando
gado, ademais das dificuldades do ofício que lhes apresentam diversos obstáculos,
necessitam ser superados constantemente. No capítulo VIII Fabio tem que enfrentar
o calor escaldante e demonstrar valor e supremacia diante da adversidade do
ambiente.
Influído pelo coletivo balanceio daquela marcha, deixei-me ir no ritmo geral e
fiquei numa semi-inconsciência, que era torpor, apesar de meus olhos
abertos. [...]
Às dez, o couro das costas dava-me uma sensação de efervescência [...[.
Às onze, tinha inchadas as mãos e as veias. Os pés pareciam dormentes.
Doíam-me o ombro e o flanco machucados [...] A pulsação latejava-me as
têmporas de modo embrutecedor [...]
Às doze, íamos sobre as próprias sombras, sentindo assim maior
desamparo. Não havia ar e o envolvia-nos como querendo esconder-nos
numa nuvem amarelenta. Os novilhos começaram a babar compridos
filamentos mucosos. Os cavalos estavam cobertos de suor, e as gotas que
lhes caíam das testas salgavam-lhes os olhos. Tinha vontade de dormir,
numa renúncia total (Ibid., p. 64).
Observa-se neste trecho da obra que o narrador pinta o ambiente com a
ajuda da disposição e dos sons das palavras. Desse modo, algumas palavras e
expressões utilizadas reproduzem ou sugerem a sensação que a ambientação quer
produzir. Primeiramente nota-se que as dificuldades vão se intensificando
124
gradativamente com o objetivo de testar até a exaustão a resistência do
protagonista. A objetividade e o ritmo dos termos “às dez”, “às onze”, “às doze”,
inseridos no início dos parágrafos, sugerem a enfática batida da chibata,
configurando a tortura da empreitada e a morosa e pesada marcha de indivíduos e
boiada, sob os efeitos do calor escaldante. Depois, as sensações de Fabio, oriundas
da dificuldade de locomover-se com a tropa e a cadência da marcha são
compartilhadas com o leitor progressivamente, a cada etapa, por meio das
sensações auditivas produzidas pela leitura: “às dez”, os sons consecutivos dos
“esses”, dos “ces”, do “x” na expressão “sensação de efervescência” acompanham a
semântica da expressão e reforçam a primeira sensação de Fabio; “às onze”, a
pulsação é enfatizada pelo som dos “tes” consecutivos em “latejava-me as têmporas
de modo embrutecedor”; e, “às doze”, em “começaram a babar compridos filamentos
mucosos”, o ritmo e o balanceio pesado é marcado pelas vogais, intensificando-se
na dificuldade de pronunciação do “ele” seguido da sucessão de “lh” da expressão
“salgavam-lhes os olhos”.
No capítulo IX Fabio passa pela provação de uma tormenta e atesta possuir
força suficiente diante da terrível intempérie que transforma o ambiente capaz de
aniquilar homens e animais. O narrador reúne as forças de diversos elementos
temáticos hostis – chuva, vento, frio, lamaçal - e as lança contra o protagonista, a fim
de definir a coragem e a determinação de Fabio.
Em meia hora, tinha os joelhos empapados e as botas como algibe.
Comecei a sentir frio[...] O lenço no pescoço não servia de esponja e,
tanto pelo peito como pelo espinhaço, senti que me desciam dois carreiros
de frio. Assim fiquei logo ensopado. O vento, que trazíamos de frente,
aumentou, fazendo mais duro o castigo [...] A estrada [...] estava lôbrega.
[...] Duas horas passei assim, olhando em redor o campo hostil e brunido.
As roupas, pegadas ao corpo, eram como febre em período álgido sobre
meu peito, meu ventre, minhas coxas. Tiritava continuamente, sacudido por
violentos estirões musculares, e diziam-me que se fosse mulher havia de
chorar desconsoladamente (Iibid., p. 75 – 76).
A situação repete-se mais violenta no capítulo XXIV e o desfecho é
semelhante, ele apresenta habilidade e capacidade de superar a adversidade dos
agressivos elementos da natureza.
No alto, algo informe, escuro acabaria por se abater sobre nós, de um
momento para outro. Sob os golpes da luz, percebíamos numa chicotada
as coisas demasiado claras [...] Depois, ficávamos perdidos na noite [...] E
andávamos até outro relâmpago [...] víamos avançar, a toda disparada,
longas filaças de nuvens cinzas, perdidas do rumo, como eguada
chimarrona ante o incêndio de um pajonal. O capataz ordenou-nos que não
descuidasse do gado, que redemoinhava também, perdido de susto. Um
raio caiu com estampido tal que, de seco, pareceu rachar-nos as carnes.
125
Disse a mim mesmo que o vento vinha de sob a terra. A tropa desfez-se
em pontas como um torrão que se desmorona na água. Lembrávamos que
tínhamos a barranca de uma sanga funda a passar e, prevendo um
cataclisma de animais caindo, quebrando-se naquela fundura, corríamos
mal que mal para impedir que assim acontecesse. Eu o via nada. As
pontas do lenço chicoteavam-me o rosto, a aba do chapéu colava-me nos
olhos; o vento impedia-me de castigar o cavalo, que, não obstante, corria
por correr, talvez, tendo perdido o rumo, como o gado (ibid., p. 213 – 214).
