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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A RETOMADA DO ROMANTISMO ALEMÃO EM
KEIN ORT. NIRGENDS E DIE NEUEN LEIDEN DES
JUNGEN W.: O ROMANCE COMO RESISTÊNCIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Márcio José Coutinho
Santa Maria, RS, Brasil
2007
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A RETOMADA DO ROMANTISMO ALEMÃO EM KEIN
ORT. NIRGENDS E DIE NEUEN LEIDEN DES JUNGEN W.:
O ROMANCE COMO RESISTÊNCIA
por
Márcio José Coutinho
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Letras, Área de
Concentração em Estudos Literários, da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM – RS), como requisito parcial para a obtenção do título e do grau de
Mestre em Letras.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Santa Maria, RS, Brasil
2007
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
A retomada do romantismo alemão em Kein Ort. Nirgends e Die neuen
Leiden des jungen W.: o romance como resistência
elaborada por
MÁRCIO JOSÉ COUTINHO
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA:
____________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Rosani Úrsula Ketzer Umbach – UFSM
(Presidente/Orientadora)
____________________________________________
Prof. Dr. Élcio Loureiro Cornelsen – UFMG
(1. º argüidor)
____________________________________________
Prof. Dr. Christian Viktor Hamm – UFSM
(2.º argüidor)
Santa Maria, 10 de julho de 2007
“Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga
da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir”.
(Theodor Adorno)
“A arte realiza milagres. No seu reino, até o lodo reflete as estrelas”.
(Anatol Rosenfeld)
“La obra poética emplea con palabras corrientes representaciones corrientes; no la sufre,
las metamorfosea en ficción: en representación teatral, donde lo cotidiano se transforma en
tragedia ”.
(Henri Lefebvre)
A meus pais, meus
irmãos e minha noiva:
por eu ser quem sou e
amar a quem amo.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, pelo saber; ao CNPq, pelo auxilio; à professora
Rosani Umbach, pela orientação, pelo trajeto; aos professores Sílvia Paraense, Pedro Brum
Santos, Lawrence Pereira, Vera Lenz e Rosani Umbach, pelas aulas da pós-graduação; ao
Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo, pela oportunidade; a meus pais Aurio e Lori
Coutinho, pela vida, pela existência, pelo dom da criação; a meus irmãos Maria, João e
Mateus, e cunhados, Marília e Valdir, pelos laços que não se desfazem; a minha noiva,
Katia, pela inspiração; ao professor Christian Hamm, pela qualificação e colaboração com
o trabalho; aos professores Élcio Cornelsen, Christian Hamm, pela discussão e avaliação
da pesquisa; ao professor Christoph Schamm, pela leitura do trabalho; ao professor Jorge
da Cunha, pelo exemplo de dedicação aos estudos germânicos;ao professor Jaime
Ginzburg, pelo apoio à linha de pesquisa; ao professor Hugo Blois, pelo sonho; à
professora Vera Lucia Pires e à professora Rosani Umbach, pelas primeiras lições em
alemão; ao Lizandro, pela troca de idéias; ao João Luis, pelas sugestões; à Tiane pelo
coleguismo; a Alex Garcia, pelas lições; a Saulo, David, Francieli, Leandro, Joel, Diamar,
Carlos e Marcelo, pela amizade; a Ricardo, Eduardo, e José Evandro, pelo
companheirismo; ao Beto, pela acolhida; a Jandir e Irene, pelas frias de que me tiraram; a
Renato, Mário, Rosane e Valmir, pelas palavras de incentivo; a meus vizinhos, pela
convivência; a meus avós, tios e primos, pela saudade; à professoras Ana Alires, pelos
primeiros passos; aos professores Márcia, Caio, Guga, Celina, Max, Luzandro, Airton e
Liziane, pelos primeiros vôos; a Paulo, Cássio, Beto, Odair e Bira, pela infância; ao Rio
Pardo e ao Passo do Sobrado, terras em que me criei; ao Max Bruhns e à Colônia dos Haas,
para onde eu sempre volto.
SUMÁRIO
Introdução ...........................................................................................................................10
1 Situação histórica e função da literatura na RDA .....................................................16
1.1 A literatura dos anos 60: a subjetividade contra a racionalização e a
instrumentalização ..................................................................................................19
1.2 As diretrizes da produção literária dos anos 70: a escrita contra a repressão e o
esquecimento ..........................................................................................................25
1.3 A retomada do período romântico ....................................................................30
2 O Realismo socialista e a apropriação da tradição artística ......................................44
2.1 Realismo e Vanguarda: apologia e reação à tradição mimética .......................44
2.2 Ideologia, poder e resistência ...........................................................................61
3 Socialismo real e utopia: discrepância e desilusão ...................................................69
3.1 Origem do ideal comunitário e do exercício do poder.......................................79
3.2 Controle, violência e desilusão no regime da RDA .........................................85
4 A subjetividade, a melancolia e o voltar-se para o passado em Kein Ort. Nirgends e
Die neuen Leiden des jungen W. ..............................................................................94
4.1 Romantismo e resistência ................................................................................96
4.2 A função da melancolia, da subjetividade e do voltar-se para o passado em
Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des jungen W. .................................101
4.2.1 A melancolia em Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des
jungen W. ............................................................................................................103
4.2.2 A subjetividade em Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des
jungen W. ............................................................................................................118
4.2.3 O voltar-se para o passado em Kein Ort. Nirgends e Die neuen
Leiden des jungen W. .............................................................................137
4.3 Recursos lingüísticos e discursivos nos romances ......................................156
Considerações finais ......................................................................................................... 161
Bibliografia ...................................................................................................................... 167
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Curso de Mestrado em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
A RETOMADA DO ROMANTISMO ALEMÃO EM KEIN ORT.
NIRGENDS E DIE NEUEN LEIDEN DES JUNGEN W.: O ROMANCE
COMO RESISTÊNCIA
Autor: Márcio José Coutinho
Orientadora: Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Local e data da defesa: Santa Maria, 10 de julho de 2007.
Durante a década de 70, verifica-se na literatura da República Democrática Alemã (RDA)
o surgimento de um conjunto de obras caracterizadas pela retomada de elementos e valores
referentes ao período romântico alemão. O país vive sob o Socialismo imposto à força pela
URSS, e o Estado exerce sobre o povo forte opressão, censura e repressão, além de impor
um programa de base realista a ser seguido pelos escritores, com o fito de consolidar os
princípios ideológicos do regime – o Realismo socialista, criado a partir das concepções de
realismo de Georg Lukács. Em resposta a esse contexto, pode-se considerar que algumas
obras literárias funcionam como resistência, ao adotar formas e técnicas não miméticas de
escrita. Neste sentido, a presente dissertação visa a realizar uma análise comparativa entre
os romances Kein Ort. Nirgends, de Christa Wolf e Die neuen Leiden des jungen W., de
Ulrich Plenzdorf, tendo em vista o possível papel de temas como a subjetividade, a
melancolia e o voltar-se para o passado para as aspirações político-socias dos escritores
vinculados à referida tendência literária. O conceito de Romantismo deve ser entendido de
acordo com os significados históricos particulares resultantes em função da discussão em
torno da herança cultural e literária. O principal aporte crítico e teórico empregado como
base para essa pesquisa advém dos ensaios de Christa Wolf, Bertolt Brecht, Theodor
Adorno, Walter Benjamin e Anatol Rosenfeld.
Palavras-chave: resistência; subjetividade; melancolia; voltar-se para o passado
ABSTRACT
Master's Thesis
Master's Degree Program in Literature
National University of Santa Maria
THE RECOVERING OF GERMAN ROMANTICISM IN KEIN ORT.
NIRGENDS AND DIE NEUEN LEIDEN DES JUNGEN W.:
THE
NOVEL AS RESISTANCE
Author: Márcio José Coutinho
Chair: Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Time and place of defense: Santa Maria, 10
th
July 2007
During the seventies, it is possible to verify the arising of a set of works characterized by a
tendency on recovering aesthetic elements and values from Romanticism in East-Germany
Literature. That country lived under the Socialism imposed by force by the USSR, and the
State exerted strong oppression, censorship and repression over people, and also imposed a
realistically-based program to be followed by the writers, in order to consolidate the
ideological principles of the regime – the Socialist Realism, created departing from Georg
Lukács’ conceptions on realism. In response to this context, some literary works can be
considered as assuming the role of resistance, by the adoption of non-mimetic forms and
techniques of writing. In this sense, this thesis aims at doing a comparative analysis
between Christa Wolf’s novel Kein Ort. Nirgends and Ulrich Plenzdorf’s novel Die neuen
Leiden des jungen W., focusing on the possible role of themes as subjectivity, melancholy
and turn to past to the political and social aspirations proper of the writers vinculated to
this literary tendency. The concept of Romanticism must be understood according to the
particular historical meanings resulting with regard to the discussion on cultural and
literary heritage. Christa Wolf’s, Bertolt Brecht’s, Theodor Adorno’s, Walter Benjamin’s
and Anatol Rosenfeld’s essays constitute the main critical and theoretical approach used to
base this research.
Keywords: resistance; subjectivity; melancholy; turn to past
INTRODUÇÃO
O término da Segunda Grande Guerra trouxe como conseqüência a divisão do
território alemão em dois blocos que serviram de palco e ícone para as disputas travadas
entre as nações socialistas e capitalistas pela hegemonia do regime. Filhas da guerra fria, a
República Democrática Alemã (RDA) e a República Federal da Alemanha (RFA), por um
lado atendem a interesses políticos, sociais e ideológicos, e por outro assistem à
perplexidade que assalta o povo. É nesse conjunto que se forma a Literatura da RDA,
sendo integrada por um grupo de escritores cujos ideais humanistas e aspirações por uma
sociedade justa e igualitária os levam a engajar-se na construção do Socialismo.
Essa literatura é, por um lado, caudatária da tradição moderna da literatura alemã,
que guarda uma estreita relação com os problemas sociais e humanos do século XX, sendo
que, de modo geral, a situação histórica concretizada no capitalismo imperialista, nos
sistemas totalitários e nas destruições das duas guerras se reflete tanto em um sujeito
cindido e em desencontro com o mundo quanto na necessidade de reação crítica e
afirmação do sujeito frente ao estado de coisas dado. Por outro lado, a Literatura da RDA
resulta das condições específicas do contexto histórico, da relação dos escritores com os
acontecimentos e da sua posição em face das decisões políticas, sociais, culturais e
ideológicas do momento. A realidade enfrentada por esses artistas é a discrepância entre
seus ideais humanistas e a opressão inerente ao desenvolvimento do Socialismo real.
Durante a década de 70, verifica-se na aludida produção literária o surgimento de
um conjunto de obras caracterizadas por retomar e revalorizar elementos próprios do
período romântico alemão, manifestação esta que pelo número de obras e autores que
envolve, chega a adquirir a configuração de tendência. Merece destaque o fato de nesse
período, após declaração de abertura na política cultural, estabelecer-se uma intensificação
da repressão, incluindo censura, expatriamento e prisão de intelectuais e artistas. A
discrepância entre os interesses dos setores dirigentes, dos intelectuais e do povo provoca
nos escritores uma profunda desilusão em relação ao funcionamento do Socialismo real.
Neste contexto, o regime socialista exerce domínio sobre os homens por meio da
ação da ideologia e controla a arte através da instituição de um modelo programático de
produção, o Realismo socialista. Direcionando o interesse pela função social da literatura,
e considerando-se a ruptura das obras que compõem o corpus deste estudo com o referido
modelo, centra-se no problema de saber qual a influência dos fatores externos na
determinação da orientação estética; quais as transformações estilísticas dessas obras,
englobadas no conjunto pela mesma tendência à incorporação de elementos da tradição
histórica e literária; bem como qual o papel das características em estudo para o
cumprimento da função crítica que as obras assumem frente às circunstâncias em que são
produzidas.
A fim de executar as propostas da pesquisa em curso, parte-se do pressuposto de
que à recusa dos traços fundamentais do realismo subjaz uma reação contra o desenrolar do
Socialismo no país, marcado por um caráter ideológico e opressor em sua ação política e
social, em que o homem deve servir ao sucesso do sistema. O romance afigura-se desta
forma como resistência e serve para expressar o protesto dos escritores e o sentimento de
crise perante a realidade vivida.
Levando em conta a hipótese precedente e tomando a literatura em sua função
social e humanizadora, o objetivo geral deste trabalho consiste em revisar a atualização de
elementos da estética romântica nos romances Die neuen Leiden des Jungen W., de
Ulrich Plenzdorf, e Kein Ort. Nirgends, de Christa Wolf, tendo em vista que a relação de
tais elementos com os problemas de ordem autoritária intrínsecos ao regime instituído
aponta para o caráter engajado dessas obras. Dentro desses limites, busca-se de modo
específico avaliar a perspectiva crítica dos romances selecionados conquanto incorporam e
ressignificam aspectos de um movimento histórico e de um estilo literário pretéritos. Neste
sentido, este estudo visa a verificar o papel da história e da tradição literária na elaboração
em termos de tema, forma e conteúdo dos dois romances, direcionando tal enfoque para a
posição crítica dessas obras quanto ao contexto social, político e cultural em que foram
produzidas. É mister analisar o modo como estão representadas a marginalização, a
exclusão social, bem como o papel e a desvalorização do poeta na sociedade, dado o
sentimento de crise existencial que se apossa dos escritores em determinado momento da
RDA. Com o intento de compreender a especificidade dos romances em questão, deve-se
examinar com especial atenção o trabalho com os recursos formais e com o material
lingüístico na construção dos romances. Tal perspectiva redunda na tese de que a
construção dos personagens, a posição do narrador, a configuração do espaço e do tempo,
bem como o tom da linguagem, a paródia, o humor, a polifonia, o dialogismo e a
intertextualidade implicam no caráter de resistência dos romances à opressão do contexto
social. Três são portanto os elementos referentes à estética romântica abordados nos
capítulos de análise: a subjetividade, a melancolia e o voltar-se para o passado, os quais
constituem o enfoque particular do presente estudo.
A dissonância entre os interesses hegemônicos do Estado e as necessidades
imediatas do povo leva muitos escritores ao abandono do ideal de construção do sistema
em prol da meta de reavivar a consciência da sociedade civil para o impedimento da
reincidência da barbárie, para a reivindicação de justiça e para a resistência contra a
alienação e a opressão. Em última instância, a tendência de retomar traços do período
romântico corresponde a uma tentativa de revisar a própria história, com suas
continuidades e desvios, de reaver valores esquecidos, trazendo à luz as razões de tal
esquecimento, e de refletir sobre os caminhos trilhados pela arte ao longo e em ligação
com esse processo. O levantamento de tal hipótese suscita a necessidade de adotar como
metodologia a abordagem histórica a fim de determinar a posição das referidas obras no
conjunto da literatura que integram, tomando ciência dos fatores que influem na respectiva
criação e elaboração; e a abordagem comparativa, pois o pressuposto de que a
manifestação estética em questão se configura como tendência exige um cruzamento com
base em critérios capazes de ressaltar o dado geral e os caracteres e sentidos particulares de
cada romance.
Esta pesquisa justifica-se por contribuir com os estudos direcionados para o exame
da recorrência à tradição artística pela criação literária moderna, considerando as relações
estabelecidas tanto entre sistemas textuais quanto entre estes e o mundo sócio-cultural.
Deste modo, insere-se nos atributos da literatura comparada, cujos objetivos incidem na
elucidação dos sentidos criados nos textos novos a partir de elementos derivados de outros
textos; assim como na explicitação dos procedimentos de elaboração dos complexos de
significado nas novas formas. Especificamente, contribui com as linhas de pesquisas
empenhadas em determinar os vínculos entre a arte e o contexto, cuja referência evidencia,
no apelo à função politizante da obra, a veiculação de uma dada ideologia e de uma
intenção crítica.
Tomando-se em consideração a natureza das obras em questão, marcadas pelo
signo da modernidade – caudatárias das inovações artísticas das primeiras décadas do
século XX – e impulsionadas pela necessidade de expressar sem que o conteúdo seja
diretamente apreensível pelo sistema de censura do Estado, deve-se ter o cuidado de
entender, ainda que sumariamente, as forças externas, i. e., de origem histórica, política,
social e cultural que possam ter influenciado no surgimento e na construção das obras; o
cuidado de não negligenciar o fato de que ambos os romances resultam da combinação de
um componente intencional e consciente de elaboração e de elementos de ordem
contingente e inconsciente, sedimentados no estado de espírito transmitido à narrativa.
Outros fatores que se constituem em critérios diretivos do estudo em curso são a busca de
um motivo desencadeador da obra em características próprias de outro movimento e a
reação às normas ditadas pelo Realismo socialista. Portanto, como fator prévio para
empreender a análise dos romances, serão definidos os principais traços do Romantismo e
do Realismo socialista; a partir daí, podem-se focalizar os recursos de elaboração que
atuam sobre o substrato romântico e configuram a dimensão moderna das obras, entre eles
a intertextualidade, o dialogismo, a paródia e a polifonia. Para tanto, o presente trabalho
busca fundamentar-se na história da literatura e em suportes da teoria literária cuja
abordagem contempla as relações entre a arte e os elementos de ordem social e cultural.
A hipótese norteadora deste exame, a de que os aspectos românticos funcionam
para o cunho de resistência intrínseco à tendência em questão, leva a considerar, embora
brevemente, os problemas inerentes ao desenvolvimento do Socialismo, as relações de
ideologia e poder, o grau de opressão, reificação e alienação; bem como, em contrapartida,
os ideais de uma ordem justa e humanista cultivados pelos escritores. Os critérios adotados
para a definição do corpus derivam da relação da temática das obras com a respectiva
situação na história da literatura. Destarte, o problema da presente pesquisa assenta-se
sobre a procura de interpretar os significados adquiridos pela representação de aspectos
temáticos e estéticos do movimento romântico, considerando as obras tanto em sua
individualidade quanto situadas no conjunto da literatura da RDA. Além disso, procura-se
verificar de que modo os aportes teóricos servem para compreender as particularidades das
manifestações literárias selecionadas.
Deste modo, o trabalho divide-se em quatro capítulos. O primeiro consiste na
contextualização histórica da Literatura da RDA, buscando traçar as linhas mestras que
definem os impulsos artísticos da década de 60, em relação aos quais se situa o romance de
Plenzdorf; e apontar as linhas de desenvolvimento sobre as quais flui a arte da década de
70, cujas marcas aparecem no romance de Wolf. Além disso, realiza-se um levantamento
dos principais aspectos do período romântico, concebido tanto em suas manifestações
históricas e sociais, quanto em suas diretrizes artísticas, estéticas e ideológicas, cujas
características são de interesse para a análise e interpretação do corpus selecionado. O
termo “período romântico” é empregado quando se quer referir ao movimento em sua
generalidade, não importando as ocorrências específicas do fenômeno. A análise particular
das obras exige, no entanto, a distinção entre as manifestações strictu sensu, visto que o
livro de Plenzdorf retoma em sua trama o tema de Werther, romance de Goethe que
remonta ao Sturm und Drang; o livro de Wolf, por sua vez, ficcionaliza um encontro entre
Heinrich von Kleist e Karoline von Günderrode, poetas da fase inicial do Romantismo,
denominada Frühromantik. Os principais historiadores que dão base a esse trabalho são
Wolfgang Emmerich, Otto Maria Carpeaux e Arnold Hauser.
O segundo capítulo constitui um estudo do Realismo socialista, verificando sua
atuação sobre a produção literária da RDA, bem como seus pressupostos teóricos e
artísticos, numa tentativa de elucidar possíveis problemas que tenham dado margem a uma
apropriação pelo poder do Estado. Realiza-se então uma revisão da teoria do realismo,
formulada por Georg Lukács. Seguindo esse ensejo, arrolam-se em contrapartida
pressupostos teóricos que se consideram fundamentar a análise das obras em estudo, visto
configurarem-se estas na resistência aos valores pregados por Lukács. Assim, busca-se
suporte nos postulados de autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Anatol
Rosenfeld e Bertolt Brecht. Este capítulo compreende ainda um subitem acerca dos
problemas da ideologia, do poder e da resistência, tendo em vista a necessidade de
definição e de delimitação das possibilidades de aplicação dos termos. Isso se deve ao fato
de que tais conceitos remetem a uma troca fluida entre o domínio das idéias e significados
e o âmbito político e social. Tais conceitos perpassam os conflitos e interesses
estabelecidos entre os três setores que formam o pano de fundo social subjacente ao
panorama literário: o Estado, os intelectuais e o povo.
O terceiro capítulo deriva da constatação de que uma determinante forte da
tendência literária em questão é a percepção por parte dos escritores da dissonância entre o
desejo utópico de socialismo e a realização do regime no país. Essa parte centra-se na
revisão da construção teórica do sistema, tanto nas formulações contidas nos escritos de
Marx, quanto em sua acepção utópica, procurando relacioná-las com a análise histórica do
funcionamento real do regime, caracterizado não pela libertação, mas pela alienação,
exploração e opressão das massas. Com isso, verifica-se um componente ambíguo nos
pressupostos de Marx, cuja apropriação pode tanto fundamentar ideais humanistas, justos e
libertários, quanto justificar a ação do poder político.
O último capítulo refere-se à análise e interpretação comparativas dos aludidos
romances, sendo que as temáticas propostas são discutidas nos subitens do capítulo. A
disposição obedece à seguinte ordem: primeiro, comparam-se as funções e as
manifestações da subjetividade nas duas obras; posteriormente, realiza-se essa verificação
comparativa com respeito às manifestações e funções da melancolia; e numa terceira
instância, procede-se semelhante análise comparativa acerca da atitude romântica
conhecida como voltar-se para o passado. Tais elementos são estudados na medida em que
constituem temas incorporados na trama e elaborados no discurso romanesco.
1 SITUAÇÃO HISTÓRICA E FUNÇÃO DA LITERATURA NA RDA
O desenvolvimento da Literatura da RDA está ligado ao empenho de escritores e
intelectuais em revisar os problemas sociais que levaram a Alemanha ao horror da II
Guerra e a sua participação na construção de uma nova sociedade. Os escritores
consideravam, conforme Erhard Engler
1
, que sua tarefa primordial era gerar uma nova
moral com o fito de impedir a repetição dos crimes, da deformação da sociedade e mesmo
de uma guerra de natureza nazista. Dirigiam seus esforços para recuperar no povo alemão a
sensibilidade histórica, social e cultural perdidas com as atrocidades bélicas. A missão do
escritor e os efeitos da literatura eram concretos no seu comprometimento com a edificação
social. Basta mencionar a iniciativa de pesquisar os fatores que possibilitaram a barbárie, a
culpa que cabia aos cidadãos e os resquícios nazistas que ainda se manifestavam ou
permaneciam latentes nos indivíduos e em suas relações.
A práxis desses autores, tanto no que concerne à temática quanto às concepções e
aos problemas abordados, resulta da reflexão acerca de suas próprias experiências sociais e
humanas, pois as perspectivas de escrita relacionam-se a grupos de artistas que, segundo o
autor
2
, participaram da guerra e foram acometidos pela desilusão; que se exilaram ou
permaneceram no país durante a emigração interior; que foram vítimas do cárcere ou do
campo de concentração; que participaram da militância política. A primeira fase da
literatura na Alemanha é marcada por um sentimento de remorso e uma necessidade de
expressar-se a respeito dos resultados dolorosos da guerra, bem como de criticar a
impunidade com relação aos crimes do nazismo. Essa fase consiste na chamada literatura
de escombros.
1
ENGLER, Erhard. “Como era...” – A literatura da Ex-RDA entre engajamento socialista e resistência. In:
Bolle, Willi. (Org.). Antes e depois do muro: VI semana de literatura alemã contemporânea. 1994. p. 9.
2
Idem. Ibidem. p. 10.
Porém essa tendência teve pouca repercussão na então Zona de Ocupação
Soviética
3
, sendo logo suplantada pela implantação em 1949 do romance de produção e da
literatura de combate, que sob a determinação programática do Realismo socialista,
orientavam o conteúdo de suas obras o primeiro para a produção, a vida do homem e o
trabalho na fábrica e no campo; a segunda para a apologia da construção do socialismo, o
enaltecimento da função do partido e o elogio da formação do homem novo
4
. Os
problemas ideológicos inerentes ao funcionamento do Socialismo encontram-se já no fato
de atribuírem-se a outrem as falhas ou defeitos relativos às propriedades e ao
desenvolvimento do regime. Dessa forma, seus adeptos eximem-se da análise e da crítica
de suas ações e concepções, justificando-se e mascarando-se através da crença na
sabotagem pelo inimigo de classe, ente este que, segundo a concepção do sistema, deve ser
eliminado
5
.
A renúncia em revisar as raízes fascistas de sua história advém da própria
manipulação operada pelo regime por via da propaganda oficial. A RDA nega a herança do
Terceiro Reich, arroga para si a continuidade das tradições progressistas, bem como o
caráter antifascista e democrático. Essas mesmas concepções devem ser incorporadas à
literatura, empregada como meio de difusão de idéias e ideologias, de modo a contribuir
com a solidificação do poder. Com base na concepção de Stalin que considera o escritor o
“engenheiro da alma humana”
6
, os comunistas exigem da literatura a função de, através da
afirmação da atitude progressista e do louvor ao sistema, direcionar a adesão dos alemães
no sentido de implantar a ditadura do proletariado. No entanto tal objetivo não exige
apenas o apelo a obras-modelo, como as de Górki e Makarenko, conforme nos dá
testemunho a narradora de Em busca de Christa T.
7
, de Christa Wolf, mas também o
controle por meio da censura
8
. Isso carrega em si evidências que revelam as falhas do
sistema. O próprio fato de haver censura mostra o descompasso entre a vontade da
instituição socialista, no seu funcionamento real, e a vontade do povo, incluída a dos
escritores. A proibição da liberdade de expressão e mesmo de instrução, denuncia que os
setores dirigentes do Socialismo esquecem seu caráter humanista, tornando-o um poder
opressor e limitador das qualidades humanas.
3
A República Democrática Alemã foi criada somente em 1949 a partir da Zona de Ocupação Soviética.
4
Idem. Ibidem p. 11-12. A concepção do homem novo opõe-se ao homem que viveu sob o nazismo. O
socialismo pretende construir um homem sobre bases igualitárias e humanitárias.
5
Idem. Ibidem. p. 12.
6
Idem. Ibidem. p. 11.
7
WOLF, Christa. Em busca de Christa T.. 1987.
8
ENGLER, Erhard. “Como era...” – A literatura da Ex-RDA entre engajamento socialista e resistência. In:
Bolle, Willi. (Org.). Antes e depois do muro: VI semana de literatura alemã contemporânea. 1994. p. 11.
A obrigatoriedade de seguir o padrão realista é acompanhada da proibição de obras
modernas, ou seja, da Vanguarda, orientadas pelo que Georg Lukács denominou
“formalismo”, visando a impedir o contato com a ideologia burguesa, considerada
reacionária e decadente. A problemática da oposição entre realismo e formalismo apresenta
um cunho valorativo, político e ideológico que é central para o desenvolvimento deste
estudo e deverá, portanto, ser retomada no momento apropriado. Com a morte de Stalin,
em 1953, verifica-se um afrouxamento nas exigências dos setores da política cultural para
que a literatura siga o realismo e a apologia da atitude progressista. Com isso, os autores
podem abordar problemas de outra ordem e adotar padrões estéticos outros, escapando
assim à manipulação por parte dos órgãos culturais vinculados ao regime.
Essa abertura, ou “Tauwetter” (tempo de degelo), como ficou conhecida, durou até
1959, quando da realização da Primeira Conferência de Bitterfeld, em que se institui,
conforme Ingeborg Hartl
9
, “uma espécie de programa de literatura oficial” que condiciona
a literatura ao regime político com base no princípio de utilidade, segundo o qual “a arte
deve [...] servir ao bem-estar e à educação do povo”. Esse programa foi elaborado no
Congresso do Partido pelo então primeiro secretário, Walter Ulbricht, com o fito de
aproximar a arte e a vida, o autor e o povo. Em uma de suas declarações, afirma o anseio
de que a classe trabalhadora da RDA, já com o domínio do Estado e da economia, domine
também os setores mais altos da cultura
10
. A autora ressalta que apenas nos anos 70 se
pode verificar uma abertura nas normas fixadas para a criação literária e a realização de
anseios individuais na crítica literária e na política, e uma liberalização da política cultural
estabelecida pelo VIII Congresso do Partido. Enfim, para Hartl, o que caracteriza o
referido momento no ambiente literário da RDA é a luta dos escritores pela liberdade de
expressão de que lhes privava o regime, e a oposição entre um regime político coercitivo e
um pensamento mais liberal do que socialista
11
.
Essa opção pelo subjetivismo frente ao realismo e de uma postura liberal frente à
socialista é indício de que os escritores apóiam-se numa espécie de humanismo como
concepção motora. Neste sentido Wolfgang Emmerich
12
problematiza a atuação da política
cultural na RDA e o modo como as questões que a ela se relacionam são representadas
pelo Relatório Oficial da RDA correspondente ao período de 1949 a 1956. Tal
9
HARTL, Ingeborg. Goethe e a RDA nos anos 70 na Obra Die neuen Leiden des jungen W. de Ulrich
Plenzdorf. In: KESTLER, Izabela. (Org.). Forum deutsch. Revista brasileira de estudos germânicos. 2000.
Vol. 4. p.46.
10
Idem. Ibidem. p. 46.
11
Idem. Ibidem. p. 47.
12
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 73.
representação enfatiza um processo complicado de crescimento antifascista e democrático
na revolução socialista
13
. O autor chama a atenção para o fato de que na relação do setor
dirigente da RDA com a história e a política do país muito do que realmente acontece é
silenciado, de modo que, devido a interesses peculiares, a política cultural é manipulada
através deste mesmo processo de estilização, ocultação e direcionamento
14
. Estabelece-se
por deliberação do partido hegemônico, o Partido socialista unitário alemão (SED –
Sozialistische Einheitspartei Deutschlands), a vinculação da cultura à planificação estatal,
com o que as atividades culturais passam a ser controladas. À cultura e à literatura são
prescritas, na I Conferência do SED, tarefas em moldes de uma sociedade socialista, o que
Emmerich descreve em termos de tendência:
A literatura e outras atividades culturais devem promover a
produtividade humana e ampliar a consciência não de forma
generalizante, mas muito concretamente estimular a disposição
para o trabalho material, a fim de conseguir a vitória do Socialismo
enquanto sistema
15
.
Mesmo engajados na construção do Socialismo, muitos dos escritores não podem
aceitar imposições que limitem a criação artística e esvaziem o seu conteúdo humano.
Entram em jogo nessa situação as próprias concepções dos escritores, que muitas vezes
envolvem uma definição do Socialismo em função do homem. Bertolt Brecht, ao definir o
Socialismo como a grande produção, refere-se à apropriação autodefinida e produtiva da
própria natureza humana (der eigenen menschlichen Natur) e da superação gradual do que
é estranho a ela
16
. Heiner Müller, por sua vez, crê que aquilo que o homem constrói, ou o
seu trabalho, produz também a produtividade daqueles que o realizam
17
.
1.1 A literatura dos anos 60: a subjetividade contra a racionalização e a
instrumentalização
13
Idem. Ibidem. p. 73.
14
Idem. Ibidem. p. 73-74.
15
Idem. Ibidem. p. 74. Tradução realizada pelo autor do presente trabalho de dissertação.
16
Idem. Ibidem. p. 73.
17
Idem. Ibidem. p. 73.
Seguindo os pressupostos historiográficos de Wolfgang Emmerich
18
, pode-se
destacar como característica da literatura produzida na década de 60 na RDA a tendência a
enfatizar a subjetividade e o desenvolvimento com meios estéticos variados, com o que a
atenção recai sobre a ordem social do país, principalmente em virtude da tensão existente
entre o indivíduo que escreve, com seus anseios, e as normas sociais. O historiador aponta,
como principais transformações de ordem político-social que repercutiram em mudanças
nas configurações exteriores e estruturais da literatura a coletivização da agricultura, o
fechamento das fronteiras e a introdução do Novo Sistema Econômico de Planejamento e
Administração.
A construção do Muro de Berlim em 1961, cuja finalidade, explica o historiador,
era deter o êxodo em massa para fora da RDA, de conseqüências ruinosas para a economia
do Estado, e manter afastada a influência capitalista do lado ocidental, provocou um clima
de perplexidade no povo que afetou a literatura e a cultura mais do que se pode pensar. A
privação imposta pelo Muro leva a atenção dos cidadãos a dirigir-se fortemente para as
situações e as relações concretas próprias de sua vida. Junto à necessidade de examinar e
debater os problemas cotidianos, sentiu-se o dever de reagir. Precisando adotar uma atitude
de ceticismo em relação à propaganda oficial, a literatura carrega-se de um fundo crítico e
direciona seu olhar para a situação do próprio país
19
. Porém, grande parte dos textos não
podia ser publicada na Alemanha Oriental.
No plano político-cultural, pode-se destacar uma recusa por parte da cúpula
dirigente em construir uma cultura unificada entre o leste e o oeste alemães. Emmerich
20
,
ao citar o discurso do então ministro Alexander Abusch, aponta a opinião aí veiculada de
que somente a RDA constitui o Estado humanista alemão e a República alemã da paz e do
socialismo. Ao proclamar uma cultura socialista alemã, o ministro veda a identidade
cultural com o lado ocidental. Destarte, a medida aí presente consiste na justificação
política e cultural do separatismo inerente à construção do Muro, separatismo empregado
pelos detentores do poder, contrário à vontade coletiva do povo. Tais resoluções dizem
respeito ao problema da questão nacional alemã. Em 1963, o VI Congresso do Partido
formula um programa empenhado em restabelecer a unidade nacional da Alemanha. Em
1968, a Constituição da RDA atesta a existência de uma nação alemã composta por dois
Estados. Em 1970, o Partido exige que se abandone o conceito de nação elaborado por
Stálin, que envolve uma comunidade histórica de homens assentada sobre as bases da
18
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 122.
19
Idem. Ibidem. p. 123.
20
Idem. Ibidem. p. 124-125.
comunidade de língua, território, vida econômica e cultura, e se o substitua por uma
definição que remeta a Marx, fundamentada no modo de produção e no caráter de classe.
Deste modo, o critério para a distinção entre as duas nações alemãs é a oposição socialista
– capitalista. Tal posição, conforme enuncia Emmerich, despreza o valor material de
fatores como a língua, a história, a tradição e as ligações familiares comuns.
A política de fechamento estatal, cultural e nacional em relação ao oeste
capitalista, principalmente à Alemanha e a Berlim ocidentais, teve resultados dilemáticos
para a cultura e a literatura. Um dos modos de contato com o ocidente foi uma relativa
penetração dos clássicos do Modernismo, Joyce, Proust e principalmente Kafka na RDA,
após a publicação do ensaio Alienação, decadência e realismo, de Ernst Fischer, na
Revista Sinn und Form. Essa abertura com relação aos modernos resultou na demissão do
redator-chefe da revista, o escritor Peter Huchel, o que significa, de acordo com
Emmerich
21
, uma proibição à publicação de textos procedentes do lado ocidental.
Confirmando uma das hipóteses norteadoras deste trabalho, a de que as obras selecionadas
para o corpus da pesquisa, em sua oposição ao Realismo socialista, guardam alguma
relação com o referido Modernismo, deve-se registrar que, na perspectiva do historiador
alemão, a simpatia pelos modernistas levantou contra o realismo o culto da pessoa. Além
disso, na Conferência Internacional sobre Kafka, realizada em 1963, Ernst Fischer
considera que a parábola kafkiana da alienação se mantém atual em países socialistas,
referindo-se especificamente às relações existentes na RDA.
O ano de 1963 marca um conjunto de mudanças e decisões significativas para o
contexto da RDA. Da realização do VI Congresso do Partido resulta a criação do Novo
Sistema Econômico, cuja atuação deveria promover melhorias no nível técnico e industrial
para os sistemas de planejamento e administração da economia: através da modernização e
da racionalização do sistema econômico, dever-se-ia alcançar um aumento qualitativo da
eficiência e da produtividade. No entanto, aos poucos seus impulsos atingem outros setores
sociais, inclusos as ciências e as artes. Emmerich explica que já em 1967 o Partido passa a
designar a aludida entidade por Sistema de desenvolvimento social do socialismo
(Entwickeltes gesellschaftliches System des Sozialismus ESS). Às críticas de que o
sistema se aproxima do modelo capitalista, o Partido responde que categorias tais como
produção de mercadorias, lucro, lei de valor apresentam uma qualidade diversa da
capitalista, que os novos modos de produção atendem aos interesses não do capital, mas
dos trabalhadores, e que o desenvolvimento das forças produtivas deve servir para
21
Idem. Ibidem. p. 125-126.
satisfazer mais largamente as suas necessidades, afirmando que a acumulação socialista se
caracteriza por acumular valor de uso, de modo a tornar-se isenta do caráter fetichista. O
Socialismo real resultante dessa conjuntura não se configura como uma fase do
desenvolvimento da sociedade humana, mas como uma formação sócio-econômica.
Na esteira dos acontecimentos, explica Emmerich, forma-se uma situação em que
o conceito de sistema é estendido para o domínio da cultura e da literatura. A referida
noção deriva da definição de teoria científica dos sistemas dinâmicos, elaborada por Georg
Klaus, um adepto da cibernética, e compreende um processo complexo e regrado de
relações dinâmicas entre diferentes elementos, em que a cadeia linear de causalidade é
substituída pelo jogo de alternâncias entre a necessidade e o acaso. A partir daí, pode-se
extrair como conseqüências o fato de que setores como a cultura, a arte, a literatura são
considerados como subsistemas particulares dentro do sistema social totalizante do
Socialismo, ligado diretamente à revolução técnico-científica e ao princípio da
produtividade. Segundo comenta o historiador, na 9.ª Plenária do Comitê Central do
Partido em 1965, Walter Ulbricht delineia tarefas para a política cultural socialista, em que
importa não tanto a criação cultural e artística mas sobretudo o princípio de seu interesse
material. Neste ínterim, o Socialismo assume na RDA um esforço desenfreado na direção
da cientificização e da tecnologização, não reconhecendo como perigo a possibilidade de
converter a racionalidade humana em racionalidade técnica e instrumental, nem mesmo o
risco de sacrificar a dialética marxista entre sujeito e objeto em função do pensamento
confinado em sistemas
22
. Regido por fatores da função de eficiência econômica, o
Socialismo concentra-se na qualificação individual de administradores e diretores e
negligencia a qualificação das massas trabalhadoras. O próprio historiador ressalta que tal
prática nada tem a ver com o pressuposto marxista de desenvolvimento e auto-realização
do indivíduo, como portador de um direito dispensado ao coletivo. O sistema converte a
vida social em um aparelho cuja finalidade é a adaptação do homem ao seu funcionamento.
Estabelece-se no período em voga a instrumentalização como princípio diretor da
cultura, devendo a literatura representar a atividade do diretor promovendo perfeitamente o
processo de aumento da produtividade. A arte deve submeter-se a categorizações e meios
científicos, metodológicos, mecânicos, instrumentais, funcionais e organizacionais. Em
suma, tem-se o processo de racionalização, com remanescentes de positivismo, como força
motriz da arte, e esta como um instrumento nas mãos de um aparelho econômico. A razão
se aplica não mais para o esclarecimento do homem, mas para produzir instrumentos
22
Idem. Ibidem. p. 131-132.
através dos quais, paralelos ao desempenho, a técnica gera correlatos em artifícios de
dominação.
Essa situação, apontada por Emmerich
23
como uma perigosa fetichização do
racionalismo e da técnica, derivada do Novo Sistema Econômico, foi recebida com
ceticismo por parte de alguns escritores que, a exemplo de Günter Kunert, denuncia a
coisificação do homem sob o Socialismo, considerando ingênuo equiparar técnica com
progresso social e humanitário. A racionalização, como uma característica da modernidade
que exerce forte atividade para a consecução de sua face imperialista, manifesta-se como
poder dominador no contexto em exame. Destarte, a década de 60 na RDA é marcada por
uma situação que pode ser definitória da modernidade: a dialética entre racionalização e
alienação, pois a modernidade, principalmente no que concerne aos traços impressos pelo
capitalismo imperialista do início do século XX, pode ser entendida como um momento
sócio-histórico caracterizado pela emergência do indivíduo e sua dominação por um
conjunto de sistemas, instituições e organizações. E como tal, pode ser posta em termos de
desencantamento do mundo, ou seja, um processo que ocorre numa sociedade marcada
pela indústria e pela ciência, no qual a racionalização é convertida em técnica e posta a
serviço da dominação, de modo que, ao invés da libertação do homem, tem-se sua
anulação e submissão para que prevaleça uma ordem social regida pelo consumo e pelo
progresso tecnológico, com a ressalva de que, no Socialismo, o termo consumo é
substituído pela produtividade. Este processo leva consigo não o esclarecimento e a
emancipação, mas a alienação e o sofrimento; a crescente incorporação de conhecimentos
científicos pela sociedade implica a crescente subordinação de indivíduos e coletividades a
organizações, a burocracias e a sistemas. Trata-se de um processo de racionalização que se
realiza no âmbito das ações e relações sociais, dos comportamentos e identidades, das
práticas e idéias.
O termo desencantamento do mundo remete a um contexto hostil ao homem, em
que este, após superar e desvencilhar-se do mito através da racionalidade, passa a ser
regido por organizações e instituições decorrentes do desenvolvimento dessa mesma
racionalidade. Neste sentido, constroem-se tipos de relação do indivíduo com os
mecanismos sociais que possibilitam a atuação de entidades sobre ele. O indivíduo
dissolve-se em uma coletividade cuja característica é ser amorfa e sofrer um nivelamento:
sua vida e os valores que o identificam são esvaziados. Ele perde sua autonomia para uma
instância outra, sendo privado da capacidade de reagir ou tendo anulados os efeitos de sua
23
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 131-133.
reação. Conforme os pressupostos de Marx, é nessa concessão ao outro que reside a
alienação: o homem pensa controlar sua ação a partir de sua consciência; contudo, sua
consciência é dominada pela super-estrutura social. O coletivo aqui corresponde não à vida
em conjunto, mas à massificação.
Pensando em termos do sistema implantado na RDA nos ano 60, pode-se
constatar baque provocado pelo enclausuramento e pelas privações advindos da construção
do Muro, de um lado, e, de outro, o perigo de identificação com a sua situação, acreditando
no dever de acatar as imposições do Estado como se essas fossem sadias, legítimas e
necessárias ao Socialismo, tomado cegamente como panacéia do povo. Ao lado da
literatura de cunho realista, produzida conforme o modelo instituído na esteira do sistema
social socialista e identificada com os interesses do Estado, a década de 60 assiste ao
surgimento de uma prosa marcada pela subjetividade. Se a opinião da ciência literária da
RDA afirma que a literatura do referido período atinge uma qualidade verdadeiramente
socialista, podem-se verificar opiniões como a de Fritz Raddatz segundo a qual a literatura
da RDA é plena de conflitos e contradições. A prosa tem como tema dominante a situação
do país no presente.
Entretanto é muito significativa a adoção do passado como matéria, tendo como
principal foco o tempo do nazismo
24
, resultando em um tipo de arte marcada pela
memória, pela autobiografia, pelo luto, pela reflexão, elementos visíveis nas obras de
Johannes Bobrowski e Jurek Becker. Rememora-se o sofrimento em busca de compreender
a origem do estado de coisas, o significado profundo dos fatos. Ao lado desta, manifesta-se
já a tendência a abordar o passado através da retomada do Romantismo, que ganha corpo
na década de 70: aí situa-se o romance Die neuen Leiden des jungen W., de Ulrich
Plenzdorf, escrito em 1968 e publicado apenas em 1972 por ocasião da pretensa abertura
na política cultural. Essa obra realiza em sua composição temática uma síntese da matéria
do passado com os dados da realidade social presente. A subjetividade em livros como este
responde criticamente à pedagogização empreendida no sentido de adaptar os homens ao
funcionamento e à lógica do trabalho material do sistema de produção, como norma válida
para a totalidade social do regime socialista.
A literatura escrita na década de 60 rompe com a chamada literatura de produção
dos anos 50. Em lugar dos clichês otimistas e do herói estilizado, aborda-se a realidade
rude do trabalho e do cotidiano sob o Socialismo. Os personagens polemizam contra o
24
Idem. Ibidem. p. 134-138.
modelo anterior, em que as relações humanas eram tratadas como mero material da esfera
de produção. Como o Novo Sistema Econômico exige que a literatura se concentre sobre o
nível do planejamento e da administração, manifesta-se em vários textos de prosa a recusa
em reconhecer a racionalidade técnica e econômica como lei de movimento da sociedade,
passando a questionar tal concepção denunciando seu caráter de objetificar o sujeito
25
.
Emmerich afirma que para a literatura em questão a subjetividade parece
funcionar como a revelação forçada de contradições no indivíduo, decorrentes do momento
histórico. Ao refletir sobre sua situação e condição social, o indivíduo, muitas vezes
encarnado na figura do narrador, reflete sobre sua própria vida e sobre a história que a
perpassa e a constitui. O recurso à estratificação do tempo retomado então indica que esse
tipo de criação literária pauta-se na concepção de que a identidade do homem é
historicamente construída. A própria narração é marcada pela sedimentação das
experiências do passado e do presente no sujeito. Tal manifestação literária assume a
função tanto de questionar e criticar as normas estabelecidas quanto de dar expressão aos
sentimentos provocados nas pessoas pelo estranhamento dos fatos político-sociais
ocorridos: o fechamento com a construção do Muro, a dominação da tecnologia e das
instituições. De acordo com o historiador, através de Erwin Strittmatter, Erik Neutsch,
Hermann Kant e Christa Wolf, a literatura formula a reivindicação de que no Socialismo
não apenas a sociedade pode exigir algo do particular, mas também o particular da
sociedade. O Socialismo passa a ser encarado não mais como o reino em que tudo dá certo,
mas passível de fracasso, dissonância, incerteza e infelicidade
26
. É em resposta ao contexto
explanado e na corrente das manifestações estéticas por ele influenciadas que se pode
interpretar o livro Die neuen Leiden des jungen W..
1.2 As diretrizes da produção literária dos anos 70 na RDA: a escrita contra a
repressão e o esquecimento
Ao escrever a história da literatura produzida na RDA na década de 70, Wolfgang
Emmerich
27
a caracteriza como fragmentária. O impulso criativo está ligado
historicamente aos acontecimentos e circunstâncias sociais. Deste modo, a literatura
encontra-se, nas palavras do autor, na tarefa de lembrar o esquecimento social e a
25
Idem. Ibidem. 1987. p. 139-142.
26
Idem. Ibidem. 1987. p. 142-143.
27
Idem. Ibidem. p. 176-177.
repressão, em uma relação de tensão crescente com as instâncias político-culturais e suas
pretensões ideológicas. O momento decisivo para a literatura da RDA, que chega mesmo a
constituir uma “significativa cesura”, como quer Emmerich
28
, é o mês de junho de 1971,
quando se realiza o VIII Congresso do Partido Socialista Unitário Alemão, no qual se
concede uma licença geral para um tipo de arte e de literatura produzida por alguns autores
de modo individual desde a metade da década de 60, cuja marca é a criticidade em relação
à sociedade da RDA sob o sistema socialista. Esse evento ocorre após a substituição de
Walter Ulbricht como primeiro secretário do Comitê Central do Partido, fato do qual
decorre a possibilidade de mudanças. O país tende, então, a apresentar-se política e
ideologicamente mais autoconsciente, o que equivale a mais liberal; ao mesmo tempo em
que se quer definir não mais como ‘comunidade socialista de homens’, mas sim como
‘sociedade de classes não antagonistas’
29
.