Outro trecho importante da narrativa que conta com a contribuição de
elementos ambientais para a evolução do personagem Fabio é a luta empreendida
contra um animal, um touro que lhe atacara.
Por meu lado, a raiva tinha-se assentado em mim, tomando o corpo de
uma resolução decidida a ir até o fim. Tinha-me proposto quebrar o touro e
havia de quebrá-lo [...] - És malo! disse-lhe e puxei com a esquerda a
faca. Pensei que ia cair. Pus um joelho em terra. Contudo tinha que ir até o
fim. esta carta te manda o baio disse ao touro, e sumi-lhe a faca no
sangradouro até o punho (ibid., p. 150 – 152 passim).
Assim, através da superação dessas dificuldades impostas pelo ambiente é
que Fabio consegue evoluir, transformar-se individualmente e afirmar-se como
homem gaúcho, auxiliado por Dom Segundo. Se ele tivesse sucumbido à primeira
tormenta, ou ao sol escaldante enfrentado nas tropeadas, ou à investida de um
animal ou a qualquer outro obstáculo do ambiente exposto na narrativa, certamente
seu destino seria muito diferente, mesmo sendo conduzido com sabedoria por seu
padrinho Dom Segundo.
4.3.3.2.3 O espaço como elemento hostil ou acolhedor que influencia as ações do
personagem e a influência positiva da luminosidade da manhã
Enquanto o espaço do pampa ajuda a determinar os personagens e seus
destinos nesta narrativa, ele assume a posição ora de indiferente, ora de acolhedor
em suas relações com o protagonista. Um trecho da obra nos indica como era
imenso e vago o ambiente do pampa e também cheio de surpresas e desafios. “No
pampa as impressões são espasmódicas, para logo se esfumarem na amplidão do
ambiente, sem deixar rastro” (Ibid., p. 63). Qualquer reação humana a qualquer
acontecimento era logo diluída porque o pampa não se afetava; ao contrário, seguia
no seu papel de cenário impassível ante qualquer atitude ou avaliação do indivíduo.
Por outro lado, exercia um fascínio nos indivíduos que, diante de sua amplitude e
atendendo ao seu apelo, precisavam mover-se continuamente como “presas de uma
idéia fixa: caminhar, caminhar, caminhar“ (Ibid., p. 64). Isto significa que o é
126
possível deter-se em sua imensidão, é preciso seguir, seguir sempre, seja nas horas
agradáveis, seja nas situações ameaçadoras, porque a vida no pampa não
trégua.
A manhã era linda, dourada, ágil. Uns quero-queros passaram, muito alto,
gritando sua alegria. Ouviram-se longe uns mugidos. Uma nuvem de
gaivotas, chimangos e caranchos girava como redemoinho sobre alguma
carniça, lá para o lado dos caranguejais. Que diabos, a vida não afrouxa nem
se aflige porque a um animal ou a um homem a noite lhe tenha trazido um
mau pedaço (Ibid., p. 128 – 129).
O contraponto estabelecido entre a “alegria”, que supõe vida, e “carniça” que
remete à morte sugere as duas possibilidades de quem se aventura nos tortuosos
caminhos do pampa.
O desfecho de um acontecimento imediatamente perde a atenção dos
personagens que devem ficar atentos para os próximos acontecimentos, que o
pampa “é muito pronto em tragar o que anda testavilhando” (Ibid., p. 139) e também
se “diverte em por cara de susto” (Ibid., p. 134).
Por um momento, o fracasso de Fabio ao tentar domar o potro, no capítulo
VII, atrai a atenção de seus companheiros para logo se diluir na necessidade de
descansar para no outro dia andar, que “trabalho não é diversão” (Ibid., p. 63),
avisa o personagem gaúcho Valério.
Independentemente do desfecho de qualquer acontecimento, tudo seguia
igual: a estrada, o céu, a natureza, o ar, enfim, o pampa acolhedor ou hostil e seus
intermináveis mistérios.
Por seu bem, o tropeiro traz a vida demasiado entranhada em si para poder
perder-se em meditações de índole acobardante. A necessidade de lutar
continuamente não lhe tempo para retardar-se em derrota; ou segue ou
afrouxa de todo, quando nem um pouco de poder lhe sobra para
enfrentar a vida. Deixar-se amolecer por uma passageira amargura, expõe-
no a tomar o grande trago de todo chimarrão que se acobarda: a morte.
Uma grande dose de fé torna-se necessária a cada momento, e tem-se que
tirá-la de dentro, custe o que custar, porque o pampa é uma estrada sem
saída para o frouxo. A lei do forte é ficar-se com a sua ou ir-se
definitivamente (Ibid., p. 211).
No entanto, se o campo é o espaço que castiga ou é o espaço da indiferença,
conforme abordado anteriormente, ele também é o espaço que acolhe.
Após o enfrentamento do calor escaldante, ocasião em que Fabio tem
vontade de desistir de tudo que almejava, este intuito é interrompido pela ação dos
elementos da paisagem como a “sombra refrescante” e o “frescor noturno” que
“mantém acesa a esperança fundada” a par do descanso na estância. Cessada a
127
ação dos elementos agressivos, o espaço do pampa torna-se acolhedor e incita o
indivíduo a seguir sua caminhada.
Tinha vontade de dormir, numa renúncia total. Por fim chegamos à estância
de um tal Feliciano Ochoa. A sombra do arvoredo refrescou-nos
deliciosamente. A pedido de Valério deram-nos licença de pôr a tropa num
potreirinho de bom pasto, provido de aguada [...] Por volta das quatro,
achávamo-nos outra vez na estrada. As despedidas tinham sido cordiais
depois de uns poucos mates, e eu me sentia como recém parido por me ter
banhado o rosto num balde e sacudido a terra com a blusa. Aos
mancarrões lhes roncava a água na pança, e a tropa, tendo tido tempo de
espojar-se e dar algumas bocadas de grama, encontrava-se mais bem
disposta. Tínhamos, ademais, a promessa vizinha do frescor noturno; e
isso de ir aos poucos melhorando, até alcançar um descanso, mantém
acesa a esperança fundada (p. 64 – 66 passim).
Assim, a proteção da sombra e do frescor noturno, o bom pasto e a boa água
são elementos do ambiente que impulsionam a ação dos personagens rumo aos
seus propósitos e apresentam o pampa também como um espaço acolhedor que é
capaz de minimizar as dificuldades impostas por ele mesmo a atividades dos que
por ali perambulam, como os tropeiros.
Observa-se aqui, outra vez, a título de ilustração, o estilo de Güiraldes ao
selecionar a expressão “Aos mancarrões lhes roncava”, onde o som dos “erres”
auxilia na expressão da ambientação.
Depois do enfrentamento com a primeira tormenta, em outro trecho da
narrativa no qual Fabio está prestes a sucumbir em sua luta contra o ambiente hostil,
de repente a situação ambiental se modifica e confere novas energias a homens e a
animais, permitindo que sigam seu destino de “Caminhar, caminhar, caminhar” (Ibid.,
p. 77). Assim, o ambiente que foi retratado no mesmo capítulo da obra como uma
fúria capaz de engolir e aniquilar homens e animais passa a ser retratado como um
ser familiar que possui as mesmas características de seus habitantes e, portanto,
que o protege. Se na primeira condição são capazes de provocar a morte, na
segunda, impõem-se como vida poderosa, vibrante, que “torna o indivíduo capaz de
sobrelevar todas as penúrias da sorte”.
Súbito, uma abertura se fez no céu. A chuva amiudou numa sutil poeira de
água e, como cedendo a meu angustioso desejo, um raio de sol caiu sobre o
campo, correu quebrando-se nos matos, perdendo-se nas baixadas,
encarapitando-se nas lombas. Aquilo foi o primeiro anúncio de melhora que,
ao cabo de uma breve dúvida, veio tombar em benéfico esbanjamento solar.
Moirões, alambrados, cardos choraram de alegria. O céu fez-se enorme e a
luz calcou forte sobre o chão. Os novilhos pareciam ter vestido roupas novas,
bem como nossos cavalos, e mesmo nós tínhamos perdido as rugas feitas
pelo calor e a fadigas, para ostentar uma pele esticada e lustrosa. O sol logo
criou um bafo de evaporação sobre nossas roupas. Tirei o poncho, abri a
blusa e a camiseta, joguei para a nuca o chambergo. Uma vida poderosa
128
vibrava em tudo e senti-me novo, fresco, capaz de sobrelevar todas as
penúrias que me impusesse a sorte (Ibid., p. 76).
Em sua descrição, ao estabelecer condição anímica aos elementos
ambientais “raio de sol que cai”, “moirões, alambrados e cardos que choram de
alegria” o narrador ratifica a íntima ligação entre o ambiente e os personagens,
fazendo com que tais elementos despertem as mesmas emoções de Fabio. Deste
modo, a existência do protagonista se confunde com a vida do cenário em que
ocorrem as ações. Desta simbiose, provém uma grande sensação de bem estar e o
auxílio para a idéia de acolhimento do ambiente do pampa.
Então, nesse capítulo IX, o narrador estabelece no contraponto aniquilação e
vitalidade as possibilidades do pampa como espaço capaz de ameaçar e de
proteger o indivíduo.
Ademais, pode-se considerar a passagem do capítulo III em que Fabio
abandona o povoado que tanto odiava e toma o rumo do campo.
Apressado por deixar o pueblo, pus-me a galopar. O petiço que levava de
tiro cabresteava muito bem. Depois de andar como duas léguas, dei um
descanso aos animais, enquanto o sol saía sobre minha nova existência.
Sentia-me tomado por um contentamento indescritível. Uma luz fresca
salpicava de ouro o campo. Meus petiços pareciam esmaltados de uma cor
nova. Em redor, as pastagens renasciam em silencio, cintilantes de rocio; e
me ri de imenso contentamento, ri de liberdade, enquanto meus olhos se
enchiam de cristais, como se também eles se renovassem no sereno
matinal. Uma légua faltava para chegar ao casario, e a fiz ao tranco,
ouvindo os primeiros cantos do dia, banhando-me de otimismo naquela
madrugada que parecia criar o pampa vencendo a noite (Ibid., p. 32).