No que se refere ao setor econômico, o aludido evento inicia um novo curso, no
sentido da recentralização, da racionalização e da produção de bens de consumo. Essa
“liberalidade” é uma tendência à adequação e ao conformismo por aparente livre
colaboração que toma a forma de concessão de importância ao indivíduo. A literatura
enxerga e protesta contra os conflitos mascarados nessa situação. Em dezembro do mesmo
ano, em um discurso proferido na Quarta Plenária do Comitê Central do Partido (4. ZK-
Plenum), o primeiro secretário Honecker enfoca a questão da literatura sob uma posição
sólida do Socialismo, o que pode ser interpretado, segundo Emmerich, como a
possibilidade de os socialistas convictos valerem-se dos meios artísticos para escrever,
sendo eles próprios, e não instâncias outras como o poder do partido, os responsáveis pela
determinação de suas obras.
Pode-se verificar que já na metade da década de 60 a RDA passa por um período de
mudança. A conclusão da reconstrução econômica e sua afirmação como país
industrializado tiveram uma contrapartida na superação de antigas orientações e atitudes no
âmbito espiritual e cultural
30
. Ficaram para trás a fase da renovação antifascista e
democrática, e o período de identificação dos intelectuais (ligados à produção da cultura)
com o Estado e a produção, cujo ponto máximo remonta aos anos do Bitterfelder Weg e da
Ankunftsliteratur, situados entre 1959 e 1963
31
. Em 1963, a instalação do Novo Sistema
Econômico que prima pelo desenvolvimento da força produtiva, segundo os moldes de
28
Idem. Ibidem. p. 177.
29
Idem. Ibidem. p. 178.
30
Idem. Ibidem. p. 193.
31
Idem. Ibidem. p. 193.
eficiência técnica e econômica do capitalismo quebra com essa identificação e põe em
dúvida a própria identidade dos intelectuais e escritores
32
.
A partir de questionamentos feitos por Wolfgang Emmerich, podem-se apontar
falhas do Socialismo na RDA no sentido de relegar a emancipação dos homens, e de
enquanto Estado orientar-se pelo crescimento econômico e pela racionalidade. Destaca-se
ainda o fato de que a Aufklärung, como origem do racionalismo moderno, e o marxismo,
como concepção voltada para o futuro, passam a ser questionados. Resta aos escritores um
doloroso reconhecimento: nas palavras de Christa Wolf, os danos de se estar de acordo
com a razão geral
33
. Em seu discurso ao receber o prêmio Büchner em 1980, a autora de
Kein Ort. Nirgends manifesta sua desilusão a respeito do uso que seu tempo faz da razão:
Desiludidos até os ossos, nós estamos atônitos diante dos sonhos
objetificados daquele pensamento instrumental que sempre ainda
se denomina razão, mas cujo princípio iluminista de emancipação,
de responsabilidade, há muito tornou-se escorregadio e entrou na
era industrial como mera loucura utilitarista
34
Christa Wolf busca orientar-se, então, por um tipo de literatura mais voltada para
o subjetivo, que não se fundamenta no modelo da imagem do homem socialista, efetuando
um abandono das categorias de típico e de exemplar. Em sua essência, o herói literário
dessa corrente é mais vivo, mais real e mais pensante. Abordam-se sentimentos, medos e
sofrimentos próprios do indivíduo. Tal atitude artística é impulsionada pelos conflitos
existentes na relação entre indivíduo e sociedade, os quais, em última instância, referem-se
aos danos da vida de um homem pressionado pela realidade externa
35
. Deve-se destacar
uma quebra com as normas estabelecidas pelo status quo e com o ponto de vista das
convenções patriarcais, na medida em que se tematiza a questão da mulher e do jovem sob
o regime socialista. A tematização do jovem traz em si uma valorização da vida e da
autenticidade, bem como a ruptura com paradigmas normativos e institucionais que
limitam o estatuto humano do homem. No jogo de suas necessidades, os jovens têm a
função de tornar incomum a relação entre realidade e reivindicação, fato pelo qual a RDA
não suporta seu olhar.
32
Idem. Ibidem. p. 193.
33
Idem. Ibidem. p. 194.
34
WOLF, Christa: „Von Büchner sprechen – Darmstädter Rede“. In: ____. Die Dimension des Autors. Vol.
2. 1990, p. 612.
35
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 194-195.
Surgem na década de 70 vários livros que demonstram o empenho dos autores em
descrever a situação de objetificação, ou, nas palavras de Christa Wolf, o sonho
objetificado do pensamento instrumental que reveste a realidade da RDA. Ocupam-se da
tendência à subalternização e instrumentalização dos indivíduos como situação cotidiana,
como vida normal particularmente de membros da classe dominante; e são concordes com
relação à visão da realidade do país e seus rituais de auto-representação, de
embelezamento, de adaptação, de conformismo e de sujeição
36
. Neste período, a literatura
desenvolve-se em termos de forma, conteúdo, técnica e estilo impulsionada pela
necessidade que os autores sentem de superar alguns problemas latentes tanto na arte
quanto na sociedade e na consciência do povo. Assim, na esteira de Bertolt Brecht, Stefan
Hermlin, Erich Loest, os escritores retomam a questão do fascismo como tema para suas
obras, operando uma volta ao passado na infância do indivíduo e na história do país, com o
fito de revisar as raízes históricas que se manifestam nos problemas da atualidade do país.
O movimento de desnazificação após 1945 leva a abordar o fascismo pelo viés da
representação de heróis da resistência que acabam por adotar o socialismo. A literatura
produzida no final dos anos 50 e durante os 60 tematiza a monstruosidade do fenômeno
nazista. Na década de 70, os escritores precisam examinar sem reservas a culpa dos que
compactuaram com (Mitträger) e dos que tiraram proveito (Mitläufer) do nazismo
37
.
A fim de melhor compreendê-la, é importante atentar para o modo como os
escritores concebem e lidam com a presente questão. Pensando o problema em seus
aspectos políticos e conceituais, Stefan Hermlin chama a atenção para o perigo de um povo
considerar-se vencedor da História, bajulação que leva os cidadãos a uma adesão cega,
tornando-os fáceis de governar, sendo que, em contrapartida, é difícil de governar pessoas
que sentem algum tipo de culpa. Para o escritor, o passado continua a ser vivido no
presente, porque é também um presente, de modo que explicar o passado do ponto de vista
de sua superação é algo significativo
38
e, pode-se dizer, problemático. Neste sentido, a
manifestação de Hermlin, assim como a de Brecht formula a relação com a herança
histórica que se opõe à da opinião oficial: não se pode simplesmente considerar a RDA
como vencedora da história e ignorar por isso o fato de tratar-se de um território habitado
por pessoas em que permanecem os resquícios e a culpa da dominação nazista
39
. Em 1975,
Heiner Müller afirma que o tema do fascismo faz parte da RDA, onde vivem pessoas para
36
Idem. Ibidem. p. 200-201.
37
Idem. Ibidem. p. 204.
38
Idem. Ibidem. p. 204-205.
39
Idem. Ibidem. p. 205.
as quais o fascismo é normal quando não a norma
40
. Com isso, a literatura retoma o
passado como matéria, na tentativa de revisar a ação do fascismo nos sujeitos, como
disposição para um modelo de comportamento que não teria terminado com a queda de
1945, mas que continua a influenciar a formação de uma nova ordem social
41
.
Um tema importante das manifestações literárias do referido período refere-se à
superação do passado (Vergangenheitsbewältigung), que trata da dominação do fascismo e
do Socialismo sobre a pessoa real. Rejeitando as categorias de típico ou exemplar, os
escritores refletem sobre uma série de características que o indivíduo internaliza sem
resistência em meio a tal regime: medo, ódio, austeridade, fingimento, negação dos
sentimentos autênticos, vícios, fidelidade e dever imparciais, sem considerar o lado pessoal
(humano); além disso, questionam sobre os fatores que o tornaram possível e aceito. Uma
fábula linear ou uma história fechada não são suficientes para representar os diferentes
elementos do desenvolvimento humano que compõem a sua essência e o seu
comportamento: se a situação vivida é anômala e complexa, não se pode tratá-la em termos
de normalidade. Neste sentido, as obras expressam a reação contra a repressão, o
esquecimento e o silenciamento, contra o modelo de comportamento impostos sobre a
práxis da vida: o medo, a acomodação
42
.
Tais considerações referem-se pontualmente ao Socialismo da RDA, em que o
homem é reprimido e ludibriado através de técnicas de esquecimento da herança negativa
da formação social da nação. No sentido de desmistificar tal estado de coisas, Heiner
Muller por exemplo estuda seriamente o processo histórico e o incorpora na elaboração de
suas obras, orientando-se pela busca de uma consciência da identidade entre história e
atualidade. O terror que perturba muitos dos escritores da RDA provém da própria história
da Alemanha, refletindo-se em uma escrita que deixa implícito o ceticismo em relação à
positividade da história alemã, altamente marcada por um processo de deformação da
estrutura impulsional/instintiva do homem, que leva à transformação da coação externa,
isto é, exercida por parte do outro, do desconhecido, em autocompulsão
43
.
Os casos aludidos constituem exemplos das principais diretrizes que caracterizam
a escrita dos anos 70, conforme discutido por Wolfgang Emmerich ao longo de todo um
capítulo de seu livro de historiografia literária: a escrita e sua função de lembrar a história
sedimentada no homem, a escrita contra a repressão e o esquecimento. Os autores voltam-
40
Idem. Ibidem. p. 205.
41
Idem. Ibidem. p. 205.
42
Idem. Ibidem. p. 207.
43
Idem. Ibidem. p. 209-210.
se para a análise da própria existência do escritor. O papel do escritor é engajar-se crítica e
fundamentalmente na edificação de um país melhor; na RDA, tendo como horizonte o
compromisso de colaborar na construção do Socialismo.
1.3 A retomada do período romântico nos romances
Os romances Die neuen Leiden des jungen W., de Ulrich Plenzdorf, e Kein Ort.
Nirgends, de Christa Wolf, apresentam particularidades cuja explicitação exige
considerar-se o momento histórico e a situação social de sua gênese. Publicados na RDA
da década de 70, o primeiro em 1972 (mas escrito em 1969), e o segundo em 1978, ambos
respondem não só ao conjunto de problemas e anseios próprios desse período, mas também
a questões postas nos anos 60. De modo geral, a arte na RDA relaciona-se com o regime
socialista e com a vida sob seu domínio, tanto em seus aspectos sociais quanto humanos. A
arte deve pautar-se nas normas ditadas por um programa elaborado pelo Partido, a partir do
qual as obras devem orientar-se esteticamente pelo realismo e representar a relação
harmônica entre o trabalhador e o trabalho, realizando a apologia do sistema. No âmbito
específico de cada uma das fases, deve-se destacar que a década de 60 é marcada pela
instalação de um Novo Sistema Econômico e pela racionalidade técnica; o impacto da
construção do Muro de Berlim causa atonia e perplexidade às pessoas. Já a década de 70
segue a corrente de uma reação dos escritores contra a coação exercida pelo Estado e pela
tentativa dos órgãos oficiais de forjar uma imagem histórica do país que negaria a herança
da barbárie, de modo que a atualidade sob a égide do Socialismo fosse uma espécie de
reino da inexistência de falhas. O expatriamento do cantor Wolf Biermann da RDA em
1976 constitui um marco do acirramento da repressão, fortalecendo-se a censura e
decretando-se a prisão de escritores.
A realidade sob o Socialismo não é feita de harmonia entre o homem, a sociedade
e o sistema; em vez do atendimento das necessidades do indivíduo e do fornecimento das
condições para sua satisfação, felicidade e paz, decorrentes da construção de um mundo
melhor, têm-se a dominação, a tensão em meio a uma realidade social que o obriga a
ajustar-se. Kein Ort. Nirgends situa-se em um ponto cujo horizonte é a desilusão. Como o
próprio título indica, é a impossibilidade de um lugar onde o homem encontre a harmonia
com o mundo. É a inexistência de um local onde se realize sua felicidade. A força que
impulsiona essa obra é o ceticismo, apontado por Wolfgang Emmerich, em relação à
utopia, formulada por Ernst Bloch, principalmente contra o postulado segundo o qual a
pátria resulta, por assim dizer, da ação do homem na democracia
44
. Die neuen Leiden des
jungen W. apresenta um posicionamento contra a institucionalização e tecnificação que
subjazem ao sistema educacional instalado na sociedade socialista, o qual deveria, segundo
esboça Emmerich, estar fora de contestação
45
.
A exigência de um herói positivo e vencedor, típico e modelar, é rejeitada nas
obras em questão. Uma atitude progressista seria o endosso da dominação, e contradiria a
luta em prol da causa humana e a identificação para com o sofrimento dos indivíduos.
Neste sentido, os autores rejeitam o realismo, pautado no racional e no aparente, para
adotar uma postura de experimentalismo, mais aproximada das vanguardas decadentes e
formalistas do início do século. A desilusão com o Socialismo real desencadeia uma crise
existencial no homem. A angústia e o caos podem ser maneiras de expressar tal
descontentamento.
As referidas obras veiculam uma recusa em enquadrar-se nos moldes do Realismo
socialista. A esse respeito, junto do apelo ao formalismo, deve-se destacar a função de uma
característica fundamental, que constitui o cerne do presente estudo, verificada enquanto
uma tendência que se estende a obras de outros escritores: um reportar-se à herança
literária e histórica romântica. Se Christa Wolf e Ulrich Plenzdorf reportam-se a escritores
e obras da tradição romântica oposta ao classicismo, é devido ao fato de que a teoria
lukácsiana que serve de base ao Rrealismo socialista volta-se para a estética clássica e para
a tradição classicista.
Sonia Hilzinger
46
, em “Avantgarde ohne Hinterland”, refere-se a uma
identificação dos escritores com os poetas da virada do século XVIII para o XIX, o que
aponta para um sentimento de impotência e crise. Merecem destaque duas idéias apontadas
pela estudiosa:
A função dessa referência à tradição, que se apresenta como de
interesse até a relação identificatória com determinados poetas não
classicistas da época de Goethe, com poetas alemães cujo conflito
com a sociedade restaurativa de seu tempo e cujo desvio da poética
44
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p 213.
45
Idem. Ibidem. p. 141.
46
HILZINGER, Sonja. Avantgarde ohne Hinterland. In: ARNOLD, Heinz Ludwig; MEYER-GOSAU,
Frauke (Orgs.). Text + Kritik: Literatur in de DDR – Rückblicke. 1991. p. 93.
clássica normativa levou a rupturas existenciais, é modelar. [Os
autores da RDA] formulam e discutem os próprios conflitos,
ensaiam críticas à sociedade e ao realismo, confrontam-se com as
próprias esperanças e frustrações.
47
O redescobrimento dos românticos foi uma tentativa de um grupo
de escritores de analisar conforme o modelo histórico um doloroso
processo de desilusão: o exame de sua crítica e de seu projeto, que
apontam para a humanização e a democratização do modelo
socialista, foi empregada tanto com relação ao seu povo quanto ao
seu partido. Assim, resta-lhes apenas a ‘vanguarda sem
fundamento’.
48
Os trechos transcritos apontam para algumas características dos românticos que
foram compartilhadas pela produção literária da geração de 70: o conflito entre o artista e a
sociedade; o desvio e a negação da norma estética vigente; o voltar-se para o passado, que
denota em ambos os casos a necessidade de uma consciência histórica; a dúvida com
relação ao seu lugar e seu papel na sociedade; a valorização do sentimental em detrimento
do convencional, privilegiando o humano sobre o institucional. Hilzinger
49
destaca entre as
duas correntes o sentimento comum de não serem necessários à sociedade e de estarem
sozinhos na história. A marginalização leva os poetas românticos a se aproximarem da
natureza. Em uma formação social dominada pelos padrões da burguesia em ascensão e
regida, portanto, pelo utilitarismo, a arte é relegada à inutilidade, como mostra Otto Maria
Carpeaux
50
. O Romantismo volta-se para o passado tanto como sondagem de suas raízes
culturais, históricas e lingüísticas, buscando bases que sustentem a formação do presente,
num impulso de nacionalismo e amor à pátria – é o caso de Die Hermannsschlacht, de
Heinrich von Kleist – quanto como uma forma de repúdio à situação presente. É um
movimento em que se valoriza o homem comum; o exemplo da simpatia pelo camponês e
pela cultura popular mostra um pendor para o homem à revelia do sistema de classes.
Pautado no humanismo de Rousseau, o poeta prima pela bondade natural e intrínseca do
homem, assim como sofre com a limitação imposta pelas normas sociais. O subjetivismo
permite que se expresse o que há de específico no sujeito, em seu estatuto de pessoa, que
pensa, sente e sofre, afetada por fatores externos e impulsos internos, e principalmente,
portadora de contradições. É o sujeito individual em seus embates com o mundo, um ente
que não pode ser apreendido segundo o padrão universal da concepção clássica e
47
Idem. Ibidem. p. 93. Tradução realizada pelo autor do presente trabalho de dissertação.
48
Idem. Ibidem. p. 94. Tradução realizada pelo autor do presente trabalho de dissertação.
49
“Avantgarde ohne Hinterland”. Idem. Ibidem. p. 94.
50
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. 1961. p. 1391.
racionalista, cujas características devem ser válidas para definir o homem a partir da
generalidade.
Conforme afirma Arnold Hauser, a propósito desse estilo de época, “desde o
gótico, o desenvolvimento da sensibilidade não recebera um impulso tão forte, e o direito
do artista de obedecer ao chamado de seus sentimentos e disposição pessoal provavelmente
jamais fora enfatizado de maneira tão absoluta”
51
. Para o historiador, esse predomínio da
sensibilidade sobre o racionalismo é que consiste no valor histórico do movimento
romântico, na medida em que representa um ponto de mutação no espírito europeu
52
. O
Romantismo é, na visão de Hauser, um movimento ingênuo e desprovido do senso de
realidade necessário para compreender os acontecimentos da época, “distante de uma
avaliação dos reais motivos subjacentes às questões históricas”
53
. Se, para o autor, o
realista é aquele homem que conhece os interesses que está defendendo, e o dialético é
aquele que conhece o complexo de motivos que entram em choque em toda situação
histórica, ancorando-se ambos no jogo ideológico, político, convencional, concreto, as
palavras que emprega para definir o romântico são devoção, entusiasmo, ingenuidade,
ignorância da realidade
54
. O autor argumenta que a afirmação de Goethe segundo a qual o
Romantismo materializa o princípio da doença pode ser interpretada como indicador de um
caráter de unilateralidade, de modo que o fato de enfatizar apenas um fator na dialética da
história, de ver apenas uma das faces de uma situação prenhe de conflitos e afirmá-la
através do recurso ao exagero, indica uma falta de equilíbrio espiritual
55
. O interesse pelo
passado é tratado pelo autor como motivo de evasão, como irrealidade e ilusionismo
56
. Tal
opinião parece anular a importância da visão e da consciência histórica do Romantismo.
Por outro lado, essa consciência liga-se ao fato de a referida geração assumir uma atitude
crítica em relação ao seu contexto histórico e rejeitar os padrões tradicionais da cultura; o
voltar-se para o passado deve-se à busca de fontes de inspiração em ideais antigos e ao
desejo de reviver antigas culturas. O medo do presente significa um questionamento
constante de seu significado
57
.
O caráter histórico do Romantismo resulta de uma visão do mundo oposta à do
Iluminismo. Com o primeiro, a natureza do homem e da sociedade passa a ser concebida
51
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. 2003. p. 663-664.
52
Idem. Ibidem. p. 664.
53
Idem. Ibidem. p. 622.
54
Idem. Ibidem. p. 622-623.
55
Idem. Ibidem. p. 663.
56
Idem. Ibidem. p. 663.
57
Idem. Ibidem. p. 663-666.
como dinâmica e evolucionista; passam a vigir a idéia de que homem e culturas são
envolvidos por um fluxo eterno e por uma luta interminável, e a noção do caráter
transitório da vida intelectual. O advento do Romantismo rompe com a concepção estática
dominante no século XIII, na qual importantes fatores da cultura recebem uma significação
imutável e incontestável e um estatuto fundamentado em idéias eternas. O caráter a-
histórico do Iluminismo funda-se na compreensão da natureza do processo histórico,
entendido a partir do logos, como um “continuum espaço temporal coerente”. À concepção
de relações históricas de natureza lógica, o Romantismo contrapõe um historicismo
segundo o qual o homem constitui-se a partir da história
58
. É a partir da sucessão e da
relação causal entre os acontecimentos do passado que se constitui o presente.
O Romantismo é um movimento histórico e artístico manifestado na vida dos
indivíduos e no espírito da época, que envolve um conjunto de idéias, um estilo e uma
concepção de mundo. A atitude do romântico é a interiorização, seu ponto de vista é o da
interioridade. Os românticos não rejeitam os clássicos, são pelo contrário grandes leitores e
admiradores da literatura antiga. Renegam o conjunto de normas clássicas e a concepção
classicista e iluminista de um mundo que se desenvolve conforme um padrão universal e
definido, um conjunto de leis universalmente válidas e de idéias eternas e imutáveis. O
Romantismo norteia-se pela dimensão do individual, do particular e do contingente. Se o
fundamento do Classicismo é o princípio da imitação, o Romantismo prima pelo princípio
da criação: daí a ênfase dada à concepção da arte como expressão do gênio.
Jakob Guinsburg ressalta que além de uma configuração estilística, de uma
modalidade do fazer artístico do espírito humano, o Romantismo é um evento sócio-
cultural, uma escola que responde as situações e condições concretas do momento em que
surge. Deste modo, o autor define o movimento como “o fato histórico que assinala, na
história da consciência humana, a relevância da consciência histórica”. Isso se explica pelo
fato de que, se o Século das Luzes superou a visão teocêntrica e teológica de história,
instituída pelo Cristianismo, como ciclo de revelação do poder divino a partir de seus atos
de vontade, pela submissão da história sagrada à crítica da razão, o Romantismo supera
também a concepção clássica de história, que enfoca os feitos das grandes personalidades,
como reis, filósofos e déspotas esclarecidos. A noção de progresso instala-se no seio do
racionalismo ilustrado como resultado da atuação do homem, no entanto, não se considera
a atividade de classes sociais ou setores socialmente marginalizados, apenas a ação
individual dos “grandes nomes”. O Romantismo valoriza as concepções de nação, povo,
58
Idem. Ibidem. p. 667-668.
massa, opinião pública e classe como agentes dos processos, dos dinamismos, dos
movimentos, das consciências, das vontades coletivas e dos espíritos motores da história
59
.
O caráter revolucionário do Romantismo reside, seguindo a perspectiva do autor,
em ter transformado o próprio discurso histórico, que passa de descritivo e repetitivo a
interpretativo, formativo e genético. Enquanto a Ilustração parte do poder exemplar da
razão proposta para o indivíduo, cuja atuação em termos de bom senso, equilíbrio e
verdade lógica, para construir através do exercício do entendimento crítico e do juízo
esclarecido a história pela civilização, o Romantismo tomando como ponto de partida a
sociedade civil e o historicismo entende que a história performa a civilização. A tônica no
homem como força que impulsiona a história desloca-se da ação isolada do homem
abstrato para a ação de um indivíduo imbuído de complexidade humana, de motivos e
decisões subjetivas e de vontade mais social do que pessoal, que apresenta as marcas de
sua inserção num ser coletivo, cujo espírito reflete uma existência conjunta. Neste sentido,
a visão historicizante do Romantismo atenta para as expressões grupais, aglutina as
sociedades em grupos maiores e configura, a partir dos elementos formadores da cultura, a
identidade nacional. Assim, a busca pelas determinantes nacionais de sua ideologia leva a
Europa a formar as idéias de nacionalidade. A história passa a interessar-se pelo homem
contingente e pelas contingências de seu contexto, privilegiando o dado real, no sentido do
concreto-humano. A história romântica realiza, pois, o estudo do desenvolvimento dos
povos, integrando sua cultura erudita e sua tradição popular, do espírito coletivo e
nacional, das instituições, dos costumes e práticas, bem como dos modos de produção e
existência material e espiritual
60
.
As especificidades deste trabalho levam a examinar os traços mais gerais do Sturm
und Drang, manifestação do Pré-Romantismo na Alemanha. Otto Maria Carpeaux
considera o Pré-Romantismo como uma revolução dos valores literários que se consolida
no período entre 1740 e 1760, e afirma não corresponder à revolução política, mas
coincidir com uma revolução social cujos motivos e fins diferem dos daquela. O
historiador explica que
os literatos pré-românticos não exprimem nem antecipam a
mentalidade da burguesia que venceu em 1794, [...] estabelecendo
o Diretório, primeiro governo puramente burguês da Europa.
59
GUINSBURG, J.. Romantismo, historicismo e história. In: GUINSBURG, J. (Org.) O Romantismo. 1993.
p. 14-15.
60
Idem. Ibidem. p. 15-18.
Aqueles boêmios são antes os porta-vozes das vítimas da grande
crise social que precedeu a Revolução e culminou na explosão de
1789: revolta do povo em sentido mais nítido
61
.
O fator que aproxima o artista do povo é o fato de ambos serem marginalizados.
A mudança no gosto literário, concretizada na passagem de um padrão baseado no espírito
claro, seco e ocioso para um padrão pautado na paixão sentimental, instintiva e revoltada,
toma essa direção porque a racionalidade do Iluminismo serve para fundamentar o
elemento responsável pela marginalização social: o utilitarismo burguês. Neste sentido, o
período de 1760 apontado por Arnold Toynbee como o começo da Revolução industrial é
descrito por Carpeaux como o início da aliança entre capitalismo e técnica. O estudioso
explica que a ciência deixa de ser expressão da curiosidade pura do espírito para tornar-se
criada da técnica industrial. O utilitarismo exclui a beleza do âmbito das atividades úteis.
Ela se liga, por conseguinte, às coisas inúteis, à natureza não cultivada, às montanhas e
prados desertos, e às ruínas, coisas inúteis por definição. A ternura e a melancolia que
inspiram afiguram-se como protesto contra a vitalidade e a arrogância de tudo que é útil
62
.
Essas características podem ser atribuídas igualmente ao correlato alemão desse
movimento. De acordo com o historiador, a mentalidade do Sturm und Drang, no choque
com a realidade feudal, aferra-se às idéias inglesas de poesia popular e às idéias de
revolução popular encontradas em Rousseau. O primitivismo e a prosa exprimem a
identificação com o homem do povo e o repúdio aos requintes da civilização
aristocrática
63
. Arnold Hauser chama a atenção para a complicação da estrutura
sociológica do Sturm und Drang, devido ao fato de que a luta da burguesia e da
intelligentsia alemãs significava simultaneamente uma luta contra as tendências
progressistas da época. Com relação à matéria artística, Hauser afirma que o mundo,
tornado estranho e hostil, não se oferecia aos pré-românticos como material para ser
moldado num formato acabado, o que propicia a eles converterem a estrutura atomizada de
sua visão de mundo e a natureza fragmentária de seus motivos em símbolos da própria
vida
64
. Não obstante os equívocos que Hauser atribui no plano sociológico ao Pré-
Romantismo, destaca-se como virtude desse movimento o combate salientado em Werther
contra a opressão e a injustiça. Se como afirma o historiador, o gênio, conceito central da
criação estética do período, é transferido da abjeção da vida cotidiana para um mundo
61
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. 1961. p. 1389.
62
Idem. Ibidem. p. 1391-1392.
63
Idem. Ibidem. p. 1554-1555.
64
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. 2003. p. 617.
onírico de ilimitada liberdade de escolha
65
, é porque a proposição de um ideal pressupõe
estar-se ciente da existência dos problemas no nível da realidade social e empírica. A
concepção do mundo como incompreensível consiste na expressão do sentimento de estar
perdido na realidade. Por isso a renúncia ao mundo opera-se no desejo do reino do belo e
do maravilhoso.
Os românticos ficaram esquecidos, relegados e depreciados por muito tempo na
história da literatura alemã, orientada pela valorização do Classicismo contida em grande
parte das formulações teóricas de Georg Lukács, que exige um teor progressista para a arte.
No ensaio “Der Schatten eines Traums”, Christa Wolf afirma que a geração de poetas de
1800, da qual fazem parte Kleist e Günderrode, recebe uma segunda morte, ou um segundo
esquecimento, por parte da opinião pública alemã, devido à incapacidade desta de
desenvolver uma consciência histórica que levasse em conta os fundamentos da história do
país. A opinião pública foi incapaz de compreender a “decadência” dos poetas
mencionados, manifesta na fraqueza e na inatividade da vida. Decadência que os aproxima,
em certo sentido, dos chamados formalistas do início do século XX, também depreciados
pelo teórico húngaro. Historicamente, o que caracteriza os alemães na era romântica é,
segundo observa Wolf ancorada em afirmações de Marx, o fato de terem participado da
restauração dos povos modernos sem ter participado da revolução, o fato de serem um
povo politicamente imaturo e difícil de mobilizar, todavia fácil de seduzir, que em lugar da
humanização adere ao progresso técnico
66
. O lugar da arte torna-se complicado; ao artista
resta a inquietação de saber que sua criação torna-se supérflua em um ambiente de
ascensão burguesa, em que a lei do utilitarismo a relega à inutilidade. As relações
burguesas não formaram na Alemanha uma situação política ou social, mas estabeleceram
a moral pequeno-burguesa. Em sua posição de intelectuais, um grupo de artistas opõe-se à
futilidade dessa classe sem amor-próprio, cujo objetivo é enriquecer, movida por um
desejo de lucro sem escrúpulos, armada com um ideal inválido, uma sensibilidade
diferenciada e uma vontade sem controle: em conseqüência, os poetas, cujo entusiasmo
não encontra repercussão, sentem-se estrangeiros em sua própria terra – tornam-se, em
última instância, vítimas. Conforme expõe a escritora, a geração de Günderrode, inspirada
nos ideólogos e protagonistas da revolução francesa, tem a ilusão de poder agir. Não
podem, no entanto, negar as circunstâncias em que vivem
67
, isto é, escapar delas. Tal
65
Idem. Ibidem. p. 616.
66
WOLF, Christa. „Der Schatten eines Traums“. In: WOLF, Christa. Die Dimension des Autors. 1990. p.
512.
67
Idem, ibidem. p. 513-514.
ilusão e tal impotência diante da realidade identificam o estado de Christa Wolf com o de
Karoline von Günderrode: resta-lhes uma atitude de romantismo – o olhar em direção ao
céu e voltar-se para a própria interioridade.
“Avantgarde ohne Hinterland”, é com essa expressão empregada com referência às
revoltas de camponeses que a autora de Kein Ort. Nirgends define o pequeno grupo de
intelectuais de 1800. A força que os move, ou que os imobiliza, é o sentimento de estarem
“sozinhos na história”, por perceberem que são desnecessários à sociedade em que vivem.
Se por um lado a moral burguesa os descarta, por outro o poder os aniquila. Vivem entre as
práticas de pressão absoluta exercidas pelos príncipes alemães e a dominação de Napoleão;
entre o feudalismo anacrônico dos pequenos estados e a introdução forçada de reformas
nas técnicas de administração e de ação operadas pelo invasor.
A atualidade da problemática da geração romântica abordada por Christa Wolf
reside, para a autora, mais do que na caracterização geral do movimento, nos reflexos
históricos e sociais da criação estética dos poetas que dela fazem parte. Isso se deve ao fato
de que: esta era uma das primeiras gerações que sentiram em si, como uma fissura, que não
poderiam realizar em ação as possibilidades que percebiam em si totalmente vivas, que
experimentavam em conversas e empreendimentos literários
68
. Tal particular torna-se
importante para a escritora na medida em que adquire significados que se referem à
sociedade socialista da RDA: uma sociedade industrial, pautada na eficiência e na
produção em massa, fixada nos bens materiais, e que, portanto, relega os valores culturais e
os bens humanos. A experiência fundamental da geração romântica foi que ela nunca
chegou a poder concretizar politicamente a grande expectativa desencadeada pela
Revolução Francesa. A escritora ressalta a discrepância entre uma forte reivindicação
política, atual e prática, e as possibilidades exigidas pela sociedade: em um tal contexto
não é tão loucamente estranho, afirma, que pessoas se adaptem a romper, a infringir ou
mesmo a aprender a obedecer – o que para elas é feito como reprovação (censura)
69
.
A questão do fracasso nos experimentos de vida dos românticos
70
é um ponto
comum entre Kleist e o Werther de Goethe. Tanto Christa Wolf, ao tomar como
personagens Kleist e Günderrode, quanto Ulrich Plenzdorf, ao basear-se no modelo de
Werther, tematizam a questão da tristeza, do suicídio, da impossibilidade de suportar o
mundo. Para Christa Wolf, a morte do homem contém uma reação, na qual o destino dos
68
WOLF, Christa. „Projektionsraum Romantik“. In: WOLF, Christa. Die Dimension des Autors. 1990. p.
888-889.
69
Idem. Ibidem. p. 883-885.
70
Idem. Ibidem. p. 889.
personagens traz consigo uma profunda sondagem acerca das feridas do tempo (Wunde der
Zeit), que representam também as feridas do autor. A atitude intelectual que move Christa
Wolf na elaboração de Kein Ort. Nirgends aponta para a direção do Romantismo, na
medida em que a literatura é vista “como meio da auto-asserção, da auto-aprovação e
mesmo como órgão de nostalgia”
71
. Essa identificação da literatura no sentido do
Romantismo é uma reivindicação dos valores da vida em contraposição ao que pode ser
medido e calculado. Com isso, o apelo a esse movimento vai de encontro ao forte traço do
Realismo incondicional
72
, no sentido de que para ser reconhecida oficialmente como ‘real’,
uma forma deve ser institucionalizada. Trata-se de uma estrutura que fora construída, que
existe e que funciona, i. e., vigora na sociedade. A visão de mundo (Weltsicht) que
fundamenta a escrita de Christa Wolf constitui-se como visão de sociedade
(Gesellschaftssicht). A escritora parte do entendimento de que se vive numa sociedade e
numa cultura regidas pelo homem, o que em última instância tem como conseqüência o
fato de em sua época, tanto mulheres quanto homens estarem à beira do aniquilamento
73
.
Uma expressão empregada por Wolf que evoca a atitude romântica em face do
Socialismo em ambos os romances é o dilaceramento da existência. O principal impulso
que move o interesse de Christa Wolf sobre Kleist e Günderrode é a busca em examinar o
momento em que começa a terrível cisão entre o homem e a sociedade, o momento em que
a divisão do trabalho passou a intervir sobre o homem a tal ponto que a literatura passou a
ser expressa sempre mais a partir do âmbito que explica a sociedade em seu auto-
entendimento como importante, essencial e existente. Trata-se, para a autora, de um
processo de exclusão na sociedade industrial, em que nem o elemento feminino nem o
espiritual têm influência, em que as mulheres e os intelectuais são marginalizados
74
.
Acerca desse estado de coisas, Wolf encontra documentos nos textos e nas relações sociais
dos autores denominados românticos. No entanto, a escritora declara não ser o conceito
“Romantismo” o que está em jogo, mas sim um questionamento sobre como é possível
que, junto à geração dos clássicos, surja um tal conjunto de jovens autores que
visivelmente não se realizam com seu tempo, com seu talento, com a literatura, com sua
vida pessoal. Tratam-se, em sua maioria, dos mesmos poetas que entram na discussão
travada entre Georg Lukács e Anna Seghers (Expressionismusdebatte) Günderrode, Kleist,
Lenz, Grabbe, Büchner e Hölderlin. Em contraposição à apologia de Lukács ao modelo
71
Idem. Ibidem. p. 892.
72
Idem. Ibidem. p. 891.
73
Idem. Ibidem. p. 894.
74
Idem. Ibidem. p. 880.
clássico como fundamento para o conceito de Realismo, Seghers argumenta que o próprio
tempo se opõe – condicionando assim – às artes, citando o exemplo dos referidos poetas
que na história da literatura alemã conviveram com os classicistas, mas não atingiram a
completude clássica, que encerra a desistência (Verzicht) e a renúncia (Entsagung). Christa
Wolf entende o Romantismo inicial (Frühromantik) como uma tentativa de realização de
um experimento social por parte de um pequeno grupo progressivo, tentativa esta que, uma
vez que a sociedade se lhe mostrou totalitária e desaprovadora, restritiva em todos os
aspectos, se rompe e se recolhe em várias direções
75
.
Neste ponto, abre-se a indagação acerca de como a marginalização repercute no
interior do sujeito. A atitude romântica reflete essa marginalização, e Christa Wolf a
encontra exemplificada nos heróis de Kleist, que descreve como consciências agitadoras
que, situadas entre preceitos incertos, excluem-se entre si, mas que exigem obediência
incondicional, dilaceram-se a si mesmos. Percebem-se aí os elementos que levam Wolf a
eleger o romântico em detrimento do clássico. A literatura grandiosa dos gregos pode ser
lida em sentido amplo como uma literatura de repressão incessante da cultura e das
reivindicações vitais femininas. A Aufklärung alemã, limitada antes de tudo a uma camada
estreita de homens instruídos, procurou no modelo dos antigos o endosso e a consolidação
da moral racional, a qual é implantada sobre as irracionais e não desenvolvidas relações
alemãs: um empenho heróico, nas palavras de Wolf. Sob essa fixação e esse controle,
erigidos pela Aufklärung e pelo Classicismo, através do ideal da formação da humanidade,
contra o bárbaro, o descomedido e o violento da natureza humana, flui uma corrente assim
selvagem, dessa natureza e dessa constituição, que se revela com os românticos. Também o
drama Penthesilea é uma apropriação de temas antigos. Mas diferente do modo como as
obras dos clássicos trazem à luz os antigos, irrompe aqui a corrente que há muito tempo
flui subterrânea – dilaceradora, destruidora, para o espanto daqueles instruídos conforme o
conceito de Humanismo clássico
76
.
Os poetas anteriormente referidos são citados por Anna Seghers não, como se dá
a entender, porque ela queira elucidar transformações estéticas, mas porque ela acredita
descobrir paralelos históricos entre a geração de escritores por ela evocada e a sua própria.
Nos aludidos autores ela vê feições de um período de transição, cujos conflitos ela
encontra tão profundos que, segundo Batt, não conseguiria controlar esse abalo. A
realidade de seu tempo e de sua sociedade exerceu sobre ela não uma impressão duradoura
75
Idem. Ibidem. p. 881.
76
WOLF, Christa. „Kleists ‘Penthesilea’“. In: WOLF, Christa. Die Dimension des Autors. 1990. p. 666-
667.
progressiva, mas um efeito de choque. Um tal choque, como impulso do trabalho literário,
não permite livremente uma elevação sobre o vivido, nenhuma aceitação calma nem
manifestação conciliadora múltipla da matéria da vida, mas o autor paga o preço de trazer
o fracasso social de seu abalo existencial, artisticamente, diretamente para a obra. Seghers
simpatiza com aqueles autores que, por se terem envolvido de modo profundamente
pessoal nos conflitos do tempo, legaram uma obra sempre como que fragmentária e
despedaçada, na qual se sedimentam perplexidade e confusão sobre um tempo fora dos
conformes, pois Goethe representa, para ela, o poeta que compactua com o poder, cuja
obra se sustenta sobre um forte apoio de seu criador na sociedade vigente, dado que uma
insubordinação supostamente poria a obra em perigo
77
.
A retomada do Romantismo dá-se em virtude da necessidade de revisão da
tradição literária e da herança cultural na RDA. Dado que muitos escritores percebem no
modelo do humanismo burguês a matriz do intelectual que compactua com o poder, é
necessário reabilitar Kleist devido a um preconceito pseudo-científico que, no
entendimento de Günter Kunert
78
, levou à destruição de intelectuais e artistas e que
continuava atuando com os mesmos argumentos. Fator decisivo para a renovação da
história literária na RDA é a retomada, por parte dos escritores, das concepções de Bertolt
Brecht. De acordo com Ruth Röhl
79
, o que opunha Brecht à posição oficial da RDA era a
“questão do método”, pois para ele, “as obras primas do passado, em situações históricas
concretas deviam permitir leituras diferentes e estar abertas a outras funções”. Em função
disso, ele se opunha à “classificação de autores e obras segundo épocas e correntes
literárias”, por julgar que “esse procedimento reduzia a resistência do texto”. Para ele,
“toda e qualquer classificação histórica tradicional continha [...] um elemento de
legitimação, por aceitar o processo de continuidade literária”. Röhl afirma ainda que “[o]
método de Brecht visava o assunto e sua elaboração enquanto material concreto da
apropriação”.
Em decorrência do colóquio “Sobre tradição e herança”, de 1973, orientado pelas
idéias expostas anteriormente pelo então diretor da política cultural Kurt Hager, para quem
a “apropriação crítica” consistia na “compreensão do legado artístico de épocas anteriores
a partir de suas condições históricas”. Hager abre caminho para uma nova definição de
77
BATT, Kurt. „Erlebnis des Umbruchs und harmonische Gestalt“. In: SCHMITT, Hans-Jürgen. (Org.). Der
Streit mit Georg Lukács. 1978. p. 25-26.
78
Apud. RÖHL, Ruth. A revisão da tradição literária na RDA. In: Forum deutsch. Revista brasileira de
estudos germânicos. 2003. Vol. 7. p. 115.
79
Idem. Ibidem. p. 106-107.
continuidade e descontinuidade com respeito à herança cultural. Tal liberalização cultural
possibilitou posicionamentos próximos aos de Brecht
80
.
Conforme explicação de Röhl, somente nos anos 70 foi possível no âmbito da
história literária uma reflexão crítica sobre a relação entre presente e passado. Passa-se a
considerar como objeto da história literária, não apenas a literatura produzida no passado,
mas também o olhar do presente sobre essa literatura, centrando-se então no próprio “ato
da apropriação”
81
. Se somente a partir daí a crítica literária passa a revisar o papel da
tradição e o conjunto teórico na RDA, os escritores já vinham minando há tempo esse
terreno, afastando-se do conceito dogmático de realismo. Röhl frisa que “[e]mbora autores
como Heiner Müller, Christa Wolf ou Volker Braun sempre tenham demonstrado um
comportamento diferente com relação à tradição – mais pessoal e menos sistemático – só
então [a partir da revisão do Romantismo e da Vanguarda] é que o fator subjetivo na
seleção e apropriação da literatura foi oficialmente aceito”
82
.
Tendo em vista a indagação a respeito da “função da literatura e da arte no estado
socialista”
83
, Plenzdorf afirma que “não se pode definir literatura ou arte em função de
qualquer regime ou estado”, mas sim “por indícios de como uma sociedade funciona em
sua essência”. Plenzdorf realiza o pressuposto brechteano da “apropriação” do legado
artístico a partir da problematização histórica desse legado, pois a partir da retomada de
Werther, é possível estabelecer um paralelo em que manifestações do passado são vistas
sob a ótica do presente, com o fito justamente de apontar situações, desvendar mecanismos
e produzir sentidos a este concernentes. Conforme Hartl, “[n]ão se podia levar o
humanismo sem modificá-lo para a literatura socialista. O recurso de Plenzdorf não era
para harmonizar a herança clássica com o socialismo, mas para servir como função crítica
no seu romance”
84
. Stefan Hermlin refuta as críticas negativas à obra de Plenzdorf,
afirmando que ela mostra “talvez pela primeira vez” “os pensamentos autênticos e os
sentimentos dos jovens trabalhadores da RDA”
85
. Ao expor esse dado, a autora demonstra
como alguns fatores particulares do contexto político-social da RDA estão representados
no universo mimético do livro de Plenzdorf. Trata-se da diferença no acesso do povo à
formação cultural, atestada pelo contraste entre os personagens dos romances de Plenzdorf
80
Idem. p. 110.
81
Idem. p. 111.
82
Idem. p. 117.
83
Questão formulada por Richard Zisper e Karl Heinz Schoeps, na entrevista intitulada “DDR Literatur im
Tauwetter”. Apud. HARTL, Ingeborg. Goethe e a RDA nos anos 70 na obra Die neuen Leiden des jungen W.
de Ulrich Plenzdorf. In: Forum deutsch. Revista brasileira de estudos germânicos. 2000. Vol. 4. p. 46-47.
84
Idem. Ibidem. p. 49.
85
Apud. Idem. Ibidem. p. 53.
e de Goethe. Hartl detecta na camada trabalhadora da RDA a falta de bases científicas e
formativas para a recepção e compreensão da herança literária e filosófica. De modo que a
escolha do Werther se justifica por razões políticas, confrontos de linguagens,
desconhecimento da herança clássica, elementos que não apenas apontam para a oposição
entre indivíduo e sociedade, mas que também mostrem situações de vida enfrentadas pelos
indivíduos na sociedade socialista. O fato de os personagens que contracenam com Wibeau
não reconhecerem a fonte de suas citações revela a ignorância em termos de cultura em
que é mantido o proletariado no país.
O conceito de Romantismo ou romântico deve ser empregado nesta pesquisa
principalmente como um termo generalizante que permita abarcar em conjunto um
movimento de renovação estética e um período de crise histórica. Tal generalização serve
ao propósito de compreender uma retomada de motivos literários que remontam ao
passado alemão e correspondem a manifestações artísticas e intelectuais advindas do Sturm
und Drang e da Frühromantik. Devem-se considerar, no entanto, as diferenciações e as
especificidades de cada movimento, bem como sondar o que haja de comum entre ambos,
nos limites em que apontem para as necessidades históricas e literárias concretizadas no
conjunto de significados dos romances que compõem o corpus deste estudo.
Os elementos levantados e discutidos neste capítulo são necessários para que se
compreenda mais profundamente os referentes temáticos derivados da herança romântica,
bem como o papel desses elementos para a elaboração estética e a função de crítica e
resistência nos romances selecionados. O romance Werther, de Goethe, referido por meio
da paródia no livro de Plenzdorf, pertence à variante revolucionária do Pré-Romantismo, o
Sturm und Drang; ao passo que os poetas Kleist e Günderrode, inseridos como
protagonistas do livro de Wolf, pertencem à fase inicial do Romantismo, a chamada
Frühromantik. O estabelecimento de tais coordenadas tem em vista colaborar na
interpretação do corpus desta pesquisa. As características estéticas dos movimentos
romântico e pré-romântico, anteriormente levantadas, são importantes para a criação dos
romances de Wolf e Plenzdorf, não apenas como um motivo estético em caráter
generalizante. O fato é que em determinado momento da história literária da RDA, a
reação contra o dogmatismo do conceito de realismo suscita uma necessidade de debater a
questão da tradição literária alemã. Com isso, a partir da discussão entre Anna Seghers e
Georg Lukács, passa-se a reabilitar os poetas do Romantismo, depreciados em nome de um
conceito de realismo cujo ideal era o modelo classicista. Portanto, a retomada do
Romantismo, não obstante recupere uma gama de aspectos e elementos estéticos, tem
como eixo questões relativas à valorização da reação histórica de um conjunto de poetas e
a atualização dos significados que suas obras carreiam, no que servem ao exame de um
momento de crise.
2 O REALISMO SOCIALISTA E A APROPRIAÇÃO DA TRADIÇÃO ARTÍSTICA
2.1 Realismo e Vanguarda: apologia e reação à tradição mimética
O Realismo socialista, como doutrina estética, foi adotado na Alemanha Oriental
em 1951, por ocasião do V Congresso do Comitê Central do Partido Socialista Unitário
Alemão (SED – Sozialistische Einheitspartei Deutschlands), no qual se tratou do
desenvolvimento cultural do jovem país. Tem início aí, um repúdio ao Formalismo na arte
e na literatura, que, conforme destaca Emmerich, era considerado o corrompimento e a
destruição da própria arte, na medida em que nega o fato de repousar o sentido decisivo da
obra no conteúdo, nas idéias e no pensamento, e o atribui à forma, o que privaria a arte de
seu caráter humanístico e democrático
86
. Isso ocorre porque na formação da ordem
socialista, toma-se o chamado Formalismo pela expressão do Capitalismo e do
Imperialismo, cuja produção seria contrária aos ramos de produção espiritual
87
. Foram
atacadas pelos membros do partido responsáveis pela política cultural as correntes da
literatura moderna do início do século XX denominadas Decadência, Naturalismo,
Cosmopolitismo, Modernismo e mesmo Formalismo, que inclui autores como Kafka,
Joyce, Beckett, Benn e Proust, cujas obras eram tidas como de caráter pessimista e
portanto consideradas prejudiciais à construção do Socialismo.
Na RDA, o Realismo socialista foi tomado da União Soviética praticamente sem
objeções que lhe impusessem um filtro crítico
88
, empregando como modelo as obras de
Gorki, Scholochow e Ostrowski. Enquanto doutrina, exige que o artista conheça a vida e a
86
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 77.
87
Idem. Ibidem. p. 77.
88
Idem. Ibidem. p. 78.
represente como realidade objetiva em seu desenvolvimento revolucionário
89
. A arte é
valorizada em sua função pedagógica e política, devendo a representação ser fiel à
realidade e historicamente concreta, bem como educar e formar ideologicamente o homem
trabalhador no espírito do Socialismo
90
. Decisiva para a mencionada doutrina foi a teoria
do realismo elaborada por Georg Lukács, caudatária no plano estético das normas do
Classicismo e do Realismo burguês, e partidária de uma concepção, aceita como válida
para o padrão da produção artística burguesa dos séculos XVIII e XIX, segundo a qual
todas as determinações objetivas essenciais que determinam o segmento de vida formado
devem ser refletidas pela obra de arte na sua coerência certa e proporcional
91
. O tipicismo
é adotado como princípio de criação e como critério de valor para a produção artística sob
a égide do Socialismo. O típico envolve o exemplar, o geralmente válido, a essência, o
legítimo conforme o conjunto de leis da realidade, que devem ser refletidos sob a forma do
particular
92
.
O historiador alemão ressalta que o Realismo socialista na RDA resulta da
mistura monstruosa de um conteúdo ideológico marcado pela visão histórica materialista e
da sansão estética de um cânone relativo a uma determinada fase do desenvolvimento da
arte burguesa
93
. Isso gera um descontentamento dos artistas de tendência marxista com a
valorização da herança cultural humanístico-burguesa. Na oposição entre Realismo e
Formalismo, a característica deste último pela qual o atacam os setores dirigentes culturais
da RDA é o empenho em realizar um rompimento total com a herança cultural clássica.
Com base nisso, o Formalismo é acusado de conduzir ao desenraizamento da cultura
nacional, à destruição da consciência nacional, de exigir o cosmopolitismo e de dar
sustentação em seus significados à política bélica do imperialismo americano
94
. A
valorização da herança cultural burguesa relaciona-se ao propósito de obter a adesão das
camadas não proletárias na aliança antifascista. Vê-se na cultura clássica um espírito
prenhe de incansável atividade, de dedicação e industriosidade. Goethe é tomado como
modelo da qualidade de trabalhador do homem, marcado em sua essência por um
humanismo ativo. Com o fito de contribuir para a afirmação do entusiasmo do trabalho e
89
Idem. Ibidem. p. 78.
90
Idem. Ibidem. p. 78.
91
Idem. Ibidem. p. 78-79.
92
Idem. Ibidem. p. 79.
93
Idem. Ibidem. p. 79.
94
Idem. Ibidem. p. 79.
para o aumento da produção, afirma Emmerich, o SED apropriou-se se tal particularidade
do ideal clássico-burguês
95
.
A teoria lukácsiana do Realismo crítico e do realismo socialista assenta-se sobre
o pressuposto de que a estrutura histórica da sociedade humana é determinada por
dinamismos no sentido de conflitos que orientam a divisão essencial de grupos na vida
social e política. Deste modo, o problema fundamental de nossa época é, na perspectiva do
teórico húngaro, desde a Revolução de 1848, o combate entre o Capitalismo e o
Socialismo, situação de fato que deve ser refletida pela literatura e pela teoria literária. Não
que, afirma o pensador, a realidade essencial de uma época condicione imediata e
totalmente os fenômenos nela ocorridos, mas atua objetivamente através da produção de
mediações de massa que transformam o acesso do problema fundamental à escala de
fenômeno
96
. Há períodos em que o mundo é movido por outras forças de oposição, a saber,
a do fascismo x antifascismo e mesmo o levantamento dos movimentos de paz contra a
estratégia de divisão empregada pela Guerra Fria, cuja culminância seria a terceira guerra
mundial. Para Lukács, os movimentos de paz possuem a especificidade que, tanto em sua
singularidade ideológica quanto em sua práxis, levam a uma tomada de posição em relação
à concepção de mundo. A concepção do mundo, nesses moldes, é o elemento que norteia a
relação entre o escritor e o real. O escritor dispõe de um elemento de convergência
resultante da profundidade essencial da vontade artística e do crivo histórico das tendências
relativas ao período em que vive. Lukács refere-se à convergência entre realismo ou anti-
realismo no âmbito da atitude artística, e na dimensão dos fenômenos históricos, a luta pela
paz ou pela guerra, de modo que o realismo estaria associado à revolta humanística contra
o imperialismo
97
.
A oposição Realismo – Vanguarda constrói-se sobre um conjunto de dicotomias
que envolvem uma concepção de mundo, um modo de apreender a realidade, um modo de
elaboração artística e o efeito da imagem do mundo obre o homem, fatores estes que
condicionam o estilo da obra de arte. O eixo dessa teoria consiste no pressuposto de que a
literatura tem como objeto estabelecer uma relação entre indivíduo e mundo
98
. A forma da
obra depende da idéia que o autor faz do mundo na totalidade de suas determinações, ou
seja, da intenção objetiva. O fundamento dessa estrutura é a definição de homem. O
Realismo adota a definição aristotélica de zoon politikon, a partir da qual o personagem
95
Idem. Ibidem. p. 80.
96
LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje. 1969. p. 27-28.
97
Idem. Ibidem. p. 28-31.
98
Idem. Ibidem. p. 102.
representa o homem cuja atividade move as relações históricas e sociais. A Vanguarda, ao
contrário, aborda o homem no sentido existencialista, o indivíduo vivendo no mundo,
desligado do papel histórico e social.
A apreensão da realidade refere-se não à atividade do homem, mas à maneira
como ele olha a realidade. Neste particular, consideram-se categorias de possibilidade e de
realização da realidade. No realismo há uma correspondência entre realidade efetiva e a
personalidade do homem, de modo que este se orienta por possibilidades concretas,
conformes com a estrutura objetiva do mundo. Na vanguarda a possibilidade é mais rica do
que a realidade efetiva, sendo impossível a realização das possibilidades, ditas por isso
abstratas. Ocorrem na representação subjetiva e resultam na inexplicabilidade da realidade
objetiva do mundo, na supressão da realidade efetiva e na dissolução dos traços da
personalidade. Se a possibilidade abstrata limita-se ao interior do sujeito, a possibilidade
concreta indicia a interação entre o sujeito, a realidade de fato e os poderes objetivos da
vida. Assim Lukács tece o elogio do realismo e a depreciação da vanguarda através da
oposição entre concepção de mundo dinâmica e concepção estática, afirmando que a
subjetividade de um o priva da historicidade do outro
99
.
No que concerne ao modo de elaboração, a vanguarda difere do realismo pela
ausência de perspectiva. Importante para a concepção de mundo, a perspectiva é um
princípio fundamental da estética que consiste na hierarquização entre as características
próprias dos personagens e entre as situações das quais tomam parte. Segundo o teórico, a
recusa da perspectiva permite à literatura decadente centrar-se de maneira acrítica nos
problemas da forma, ao passo que a sua adoção confere ao realismo a posse da essência
social e artística do conteúdo. A perspectiva configura-se como princípio de seleção entre o
essencial e o superficial. Deste modo, determina o conteúdo e a forma do projeto, bem
como as linhas diretivas da criação artística em cada época. A perspectiva permite
representar a historicidade social; sua ausência, a expressão do caráter estático da
realidade
100
.
Deduz-se da obra de Lukács que a imagem do mundo representada na arte pode
ter uma influência benéfica ou nociva sobre o homem, efeito este que distingue as duas
estéticas em questão. Neste sentido, conforme aponta o teórico, a construção mimética de
um personagem dotado de unidade, pleno de distanciamento crítico em relação à realidade
do mundo, atuante na práxis cotidiana e vivendo de modo normal e objetivo corresponde à
99
Idem. Ibidem. p. 38-47.
100
Idem. Ibidem. p. 57-59.
atitude realista. As formas literárias da vanguarda caracterizam-se pelo reflexo
desfigurante da existência social e histórica, pela perspectiva subjetivista, pela
imediaticidade não crítica, pela não práxis, pela tendência ao patológico, pela sujeição do
homem às forças insuperáveis de um mundo estático e imutável e pelo medo diante do
mundo reificado
101
.
As considerações precedentes devem ser complementadas com a exposição de
idéias de Lukács que, no seio da dicotomia fundamental de sua formulação teórica,
envolvem a relação homem-realidade e os conceitos de concepção de mundo, a visão do
homem e a perspectiva em implicações mais sérias para a arte e sua função social e
humanizadora. A Vanguarda é considerada prejudicial e não artística porque, segundo o
pensador, concebe o homem como “vítima desarmada de poderes transcendentes,
incognoscíveis e invencíveis”
102
; porque se caracteriza pelo fato de nas experiências
vividas puramente subjetivas, pretender descobrir de modo imediato e acrítico a própria
essência da realidade efetiva
103
; por construir o real do que seria um reflexo subjetivo e, ao
pretender erigi-lo em objetividade constituinte, fornecer uma imagem deformada da
realidade total
104
. Lukács deprecia a vanguarda e nega-lhe um valor política, histórica e
socialmente positivo porque entende que a concepção de mundo que lhe é própria se reflete
em atitudes de reação à pressão do mundo exterior e não em atividade planejada de
transformação. Segundo o pensador, a angústia e o caos formam o núcleo da aludida
literatura, conferindo-lhe forma objetiva e subjetivamente. Para ele, um universo caótico
desprovido de estrutura implica na ausência de perspectiva social e, em conseqüência, de
uma perspectiva que englobe o conjunto da sociedade
105
. A concepção do mundo que lhe é
inerente pauta-se no subjetivismo e admite um real estático e não-orientado em sua
essência, e desprovido de sentido em suas oscilações de superfície
106
.
No realismo, por seu turno, o homem possui o estatuto de “membro ativo de uma
comunidade humana em que seu papel influencia o destino da humanidade”
107
. A
valorização que o pensador confere ao realismo está calcada no fato de atribuir uma função
extra-artística à perspectiva. Por sua capacidade de criticar os dados imediatos, o escritor
realista situa o fenômeno próprio de dado tempo num conjunto total e coerente, no lugar
101
Idem. Ibidem. p. 80-95.
102
Idem. Ibidem. p. 126.
103
Idem. Ibidem. p. 83.
104
Idem. Ibidem. p. 83.
105
Idem. Ibidem. p. 114-115.
106
Idem. Ibidem. p. 115.
107
Idem. Ibidem. p. 126.
que lhe é devido em virtude de sua essência objetiva
108
. O autor afirma ainda que somente
a perspectiva própria dos realistas pode estar associada a uma imagem do mundo concreta
e dinâmica, na medida em que inclui a sociedade e a história
109
. A questão da perspectiva
parece complicar-se não em seu caráter estético, enquanto princípio de seleção e
ordenação, mas na exigência de que no contexto do imperialismo e das guerras mundiais,
toda manifestação no plano da perspectiva deva repercutir numa tomada de posição com
respeito ao Socialismo
110
.
A teoria elaborada em Realismo crítico hoje apresenta pontos que podem ter
conseqüências negativas, a saber, a desvalorização incondicional da Vanguarda e a opinião
segundo a qual só uma orientação no sentido do socialismo possibilita ao escritor criar
obras de valor autêntico. O reducionismo de tais pressupostos dá margem à apropriação e
manipulação por parte da ideologia dominante nos mecanismos do regime socialista. Na
concepção de Lukács, a imagem do mundo peculiar à Vanguarda possibilita que as
propagandas do fascismo e da Guerra Fria exerçam pleno efeito, pois tal imagem do
mundo é um reflexo da realidade objetiva cujos fatores determinam subjetivamente o
comportamento, especificamente os aspectos intelectuais e emocionais da interioridade
humana. A referida imagem do mundo envolve como atitude de princípio a recusa da
perspectiva socialista, que corresponde, conforme argumenta o autor em “A destruição da
razão”, a uma das formas pelas quais se prolonga a tendência à demagogia social. Guiado
pela noção de perspectiva, Lukács considera o cinismo, o niilismo, a mistificação próprios
da arte de Gottfried Benn, enfim sua concepção estática do mundo, uma espécie de
degenerescência da idéia em ideologia
111
.
A Vanguarda eliminaria, segundo esse ponto de vista, os fatores concretos de
ordem social. O estilo seria condicionado por uma redução, dado que repousa sobre uma
concepção de mundo que não permite a seleção dos detalhes. O conteúdo do universo
artístico permaneceria em estado bruto e a forma em estado abstrato
112
. Ao negar-lhe a
perspectiva, o pensador priva essa modalidade do valor artístico. À afirmação de que basta
uma não recusa apriorística do Socialismo por parte do escritor para que este escape à crise
social e ideológica da então sociedade burguesa
113
, poder-se-ia objetar, por um lado, a não
probabilidade de ser o Socialismo imune a crises, e por outro, o perigo de que a
108
Idem. Ibidem. p. 83-84.
109
Idem. Ibidem. p. 93.
110
Idem. Ibidem. p. 103.
111
Idem. Ibidem. p. 100-104.
112
Idem. Ibidem. p. 117-118.
113
Idem. Ibidem. p. 97.
unilateralidade na exigência de orientação possa ser limitadora e implicar a relegação dos
demais pontos de vista, a negação da pluralidade e o desprezo pelo diferente: em última
instância, o tolhimento da liberdade de expressão.
O Realismo socialista é adotado com entusiasmo pelos escritores da RDA, o que
deu condições para que se configurasse mesmo como tendência estética inicial. No entanto,
em virtude da exigência de representação positiva da sociedade socialista, inclusive dos
aspectos nitidamente negativos da respectiva realidade, esse movimento nunca perdeu seu
caráter de programa. Tal positividade mimética deve-se à esperança dos artistas de que a
idealização de um tipo de sociedade traria a sua concretização, de que a difusão de suas
idéias traria a humanização, a igualdade e a justiça, porque os interesses dos intelectuais,
do povo e dos setores dirigentes estariam em harmonia, no mínimo em processo de
harmonização com o todo. No Socialismo real, a almejada harmonia não existiu, pois sua
organização sistemática fundava-se unicamente nos interesses políticos e ideológicos das
classes dirigentes, a cujo funcionamento os demais setores deveriam ajustar-se como
peças.
A desilusão de muitos escritores reflete na negação do Realismo socialista,
devido à tomada de consciência de que a atitude realista, baseada no típico e no modelar,
opera na ordem do nivelamento e da aparência, servindo assim à ideologia dirigente. Os
problemas suscitados pela realidade, relacionados com a vida do povo e dos intelectuais,
sentidos, sofridos e calados, precisam ser exteriorizados: exigem, porém, outros meios de
expressão. Neste sentido, deve-se pensar em um outro modo de relação da arte com a
realidade e o mundo, de um lado, e com a sociedade e o poder político, de outro; bem
como nas diferentes manifestações literárias que concorrem com o Realismo, as inovações
no âmbito da forma, do conteúdo, da técnica, da linguagem e da expressão, sem perder de
vista o compromisso da arte com o humano. Tais pressupostos são apresentados nas
considerações seguintes.
Anatol Rosenfeld
114
, problematiza a ligação de grandes artistas ao que denomina
“espírito essencialmente ilegítimo”, que se refere à traição de idéias caras à humanidade, à
deturpação da consciência inerente ao dinamismo do processo histórico e ao não
reconhecimento da validade de um ideal humano. Dado que a obra de arte envolve a
totalidade do artista como homem e emana de sua personalidade integral, o crítico
questiona a relação entre a personalidade ligada ao ilegítimo e a criação de obras de real
114
ROSENFELD, Anatol. Arte e fascismo. In: ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto II. 1993. p. 190-198.
valor. Discordando do argumento de que em sua autonomia a arte independe das ordens do
espírito objetivo, Rosenfeld prega a coincidência entre o ideal estético e o ideal humano do
equilíbrio entre necessidade e liberdade. Enquanto expressão de uma esperança no homem,
a arte é adversa a qualquer movimento político que, a exemplo do fascismo, o avilte; que
destrua a autonomia individual; que converta a pessoa humana em objeto e instrumento,
divinizando o poder tirânico e aniquilando a justiça; que submeta a consciência moral a
fatores biológicos, ao domínio do racismo.
O pensador afirma haver uma divergência entre a obra e o criador, o que implica
não se poder reduzir a natureza ôntica da primeira à do segundo. Isso não exclui, porém, a
possibilidade de se tomar em consideração o papel da intenção do escritor, ou, como quer
Rosenfeld, a perspectiva e a expressão de anseios ao tematizar uma questão, bem como as
concepções postas em torno dessa questão como subsídio para a interpretação da obra. A
relação entre esta e seu criador não é simples e direta, mas contraditória e ambígua.
Destarte, pode-se rechaçar a afirmação de Georg Lukács segundo a qual a arte da
Vanguarda ou Decadência propicia a queda na demagogia fascista, tomando como base os
argumentos de Rosenfeld segundo os quais: 1) através da expressão e da objetivação da
tragédia a arte significa uma libertação; 2) não há lugar para o anti-humanismo na ordem
estética, a menos que seja para representar seu caráter negativo. A arte é, para o autor, uma
essência que independe das contingências biográficas do criador, de modo que mesmo que
este simpatize com o fascismo, a ordem estética purifica a miséria moral que desonra o
homem.
No que diz respeito às inovações sofridas pelo romance, Rosenfeld
115
considera o
gênero do ângulo de sua participação no fenômeno de desrealização, que consiste na recusa
do caráter mimético da arte, no sentido da função de reproduzir fielmente a realidade
empírica. Isso se manifesta na tendência à abstração, na dissociação ou deformação do ser
humano e na abolição ou distorção da perspectiva. A categoria da perspectiva é essencial
ao realismo: é a projeção do mundo a partir da consciência humana, de uma consciência
individual. O mundo torna-se relativo ao homem, porém essa relativização é apresentada
em termos de absoluto. O aparente ganha estatuto de real, o que é subjetivo afirma-se sob a
ilusão do objetivo. No romance moderno, produto da Vanguarda e da Decadência, opera-se
a abolição do tempo cronológico pelo tempo subjetivo, conforme lembra Rosenfeld. Isso
implica em alterações que afetam a perspectiva nítida do romance realista. A partir daí, as
115
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto
II. 1993. p. 75-96.
categorias tradicionais de espaço, tempo e causalidade são desmascaradas como aparência
exterior e consideradas como formas pelas quais o senso comum impõe uma ordem fictícia
à realidade. Com esse processo de desmascaramento, o ser humano se fragmenta ou
decompõe na obra narrativa.
Essa transformação no campo da arte deve-se a uma nova experiência do homem
no mundo. Como conseqüência, a perspectiva, enquanto intenção de projetar a realidade da
posição de quem se põe em face do mundo, não serve para expressá-la. À questão sobre se
não se refletiria a experiência da situação precária do indivíduo diante do mundo e de sua
relação alterada para com o mesmo no fato de o artista já não se sentir autorizado a projetá-
lo a partir de sua consciência, o crítico responde que uma época cujos valores estão em
transição, e, portanto incoerentes, e uma realidade que foge à concepção de mundo
explicado exigem adaptações estéticas que possibilitem incorporar o estado de fluxo e
insegurança à estrutura da obra de arte. Disso se pode deduzir que os problemas próprios
de uma época ou mais especificamente os de ordem contextual influenciam a atitude
estética. Destarte, nem o estado de coisas nem o sentimento e as reações que provoca no
indivíduo podem ser expressos com base em um padrão pautado em perspectiva e ponto de
vista objetivos.
Segundo explica Rosenfeld, o indivíduo moderno sabe não poder construir
baseado nela uma realidade que não seja ilusória, pois para os escritores da Vanguarda a
perspectiva deixa de ser o recurso artístico de distanciamento com que o eu apreende o
mundo e torna-se o sinal de uma cisão entre esses elementos. A consciência desse estado
gera a angústia e demonstra o quadro de insuperável instabilidade que envolve o homem.
Assim, ao desapreço de Georg Lukács pela Vanguarda fundamentado no argumento de que
esta, pelo seu tipo ou mesmo falta de perspectiva, é incapaz de apreender tanto o mundo de
modo ordenado quanto o homem em sua práxis social e histórica, bem como de produzir o
distanciamento crítico necessário à compreensão do mundo, contra-argumenta-se com
Rosenfeld que a perspectiva da Vanguarda permite expressar a desorientação e a perda da
integridade da pessoa, pois ela consiste em sintoma do desequilíbrio do momento histórico
e expressa, portanto, as transformações ameaçadoras que a perspectiva do romance
tradicional, entenda-se realista, insiste em ignorar. Ao examinar a manifestação do
patológico na Vanguarda, o teórico húngaro a considera desprovida de conteúdo no sentido
das relações dinâmicas entre homem e mundo, vacuidade esta representada pela
repugnância abstrata e pela impotência. Nas palavras do autor, a concepção de mundo aí
envolvida não possui qualquer finalidade para a vida normal nem a impele ao progresso em
uma determinada direção
116
. Ela pode, no entanto, descortinar os sintomas da falta de
sentido que a vida apresenta em contextos opressivos e na des-ordem da modernidade.
As idéias tomadas de Rosenfeld podem ser acrescidas das considerações de
Theodor Adorno
117
acerca do romance contemporâneo, cuja situação evidencia o paradoxo
da impossibilidade de narrar, mas cuja forma pede a narração. Complica-se a posição do
narrador. O realismo como procedimento que resulta na sugestão do real, torna-se
problemático. Esse fenômeno, que atinge o narrador e a coisa narrada, deve-se, no caso do
primeiro, ao subjetivismo que força a matéria a transformar-se e solapa a objectualidade
épica; no segundo caso, o romance precisa concentrar-se naquilo que escapa ao relato, fato
este que se acentua em função de sua natureza lingüístico-discursiva, pois a linguagem o
obriga a ficcionalizar o próprio relato. Se o realismo se fundamenta em um narrador
onisciente, provido do domínio da experiência e de uma linguagem precisa e sem fissuras,
com James Joyce rejeita-se a linguagem discursiva e verifica-se uma desintegração na
identidade da experiência, ou conforme aposto do próprio pensador, desintegra-se a vida
articulada e contínua em si mesma.
A transformação do romance contemporâneo em relação à norma tradicional é
ocasionada, como também assinala Rosenfeld, pela posição do homem em relação ao
mundo. Para Adorno, o homem encontra barreiras que o sufocam no mundo administrado,
na estandardização e na mesmidade. O romance é forçado a romper com os dados positivos
e apreensíveis, inclusa a facticidade do mundo, e passa a representar a essência e a
distorção devido ao fato de que o fechamento do processo social da vida oculta o ser, ou
seja, a realidade repousa em um nível mais profundo, impossível de ser apreendido da
superfície. No ponto de vista do teórico, a própria alienação move o romance. A alienação
e a reificação, disseminadas nos conflitos dos homens em suas relações, integram o objeto
desse gênero. Seu momento anti-realista é produzido pelo próprio objeto: “uma sociedade
em que os homens estão separados uns dos outros e de si mesmos”
118
.
Seguindo-se os pressupostos adornianos, compreende-se que a unidade do ser
vivo é rompida no romance e o mundo é apreendido através da interiorização. Tal processo
é um modo de o sujeito estar seguro no mundo estranho tornado familiar por uma espécie
de falsidade. O exterior é apreendido pela consciência do narrador, livre da refutação pela
ordem objetiva. A reflexão rompe a pura imanência da forma, pois se volta contra o caráter
116
LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje. 1969. p. 51-52.
117
ADORNO, Theodor W.. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Benjamin et
alii.. Textos escolhidos. 1983. p. 269-273.
118
Idem. Ibidem. p. 270.
ilusório da representação, configurado na categoria do narrador. A distância estética é
encurtada como propriedade da forma romanesca, pois a condição do mundo sob a ameaça
da catástrofe converte a atitude contemplativa em escárnio: a negatividade do positivo deve
ser expressa. Verifica-se a anulação da diferença entre o real e o imaginário. Com isso, o
sujeito, que nega as convenções da representação, reconhece sua impotência diante do
poder do mundo coisificado. Neste sentido, a subjetividade do romance aponta para o
aniquilamento do indivíduo pelo estado de coisas. A capitulação do romance diante da
realidade, que só pode ser transformada no real e não transfigurada na imagem, é um
processo exigido pela própria forma. Deste modo, ao abordar junto ao real o seu reverso, a
obra tem a possibilidade de recuperar a experiência, a sabedoria da vida, o que consiste
num modo de reagir por meio da arte à reificação e à alienação às quais os homens estão
submetidos na própria produção da vida. De certa forma, a literatura produzida por
escritores como Wolf e Plenzdorf pauta-se na necessidade de recuperar a capacidade de
converter a vida em experiência, retirando dela uma sabedoria que precisa ser incorporada
ao romance, de modo que esse gênero, pela força humanizante e politizante da arte, seja
capaz de mostrar a perplexidade do homem diante do mundo, mas, além disso, de difundir
uma sabedoria para compreender a ambos e transformar o segundo no sentido de satisfazer
as necessidades subjetivas do primeiro.
A discussão acerca do Realismo socialista, enquanto programa destinado a
direcionar a produção literária para a produtividade material do proletariado nas fábricas e
no campo, visa a mostrar alguns aspectos pelos quais alguns escritores das décadas de 60 e
70 na RDA precisam romper com esse movimento. Neste sentido, buscou-se revisar as
concepções norteadoras da teoria lukácsiana do realismo, com o fito de apontar alguns
problemas através dos quais essa teoria é passível de ser apropriada pela ideologia dos
poderosos. Visto que os escritores estudados neste trabalho, inseridos na tendência de
retomada de valores do Romantismo e voltados para a atitude subjetiva, reagem contra o
poder do Estado e tomam partido na defesa do povo oprimido e dos ideais de justiça e
solidariedade, eles precisam mostrar a verdadeira realidade sob o regime, encoberta pelo
poder com o emprego de instrumentos entre os quais o padrão de objetividade requerido
pelo realismo. Neste ínterim, a literatura precisa apelar para outros padrões estéticos e
inovar seus recursos conteudísticos, formais, técnicos e lingüísticos; bem como revisar a
concepção de mundo e a função esperadas da literatura. É na tentativa de entender essas
alterações que se examinam alguns dados próprios da literatura dita formalista, dotada de
um impulso de renovação estética e informada pela perplexidade do homem e sob os
impactos do mundo em que é produzida; bem como alguns pressupostos de Theodor
Adorno e Anatol Rosenfeld acerca da relação guardada pela arte com a realidade e a
respeito do papel e das modificações que resultam no rompimento do romance com o
realismo.
A produção das obras que compõem o corpus deste estudo inscreve-se no âmbito
da discussão acerca da arte, da crítica e da política cultural na RDA, e ressente-se dos
conflitos entre realismo e vanguarda, classicismo e romantismo, seja em termos teóricos,
técnicos ou estéticos, implicando reflexões sobre problemas sociais e históricos. A questão
da técnica no romance de Plenzdorf, ao que tudo indica, remonta à transformação ocorrida
no início do século XX, a qual, conforme Albrecht Betz
119
, tem como um de seus domínios
a mudança provocada pelos meios de comunicação de massa. Este é um ponto em que,
paralelo à diferença nas opiniões sobre o desenvolvimento revolucionário, acentua-se a
divergência entre Eisler e Lukács. Eisler alcança a maestria de sua obra em um momento
histórico em que novos meios de comunicação, já produzidos industrialmente começaram a
influenciar e alterar o emprego e a função da arte. Novos recursos, técnicas e
procedimentos são incorporados pela música, pelo cinema e pelas artes plásticas. A esse
respeito, Betz destaca a função do filme sonoro (Tonfilm) de permitir integrar elementos
diversos em uma mesma relação de sentido, expor modos visuais comuns, mostrar
complexos em curso ou movimento. Daí poder transpor-se para outras artes, em especial à
literatura, uma técnica central para o cinema: a montagem. Tais inovações, aproveitadas
esteticamente por Eisler e Brecht em um esforço de redimensionamento político da arte em
relação à realidade presente, chocam-se com a estética de Lukács, voltada para a
organização da forma objetiva da arte, baseada em concepções idealistas, pautada na
exigência de que o todo da obra espelhe o mundo como totalidade pensada, e de que a
configuração do processo social e o descortinamento de suas forças motrizes reais devam
realizar-se através da personalização e simbolização de problemas e contradições.
Em suas reflexões sobre o tema do realismo, segundo explanação de Fritz
Raddatz
120
, Brecht defende a posição de que a literatura deve assimilar as novas
capacidades do homem. Lukács, ao contrário, quer superar os antagonismos em sua teoria
da representação, por meio da harmonização entre essência e aparência. A grande arte deve
fornecer uma imagem da realidade na qual os conflitos entre o particular e a norma, entre a
119
BETZ, Albrecht. Gestaltung >>oder << Montage? – Hanns Eislers Divergenzen mit Lukács. In:
SCHMITT, Hans-Jürgen (Org.). Der Streit mit Georg Lukács. 1978. p. 77-89.
120
RADDATZ, Fritz (apresentação); KUSENBERG, Kurt (Org.). Georg Lukács in Selbstzeugnissen und
Bilddokumenten. 1972. p. 82-91.
não-mediação e o conceito se resolvam, de tal sorte que ambos coincidam na expressão
direta da obra, constituindo uma unidade espontânea e indissociável. Ao invés da referida
unidade, Brecht tenciona demonstrar a diferença e a desarmonia: a imagem (representação)
deve mostrar o curso contraditório do processo representativo. Se para Lukács, o momento
do deleite reside na forma orgânica fechada do romance realista, a custa da eliminação das
contradições, da perspectiva de Brecht, o deleite resulta do reconhecimento das relações e
do disparate apresentados entre essência e aparência. Em sua definição de escrita realista
(realistische Schreibweise), o crítico desloca o deleite para fora da arte e tenta ativá-lo para
a expectativa e luta por harmonia não da representação, mas da realidade. A visão
lukácsiana, prossegue Raddatz, pauta-se na afirmação da catarsis como sentido último da
grande arte. É, portanto, na medida em que o efeito catártico possui um apelo ético, e não
social, que se distanciam ambos os teóricos, no sentido de que um, com sua estética de
cunho classicista, aponta para uma crítica a respeito da vida; ao passo que o outro, com sua
investigação da realidade, visa a ensinar através da arte a transformação da sociedade.
Eisler e Brecht procuram despertar o interesse da massa pela possibilidade de
incluir-se ativamente em eventos político-culturais, de esclarecer-se a respeito de seus
próprios interesses, de libertar novas maneiras de sentir e comportar-se. Betz
121
afirma que
a introdução de novos métodos de produção deveria levar a massa a conceber mudanças
em outros domínios, como por exemplo, politizar o pensamento funcional, orientado pela
utilidade e pelo valor de uso, e mantê-lo politicamente atento numa fase pós-
revolucionária. Para isso, como ressalta o autor, as atividades artísticas podem contribuir.
Em concordância com tal argumento, Betz cita uma proposição elaborada por Eisler e
Ernst Bloch no ensaio Avantgarde – Kunst und Volksfront, segundo a qual ao invés de
encarar como fatalista a falta de cultura produzida mediante o Capitalismo, o artista deve
tornar-se consciente das condições sociais dessa situação e transformar ela própria em
conteúdo da arte. Considerando-se tais pressupostos, pode-se afirmar serem as próprias
condições sociais que Plenzdorf tematiza e mimetiza em seu romance ao representar a vida
de um jovem estudante da RDA, que desvela a alienação da massa trabalhadora sob as
imposições do sistema.
A crítica de arte na RDA é dirigida segundo as determinações do Partido, embora
existam críticos que se oponham à normatividade elaborada segundo a ideologia
centralizadora do setor dirigente. A crítica e a própria arte ficam atreladas às diretrizes do
121
BETZ, Albrecht. Gestaltung >>oder << Montage? – Hanns Eislers Divergenzen mit Lukács. In:
SCHMITT, Hans-Jürgen (Org.). Der Streit mit Georg Lukács. 1978. p. 77-89.
Partido quando deveriam ser regidas por critérios estéticos. O conceito de realismo, central
para a referida normatividade, passa a ser revisto, em grande parte, com base nos
resultados do debate conhecido como Expressionismusdebatte, travado entre autores como
Georg Lukács, Anna Seghers, Hanns Eisler e Bertolt Brecht no final da década de 30. O
termo Expressionismus, aí, serve de ensejo para defender as manifestações da Vanguarda
dos ataques feitos em nome do Realismo – incluindo a disputa entre o romântico e o
clássico. Assim, ao argumento de que as imagens de estranheza e decadência, o
cosmopolitismo e a subjetividade de uma são sinais de degeneração, pode-se objetar que o
excesso de dogmatismo da outra pode configurar igualmente um tipo de degeneração. A
oposição Realismo-Vanguarda aponta para o conflito ideológico entre o Socialismo e o
Capitalismo. Nas décadas de 60 e 70, alguns escritores e críticos buscam recurso para a
renovação artística em uma troca de idéias com o lado ocidental, o que se choca com a
ideologia central do Socialismo no que tange à determinação da arte e sua função social e
política. Ilustrativa a esse respeito é a afirmação contida na revista Neues Deutschland, de
22 de fevereiro de 1962, conforme a qual o que define a direção artística do
Expressionismo é a incapacidade de interferir nas lutas de classe reais de seu tempo, no
sentido de transformar a sociedade
122
. Segundo aponta Jost Hermand, verifica-se um novo
interesse sobre o Expressionismo em 1967, quando Klaus Gysi define com a expressão
“educação da emoção” uma tarefa importante da nova literatura. Tem-se com isso uma
abertura para aceitar as manifestações da subjetividade, afloradas em Christa Wolf e
Rainer Kunze, que se familiarizavam com uma nova espontaneidade e um novo
subjetivismo e procuravam aliar a individualização com o grau de consciência avançado da
RDA: destacam-se, neste ínterim, o papel do lírico e da referência ao eu. A necessidade de
discutir a arte deve-se ao fato de esta constituir na RDA uma instituição cuja validade não
é questionada, pois nela o homem deposita sua vontade de educar-se, de esclarecer-se e
desenvolver um senso da beleza
123
.
Hermand problematiza o conceito de humanismo, da forma como fora
incorporado pela política cultural da RDA, considerando-o uma forma idealista vazia, sem
conteúdo significativo. O crítico adverte para o dever de não tomá-lo no sentido extraído
de Fausto de Goethe, em que o homem se afirma na presença da natureza, pois aí repousa o
perigo de perpetuar a consciência burguesa, sem distingui-la claramente da falsa
122
HERMAND, Jost. Das Gute-Neue und ds Schlechte-Neue: Wandlungen der Modernismus-Debatte in der
DDR seit 1956. In: HOHENDAHL, Peter Uwe; HERMINGHOUSE, Patricia. (Orgs.). Literatur und
Literaturtheorie. 1976. p. 77.
123
Idem. Ibidem. p. 82-91.
consciência. O idealismo da época goetheana e, com isso, as próprias concepções de
Goethe não servem ao Socialismo da RDA, pelo fato de terem sido ultrapassados pela
exigência de superar a separação entre trabalho e satisfação, postulada por Marx nos
Manuscritos Parisienses. Dessa perspectiva, o Socialismo configura seu caráter
progressivo, nos termos brechteanos de uma “utopia da grande produção”, na qual se tem
em vista a construção do próprio homem. Pré-industrial, pré-divisão-do-trabalho e pré-
socialista, o Humanismo de Weimar tomado em si mesmo torna-se problemático como
elemento da construção do Socialismo. A herança cultural deveria ser incorporada
dialeticamente, no sentido da apropriação crítica do passado, nos moldes propostos por
Brecht
124
.
A ênfase dada à literatura como produtora de consciência progressiva nos
conformes do sistema socialista leva o Partido a fixar um padrão para a produção literária,
alcançado a partir duma síntese entre Socialismo e Classicismo burguês. Elegiam-se
autores como necessários e condenavam-se outros como nocivos à classe trabalhadora
através de uma oposição entre as noções de Humanismo e Existencialismo, associando-se
uma à atividade política transformadora, a outra à passividade fatalista aniquiladora. Deste
modo, a crítica ligada ao Partido toma elementos da tradição burguesa em suas fases
ascendente e decadente. À primeira correspondem as obras do Classicismo burguês. No
que concerne à segunda, opõem-se os autores do chamado Realismo crítico aos que fazem
parte da Vanguarda, que engloba as correntes do Formalismo e da Decadência, sendo que
no seio da própria Vanguarda distinguem-se uma forma que pode ser assimilada e outra
que deve ser rejeitada, modalidades com as quais a política cultural opõe Rilke a Benn.
Trata-se de um critério valorativo baseado em considerações fundadas no conceito de
Humanismo. O problema detectado por Hermand é o de que tal ideal de cultura fora
empregado com validade atemporal e a-histórica, pois a transposição direta e mecânica de
uma concepção de mundo de um contexto a outro sem consideração das condições
históricas específicas pode acarretar inadequações, como preconceitos para com
determinadas manifestações artísticas e desconsideração da mobilidade social. Hermand
questiona acerca de como pode de fato uma visão de mundo burguesa específica manter-se
progressiva após 200 anos e formar a base para uma teoria da arte socialista e, portanto,
revolucionária, e se isso não redundaria em uma contradição ideológica
125
.
124
Idem. Ibidem. p. 93-94.
125
Idem. Ibidem. p. 92-93.
A partir da explanação de Peter Uwe Hohendahl
126
sobre a controvérsia em torno
do conceito do realismo na RDA, pode-se verificar que em sua teoria da herança cultural,
Lukács fixa-se no método da escrita, isolando-o do seu conteúdo e do seu produtor,
alcançando uma visão formalista do reflexo, não conseguindo estabelecer a diferença entre
a literatura proletária e a burguesa. A explicação da história da literatura alemã, elaborada
por Lukács, negligencia a tradição proletária, e sua exposição da teoria do espelhamento
estético suprime o momento subjetivo e com isso a práxis social e literária. Dentre as
manifestações arroladas por Hohendahl, segue-se que Wolfgang Heise reprova a teoria de
Lukács ao afirmar que essa categoria central da arte, do modo como determinada por
Lukács, tem a característica de considerar o processo de espelhamento artístico tão
abstratamente isolado que sua essência social se perde, tanto no que concerne ao objeto
quanto ao próprio processo
127
. Com as objeções de Horst Redeker à visão objetivista de
Georg Lukács, afirma-se que o momento subjetivo na representação significa que deve ser
considerada a posição do escritor no processo de representação, não apenas em suas
condições objetivas como lugar de classe e visão de mundo, mas também em seu
envolvimento interior no processo de desenvolvimento social. Tal envolvimento deve ser
entendido não em sua dimensão individual, como reflexo de sentimentos privados, porém
em sua dimensão de classe
128
. Pode-se depreender das reflexões de Brecht que a crítica
deriva da subjetividade, no sentido de que o artista deve não apenas espelhar a verdade
exterior a si, mas assimilar o objeto e acrescentar algo a ele antes de exteriorizá-lo, a saber,
a crítica que o objeto deve receber a partir da sociedade
129
. Por seu componente subjetivo,
a crítica permite opor-se ao objetivismo. A representação objetivista, que o crítico alemão
diferencia da objetiva, desconsidera o momento subjetivo, necessário às mudanças
produtivas das situações e relações existentes
130
.
Se, nos anos 60, a tônica em torno do problema do realismo recai sobre o ponto
de vista da comunicação, nos anos 70, essa problemática se articula sobre a identidade
entre os efeitos estético e ideológico. A forma estética é não apenas uma função do
conteúdo, mas também relativa a um objetivo prático, de modo que através da forma a obra
pode tornar-se conteúdo espiritual supra-individual: parte da vida literária, da tradição
126
HOHENDAHL, Peter Uwe. Ästhetik und Sozialismus. Zur neueren Literaturtheorie der DDR. In:
HOHENDAHL, Peter Uwe; HERMINGHOUSE, Patricia. (Orgs.). Literatur und Literaturtheorie. 1976. p.
138-157.
127
Idem. Ibidem. p. 139-140.
128
Idem. Ibidem. p. 142.
129
BRECHT, Bertolt. Nicht nur Spiegel der Wahrheit. In: HECHT, Werner. (Org.). Bertolt Brecht – Über
Realismus. 1971. p. 164.
130
BRECHT, Bertolt. Objektivsmus. In: Idem. Ibidem. p. 157.
cultural e da práxis social. A qualidade estética é determinada, da perspectiva de Erhard
John, através da vida social. Tal qualidade é objetiva na medida em que não depende da
consciência espelhadora; e subjetiva na medida em que é produzida por homens vinculados
ao social. Neste mesmo sentido, Erwin Pracht ressalta a função de conhecimento da
imagem e do espelhamento na arte socialista: trata-se de uma atividade criadora,
configurada como uma apropriação espiritual do mundo com a finalidade de produzir algo.
Para que a questão do conhecimento não torne a arte uma serva da ciência a partir do
conceito de verdade formulado com base na cibernética e na lógica, Pracht parte de uma
posição estética marxista que una dialeticamente conhecimento e atividade criadora. A fim
de que a arte recupere sua verdadeira função de verdade, na qual haja concordância entre
imagem e realidade, e uma relação ativa entre sujeito e objeto, Pracht postula a reflexão
acerca da orientação política e social concreta da obra de arte
131
. Assim, uma abertura no
conceito de realismo conduziria à superação de interpretações mecânicas e da transposição
mecânica de valores culturais sem consideração das devidas condições históricas.
Segundo Hans Jürgen Schmitt, o centrismo de Lukács limita-se à história – como
história dos efeitos – das formas mais elevadas. O crítico explica que em vez de partir das
condições de produção (Produktionsbedingungen) sob as quais a história se origina, ele
parte da concepção de mundo (Weltanschauung) como forma mais elevada de consciência,
a qual para ele consiste no pressuposto para uma boa criação, a fim de elevar o meramente
individual à categoria de típico para uma época
132
. Com isso, Lukács deixa de considerar
as condições e as exigências reais do contexto sob o qual a literatura é produzida. Neste
sentido, afirma Brecht que o teórico húngaro parte de um princípio sadio, causando a
impressão de estar alheio à realidade
133
. Brecht critica o modo como é conduzida a questão
do realismo na literatura. Em sua opinião, o conceito de realismo se apresenta muito
restrito, de sorte que parece reduzir-se a uma moda literária que abrange um número de
obras escolhidas arbitrariamente
134
. O Formalismo combatido por Brecht é a redução
dogmática da arte realista a uma forma eleita como superior. Formalista, a seu juízo, é
fazer do realismo uma questão de forma, o que equivale a esterilizá-lo. Brecht procura uma
posição sensata frente ao formal, acolhendo-o na medida em que auxilia e rejeitando-o na
medida em que impede o alcance dos fundamentos da causalidade social. Ao exigir que a
131
Idem. Ibidem. p. 150-156.
132
SCHMITT, Hans-Jürgen. Zum Problem des Funktionsübergangs von Literaturtheorie in kulturpolitische
Strategie. In: SCHMITT, Hans-Jürgen (Org.). Der Streit mit Georg Lukács. 1978. p. 232.
133
BRECHT, Bertolt. Die Essays von Georg Lukács. In: HECHT, Werner. (Org.). Bertolt Brecht – Über
Realismus. 1971. p. 44.
134
BRECHT, Bertolt. Über Realismus. In: Idem. Ibidem. p. 65.
arte seja voltada para o povo, o dramaturgo postula liberdade para buscar a forma própria
em vez da obrigação de empregar formas pré-estabelecidas
135
.
Pensando em critérios que definam o Realismo socialista, Brecht concebe a arte
realista como arte combativa, que reage contra as falsas visões da realidade e contra os
impulsos que barram os interesses reais da humanidade, possibilitando visões corretas e
reforçando impulsos produtivos. Artista realista é, portanto, aquele que representa os
antagonismos no homem e em suas relações, bem como mostra as condições sob as quais
tais conflitos se desenvolvem
136
. O lema do Realismo socialista significa que o escritor,
aonde quer que se lute pela construção do Socialismo, colabora com essa luta, e para esse
fim pesquisa e representa a realidade. Critérios estéticos e formais desempenham um papel
significativo na construção do Socialismo, pois a essa construção pertencem o cultivo da
arte e o desenvolvimento da produção artística. É neste ponto que emerge a questão da
herança cultural e artística. A arte deve integrar a história. Assim, para que a estética
cumpra sua função, postula Brecht
137
, os críticos devem desenvolvê-la com base no estudo
das condições atuais de luta social. Na acepção de Brecht
138
, a escrita realista diferencia-se
da não realista, pelo fato de que se a confronta com a realidade mesma de que trata, pois se
considerar-se a diversidade dos modos através dos quais a realidade pode ser descrita,
percebe-se que o realismo não é uma questão de forma. A respeito da forma literária, deve-
se sondar a realidade e não a estética, nem mesmo a do realismo. Ao afirmar que a verdade
pode ser dita ou silenciada de vários modos e postular que se deduza a estética, assim
como os costumes, das necessidades de luta, Brecht toca na ligação entre o fator estético e
o ideológico.
2.2 Ideologia, poder e resistência
A questão do Realismo socialista leva a considerar neste trabalho que a teoria do
realismo elaborada por Georg Lukács possui elementos que a tornam passível de ser
incorporada à ideologia do poder dominante, a fim de defender seus interesses. Os aludidos
problemas serão examinados com base em estudos apresentados por Pedro Lyra e Terry
Eagleton. Busca-se, assim, compreender de que modo se estrutura a noção de ideologia,
135
BRECHT, Bertolt. Die Expressionismusdebatte. In: Idem. Ibidem. p. 39.
136
BRECHT, Bertolt. Über sozialistischen Realismus. In: Idem. Ibidem. p. 165.
137
BRECHT, Bertolt. Über sozialistischen Realismus. In: Idem. Ibidem. p. 133-134.
138
BRECHT, Bertolt. Weise und Vielfalt der realistischen Schreibweise. In: Idem. Ibidem. p. 88-97.
bem como suas facetas e as finalidades a que serve; assim como a partir de quais elementos
se forma a concepção de ideologia no pensamento de Georg Lukács, com vistas a sondar
os princípios através dos quais sua teoria possibilita ser apropriada pelo poder dominante
no regime socialista. Por isso, a fim de entender em que base é considerada a função
politizante e o caráter de resistência da literatura, devem-se investigar as relações desta
com os domínios da ideologia e do poder. Reflete-se, portanto, sobre os elementos do
trabalho intelectual e estético que supostamente possibilitem à teoria lukácsiana ser
apropriada pelos setores dirigentes e à literatura aderir ou resistir às relações de dominação.