A tristeza nutrida pelo protagonista vai se esvair no contato com a natureza do
pampa. Novamente através da personificação dos elementos – “pastagens que
renascem”, da percepção visual do “sol”, da “luz” - e térmica luz “fresca” é
conferida à natureza a mesma sensação de alegria e euforia de Fabio. Assim, os
elementos ambientais, ao irradiar o personagem, tornam-se elementos familiares
que, como Fabio na referida passagem, convivem prazerosamente no ambiente do
pampa. A natureza se solidariza com ele e configura-se assim como lar fraternal e
acolhedor, características que não haviam se concretizado na casa das tias
Asunción e Mercedes.
Após a análise destas passagens conclui-se que, em Dom Segundo Sombra,
o espaço cumpre uma de suas funções que é influenciar o personagem e suas
ações. Isto porque Fabio toma atitudes motivado pelo espaço. Harmoniza-se, assim,
o personagem, a ação e o cenário onde elas ocorrem. Como exemplo, cita-se a
129
atitude de não desistir de seu intento e seguir adiante ao receber “um raio de sol” ou
ao encontrar a “sombra fresca de uma árvore, conforme se verificou nos trechos
comentados anteriormente.
A luminosidade da manhã é motivo recorrente que impele o personagem a
seguir sua “indefinida vontade de andar que é como uma sede de caminho e uma
ânsia de possessão cada dia aumentada de mundo(Ibid., p. 224), que pode ser
verificada nos seguintes trechos da obra:
- O primeiro raio de sol encontrou-me varrendo o curral das ovelhas com uma
grande folha de coqueiro [...] eu estava tão contente como a manhãzinha. O
frescor acelerava-me os movimentos (p. 36);
- A manhã sugere com seu exemplo a confiança num porvir melhor, e eu
obedecia talvez àquela sugestão (p. 59);
- Sobre a terra, de súbito escurecida, apareceu um sol enorme e senti que eu
era um homem satisfeito da vida [...] Com a saída do sol veio o frescor que
nos trouxe uma alegria ávida de taduzir-se em movimento (p. 57);
-
Como o sol sabe varrer o medo, não me restava de minha angustia noturna
mais que um peso nos nervos [...] Em seguida senti melhor o vento e o sol.
Minha força costumeira corria-me em grandes impulsos pelos membros. A
manhã era linda, dourada, ágil (Ibid., p. 128).
Dessa forma a luz da manhã exerce no personagem uma influência positiva.
O aparecimento da luz traz consigo uma proposta de renovação, o que induz o
personagem a superar as constantes dificuldades ligadas ao seu ofício e à sua
trajetória de construção moral e social.
4.3.3.2.4 O espaço-ambientação como elemento que antecipa ou adensa uma
mudança no rumo da narrativa e/ou contribui para a introdução de novos motivos
A ambientação em Güiraldes também serve para conferir ao herói um caráter
místico, de arquétipo a ser seguido, além de introduzir na narrativa um
acontecimento que se esperava. Na passagem do primeiro encontro com Dom
Segundo, a situação está ambientada na noite que abriga as horas mais perigosas
para o indivíduo. O turno da noite caracteriza-se por conter os mistérios e
superstições e permitir a livre imaginação referente ao desconhecido e místico,
diferentemente do dia que sabe “varrer todos os medos”. O encontro de Fabio com
Dom Segundo ocorre dentro da noite escura:
O caminho diante de mim estendia-se escuro [...] Havia já entrado na área
das quintas, onde a hora ia despertando a desconfiança dos cães. Um
incontido temor bailava-me as pernas quando ouvia de perto o rosnar de
algum mastim perigoso [...] Passei ao lado do cemitério e um conhecido
arrepio castigou-me a medula, irradiando seu pálido calafrio até as pernas
e os braços. Os mortos, os fogos-fátuos, as almas do outro mundo por
130
certo me atemorizavam mais que os possíveis maus encontros naquelas
paragens (Ibid., p.20 - 21).
Nesta ambientação surge repentinamente a figura de Dom Segundo,
traduzida como criatura sobrenatural (“fantasma”, “sombra”) pelo narrador em
analogia com entes místicos - os fogos-fátuos”, os mortos” e as almas dos outros
mundos”. Numa figura, cavalo e cavaleiro paralisam de emoção o jovem
personagem-narrador. Com este recurso, Güiraldes ambienta o acontecimento de
modo a propiciar ao seu herói uma entrada triunfal na narrativa, conferir-lhe um
caráter místico e tenta assegurar o gaúcho como modelo a ser seguido. Ao apreciar-
se a funcionalidade do cenário em que ocorre a aparição de Dom Segundo, verifica-
se que a ausência de luzes, o espaço deserto, o rosnar dos cães, o cemitério, criam
uma atmosfera de medo no protagonista, desencadeando nele uma série de
sensações. Também criam uma atmosfera de apreensão no leitor.
No final da narrativa, relata Fabio:
Imóvel, olhei distanciar-se, estranhamente avultado contra o horizonte
luminoso, aquele perfil de cavalo e cavaleiro. Pareceu-me ver um
fantasma, uma sombra, alguma coisa que passa e é mais uma idéia que
um ser, algo que me atraía com a força de um remanso, cuja fundura sorve
a corrente do rio (Ibid., p. 22).
Assim, a cena ambientada na proximidade da noite, na qual Dom Segundo vai
embora, busca uma simetria e uma ratificação da idéia de ente místico assinalada
quando de sua aparição.
Em semelhante clima místico, à luz da penumbra e ao redor do fogo,
Güiraldes ambienta tamm seus contos gauchescos, que fazem com que os
gaúchos entrem no “reino da ficção” (Ibid., p. 184), utilizando-se do personagem
Dom Segundo. Isto ocorre no capítulo XII, com o causo de um paisano enamorado e
das diferenças que teve com o filho do diabo e no XXI, com o relato de Miséria.
Na terceira fase da narrativa. Fabio passa a estancieiro e homem culto com
pendores literários. O cenário no qual recebe sua herança é assim ambientado:
“Perto de nós havia um rosal florido e um cão ovelheiro cheirava-me as botas” (Ibid.,
p. 229). Este ambiente anuncia uma mudança no rumo da narrativa porque se liga
ao fato de que Fabio foi privilegiado pela sorte, está recebendo sua fortuna e com
ela o poder e a tranqüilidade que parecem usufruir os outros personagens donos de
estância. Isto ocorre porque se associa o “rosal florido” à tranqüilidade, uma vez que
tal imagem supõe uma vida cor de rosa e a imagem do “cão ovelheiro que lhe cheira
as botas”, ao exercício do poder.
131
Vale dizer que o cenário onde ocorre o recebimento da herança havia sido
premonizado por Fabio quando este passou por uma situação de torpor, no capítulo
XVIII, de modo que esta ambientação fornecera anteriormente indícios de que
uma mudança drástica poderia ocorrer. Tal consideração fundamenta-se na
prescrição de que nenhum motivo deve ser gratuito na obra literária.
Ademais, pode-se registrar que tal ambientação está em analogia não só com
o destino que tomará a vida de Fabio e com a ação descrita, mas também alude à
estrutura econômico-social das estâncias.
Pode-se considerar também que a substituição do cenário da natureza pelo
do jardim colorido, no final do relato, antecipa uma mudança também interior no
personagem. Fabio logo começa a adaptar-se ao novo estilo de vida: “Senti-me bem,
apesar de minha crise moral. Tinha uma estranha sensação de existência nova”
(Ibid., p. 230).
Outro trecho no qual o narrador dispensa grande atenção ao espaço-
ambientação a fim de criar um clima para a introdução de novos motivos pode ser
observado no capítulo XV.
Desde o início deste capítulo, no qual se iniciam as andanças dos gaúchos
pelas terras costeiras, a avaliação deste espaço pelo protagonista evidencia o seu
desprezo por essa faixa de terra, o que coloca o leitor em estado de alerta para
algum novo acontecimento. Ele a classifica como “terra baia e magra, como
estonteada pela febre” (Ibid., p. 120) e a compara com sua tia Mercedes, igualmente
magra e desprezível. A partir daí, todos os elementos que ambientam a ação são
depreciativos: o campo é “bruto”, é “ruim e descampado”; o macegal, “descolorido e
duro”, até os cavalos o farejam depreciativamente; “o malfadado posto”, parece “um
ossinho na lhanura amarela”; o álamo é “mais pelado que palha de vassoura”; a terra
do pátio da estância é “desparelha e encascurrada”; o fogo, feito de “bostas e de
ossinhos” produz uma fumaceira que faz lacrimejar e tossir; as “lagoinhas” são
“secas”; o sal da comida “ofende a boca”; a bolacha é como “poste de quebracho”
que “grita como um porco” quando cortada e a chama do candeeiro é tão irritante
que quase foi enviada junto com o aparelho para “alumiar os demônios”; o quarto é
“um aposento fedorento” e com “bicharedo miúdo” (Ibid., p. 120 125 passim).
Contribui, ainda, para essa noção de ambiente, a caracterização do personagem
Dom Sixto Gaitán, “enxuto como um baixio salitroso e enrugado como guasca de
rebenque” (Ibid., p. 120).
132
Enquanto o narrador faz com que Fabio peregrine por terras nas condições
descritas, ele recorre a diferentes elementos ambientais a fim de provocar um estado
de apreensão na narrativa que permitirá a inserção de novos motivos e estranhos
episódios hostis.
Para configurar tal ambiente, o narrador usa recursos como a presença da
ossada da baleia branca, espécie de emblema que simboliza desgraça, e também
apela para a forma de deslocamento do gado que se afasta “desconfiado” e se
mantêm alerta como que para a iminência de um perigo.