O foco deste trabalho recai sobre um contexto estruturado sobre a base do
socialismo real implantado pela força militar. Embora o bloco socialista esteja envolvido
na disputa internacional com o inimigo de classe, supõe-se que no interior do regime a luta
de classe esteja superada, na medida em que o sistema tenha como fundamento a
instituição do proletariado como classe dominante, i. e., a ascensão do proletariado ao
poder. O impasse a ser considerado aqui é o porquê de o proletariado continuar a ser
explorado e oprimido no seio do regime que representa a sua consciência de classe. Em
decorrência disso, depara-se aqui com um problema terminológico, teórico e histórico: se
dentro do Socialismo a burguesia foi destituída da posse do poder político e econômico e
substituída pelo proletariado, não pode haver mais luta de classe, e, por conseguinte,
devem desaparecer os termos classe dominante e classe dominada. Por quem então o
operariado é explorado e oprimido? Pelo próprio poder político, centralizado nas mãos dos
setores dirigentes, que convertem a responsabilidade de representar o proletariado em meio
de obter privilégios e conservar o poder. Além disso, trata-se de um Estado totalitário, cujo
caráter se define pela exigência de uma estrutura orgânica, de modo que todos os membros
são forçados à coparticipação, seja por meio da ideologia, seja por meio da violência. Um
tal Estado não permite, portanto, oposição ao regime, embora não haja consonância entre
os interesses do proletariado e os de seus representantes, que gravitam em torno do Partido,
devendo-se considerar o primeiro como grupo social predominantemente dominado ou
subjugado e os últimos como setor dirigente ou poder dominante. A coparticipação
apresenta-se como um problema complexo que aglutina pessoas tanto em função da
simples ilusão com o ideal humanizador e libertador do sistema, quanto aquelas que
aderem por medo da repressão; assim como aqueles que colaboram na esperança de obter
algum privilégio (die Mitträger) e aqueles que realmente tiram proveito do abuso de poder
(die Mitläufer).
A fim de servir a uma reflexão acerca dos problemas sociais do contexto
socialista, o conceito de ideologia deve ser entendido a partir de um componente
intencional, como complexo de significado a serviço do poder e da ordem estabelecida.
Além disso, toma-se como embasamento a oposição entre os sentidos positivo e negativo
do termo, considerando-se as nuances de consciência social e de componente político
apresentadas; bem como a verificação de que o emprego da ideologia é determinado por
um objetivo, o que aponta para noção de oposição de interesse, encontrada na base do
pensamento de Karl Mannheim. No que concerne às concepções de Mannheim, faz-se
necessário adaptá-las do âmbito da estrutura econômica para o conflito político, em função
de ser mormente nesse campo que, no Socialismo, a dominação e a exploração se
desenrolam. Repousando no nível do processo de produção das idéias e representações,
pode-se atribuir ao conceito de ideologia o caráter de instrumento intencionalmente
motivado empregado em função do interesse de terceiros, no caso do Socialismo, pelos
detentores do poder político. O componente ideológico é transposto para a superestrutura e
atua nos níveis social, político, jurídico, operando o apagamento da alteridade pela
identidade, o que obscurece o fato de que tais instâncias estão do lado dos poderosos.
Pode-se verificar no funcionamento do regime socialista que a alteridade e a
individualidade convertem-se em identidade através da coletivização e da massificação.
Na ótica de Pedro Lyra, o termo ideologia engloba a totalidade das concepções
culturais de um agrupamento humano, em determinada fase de seu desenvolvimento
histórico, o que envolve o ideal social. O conceito remonta à obra de Marx e define-se em
seu sentido positivo como consciência social de uma época, classe, partido, grupo ou
indivíduo, vinculada às condições concretas da existência humana como produto da
dialética entre realidade e pensamento. Em virtude do direcionamento da ideologia
marxista para o ideal político, verifica-se no mundo contemporâneo uma redução do seu
conteúdo ao componente político, caracterizando-a como um guia para a ação política,
voltada para o poder, não como conceptualização do mundo necessária à compreensão do
processo vital. A ideologia torna-se política na medida em que a luta pela vida é tomada
como essencialmente política. É também com Marx que se efetua a denúncia da ideologia
como falsa consciência, como máscara, como conjunto de falsos preceitos teóricos
destinados não a conscientizar a verdade histórica, mas a contorná-la, com vistas a
defender e justificar privilégios materiais. Com esse pressuposto, atribui-se à ideologia o
sentido negativo de instrumento manipulado por indivíduos para forçar a realidade adversa
a ajustar-se a seus interesses. A falsa consciência, como deduz Lyra a partir da obra de
Mannheim, deriva não de uma consciência errada, mas de uma atitude conscientemente
pervertida. Segundo o estudioso, o que confere à ideologia o caráter de consciência, como
desejo de compreensão da realidade, ou de deformação, como tentativa de retenção de uma
dada realidade, é o objetivo de seu emprego.
A questão do jogo de interesses é detectada em toda sociedade de classes, como
fulcro da coexistência entre pelo menos duas classes – ou setores: a dominante, que visa a
conservar a ordem vigente para manter seus privilégios, e a dominada, que visa a superar
essa ordem. Daí expressarem-se na sociedade capitalista uma pela ideologia dominante, à
qual se atribui normalmente as funções dissimuladoras do sentido negativo do termo; e a
outra pela ideologia oponente, sendo atribuídos a ela os valores de autenticidade contidos
no sentido positivo do termo. Numa tentativa de aproximação com o sistema socialista,
procura-se verificar, em conformidade com os propósitos deste trabalho, as relações de
dominação não do ponto de vista da exploração e opressão de uma classe social sobre a
outra, mas da perspectiva de um poder político central que oprime e explora o povo, que
não deixa de pertencer basicamente à classe proletária: é nos termos da opressão política
que se aplicam os temos ideologia dominante e oponente. Sem ignorar o caráter relacional
da ideologia, ressaltado por Eagleton, acredita-se que a ideologia se configura através do
predomínio dos componentes ideológicos dominantes, i. e., a serviço do poder. É neste
sentido que se deve levar em conta a observação de Pedro Lyra de que o poder transmite à
ideologia o conteúdo desumano da dominação
139
.
Devem-se ressaltar, como contraponto, as faces comprometida e criadora da
ideologia, sobre as quais o estudioso afirma que como concepção totalizadora da cultura de
uma época, a ideologia é criadora; a posição comprometida consiste na preponderância do
componente político e na sobrevalência da práxis. Enquanto ideologia oponente, a posição
comprometida revela-se criadora em seu esforço de impulsionar a história, afigurando-se
como diretriz do comportamento dos homens
140
. Conforme o autor, ao restringir-se ao
componente político, a ideologia centra-se na ação, com a finalidade de conservar ou
conquistar o poder, gerando, da parte do dominador, o risco de bloqueio, que leva à
alienação, por via da censura, da omissão de dados; e da parte do oponente, o perigo da
ortodoxia, que culmina em perda da capacidade crítica perante seu ideal, tornado obsessão,
bem como na perda dos referentes contextuais, da liberdade e da própria vida. A estratégia
do dominador, por sua vez, é a naturalização. Os defensores da ideologia dominante
139
LYRA, Pedro. Ideologia. JOBIM, José Luís. (Org.). Palavras do crítico: tendências e conceitos no
estudo de literatura. 1999. p. 162.
140
Idem. Ibidem. p. 159-162.
apresentam a sua ideologia como expressão da natureza das coisas, suprimindo-lhe a
abstração de uma forma dada de organização social; o estado humano presente como o
estado humano em si, a-histórico e imutável; seus interesses como os interesses gerais da
sociedade. Perspicazmente, Lyra resume este problema na afirmação de que “[a] alienação
arrasta os ignorantes a aceitar como verdades essas imposturas”. O que está em jogo é a
relação entre ideologia e poder, encontrada na essência do conceito de hegemonia, definido
por Terry Eagleton em seu exame da ideologia na obra de Gramsci, como “um espectro
inteiro de estratégias práticas pelas quais um poder dominante obtém o consentimento ao
seu domínio daqueles que subjuga”
141
.
A problemática e os pressupostos críticos expostos são os aspectos tidos em
mente quando se afirma que a teoria do realismo de Georg Lukács possui elementos
passíveis de ser apropriados pela ideologia: entenda-se a ideologia identificada com o
poder. Analisando a questão da ideologia na teoria do pensador húngaro, Eagleton
distingue duas vertentes das quais Lukács deriva sua concepção: o aparato conceptual
marxista da crítica do fetichismo da mercadoria e o modelo idealista fundado na
subjetividade coletiva das classes. Destarte, é ao exagerar a oposição entre esses sentidos
que o pensador opõe a burguesia, assolada pela reificação, ao proletariado, detentor da
totalidade. Em seu estudo acerca de História e consciência de classe, o crítico inglês
destaca que nesses escritos a reificação fragmenta e desloca a experiência social, de modo
que a sociedade é vista não como processo coletivo, mas como objetos ou instituições
isoladas. Lukács atribui deste modo à consciência de classe burguesa a ideologia em
sentido negativo: a incapacidade de compreender a estrutura da formação social como um
todo. Desta ótica, a consciência do proletariado, em seu pleno desenvolvimento político, ao
contrário da classe burguesa, tem a capacidade de totalizar a ordem social, o que constitui a
condição essencial para que a classe operária seja capaz de compreender e transformar suas
próprias condições. Assim, o proletariado é uma classe potencialmente universal na
medida em que carrega a emancipação potencial de toda a humanidade. Dotada de
subjetividade universal, aquilo que a classe operária conhece a partir de sua perspectiva
histórica deve ser objetivamente verdadeiro
142
. Eagleton critica na posição de Lukács o
fato de entender uma correspondência exata e monolítica entre ideologia e classe, “como se
cada classe social tivesse sua ‘visão de mundo’ peculiar, corporativa, que expressasse
diretamente suas condições materiais de existência, e a dominação ideológica consistisse
141
EAGLETON, Terry. Ideologia. 1997. p. 107.
142
Idem. Ibidem. p. 91.
em uma dessas visões de mundo impor sua marca na formação social como um todo”,
versão esta que, conforme o estudioso, “simplifica drasticamente a verdadeira
irregularidade e complexidade do ‘campo’ ideológico”
143
.
Eagleton esclarece que a crítica mais incisiva sobre a teoria da ideologia de
Lukács recai sobre o fato de transformar a teoria marxista na ideologia do proletariado,
como expressão de um sujeito de classe puro tornado essência da formação social. Daí
poder-se observar que, e esse é o impasse central da concepção lukácsiana a truncar o
realismo, ao idealizar o proletariado como sujeito, o teórico o eleva muito acima da
situação que realmente lhe corresponde, ignorando que em suas condições reais o
proletariado é uma massa de homens oprimidos, ignorantes e submissos, privado da
instrução, muito mais atingido pela reificação do que o pensador pressupõe ser a burguesia.
Lukács, como demonstra Eagleton, tenta resolver esse problema, formulando a tese de que
o proletariado pode encontrar-se em dois estados de ser: primeiramente em estado normal,
em que a consciência operária sujeita-se passivamente à reificação; alcançando então o
estado de sujeito revolucionário, capaz de injetar sua ideologia no todo social. No entanto,
o teórico não explica como se dá essa passagem do operariado para o estado
revolucionário, correndo-se o risco de converter as questões materiais atinentes à formação
social e à revolução em questões de pura consciência, de idéias, impossíveis de aplicar em
práticas e instituições
144
. O fato de conferir tamanha ênfase à consciência leva Lukács a
ignorar que o proletariado é composto de homens, com necessidades a satisfazer e
problemas a superar, num conjunto cuja complexidade não pode ser homogeneizada
idealisticamente. Ao pensar em demasia na classe proletária como sujeito da revolução, o
teórico tanto subestima o fato de que essa classe está sujeita ao bloqueio e à alienação
exercidos pelo poder dominante, quanto torna seus postulados vulneráveis à ortodoxia:
como conseqüência, o desejo de conquistar o poder suplanta as reivindicações pelos
princípios destinados a concretizar o bem do homem na sociedade. Essa falha na
elaboração teórica é índice de uma necessidade social inerente à formação do proletariado
que não pode ser superada no nível da idéia: ela exige um trabalho prático e gradual de
instrução e politização voltado para a emancipação e para a melhoria das condições de
vida.
Nesta mesma esteira, a teoria do realismo aferra-se demasiadamente à
problemática da consciência de classe e aos ideais de revolução. Ao ser empregada pelo
143
Idem. Ibidem. p. 95-96.
144
Idem. Ibidem. P. 96-98.
Partido na RDA, a teoria de Lukács é tomada pelo Estado e incorporada à ideologia
dominante. Justamente por conhecer o caráter politizante e o poder de difusão de idéias da
literatura, os setores dominantes visam a empregar a posição comprometida dessa arte na
propagação de sua própria ideologia, a fim de defender seus próprios interesses. O
Realismo socialista tenta usar da própria literatura como aparelho ideológico através do
qual possa manter a hegemonia do Estado. A literatura torna-se resistência ao reagir contra
a apropriação pelo poder e defender os valores subjetivos do homem e o ideal de uma
sociedade justa.
As obras em estudo foram produzidas no contexto de maior emprego da
repressão, sob condições sociais, políticas e culturais semelhantes: o período compreendido
entre 1961 e 1980. Um dos traços mais proeminentes dessa produção literária é a questão
da resistência, pois vários escritores, sentindo a crise social de um momento de acirrados
conflitos ideológicos, apertam os laços entre o ato de escrever e os valores sociais: a escrita
é uma forma de desnudar a grande falha do regime socialista – submeter o povo à
massificação, colocando-o em função do próprio sistema através de imposições que não
levem em conta a autonomia do indivíduo enquanto cidadão e ser humano. A tendência a
retomar elementos da tradição histórica e cultutral encerra uma
tentativa histórica que permite discutir problemas e paradoxos
contemporâneos: a relação entre o espírito e o poder, entre a moral
e o poder do Estado; a discrepância entre o progresso econômico e
o social; o impedimento da emancipação feminina da tradição
patriarcal; a alienação e a depressão social; as dúvidas acerca da
realidade e da linguagem; e a função potencialmente utópica da
linguagem e da literatura
145
.
Para Alfredo Bosi, a associação entre narrativa e resistência dá-se pela
representação dos valores na obra: a resistência pode ser expressa como tema da narrativa
ou como forma imanente do processo de escrita, e está atrelada à elaboração estética,
conforme se pode deduzir da seguinte passagem:
a arte pode esconder tudo quanto a ideologia dominante esquece,
evita ou repele. Embora possa partilhar os mesmos valores de
outros homens, também engajados na resistência a antivalores, o
145
HILZINGER, Sonja. Avantgarde ohne Hinterland. ARNOLD, Heinz Ludwig; MEYER-GOSAU, Frauke.
(Orgs.). Text + Kritik: Literatur in de DDR – Rückblicke. 1991. p. 94.
narrador trabalha a sua matéria de modo peculiar: o que lhe é
garantido pelo exercício da fantasia, da memória, das potências
expressivas e estilizadoras. Não são os valores em si que
distinguem um narrador resistente e um militante da mesma
ideologia. São os modos próprios de realizar esses valores
146
.
O conceito de ideologia, em sua duplicidade, permite tanto ser apropriado pelo
poder, se tomado como falsa consciência ou instrumento passível de ser manipulado a fim
de justificar a dominação; quanto pela resistência, com fins utópicos, se considerado em
sua função comprometida e criadora, como consciência social e concepção cultural, a
serviço da emancipação do povo.
146
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. 2002. p. 122-123.
3 SOCIALISMO REAL E UTOPIA: DISCREPÂNCIA E DESILUSÃO
3.1 Origem do ideal comunitário e do exercício do poder
A literatura produzida na RDA relaciona-se quase sempre com a vida sob o
regime socialista, identificando-se com o sistema e decidida a contribuir com seu
aperfeiçoamento, por crer que através dele se pode construir uma sociedade voltada para o
bem dos homens; mas desilude-se com o abuso de poder por parte dos setores dirigentes e
com o esmagamento social exercido sobre a massa de trabalhadores. Tendo em vista este
particular, e considerando-se que a desilusão dos autores para com o sistema se configura
em perda de utopia, julga-se necessário examinar, mesmo que sumariamente, as
concepções derivadas do marxismo e do socialismo utópico que teriam contribuído para
formar as visões de mundo, as concepções críticas, o ideal de sociedade e as utopias dos
escritores em relação ao Socialismo. Com isso, procura-se, por um lado, entender o papel
do socialismo utópico no sentido de fundamentar o ideal de renovação da sociedade tendo
por base o primado do homem; por outro, entender os fundamentos da teoria de Marx cujas
bases humanizadoras e emancipatórias amparam os ideais socialistas dos autores postos em
defesa da vida e dos interesses do povo. A discrepância entre tais ideais e o Socialismo real
leva a indagar quais fatores teriam conduzido um sistema formulado com base em idéias
legítimas a degenerar em opressão do povo e disputa pelo poder, bem como a considerar
que os pressupostos marxistas possuem um grau de ambigüidade que pode tanto sustentar a
construção de uma sociedade justa quanto promover a formação de um Estado
centralizador que domine o homem, porque seu primado é a revolução e esta visa não ao
bem do homem, mas à transformação dos bens de produção. Por outro lado não se deve
culpar um conjunto teórico tão importante para desvendar os mecanismos sociais, políticos
e econômicos quanto o de Marx, por mais falhas que possa apresentar. A opressão não está
nestas falhas, mas no emprego que os setores dirigentes venham a fazer delas.
O caráter humanista e emancipatório dos ideais socialistas de Marx é deturpado,
como informa Burns
147
, em sua apropriação pelo bolchevismo. Enquanto Marx prega que
os trabalhadores busquem realizar seus fins por meios pacíficos em caso da não
necessidade da revolução, Lênin encarece de modo radical o caráter revolucionário do
Socialismo. O comunismo dos bolcheviques desvia-se ainda do marxismo em sua
concepção de governo proletário, pois nas palavras do historiador,
[n]ada indica que Marx tivesse jamais encarado a possibilidade de
um estado totalitário de trabalhadores, tão arbitrário e opressivo
em seus métodos de governo quanto o fascismo. É verdade que
falou em ‘ditadura do proletariado’, mas entendia por essa uma
ditadura de toda a classe operária sobre os remanescentes da
burguesia. Dentro das fileiras dessa classe prevaleciam as formas
democráticas. Lênin, no entanto, instituía o ideal da ditadura de
uma elite, de uma minoria selecionada, a exercer supremacia não
apenas sobre a burguesia, mas também sobre a massa dos próprios
proletários.
148
A ditadura do proletariado, ou governo da classe operária, conforme explicita
Norberto Bobbio
149
, constitui, nos moldes da Comuna de Paris, a passagem para a
supressão de todas as classes e para uma sociedade sem classes, e tende a extinguir, isto é,
superar o Estado, como instrumento de domínio de classe. Com o Manifesto do Partido
Comunista, elaborado por Marx e Engels, nasce o socialismo moderno, sob a forma do
socialismo científico. Dentre as principais premissas da teoria marxista, Burns
150
destaca a
interpretação econômica da história, o materialismo dialético, a luta de classes, a doutrina
da mais-valia e a teoria da revolução socialista. Enquanto teoria econômica, segundo o
historiador, o socialismo opõe-se à economia clássica, podendo ser representado também
pelas idéias de Friedrich List e pela vertente do socialismo utópico de Charlie Marie
Fourier e Robert Owen. List propõe fazer do Estado o guardião da produção e da
distribuição da riqueza. Estabelece como objetivo consolidar a unidade e aumentar o poder
da nação, de modo que garantir a justiça para o indivíduo era secundário. Em seus ideais
147
BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 22. ed. 1978. p. 894.
148
Idem. Ibidem. p. 895.
149
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do
Partido Comunista. p. 140-141.
150
BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 22. ed. 1978. p. 894.
figuram o nacionalismo econômico e o coletivismo. O socialismo utópico, por sua vez,
envolve um grupo de teóricos mais voltados para a justiça social que para a formulação de
leis econômicas e de bases para a prosperidade nacional. A designação utópico, conforme
expõe Burns, “deve-se ao fato de terem apresentado programas idealistas de sociedades
cooperativistas em que todos trabalham em tarefas apropriadas e compartilham os
resultados de seus esforços comuns”
151
. Pregavam que a eliminação de uma estrutura
social que propicia a escravização possibilitaria aos homens viver em paz e harmonia; e
recomendavam a fundação de sociedades-modelo fundamentadas na propriedade coletiva e
num governo de base voluntária. Condenando o lucro, por impossibilitar ao operário a
aquisição do que produz, Owen propunha a organização da sociedade em comunidades
cooperativas em que o trabalho tivesse a remuneração justa
152
.
No terceiro capítulo do Manifesto do Partido Comunista, no qual Marx e
Engels esboçam o perfil das modalidades de comunismo existentes na época, discorrem a
respeito do socialismo e do comunismo crítico-utópicos, cuja base são os sistemas
formulados por Saint-Simon, Fourier e Owen. Tais sistemas surgem, afirmam os teóricos,
com as primeiras tentativas do proletariado de fazer prevalecer seu interesse de classe, que
falharam em decorrência tanto da forma pouco desenvolvida e pouco organizada do
proletariado, quanto da ausência de condições materiais para a sua emancipação, criadas no
interior da própria sociedade burguesa
153
.
Os teóricos acusam os referidos sistemas de consistirem em uma literatura
reacionária na medida em que prega um igualitarismo grosseiro, e de buscarem fora da
realidade social um locus em que seus ideais possam realizar-se. De acordo com esse ponto
de vista, embora tais sistemas reconheçam os antagonismos de classe, bem como os
elementos dissolventes contidos na classe dominante, eles ignoram a atividade histórica
autônoma do proletariado, privando-o de um movimento político próprio. A classe operária
é antes concebida como aquela que mais sofre. Assim, o socialismo utópico não partiria de
uma realidade imediata, mas visaria a criar condições de emancipação através de leis
sociais; visaria a melhorar a sociedade em todos os setores, motivo pelo qual não defende
apenas os interesses da classe operária, mas uma harmonia que englobe inclusive a classe
dominante
154
. À atividade social, o socialismo utópico substitui, segundo os filósofos
alemães, sua atividade pessoal inventiva; às condições históricas de emancipação,
151
Idem. Ibidem. p. 698-699.
152
Idem. Ibidem. p. 698-699.
153
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. 2003. p. 76-77.
154
Idem. Ibidem. p. 77.
condições fantásticas; à organização gradual do proletariado, a organização de uma
sociedade pré-construída. O socialismo utópico rejeita, afirmam, a ação política e
revolucionária, pois almeja a alcançar sua meta simplesmente pela força do exemplo.
Constitui a descrição idealista de uma sociedade futura e corresponde aos primeiros
impulsos intuitivos do proletariado rumo à transformação da sociedade. Os escritos
utópico-socialistas contêm, no entanto, conforme mesmo Marx e Engels reconhecem,
elementos críticos que minam as bases da sociedade existente, diga-se burguesa, e
fornecem material para o esclarecimento dos operários. A abolição do contraste entre
cidade e campo, da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da
harmonia social, a conversão do Estado em simples órgão para administrar a produção são
considerados pelos pensadores como proposições positivas que exprimem o
desaparecimento do antagonismo de classe.
Apesar de reconhecerem que sob vários aspectos os sistemas aludidos foram
revolucionários, ao caracterizá-los como utópicos, os autores do manifesto negam-lhe o
fundamento na realidade histórica. Portanto, para eles, à proporção que a luta de classe se
desenvolve e toma forma, a utopia perde a justificação teórica e o valor prático. Nessa
perspectiva, por não fundamentar a luta de classe, nos estágios superiores por ela regidos,
tal modalidade de socialismo acabou sendo tomada como reacionária. Tendo em vista que,
nesses estágios posteriores, sobretudo durante a revolução e a vigência do Socialismo real,
o marxismo propiciou não apenas elementos para a emancipação do homem na sociedade,
mas também elementos para a criação de um estado autoritário e opressor, deve-se
examinar o papel do socialismo utópico ao lado do marxismo para o desenrolar desses
estágios; no interesse específico deste trabalho, para a formação social da RDA e para os
ideais e as utopias que guiaram a atuação dos escritores em prol dessa sociedade.
O referido assunto será abordado a partir do estudo elaborado por Martin Buber,
que pensa a questão tendo em vista os postulados de renovação da sociedade. O conceito
de socialismo utópico é extraído do terceiro capítulo do Manifesto, no qual são delimitadas
as diferenças entre o Partido Comunista e as tendências afins. Utopistas são aqueles cujas
idéias precedem o desenvolvimento decisivo da indústria, do proletariado e a luta de
classe, não podendo levar esses fatores em consideração. Ao chamar os teóricos
anteriormente mencionados de utopistas, Marx os acusa de querer criar um mundo melhor
com base em condições imaginárias, devido à falta de compreensão dos fatos da realidade
social
155
. Por outro lado pode-se objetar que os socialistas utópicos têm a virtude de visar à
reorganização da sociedade a partir das condições atuais, ao passo que Marx visa a atingi-
la após a extinção da ditadura do proletariado. Destarte, o marxismo pode conter o perigo
de, como ocorreu no Socialismo real, em vez de acarretar a dissolução da ditadura em uma
sociedade harmônica, propiciar sua conversão em uma ditadura individual; além do que, o
perigo de considerar-se a modificação do sistema em primeiro lugar, relegando a
reestruturação da sociedade e solapando o primado da autonomia
156
.
Conforme o autor, Marx aproxima-se do socialismo utópico pela “vontade de
substituir o princípio político pelo social” e separa-se deste pelo “ponto de vista segundo o
qual essa substituição só pode efetuar-se através dos [próprios] meios políticos”
157
.
Interpretando esse termo de separação exposto por Buber, pode-se concluir que malgrado a
vontade de Marx, a apropriação de seus postulados pode levar à mera substituição de um
sistema de poder por outro, com o argumento de defender a revolução e pelo fato de não se
ultrapassar essa fase, ou seja, ao cabo o proletariado não chega ao poder, sendo ludibriado
por uma nova classe dirigente.
Essa problemática será retomada adiante. Expõe-se por ora, os elementos que, na
acepção de Buber
158
, formam a idéia contida na gênese do socialismo utópico. As utopias
são quadros ou imagens de algo que é imaginário, uma fantasia que se centraliza
firmemente em um elemento primordial e originário, elemento este que consiste em um
desejo do “dever ser”, do “vir a ser” ou do “devenir”, essencial à concepção de história de
Gramsci. No desejo utópico predomina o anseio pelo que é justo, elemento manifestado na
visão filosófica como idéia, cuja realização não se dá no indivíduo, mas na comunidade
humana. A visão do que deve ser está ligada à atitude crítica frente ao modo de ser do
mundo humano presente.
Por sua essência, a utopia circunscreve-se ao âmbito da sociedade, embora inclua
em sua imagem uma transformação do homem. Utopia significa desenvolvimento das
possibilidades latentes na comunidade humana, com vistas à concretização de uma ordem
justa. A utopia tem sua possibilidade de realização na associação de sua imagem às forças
subjacentes na realidade. Com a era da técnica e dos antagonismos sociais, busca-se na
utopia a solução para as contradições da sociedade. Na medida em que objetiva a esboçar
os planos para a edificação da sociedade, a utopia torna-se um sistema com a força do
155
BUBER, Martin. O socialismo utópico. 1971. p. 10.
156
Idem. Ibidem. p. 105.
157
Idem. Ibidem. p. 107.
158
Idem. Ibidem. p. 17-26.
messianismo: todo socialismo constitui-se de um componente utópico ao iniciar o
entrelaçamento entre doutrina e ação, ou seja, a busca de elementos humanos para a
realização de uma ordem ideal.
Embora refira-se à utopia de modo pejorativo, o próprio pensamento de Marx não
lhe é isento, principalmente ao anunciar a transformação que se sucederá à revolução
social, a extinção do Estado e a passagem da humanidade do reino da necessidade para o
da liberdade. Conforme Buber, o que a crítica marxista chama de utópico nas doutrinas não
marxistas aponta para dois pontos distintos. Um é em essência uma ficção esquemática,
encontrada em Fourier, uma elaboração que deriva uma ordem social de uma teoria da
natureza humana: os problemas admitem uma solução na esquematização mecanicista. O
outro é um planejamento orgânico baseado no objetivo de, por meio do conhecimento do
homem e das condições atuais, transformá-los e superar as contradições de ordem social. É
representado pelos ideais de Proudhon e de Kropotkin.
A meta final desta segunda modalidade e a do marxismo não diferem em
essência. Como meio, entretanto, o salto marxista da revolução para a transformação
futura, para a liberdade, apóia-se em um centralismo mantido por via da coação. O
socialismo utópico busca a criação de condições possíveis e necessárias à transformação
futura através da revolução (ou reestruturação) contínua da realidade imediata.
Examinando a contribuição de Marx no sentido da renovação social, Buber
centra-se na afirmação de que a substituição da classe burguesa pela classe operária
extinguirá as classes, o antagonismo e o ‘poder político propriamente dito’, entendido
como o poder político no sentido de expressão e resultado do domínio de classes. Isso
suscita a questão do ‘poder político impropriamente dito’. De acordo com o autor, ao
deixar de traçar uma linha definida de demarcação entre esses dois tipos de poder, Marx
“abre a porta a uma modalidade de princípio político que, ao seu ver, [...] não pode existir:
uma modalidade que não é expressão e resultado do domínio de classes, mas, [...] de
ambições e lutas pelo poder, entre grupos e indivíduos que não podem ser definidos como
classe”
159
.
Ter dado demasiada importância à luta política revolucionária e ter atribuído
como tarefa essencial à revolução a emancipação não dos homens, mas das forças
produtivas
160
, consistem nos dois pecados da teoria de Marx. No primeiro caso, as
afirmações do teórico dotam a revolução de um caráter autoritário que pode ter na prática
159
Idem. Ibidem. p. 107-108.
160
WEIL, Simone. Opressão e liberdade. 2001. p. 61.
um emprego ambíguo. A ambigüidade desse autoritarismo é desvendada por Buber
161
nos
seguintes termos:
Se isso significa que a luta revolucionária, como tal, deve ser
efetuada de baixo de ordens e sob uma disciplina severa, estamos
de acordo; mas, se significa que, na época revolucionária [...] a
totalidade da população deverá ser dominada, ilimitadamente, por
uma vontade autoritária em todos os domínios do pensamento e da
vida, é incompreensível como, dessa fase, possa haver um
caminho evolutivo conducente ao socialismo.
No segundo caso, conforme expõe Simone Weil, Marx justifica sua posição na
crença de que o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica deve aliviar o homem
do peso da necessidade material e, por conseguinte, do peso da submissão social. É nessa
concepção, prossegue a autora, que se funda a posição dos bolcheviques, bem como seu
desprezo pelas idéias da democracia operária. Sua impotência para realizar a democracia
não os perturba tampouco pelo fato de crerem que a ação social deve consistir em
desenvolver as forças produtivas e que seu progresso leva a humanidade a avançar rumo à
libertação, mesmo que à custa de opressão provisória
162
. A teoria de Marx deixa pressupor
que em todo conflito entre ambas, as forças produtivas suplantam as instituições sociais.
De acordo com a orientação da estudiosa, Marx coloca como verdade evidente, porém sem
demonstração, que tais forças possuem um desenvolvimento ilimitado, cuja explicitação
tem origem na crença hegeliana na tendência do espírito à perfeição. A idolatria dessas
instâncias é tratada por Weil como “religião materialista”, pois confere a elas a função de
uma religião para a concepção de história elaborada por Marx: entregar o homem em
sacrifício em nome de um objetivo. “Essa religião das forças produtivas”, escreve a
estudiosa francesa, “em nome da qual gerações de empresários esmagaram as massas
trabalhadoras [...] constitui igualmente um fator de opressão no interior do movimento
socialista”. O socialismo entrega o homem em nome do progresso histórico
163
.
Ser revolucionário é, para a autora, agir no sentido de diminuir a opressão dos
homens e o aviltamento do trabalho, e recusar as idéias que disfarçam a humilhação
sistemática da maioria. Assim, o espírito revolucionário é animado pela glorificação do
trabalho produtivo, entendido como atividade suprema do homem, e pela afirmação de que
161
BUBER, Martin. O socialismo utópico. 1971. p. 113-114.
162
WEIL, Simone. Opressão e liberdade. 2001. p. 61-62.
163
Idem. Ibidem. p. 63-64.
apenas uma sociedade onde o trabalho ponha em ação as faculdades do homem, pode
realizar a plenitude da grandeza humana. Weil critica Marx pelo fato de ter abandonado
essa concepção, encontrada em seus escritos de juventude, e com isso ter alterado o
espírito revolucionário: ao pretender dar um caráter científico a sua concepção de
socialismo, acaba por transmitir à massa dos operários a ilusão de que são os detentores da
ciência, com o que acreditam possuir uma fonte ilimitada de poder. Conforme reflete a
autora, isso é falso no sentido de que os comunistas e socialistas não detêm um
conhecimento dos mecanismos sociais mais preciso do que o têm os burgueses, por
exemplo. Mesmo que possuíssem tal superioridade, não disporiam dos meios necessários à
ação, pois a ciência, embora permita usá-los, não pode fornecer os recursos da técnica. É
um erro incumbir os operários de salvar a história e prometer a eles a glória do poder
quando se trata de lutar pela própria libertação
164
.
O problema em questão, colocado como fato fundamental da organização social, é a
submissão da maioria à minoria. Numa tentativa de esclarecer os fatores que a propiciam, a
autora considera um ponto equívoco do marxismo o fato de estabelecer a economia como
chave do processo social, pois em sua relação com o indivíduo a sociedade não pode ser
definida pelos modos de produção. As condições de produção devem atender às
necessidades vitais dos homens, logo, não podem fundamentar os fenômenos de comando
e obediência. Os fenômenos e mecanismos sociais são explicados não pela noção de
necessidade, mas pela de força
165
.
O ideal revolucionário, nos termos de Weil, funciona como limite teórico das
transformações sociais realizáveis e tem o sentido de abolição da opressão social. A
opressão ocorre quando as regras e os limites impostos aos indivíduos pela sociedade
provocarem uma separação entre os que exercem e os que sofrem o constrangimento
social, de modo que a pressão dos que comandam sobre os que executam os leva ao
esmagamento físico e moral
166
.
Ao refletir a respeito da opressão, a estudiosa procura desvendar seus
mecanismos e as causas em virtude das quais ela surge, sondando a relação desses
elementos com o regime de produção. A opressão foi vista durante vários séculos como
usurpação. Ao analisar o fracasso das formas de oposição durante a Revolução Francesa,
Marx formula a concepção de opressão como órgão de uma função social, qual seja, a
164
Idem. Ibidem. p. 190-192.
165
Idem. Ibidem. p. 175-177.
166
Idem. Ibidem. p. 76-77.
função de desenvolver as forças produtivas, devido ao grau de esforços e privações que
exige. Assim, as causas da opressão residem para o teórico nas condições objetivas da
organização social. Weil destaca a concepção de Marx e Engels segundo a qual a opressão
se estabelece quando os progressos da produção tenham suscitado uma divisão do trabalho
bastante adiantada para que a troca, o comando militar e o governo constituam funções
distintas; uma vez estabelecida, ela provoca o desenvolvimento das forças produtivas bem
como sua própria transformação é determinada por esse desenvolvimento
167
.
Weil afirma que o referido esquema não esclarece o mecanismo da forma
opressiva, questionando de um lado a idéia de que a divisão do trabalho se torne opressão.
Deve-se concordar que em sua função autêntica de servir à satisfação das necessidades e à
redução das dificuldades e dos esforços do homem a divisão do trabalho possui caráter
emancipatório. Porém, considerando-se o modo como a emprega o Socialismo real, como
um instrumento de dominação da maioria pela minoria, ela adquire um grau de preconceito
e ideologia, e gera formas de desigualdade que a tornam sim uma instância opressora.
Deste modo, a opressão pode resultar das condições objetivas da organização social
sempre que, ao invés de empregado como fim de benefício do indivíduo e da comunidade,
o desenvolvimento da produção seja colocado a serviço do poder. Importa considerar a
possibilidade – negligenciada pelos teóricos – de que a opressão e a divisão do trabalho
surjam e tomem forma em qualquer regime que empregue a economia como lei motora da
organização e da transformação sociais. A esse respeito, a história comprova que, embora
por outros meios, mecanismos, princípios e causas, o Socialismo real não dispôs de menos
opressão e divisão do trabalho do que o Capitalismo. No que concerne aos problemas
verificados no seio do regime socialista, o pressuposto em questão não explica, e aqui em
concordância com a filósofa francesa, por que os oprimidos jamais conseguiram fundar
uma sociedade não opressiva nem por que vias uma forma de opressão se substitui a
outra
168
. No entanto, é mister reconhecer que as reflexões de Marx acerca da divisão do
trabalho e suas implicações, desconsiderado o exagero com que o teórico a atribuiu ao
capitalismo, são prenhes de valor emancipatório.
Se a autora argumenta por um lado que em sua generalidade o sistema de Marx é
falho, no que concerne ao problema da opressão, ao esboçar os princípios do mecanismo
social, ela recorre justamente às análises do capitalismo empreendidas pelo teórico, pois
“acreditando limitar-se a caracterizar um regime, ele [...] percebeu [...] a natureza oculta da
167
Idem. Ibidem. p. 77-78.
168
Idem. Ibidem. p. 78.
própria opressão”
169
. Neste sentido, as forças de produção não determinam a opressão.
Contudo, o grau de desenvolvimento que atestam constitui um índice do grau de
complexidade das organizações sociais, complexidade esta que garante os meios para
assegurar o emprego da opressão, pois implica um maior domínio sobre os recursos
técnicos. O elemento opressivo decorre da força no âmbito do Estado e, no âmbito da
sociedade, das condições objetivas de vida. Neste último, manifesta-se através da
existência de privilégios, caso em que se pode observar a influência da divisão do trabalho
e da especialização; e da luta pelo poder, na qual o poderoso trava permanente conflito
contra aqueles que domina e contra seus rivais. Entram em jogo as relações entre os
homens. Nos regimes opressivos, o poder reage sobre as condições materiais que fixam
objetivamente seus limites; sua possibilidade reside no fato de poder estender suas bases
somente até determinado ponto; o fato de ver-se obrigado a ultrapassar os limites no
interior dos quais pode exercer-se efetivamente é a contradição que o leva a esgotar seus
próprios recursos: é a contradição interna do próprio regime
170
. Desse modo, se o homem
primitivo é escravo da natureza, o homem moderno está sujeito à dominação da sociedade,
pois tanto é privado do proveito do trabalho quanto sofre imediatamente as dores e os
perigos a ele ligados. O nível elevado da produção na modernidade implica a coordenação
dos trabalhos, ou seja, a cooperação deve ser tal que todos os esforços individuais formem
um trabalho coletivo. Este coletivo nada tem a ver com os as metas e os ideais de Marx e
dos socialistas utópicos. Ele é garantido pela opressão social, por meio da qual o homem
que comanda coordena os esforços dos que a ele se subordinam
171
.
Assim como grande parte de sua teoria, também a teoria do Estado de Marx pode
ser apropriada de modo ambíguo, apontando para um sentido humanista e uma força
organizatória ou derivar em ortodoxia e conduzir ao sacrifício do homem pelo bem da luta
pela estrutura, pelo sistema e pelo poder, substituindo o primado do homem pelo ideal da
revolução. Para compreender como Marx entende o Estado, é preciso levar em conta o
modo como o teórico o relaciona com a estrutura da sociedade, bem como as intenções de
mudança contidas nos preceitos norteadores do projeto dos comunistas. Segundo definição
de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, os comunistas representam os
interesses comuns do conjunto do proletariado. Constituem na prática o setor mais resoluto
dos partidos operários; na teoria, sustentam-se na compreensão das condições, do
andamento e dos resultados gerais do movimento proletário; norteiam-se pelo mesmo
169
Idem. Ibidem. p. 82.
170
Idem. Ibidem. p. 95-98.
171
Idem. Ibidem. p. 101-107.
objetivo que orienta os demais partidos proletários: constituir o proletariado em classe,
derrubar a dominação da burguesia, levar o proletariado à conquista do poder político. O
comunismo carcteriza-se não pela abolição das relações de propriedade em geral, mas das
relações burguesas de propriedade, que expressam o modo de produção e de apropriação
de produtos baseado em antagonismos de classes e na exploração
172
.
A propriedade burguesa aqui referida move-se pelo capital, entendido como um
tipo de propriedade resultante da exploração do trabalho assalariado. Tal particular forma
um antagonismo em que o capital é uma potência não pessoal, mas social, vale dizer, um
produto coletivo passível de ser movido unicamente pela atividade comum de membros da
sociedade; o trabalho assalariado envolve a soma dos meios de subsistência necessários à
vida do operário. A recepção dos produtos do trabalho dá-se por uma apropriação pessoal.
Esta possui um caráter miserável que submete o operário ao capital e à classe dominante.
Neste sentido, comparando as sociedades burguesas e comunistas, os teóricos afirmam que
na primeira o trabalho vivo é um meio para aumentar o trabalho acumulado, ao passo que
na segunda, o trabalho acumulado deve ampliar, enriquecer e promover o processo de vida
do operário
173
.
A propriedade burguesa assenta-se na conversão do trabalho em capital, isto é,
numa potência social capaz de ser monopolizada, e deve, portanto, no dizer dos autores, ser
abolida. Nessa perspectiva, pregam que “[o] comunismo não priva ninguém do poder de se
apropriar dos produtos sociais; o que faz é eliminar o poder de subjugar o trabalho alheio
por meio dessa apropriação”
174
. A visão aí contida, por um lado, emancipa o homem
subjugado por meio da valorização e libertação de seu trabalho das condições a que está
submetido, pois através dessa subversão das relações de produção atingem-se as próprias
formas de exploração; por outro, relega o próprio homem ao eleger o trabalho como sujeito
do problema.
As concepções que norteiam o manifesto substituem às verdades eternas os
antagonismos de classe como força motora da história. A elevação do proletariado à classe
dominante e a conquista da democracia formam o primeiro estágio da revolução. O
proletariado organizado como classe dominante constitui o Estado, que deve centralizar os
instrumentos de produção. Tomar o capital à burguesia e aumentar as forças produtivas são
finalidades estabelecidas para a revolução; os meios para a sua realização são a intervenção
172
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 2003.p. 59-60.
173
Idem. Ibidem. p. 60-61.
174
Idem. Ibidem. p. 62.
despótica no direito de propriedade e nas relações de produção
175
. Daí, pode-se depreender
que a própria teoria de Marx permite ser empregada em nome de instâncias que levam a
dominar e sacrificar o homem; por outro lado, e esta é sua grande riqueza, ela tem a força
de desvendar mecanismos das relações entre os homens, bem como permite ser revista e
expandida por homens de bom senso, com vistas à defesa dos direitos, do bem e da
liberdade da humanidade. A duplicidade de enunciados como o seguinte:
Quando as diferenças de classe desaparecerem no curso do
desenvolvimento e toda a produção concentrar-se nas mãos dos
indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter
político. O poder político [...] é o poder organizado de uma classe
para a opressão da outra. Se na luta contra a burguesia o
proletariado é forçado a organizar-se como classe, se mediante
uma revolução torna-se a classe dominante e [...] suprime
violentamente as antigas relações de produção, [...] suprime
também [...] as condições de existência dos antagonismos de
classe, as classes em geral e, com isso, sua própria dominação de
classe. [...] Em lugar da antiga sociedade burguesa [...] surge uma
associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a
condição para o livre desenvolvimento de todos
176
,
resulta tanto no defeito de permitir a fundação de um poder centralizado que aliene e
explore as massas não em nome do lucro privado mas em nome do aumento da produção,
quanto no trunfo de poder combatê-lo mediante a atividade crítica e a união entre
intelectuais e trabalhadores pela defesa de uma sociedade construída sobre a liberdade e a
satisfação das condições de vida dos seres humanos. São problemas dessa natureza, que
culminam na formação de um Estado a partir da deturpação de princípios marxistas, que
levam os intelectuais a empregar as virtudes dos preceitos marxistas na luta junto ao povo
na RDA.
Conforme explicação encontrada no Dicionário de Política, organizado por
Norberto Bobbio, a tradição da filosofia política moderna, incluindo Hobbes, Locke,
Rousseau, Kant e Hegel, tende a ver na sociedade pré-estatal uma subestrutura destinada a
ser absorvida na estrutura do Estado e fadada a desaparecer em decorrência da formação
deste, de modo que somente nele o homem pode conduzir uma vida racional. Marx, pelo
contrário, entende o Estado como “o conjunto das instituições políticas onde se concentra a
máxima força imponível e disponível numa determinada sociedade” e o considera como
175
Idem. Ibidem. p. 65-66.
176
Ide. Ibidem. p. 67.
“uma superestrutura em relação à sociedade pré-estatal, [...] onde se formam as relações
materiais de existência”
177
. Este é que deve desaparecer na sociedade sem classes. Para
Marx, não é o Estado que mantém a coesão da sociedade civil, mas a vida civil que une o
Estado. Este, pelo potencial repressivo que detém, é tido pelo teórico como o
prolongamento do Estado de natureza no Estado histórico real da humanidade, o que
pressupõe o grau de violência que lhe é inerente. Neste sentido, tal instância é definida
pelo pensador como “violência concentrada e organizada da sociedade”. O Estado é criado
sobre a base da vida material do indivíduo, do seu modo de produção e da forma de suas
relações, e não o contrário.
Amparado nas contribuições arroladas, pode-se entender que na perspectiva de
Marx, o Estado está ligado ao poder político e jurídico e serve aos interesses da classe
dominante, cabendo-lhe, portanto, a designação expressa no Manifesto de “poder
organizado de uma classe para oprimir uma outra”
178
. A dependência do Estado em relação
à sociedade civil, no dizer de Bobbio, dá-se no sentido de que esta é o lugar onde as classes
sociais se formam e seus antagonismos se revelam, ao passo que aquele consiste no
conjunto de aparelhos determinados pelo aparelho repressivo, cuja função é impedir que o
antagonismo se torne luta desenfreada, reforçando os interesses e o domínio da classe
dominante. O que Marx percebe aí é a oposição do Estado para com o povo, para com a
maioria dos homens: este Estado revela-se incompatível com a proposta marxista de
proletariado organizado. Mesmo com o advento da revolução, o Estado mostra-se como o
próprio setor dominante que oprime a classe operária.
A teoria de Marx é ambígua no sentido de que, por um lado apresenta elementos
que desvendam e se opõem ao caráter opressivo das ordens social, política e econômica; e,
por outro, acaba por justificar que impere o princípio de poder na realização concreta da
prática na vida e na história. Destarte, se Marx entendeu o papel da força no Estado, a idéia
de renovação interna da sociedade não encontrou lugar favorável em suas doutrinas, de
modo que se prioriza o elemento centralista da política revolucionária, que suplanta o
elemento descentralizador implicado pela construção de uma nova sociedade. De fato, a
idéia do socialismo salienta a necessidade de uma nova estrutura social cuja unidade é
garantida pelo trabalho e pela vida comuns. Porém, como afirma Buber, nem Marx nem
Lênin inferem daí uma norma unitária para a ação
179
. Com isso, confere-se primazia ao
177
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do
Partido Comunista. p. 135.
178
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. p. 135.
179
BUBER, Martin. O socialismo utópico. 1971. p. 125-126.