Minha tropilha tinha-se distanciado, caminhando com a cautela de quem
está examinando campo para comprar, despontando os passos, olhando
às vezes em redor ou ao longe, como buscando um ponto de referência. O
picaço que eu montava relinchou. A égua madrinha levantou a cabeça,
esparramando um tropel de notas de seu cincerro. Todos os cavalos
olharam para mim. Porque estávamos assim desconfiados e buscando
abrigo? (Ibid., p. 122).
Desse modo, indivíduo e animais seguem para o lado do mar “como se fora
obrigação”. “Campo bruto!” – grita Fabio, sentindo-se ”insultado” e apoderado de “um
presságio de hostilidade” (Ibid., p. 122).
Ademais, um bando de patos “voa subitamente”, “o baio Comadreja planta as
quatro patas numa sentada brusca e bufa como mula” e assim “ficam todos quietos,
num momento de receio”, os socós, quero-queros reais e tachãs “parecem ter medo
e ficam vigiando” Fabio e os animais do outro lado do charco, pois sabem mais do
que eles. “- Quê?” pergunta a si mesmo o protagonista, instigando no leitor uma
resposta. Também se pode destacar nesse ambiente “o barro negro” e a estranha
atitude de Fabio de estar falando sozinho em voz alta, o que fez com que a
bicharada “voasse de um só vôo” (Ibid., p. 121 – 123 passim).
Toda essa ambientação com riqueza de detalhes serve para introduzir
episódios que representam perigo para o protagonista como a luta empreendida
junto com os animais nos terríveis caranguejais. Vencidas estas estranhas
dificuldades, o “terreno” torna-se fértil para a introdução do motivo recorrente da
preocupação com a morte e a introdução de um elemento novo e particular na
gauchesca de Güiraldes, que é a presença do misticismo. O primeiro motivo foi
abordado anteriormente e o segundo, o do misticismo, se concretiza na cena em que
os diabos querem levar o filhinho embruxado de Don Sixto Gaitán. Vale dizer que,
diante da probabilidade deste episódio até Dom Segundo, o herói, “nem
pestanejava” (Ibid., p. 121).
133
A prolongada dedicação do narrador ao compor a ambientação estende-se
também para a narração da cena mística ambientada na noite, ocupando duas
páginas do texto, do qual se transcreve algumas partes:
Olhei. Dom Sixto deu com a canhota um manotaço no ar. Foi como se
tivesse agarrado alguma coisa. “Não!” disse rouco e ameaçando “não me
hão de levar, seus maulas”. Com a larga faca que apertava na direita,
despedia no ar cutiladas, como para fender o crânio de um inimigo invisível
[...] “Não!”voltou a gritar como aterrorizado, mas firme em seu propósito de
não ceder -, anjinho... não me hão de levar.” [...] Com maior desespero
clamou: Meu filho o há de ser de vocês”. Compreendi o terrivelmente
angustioso daquela alucinação. O homem defendia seu filho embruxado, com
o desespero do que não sabe o que fere. [...] Queria ajudá-lo; mas uma
cobardia, um aniquilamento desconhecido, opôs-se aos esforços que fiz para
me levantar. Não podia sequer fazer o sinal da cruz. O horror eriçava-me os
cabelos. Debilitava-me num copioso suor... (Ibid., p. 126 – 127).
Ao analisar-se o desprezo de Fabio pelas terras da zona do litoral, pode-se
acrescentar uma outra leitura. O rechaço à zona costeira pode também se constituir
em uma alusão à insatisfação do gaúcho diante, primeiro dos conquistadores e,
depois, da intensa entrada dos estrangeiros que chegavam pelo mar a fim de
modernizar o campo e as povoações e, com isso, condenavam a extinção o sistema
de vida tradicional do gaúcho e, por conseguinte, na visão de Fabio, seus valores.
Através da atenção à imagem da antropofagia dos caranguejos na zona
costeira que os gaúchos - o narrador e o personagem Patrocínio - associam com a
prática dos cristãos, percebe-se a desaprovação à conduta moral daqueles que pelo
mar chegaram e se denominam cristãos.
Muitos estavam mutilados de um modo terrível. Faltavam-lhes pedaços da
casca, uma pata... A um tinha-lhe crescido uma pinça nova, ridiculamente
pequena em comparação com a velha. Estava olhando-o, quando outro
maior e são atropelou-o. Este aterrou ambas as mãos no lombo do que
pretendia defender-se e, usando-as como torquês quando se arranca um
prego, quebrou um pedaço da armadura. Depois levou o pedaço ao meio
da barriga, onde aparentemente tinha boca. Disse a meu companheiro:
- Parecem cristãos pelo tanto e tanto que se querem.
- Cristãos, - apoiou Patrocínio. – Ahã... agorinha vai ver os rezadores (Ibid.,
p. 149).
Os rezadores a que se refere Patrocínio são aranhas que ficam com as patas
presas ao peito, que “não se importam umas com as outras” e que pedem
certamente em suas rezas “algum boi ou jegue que pode vir com um ginete para que
elas comam” (Ibid., p. 149). Dessa forma, o narrador parece sugerir a imagem
negativa que receberam do gaúcho os estrangeiros que pelo mar chegaram
(conquistadores, exploradores, comerciantes, importadores). A ausência de um
código de ética daqueles que se denominam cristãos também pode ser motivo para
134
o narrador criticar a forma como era professada a religiosidade, característica
encontrada em obras anteriores de Güiraldes.
Desse modo, entende-se haver abordado parte dos motivos que compõem a
gauchesca de iraldes, bem como haver efetuado a análise, ainda que parcial, do
espaço/ambientação na narrativa Dom Segundo Sombra.
Através destes procedimentos, entende-se que o espaço, nos trechos
analisados, assume diferentes funções que se articulam com a construção dos
personagens e com o desenvolvimento das ações, contribuindo assim para a
definição e sentido da temática gauchesca. Também pode constituir-se mero
cenário. Registre-se que até esta opção pode ter um sentido, que, inclusive, poderia
se prestar para uma análise mais profunda e conseqüente. Para os objetivos de
nosso trabalho, porém, acreditamos que o levantamento feito é suficiente.
CONCLUSÃO
O presente trabalho propôs um estudo sobre gauchesca, motivos e espaço,
tomando de forma predominante como referencial teórico os estudos de Ludmer
(2002) para gênero gauchesco, Tomachevski (1973) e Kayser (1976) para motivos e
Dimas (1994), Lins (1976), Lukács (1965) e Bachelard (1996) para espaço.
Relativamente à questão do gênero afirmou-se que este, na gauchesca, é
garantido pela versão letrada da cultura popular do gaúcho. Os termos uso e dom
organizam o referido gênero. O uso refere-se à utilização militar do corpo e à
utilização literária da voz. o dom é uma referência ao patrão e ao escritor que
voz ao gaúcho.
Assim, no âmbito platino, este tipo de literatura floresceu devido à
aproximação ocorrida entre o segmento popular (a dimensão do uso) e o segmento
culto (a dimensão do dom) da sociedade argentina durante os embates e as guerras
acontecidas no final do século XVIII e durante o século XIX.
No que se refere aos motivos, registrou-se o conceito do formalista russo
Tomachevski (1973), que concebe essas partículas como sendo unidades narrativas
simples, não decompostas, que se combinam entre si, formando a fábula e a trama
de um texto literário. Completou-se esta conceituação com a visão de Kayser (1976)
para quem motivos são as diversas unidades que se repetem e se combinam de
forma variada em diferentes obras literárias.
Com relação ao espaço, adotaram-se as idéias de Dimas (1994) que afirma
que o espaço pode ser utilizado pelo autor como recurso para dar maior significação
136
à determinada narrativa. Assim, o espaço-ambientação pode apresentar-se de
diferentes formas, dependendo do valor que lhe atribuiu o narrador no texto literário:
ele pode ser prioritário e fundamental, e até determinante; pode apresentar-se em
harmonia com os outros elementos da narrativa e, dessa forma, não receber
nenhuma prioridade e também pode apresentar-se diluído e ter importância
secundária.
De Lins (1976) fez-se uso de dois conceitos: o de espaço e o de
ambientação. Por espaço este autor compreende o cenário no qual está situado o
personagem e por ambientação a totalidade dos processos utilizados como recurso
para dar a noção de determinado ambiente.
Lukács (1965) analisa o espaço-ambientação, relacionando-o com a
seqüência das ações. Assim, tenta mostrar os papéis que este componente da
narrativa pode desempenhar. Segundo ele, os objetos do mundo que compõem o
espaço-ambientação podem propiciar a atividade e o destino dos homens; podem
ser pontos importantes das experiências vividas pelos homens em suas relações
sociais decisivas ou podem ainda funcionar como simples cenários da atividade e do
destino deles.
Bachelard (1996) analisa as emoções e os desejos provenientes da
contemplação dos espaços da vida íntima. De acordo com este autor, o espaço é
que ativa a memória e permite a concretização das lembranças. Dentro da
imaginação criadora do indivíduo, ele destaca as imagens da casa, do ninho, da
cabana, das conchas como aconchegantes e atrativas e, portanto, veículos de
sensação de segurança e de felicidade.
Tendo-se dividido o trabalho em quatro partes, observou-se na primeira parte
que tanto o tipo humano conhecido como gaúcho platino como a literatura
gauchesca são frutos de conflitos sociais, políticos e econômicos. Ambos serviram a
interesses alheios aos do gaúcho que lhe deu origem. A literatura gauchesca
constituiu-se veículo do qual se utilizaram as diferentes ideologias partidárias para
atingir os objetivos das elites dominantes em detrimento da classe de onde se
originou o tipo gaúcho. Este, por sua vez, participou nos diferentes embates
travados em favor das terras do Prata desde as primeiras lutas pela independência
no final do século XVIII ao estabelecimento definitivo do estado da Argentina no
final do século XIX e, no entanto, não recebeu a parte do território independente que
lhe caberia. Além disso, cessada sua utilidade, foi descartado para ser substituído
137
por imigrantes, principalmente europeus, que assumiram suas funções na
manutenção e desenvolvimento do país.