Estado, a uma elite dirigente, sobre a sociedade de homens, onde a vida prima pela
satisfação das necessidades e o desejo de liberdade. Não que Marx não reivindique a
substituição do princípio político pelo social, mas esse anseio é contradito por sua própria
concepção de centro absoluto da doutrina e da ação, que rejeita outras modalidades de
socialismo. A atividade organizadora dentro do regime socialista não chega a realizar-se,
pois Lênin e Stalin, que configuram o modelo do regime implantado posteriormente na
RDA, apropriam-se da aludida concepção e implantam um regime em que o princípio do
poder político impera, e um Estado repressor domina a sociedade. Como chefes de Estado,
a estratégia empregada por Lênin e Stalin era, mantendo o curso da revolução, conservar o
poder dessa instituição. Buber explica que isso se baseia na “doutrina da extinção do
Estado após a revolução”, elaborada por Engels a partir de declarações de Marx de que o
Estado desaparecerá concomitantemente com a tomada dos meios de produção pelo
proletariado. Conforme esclarece Buber, Lênin toma de Engels a concepção de Estado
como ‘poder especial de repressão’ indispensável para a repressão da burguesia, como
ditadura do proletariado, i.e., como organização centralizada de seu poder. Se a resposta
para o problema do que sucederá a máquina estatal é fornecida pela Comuna de Paris,
Buber afirma que Marx e Engels não possuem a linha conceptual tendente à
descentralização, “a imagem de uma imagem descentralizada, ‘desestatizada’” que anima
os revolucionários de 1871
180
.
Por outro lado, ao conceber o Estado como proletariado organizado, Marx parece
ter em vista mais um princípio social de autonomia e união do que um princípio político de
coação. Se assim for, o componente verdadeiramente nocivo encontrado na realização do
Socialismo enquanto regime reside não nas intenções de Marx, mas nas interpretações que
Lênin, Stalin e outros fizeram de sua teoria. Lênin afirma o direito de reprimir do Estado
ao colocá-lo como termo de uma dialética cujo termo oposto é a liberdade. Com isso, deve-
se examinar a vida prática do homem para saber quanto de Estado – entenda-se coação –
ele necessita e quanto de liberdade se lhe pode conceder
181
. Afirmar que essa formulação
contém um exagero ideológico que passa para as mãos do dominador o direito de decidir
não é mais que dizer o óbvio.
Buber, pensando no ponto de vista da realidade humana, propõe despolitizar, evitar
que degenerem em acumulação de poder, as forças diretivas, pois a fim de manter-se
organizada uma sociedade precisa de direção: direção, não domínio. Ocorre que no regime
180
Idem. Ibidem. p. 130.
181
Idem. Ibidem. p. 131.
socialista o princípio de poder político não cedeu lugar ao princípio de poder social, de
modo que o partido, órgão dirigente do Estado, obriga todos a conformar-se com a vontade
central, marcando todos com o poder político, os que a ele se incorporam e os que lhe
resistem.
Se nas formações sociais antigas sociedade e Estado mantinham por assim dizer
uma relação de complementaridade, nas formações modernas o princípio denominado por
Buber
182
de político centralista subjuga a chamada sociedade descentralista. O autor
explica que, no primeiro caso, a comunidade humana desenvolve-se sobre as bases da
autonomia funcional, do reconhecimento mútuo e da mútua responsabilidade, seja
individual, seja coletiva. Tal modalidade de agrupamento não excluiu a formação de
centros de poder diversos, que organizaram e asseguraram a ordem e a segurança comuns.
No entanto, a esfera política strictu sensu, o Estado com poder policial e burocracia,
permaneceu como uma sociedade organizada constituída de diversas sociedades, baseada
na colaboração mútua entre seus membros. A pessoa humana sentia pertencer e afirmar-se
nas comunidades e associações que formavam a grande sociedade. No segundo caso, o
Estado abandona o papel de servir ao bem comum da sociedade e afirma-se como entidade
com fim em si mesma, sustentando-se no exercício do poder sobre a sociedade. Buber
considera como aspecto decisivo a esse respeito não o fato de o Estado haver debilitado e
reprimido as federações livres, mas o fato de o princípio político, com seu cunho
centralista, ter penetrado nas federações, transformando sua estrutura e politizando a
própria sociedade. Em outros termos, a sociedade se acomoda ao Estado, porque em
decorrência do desenvolvimento da economia moderna e da disputa pelo mercado, os
antagonismos entre os Estados foram substituídos por antagonismos entre as próprias
sociedades
183
.
Paralelo a esse imperar do princípio do poder centralizado e da organização
completa das forças, desenrola-se a união do indivíduo ao coletivo. Isso implica privá-lo da
responsabilidade pessoal. O homem perde sua autonomia, convertendo-se de membro de
uma comunidade em peça do sistema coletivo
184
. Somente através do Socialismo, afirma o
pensador alemão, é possível alcançar o “empreendimento em comum por parte da
humanidade”. Ele adverte para a ambigüidade dos conceitos com que se pensa e põe em
prática o Socialismo, de modo que a palavra coletividade, por exemplo, pode implicar a
demasiada entrega do povo à representação e a acumulação ilimitada do poder central. Tal
182
Idem. Ibidem. p. 176.
183
Idem. Ibidem. p. 176.
184
Idem. Ibidem. p. 176-177.
fenômeno leva a um desvio em relação ao que o sociólogo propõe ser a comunidade
adequada: aquela que se manifesta, sobretudo, “na comum manipulação ativa do
coletivo”
185
.
A partir da leitura do capítulo XII do livro de Buber, pode-se inferir que um
grande impasse tanto para a sociologia quanto para a formação social em geral é o fato de
se confundir o princípio social com o político. Acarretando a indistinção entre a sociedade,
que envolve a vinculação e a associação entre os homens, cujos papéis gravitam no âmbito
da administração dos bens econômicos e culturais; e o Estado, que, pautado no poder,
institui uma ordem de domínio e subordinação, centralizado por uma classe dominante
munida dos aparatos jurídico, burocrático e militar. O sociólogo afirma que a acepção
aristotélica, por exemplo, designa o Estado como formado pela categoria do social. A
noção de Estado torna-se dessa forma idêntica a que Buber denomina sociedade, i. e., “a
unidade de todas as diferentes sociedades, no âmbito de uma determinada totalidade de um
povo, [com o que] é vedado o acesso a uma distinção e separação rigorosas e conseqüentes
entre o princípio político e social”
186
. Há que se considerar que a aludida acepção, exclusa
a acusação feita por Buber de confundir dois princípios, pode conter o germe de uma base
social ideal, na qual o Estado seja não um princípio coercitivo antagônico à sociedade, mas
a própria totalidade social de um povo.
Com a Revolução Francesa, elimina-se o direito de coalizão no interior do Estado.
As tentativas de confrontar a sociedade e o Estado tornam-se possíveis com o surgimento
da sociedade burguesa. Nos projetos de Saint-Simon, a sociedade compreende a produção
econômica e cultural e baseia-se na administração e na organização, enquanto que o Estado
deve ser chefiado: a direção deste, propõe Saint-Simon, deve ser dividida no sentido de
conferir à administração dos interesses nacionais o campo da produção social e às
instâncias políticas a preservação da defesa e da segurança
187
.
Marx, na elaboração do socialismo científico, desenvolve sua reflexão a partir da
sociedade da luta de classe, precisando abandonar a herança de Saint-Simon no que tange à
relação entre o princípio político e o social. Ele contesta a função repressora e unificadora
do Estado, por ser um instrumento da classe dominante, e preconiza a construção de um
Estado que prepare a sociedade sem classes. Os projetos de Marx visam ao Estado
revolucionário, altamente centralizado, que sufoca o princípio social e absorve por
185
Idem. Ibidem. p. 178.
186
Idem. Ibidem. p. 188-189.
187
Idem. Ibidem. p. 194.
completo a livre sociedade, o que tem como conseqüência, conforme Buber, “o movimento
de um socialismo [...] no qual o princípio social apenas existe como meta final e não no
esquema prático real”
188
. Nesses termos, o modo como Marx concebe o Estado é por um
lado libertador, apresentando uma reação ao princípio de dominação, e por outro, é
opressor, pois dá azo à formação de uma classe dirigente que deturpe seus pressupostos a
fim de apossar-se do poder político.
3.2 Controle, violência e desilusão no regime da RDA
O socialismo realmente existente, conforme se pode depreender da leitura de Era
dos extremos, de Eric Hobsbawm
189
, é um termo que designa os Estados formados a partir
da ampliação das fronteiras da região que se separou do capitalismo mundial em 1945.
Trata-se de um termo ambíguo que implica a possibilidade de haver outros socialismos,
talvez melhores, porém sugere ser este o único que na prática realmente funciona. Os
sistemas políticos tinham por base um partido único, fortemente hierárquico e autoritário
que monopolizava o poder do Estado, operando uma economia centralmente planificada e
impondo uma ideologia marxista-leninista compulsória à população civil. Havia forte
controle de viagens e de informação, bem como repressão: as conseqüências recaíram
sobre o povo.
A separação entre socialismo e capitalismo é um conflito por motivos políticos,
uma disputa pelo poder entre classes dominantes, na qual o capitalismo é visto como o
inimigo a ser derrubado pela revolução. Pode-se, pois, constatar a dissonância entre as
aspirações humanistas depositadas no socialismo pela sociedade civil, pela massa de
cidadãos e trabalhadores, encontradas nas doutrinas de Marx e Engels, Gramsci, Rosa
Luxemburgo, Karl Liebknecht e dos socialistas utópicos; e os fatos, as condições, os
conflitos, as manobras políticas e as imposições do Estado, que realmente ocorreram no
desenrolar do regime.
A queda do regime é explicada por Hobsbawm
190
como um fenômeno cujos
motivos são o fato de não ter por base a conversão em massa, sendo que, ao passo que os
movimentos trabalhistas e socialistas não oficiais podiam ser coextensivos com as
188
Idem. Ibidem. p. 196-197.
189
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. 2005. p. 363-390.
190
Idem. Ibidem. p. 480.
comunidades, os partidos comunistas governantes eram por definição elites de minorias; e
o fato de que a aceitação do comunismo pelas massas dependia não de convicções
ideológicas, mas de como julgavam que o regime trazia benefícios para suas vidas.
Os movimentos trabalhistas e socialistas de massa surgidos na Europa em fins do
século XIX eram democráticos tanto na estrutura interna quanto nas aspirações políticas. O
sistema político da URSS, formado após a revolução de 1917, que seria transferido, i.e.,
imposto, para o mundo socialista, rompeu com o lado democrático dos movimentos
socialistas. Entretanto, disfarçava o caráter autoritário de seu centralismo através da
autodenominação “democrático”. O poder político soviético, em seu compromisso com o
rigor e a ação revolucionários, deu azo à instalação de uma ditadura individual. Em 1921,
proíbem-se as discussões coletivas de políticas alternativas. Eliminada a separação de
poderes do governo soviético, o partido concentra em si o poder absoluto e subordina as
demais instâncias. Nesse ponto, Stalin converte o sistema em uma autocracia que exerce
controle total sobre todos os aspectos da vida e do pensamento dos cidadãos, cuja
existência fica à mercê dos objetivos do partido.
A ditadura, cujas raízes remontam às bases centralizadas do partido bolchevique,
encontra justificação na asserção de que “um regime comunista não podia tolerar ser
derrubado por forças que pudessem restaurar a velha ordem”. Conforme Hobsbawm, o
poder era o único instrumento de que a União Soviética poderia valer-se para mudar a
sociedade. Mudar a sociedade significa, na verdade, salvar a revolução, solidificar o
regime e consolidar o poder.
Vários dos problemas expostos manifestam-se nos Estados comunistas formados
após a Segunda Guerra Mundial, pois estes eram controlados por partidos baseados em
modelos soviéticos. No que concerne à RDA, trata-se de um Estado constituído pela
ocupação direta do exército vermelho. Em casos como este, além do serviço de segurança
soviético, os governos locais eram obrigados a adotar o exemplo da URSS, organizando
julgamentos e expurgos de comunistas locais como procedia Stalin. Na Alemanha Oriental,
os partidos conseguiram evitar em grande parte as referidas práticas. Embora imposto pela
força militar, inicialmente, o regime comunista na RDA obteve legitimidade e apoio. A
idéia de reconstruir um novo mundo sobre as ruínas deixadas pela guerra, que tanto
inspirava jovens e intelectuais, foi um forte fator a influenciar a aceitação do socialismo.
O regime na RDA é classificado por Hobsbawm como “linha-dura”. Seus
integrantes repudiavam a Primavera de Praga, ocorrida em 1968, em decorrência da qual
receavam desestabilização interna. De fato, esse movimento, explica o historiador, revelou
e aumentou as fendas dentro do bloco soviético. Quanto à economia, registrou-se na
década de 60 a tentativa de reformar o sistema econômico de planejamento central no
sentido de flexibilizá-lo
191
.
Daí poder-se inferir que a relação entre o setor dirigente e o povo consistia no
exercimento do poder, afirmação esta que malgrado a obviedade não é gratuita. Ela
significa que o Socialismo real garantiu a participação da massa não por adesão à ideologia
socialista, mas por via da coerção e da repressão; através do controle de informações e da
educação o povo era mantido na ignorância: ou ele pensa como o setor dominante ou não
pensa nada e move-se conforme esta determina. Marx e Engels
192
já afirmavam, no ensaio
“Da produção da consciência”, que:
Os pensamentos da classe dominante são [...] em todas as épocas,
os pensamentos dominantes. [...] A classe que dispõe dos meios de
produção material dispõe também dos meios da produção
intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são
negados os meios de produção intelectual está submetido também
à classe dominante. Os pensamentos dominantes nada mais são do
que a expressão ideal das relações materiais dominantes. [...] Os
indivíduos que constituem a classe dominante dominam também
como seres pensantes, como produtores de idéias que
regulamentam a produção e distribuição dos pensamentos de sua
época.
Se, como afirma Marx
193
em uma de suas teses acerca de Feuerbach, do ponto de
vista do materialismo histórico não se trata de interpretar o mundo, mas de transformá-lo,
então na medida em que essa transformação depende da atividade material das massas,
torna-se essencial o papel do intelectual
194
. Neste ponto, as reflexões de Antonio Gramsci
apontam para um horizonte em que o movimento da história depende de que pensamento e
ação se integrem a partir de uma base política e humanista. Ao pensar acerca do caráter de
um movimento filosófico, o teórico questiona se o valor de tal movimento reside na busca
de desenvolver uma cultura especializada para restritos grupos de intelectuais ou no fato
191
Idem. Ibidem. p. 389.
192
MARX, Karl; ENGELS, Firedrich. Da produção da consciência. In: MARX, Karl; ENGELS, Firedrich. A
ideologia alemã. 2002. p. 48-49.
193
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Ad Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia
alemã. 2002. p. 99-103.
194
Na presente pesquisa, devem-se entender por intelectuais artistas e estudiosos, o que inclui escritores,
poetas, dramaturgos, músicos, pintores, filósofos, sociólogos, historiadores.
de, em seu trabalho de elaboração de um pensamento cientificamente coerente que supere
o senso comum, o intelectual permanecer em contato com os simples, encontrando nesse
contato a fonte dos problemas a serem estudados. O autor afirma ser nessa relação que a
filosofia se torna histórica e se converte em vida prática. A filosofia da práxis, concebida
por Gramsci a partir da teoria de Marx, deve apresentar uma atitude polêmica e crítica a
fim de superar o pensamento concreto ou mundo cultural existente
195
.
Tendo em vista as condições de dominação e alienação, opressão e ignorância em
que o Socialismo real mantém o povo e a fidelidade do intelectual para com o sistema,
pode-se afirmar que ele se encontra em uma posição intermediária e dilemática: entre a
classe dirigente e o povo o intelectual encontra seu lugar; dar suporte para a sustentação do
sistema e esclarecer as massas para que essas possam agir de modo consciente, porque
pensam crítica e reflexivamente, compõem o papel paradoxal do intelectual. No caso da
RDA, em determinado momento os escritores percebem que o socialismo se desvirtua em
um mecanismo de poder político manipulado por uma elite dirigente centrada no partido.
Com isso, eles precisam abandonar seu louvor pelo novo sistema, passando a refletir a
respeito dos problemas que este apresenta, denunciando os desvios e expressando críticas
nas obras literárias. É a maneira que encontram de pôr-se ao lado do povo.
A situação da RDA configura um país em que a sociedade aceita as ordens de um
Estado repressor, conjunto este formado sob a égide do usurpador soviético. Verifica-se aí
uma necessidade de resistência. Se não uma resistência por meio de violência, pelo menos
através de um esclarecimento ideológico que confira ao povo as bases para uma prática
consciente. Isso se refere ao que Gramsci define como o problema fundamental de toda
filosofia e de toda concepção de mundo: a conservação da unidade ideológica de todo o
bloco social, unificado por essa ideologia
196
. Para o pensador italiano, a filosofia não pode
ser desvinculada da política, a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são fatos
políticos, pois a concepção de mundo implica uma escolha entre o fato intelectual e o
resultado da atividade real do homem, implícita em sua ação; trata-se neste último caso de
ação política. Neste sentido, o teórico postula a existência de um contraste entre pensar e
agir, que, quando verificado nas manifestações vitais das grandes massas, afigura-se como
problema de natureza histórico-social. Isso ocorre quando um grupo social, por razões de
195
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 1985. p. 18.
196
Idem. Ibidem. p. 16.
submissão e subordinação intelectual, toma emprestado a outro grupo uma concepção que
lhe é estranha
197
.
A aceitação de uma concepção de mundo estranha é o perigo que se instalara na
RDA e contra o qual ela precisou apresentar resistência. Levar o povo alemão a entender e
conhecer o caráter do modelo de socialismo imposto pela URSS, bem como os princípios,
mecanismos e objetivos que o norteiam, era uma medida necessária para que, consciente, a
sociedade alemã o adotasse como legítimo ou o rejeitasse como nocivo, mas não o
aceitasse passiva e ingenuamente. A superação de tal perigo envolve uma crítica da
ideologia. Do ponto de vista da filosofia da práxis proposta por Gramsci
198
, o papel do
intelectual consiste em frear a ação da ideologia, através da crítica ao senso comum.
Conforme exame do autor, o conceito de ideologia passa do significado de ‘ciência das
idéias’, de ‘análise da origem das idéias’ para o de sistema de idéias determinado’. Tal
processo deve ser examinado não só lógica, mas, sobretudo, historicamente. Segundo essa
orientação, a ideologia deve ser entendida como superestrutura necessária de uma
determinada estrutura, como ideologia historicamente orgânica, distinta da ideologia
arbitrária e racionalista. Enquanto a primeira organiza as massas humanas, serve de base
para que os homens ajam, tomem consciência de sua posição e lutem, a última cria
movimentos individuais. A ideologia é o complemento das forças materiais, unidade esta
que forma a concepção de bloco histórico.
No ponto em que a ideologia escapa ao controle do setor dirigente, este lança mão
do poder repressor, cujas estratégias são esclarecidas pelas considerações de Ives
Michaud
199
. Sua tese consiste na idéia de que a fisionomia e a escala da violência
decorrem da administração dos aspectos da vida social das sociedades. A apreensão, o
registro e a avaliação da violência não são neutros, mas passíveis de manipulação pelos
detentores do poder. O sociólogo destaca o fato de que as vítimas e os vencidos são
ameaçados pelo apagamento da história. Na ótica do poder, o esquecimento das vítimas
significa o encobrimento dos crimes. Interessam para o propósito deste trabalho, dentro do
que o autor denomina violência política, a distinção entre dois fenômenos que levam em
conta a oposição entre a sociedade e o Estado: a violência contra o poder e a violência do
poder.
197
Idem. Ibidem. 14-15.
198
Idem. Ibidem. p. 61-62.
199
MICHAUD, Ives. História e sociologia da violência. In: MICHAUD, Ives. A violência. s. d.. 16-33.
A primeira visa a uma reorganização do poder. É condicionada pela existência de
um poder central passível de ser ocupado por grupos de interesses antagônicos; e pela
proposição de projetos de reorganização da sociedade e do Estado. O motor dessa forma de
violência é constituído de mitos fundadores desdobrados, por exemplo, em ideais
revolucionários ou projetos políticos como o contrato social, a igualdade política e o
socialismo. Ela consiste em revoluções e golpes de estado e pode ser exemplificada pela
Revolução Francesa e pela Revolução Russa. A segunda objetiva ao estabelecimento, à
manutenção e ao funcionamento do poder político. Dentre suas formas de manipulação,
três merecem destaque: a tirania, a repressão e o terror. A tirania corresponde ao poder
absoluto ou totalitário concentrado no domínio de um soberano que dispõe de
arbitrariedade e violência; os homens são reprimidos, privados da liberdade e da vida
privada, limitados na instrução, postos na discórdia. A tirania surge como um desequilíbrio
da monarquia, e, por extensão, do poder. Opera, de um lado, por adesão, de outro, por
imposição. Quanto à repressão, pode-se defini-la como resposta do poder aos desafios e
revoltas, por meio da ação de forças especializadas. Sua intensidade e brutalidade
dependem da vontade do Estado no sentido de afirmar a supremacia e de monopolizar o
poder. Já o terror revolucionário tem por função estabelecer o Estado ou renovar uma
sociedade mediante a intimidação e a punição dos opositores. Concebido como um
instrumento de defesa, torna-se força coatora que promove a unidade revolucionária. A
prática do amálgama, a justiça expeditiva, a definição ampla de ‘suspeitos’ e a depuração
do corpo social e dos setores dirigentes são as principais características, presentes tanto na
revolução de 1789 na França quanto na revolução de 1917 na Rússia. As aludidas formas
de violência devem sua relevância nesta pesquisa não a fins classificatórios, mas ao fato de
que de algum modo integram a história e o modelo do regime socialista implantado pelos
soviéticos na RDA. Pode-se afirmar que em sua natureza o Socialismo está imbricado
dessas duas formas, que condicionam seu desenvolvimento real; inicia como revolução
contra uma ordem e um poder instituídos, mas logo toma as feições do poder, valendo-se
do terror para constituir-se como Estado e empregando a tirania e a repressão a fim de
sustentar-se. Isso mostra que o Socialismo deixa de ser um sistema para o povo e torna-se
um fim em si mesmo.
A questão da utopia reporta-se no contexto de produção de Kein Ort. Nirgends
ao desejo e à possibilidade de alterar a realidade. Uwe Timm, discutindo as relações entre
utopia e realismo, define este último como aquele método que, a partir da exigência de
compreender o ser da realidade, deve abarcar ambos os aspectos, como se, baseando-se nos
fenômenos concretos, pudesse mostrar sua dança maravilhosa. A tarefa do realismo é
representar o ser de uma forma de sociedade, ou seja, a realidade, a partir de suas formas
de aparência. O autor ressalta que, porém, quem avaliar a mistificação e o grau de
alienação de modo tão absoluto, que a própria realidade possa não mais ser reconhecida, e
com isso não mais representável, pode não mais entendê-la em seu caráter mutável
200
. Uwe
Timm aponta uma disposição para a utopia, que corresponde à forma realista em si.
Conforme seu ponto de vista, o momento utópico formal deve ser procurado na orientação
da ação na narrativa, pois na orientação da ação mostram-se destinos, em outras palavras,
representam-se desenvolvimentos de pessoas. Deste modo, no momento essencial do
realismo repousa sua dimensão histórica, que representa intraliterariamente pessoas
atuantes ou mesmo não atuantes
201
.
O crítico alemão destaca que se o autor entende a realidade como resultado de um
fado cego, representará as contradições da realidade de tal modo que nelas entrem
momentos implícitos da realidade, o que significa também que para as contradições ele
representará a dinâmica interna, a qual penetra o existente. Com isso, o futuro entra
necessariamente como dimensão do trabalho literário, e pode ser tomado tematicamente
como perspectiva, se o autor pensar a realidade como revolucionariamente alterável
202
. Se
a utopia refere-se a um lugar no futuro em que os resultados da revolução devem realizar-
se como benefícios comunitários para o homem, o contexto em que Christa Wolf escreve
seu romance revela a perda da esperança no futuro. Tem-se a desilusão acerca de um
presente que não fornece as condições para tal realização, e resta, portanto, a tarefa de
refletir sobre esse presente, buscando no passado, na tentativa de revisar a apropriação da
herança cultural e da tradição histórica e literária os meios para cumpri-la. O fado cego
encontrado em Kein Ort. Norgends é a dominação que conduz à sujeição inelutável do
homem aos mecanismos do poder, é a fragilidade kleisteana do homem diante das leis de
funcionamento da sociedade e do Estado.
Com base na explanação de Paul Michael Lützeler
203
acerca da manifestação dos
ideais de Ernst Bloch no desenvolvimento da literatura na RDA, pode-se ter uma idéia do
papel do componente utópico nesse contexto. Diferentemente da prosa literária resultante
200
TIMM, Uwe. „Realismus und Utopie“. In: LAEMMLE, Peter. (Org.). Realismus – Welcher?. 1976. p.
141-142.
201
Idem. Ibidem. p. 146.
202
Idem. Ibidem. p. 144.
203
LÜTZELER, Paul Michael. „Von der Arbeiterschaft zur Intelligenz: Zur Darstellung sozialer Mobilität im
Roman der DDR“. In: HOHENDAHL, Peter Uwe; HERMINGHOUSE, Patricia. (Orgs.). Literatur und
Literaturtheorie in der DDR. 1976. p. 267-274.
do Programa de Bitterfeld, em que se propagava o preceito socialista da qualificação como
meio indubitável da ascensão e do progresso tanto no domínio privado como no todo
social, na virada da década de 60 para a de 70, surgiu um conjunto de narrativas que
questionavam ou mesmo negavam aquela virtude básica. Essa tendência, da qual
participam Christa Wolf e Ulrich Plenzdorf, vincula-se a uma nova situação social na
RDA, em que se rompe com algumas questões fundamentais dos anos anteriores: daí em
diante, o romance passa a tratar menos dos problemas ligados à mobilidade social do que
dos conflitos cotidianos da sociedade. Muito do que se almejou em termos de utopia na
RDA relaciona-se aos anos de fundação e construção do Socialismo na nação, e
fundamenta-se nos ideais de esperança no futuro, sonho, desejo de progresso, realização,
afirmados filosoficamente na obra de Ernst Bloch. O período de passagem dos anos 60
para os 70, no entanto presencia a percepção de muitos escritores de que o ideal da
construção se tornara um clichê que encobria os problemas reais e presentes da vida
humana sob o sistema: em face a condições como exploração, opressão, marginalização,
alienação, reificação e repressão exercidas sobre o povo, autores como Wolf e Plenzdorf
passam a mostrar o reverso da situação aparente, o que tem como conseqüência o
questionamento dos preceitos realistas. Se até então a realidade social afastara-se da
imagem ideal sonhada nas obras literárias, a partir daí a literatura tem o dever de
descortinar e encarar a face dolorosa da realidade. A utopia, portanto, cede lugar ao
desengano.
Timm diferencia o realismo político do realismo burguês através da constatação
de que no primeiro os personagens apresentam não apenas uma atitude crítica frente à
realidade social, mas buscam uma transformação consciente dessa sociedade. O realismo
utópico manifesta-se na reivindicação de felicidade, na tentativa de cumprir tal
reivindicação na práxis social, na reivindicação da auto-realização, de um mundo sem
exploração, em que não haja dominação do homem sobre o homem
204
. Christa Wolf
distancia-se dessas correntes por perceber como o poder inibe a transformação
revolucionária da realidade e por perceber que o ideal clássico serviu à formação de uma
elite que, com base em determinado padrão, arrogava para si o direito de excluir e dominar.
Ela representa, então, a perda da utopia ao tematizar em seu universo ficcional a
marginalização e o esmagamento do homem na e pela sociedade em que vive. O ideal
utópico na referida obra pode aparecer como desejo, não como possibilidade. A escritora
204
TIMM, Uwe. „Realismus und Utopie“. In: LAEMMLE, Peter. (Org.). Realismus – Welcher?. 1976. p.
145.
mostra como o poder anula as possibilidades de satisfação das aludidas reivindicações.
Uwe Timm postula neste sentido a força da utopia literária em oposição ao existente. Na
obra de Wolf, tem-se o fracasso e a desilusão romântica como fatores de resistência.
Se para Uwe Timm a literatura possibilita fornecer mais que uma descrição
naturalista plana das relações existentes, por poder mostrar perspectivas que partam do
existente, que o representam como alterável ou mesmo insistem que ele deve ser alterado,
sendo nessa possibilidade que repousa o humano da literatura
205
, o contexto vivenciado por
Wolf leva a um paradigma em que o humano no romance pode ser atingido na reflexão a
respeito do desumano, pois a partir disso, a autora representa o desejo e a necessidade de
uma existência humana possível de ser vivida. Ao explicar a gênese de Kein Ort.
Nirgends, incluindo a motivação e o significado filosófico do referido título, ela afirma ter
sentido a experiência “de que as alternativas nas quais vivemos desmoronam umas após as
outras e de que sobram cada vez menos alternativas reais de vida”
206
. O romance em
estudo reflexiona a crise existencial pela qual passa Christa Wolf em face do momento
histórico, e expressa a “forma de vida fundamental” da autora: o fato de “viver em
contradição”. Destarte, Wolf alcança um papel produtivo em sua obra à moda dos
românticos: ao provocar o desconforto e a irritação, ao pôr-se em oposição à ordem
estabelecida, ao questionar o próprio sujeito. Revelar as contradições é uma forma de
resistência em que a autora trabalha com os elementos que conduzem ou ao aniquilamento
ou à afirmação do sujeito, com a perspectiva do aumento das “contradições improdutivas”
e das “alternativas invivíveis”, que resultam na angústia de muitos homens: o “sentimento
de se estar entalado”. Trata-se de uma imagem semelhante às do universo kafkiano, em que
o indivíduo se debate sem escape, preso por forças de instâncias superiores e
desconhecidas. Reforça-se, portanto, a tese de que a tendência literária à qual pertencem
Die neuen Leiden des jungen W. e Kein Ort. Nirgends, em sua dinâmica de resistência
ao esquematismo do Realismo socialista, ao mesmo tempo em que se aproxima da
problemática do Romantismo, guarda relações com a Vanguarda.
205
Idem. Ibidem. p. 145.
206
WOLF, Christa. „Projektionsraum Romantik“. In: WOLF, Christa. Die Dimension des Autors. 1990. p.
883-884. Tradução realizada pelo autor do presente trabalho de dissertação.
4 A SUBJETIVIDADE, A MELANCOLIA E O VOLTAR-SE PARA O PASSADO
EM KEIN ORT. NIRGENDS E DIE NEUEN LEIDEN DES JUNGEN W.
Durante a década de 70, verifica-se na literatura da República Democrática
Alemã (RDA) o surgimento de um conjunto de obras caracterizadas pela retomada e
revalorização de elementos referentes ao período romântico alemão. Dentre essas obras,
destacam-se Die neuen Leiden des jungen W. (1972), de Ulrich Plenzdorf,
Reisebegegnung (1972), de Anna Seghers, Das Leben des Jean Paul Friedrich Richter
(1975), de Günter de Bruyn, Spiegelgeschichte (1977), de Franz Fühmann, e Kein Ort.
Nirgends (1979), de Christa Wolf. Essa identificação com os valores românticos tem uma
relação profunda com um sentimento de crise existencial
207
vivido pelos autores da RDA e
evidencia uma cisão entre os intelectuais e a sociedade/realidade da época. “Eu vivia então
com o forte sentimento de estar com as costas contra a parede e de não poder dar um passo
certo”, diz Christa Wolf
208
. Neste sentido, os autores acima mencionados vivem, em meio
à efervescência política e social do momento, um drama semelhante ao dos românticos:
eles pouco podem fazer contra a corrente dos acontecimentos, porém essa corrente não
pode calá-los – os problemas sociais são captados, interpretados e registrados pela
literatura. A literatura afigura-se assim como resistência. No presente trabalho, busca-se
interpretar comparativamente, dentre as obras mencionadas, os romances Die neuen
Leiden des jungen W. e Kein Ort. Nirgends, tendo em vista os possíveis significados
que a retomada de elementos do Romantismo, como momento histórico e artístico, pode
ter para as aspirações político-socias do referido conjunto literário. Tal tendência à
retomada de elementos da estética romântica, faz-se seja pela tematização, seja pela
207
HILZINGER, Sonja. Avantgarde ohne Hinterland. ARNOLD; MEYER-GOSAU. Text + Kritik:
Literatur in de DDR – Rückblicke. 1991. p. 93.
208
Idem. Ibidem. 1991. p. 93.
apropriação de estilos e tons de linguagem ou pela incorporação de atitudes tipicamente
românticas à elaboração estética das aludidas narrativas. Ambos os livros apresentam em
comum o fato de terem como base a tematização de elementos românticos: no romance de
Plenzdorf, o tema de Werther, o sofrimento e o suicídio; no de Wolf, o encontro entre dois
poetas românticos. Diferem, porém, no tom da linguagem. O primeiro consiste em uma
paródia em que o tom solene de Werther é convertido em humor; o segundo, por seu turno,
apresenta um tom sério, vazado em uma linguagem poética, quase lírica, cuja carga
semântica é necessária para expressar o conflito existencial dos personagens: a
objetividade não bastaria para exprimi-lo, de modo que, não obstante terem sido Kleist e
Günderrode seres históricos, não são os dados objetivos de suas biografias que estão em
questão, mas a profundidade, a complexidade e a perenidade dos conflitos que vivenciam.
As duas narrativas são marcadas pela melancolia e pela subjetividade; ambas são
carregadas de polifonia, plurilingüismo, dialogismo e intertextualidade, conceitos que
remontam aos postulados de Bakhtin: os primeiros elementos integram-se à temática
romântica incorporada pelas obras; os últimos consistem em fenômenos lingüísticos que
funcionam como recursos através dos quais a referida temática é elaborada e remete a
questões fundamentais de sua época. O subjetivismo romântico é fundamental às obras na
medida em que permite dar grande expressividade e profundidade aos sentimentos e
pensamentos dos personagens, além do que, pode remeter ao desejo de autonomia do
indivíduo e à necessidade de expressão em um momento em que o homem é calado pela
repressão e pela censura. A melancolia remete ao mal-estar diante desse quadro. Nas duas
obras, pode-se verificar um retorno ao passado, atitude romântica que pode ser explicada
com base no conceito de história de Walter Benjamin
209
, em que se enfoca o papel do
materialismo histórico de permitir, não conhecer o passado como ele de fato foi, mas fixar
uma imagem do passado como ele se apresenta ao sujeito histórico no momento de um
perigo. A entrega da tradição e dos sujeitos às classes dominantes é o perigo ao qual se
refere o teórico. Cabe ao materialismo histórico tanto reconhecer as imposições e os pontos
de vista dos vencedores quanto criticar na cultura o componente de barbárie e de
dominação, contestar o caráter de despojos intrínseco aos bens culturais. O interesse pelo
passado afigura-se como uma maneira simbólica de olhar para o presente, pela qual se
busca compreender as origens e o processo de formação do contexto vivido.
209
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: ____. Magia e Técnica, Arte e Política. 2. ed.
1986. 224-225.
Subjetividade, melancolia e interesse pelo passado são atitudes típicas da
literatura romântica que se configuram como oposição à exigência de objetividade e ao
padrão realista imposto aos escritores da RDA pelo Realismo Socialista: elas figuram
contra as convenções, seja sob a forma de protesto, de problematização ou de revisão. O
plurilingüismo, a polifonia e a intertextualidade são aspectos lingüísticos que permitem
desvendar tanto a densidade e complexidade humanas intrínsecas aos sentimentos,
pensamentos e sofrimentos dos personagens, quanto os mecanismos de discurso, ideologia
e poder concernentes às relações sociais representadas nos livros.
4.1 Romantismo e resistência
Nas obras em estudo, verifica-se que a retomada do Romantismo dá-se como
apropriação de um momento histórico, elemento que, não obstante subjazer à ação central
e, por isso, parecer secundário, é fundamental para que a resistência seja construída nos
romances. Em Kein Ort. Nirgends, o tempo da narrativa remonta à época em que, no
zênite de sua glória, Napoleão invadia a Europa. Esse aspecto deve ser levado em
consideração, pois ao que tudo indica, não foi por acaso que Christa Wolf escolheu os
poetas Heinrich von Kleist e Karoline von Günderrode para protagonizar o romance:
enquanto poeta, Kleist é considerado o antagonista idealmente superior de Napoleão
210
.
Além disso, o engajamento, o patriotismo e o nacionalismo são traços intrínsecos a sua
produção literária, sendo que a consciência histórica e a identidade nacional germânica são
visíveis em sua obra. Günderrode é aquela que olha através da janela, que traz em si o
sonho, o desejo de libertação, o anseio por um mundo menos dolorido, a desilusão e a
inadaptação ao mundo: é o ponto de vista da mulher frente à opressão. No romance de
Wolf, tem-se uma reação ao descaso com que se passou a tratar a arte em nome de uma
ordem regida pelo utilitarismo.
No romance de Plenzdorf, assim como Werther critica o convencionalismo e o
caráter excludente da sociedade de sua época, o personagem observa e contesta as
imposições e restrições que a sociedade socialista reserva para o indivíduo e a coletividade.
O romance de Plenzdorf, ao abordar o tema de Werther, remete não ao Romantismo
210
HOHOFF, Curt. Heinrich von Kleist: 1777/1977. 1977.
propriamente dito, mas ao Sturm und Drang, Pré-Romantismo alemão definido por Christa
Wolf, em comparação com a geração de 1800, chamada Frühromantik
211
, ou Romantismo
inicial, como uma época pré-revolucionária, enquanto que o outro resulta de um tempo
pós-revolucionário, recebendo influência do início da Restauração. Se o primeiro tem
como força motriz o otimismo, a esperança e o impulso de vida, sintetizada num princípio
de tentativa ilusória de ação, ao segundo resta dolorosa desilusão e desengano
212
. O Sturm
und Drang é herdeiro das idéias de Rousseau. Deriva de um sentimento de renúncia ao
mundo que, em conformidade com os pressupostos históricos de Hauser, afeta classes
sociais e gerações inteiras. A deliberada oposição ao Iluminismo deve ser pensada no
tocante à concepção que ambos os movimentos têm de “mundo”. Enquanto que para um
este apresenta-se como inteligível, explicável e dotado de significação, para o outro,
manifesta-se incompreensível, misterioso e sem significado. Segundo afirma o historiador,
tais opiniões refletem “a consciência da capacidade de [...] dominar a realidade” em um, e
“o sentimento de estar perdido e desamparado nessa realidade”
213
no outro. O elemento
que melhor caracteriza a visão do Sturm und Drang é o conceito de gênio artístico, a ser
discutido durante a análise do romance de Plenzdorf. Adianta-se por ora que o
subjetivismo exagerado que o particulariza apresenta uma relação cabal com a situação da
Alemanha, em que a intelligentsia é acometida pela contradição interna e por uma
tendência à supercompensação das limitações da vida prática, o que leva à manifestação do
patológico. O mundo tornado hostil e estranho, não é apreendido de forma acabada, pois
este e a própria vida são submetidos à visão atomizada e à natureza fragmentária dos
motivos desses escritores
214
.
211
Comumente ocorre tratar inidistintamente autores do Pré-Romantismo e do Romantismo Alemão
genericamente como românticos, o que acaba por simplificar e reduzir a complexidade de um período
histórico e artístico que, na verdade, se compõe de mais de um movimento. Além da distinção entre
Romantismo (Romantik) e Pré-Romantismo, do qual deriva o primeiro, deve-se considerar a coexistência e
concorrência entre estes e outros movimentos: O Iluminismo (Aufklärung), o Classicismo (Klassik), bem
como o chamado Entre Classicismo e Romantismo (Zwischen Klassik und Romantik). O Pré-Romantismo
alemão é dividido em duas vertentes: o Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto) e o Hainbund (Sociedade
dos bosques), um marcado por um cunho revolucionário; o outro, caracterizado por uma maior aproximação
das coisas amenas do que de um comprometimento político. O Romantismo compõe-se de duas correntes:
Frühromantik e Spätromantik, consistindo a primeira em uma tendência inicial, dotada de orientação
filosófica e crítica, e do ideal de renovação e revolução, centrada em torno da Universidade de Iena; e a
segunda, em uma vertente tardia, caracterizada por ser mais conservadora, mais patriótica e identificada com
o povo que a anterior, voltada não mais para a exigência do novo e do universal, mas para a da tradição,
tendo como sede a cidade de Heidelberg. Ver: BAUMANN, Barbara; OBERLE, Birgitta. Deutsche
Literatur in Epochen. 1985. e CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura universal. 1962.
212
WOLF, Christa. „Der Schatten eines Traumes: Karoline von Günderrode – ein Entwurf“. In: WOLF,
Christa. Die Dimension des Autors. 1990. p. 515.
213
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. 2003. p. 615.
214
Idem. Ibidem. p. 617.
Neste estudo, busca-se formular uma possível resposta para a questão “qual o
sentido dessa valorização do Romantismo?”. Argumento que o Romantismo é, por um lado
um movimento em que o homem comum é valorizado e os oprimidos podem gritar contra
um estado de coisas opressor
215
, por outro, um movimento artístico regido pela
subjetividade, que se opõe ao racionalismo do movimento classicista, empregado como
modelo para a teoria que no contexto da Alemanha Oriental, serviu de base para o
Realismo Socialista. A incorporação dos traços românticos nos livros em estudo vincula-se
a uma estrutura romanesca que quebra com os padrões realistas por conceber que tal
padrão, em sua pretensão de representação fiel do real, transmite uma visão simplista e
distorcida do material tematizado. Conforme Adorno
216
, “o movimento anti-realista do
novo romance, sua dimensão metafísica, é ele próprio por seu objeto real – por uma
sociedade em que os homens estão separados uns dos outros e de si mesmos”. O dado
romântico contribui para o cunho de modernidade inerente à construção das obras em
exame, possibilitando um desvio em relação ao conceito fechado de realismo e implicando
a resistência diante das imposições do Estado. Por meio da reação à convenção, a
resistência manifesta-se como relação frente ao poder.
Enquanto movimento artístico, o Romantismo tem sua razão de ser no vínculo
entre a expressão e a vontade social. Neste sentido, “o herói romântico é a encarnação de
uma vontade antes social que pessoal, apesar da forma subjetiva de seus motivos e
decisões”
217
. Tomando a questão da subjetividade, pode-se afirmar que ela consiste em um
elemento fundamental do Romantismo, que aponta para sua tomada em oposição à
objetividade do Realismo Socialista. As formas de representação pautadas na sugestão do
real tornam-se problemáticas, o que se reflete na forma do gênero romanesco. “Visto do
ponto de vista do narrador, [esse] fenômeno se deu por causa do subjetivismo, que não
admite mais a matéria intransformada, e com isso solapa o mandamento épico da
objectualidade”
218
. Essa nova forma de romance fundamenta-se numa problematização da
linguagem e de seus recursos, tendo em vista que a modernidade, em geral, e as situações
opressivas, em particular, confrontam o sujeito humano com um tipo de experiência que
não pode ser expressa por princípios realistas:
215
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. 1979. p. 655. Vol. 2.
216
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Textos escolhidos: Walter
Benjamin et alii. 1983. p. 270.
217
GUINSBURG, J.. Romantismo, historicismo e história. In: GUINSBURG, J. (Org.) O Romantismo.
1993. p. 15.
218
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Textos escolhidos: Walter
Benjamin et alii. 1983. p. 269.
o romance precisou concentrar-se naquilo de que o relato não dá
conta. Só que [...] a linguagem lhe impõe limites na emancipação
do objeto, pois esta ainda o constrange a ficção do relato: Joyce foi
conseqüente quando vinculou a rebelião do romance contra o
realismo a uma rebelião contra a linguagem discursiva
219
.
A exigência de realismo estaria impregnada de um caráter ideológico. Em Die
neuen Leiden des jungen W. e Kein Ort. Niegends, cabe à subjetividade romântica
deformar a realidade e lembrar que na arte o real é uma construção discursiva e o mundo,
um produto da linguagem. Para o teórico inglês, ao pretender-se natural e oferecer-se como
único modo de ver o mundo, o signo torna-se autoritário e ideológico. A concepção realista
do signo natural e da linguagem como representação são instrumentos ideológicos
empregados para perpetuar o conjunto de verdades absolutas que justificam a dominação e
a exclusão social. Essa ênfase na deformação remete ao estatuto ontológico do romance e
ao próprio ser de que ele trata, elementos que estão em estreita relação com a vida e com a
estrutura social, como demonstra Adorno
220
:
Não é só o fato de informação e ciência terem confiscado tudo que
é positivo, apreensível – incluindo a factualidade do mundo – o
que força o romance a romper com isso e entregar-se à
representação de essência e distorção, mas também a circunstância
de que, quanto mais fechada e sem lacunas se compõe a superfície
do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta
esconde, como véu, o ser. Se o romance quer permanecer fiel a sua
herança realista e dizer como realmente são as coisas, então ele
tem de renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a
fachada , só serve para ajudá-la na sua tarefa de enganar.
As aludidas obras expressam a complexidade, a complicação e a profundidade, a
contra-regra e a exceção, a crise e o vazio, a esperança e a desilusão. A angústia e os
conflitos existenciais expressos através da voz dos personagens remetem ao que os
próprios autores percebem e sentem em decorrência do contexto opressor em que vivem.
Pode-se afirmar que o aspecto da resistência permeia o conjunto de sentidos das obras
através da elaboração dos valores, evocados e dispostos em relação à visada dos
219
Idem. Ibidem.1983: 269.
220
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Textos escolhidos: Walter
Benjamin et alii. 1983. p. 270.
antivalores. Deste modo, é possível reconhecer pontos de convergência entre a arte e a
ideologia do autor.
Tomando como base a reflexão de Pedro Lyra
221
, pode-se entender que tanto
como totalização da cultura de uma época quanto como conscientização de lutas políticas,
a literatura encontra-se comprometida com a ideologia: no sentido totalizante, porque
como arte integra as manifestações superestruturais de todo agrupamento civilizado; no
sentido restritivo, porque no mundo contemporâneo as manifestações culturais não ficam
alheias ao repto político advindo do marxismo, de modo que alguns escritores tomam
partido e produzem uma literatura de intenção socializante, outros são envolvidos pela
neutralidade, configurada pelo radicalismo como tomada de posição. Para Lyra, não há
obra de arte que não porte a cosmovisão particular de seu autor, isto é, sua ideologia,
definida como sua maneira própria de encarar o mundo em que vive, a estruturação social
que o condiciona, as relações sociais que o envolvem, bem como a maneira de situar-se e
mover-se nesse universo. Aceitas, entretanto, as considerações de Rosenfeld
222
, a obra,
pelo caráter humanizador da ordem estética, exclui, elimina ou transforma o elemento
amoral ou ilegítimo de ordem político-social com o qual possa identificar-se seu autor.
Feita essa ressalva, no sentido de que o valor da obra de arte é a contradição do
espírito ilegítimo de um nazismo ou um stalinismo, pode-se retomar o raciocínio de Lyra
segundo o qual a obra de arte parte de um problema, em torno do qual o autor tem uma
idéia e uma posição que deseja ver compartilhada por toda a humanidade. Os recursos
artísticos são canalizados para essa comunicabilidade. O autor busca uma expressão
perfeita a fim de melhor expor sua idéia e possibilitar o sugestionamento do leitor. A
expressão da idéia está ligada à intenção de difundi-la, de infundi-la na consciência do
leitor, de persuadi-lo de sua veracidade. Assim, os recursos artísticos – a linguagem, a
figuração, a estruturação, a forma – são meios para promover a consecução do fim da arte,
qual seja, provocar um prazer e transmitir um conhecimento que levem a infundir uma
ideologia. Se, para Lyra, a arte é a manifestação da ideologia do autor, é mister considerar
que ela responde ao conjunto de manifestações ideológicas de um conjunto social, seja
relativas à época, à organização política, à herança histórica, filosófica e cultural. O
comprometimento da literatura deriva do fato de operar com a palavra: o próprio
instrumento de politização do homem. Destarte, a ideologia infundida pela literatura sugere
221
LYRA, Pedro. Ideologia. JOBIM, José Luís. (Org.). Palavras do crítico: tendências e conceitos no
estudo de literatura. 1999. p. 162-163.
222
ROSENFELD, Anatol. Arte e fascismo. In: Texto/Contexto II. 1993. p. 189-198.
uma forma de ação para o aperfeiçoamento do mundo, do que Lyra deduz ser a finalidade
da arte a humanização do mundo a partir da persuasão do homem.
Nos momentos em que Die neuen Leiden des jungen W. e Kein Ort. Nirgends
são escritos, o artista cumpre seu papel político não por incitar as massas ao trabalho e à
ação revolucionária no sentido de uma identificação com o regime, mas por tentar
examinar a crise em que o país está imerso, da qual a maior vítima é o povo. Para tanto,
não se encontra eficácia na representação de heróis positivos e politicamente ativos, mas
justamente na medida em que o próprio intelectual procura sentir a angústia e o caos que
imperam neste contexto social: apenas deste modo ele pode refletir e compreender,
denunciar e criticar a absurda ação do poder que aniquila o sujeito ao jogá-lo numa
coletividade amorfa. É neste sentido que os romances em estudo se aproximam das obras
da vanguarda do início do século XX, contrariando o modelo do Realismo socialista. Pode-
se levantar como traço que caracteriza as obras de Wolf e Plenzdorf justamente enquanto
modernas a possibilidade de retomar características de estéticas de outros movimentos e
épocas.
4.2 A função da melancolia, da subjetividade e do voltar-se para o passado em Kein
Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des jungen W.
De acordo com Wolfgang Emmerich, o livro de Plenzdorf trata de maneira
concreta da construção do sujeito sob as condições do Socialismo real, construção esta que
só parece possível através da negação da situação existente
223
. Essa obra é construída,
grosso modo, como uma paródia do romance de Goethe. No que se refere ao conteúdo, é
possível verificar que a fábula do romance se liga a uma base de cunho social e histórico
que revela, de um lado, modos de opressão que se repetem, e, de outro, práticas específicas
de acordo com a diversidade dos contextos. Destarte, remontando à base do personagem de
Werther, Edgar sofre com as normas rígidas e com a coerção à adaptação por uma
sociedade, como a de 1770, na qual o homem manifestamente vive apenas para trabalhar e
teme a sua liberdade
224
. Porém, concretamente, seus sofrimentos são outros: o protagonista
revolta-se contra uma ordem autoritária, contra um tipo de educação construída sobre o
princípio do modelar, que, ao primar pelo autodesenvolvimento, muito pouco lazer
223
Emmerich, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 180.
224
Idem. Ibidem. p. 180.
permitia à juventude; contra a concepção pequeno-burguesa e o anseio por segurança, que
se lhe afiguram como não socialistas
225
. Assim se estabelece um movimento de
complementaridade entre presente e passado para compor o sentido da narrativa.
Com relação aos elementos estéticos, formais e lingüísticos, pode-se atestar que a
estrutura do romance de Plenzdorf organiza-se sobre a base da paródia, por meio da
inserção de trechos do Werther, correspondentes a determinadas situações da trama; bem
como por meio da menção aos sofrimentos de Edgar Wibeau que, na esteira de Werther,
ora remetem a questões sérias, ora constituem apenas situações de forte comicidade,
empregadas para satirizar ou debochar algo, ou mesmo para produzir uma quebra de
expectativa: estes sofrimentos são marcados pela expressão “Das ist ein echtes Leiden von
mir”; e sobre a base da polifonia, realizada através da inclusão de versões diversas acerca
dos acontecimentos. É possível verificar a alternância entre os diálogos dos pais acerca da
morte do filho, no momento que marca o presente da narração, os diálogos entre o pai e
Charlie, personagem correspondente a Charlotte, amada de Werther, e a narração do
próprio narrador-protagonista, que ouve do além as conversas, confirmando, negando,
explicando ou debochando-as, e contando a partir daí como se sucedem as ações. As
versões do narrador são introduzidas por expressões como “Das stimmt...” (Foi assim
mesmo), “Ich weiβ nicht ob mich einer versteht, Leute“, no qual a formulação com o verbo
verstehen (entender) é substituída, por vezes, por frases feitas com os verbos begreifen
(compreender) e sich vorstellen können (conseguir fazer idéia, conseguir imaginar). Em
muitos casos, o herói parafraseia as próprias afirmações concernentes aos fatos e ações
narradas, valendo-se da locução “ich meine” (quero dizer), com sentido de adicionar ou
enfatizar uma nova idéia, ou de corrigir ou fazer concessões à idéia anterior. Com isso, o
herói marca o ponto de vista individual.
Enquanto roteirista, Plenzdorf pode valer-se de recursos derivados de técnicas
cinematográficas, como a montagem e a apresentação dos fatos. No que concerne à
narração, ao dar voz a um narrador morto que conta seu percurso a partir de uma outra
dimensão, enquanto os vivos discutem acerca de sua morte, o autor consegue empregar a
denominada perspectiva telescópica, através da qual o narrador tem acesso
simultaneamente a situações variadas. Com isso, pode saber o que seus pais pensam – ou
pelo menos o que dizem – a respeito de seu comportamento, como encaram o fato de sua
morte, que atitudes tomam a fim de entender o ocorrido, e o modo como outros
personagens se posicionam a seu respeito. A subjetividade se dá pelo fato de que o
225
Idem. Ibidem. p. 180.
narrador tem acesso ao que os demais falam, podendo extrair os sentidos inerentes a tais
discursos, extrair suas próprias interpretações a partir deles, e fornecer sua própria versão
sobre suas ações, sobre os fatos, e sobre as relações que travara com eles. Não se trata de
uma voz objetiva neutra e unilateral, mas marca-se a dimensão da individualidade humana
do narrador, enfocando sua contingência, permitindo-se problematizar a própria narração.
No romance de Wolf, verifica-se um acentuado emprego da perspectiva
microscópica, de maneira que o narrador é capaz de penetrar o íntimo dos personagens e
revelar seus mistérios psicológicos e espirituais. No entanto, esses mistérios possuem
sentidos mais profundos a ser desvendados, de modo que as palavras remetem ao
simbólico, ao alegórico ou ao polissêmico. O narrador é capaz de mostrar além das
aparências mostrando uma realidade conflituosa e angustiante por trás do véu da
normalidade quotidiana, apontando nas ações e afecções dos personagens os sinais que
indicam estarem afetados por sua história biográfica. A vida ressente-se do rigor do
contexto.
4.2.1 A melancolia em Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des jungen W.
A melancolia, a subjetividade e a volta ao passado são aspectos que perpassam os
romances que compõem o corpus desta análise. Em Die neuen Leiden des jungen W. a
melancolia liga-se ao ceticismo em relação aos fazeres da vida ativa, o que remete ao
contexto da RDA, no qual os trabalhadores têm o dever de louvar as atividades do
proletariado voltadas para o trabalho em prol do funcionamento do regime, ao tipo de
formação técnica e de determinação funcional exigida do profissional, e à apologia cega do
socialismo pregada ao cidadão. Edgar Wibeau vive um estranhamento em relação ao
mundo, do qual se afasta, buscando refúgio num caramanchão em Berlim. Isso indica um
descentramento temporal sofrido pelo protagonista, aspecto típico da melancolia, pois,
segundo Kristeva, “o tempo em que vivemos sendo do nosso discurso, a palavra estranha,
retardada, ou dissipada, do melancólico o conduz a viver numa temporalidade
descentrada”
226
.
226
KRISTEVA, Julia. Sol negro. 1989. p. 61.
Walter Benjamin
227
relaciona a melancolia à “miséria da criatura”, além do que a
considera “uma intenção contemplativa própria da criatura cuja força pode ser observada
na atitude meditativa do gênio”. A melancolia está associada à passividade ou ao ceticismo
em relação às atividades da vida útil, ligada ao utilitarismo burguês: no caso do
Socialismo, ao louvor do trabalho coletivo. Neste sentido, a melancolia é associada à
desolação com que a prática estóica confronta o homem, e concebida como um sintoma de
despersonalização em que a distância entre o sujeito e o mundo é transformada em
alienação com relação ao próprio corpo; e como uma condição patológica colocada em um
contexto incomparavelmente fecundo no sentido de ligar-se a um conhecimento e a uma
sabedoria em que não há relação natural e criadora, mas sim meditação constante e
exaustiva. Na ótica de Benjamin, “é consistente com esse conhecimento que em torno do
personagem de Albrecht Dürer, na Melancolia, estejam dispersos no chão os utensílios da
vida ativa, sem qualquer serventia, como objetos de ruminação”
228
. Guardada a diferença
nos objetivos de cada sistema, em que um volta-se para as exigências do mercado, e o
outro visa à auto-afirmação, verifica-se que não só o Capitalismo fundamentou-se na
produção pautada na utilidade, mas também o Socialismo adotou essa base, de modo que
também a sua prática conduziu o homem à alienação. Esse caráter de alienação da vida útil
e ativa é percebido pelo protagonista do romance de Plenzdorf, que como paralelo de uma
atitude meditativa, adota uma vida baseada na curtição, sem responsabilidades e sem um
objetivo plausível do ponto de vista do sistema, na contramão dos princípios deste, o que
pode ser interpretado como uma tentativa de subversão de valores.
Em Kein Ort. Nirgends, a melancolia tanto vincula-se ao contexto romântico,
em que a ordem pautada no utilitarismo relega o valor da arte, levando o poeta à
marginalização, quanto aponta para uma situação específica da RDA, em que muitos
escritores, ao ver os problemas sociais inerentes ao Socialismo real, sofrem uma perda de
utopia. O funcionamento do regime socialista teve como meios e resultados a repressão, o
autoritarismo, a censura, a massificação e a reificação do homem, o que leva os intelectuais
a desiludirem-se com um sistema a partir do qual julgavam poder construir uma sociedade
mais justa e humanitária. Neste sentido, a obra expressa uma reação aos impactos de um
período de crise, conforme postula a pensadora francesa: “as épocas que vêem o
desmoronamento de idéias religiosas e políticas, as épocas de crise são próprias ao humor
227
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 169.
228
Idem. Ibidem 1984. p. 164.
negro [...] em tempos de crise, a melancolia se impõe, é expressa, faz sua arqueologia,
produz suas representações e seu saber”
229
.
A melancolia nas obras em estudo está ligada a momentos de epifania. Em Kein
Ort. Nirgends, ela expressa a perda da utopia em relação à esperança de libertação e ao
humanismo do sistema socialista, pois esses sentimentos revelaram-se como ilusão na
vigência do Socialismo real. Em Die neuen Leiden des jungen W., aponta para a
perplexidade do sujeito diante das limitações do homem pelas convenções da ordem
socialista, levando-o a contrariar a crença na concepção de que a posse dos meios para
satisfazer as necessidades objetivas é condição suficiente para a felicidade do indivíduo.
Conforme postula o teórico da Escola de Frankfurt,
a meditação do melancólico é compreendida na perspectiva de
Saturno, que ‘como o planeta mais alto e mais afastado da vida
cotidiana, responsável por toda a contemplação profunda, evoca a
alma para a vida interior, afastando-a das exterioridades, leva-a a
subir cada vez mais alto e enfim inspira-lhe um saber superior e o
dom profético’
230
.
Tais traços caracterizam o protagonista do livro de Wolf. Observando o
transcorrer de sua época, Kleist prevê o futuro negativo que a história reserva para a
cultura. Imbuído de Zeitgeist, o personagem encarna a função do bardo, na medida em que
reúne a meditação e a atenção aos problemas históricos que vivencia. A situação presente
afeta o sujeito, incapaz de manter-se indiferente. Eis por que o temperamento melancólico
é típico do intelectual. Ao tematizar a oposição entre arte e ciência, seu discurso leva a
questões mais amplas que, de um lado, apontam para o descaso com respeito aos elementos
da vida afetiva, necessários à satisfação da subjetividade humana; de outro, alegorizam
problemas referentes a conseqüências posteriores dessa oposição: o fato de a ciência ter
passado gradualmente a servir ao desenvolvimento de técnicas de dominação, e o fato de o
primado dos sistemas ter se sobreposto ao primado do homem:
Die Wissenschaften? [...] Die uns ein eisernes Jahrhundert
vorbereiten, in dem die Kunst vor fest verschlossenen Türen
stehen, der Künstler ein Fremdling sein wird? [...] Die Wege von
Wissenschaft und Kunst haben sich getrennt, so redet er [Kleist],
229
KRISTEVA, Julia. Sol negro. 1989. p. 15.
230
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 172.
lahm genug. Der Gang unsrer heutigen Kultur geht dahin, das
Gebiet des Verstandes mehr und mehr zu erweitern, das Gebiet der
Einbildung mehr und mehr zu verengen. Fast kann man das Ende
der Künste errechnen
231
.
A expressão “eisernes Jahrhundert” (século de ferro) pode ser interpretada como
uma indicação de que a ciência serve ao poder. Pensando-se no regime socialista, torna-se
inevitável perceber a relação com a ditadura, representada pela expressão “governar com
mão de ferro”. A ciência alia-se, portanto, à destituição da autonomia do indivíduo. Tal
quadro adquire significado ao levar-se em conta que Christa Wolf afirma ter escolhido a
geração romântica de 1800 para compor o universo do romance por ter encontrado nessa
época as origens da ação da divisão do trabalho sobre o homem. Se os resultados nocivos
da Revolução industrial se fazem sentir acentuadamente neste momento, eles permanecem
no contexto socialista, haja vista ser o trabalho na fábrica uma de suas principais
problemáticas.
Aliena-se a massa ao direcioná-la de todo para os meios de produção material,
privando-a da possibilidade de emancipação intelectual. A arte e a filosofia, dimanadas da
sensibilidade e do pensamento, são necessárias à instrução do povo e aproveitamento dos
bens culturais, devendo ser propiciadas na íntegra, sem cortes originados em
tendenciosismos. O momento em que o mundo se opõe ao homem repousa sobre as
relações materiais. Como parte explorada e oprimida dessas relações, a massa só pode
emancipar-se através do esclarecimento. A crítica do herói incide sobre o fato de que a
sensibilidade, concretizada na arte e na filosofia, detentora do elemento humanizador, é
suprimida pelo racionalismo, que domina a ciência e parte da filosofia. O racionalismo, ao
derivar em racionalidade técnica, confere ao poder o domínio absoluto das relações
materiais. O progresso avilta a arte em favor da ciência, a fim de que pela racionalização se
construa um mundo ordenado, cuja beleza Kleist questiona: „Ordnung! Ja: Ordentlich ist
heute die Welt. Aber sagen Sie mir: Ist sie noch schön?“
232
. A beleza (Schönheit), para o
personagem de Christa Wolf, compreende a autonomia e a humanização. Neste trecho,
pode-se verificar que a autora faz uso de linguagem cifrada para disfarçar a alusão ao
sentido repressor do conceito de Ordnung: ao passo que no nível ficcional o poeta exige o
primado da beleza sobre a ordem racional, no nível da intenção do autor pode-se decifrar
um grau de oposição ao vocábulo ordem como conceito empregado para a repressão, o
231
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 99-100.
232
Idem. Ibidem. p. 97-98.
que remete à expressão Ordnung und Ruhe, veiculada como palavra de ordem política
desde 1848.
O Socialismo na RDA mostra-se voltado para um padrão de objetividade que
coloca as exigências políticas do regime em primeiro plano, em detrimento das prioridades
essencialmente humanas do povo. A ciência é um fator de progresso no que concerne a
essa despersonalização. No entanto, ela é ineficaz na resolução de problemas ligados à
interioridade do homem. No momento em que Kleist propõe a seu médico, Hofrat
Wedekind: „Operieren Sie das Unglück aus mir heraus“
233
, está a pôr um desafio às
ciências, descortinando sua incapacidade de curar as paixões da alma. A melancolia do
herói apresenta-se como “produção de um sentido obscuro que simultaneamente afeta o
corpo e a mente, e deles parece emanar”
234
, de modo que a ciência por um lado não
consegue penetrar os segredos da alma a fim de tratar suas dores, e por outro, aliada do
poder, faz parte do conjunto opressor que angustia o homem, tornando-se agravante.
A melancolia romântica em Kein Ort. Nirgends é a exteriorização do sofrimento
do artista, que se encontra marginalizado e desacreditado pelo poder, ao passo que sabe da
importância de sua voz para que o povo dominado conserve seus valores. As dores de
Kleist sinalizam a interligação entre as doenças do corpo e da alma, as afecções do corpo
resultam de uma disposição anímica, de modo que este reflete o mal-estar dos tempos. A
disposição do intelectual revela uma ambivalência conseqüente de uma alteração no caráter
de seu trabalho: se por um lado ele é inspirado pelo poder divino, irradiando luz sobre sua
obra, por outro é acometido pelo mal e pela morte, projetando a sombra e a escuridão
235
. A
arte tem por essência a criação da beleza, a que Benjamin associa uma tristeza indefinida e
indecifrável. A beleza é prenhe do misterioso poder de carregar sentidos profundamente
enraizados na história e na cultura, no mundo, no homem e na vida.
O motivo do sonho é a manifestação do inconsciente dos personagens a revelar
seus anseios, medos e conflitos. O sonho de Kleist remete ao desejo de dominar a arte, de
alcançar a perfeição, de que a expressão corresponda perfeitamente à idéia pretendida. Tal
insuficiência em fundir o elemento estético e o conteúdo ideológico martiriza o poeta. A
fugacidade da inspiração e o perigo de cair com as formas belas no vazio levam o artista a
eterna e infinita insatisfação. É a busca da expressão, que contém em si a morte. A arte
como criatura indomável que leva o criador à exaustão:
233
Idem. Ibidem. p. 103.
234
LAGES, Susana Kampff. Tradução e melancolia. 2002. p. 33.
235
Idem. Ibidem. p. 45.
Immer sah er ein zöttiges Tier, einen Eber wohl, ein wildes,
schönes, rasendes Geschöpf, dem er nachjagte im atemlosen
Galopp, ihm Zügel anzulegen, es zu besteigen, es sich zu
unterwerfen. Wenn er es auf Schrittweite einholte, sein
bräunliches Fell dicht vor Augen hatte, von seinem heiβen Atem
gestreift wurde – erreichen konnte er es nie
236
.
A revelação de angústias através do sonho constitui aspecto comum aos
personagens. Assim como ocorre com Kleist, o sonho de Günderrode traz à tona traços de
sua personalidade:
Der Druck auf der Brust, seit dem Morgen, seit dem Traum, der
jetzt wieder auftaucht. [...] Es käme ihr so natürlich vor, zu
verbluten. [...] Sie spürte die Wunde sich schlieβen, schwinden. Im
Erwachen faβte sie nach der Stelle: zarte unverletzte Haut. Das ist
es, was ich von ihm haben kann: den Schatten eines Traums. Sie
verbot sich zu weinen und vergaβ den Traum und den Grund für
ihre Trauer
237
.
No sonho da personagem, têm-se a imagem do veado ferido esvaindo-se em
sangue na floresta, motivo este modelado, segundo Wolfgang Kaiser
238
, pelo impulso de
uma “secreta referência ao martírio de um eu solitário”. Günderrode vê a ferida do animal
transposta para seu próprio corpo, e acostuma-se à idéia do sangramento. Este é um indício
da gradação que marca o percurso da personagem e que leva ao extremo de sua morte
biográfica: a partir da idéia do sangramento a heroína acostuma-se à idéia da morte, esta
associa-se ao punhal que carrega consigo, elemento concreto que servirá de instrumento
para a execução do suicídio, ato este que extrapola o tempo da narrativa, sem deixar no
entanto de constituir dado importante para a interpretação do romance: o fato de estes
poetas, em sua biografia, terem posto termo a suas vidas demonstra a impossibilidade de o
sujeito suportar o mundo. A imagem do suicídio com o punhal permite associar a
Günderrode a figura de Lucrécia. O sonho é elemento que aponta para o lugar e a vida
almejados pelo homem, em que este projeta a felicidade e o alívio. Günderrode não
consegue suportar o mundo hostil, só a morte pode lhe fornecer alívio. A ferida do sonho
marca a personagem para o resto de sua existência.
236
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 37.
237
Idem. Ibidem. p. 9-10.
238
KAISER Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. 1976. p. 51-75.
Mesmo que Kleist e Günderrode se encontrem em meio a outros poetas na casa
de Clemens Brentano, eles estão solitários no sentido de que seu drama não é partilhado
pelos demais: a oposição ao Estado, a luta para que a função social da arte não caia no
vazio, para que a autonomia do pensamento seja preservada para todos, para que a emoção
não seja extirpada dessa autonomia. Tal preocupação remete ao conflito vivido pela
própria Christa Wolf junto aos escritores de seu círculo, sofrendo as limitações impostas
pelos setores dirigentes da política cultural à liberdade criadora. Cercear a liberdade de
criação é mortificar a dimensão humana, é atingir a vitalidade do artista. Este é o mal que
acomete Karoline von Günderrode. A manifestação romântica da melancolia torna-se
presente através da dor da alma, mais profunda que a dor corpórea. O pesar torna o tempo
insuportável e encaminha a personagem para a morte. Reconhece-se aqui o poder da
palavra: letal é a nomeação do sofrimento, pois a verbalização aponta para o deflagrar-se
com a verdade, que para muitos dos românticos significa deparar-se com a morte.
Und ihr geheimes Wissen, das Mittel gegen diese wehen Tage zu
besitzen, ohne es noch brauchen zu können, weil es mehr
schmerzen würde, als körperlicher Schmerz je schmerzen kann:
den Grund für ihr Vergehen aussprechen. Durch Benennung
bannen, auch töten. Der Tag, an dem sie den Namen für ihr Leid
vor sich selber ausspräche, müβte ihr letzter sein
239
.
A cegueira do poeta é semelhante à de Tirésias, que enxerga além da visão do
homem normal. É a capacidade de previsão não por meio da adivinhação gratuita, mas
baseada na observação. Kleist e Günderrode percebem muitos dos problemas de seu tempo
manifestarem-se nas atitudes e relações entre os personagens a sua volta. Os intermináveis
momentos de silêncio e inação não são pura idiotia de Kleist, mas consistem em
isolamentos em que o poeta observa e percebe aquilo de que o julgam indiferente. Seu
caráter pouco sociável deve-se tanto ao fato de não suportar as convenções de sua
sociedade exteriorizando-se nos gestos e discursos daqueles com quem convive, quanto à
necessidade de contemplar. A melancolia é sintoma do profundo conhecimento de seu
tempo, de suas necessidades, seus perigos. „Ist wahr, sagt sie [Günderrode]. Unsere
Blindheit. Daβ wir nicht wissen können, wohin unsre Abweichungen von den Wegen uns
führen. Daβ die Zeit uns verkennen muβ, ist ein Gesetz“
240
. As causas da melancolia
transparecem nas palavras de Günderrode: a poetisa expressa dúvida em relação às
239
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 130.
240
Idem. Ibidem. p. 127.
conseqüências de sua luta. Enquanto poetas, ela e Kleist não se adaptam à corrente dos
acontecimentos, denunciam o que julgam errado e injusto. A metáfora do desvio do
caminho tem um sentido dúplice: apontando tanto para os resultados de seu empenho
quanto para o destino a que sua escolha os pode levar. A melancolia é sintoma de que, por
não se renderem à hipocrisia, compactuando com a dominação, sabem-se deslocados em
um tempo que os interpreta mal: um amor mal correspondido não basta para arrebatar o
poeta, porém a incompreensão e rejeição de seu tempo podem aniquilá-lo.
Em Die neuen Leiden des jungen W., o protagonista está habituado a obedecer e
respeitar as vontades da mãe. Como diretora do colégio técnico, ela se imbui de e
representa a normatividade das instituições, estabelecida em conformidade com o Estado.
Com isso, o filho abdica dos comportamentos e da participação em atividades que do ponto
de vista subjetivo não são nocivos, para manter a disciplina. A vontade do indivíduo é
sufocada frente ao que está instituído, na medida em que este se encontra envolvido por
uma moralidade vigilante e excludente, que estigmatiza e condena. O trecho a seguir
refere-se a um momento em que os colegas de Edgar foram para a oficina vestindo
minissaia, brincadeira da qual ele não toma parte:
Ansonsten kann sich von mir aus jeder anziehen, wie er will.
Trotzdem war die Sache ein echter Jux. Hätte von mir sein
können, die Idee. Rausgehalten hab ich mich einfach, weil ich
Muttern keinen Ärger machen wollte. Das war wirklich ein groβer
Fehler von mir: Ich wollte ihr nie Ärger machen
241
.
A mãe de Edgar está ajustada a um conjunto de regras e convenções que
normatizam as relações sociais na RDA e para manter sua posição, precisa ajustar o filho
às exigências do socialismo. O personagem deve servir de exemplo da formação socialista.
Tal formação anula a autonomia do sujeito, por assim dizer adestrado para agir conforme o
que lhe é exigido. A evasão da escola e o abandono das obrigações adquirem o sentido de
reação contra a heteronomia e a alienação. O tema do indivíduo revoltado remonta ao
entusiasmo pela revolução do Sturm und Drang, que leva a uma tentativa ilusória de ação,
e à predileção romântica por tematizar a história do indivíduo marginalizado, do fora-da-
lei, tratando-o como vítima do sistema e representando seu ponto de vista como crítica à
ideologia dominante.
241
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 22.
O protagonista sofre desde o início as pressões da estrutura social que incidem
também sobre a ordem familiar. Seu pai abandona a família, quebrando uma disposição e
uma estrutura que exigem exemplaridade, as quais a mãe se esforça por compensar através
de uma educação rígida segundo o modelo socialista. O filho torna-se depositário das
“setas” desse conflito: “Ich hatte einfach genug davon, als lebender Beweis dafür
rumzulaufen, daβ man einen Jungen auch sehr gut ohne Vater erziehen kann”
242
. O tom
sério com que o herói expressa seu descontentamento – que destoa de sua índole sagaz –
indica não ter sido a simples necessidade de ter regras a seguir e deveres a cumprir o fator
que o leva a revoltar-se e abandonar-se a uma vida desregrada – desregrada em termos de
normas políticas e sociais instituídas, pois o herói faz suas próprias regras – mas sim a
sobrecarga dessas regras. Os exageros cometidos pelo personagem formam o reverso do
excesso imperativo do Estado.
O romance de Plenzdorf é elaborado sobre a base da leitura de Werther associada
em vários momentos a situações bizarras. „Nach zwei Seiten schoβ ich den Vogel in die
Ecke. Leute, das konnte wirklich kein Schwein lesen“
243
. Os comentários de Wibeau a
respeito do personagem de Goethe provocam o riso ao produzirem a idéia de um
adolescente que julga tolas e ultrapassadas as atitudes de um personagem de outra época. A
paródia de um clássico é um recurso do qual se vale o romancista com o objetivo de
canalizar a atenção para tais aspectos, de modo que a censura não perceba as críticas a
questões subjacentes. Ocorre, pois, que questões relativas a opressão remanescem desde
Goethe até Plenzdorf. A própria linguagem do adolescente propicia acessos de humor, caso
que ocorre na noite em que procura algo para ler no caramanchão. „Mein Problem war
bloβ: Ich hatte keinen Stoff“
244
, conta o narrador, e então devido à ambigüidade da palavra
Stoff (matéria, material; droga), previne o leitor para que não pense que se refere a drogas,
mas a algo para ler (Lesestoff). Neste ínterim, conta que certa vez por curiosidade secara
cascas de banana para fumar, deixando implícito o deboche da simplicidade e da falta de
recursos.
In dem Moment fühlte ich mich unwohl. Der Garten war dunkel
wie ein Loch. Ich rannte mir fast überhaupt nicht meine olle Birne
an der Pumpe und an den Bäumen da ein, bis ich das Plumpsklo
fand. An sich wollte ich mich bloβ verflüssigen, aber wie immer
breitete sich das Gerücht davon in meinen gesamten Därmen aus.
242
Idem. Ibidem. p. 23.
243
Idem. Ibidem. p. 36.
244
Idem. Ibidem. p. 31.
Das war ein echtes Leiden von mir. Zeitlebens konnte ich die
beiden Geschichten nicht auseinanderhalten
245
.
A história de como Wibeau encontra o livro está associada a uma “dor de
barriga” que o leva a procurar o banheiro. O fato de encontrar o livro de Goethe nessa peça
permite inferir um rebaixamento dos fatores culturais ao nível de excrementos, o que
indica o descaso e mesmo a ignorância da sociedade vigente para com os valores da
cultura. A elaboração paródica na passagem mencionada opera-se ainda a partir da
intertextualidade: a “dor de barriga” é tratada como um sofrimento legítimo de Wibeau
(ein echtes Leiden), construção discursiva esta que alude aos sofrimentos de Werther e que
particulariza os do herói de Plenzdorf, desconstruindo a seriedade do clássico em
comicidade. Veladamente, o personagem debocha da situação cultural, satirizando os
abusos deste contexto.
Deve-se destacar que um aspecto fundamental da melancolia relativo à ação do
personagem é a solidão, que remete à condição do artista e do intelectual. A criação é um
ato solitário por ser, em sua maior parte, uma realização individual e depender da
concentração proporcionada pela clausura. O preceito da originalidade leva à tentativa de
ocultar o débito para com e a influência dos mestres e das criações anteriores, alegando
independência intelectual. Edgar Wibeau refugia-se na Laube, mas não suporta a solidão
total. Devido a sua natureza, é incapaz de criar obras de arte, motivo pelo qual se deixa
influenciar pelo Werther, pelo qual se aproxima de Charlie e se insere na equipe de
pintores de Zaremba: o herói de Plenzdorf não serve para ficar parado em ambientes
fechados, seu talento é revirar o espaço social para apontar seus defeitos.
Wibeau incorpora a melancolia de Werther na medida em que, num primeiro
nível, a mulher amada já é comprometida, elemento da trama que disfarça a crítica feita
num segundo nível, em que não se adapta ao mundo regrado nem é aceito por este. Com
relação à criação artística, o narrador conta que a opção pela pintura abstrata deve-se ao
fato de não saber desenhar. A angústia do personagem ao lamentar o fracasso de suas
pinturas em folha de papel, permite inferir que, apesar de seu apreço pela arte, sua
atividade artística não passa de uma brincadeira juvenil, carente de um tratamento sério, e
suas „gesammelten Werke“ (obras completas) carecem de valor artístico, consistindo em
amontoado de bobagens: „Weil ich Idiot nie im Leben was Echtes malen konnte, daß man
es wiedererkannt hätte, einen ollen Hund oder was. Ich glaube, das mit der ganzen Malerei
245
Idem. Ibidem. p. 35.
war eine echte Idiotie von mir"
246
. Sua obra-prima situa-se em outro âmbito: em bagunçar
a ordem instituída: „Trotzdem war die Szene an sich nicht schlecht, wie ich da in diese
Hochschule klotzte und gleich rein in das Zimmer von diesem Professor und wie ich ihm
meine gesammelten Werke knallhart auf den Tisch blätterte“
247
. Isso se refere ao
momento em que mostra seus trabalhos para o diretor da escola técnica de pintura, a fim de
obter uma vaga como estudante. Edgar é rejeitado pela instituição, mas encara o encontro
como motivo para cenas de troça, maneira pela qual desacredita o papel dessa entidade
como igualmente produtora de bobagens, com a diferença de ser sancionada pelo Estado.
Além de Os sofrimentos do jovem Werther, entram na composição do universo
do herói, servindo mesmo como indexadores de suas características dois livros por ele
referidos: Robinson Crusoe e O apanhador no campo de centeio, cujas problemáticas
exercem importante papel para a formação do universo ficcional da narrativa em questão.
Isso porque ao remeter a tais obras, a trama de Die neuen Leiden des jungen W.
incorpora um conjunto de significados que dizem respeito ao individualismo e à
discrepância entre a realização das necessidades objetivas e a satisfação das necessidades
subjetivas, que correspondem uma ao acesso a bens materiais, a outra a bens culturais. O
primeiro livro remete ao percurso solitário do indivíduo; o segundo, ao adolescente que
abandona tudo e passa a viver na contra-regra da sociedade:
Meine zwei Lieblingsbücher waren: Robinson Crusoe. Jetzt wird
vielleicht einer grinsen. Ich hätte das nie im Leben zugegeben. Das
andere war von diesem Salinger. Ich hatte es durch puren Zufall in
die Klauen gekriegt. Kein Mensch kannte das. Ich meine: kein
Mensch hatte es mir empfohlen oder so. Bloß gut. Ich hätte es
dann nie angefaβt. Meine Erfahrungen mit empfohlenen Büchern
waren hervorragend mies. Ich Idiot war so verrückt, daβ ich ein
empfohlenes Buch blöd fand, selbst wenn es gut war
248
.
A menção a estes livros é essencial na medida em que trata, de um lado, do
isolamento do indivíduo, e de outro, do jovem rebelado que foge da casa dos pais e rejeita
os padrões. Essas são as características que, ao lado dos caracteres parodiados do Werther,
perfazem a totalidade do herói, tanto em termos de profundidade quanto de superfície,
configurando a imagem do vagabundo, do louco, do fanfarrão e do importuno. O próprio
Wibeau, que fala com tanta admiração sobre Salinger, autor de O apanhador no campo
de centeio, revela algumas semelhanças em relação a ele: „Dieser Salinger ist ein edler
246
Idem. Ibidem. p. 23-24.
247
Idem. Ibidem. p. 24.
248
Idem. Ibidem. p. 33.
Kerl. Wie er da in diesem nassen New York rumkraucht und nicht nach Hause kann, weil
er von dieser Schule abgehauen ist, [...] Wenn ich seine Adresse gewuβt hätte, hätte ich
ihm geschrieben, er soll zu uns rüberkommen“
249
. O deboche adquire perspicácia e graça
no momento em que Wibeau dá a entender que é de sujeitos da categoria de Salinger que a
Alemanha Oriental precisa.
Wibeau tem suas idéias fixas que podem ser consideradas infundadas. Essa
característica remonta ao Werther de Goethe. É a partir daí que o personagem de Plenzdorf
se concentra em alguns objetivos: conquistar Charlie, realizar-se como gênio artístico e
construir sua máquina de pintura. De fato tais idéias servem tanto ao propósito de
ressignificar elementos estéticos em um novo contexto, quanto ao de produzir um efeito de
comicidade e chacota, como se pode perceber através das ações inusitadas do herói:
Ich hatte bloβ die Hoffnung, daβ wir aus diesem See wieder
rauskamen. Ich meine: auf einem anderen Weg. Ich wollte
zeitlebens nie den gleichen Weg zurück machen, den ich irgendwo
hingegangen war. Nicht aus Aberglauben und so. Das nicht. Ich
wollte es nicht. Es langweilte mich wahrscheinlich. Ich glaube, das
war auch so eine meiner fixen Ideen. Wie die mit der Spritze zum
Beispiel
250
.
A melancolia de Wibeau não se reflete no desejo de morte — talvez em uma
espécie de hiperatividade, que resulta na exigência de vida. Conforme explica Emmerich,
“um indivíduo revoltado/reivindicativo como Edgar Wibeau perece porque diante de
determinadas condições não pode ser ele mesmo”
251
. Em uma sociedade real-socialista
como a RDA não há lugar para sujeitos não adaptados ao trabalho pelo sistema. A
melancolia de Wibeau não é transcrita em desejo de morte, como em Werther, mas numa
vitalidade exagerada, tal que o personagem não se perde em tédio ou contemplação, mas
age incansavelmente. Essa melancolia invertida repercute nos resultados da ação do herói:
sua atividade não tem utilidade, não serve ao ideal de trabalho do Socialismo.
Como alusão aos sofrimentos de Werther, e principalmente como distinção em
relação a eles, Edgar Wibeau apresenta seus próprios sofrimentos, que pertencem a uma
ordem diversa da do romance de Goethe, em virtude de se situarem em um novo contexto.
Ele sente-se limitado pela incompatibilidade entre o estilo dos músicos que pensara em
249
Idem. Ibidem. p. 33.
250
Idem. Ibidem. p. 133.
251
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 181.
adotar e os padrões impostos para um estudante exemplar, educado de acordo com o
Socialismo. Portanto, o jovem precisa abdicar dos gostos e vontades próprios:
[...], die >>Groβe Melodie<<, das war eine Art Paradies für mich,
ein Himmel. [...] Anfangs war mein Problem in der >>Groβen
Melodie<< bloβ, daβ ich keine langen Haare hatte. Ich fiel
ungeheuer aus dem Rahmen. Als echter Vorbildknabe, durfte ich
in Mittenberg natürlich keinen Kanten haben und eine Innenrolle
schon gar nicht. Ich weiβ nicht, ob sich einer vorstellen kann, was
das für ein Leiden war. [...] Ob das einer glaubt oder nicht – meine
Haare wurden am Tag schätzungsweise zwei Zentimeter länger.
Das war lange Zeit ein echtes Leiden von mir
252
.
O trecho citado aponta para um sentido de exagero, empregado com apelo
cômico, que serve para ridicularizar e dessacralizar os preconceitos inerentes aos padrões
aceitos. Empregam-se ainda metáforas para a morte, como índice de um desequilíbrio na
ordem do mundo, da inevitabilidade de sua morte, mas também do fato de que esta fora
provocada por suas próprias ações: „Das war der erste Stein zu meinem Grab, Leute. Der
erste Nagel zu meinem Sarg“
253
. Seu infortúnio está ligado à construção da máquina de
pintura, que remete a questão de seu caráter obsessivo e imaturo, que o leva a lidar com um
mecanismo perigoso, sem os instrumentos e as precauções adequados:
Auβerdem hatte der Motor natürlich dreihundertachzig Volt. [...]
Das heiβt, ich muβte die zweihundertzwanzig in der Laube erst
hoch transformieren. Ich hoffte bloβ, daβ der Trafo in Ordnung
war, den ich hatte. Irgendein Meβgerät hatte ich nicht. Das war
wahrscheinlich ein weiterer Nagel zu meinem Sarg
254
.
A melancolia está associada à perda de um objeto amado, que gera uma
perturbação da auto-estima. Essa autodepreciação resulta do fato de projetar-se a perda no
próprio eu e liga-se a uma perda de interesse pelo mundo externo, na medida em que este
não evoca o ente perdido. Para Werther, o mundo perde o valor em função da frieza das
convenções sociais e das relações políticas, embebidas do racionalismo; por não poder
esposar Charlotte, perde o encanto. Em sua história, a impossibilidade de unir-se à amada
252
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 61-63.
253
Idem. Ibidem. p. 109-110.
254
Idem. Ibidem. p. 142-143.
reflete no desprezo por si mesmo e pelo mundo. A autodepreciação de Wibeau dá-se no
sentido de reconhecer que sua relação com Charlie é um atrevimento, motivo pelo qual
atribui a si próprio o adjetivo “idiota”. Wibeau ridiculariza o mundo não em virtude da
consciência de não poder desposar a moça, mas apenas pelo fato de que o próprio mundo
se lhe opõe.
A paródia provoca o efeito estético através do qual se espera um paralelismo
entre as duas tramas, de modo que a melancolia parece provocada pelas mesmas causas em
ambos os heróis. No entanto o protagonista de Plenzdorf dispõe dessa ambivalência a fim
de mascarar a contundência e a transparência das críticas lançadas por sua índole
melancólica à tirania do poder político na RDA. O temperamento melancólico de Wibeau
materializa-se não no desejo de morte, mas no de aproveitar a vida. Daí ser o atrevimento
uma característica através da qual a paródia pode criar a comicidade. Se na opinião de
Wibeau, Werther é, por assim dizer, um otário deprimido, que desperdiça suas melhores
chances, Wibeau é pelo contrário um malandro, sentido este em que se pode distingui-lo
por uma melancolia invertida:
Auβerdem sah ich natürlich, daβ Charlie rot wurde. Ich meine, ich
sah es nicht. Ich konnte sie die ganze Zeit einfach nicht ansehen.
Ich hätte sonst wahrscheinlich irgendeine Riesenidiotie gemacht.
Aber ich merkte es. Wahrscheinlich ging in dem Moment ihr
gröβter Traum in Erfüllung, daβ ich und Dieter gute Freunde
wurden
255
.
A melancolia associa-se às limitações que acometem o homem, à incapacidade
de realizar plenamente a criação, de atingir o resultado ideal na arte. No âmbito da
tradução, ocorre uma autodepreciação do sujeito devido à apropriação de textos alheios,
considerada como uma espécie de roubo
256
. No caso de Edgar Wibeau, por ocasião da
construção de sua máquina de pintura, este toma às escondidas algumas peças da máquina
construída por outro personagem. Intimamente, ele percebe que não tem condições de ser
bem sucedido com seu experimento, porém é movido por sua teimosia característica. Traço
da própria juventude, seu orgulho não o deixa admitir seus limites. O perecimento do herói
vincula-se, pois, a um temperamento melancólico lembrado por Walter Benjamin, o de
quem aspira ao absoluto, mas é vencido pela consciência da finitude:
255
Idem. Ibidem. p. 119.
256
LAGES, Susana Kampff. Tradução e melancolia. 2002. p. 35.
Schätzungsweise war es am besten so. Ich hätte diesen Reinfall
sowieso nicht überlebt. Ich war jedenfalls fast so weit, daβ ich Old
Werther verstand, wenn er nicht mehr weiterkonnte. Ich meine, ich
hätte nie im Leben freiwillig den Löffel abgegeben. Mich an den
nächsten Haken gehängt oder was. Das nie. [...] Das war vielleicht
mein gröβter Fehler: Ich war zeitlebens schlecht im Nehmen. Ich
konnte einfach nichts einstecken. Ich Idiot wollte immer der
Sieger sein
257
.
Ao tematizar a morte do indivíduo humano no Socialismo, Plenzdorf quebra um
profundo tabu. A morte é uma situação fundamental da impotência humana, um
antagonismo que deve ser reprimido em uma sociedade real-socialista, que considera fora
de moda todas as relações antagonistas
258
através de uma auto-representação como uma
sociedade sem conflitos. Portanto, o autor se vale de um primeiro plano para abordar o
tema da morte, no qual refere-se a ela como algo engraçado e distante: Wibeau ridiculariza
o fato de Werther ter cometido suicídio, como se fosse algo ultrapassado, de modo que se
desvia a atenção para o fato de a trama da obra pré-romântica parecer jocosa aos olhos do
homem do século XX. Em outro plano, comparando-se ao herói goetheano, Wibeau afirma
não ter morrido por vontade própria, como aquele, mas ter entendido quando ele não mais
podia suportar o mundo. Com isso, as frases do protagonista permitem entrever uma
concepção de mundo que associa o tema da morte à pressão da realidade social sobre o
indivíduo. Assim, a melancolia apresenta-se, como já referido, invertida.
4.2.2 A subjetividade em Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des jungen W.
A subjetividade ocorre em ambas as obras através da narração, realizada não por
uma voz objetiva, mas pelo relato de um narrador personificado, de um eu marcado por
conflitos, imprecisões e limitações, e da expressão direta de personagens. Em Die neuen
Leiden des jungen W., mesclam-se os diálogos de personagens e os comentários do
narrador-protagonista, Edgar Wibeau, acerca de sua morte. A narrativa constrói-se a partir
de versões, englobando discussões e conjeturas, a respeito desse fato, caso este em que a
subjetividade se manifesta nas opiniões pessoais, o que marca a limitação do indivíduo
257
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 147.
258
EMMERICH, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 181.
tanto em termos da impossibilidade que a linguagem apresenta de estabelecer certezas
absolutas, visto estar ligada ao sujeito, quanto em termos das limitações dos próprios
recursos epistemológicos de que o ser humano dispõe. Em Kein Ort. Nirgends, o narrador
é um personagem que observa Kleist e Günderrode, tendo acesso senão à consciência, pelo
menos ao inconsciente deles, numa tentativa de expressar os sofrimentos que os afligem, o
que, através da impossibilidade de fornecer uma compreensão exata e fechada das suas
manifestações, confere força aos significados que rodeiam esses personagens.
O conceito de subjetividade, conforme definição de Luiz Bicca,
259
consiste em
“uma noção que enfreixa ou se encontra em relação necessária com uma série de outros
conceitos, que, conjugados, circunscrevem uma problemática: Eu, consciência, consciência
de si, auto-referência, autodeterminação, personalidade, espírito”. Segundo o pensador, o
termo sujeito remonta ao grego hipokeimenon, concebido por Aristóteles como o que está
na base, o que porta ou serve de suporte para algo. O sujeito apresenta um aspecto de
fixidez ou constância que remete ao conceito de autoconservação, o qual constitui uma
atividade atribuída ao homem. Essa atividade lhe é própria no sentido de que o homem a
realiza e de que cabe a ele o caráter de ratio última de seu próprio ser. A autoconservação
só pode ser sustentada como princípio de uma atividade humana se a subjetividade for
pensada com base na liberdade. Ela significa um esforço de afirmação na própria
existência, a atividade incessante de manter o próprio ser, que, como um princípio tanto da
vida individual quanto coletiva ou social, refere-se à natureza do homem
260
.
A tradição idealista toma a subjetividade do indivíduo como fundamento a priori
do conhecimento e da constituição do indivíduo. Por sua vez, a sociologia desmistifica o
apriorismo da subjetividade idealista, demonstrando como a sociedade produz os
indivíduos, considerando a subjetividade como uma formação da e para a cultura. Em
Marx, a ideologia como resultado necessário de um estado de coisas irracionalmente
objetivo determina formas e limites da constituição do eu. Neste sentido, a subjetividade
não é concebida como arrancada ao indivíduo, mas tem negado seu pressuposto fundante a
fim de ser situada em relação à materialidade do mundo objetivo, bem como para criticar a
falsidade de uma sociedade que proclamava o indivíduo no mesmo instante que o reifica e
aliena. Segundo a perspectiva sociológica marxista, a subjetividade não é descolada do
indivíduo e o reconhecimento do peso irrefutável do todo social não se constitui em
impedimento total à visualização da autonomia potencial do indivíduo. A negação do
259
BICCA, Luiz. Racionalidade moderna e subjetividade. 1997. p. 145.
260
Idem. Ibidem. p. 146-147.
apriorismo subjetivista não implica a impossibilidade do indivíduo, que permanece como
instância deliberativa, cognoscitiva e atuante no mundo, não obstante todas as suas
conformações e limitações sociais. A subjetividade como instância de mediação interior do
mundo social, é concebida como sediada no indivíduo, ao qual é possível ser o agente da
ação racional, a instância capaz de pôr-se a si mesma como objeto de reflexão, ou esforçar-
se por compreender suas próprias leis de dominação social
261
.
A adoção do recurso subjetivo responde aos preceitos do Realismo socialista.
Lukács, ao exigir um padrão objetivo de representação, rejeitava as manifestações da
subjetividade, considerando-a em termos de contingência, de relatividade, de aproximação
imediata e acrítica da realidade, de falta de unidade, de incapacidade para organizar-se
politicamente e promover a transformação histórica da sociedade. A subjetividade
manifesta-se então como a expressão de sujeitos particulares que sofrem a crise de seu
contexto histórico, sujeitos individuais e desarticulados que revelam a desarticulação da
própria coletividade, capazes de agir isoladamente, mas avessos à organização em
movimentos políticos, sentidos como massificação no contexto da RDA. O subjetivo opõe-
se à generalidade dos conceitos lukácsianos de típico e de modelar, mostrando não uma
completa concordância com as relações sociais, mas antes resistência contra sua ação
limitadora da liberdade e da capacidade do indivíduo.