Na segunda parte, observou-se o esforço de Güiraldes em resgatar, através
de suas obras, a importância do tipo humano gaúcho, as virtudes desse indivíduo
do interior e o amor que deveriam nutrir seus compatriotas pelo território argentino.
Dessa forma, ele tenta valorizar a cultura nacional bem como a literatura hispano-
americana como um todo, percebendo que elas se ressentiam perante a imposição
dos modelos europeus.
No terceiro segmento do trabalho, verificou-se que Dom Segundo Sombra foi
uma obra que agitou os intelectuais argentinos, os quais emitiram diferentes
opiniões, contrárias ou não a seu respeito. Destaca-se que Güiraldes entrou no
debate da definição da figura do gaúcho, apresentando um personagem calcado em
valores de trabalho, solidariedade, fraternidade e amor a terra, os quais não se
coadunam com a violência. Com estas características, a figura de Dom Segundo
bem como a composição artística da obra têm fascinado leitores de diferentes partes
do mundo. Contribuiram para este êxito o registro e a descrição detalhada de sua
visão do campo argentino que incluiu geografia, ofícios, fauna, flora, contos típicos e
usos e costumes que estavam se extinguindo a seu tempo.
Na quarta parte verificou-se que, em Dom Segundo Sombra, o espaço
funciona como elemento essencial e até determinante para a significação da
narrativa, tendo o narrador lhe atribuído, assim, grande valor. Isto porque ele está
amalgamado com os motivos da gauchesca a fim de enfatizar os sentidos que
decorrem destes motivos e também porque contribui na caracterização dos
personagens, no desenvolvimento das ações e no fluxo da narrativa, exercendo
diferentes funções.
No que se refere aos motivos da gauchesca, nota-se que unidades típicas do
gênero, tais como escalonamento social, uso do corpo pelo patrão, desconfiança em
relação ao judiciário e aversão ao contexto urbano contam com a colaboração
primordial do espaço e do ambiente para sua significação. O fato de o narrador
dispor espacialmente os gaúchos em posição desfavorável em relação ao imigrante,
ao estancieiro e à autoridade e de atribuir determinadas características peculiares ao
espaço-ambientação, contribui não para a concretização, mas também para o
aclaramento dos motivos selecionados. Dessa forma fortalece-se a ligação dos
motivos entre si e com o tema ou assunto da narrativa.
138
A importância dispensada ao espaço-ambientação pode ser avaliada
positivamente, também, ao considerar-se as diferentes funções por este elemento
assumidas. Entre essas destacam-se produzir efeitos de verossimilhança, introduzir
motivos recorrentes e estruturais, auxiliar na construção, no desenvolvimento e no
destino dos personagens, influenciar suas ações, antecipar ou adensar uma
mudança no ritmo da narrativa e contribuir para introduzir novos motivos. Esta
constatação suporte à afirmação de que, na composição da narrativa de Dom
Segundo Sombra, o espaço recebeu atenção privilegiada. Assim, os motivos que
compõem o espaço-ambientação são utilizados como recurso para propiciar,
completar ou enfatizar outras unidades temáticas. Fica, desse modo, garantida a
sintonia do espaço-ambientação com o emaranhado de partículas que compõem a
fábula e a trama. Mesmo o espaço indiferente tem um propósito que é o de
estabelecer um desafio a ser vencido pelo personagem.
A par das funções nomeadas, destaca-se a assertiva de que o espaço-
ambientação auxilia na composição dos personagens gaúchos como Fabio, porque
dentro da tipologia proposta, ou seja, a da existência do gaúcho-tropeiro, torna-se
necessário dispor do espaço rural do pampa com suas características naturais
desafiantes e de objetos do mundo campeiro para a consecução intermitente do
ofício e do exercício dos usos e costumes. Ademais, o espaço-ambientação
apresenta-se como recurso capaz de influir nas ações e conseqüentemente, no
destino de Fabio. Isto porque, em comunhão com este elemento, o protagonista
participa de experiências decisivas em sua existência que lhe permitem evoluir
física, laboral e espiritualmente.
Quando o espaço é utilizado como recurso para introduzir novos motivos,
antecipar ou adensar uma mudança nas ações percebe-se a seleção de ações,
espaços e termos com o objetivo de imprimir peculiaridade à nova ação que se
insere na narrativa. Desse modo, o espaço cumpre o papel de preparar o leitor
psicologicamente para a nova situação. Constitui-se uma espécie de código a ser
desvendado e posteriormente, comprovado.
Nesses termos, ao longo da análise tentou-se provar a importância do
espaço-ambientação nesta narrativa. Conclui-se que, na temática a que se propõe
a gauchesca, sem a participação efetiva do espaço-ambientação a narrativa teria se
distanciado bastante das qualidades artísticas que lhe têm sido atribuídas. Ademais,
o gaúcho cuja figura metamórfica é produto dos vários fatores que o conceberam em
139
diferentes etapas de sua história é antes de tudo, fruto do espaço onde se insere e
de onde, de certa forma, é resgatado.
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Mimeografado.
VELLINHO, Moisés. O gaúcho rio-grandense e o gaúcho platino. Porto Alegre:
Editora da Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1962.
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