Na obra de Wolf, devido à incorporação da poesia, em especial a lírica, à
estrutura romanesca, a subjetividade afigura-se também como subjetivismo, que, nos
termos de Emil Staiger
262
, advém da expressão de um eu. Deste modo, tem-se um clima
lírico, de emotividade e afetividade, ligado ao íntimo e ao sentimento, imbuindo-se a
narrativa do que Staiger denomina atitude fundamental lírica: a fusão entre sujeito e objeto,
o não distanciamento entre eu e mundo, em que mundo interior e mundo exterior são
envolvidos pelo estado anímico. A recorrência de construções paratáticas indica a
liberdade da expansão das emoções em vez do emprego do nexo lógico de dependência
entre idéias. Esse não distanciamento indica o teor do sofrimento que o mundo hostil
imprime sobre o sujeito e o modo pelo qual esse sofrimento é experienciado. Na obra de
Plenzdorf, a subjetividade ocorre ao passo que todos os elementos do universo ficcional
são submetidos aos juízos e deboches do eu do protagonista. Ambas as obras conformam-
se à concepção segundo a qual:
261
POLICARPO JÚNIOR, José. Ideologia e subjetividade: a mediação da educação no capitalismo
globalizado.
262
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. 1997. p. 19-75.
[o] sujeito que fala no romance é um homem essencialmente
social, historicamente concreto e definido e seu discurso é uma
linguagem social. [...] [Ele] é sempre um ideólogo e suas palavras
são um ideologema. Uma linguagem particular no romance
representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que
aspira a uma significação social
263
.
Em Kein Ort. Nirgends, as relações sociais implicam na privação da liberdade
do indivíduo. Os personagens sentem-se limitados por depender de ligações externas,
consistam essas de laços emocionais ou de relações profissionais. A sensibilidade de Kleist
permite perceber em profundidade filosófica o sufocamento provocado pelas relações
sociais, pois estas, em vez de servirem à realização do sujeito, ocupam-no em função da
dinâmica de sua própria conservação: „Wie wahr. Das Unglück, [...] von Bindungen
abzuhängen, die mich ersticken, wenn ich sie dulde, und mich zerreiβen, wenn ich mich
löse. Dies ist ein Übel, das mit den Jahren nicht sanfter, nur schneidender wird“
264
.
Percepção semelhante acomete Günderrode. Por ocasião do episódio envolvendo a
revelação do punhal que carrega em sua bolsa, a personagem precisa encontrar uma forma
oportuna para desembaraçar-se da situação. Para tanto, ela não pode agir conforme sua
vontade própria, devido à necessidade de seguir uma série de práticas do comportamento
social. Por isso precisa dissimular seus desejos e tormentos e controlar seus atos: „Die
Günderrode haβt es, von so vielem abzuhängen, dem sie gar keinen Einfluβ zugestehen
will, und mehr als alles andre haβt sie es, darauf ertappt zu werden. Beschämung“
265
. Nas
passagens citadas, as manifestações subjetivas dos poetas são contrapostas à objetividade
das ligações inter-humanas. Este mal-estar remete às relações e ao trabalho dos grupos de
escritores na RDA, tolhidos pelo dinamismo histórico e político.
A problemática desse romance tem a ver com uma existência limitada: as
possibilidades de realização do indivíduo são restringidas por um mundo difícil de
suportar. „Auch eine eingeschränkte Existenz läβt sich dehnen bis zu ihren Rändern, die
vorher unsichtbar sind“
266
. Ao divisar o abalo provocado pelo mundo externo sobre os
movimentos interiores do homem, Christa Wolf toca em questões existenciais. A realidade
externa, em seu conjunto objetivo, afeta a dimensão ontológica do sujeito, cujas
263
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 1993. p. 135.
264
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 51.
265
Idem. Ibidem. p. 57.
266
Idem. Ibidem. p. 130.
impressões e hesitações demonstram a fragilidade do ser. Günderrode sente a necessidade
de conter-se diante da realidade ameaçadora. A necessidade de libertar-se e expressar
explode-lhe em arroubos. A luta do sujeito envolve o esforço contra o risco de ser mal
interpretado por seu tempo. A ameaça do poder político contamina a história e a cultura,
atacando o homem em todos os sentidos. Günderrode guarda-se em seu desconhecimento,
pois em sua humildade feminina, teme a insuficiência, teme a responsabilidade que
sobrevém com o reconhecimento. O medo da mediocridade, da incapacidade de levar a
arte à desejada perfeição, o medo diante da elevação do dever e do perigo de enfrentar a
realidade que da grandeza se segue. O dever de conter-se em virtude do rigor das
convenções mortifica o homem como os clérigos mortificavam a carne durante a Idade
Média nos rituais de autoflagelação. A realidade é representada não apenas como o
ambiente onde o homem vive, mas principalmente como um obstáculo, contra o qual ele se
choca e fere, uma muralha destinada a prendê-lo: metáfora essa cujo referente pode ser
reconhecido no Muro de Berlim, elemento que melhor representa a realidade desumana da
pátria de Christa Wolf:
Auffällige Gesten meidet sie, so lange es möglich ist. Sie hat das
Unglück, leidenschaftlich und stolz zu sein, also verkannt zu
werden. So hält sie sich zurück, an Zügeln, die ins Fleisch
schneiden. [...] Gefährlich wird es, wenn sie sich hinreiβen lieβe,
die Zügel zu lockern, loszugehn, und wenn sie dann, in heftigstem
Lauf, gegen jenen Widerstand stieβe, den die andern Wirklichkeit
nennen und von dem sie sich, man wird es ihr vorwerfen, nicht
den rechten Begriff macht
267
.
Confrontado com a realidade, o sujeito manifesta uma complexidade que reflete
tanto as complicações do vínculo e embate com a realidade quanto os conflitos inerentes a
ele próprio. A unidade do sujeito é abalada em diversidade, perturbação e desordem. O
exagero e a unilateralidade romântica apontam na direção, indicada por Hauser, de uma
incompreensão da realidade, se considerar-se que o caráter romântico denota uma falta de
aptidão para lidar com os interesses políticos. Por outro lado, a agonia de Kleist e
Günderrode refere-se à percepção do estado de coisas originado nas próprias condições
políticas, cujo efeito é sentido pelos homens. A atividade dos personagens ancora-se na
vida, apresentando em seu discurso e pensamento a constituição do homem afetado pela
relatividade, pela descontinuidade e pela contingência da realidade social.
267
Idem. Ibidem. p. 11.
Günderrode sente em seu íntimo as distorções do eu, as quais sabe que precisa
aprender a aceitar. A personagem feminina reconhece a falta de integridade do sujeito, a
fragmentariedade, as relações com a alteridade que agem sobre sua constituição. Tal
estado deixa como única alternativa ao sujeito a necessidade de superar a si mesmo, pela
aceitação de suas limitações. Günderrode sabe que o ser humano não está preparado para
lidar com suas próprias insuficiências, com as falhas da vida. Portanto, a morte é o que ela
tem em perspectiva:
Leicht würde jedes Beisammensein, selbst ein harmloses wie
dieses, zum Mördertreffen. Oder wir lernten es, uns über uns selbst
zu erheben, ohne Haβ in die Zerrspiegel zu blicken, welche die
andern uns sind. Und ohne Trieb, die Spiegel zu zerschlagen. Dazu
aber, sie weiβ es ja, sind wir nicht gemacht
268
.
Ainda que sob o perigo de desestruturar-se, a subjetividade manifesta-se através
da reflexividade, pois tanto Günderrode quanto Kleist são capazes de refletir acerca da
situação em que se encontram. Constituem-se à medida que reconhecem o que significam
para si mesmos e para os outros com quem convivem, i. e., a subjetividade forma-se a
partir da relação. A subjetividade envolve não apenas o ser do homem, mas também seu
fazer: a valorização do trabalho, típica da Revolução Industrial e elevada ao patamar de
ideal no Socialismo, tem seu correlato no domínio intelectual. Se Kleist e Günderrode, ao
representarem o homem do Romantismo, definem-se em função da formação de idéias e da
criação artística, a mesma questão pode ser estendida à própria Christa Wolf, como
escritora comprometida com a RDA.
A oposição entre sujeito e realidade dá-se em nível de contestação e resistência.
Günderrode rejeita o mundo das convenções, a estrutura em que opera a trama do poder, e
irmana-se com o mundo da natureza e da arte. A emoção é o elemento através do qual a
personagem pode buscar a liberdade: apenas neste âmbito realiza-se o princípio lírico da
fusão entre eu e mundo. Característica de Günderrode é a faculdade da reflexão, que
emprega para avaliar a situação do contexto em que vive. „Doch zu Verstellung und
Entgegenkommen fehlt mir ein für allemal die Lust. Ich fühle zu nichts Neigung, was die
Welt behauptet. Ihre Forderungen, ihre Gesetze und Zwecke kommen mir allesamt so
verkehrt vor“
269
. A dimensão ética do sujeito opera no sentido do discernimento do errado.
268
Idem. Ibidem. p. 11-12.
269
Idem. Ibidem. p. 9.
A subjetividade remete ainda à questão da mulher, sua índole, papel e condição,
bem como a marcação de seu ponto de vista em relação à opressividade do contexto. A
sensibilidade e a intensidade da mulher exprimem especial acuidade para revelar o
fenômeno desumano e ilegítimo que assola a humanidade: „Die Frau. Als habe sie eine
Ahnung von dem entsetzlichen Widerspruch, auf dessen Grund das Verderben der
Menschheit liegt. Und als brächte sie die Kraft auf, den Riβ nicht zu leugnen, sondern zu
ertragen“
270
. O narrador atribui à figura da mulher um caráter de resistência, no sentido de
que ela encara o abismo dos tempos em que vive. Günderrode não fecha os olhos para os
problemas de seu tempo, pelo contrário, mostra estar consciente deles.
O romance de Wolf tematiza a relação entre a mulher e a arte, problemática que
remete aos anseios da escritora. O drama escrito por Günderrode contribui para o
entendimento da vida e de suas concepções de mundo. A literatura como veículo de idéias
e propagação de ideologias. A arte é um lugar conquistado pela mulher, e reflete a
conquista da autonomia para e do direito de luta e representação. Kleist e Günderrode são
aliados na arte como homem e mulher devem ser aliados na luta por justiça, liberdade e
humanidade. A profunda entrega à arte, que para alguns consiste num erro, é bálsamo que
revigora a heroína: „Er [der Fehler] hält mich oft schadlos für die ganze Welt. Und er hilft
mir glauben an die Notwendigkeit aller Dingen, auch an die meiner eignen Natur, so
anfechtbar sie ist. Sonst lebte ich nicht“
271
. A problemática da arte, como faculdade e
prática que proporcionam ao sujeito a possibilidade de reflexão, suscita a necessidade de
pessoas de natureza contestadora para o mundo. A força de criação repercute na força vital
do indivíduo. Assim como Günderrode esconde uma verdade nas linhas de sua poesia,
também Christa Wolf alegoriza algo nas linhas de seu romance:
Warum wollen Sie mir nicht zugestehn, daβ ich in der Poesie wie
in einem Spiegel mich zu sammeln, mich selber zu sehen, durch
mich hindurch und über mich hinaus zu gehn suche. [...]
Unheimlich bin ich ihnen, doch können sie nicht sagen, warum.
Ich weiβ es: Ich bin unter ihnen nicht heimisch. Wo ich zu Hause
bin, gibt es die Liebe nur um den Preis des Todes. Und ich staune,
daβ diese offenbare Wahrheit niemand auβer mir zu kennen
scheint, und daβ ich sie, wie Diebsgut, in den Zeilen meiner
Gedichte verstecken muβ
272
.
270
Idem. Ibidem. p. 101.
271
Idem. Ibidem. p. 77.
272
Idem. Ibidem. p. 45-46.
Para Günderrode, a poesia guarda uma verdade, o que aponta para a defesa dos
princípios da simbolização e da alegorização, como recursos que permitem a Christa Wolf
estreitar os laços entre o fenômeno estético e o político, trazendo a dinâmica social para o
universo da obra. Com base nessa passagem, pode-se constatar que a personagem projeta
uma perspectiva de encontrar a paz e a felicidade apenas na morte. O evasionismo
romântico dá-se no sentido de denunciar a falta de amor no mundo regido por relações
sociais e políticas. O sujeito compromete-se com o mundo social na medida em que almeja
uma sociedade mais humanitária, em que se dê a devida importância aos valores
subjetivos. A angústia da poetisa é a dor de quem não consegue ficar indiferente ao mal de
seu tempo, mas não se pode opor abertamente: a poesia torna-se o registro e a memória da
verdade.
A subjetividade liga-se à dimensão humana do ser, no sentido de que sua
constituição envolve aspectos básicos: o corpo, a linguagem, o pensamento e os
sentimentos; a distinção entre os gêneros; a experiência e as histórias acumuladas ao longo
da vida; bem como a inserção e os papéis sociais, políticos, históricos e culturais.
Direcionando-se a atenção para Günderrode, pode-se perceber em seus discursos, gestos e
ações uma dialética entre o padrão exigido pelas relações sociais e a medida de sua
vontade e gosto. O fenômeno do dialogismo manifesta-se nos contatos inter-subjetivos, em
que o discurso, e mesmo a ação, de um personagem é condicionada pela expectativa, pela
reação e pelos juízos potenciais a serem provocados nos outros. Além disso, os sujeitos não
se definem apenas pelo valor de suas palavras, o olhar e os gestos carregam significados
cabais para sua constituição. A sensibilidade da mulher permite perceber significados
interiores nas aparências exteriores. O olhar e as feições mostram sinais afetivos, além do
que, nesse nível, pode revelar-se a verdade que as palavras encobrem:
Ihre Augen sprächen eine andere Sprache als ihre Münder [...]
Später sagte die Günderrode leise zur Bettine, sie wollte doch
einmal darüber nachdenken, was es bedeute, daβ die ernstesten,
schmerzlichsten Dinge in einer Maskerade unter die Leute kämen;
ob nicht eine schwere Krankheit des Gemeinwesens sich hinter so
viel lächelnden Mündern verstecke
273
.
Günderrode percebe um mal-estar por trás dos rostos. A expressão “bocas
risonhas” marca a recorrência do motivo da gargalhada, mencionado já no início da obra,
273
Idem. Ibidem. p. 33.
anunciando um escarnecimento geral, cósmico, ontológico e existencial que se abate sobre
o homem: „Jahrhundertealtes Gelächter. Das Echo, ungeheuer, vielfach gebrochen“
274
. A
referida doença do ser é a enfermidade do mundo.
A figura de Savigny encarna o papel do dominador, que impõe sua opinião e sua
lucidez, o que contrasta com as figuras Kleist e Günderrode, que materializam o papel do
fraco e do melancólico. Savigny representa a posição do racionalismo, ao passo que os
outros defendem os valores afetivos e emocionais. Kleist e Günderrode definem-se pelo
termo fragilidade (Gebrechlichkeit), empregado em oposição ao mundo opressor das
convenções (Konvention, Übereinkunft). Aludindo à Revolução Francesa, Savigny prega a
separação entre o reino do pensamento e o reino da ação:
Die Wohltat liegt in der Gedankenfreihet, die wir dieser weisen
Einrichtung schulden. Oder wollt ihr es wirklich nicht sehn,
welche Einschränkung auf allem Denken läge, wenn wir fürchten
βten, unsre Phantasien könnten in die wirklichen Verhältnisse
Eingang finden. [...] Daβ man die Philosophie nicht beim Wort
nehmen, das Leben am Ideal nicht messen soll – das ist Gesetz.
[...] Es ist das Gesetz der Gesetze, [...] auf dem unsre
menschlichen Einrichtungen in ihrer notwendigen Gebrechlichkeit
beruhn. Wer dagegen aufsteht, muβ zum Verbrecher werden. Oder
zum Wahnsinnigen
275
.
Savigny encarna a voz do poder instituído, que por sua essência opera através das
práticas de exclusão, entre as quais Foucault
276
destaca a separação e a rejeição, casos em
que se insere a oposição entre a razão e a loucura. Para o teórico, o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos demais, podendo sua palavra ser considerada nula,
desprovida de importância e de verdade; ou, por outro lado, pode-se lhe atribuir o poder de
dizer uma verdade encoberta, de pronunciar o futuro ou de enxergar o que a sabedoria dos
demais não é capaz. A loucura que pode ser atribuída a Kleist nada mais é senão a coragem
de contrariar as instituições do poder e seus aparatos ideológicos. Suas palavras correm o
risco de ser ignoradas ou de não ser aceitas. Enquanto poeta comprometido com seu tempo,
Kleist tem algo a denunciar. Por isso responde:
274
Idem. Ibidem. p. 5.
275
Idem. Ibidem. p. 62-63.
276
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 2004. p. 8-21.
Die Philosophie also, Sie sagen es selbst, ist grund- und bodenlos
geworden. Das können Sie wörtlich nehmen, und wären Sie in
Frankreich gewesen wie ich und hätten Sie gesehn, was ich
ansehen muβte, so wüβten Sie, was ich meine. Man hat ihr die
Gründe vertauscht, den Gedanken den Boden weggezogen
277
.
O sentido das palavras do herói indica a desilusão a respeito dos desdobramentos
da Revolução Francesa e adquire um cunho de crítica à inversão de princípios pela qual o
sacrifício do povo resultara em uma troca de classes dominantes. Se para Savigny, a união
do pensamento e da filosofia com a ação constitui um problema, para Kleist, ao contrário,
este reside no emprego que deles é feito. O poeta refere-se à manipulação, à inversão dos
valores a fim de justificar os abusos do poder. A alusão à Revolução Francesa serve de
alegoria para a Revolução Socialista, tendo como parâmetro o fato de que em ambas o
ideal não se concretiza, por carecerem do componente humanista. Em ambas o povo é
ignorado e relegado, explorado com o fim de alimentar o sistema. As palavras do herói
simbolizam a situação geral da RDA, em que o Estado manipula tanto o saber teórico
quanto o prático, seja por meio da distorção, seja da negação do acesso. Por um lado, pode-
se aludir às alterações feitas pelo Partido na teoria do realismo de Georg Lukács, por outro
a alienação e a ignorância impingidas à massa.
Kleist incorpora características atribuídas por Walter Benjamin ao contador de
histórias: a qualidade de adquirir experiências no sentido da distância espacial, ou seja,
pelo fato de viajar, ele adquire a sabedoria advinda das terras distantes. O poeta apresenta a
função de testemunha: „Rousseau [...] sei das vierte Wort der Franzosen. Und wie würde er
sich schämen, käme er jetzt nach Paris und man sagte ihm, dies sei sein Werk“
278
. Ter
estado presente é a causa da desilusão que leva o poeta a pensar com referência à França:
„Wie man haβt, was man zu sehr geliebt hat“
279
. Tal desilusão remete à crise ideológica e
existencial do intelectual diante do Socialismo real. Mesmo venerando o Socialismo,
muitos dos artistas perdem as esperanças e a crença no regime político e no estado social
em que vivem e atuam: a totalidade que experienciam não corresponde a seu ideal. A
imperfeição do sistema não se deve ao fato de o processo não se haver concluído, mas a
uma falência interna gerada pela disputa do poder. A experiência faz parte da história de
Kleist, informa suas convicções ideológicas e se reflete em sua obra. Através da história
277
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 63.
278
Idem. Ibidem. p. 59.
279
Idem. Ibidem. p. 53.
de sua vida, o protagonista constitui-se como homem, afirma-se para si mesmo e frente à
realidade.
O homem define-se como sujeito ao refletir sobre si mesmo e sobre o mundo, em
relação ao qual se situa. Ancorado na Fenomenologia de Husserl, em um ensaio acerca da
criação poética, Orlando Fonseca
280
permite inferir que a concepção de sujeito envolve o
homem, que, em sua vivência, apreende o mundo e os objetos que o constituem através da
consciência – entenda-se esta como intenção dirigida para o mundo –, formando a partir
daí sua experiência. Sujeito, portanto, é o ser dotado de consciência e de intenção que se
relaciona com o mundo através das faculdades intuitivas da percepção e da imaginação. A
primeira refere-se à possibilidade de por assim dizer abstrair os objetos na presença destes.
A segunda visa ou recupera o objeto que está ausente. Na composição do sujeito, a
consciência é precedida e mesmo excedida pelo inconsciente, cujos elementos escapam à
determinação e exigem esclarecimento pela reflexão. O autor afirma o pressuposto de que
assim como o mundo é constituído, ou seja, ganha sentido, na consciência do sujeito,
também o sujeito é constituído pela reflexão sobre sua própria vida. A unidade do eu é
dada pela possibilidade de assumir na reflexão os momentos da vivência desde as origens,
o que significa constituir-se o sujeito pela apreensão de sua história.
Kleist define os limites de sua própria subjetividade ao refletir a respeito das
condições em que experiencia os acontecimentos e de como estes afetam sua existência:
„Über Gebrechlichkeit soll reden, wer sie am eignen Leib erfahren hat“
281
. Essa
historicidade do sujeito refere-se ao homem atuante no mundo, cujo pensamento e
atividade desempenham importante função na produção da história. O herói luta por
autonomia histórica, através da reflexão acerca do homem e de seu lugar na realidade,
assim como conhece o peso do conjunto das relações sociais para a constituição do
homem, mas sabe que este não pode entregar-se passivamente a elas, sob pena de perder-se
em seu movimento desarmônico. A realização do homem enquanto sujeito faz-se ao voltar
seu pensamento e sua atividade para a transformação da realidade social. A própria
historicidade implica na duplicidade do sujeito: os estados patológicos de Kleist atestam,
junto à referida unidade, a fragmentariedade do sujeito, devida, no caso em estudo, ao
caráter opressivo do todo social e político. A fragilidade é um conceito recorrente na obra
de Kleist: a fragilidade do mundo e a fragilidade do homem. Em sua biografia, várias vezes
sofre as conseqüências da lei, por isso seus personagens perecem sob a força do poder
280
FONSECA, Orlando. Consciência e imaginação produtiva. In: GONÇALVES, Róbson Pereira. (Org.)
Subjetividade e escrita. 2000. p. 99-105.
281
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 65.
institucional. O homem perece por que o arbítrio individual não pode fazer frente ao
conjunto das convenções. Entretanto, o todo sócio-político não compreende a vontade
geral dos indivíduos, mas as imposições dos setores dirigentes. O indivíduo é punido e
condenado não por atos que a partir de um juízo subjetivo possam ser considerados
errados, mas porque em si ameacem a ordem estabelecida.
Em Die neuen leiden des jungen W., a subjetividade contribui com a construção
do personagem através dos traços tomados do bobo, do bufão e do trapaceiro, manifestos
nas atitudes do louco, do malandro, do vagabundo, configurando o tom paródico da obra.
Edgar Wibeau transita pelo mundo externo, movido por um interesse cuja natureza aponta
para a curiosidade. Típica da juventude é a ilusão do protagonista em relação ao mundo e a
suas próprias possibilidades de realização. Ele se ilude com a nobreza de sua descendência
e passa a buscar certificar-se dela.
Und plötzlich stand ich davor. Es war in einer kaputten Kirche.
Der Bau hatte mich interessiert, weil er die erste Kriegsruine war,
die ich gesehen hatte. [...] Und an der einzigen intakten Pforte von
dem ganzen Bau stand: Hugenottenmuseum. Und darunter: Wegen
Umbau geschlossen. Normalerweise hätte mich dieses Schild nicht
gestört. Schlieβlich war ich Hugenotte, und man konnte mich nicht
aussperren. [...] Soviel ich wuβte, waren wir doch am Aussterben.
Aber aus irgendeinem Grund machte ich vor diesem Schild kehrt.
Ich analysierte mich kurz und stellte fest, daβ es mich einfach
nicht interessierte, ob ich adlig war oder nicht, oder was die
anderen Hugenotten machten
282
.
A subjetividade faz-se aqui por meio de um aspecto de indefinição, marcado pelo
advérbio “irgendein”. Além disso, deve-se considerar o papel das variações psicológicas.
Inicialmente o personagem apresenta um desejo de conhecer as origens, no entanto, ao
deparar-se com o museu fechado, por motivos desconhecidos esse desejo desvanece e
afigura-se como de pouca importância. A contradição é marca intrínseca à subjetividade do
herói, conferindo um aspecto de comicidade a sua construção. Se por um lado, a
descendência “Hugenotte” representa a firmeza de caráter e de posição, teimosia no caso
de Wibeau, por outro, ele desiste facilmente de um intento que lhe é caro.
Aquilo que o sujeito pensa sobre si mesmo em determinado estágio de sua vida,
ao longo de seu processo de desenvolvimento, define-se conforme as experiências que
possui, o lugar histórico e a posição autobiográfica que ocupa. Esses fatores influem no
282
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 114-115.
modo como o sujeito se auto-representa assim como no modo como entende e encara o
mundo. O narrador/protagonista rememora seu comportamento inicial, estabelecido de
acordo com as exigências do sistema, caracterização esta ditada pelos princípios do
Realismo Socialista: o herói positivo, racional, maduro, confiante: exemplar. Wibeau
revolta-se porque não concorda com essa postura, pois esta não corresponde a sua
realidade: o personagem é de fato aquilo que o sistema não aprova nem lhe permite ser:
Aber ich nahm mich zusammen und kam wieder runter und war
ganz der bescheidene, vernünftige, gereifte Junge, der ich seit
kurzem war, Leute. Ich weiβ nicht, ob sich das einer vorstellen
kann – ich und bescheiden. Und alles das bloβ, weil ich dachte, ich
hab diese Spritze in der Hinterhand, ich Idiot. [...] Ich war wohl
einfach so sicher, daβ meine Idee mit der Hydraulik genau richtig
war, daβ ich schon vorher so bescheiden war wie ein groβer
Erfinder nach seinem Erfolg. Edgar Wibeau, der groβe,
sympathische Junge, der trotzdem so bescheiden geblieben ist
283
.
A comicidade está associada à ironia nessa passagem. O herói, afetando
grandeza, imagina orgulhoso a humildade que deve conservar mesmo no momento em que
o sucesso com seu invento lhe trouxer a glória. Com isso, ele ironiza a determinação,
estabelecida pelo Partido, de uma postura correta para o homem. Este efeito irônico
acentua-se tanto mais quanto o discurso do narrador logo adquire um tom de lamento e
auto-recriminação ao indiciar o fracasso que se sabe ter sido seu empreendimento. Além
disso, a menção à ciência hidráulica revela os problemas decorrentes da técnica na RDA:
em função dela perece o indivíduo.
O sujeito não se constitui apenas na unidade. A inserção na vida o assinala com a
contingência. Por isso, apresenta fissuras, atos falhos, e soluções casuais a situações
inesperadas, questões que ele percebe, mas não é capaz de compreender totalmente. A
consciência do personagem acusa quando algo não corre bem: „Charlie machte auf. Sie
starrte mich zuerst an. Ich hatte das Gefühl, daβ ich ihr nicht ganz recht kam um die Zeit.
Ich meine, ich kam ihr schon recht, aber doch nicht ganz recht“
284
. Por meio de expressões
como „Ich meine“, o narrador precisa parafrasear suas próprias idéias para torná-las
acessíveis. O aspecto da subjetividade dá-se no sentido de que o protagonista manifesta
idéias e formas de expressão muito particulares. No que concerne a seus atos, Edgar
283
Idem. Ibidem. p. 118-119.
284
Idem. Ibidem. p. 117.
percebe que sua proximidade atrapalha a relação entre Charlie e Dieter, mas permanece
acercando-se da moça, porque tenciona disputar seu amor. Nessa cena, em que visita sua
amada, é possível verificar que a disputa amorosa é acrescida da consciência, e mesmo da
intenção, de estar incomodando o noivo. Edgar disfarça o motivo da visita, empregando o
pretexto de pedir emprestada uma torquês: „Dieter drehte sich um, und mir fiel zum Glück
ein: Wollte bloβ mal fragen, ob ihr nicht ‘ne Rohrzange habt“
285
. Aí, ocorre de imediato
uma quebra na expectativa, resultante da duplicidade da situação, que torna engraçada a
cena: o subterfúgio usado pelo protagonista não é puramente casual, ele precisava
realmente da ferramenta para a construção de sua máquina. Dessa forma, se falharem seus
planos com relação à moça, ele tem a chance de “sair lucrando” com o empréstimo. Este é
o recurso com o qual o herói se opõe ao sistema: provocando o riso ao aborrecer aqueles
que representam o poder. Ser importuno faz parte de uma subjetividade destinada a
desestabilizar os mecanismos do poder.
O sujeito passa por um processo de maturação e auto-análise. Em virtude disso,
apenas posteriormente passa a entender com mais clareza os fatos, atos, discursos,
pensamentos e devaneios, assim como as possibilidades e limitações advindas da realidade
social. Enquanto personagem, Edgar Wibeau age movido pelos impulsos da emoção.
Enquanto narrador, ora raciocina tentando compreender e esclarecer os fatos, ora deixa
obscuro aquilo que para ele é obscuro, mostrando que não dispõe da verdade objetiva, mas
de perspectivas e pontos de vista. O narrador não apresenta onisciência, mas sua própria
visão e interpretação dos fatos. Em virtude disso, muito do que narra é perpassado pela
incerteza, demonstrando as limitações das possibilidades epistemológicas do ser humano.
Em seu caso com Charlie, Edgar não tem como saber se ela de fato sente algo por ele ou se
tratam-se de fantasias suas:
Da war alles drin. Aber vielleicht bildete ich Idiot mir auch bloβ
alles ein. Vielleicht dachte sie wirklich nicht an mich. Vielleicht
wär alles, was dann kam, nicht passiert, wenn ich Idiot mir nicht
eingebildet hätte, Charlie hätte auch mich eingeladen. Aber ich
bedaure nichts. Nicht die Bohne bedaure ich was
286
.
Aqui, é dirigida uma crítica ao próprio sujeito que “ele próprio não se ajuda”. A
expressão „ich Idiot“ revela um eu em conflito, movido por um senso do erro. Tal crítica
285
Idem. Ibidem. p. 117.
286
Idem. Ibidem. p. 126.
incide ora sobre o caráter emotivo, impulsivo e imaginativo (sem senso da realidade) do
sujeito. Remontando ao romance de Goethe, essa cena, que mostra a intromissão de
Wibeau na vida de uma mulher casada, apresenta o protagonista como um “idiota” que
pensa ter toda a situação a seu favor, age, percebe que fez besteira, mas não se envergonha
disso. Porém esse caráter incômodo e importuno de Wibeau afigura-se como vingança às
ditas pessoas de bem, que seguem normas e cumprem deveres, trabalham e batalham para
manter sua posição, descritas, entretanto, como enfadonhas e bitoladas. Por outro lado, o
sujeito tece uma crítica às convenções sociais e às relações de poder que o fizeram tornar-
se assim. O herói denuncia a falta de oportunidade e as imposições feitas ao sujeito pela
sociedade em que vive. Além do valor estrutural dos elementos que remontam ao
Romantismo, há uma identificação do sujeito com atitudes e valores românticos, que são
empregados com valor de crítica. O sujeito precisa fantasiar, fechando-se num mundo a
parte, em que lhe seja dada liberdade para viver e criar conforme sua natureza, vontade e
característica, bem que lhe é privado pela obrigação de enquadrar-se na coletividade.
Esse enquadramento implica na impossibilidade da existência de indivíduos
plenamente diferenciados, autônomos, a cujo autodesenvolvimento é permitido no máximo
alcançar diferenciações coletivas construídas por imposição ao indivíduo, como pode ser
percebido nos traços preponderantes que configuram as relações entre movimentos
coletivos e seus membros, caso que define políticas, relações e comportamentos nas
fábricas e escolas e demais instituições sob a égide do Socialismo. O sistema socialista não
tolera o sujeito independente, levando-o ao aniquilamento por meio de imposições ou de
rejeições. Em conseqüência, se por um lado se pode afirmar o fato de que os seres
humanos possuem condições objetivas de deter a irracionalidade e a violência da dinâmica
que os sujeita, mesmo porque esta é produzida por eles próprios; por outro lado, é possível
constatar que os homens, mesmo os que estejam conscientes da situação em que se
inserem, não têm condições de vencer essa dinâmica de modo direto e imediato, pois isso
implicaria derrubar o poder do Estado, o qual dispõe, em caso de falha da ideologia, de
aparatos policiais e bélicos para sufocar qualquer manifestação de massa, de modo que,
como saldo para o povo, ficam as perdas humanas.
Além disso, a produção dessa dinâmica não envolve o homem de modo simples,
como se para anulá-la bastasse a decisão de parar: em parte o homem é forçado a produzí-
la, em parte ela própria extrai a colaboração do homem através do coletivo. A luta contra o
poder, portanto, é complexa e danosa. A intervenção humana no real como dimensão
política da vida social é possível no sentido de gerar mudanças aos poucos, no sentido de
que o povo pode buscar meios de minar e abrandar os laços do poder através de uma luta
longa e constante. Edgar Wibeau cumpre seu papel ao tornar-se um imprestável, meio este
que lhe permite buscar a felicidade sem compactuar com o sistema, pelo contrário,
mostrando alguns de seus problemas e tabus.
O narrador rememora um episódio ocorrido na escola, em que os melhores alunos
da classe foram selecionados para assistir a um filme e debatê-lo com o produtor. Nessa
cena, Wibeau ironiza a ideologia socialista vigente sob a forma de prática pedagógica:
participar deste evento é concedido aos estudantes mais aplicados como gratificação. Ao
cabo, o personagem confessa que fora um encontro maçante. A ironia é empregada ainda
para referir-se ao fato de o herói ter o “privilégio” de participar: ele deprecia o mérito em
que tal programa supostamente consiste, mostrando que os qualificativos que lhe eram
atribuídos não possuem sentido algum para ele, pois significam não o ponto de vista do
sujeito, mas o do Estado, conforme se pode verificar a partir da passagem a seguir:
Gespräch mit den Schöpfern. Aber nun nicht jeder, der wollte,
sondern nur die Besten, die Vorbilder – als Auszeichnung. Die
ganze Show fand nämlich während des Unterrichts statt. Und
vorneweg natürlich Edgar Wibeau, dieser intelligente, gebildete,
disziplinierte Junge. Unser Prachtstück!
287
.
Neste trecho pode-se verificar o fato de a exigência do progresso ter direcionado
o trabalho e a vida para o desenvolvimento técnico e o planejamento sistemático, privando
a massa da capacidade de pensar autonomamente, levando-a à submissão e à obediência. O
padrão estabelecido para o regime educacional e trabalhista é excludente e alienador. O
homem vê-se obrigado a abdicar de suas faculdades subjetivas e inserir-se em moldes
mecânicos de atividade. Nessa passagem fica explícita a reação ao padrão de representação
ficcional imposto pelo Realismo socialista, em que a obra deve refletir de forma linear uma
realidade positiva povoada de heróis exemplares: Wibeau denuncia aí a falsidade do “tudo
funciona”.
Comentando a trama do filme trabalhado, o protagonista identifica traços de sua
própria situação. Tanto na história de Wibeau quanto na do personagem da película,
trabalho e satisfação pessoal encontram-se em pólos opostos. O que o regime imputa ao
indivíduo como autonomia resume-se em competência cognitiva e técnica para identificar
287
Idem. Ibidem. p. 39.
e distinguir práticas, contextos e ambientes, de acordo com os quais deve relacionar-se.
Isso se reflete na adaptação não crítica e aparentemente isenta de conflitos dos indivíduos
em relação à sociedade, naturalização esta que impele o indivíduo à tendência imanente a
reificação. Se o produtor tematiza essa oposição com o fito de mostrar a que ponto o jovem
deve chegar para integrar-se genuinamente ao Socialismo, Wibeau mostra o reverso dessas
condições: como o sistema deveria aproximar-se da vontade dos homens, propiciando sua
realização. O herói destaca o sintagma “profissão regular” exprimindo certo pesar, porque
dentro das possibilidades do trabalho proletário o indivíduo tem pouca margem de escolha:
Sie sagten, er will sich bloβ rumtreiben, statt einen ordentlichen
Beruf zu lernen. Einen ordentlichen Beruf, Leute, das kannte ich!
Natürlich wollte er unter anderem zum Zirkus, weil er da die Welt
sehen konnte, jedenfalls ein Stück. Na und? Ich verstand ihn
völlig. Ich verstand nicht, was daran schlecht sein sollte
288
.
O personagem externa seu descontentamento com a desvalorização de qualquer
atividade que não envolva a característica operária da produção material, no sentido de
trabalho braçal, manual ou operacional, e da ordem da liderança, como a gerência e a
administração, o que remete à conjuntura gerada pelo Novo Sistema Econômico.
A ocasião do encontro com o cineasta suscita a questão do limite entre autonomia
e heteronomia. Os professores e instrutores encarregam-se de prescrever aquilo que deve
ser aprendido pelos estudantes, com o que anulam sua capacidade de crítica e
discernimento. O exagero no direcionamento tolhe o autodidatismo e a liberdade de
criação: „Erst sagten alle anwesenden Lehrer und Ausbilder, was wir daraus zu lernen
haben, und dann sagten wir, was wir daraus gelernt hatten“
289
. Wibeau faz distinções entre
aquilo que o homem vive e acredita autenticamente e os discursos e ações que realiza para
manter as convenções. Se no início, ele próprio precisa fingir para manter o pacto social,
após sua evasão, dá a entender que seu comportamento adequado, como todas as relações
convencionais, se baseia no fingimento.
Quando finda a sessão formal do evento, Edgar e seu amigo Willi acompanham o
produtor em um passeio pela oficina. Então, aproveitando-se da liberdade que a situação de
informalidade permite, ele expressa sua verdadeira opinião:
288
Idem. Ibidem. p. 41.
289
Idem. Ibidem. p. 42.
Dann sagte ich ihm meine eigentliche Meinung. Ich sagte ihm, daβ
ein Film, in dem die Leute in einer Tour lernen und gebessert
werden, nur öde sein kann. Daβ dann jeder gleich sieht, was er
daraus lernen soll, und daβ kein Aas Lust hat, wenn er den ganzen
Tag über gelernt hat, auch abends im Kino noch zu lernen, wenn
er denkt, er kann sich amüsieren
290
.
Em suas afirmações, o protagonista prega a autonomia do indivíduo com respeito
à sua formação, na medida em que reivindica a liberdade de escolha conforme a vontade e
a necessidade subjetivas, ao invés do cumprimento passivo dos planos e das imposições
estabelecidos para a coletividade. As palavras do protagonista revelam a dissonância
existente entre o que ocorre no Socialismo e o que se espera do referido sistema, que
conforme definição de Ralph Miliband
291
, deveria ter um caráter emancipatório em seus
objetivos:
O socialismo tem como meta realizar uma ascensão que reduziria
drasticamente a disparidade e despojaria as desigualdades
remanescentes do caráter odioso e divisor que têm. Isso não
significa a imposição de uma uniformidade obtusa no modo de
viver a vida: ao contrário, significa a criação de sociedades nas
quais uma igualdade aproximada de condições se aliaria a uma
genuína diversidade, [...] possibilitada pelo florescimento de
capacidades [...] sufocadas na maioria por um contexto
profundamente desfavorável.
O estabelecimento de um paralelo entre a concepção contida na proposição de
Miliband e a realidade do Socialismo leva a considerar o problema da reprodução do
poder, pois conforme o autor “o acesso às posições de poder por parte dos membros das
classes subalternas não muda em nada a realidade da dominação: só muda as pessoas”
292
.
O discurso de Wibeau revela justamente seu protesto contra a inversão da redução das
desigualdades em uniformidade niveladora e massificação, contra o sufocamento das
capacidades dos homens. Por isso, ele valoriza a arte, embora não tenha talento para ela. A
pintura e a literatura encontram-se na base da composição do personagem: o romance de
290
Idem. Ibidem. p. 42.
291
MILIBAND, Ralph. Socialismo e ceticismo. 2000. p.34.
292
Idem. Ibidem. p. 35.
Goethe como denúncia da opressão e do descaso para com os bens culturais, as tentativas
com a pintura, como gosto pela sensibilidade e pela liberdade criadora:
daβ jeder gleich gesehen hat, daβ ich nicht malen konnte, ist
trotzdem nicht ganz korrekt. Ich meine, er hat es vielleicht
gesehen, aber ich hatte es hervorragend drauf, so zu tun, als wenn
ich könnte. Das ist überhaupt eine der schärfsten Sachen, Leute. Es
kommt nicht so drauf an, daβ man etwas kann, man muβ es
draufhaben, so zu tun. Dann läuft es. Jedenfalls bei Malerei und
Kunst und diesem Zeug
293
.
Manifesta-se aí a petição de direito do herói, para que o homem não seja privado
da possibilidade de falhar, visto ser esta uma característica intrínseca da subjetividade
humana. A correspondência entre as possibilidades de realização e sua concretização
efetiva pode ser uma meta, mas não uma obrigação, pois o homem está sujeito às
contingências da vida. Dado que a perfeição do homem e de suas obras comporta
determinado grau de imperfeição, deve-se estimular e reconhecer seu empenho em
aperfeiçoar-se, enfatizando o processo de seu desenvolvimento em consonância com a
realização pessoal e humana, ao contrário de impor o alcance de resultados mecanicamente
acabados. Longe de sugerir a negligência para com as especificidades da arte, a opinião de
Wibeau sugestiona como princípio da realização artística a liberdade no tratamento
estético, vinculada à liberdade de escolha necessária à realização do sujeito.
4.2.3 O voltar-se para o passado em Kein Ort. Nirgends e Die neuen Leiden des
jungen W.
O voltar-se para o passado está vinculado à ressignificação de conteúdos e
aspectos de cunho romântico sedimentados sob a forma da subjetividade e da melancolia.
Esse movimento é elaborado no livro de Plenzdorf como tentativa de recuperar uma
atitude: a crítica de Werther à hipocrisia de seu meio social; na narrativa de Wolf, constitui
um apelo à imaginação, como forma de humanização, e à memória, como forma de evocar
um momento historicamente crítico (considere-se que a palavra crítica remete a crise) e
293
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 45.
artisticamente fecundo. Esse retorno é a retomada de um motivo da estética romântica e
deve ser interpretado não como evasão da realidade em virtude de um descompromisso
com ela, mas como um recurso que tem em vista a reflexão sobre o presente, uma maneira
indireta de criticá-lo, devido a um movimento de atualização da consciência histórica dos
românticos.
O indivíduo encontra-se à mercê do movimento do mundo, cuja dinâmica tende a
jogá-lo para as margens. Kein Ort. Nirgends caracteriza-se por apresentar uma troca entre
a realidade exterior e o universo interior do sujeito, de maneira que este é afetado por
aquele, conforme se pode depreender do seguinte trecho: „Kleist zählt sich die Staaten auf,
die er kennt, es ist ihm ein Zwang geworden. Daβ ihre Verhältnisse seinen Bedürfnissen
strickt entgegenstehn, hat er erfahren“
294
. Compulsão é a relação que age sobre o sujeito.
Isso porque o mundo é controlado por instâncias ligadas ao poder: a vida do homem deve
ajustar-se às exigências do Estado. Kleist expressa com propriedade sua aversão e
desengano pelo Estado em virtude de ter experienciado as pressões deste sistema. Se o
herói o vê como opressor, é porque como instituição máxima do povo, mantém sua coesão
por meio do poder centralizador, repressor e manipulativo. O comentário feito acerca desta
instituição vai além do contexto vivido por Kleist, estendendo-se aos demais períodos em
que a vida do povo está submetida aos desmandos do regime político. Pode-se observar
que, alegoricamente, tais observações remetem à RDA, como crítica a uma situação
experienciada diretamente pela escritora. Neste sentido, o conflito interior dos personagens
expressa o desejo de paz – Verlangen nach Ruhe
295
– do homem. Falar afigura-se como
uma necessidade do herói: é a forma de resistência às arbitrariedades do poder político.
A desilusão torna-se elemento definidor da vida do protagonista, na medida em
que este perde a esperança na possibilidade de realizar-se na vida terrena. Com isso, ele
denuncia a privação das condições de construção de uma existência digna. Esvai-se a
utopia. Com isso, a vida insuportável torna-se impossível. O direcionamento do olhar para
o período romântico possibilita aproveitar a interiorização intrínseca dos poetas para criar a
percepção que os personagens têm do universo exterior. A relação do indivíduo tanto com
o mundo empírico quanto com o social e político é mediada pelo seu complexo interior e o
afeta:
294
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 135.
295
Idem. Ibidem. p. 133.
Die Erleichterung, als er die Hoffnung auf eine irdische Existenz,
die ihm entsprechen würde, aufgab.
Unlebbares Leben. Kein Ort, nirgends.
Manchmal spürt er die vertrackte Drehbewegung der Erdkugel bis
in sein innerstes Gebein. Einmal wird es ihn über den Rand dieser
beschränkten Kugel schleudern, er ahnt schon den Zugwind
296
.
No trecho citado, pode-se constatar que o recurso à concepção de mundo
romântica permite trazer à tona a visão existencialista, comum às obras da Vanguarda, do
homem jogado no mundo. Tal visão, depreciada pelos apologetas do Realismo socialista,
mostra ser infundado representar o agir político do homem sem representar também o
conseqüente absurdo que o oprime.
A narrativa de Wolf carrega o sentido do sofrimento e da punição constantes,
decorrentes do desafio aos poderosos. Kleist compara-se a Prometeu, o titã que desafia o
poder dos seus superiores por irmanar-se aos homens. Por seu humanismo, Kleist é punido,
quando não pelos detentores do poder, pela ordem do mundo, imbuída de desumanização.
De certo modo, a comparação se amplia no sentido de tornar-se transposição de traços. O
destino de Prometeu é transposto para a vida do protagonista. Ao sugerir que lhe seja
retirado o fígado, Kleist incorpora a própria causa pela qual Prometeu fora preso ao
rochedo, encarna o caráter prometéico; e a finalidade de incomodar o abutre simboliza
enganar os carrascos, despistar a censura e ludibriar o poder, subtraindo-lhes o objeto da
punição:
In Gottes und in des Teufels Namen, ich bin gesund. Gesund wie
jener Narr am Felsen, Prometheus. Der lebt tausend Jahre und
länger. Es juckt mich, den Doktor zu fragen, wo dies Organ sitzt,
das nachwächst, und ob er es mir nicht herausnimmt, die Geier zu
ärgern. Keine plumpen Vertraulichkeiten mit der Götterwelt.
Sterblich sein, frommer Wunsch
297
.
Kleist precisa rogar para que os demais acreditem que seu estado de saúde corre
bem. A questão da saúde aponta para o estado mental do poeta. Ao afirmar estar são, o
herói assevera lucidez perante os personagens a sua volta. Tal afirmação adquire o cunho
de uma petição de credibilidade, da qual arrisca ser privado sob a alegação de loucura.
296
Idem. Ibidem. p. 136.
297
Idem. Ibidem. p. 7.
Kleist luta contra a interdição, contra aqueles que podem lhe tirar o direito de expressão. A
liberdade de pensar e manifestar-se é valor supremo para o homem.
A visão romântica aparece na relação de amparo que o homem busca junto à
natureza. Ela pode abrandar as dores do coração provocadas pela hostilidade do mundo
regido por convenções, pois é mãe, abrigo, fonte de alimento e de harmonia, modelo de
beleza e de criação que anima o espírito humano. Para Kleist e Günderrode, as noções são
dadas pela dimensão da interioridade. A noção de valor é apreendida pelos protagonistas,
para além das definições arbitrárias, com base no modo como é sentida no coração do
sujeito: „Wert ist der Schmerz, am Herzen der Menschen zu liegen, und dein Vertrauter zu
sein, o Natur!”
298
. Por situar-se no coração, o valor se vincula à sensibilidade; pela
intimidade com a natureza, deduz-se da aspiração do homem à grandeza. A questão do
valor, mencionada no monólogo de Günderrode ao observar da janela uma paisagem, pode
ser estendida para o domínio das imbricações entre valor e narrativa, empregadas para
direcionar os elementos éticos no empenho contra os antivalores.
Os antivalores apontados pelos poetas alegorizam aqueles presenciados por
Christa Wolf em seu vínculo com o Estado. O trecho seguinte pertence a um monólogo em
que Kleist lembra a separação de seu amigo Pfuel em Paris, no período em que estuda para
a elaboração de seu drama histórico Robert Guiscard: „Denn wer ertrüg der Zeiten Spott
und Geiβel [...] des Mächtigen Druck, der Stolzen Miβhandlungen...“
299
. O dramaturgo
lamenta o fracasso na realização de sua obra. O tormento desse fracasso se deve às ligações
por ele concebidas entre literatura e realidade. A ação política de Kleist reside na criação
artística. Isso remete ao engajamento do escritor na RDA, em que, na esteira dos
postulados de Brecht, a dimensão estética engloba uma tendência política. O fracasso na
criação afigura-se ao herói como derrota diante dos poderosos.
Em Kein Ort. Nirgends, o narrador mostra a visão fatalista que rege a vida dos
personagens. O poder tem a capacidade de aniquilar o homem e de obter a colaboração
dele, na maioria das vezes inconscientemente, para ser exercido. O comprometimento
social de Kleist consiste, neste caso, no fato de desejar a morte corporal, ao passo que
busca evitar a morte de suas idéias: o som de sua voz, os versos de sua poesia, o gume de
sua crítica devem perdurar. Cabe ao intelectual o dever de não silenciar diante do poder.
Calar é um outro tipo de morte, que leva ao esquecimento o poeta, as causas e os
298
Idem. Ibidem. p. 8.
299
Idem. Ibidem. p. 16.
significados de sua luta. O verbo “bringen” no subjuntivo (Konjunktiv II) indica que Kleist
não silenciara, não se adaptara às imposições do sistema:
So lernt man nur, wenn es ums Leben geht, in Todesangst. In der
Gewalt von Mächten, die keinen Zweifel lassen, daβ sie uns
vernichten können, weil in uns selber etwas, das wir nicht kennen
wollen, ihnen entgegenkommt. [...] Er weiβ es ja, was seine
Rettung wäre: die Stimme in sich knebeln, die da reizt und höhnt
und weitertreibt, auf die wunden Punkte hin. Und wenn er sie zum
Schweigen brächte? Eine andre Art von Tod
300
.
Há situações em que o próprio silêncio é uma forma de reação que serve ao herói
contra a astúcia (List) e a esperteza (Verschmitzheit), em favor da conservação da
autenticidade. Kleist enfrenta o problema discutido nas reflexões de Brecht de querer falar
e não poder, o que reflete a crise da autora diante das medidas tomadas pelo Partido. O
escritor tem como missão criar meios e modos de expressão que possibilitem ultrapassar e
minar os limites culturais impostos. Neste sentido, a distância contextual de Kleist e
Günderrode em relação à história da RDA disfarça a semelhança nos anseios e na crise
existencial do homem, bem como a proximidade na falência em termos humanos, sociais e
políticos. Christa Wolf não amordaça dentro de si a voz que ironiza, apenas a modula.
Ao rememorar o encontro com a noiva Wilhelmine von Zenge, Kleist pressente a
dificuldade em conciliar a segurança do casamento com a aventura de seus projetos. A
busca de um lugar ideal significa para a amada um risco. A frustração com as relações
sociais e políticas resulta no dilema de não poder realizar juntos o casamento e a fundação
de um lugar ideal. Segundo a visão romântica partilhada por Kleist e Günderrode, o mundo
prega várias peças no homem; viver é empenhar-se em desenredar-se das teias que a
realidade tece: „Das feine Arom von Enttäuschung, das den Vorgang durchdringt. [...] Ach,
diese angeborene Unart, immer an Orten zu sein, wo ich nicht lebe, oder in einer Zeit, die
vergangen, oder noch nicht gekommen ist“
301
. O voltar-se para o passado aponta para a
falta de esperança a respeito do presente. As incertezas da realidade presente revigoram o
olhar histórico dos protagonistas e os levam a procurar na tradição o modelo para a
realização do ideal de um mundo mais harmônico. A história aponta para a utopia, a busca
no futuro de um substrato para a concretização do referido ideal. Sendo uma das idéias que
move os intelectuais do Socialismo alemão, a questão da utopia ganha relevância com o
300
Idem. Ibidem. p. 14.
301
Idem. Ibidem. p. 36.
clima geral de repressão, em que o indivíduo se sente deslocado de sua época e de sua
pátria.
A utopia em Kleist faz-se sobre a ambivalência de almejar um lugar particular e
de amar o solo germânico como um todo. O herói decide-se a procurar uma nova pátria,
mas uma tristeza embarga-lhe a voz, mostrando pesar pelas circunstâncias que o impelem a
abandonar seu chão. Sabe-se de sua biografia que tempos mais tarde ele se isola numa casa
na Suíça para escrever. Sua utopia pauta-se na realização individual, mas exemplifica os
anseios de muitos homens. Ao escrever o drama Die Hermannsschlacht e colaborar com
o periódico Germania, ele engaja-se na elaboração de críticas e na difusão de ideais
patrióticos e nacionalistas que devem atingir proporções coletivas:
Plötzlich habe er denken können, sagt er, was er nie für möglich
gehalten: daβ er die Blume des Glücks überall pflücken solle, wo
sie sich ihm biete. So sei er entschlossen gewesen, sich eine neue
Heimat zu suchen, und niemals werde er jene Nacht vergessen ...
[...] Er bricht ab, die Sprache versagt sich ihm
302
.
Kleist está ligado a sua terra. O fato de sair da Prússia não a apaga da mente do
poeta, haja vista as críticas que desfere contra a corrupção e a hipocrisia. Ele ataca o
Estado, não a terra. Seus silenciamentos são plenos de significados que na linguagem e na
arte manifestam as dúvidas criadas por questões problemáticas no âmbito das ligações
entre a estética e a política. Seus silêncios correspondem aos emudecimentos de Christa
Wolf, necessários à reflexão e à ruminação, bem como à proteção contra as invectivas do
poder. „Seine Sprachhemmung, denkt er manchmal, die ihn in Gesellschaft überfällt, sei
ein Mittel, mit dem die Natur ihm zu Hilfe kommen will: Das wäre, wie er sich die Natur
jetzt vorstellt“
303
. O silêncio como amparo da natureza opõe-se aos significados
convencionalmente instituídos que se manifestam nas conversas grupais. A natureza
protetora e familiar consiste na contraparte da sociedade opressora e estranha. Essa
dicotomia recorre na oposição entre as disposições naturais e íntimas do homem,
externadas na criação artística, sob as formas emocionais e sentimentais, e os
comportamentos e relações sociais e políticas, perpassadas pela ideologia e a manipulação
do poder.
302
Idem. Ibidem. p. 83.
303
Idem. Ibidem. p. 36.
O recurso à repetição é essencial à ideologia que perpassa a obra de Wolf: a idéia
de que os homens precisam – livre ou compulsoriamente – habituar-se às circunstâncias.
Assim como Günderrode pensa freqüentemente no sangue e no punhal a fim de internalizar
a imagem do suicídio, Kleist repete a decisão de não retornar à Prússia, como meio de
firmar a convicção acerca desse intento. Em meio aos pensamentos dos poetas, Christa
Wolf insere suas reflexões a respeito da situação dos escritores de seu tempo: a
necessidade de acostumar-se, sem deixar de ser críticos nem permitir que o hábito derive
em alienação e massificação, de optar, de engajar-se para não cair no domínio do
conformismo, como pode ser constatado a seguir:
Mehr als einmal, sagt er, sei er schon fest entschlossen gewesen,
nie in sein Vaterland Preuβen zurückzukehren. [...] An dem er
hängt, [...] Und dem er [...] freudig seine Jugend geopfert [...] in
wechselnden Grenzen zu leben, von wechselnden Souveräns
regiert zu werden, in Kürze, so scheint es, sogar von dem
Fremden
304
.
A instabilidade das fronteiras e do governo, bem como a condição de ser
governado por um estrangeiro remete ao contexto de dominação da RDA pela União
Soviética. A menção à troca de limites territoriais e de soberanos remete duplamente à
questão da desilusão: em um sentido, refere-se à própria natureza do Estado, marcado pela
disputa do poder, em outro, externa o desprezo pela usurpação napoleônica, como
anomalia resultante da Revolução. A utopia kleisteana alude à busca, em meio ao
Socialismo real, de um Estado em que impere a justiça. A necessidade de migrar por ter
sua pátria conquistada, por ser expulso dela ou por não mais suportá-la, representada na
figura de Kleist, constitui o drama da maioria dos escritores ao longo do século XX. Basta
lembrar o exílio de intelectuais durante o Nazismo e o deslocamento em virtude da
formação dos dois Estados alemães após 1945.
Se inicialmente a utopia se refere ao ideal de construção do lugar onde o homem
encontre sua felicidade, devido à falta de comunicação com a sociedade, ao isolamento, à
rejeição pela própria comunidade de pessoas que não se enquadrem nas normas, a palavra
”nirgends” passa a designar a perda da esperança nessa realização, o desvanecimento desse
objetivo. O Estado tira a autonomia da pessoa. Na passagem seguinte, Kleist comenta a
ação do Estado em relação aos meios de dominação, sentido em que essa instância pode
304
Idem. Ibidem. p. 82.
abster-se do emprego da repressão e da compulsão quando da eficácia de seu aparelho
ideológico. Ao amenizar o uso da força em virtude do funcionamento da persuasão para
manter a adesão do povo, o Estado forja a imagem positiva de benevolência e justiça.
Lembrando os postulados foucaultianos sobre o uso da ideologia a serviço do poder, pode-
se entrever que as palavras do herói indicam as concessões como parte das estratégias do
Estado:
Soll der Staat meine Ansprüche an ihn, soll er mich verwerfen.
Wenn er mich nur überzeugen könnte, daβ er dem Bauern, dem
Kaufmann gerecht wird: daβ er uns nicht alle zwingt, unsere
höheren Zwecke seinem Interesse zu unterwerfen. Die Menge,
heiβt es. Soll ich meine Zwecke und Ansichten künstlich zu den
ihren machen?
305
.
O protagonista protesta contra o poder do Estado de massificar, tirando a
consciência do povo. Neste sentido, pode-se considerar controversa a idéia de Lukács
segundo a qual o proletariado atinge a consciência de classe e se torna sujeito de classe,
pois na prática o proletariado é levado à alienação por seus próprios representantes,
inclusive em função da crença na importância e necessidade de se deixar representar.
Essencial ao proletariado não é a idéia de conquistar o poder, mas a de concretizar os
princípios do bem comum. Kleist exige liberdade de expressão, pois defender a arte da
massificação corresponde a salvaguardar a autonomia do homem. Tal reivindicação
responde aos postulados do Realismo socialista segundo os quais a expressão artística deve
conformar-se à ideologia do Partido.
A arte tem a função de levar os sujeitos a produzir interpretações, o que se
justifica ao considerar-se a posição de Alfredo Bosi, segundo a qual literatura e ideologia
se tangenciam enquanto ambas pressupõem o mesmo campo da experiência intersubjetiva,
e diferem no modo como concebem e formalizam tal experiência: uma exprime,
representa, presentifica, singulariza, enxerga de modo renovado os objetos da percepção,
ilumina os seus múltiplos perfis, desentranha e combina as fantasias do sujeito; a outra
reduz e uniformiza segmentos, generaliza, oculta as diferenças, e preenche as lacunas, as
pausas, os momentos descontínuos e contraditórios da subjetividade
306
. Pelo fato de levar o
homem à reflexão e ao esclarecimento, já que por essência ela não se rende à manipulação
305
Idem. Ibidem. p. 84-85.
306
BOSI, Alfredo. Formações ideológicas na cultura brasileira. In: Revista de estudos avançados. 1995. p.
279.
exercida pelos poderosos, a arte, e em especial a literatura, tornam-se passíveis de ser
interditada pela censura na RDA. Isso leva escritores como Wolf e Plenzdorf a refletir
sobre o papel e o lugar da escrita literária, pois em semelhante contexto, ela é definida mas
também ameaçada devido a esse papel.
A questão do direito do poeta à existência se coloca sob a forma da autonomia do
autor: a situação social o força a pôr sua atividade em favor de algo. Ao tomar uma decisão
no âmbito da luta de classe, posicionando-se ao lado do proletariado, o escritor progressista
compromete sua autonomia. O intelectual deve ser definido por sua posição no processo
produtivo. Seu lugar na luta de classe, portanto, é fixado em função de sua posição nesse
processo. Neste sentido, evoca-se a exigência formulada por Brecht de não abastecer o
aparelho produtivo sem modificá-lo. Modificar o aparelho produtivo significa superar as
contradições que acorrentam o trabalho produtivo da inteligência, conferindo-lhe um valor
de uso revolucionário. Frente à crise que atinge as formas artísticas devido ao advento de
invenções técnicas, o escritor teria a tarefa proposta por Brecht de refuncionalizar a arte,
eliminando a oposição entre intérprete e receptor, e a oposição entre técnica e conteúdo, de
modo que, consciente de suas condições de produção intelectual bem como da função
organizadora das obras, ele não apenas vise à transformação dos meios de produção, mas
enfatize o poder da arte de transformar o homem. Trata-se de promover a unidade entre as
forças produtivas material e intelectual, a fim de que o progresso técnico possa
fundamentar o progresso político.
O caráter revolucionário do escritor nas décadas de 60 e 70, cujos acontecimentos
criam o estado de espírito e a visão de mundo transfigurados nas obras em questão, parece
ser não levar o povo a aderir ao Socialismo, mas sim levá-lo a refletir sobre o que os
setores dirigentes fizeram do Socialismo e do próprio povo. Pode-se, pois, verificar não se
tratar de uma crise artística, mas de uma crise histórica, política e social que ameaça a arte.
Escritores como Ulrich Plenzdorf e Christa Wolf estão cientes do que significa expressar-
se e precisam fazê-lo à revelia do perigo a que estão expostos. Dado que literatura e
ideologia partilham do mesmo referente, a experiência humana, a refuncionalização da arte
estabelece-se no sentido de buscar novos meios estéticos de posicionar-se a respeito da
experiência, expondo também a ideologia do setor dominante, de modo a burlar a
compreensão dos censores.
A poesia liga a interioridade do sujeito – “innerstes Gemüt” – com o mundo –
“Welt”
307
; mas por vezes mostra a separação entre eles. O lugar da arte torna-se
complicado, por posicionar-se entre o Estado e o indivíduo. A dimensão empírica do
mundo é facilmente assimilada na interioridade do artista, pois mostra harmonia para com
a sensibilidade do homem. Porém, seu aspecto político e social revela-se opressor e
desumano. Kleist discute o emprego da verdade pelo Estado. Esta interessa apenas na
medida em que produz resultados práticos e objetivos. Kleist denuncia o descaso dos
governantes para com a arte e com o conhecimento. Além disso, a intervenção do Estado
dá-se no sentido de suprimir a autenticidade, que alcança o povo através da inter-
subjetividade, valendo-se da manipulação. Se no tempo do Romantismo, a arte é relegada
pelo capitalismo ascendente, como forma de desarticular pensamento e ação, a RDA
restringe o acesso às obras, exerce cooptações que garantem a aliança com artistas e
intelectuais ou decretos que os põem na clandestinidade:
Dem Staate? [...] Die Wahrheit will er nur soweit kennen, als er sie
gebrauchen kann. Er will sie anwenden. Und worauf? Auf Künste
und Gewerbe. Aber die Künste lassen sich nicht wie militärische
Handgriffe erzwingen. Künste und Wissenschaften, wenn sie sich
selbst nicht helfen, so hilft ihnen kein König auf. Wenn man sie in
ihrem Gang nur nicht stört, das ist alles, was sie von Königen
begehren
308
.
O desprezo pelas atividades do espírito se deve ao caráter humanizador e
libertador da criatividade, que pode emancipar o homem do controle exercido pelo poder
sobre as relações materiais. A injustiça é a ordem do mundo: para não exercê-la sobre os
outros homens, Kleist afasta-se do serviço do Estado e passa a mendigar. O poeta
abandona o serviço militar por não querer tomar parte na prática do poder: „Gott weiβ ,
und ich, glauben Sie [Savigny] mir, weiβ es auch, daβ dem Menschen oft nichts andres
übrigbleibt, als Unrecht zu tun – sei’s gegen andre, sei’s gegen sich selbst. Und daβ man
sich wohl abfinden muβ, dies die Weltordnung zu nennen“
309
. A ordem do mundo é
entendida pelo personagem como um fatalismo que se apodera do indivíduo e do povo. É o
absurdo que age como o destino, do qual é impossível fugir e contra o qual é inútil lutar.
307
WOLF, Christa. Kein Ort. Nirgends. 1979. p. 28.
308
Idem. Ibidem. p. 87.
309
Idem. Ibidem. p. 89.
O poder dá ao indivíduo a escolha de conformar-se ou revoltar-se. Tal escolha,
entretanto, se trata de aparência que encobre o fato de ser o homem arrastado pela corrente
dos acontecimentos. Assim, o mal-fadado noivado, que mostra a ação de forças como as do
destino sobre o herói, é indício de que no nível do social, o protagonista está submetido à
lei. Esta tanto lhe é nociva quanto é injusta para com seus personagens. Kleist sofre por
não se conformar à ordem do mundo; luta para não ser derribado pelo poder, mas pode ser
escarnecido por ele, punido com a miséria terrena. A crise existencial reflete a crueldade
do plano social e político. Para lembrar as palavras de Martin Buber, anteriormente
referidas, o plano social, em sua legitimidade, não chega a se concretizar devido à
interferência do plano político, com o qual se confunde, pois o princípio político suplanta o
fundamento comunitário. As coordenadas de tempo e lugar (Zeit und Ort) relacionam-se à
perda de utopia e à perda de sentido que o sujeito sente frente ao contexto. A utopia se
refere à esperança, cuja perda abre uma lacuna para o evasionismo, que em Kein Ort.
Nirgends aponta para uma tentativa de solucionar o conflito que envolve o poeta. Neste
sentido, o domínio da arte remete à autodeterminação na vida do sujeito, a qual demanda
conciliar o universo afetivo com a produção e as relações materiais dos seres humanos. A
existência reflete as questões históricas, pois tanto para os protagonistas quanto para a
autora a criação artística repercute no comprometimento com o contexto, como se pode
inferir com base na seguinte passagem:
Es kann doch nur heiβen, daβ er immer wieder vor dem gleichen
Zwiespalt steht, der ihn ängstigt: Er hat die Wahl – falls das eine
Wahl zu nennen ist –, das verzehrende Ungenügen, sein bestes
Teil, planvoll in sich abzutöten oder ihm freien Lauf zu lassen und
am irdischen Elend zugrunde zu gehn. Sich Zeit und Ort nach
eigner Notwendigkeit zu schaffen oder nach gewöhnlichem
Zuschnitt zu vegetieren. [...] Die Mächte, die ihn in ihren Klauen
haben – durch Geringschätzung beleidigen sie ihn nicht. [...] Kein
andrer wird das Urteil an ihm vollstrecken als er selbst. Die Hand,
die schuldig werden muβte, vollzieht die Strafe. Ein Schicksal
nach seinem Geschmack. Wollüstig schaudert es ihn vor dem
Blick in die innere Maschinerie der Seele. Wer sich an solche
Blicke, an derartige Einsichten gewöhnt, verfällt keiner anderen
Sucht, bedarf keines anderen Rauschmittels. Auch der Liebe nicht.
Und wird keine Stunde frei von Schuldgefühl mehr kennen
310
.
310
Idem. Ibidem. p. 38-39.
A arte trabalha a depuração do acontecido e a construção dos valores. Kleist
condensa em si a culpa pela impotência diante dos limites fixados pelo poder, e a suporta
como autopunição pela impossibilidade de dedicar-se ao amor da noiva.
O remorso atua também sobre Günderrode, o que se verifica na medida em que as
relações sociais agem sob a forma de exposição do indivíduo. O remorso da personagem
bifurca-se, significando num primeiro plano o drama da mulher escritora, que se
envergonha perante a crítica, que sofre a insuficiência de suas próprias capacidades
criadoras; num segundo plano, o fator do sofrimento é o medo, como sintoma da
intervenção de um aparelho repressor. A necessidade de submeter seus versos à avaliação
do crítico remete ao fato de que a autoridade para julgar é um instrumento através do qual
o que entra em questão não é o real valor da arte, mas a vontade do poder. Submeter a arte
ao juízo de quem não é capaz de criar, por não ser autenticamente artista, remete ao caso
dos autores da RDA, em que as obras literárias eram avaliadas segundo as normas
estabelecidas pelo Partido, elaboradas muito mais a partir de interesses políticos do que de
critérios estéticos, ou de modelos estéticos alheios ao conjunto cultural alemão, impostos à
força. O sintagma “um novo tipo de medo”, atribuído a Günderrode, lembra a construção
“um novo tipo de morte”, atribuída a Kleist em função do silenciamento, e alegoriza, por
trás do juízo artístico, a ação da censura, o perigo da repressão:
Diese erste wilde Reue, mit ihren Bekenntnissen unter die Leute
gegangen zu sein, hat sich gelegt. Dem Clemens, der sich empört
stellt, der wohl empört ist, spielt sie Gelassenheit vor. Aber ein
feines Gift ist aus diesen Zeilen in sie eingedrungen, untilgbar, und
eine neue Art von Furcht. Sehr stark fühlt sie die Versuchung, sich
fallen zu lassen. Wegzugehn, sich zu verkriechen, das letzte,
unauffindbare Versteck aufzusuchen, wo keiner sie aufstöbern
kann, nicht Freund, nicht Feind. Man wird sie nicht demütigen. Sie
hat das Mittel dagegen und wird es zu gebrauchen wissen. Welch
ein Trost, das man nicht leben muβ
311
.
Nas linhas traçadas pelo crítico, Günderrode percebe significados que a assustam.
O estado da personagem deixa entrever a subjacência de uma advertência ou mesmo de
uma ameaça. O medo leva a heroína à tentação de deixar-se sucumbir, a fim de livrar-se do
perigo de danos individuais. O evasionismo dá-se por meio da alusão ao punhal, como
instrumento empregado para pôr termo à vida, porém, deixando viva uma obra poética tão
incisiva quanto o referido motivo. A ambivalência do trecho narrado assenta-se sobre a
311
Idem. Ibidem. p. 29-30.
duplicidade de tratar do conflito do artista com a disposição estética necessária à criação e
dela resultante e, ao mesmo tempo, referir aos fatores de ordem contextual que interferem
na produção da arte ao passo que são por ela influenciados.
Em Die neuen Leiden des jungen W., os discursos limitam-se ao universo do
indivíduo, que adquire um caráter particular. O discurso do narrador sobre si mesmo é
marcado pela polissemia, podendo ser lido em vários níveis, oscilando entre o sério e o
cômico, o satírico e o debochado, o revoltado e o descompromissado. As alusões a Werther
tornam-se parte do universo romanesco inserindo o passado no presente da história. No
trecho a seguir, Plenzdorf parodia o idílio de Werther e Charlotte. A paródia adquire um
tom de comicidade quando, inesperadamente, o próprio Wibeau afirma ser um idílio a cena
em que se imagina com Charlie, estabelecendo a alusão com a história de Werther, mas
marcando a diferença em relação a ela. Seu idílio dá ensejo ao argumento da
vagabundagem, através do qual o herói brinca – satiriza – com a questão do trabalho,
louvada pelo Socialismo. Ao preparar sua opinião a respeito, espera-se que diga algo sério
e relevante. Ele, pelo contrário, graceja dizendo tautologias e truísmos. Além disso,
Wibeau realiza humor inteligente ao inverter a ordem de fatores dados e legitimamente
aceitos: se normalmente as pessoas não dispõem de tempo para lazer ou namoro por causa
do trabalho, ele afirma não possuir tempo para o trabalho porque precisa ficar junto da
amada:
Ich hatte nichts gegen Arbeit. Meine Meinung dazu war: Wenn ich
arbeite, dann arbeite ich, und wenn ich gammle, dann gammle ich.
Oder stand mir etwa kein Urlaub zu? [...] Auβerdem hatte ich
keine Zeit für Arbeit. Ich muβte an Charlie dranbleiben. An
Charlie lag mir was, aber das sagte ich wohl schon. In so einen
Fall muβ man dranbleiben. Ich seh mich noch neben ihr hocken in
diesem Auslauf, und die Gören spielten um uns rum. Charlie
häkelte. Ein Idyll, Leute. Fehlte bloβ noch, daβ ich meinen Kopf
in ihrem Schoβ hatte
312
.
Torna-se complicado estabelecer uma categoria única que defina Edgar Wibeau
enquanto personagem. A complexidade de sua construção aponta traços do pícaro, do
bobo, do bufão, do fanfarrão, sintetizados na figura do jovem metido a esperto, mas
caricato. Plenzdorf parodia um idílio a partir de elementos da picaresca: o marginalizado
que revela a corrupção e os vícios da sociedade. Ele é em síntese o jovem revoltado, o
312
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 65-66.
louco, o vagabundo, desprovido de credibilidade e poder para a luta, que se apresenta
como o inseto, cuja presença incomoda. O paradoxo de Wibeau gravita em torno do fato de
isolar-se, mas ao mesmo tempo estar sempre presente.
As referidas formas de personagem, de acordo com Bakhtin
313
, derivam das
máscaras do teatro cômico e servem ao romancista como uma forma consistente para
determinar a posição com que vê e torna pública a vida. O teórico salienta a esse respeito a
importância do sentido indireto e figurado e do aspecto alegórico de toda a imagem do
homem, que se presta para a denúncia de todo convencionalismo pernicioso nas relações
humanas. Tais máscaras assumem um significado excepcional na luta por um homem
verdadeiro, contra o convencionalismo e a inadequação de todas as formas de vida: elas
dão o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de exagerar, de não ser
literal, de arrancar as máscaras dos outros, de tornar pública a vida privada. Desta
perspectiva, cabe ao bufão opor-se ao caráter falso, hipócrita e nocivo do
convencionalismo por meio da zombaria paródica, da inteligência sagaz e lúcida, da
intrujice; ao bobo, opor-se através da incompreensão, da ingenuidade, da simplicidade
desinteressada e da galhofa.
Conforme acusam as palavras do protagonista: “Ich lieβ sofort meine schärfste
Waffe sprechen, Old Werther”
314
, a expressão “arma mais afiada” é uma metáfora da fala
coloquial para referir-se aos recursos de defesa ou reação a perigos e embaraços, que alude
ainda à situação de repressão de qualquer dissidência por militares armados. Wibeau luta
contra a marginalização. As citações de Werther são empregadas como réplica ou como
resposta a situações peculiares. É uma maneira encontrada para tangenciar ou debochar os
assuntos, fazendo-se passar por erudito, o que não combina com as condições em que se
apresenta. Dado que os interlocutores normalmente não compreendem o que Wibeau quer
dizer com tais segmentos discursivos, estes servem para ludibriá-los – posto que em sua
maioria tais personagens representam a conformidade com o poder – instaurando a
perplexidade entre eles, bem como para possibilitar a evasão das situações intragáveis da
realidade social. Com isso, a paródia serve para que, como o pícaro, o herói diga várias
coisas a partir não do sentido literal, mas do sentido figurado. Assim, ao ver que Dieter
observa suas pinturas, Wibeau cita:
313
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 1990. p. 275-281.
314
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 82.
Man kann zum Vorteile der Regeln viel sagen, ungefähr was man
zum Wohle der bürgerlichen Gesellschaft sagen kann. Ein
Mensch, der sich nach ihnen bildet, wird nie etwas
Abgeschmacktes und Schlechtes hervorbringen, wie einer, der sich
durch Gesetze und Wohlstand modeln läβt, nie ein unerträglicher
Nachbar, nie ein merkwürdiger Bösewicht werden kann; dagegen
wird aber auch alle Regel, man rede, was man wolle, das wahre
Gefühl von Natur und den wahren Ausdruck derselben
zerstören!
315
.
A passagem citada remete ao imperar das regras, que aponta para a questão das
convenções impostas homologicamente como fundamento para a sociedade e para a arte.
Ao quebrar as regras na pintura, Wibeau rompe as regras na sociedade socialista. Pode-se
verificar aí uma alusão ao pressuposto do Realismo socialista que remonta ao modelo do
Bildungsroman, como representação dos princípios da formação do homem, pois a questão
da formação torna-se essencial para a construção do homem novo. A categoria do homem
novo, assim como a noção da democracia, são apelos ao ideal de um socialismo em que o
homem teria a possibilidade de desenvolvimento pleno de suas faculdades e de sua
liberdade. Trata-se de forjar uma imagem do Socialismo real que corresponda a este ideal e
de torná-la aceita pelo povo, de modo que os trabalhadores não percebam as incoerências e
o caráter de dominação política inerentes ao sistema. A apropriação da imagem do homem
novo pelo Realismo socialista objetiva justamente a incutir a aceitação de tal ideologia na
mentalidade dos trabalhadores, incorporando-os à estrutura orgânica do Socialismo. A
menção à regra traz consigo o desejo da liberdade, tanto no domínio artístico, conforme
pregam os princípios românticos, quanto no âmbito social e político, reivindicando
flexibilização da realidade no sentido de possibilitar a emancipação e a autonomia do
homem, pois “o verdadeiro sentimento e a verdadeira expressão da natureza” caracterizam
um apelo ao humanismo. Essa é mais uma cena em que a paródia gera uma situação
cômica, pois como Wibeau percebe que Dieter vai achar seu trabalho “uma porcaria”, faz
logo uma menção ao rompimento com as regras a fim de justificar sua “técnica” e
assegurar o “valor artístico” de sua “obra”. De todo modo, a citação de Werther no
romance de Plenzdorf adquire significados que investem contra o cerceamento da
liberdade social e política e contra a limitação da criatividade, o que bloqueia o
desenvolvimento do povo em termos de humanidade.
315
Idem. Ibidem. p. 75-76.
Num final de semana em que Dieter havia prometido dar um passeio com
Charlie, mas por motivos de estudo fica sem tempo, Wibeau, por assim dizer, mete-se a
fazer companhia para a moça. Ele então pensa nas palavras de Werther: „Zieht ihn nicht
jedes elende Geschäft mehr an als die teure, köstliche Frau? ... Sattigkeit ist’s und
Gleichgültigkeit!“
316
. Ao lembrar do personagem de Goethe, o herói debocha daqueles que
por causa do trabalho, de negócios ou de estudos dispõem de pouco tempo para lazer ou
relações pessoais e familiares. A situação tende ao cômico na medida em que Wibeau, ao
contrário, como vagabundo, possui tempo de sobra para divertir-se e dedicar-se à Charlie,
ao contrário do marido, que precisa conciliar o casamento com outros compromissos; além
do que o próprio narrador dá a entender que, apesar de não haver envolvimento
comprometedor entre ambos, ele está atrapalhando o entendimento do casal. Ele assume,
então, o papel do fanfarrão, do esperto que tira proveito e se vangloria dessa “vantagem”.
As citações de Werther empregadas por Wibeau adquirem propriedades inerentes
a este último, sendo proferidas como se pela boca do bufão, do bobo, do louco e do
vagabundo. Edgar é acolhido pelo grupo de pintores liderado por Addi e Zaremba. Por
causa de uma desavença com Addi, o qual projetara e construía uma máquina de pintura,
percebendo ser este seu ponto vulnerável, Edgar passa a rivalizar com ele na construção da
máquina, valendo-se disso para irritá-lo. No entanto, tal modo de tirar desforra conduz ao
cômico. Zaremba afirma que a invenção de Addi tanto pode vir a ser um grande sucesso
como um desastre, ao que Edgar responde:
Er ist der pünktlichste Narr, den es nur geben kann; Schritt vor
Schritt und umständlich wie eine Base, ein Mensch, der nie mit
sich selbst zufrieden ist und dem es daher niemand zu Danke
machen kann
317
.
Wibeau retoma as palavras escritas por Werther para depreciar o embaixador, a
fim de insinuar o mau humor do chefe. Werther refere-se a um caráter pouco afetivo,
dotado de frieza e da incapacidade de emocionar-se, baseado no valor das relações de
compromisso e de superioridade hierárquica, priorizando a regra sobre o envolvimento
comunitário e humano. Tal citação gera um estado de comicidade ao se perceber que o
caráter de Addi não corresponde ao do chefe do herói goetheano, de modo que ao
aproveitar o comentário transcrito, Wibeau nada mais faz que chamar o outro de mal-
humorado. Por outro lado, no discurso de Wibeau, a proposição de Werther acerca de seu
316
Idem. Ibidem. p. 129.
317
Idem. Ibidem. p. 99.
chefe assume uma forte carga crítica contra o tipo de homem por ele representado, o que
remete à desumanização realizada em nome do ideal de objetividade que rege o Socialismo
real.
No momento em que os especialistas experimentam as biqueiras na máquina de
Addi, ocorre um incidente ao qual Edgar se refere como „groβe Show“: ao testarem um
bico de calibre muito baixo, a mangueira não suporta a pressão e estoura; os personagens
em volta da máquina, Addi principalmente, ficam amarelos de tinta „wie ein Chinese oder
was “
318
. A palavra Show, assim como o vocábulo Szene, empregado para referir-se à
consulta com o professor da Escola técnica de pintura, traz a idéia de espetéculo, como se o
personagem vivesse num mundo em que se representa uma farsa. Isso permite levantar a
questão sobre até que ponto o próprio Socialismo não estaria assentado sobre uma farsa. O
herói se aproxima e dá voz ao Werther:
Es ist ein einförmiges Ding um das Menschengeschlecht. Die
meisten verarbeiten den gröβten Teil der Zeit, um zu leben, und
das biβchen, das ihnen von Freiheit übrigbleibt, ängstigt sie so,
daβ sie alle Mittel aufsuchen, um es loszuwerden
319
.
Com isso, Wibeau se refere ao culto do trabalho e à problemática da vida ativa
que regem a vida e as relações das pessoas, de modo que o homem precisa ocupar-se
sempre de algo que o leva a tornar seu tempo produtivo, ideal este que define a prática
humana sob o Socialismo. O tom sério do romance de Goethe resulta em riso nos discursos
do herói de Plenzdorf. A crítica de Wibeau incide sobre todas as formas de exagero, que
podem ser prejudiciais à pluralidade constitutiva do homem e de sua vida em conjunto. A
ênfase exacerbada no trabalho leva o homem ao bitolamento e ao desequilíbrio, pois lhe
tira o direito e as possibilidades de lazer, de desenvolvimento intelectual, de convívio
familiar e inclusive de organizar-se em grupos para defender interesses: enfim, de
satisfazer suas necessidades subjetivas. Tanto assim é que o próprio protagonista perece
em virtude de suas desmedidas.
Ainda com relação ao trabalho, depois que Addi o manda sumir-se, Wibeau volta
para o caramanchão e recita as palavras de Werther, que serão enviadas a Willi: „Und
daran seid ihr alle schuld, die ihr mich in das Joch geschwatzt und mir so viel von Aktivität
318
Idem. Ibidem. p. 100.
319
Idem. Ibidem. p. 100.
vorgesungen habt. Aktivität! … Ich habe meine Entlassung … verlangt … Bringe das
meiner Mutter in einem Säftchen bei“
320
. Com a construção “daran seid ihr alle schuld“, o
protagonista atribui a culpa de sua situação àqueles que lhe impuseram determinados
padrões, cuja exigência para a aceitação é a profissão regular e a apologia do trabalho: a
mãe, o instrutor, o diretor da escola de pintura, personagens que encarnam a ideologia do
regime.
A acusação feita pelo personagem expande-se alcançando o contexto
extraliterário, de modo que a culpa recai não apenas sobre os personagens, mas sobre os
setores dominantes do regime e todos que estão de acordo com a primazia das relações de
produção à satisfação das necessidades humanas do povo: em suma, o herói denuncia a
sobreposição dos princípios ilegítimos aos valores autênticos. Ao sujeito é imposta uma
formação nos moldes da técnica, reforçando o grau de alienação e anulando suas
possibilidades de humanização. A inadaptação de Werther ao trabalho apresenta-se como
crítica aos exageros da burocracia burguesa. A seu pedido de demissão correspondem a
evasão de Wibeau da escola técnica, a fuga de casa e a falta de aptidão para o trabalho, que
revelam uma revolta contra as práticas opressivas, massificadoras e exploratórias do
sistema socialista.
No que concerne ao papel do artista e ao lugar da arte para a vida no contexto dos
romances, pode-se constatar um estado de perplexidade para o qual apontam os três
elementos em estudo. No texto de Plenzdorf, o voltar-se para o passado refere-se ao
interesse pelo período romântico e à referência à categoria do gênio, que remete à
dedicação, ao papel e ao tratamento dado pelos românticos à arte. Tais aspectos formam
um conjunto de sentidos capitais para a interpretação desta obra. Ao declarar-se um gênio
não reconhecido: „Ein verkannteres Genie als mich hatte es noch nie gegeben“
321
, o herói
zomba da realidade, debochando de si próprio que é bobo, bufão, louco, vagabundo e
rebelde mas não é de fato gênio. Pode-se verificar um fundo de seriedade subjacente ao
deboche, que indica não haver espaço para gênios no domínio do Socialismo real, a não ser
que estes se deixem cooptar pelo Estado. A falta de liberdade tolhe a criatividade dos
intelectuais e artistas. Wibeau caracteriza-se pela teimosia, pela presunção e pela gabolice
– claro que em tom de brincadeira: „Edgar Wibeau, das verkannte Genie, bei der
selbstlosen Arbeit an seiner neuesten Erfindung, die Lunge halb weggefressen, und er gibt
320
Idem. Ibidem. p. 101.
321
Idem. Ibidem. p. 25.
nicht auf“
322
. O conceito de gênio permite aos românticos a superação do conceito
classicista de imitação, através do qual a arte se subordina a um conjunto normativo.
Retomando as propostas de Hauser
323
, pode-se destacar que o conceito de gênio
artístico é uma das categorias que melhor reflete os motivos a partir dos quais se
desenvolve a visão de mundo do Sturm und Drang. Pautado nos valores humanos, esse
conceito contém os critérios do irracional e do subjetivo, em oposição ao dogmatismo
iluminista, converte a compulsão externa em liberdade interior, e apresenta o princípio de
originalidade. O gênio, para o Pré-Romantismo, personifica um ideal marcado pela
ausência do vínculo com a razão, a teoria e a convenção, fundamentando-se na rebeldia, na
criatividade e na liberdade de escolha. A comicidade associada ao fato de o protagonista
considerar-se um gênio deriva do fato de que sua “descoberta” não é algo original; trata-se
de uma cópia da máquina de pintura construída por Addi, o que equivaleria à imitação de
um modelo, a um plágio, ou mesmo ao roubo de uma idéia. Em determinado momento,
Addi percebe que algumas peças de sua máquina haviam sumido. Após a morte de
Wibeau, descobre tais peças na máquina deste. Tal apropriação afigura-se não como roubo,
mas como troça, de modo que a trapaça assume tons picarescos, como se o herói pensasse
em superar seu rival empregando os próprios recursos deste outro. Não obstante o fim
trágico do herói, acentua-se a graça ao saber que no momento do teste, seu invento não
funciona.
Wibeau observa não haver nenhum quadro nas paredes do quarto do pai, em lugar
do que o filho o acusa de ter uma mulher. Com isso, denuncia-se a duplicidade que envolve
a questão do valor da arte: se, por um lado, ela possui uma função politizante e
humanizadora, capaz de carregar ideologia e esclarecer o homem, sendo alvo do interesse
constante dos setores dirigentes, por outro, encontra-se fadada ao desinteresse da massa
alienada. Tal descaso se deve à falta de acesso e de uma educação que crie no cidadão o
gosto pela arte, pois mantido na ignorância o povo pode se deixar manipular:
Na, die Wände. Tabula rasa. Unsereins kommt rum. Bilder haben
sie überall, so’ne und solche, aber Sie? – Dafür haben sie andere
schöne Sachen. [...] Die Frau lächelte. Sie hatte sofort verstanden.
Es war vielleicht auch nicht schwer. Wir sahen uns eine Sekunde
an. Sie war, glaubte ich, das einzige in dem Zimmer, was mich
322
Idem. Ibidem. p. 111.
323
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. 2003. p. 615-618.
nich tötete. Alles andere tötete mich, vor allem die kahlen
Wände
324
.
Neste trecho, pode-se atestar a perplexidade do herói diante da pressuposta
indiferença do pai com relação à pintura. As paredes nuas do quarto sugerem o vazio
cultural do homem sob o fechamento do regime socialista, lacuna esta que ele tenta
preencher através de outros meios. O desinteresse pela arte, pelo fato de que o
enriquecimento do espírito demanda labor, é satirizado pelo herói ao demonstrar que as
fontes do valor intelectual podem ser substituídas pela satisfação dos prazeres imediatos.
O tema de Werther, impossibilidade de suportar o mundo, permeia toda a
narrativa. Diferente do personagem de Goethe, cuja melancolia provoca o desejo de
escapar à vida: „Der Kerl in dem Buch, dieser Werther, wie er hieβ, macht am Schluβ
Selbstmord. Gibt einfach den Löffel ab“
325
, o herói de Plenzdorf encontra válvulas de
escape que lhe possibilitam valorizar a vida. Não obstante, o mundo o aniquila, através da
imposição de padrões, comportamentos e práticas, num primeiro momento, e num
segundo, através da marginalização e da falta de oportunidade.
4.3 Recursos lingüísticos e discursivos nos romances
Die neuen Leiden des jungen W. trata de um personagem inserido no cotidiano,
em que se enfocam cenas da vida comum, por assim dizer, do homem comum, valendo-se
da linguagem comum. Kein Ort. Nirgends trata os personagens como seres elevados,
empregando uma linguagem elevada. Esse fato remete ao emprego do plurilingüismo nas
obras: a primeira constrói-se a partir dos vários discursos e linguagens do cotidiano,
formando um mundo prosaico e visando a sua dessacralização, constituindo-se com base
nos traços do romance humorístico, e adquirindo o caráter de paródia. A segunda, a partir
do tom poético específico atribuído aos personagens, constitui um mundo poético, em que
o recurso à poesia deve-se à imaginação e à memória, fundindo em sua estrutura os
fundamentos do gênero, da linguagem e do estilo poético.
324
PLENZDORF, Ulrich. Die neuen Leiden des jungen W.. 1981. p. 108.
325
Idem. Ibidem. p. 36.
A obra de Plenzdorf caracteriza-se pelo entrecruzamento de opiniões e
perspectivas que marcam papéis e lugares sociais e ideologias. É o caso do discurso da mãe
de Wibeau, perpassado pelo sentimento materno e pela ideologia de sua profissão –
diretora da escola técnica – e da instituição a que se vincula; do discurso do pai do
protagonista, considerado por ela um pai ausente; do instrutor, marcado pelas concepções
socialistas em que se fundamentam as escolas técnicas, instituições estas destinadas a
propagar a ideologia do regime; e do próprio protagonista, que se revolta com a situação
por perceber a hipocrisia e os problemas inerentes aos mecanismos da vida social sob os
auspícios do Socialismo e o jugo da União Soviética. Isso se explica com o seguinte
pressuposto: “A introdução de linguagens e perspectivas sócio-ideológicas caracteriza o
plurilingüismo no romance humorístico”
326
. O humor é usado com o fito de criticar e
dessacralizar e está ligado a um caráter intencional intrínseco à narrativa. Nestes termos, o
romance emprega a linguagem estratificada como representação de “atitudes, pontos de
vista e juízos correntes” aos quais contrapõe o humor.
Originalmente, o “papel da paródia literária” é a “destruição dos mundos
romanescos anteriores”. No livro em questão a paródia é utilizada como recurso de
“deformação”,
327
através do qual situações e discursos são alterados de modo a causarem
um estranhamento em que se decodifica a intenção de riso e deboche. Isso implica que, se
em romances como Dom Quixote a paródia é empregada para estabelecer uma mudança de
paradigma literário pela superação do estilo anterior – objeto da paródia – no romance de
Plenzdorf, a obra parodiada serve para reforçar a agudeza crítica do romance em relação à
situação extratextual, no caso, o contexto da RDA. O Werther de Goethe é retomado pelo
viés da intertextualidade, como recurso humorístico, não propriamente como alvo de
crítica. Die neuen Leiden des jungen W. é marcado pela estratificação da linguagem, pois
se reconhece nas falas as marcas lingüísticas dos estratos sociais e distinções etárias e de
gêneros existentes na Alemanha Oriental da época: Wibeau, por exemplo, representa o
jovem da RDA. Através do plurilingüismo, o romance desvenda o cerne de questões cuja
problemática é aprofundada através do contraste entre os pontos de vista e posições
sociais:
a estratificação da linguagem literária, seu caráter plurilíngüe, é
um postulado indispensável ao romance humorístico, cujos
326
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 1993. p. 116.
327
Idem. Ibidem. 1993. p. 114.
elementos devem projetar-se sobre diferentes planos lingüísticos.
[...] Esse jogo com as linguagens e [...] a ausência [...] de um
discurso direto [...] não diminui a intencionalidade geral e
profunda, ou seja, o significado ideológico, de toda a obra
328
.
No referido livro, pode-se perceber que em certos momentos as falas do
protagonista interferem nas dos demais personagens, o que consiste em uma quebra com os
limites entre os discursos, pois Wibeau, apesar de morto, permeia os diálogos com seus
comentários como se ainda estivesse vivo, o que corresponde ao seguinte postulado:
A fala de outrem [...] nunca está nitidamente separada do discurso
do autor: as fronteiras são intencionalmente frágeis e ambíguas,
passam freqüentemente por dentro de um único conjunto sintático
ou de uma oração simples [...]. Este jogo multiforme com as
fronteiras dos discursos, da linguagem e das perspectivas é um dos
traços mais importantes do estilo humorístico
329
.
A obra de Wolf constrói-se a partir da fusão de traços dos gêneros poéticos na
estrutura romanesca. Na esteira do pensador russo, o romance permite introduzir na sua
composição diferentes gêneros, que conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural,
a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística
330
. O romance utiliza-se
também de gêneros como a carta, o relato de viagens, o diário, a confissão e a biografia
como formas elaboradas de assimilação da realidade. Em Kein Ort. Nirgends, tem-se a
incorporação de um estilo/linguagem poética à composição romanesca. Conforme o teórico
russo, “o discurso poético em sentido estrito é [...] ambíguo e polissêmico”
331
.
O símbolo não pode admitir uma relação substancial com o
discurso de outrem, com a voz de outrem. A polissemia do
símbolo poético pressupõe a unidade e a identidade da voz consigo
mesma, e a sua total solidão no discurso
332
.
O mundo da poesia que o poeta descobre, porquanto mundo de
contradições e de conflitos desesperados, sempre é interpretado
328
Idem. Ibidem. 1993. p. 116.
329
Idem. Ibidem. 1993. p. 113.
330
Idem. Ibidem. 1993. p. 124.
331
Idem. Ibidem. 1993. p. 130.
332
Idem. Ibidem. 1993. p. 130.
por um discurso único e incontestável. As contradições, conflitos e
dúvidas permanecem no objeto, nos pensamentos, nas emoções,
[...] em uma palavra, no material, porém, sem passar para a
linguagem
333
.
As passagens acima podem ser empregadas para se refletir o aludido romance no
sentido de que ele apresenta homogeneidade no tom e no tratamento lingüístico, o que se
conforma ao caráter sério exigido pelo aprofundamento filosófico da questão tematizada: a
desilusão do sujeito com o mundo. A linguagem poética de Kein Ort. Nirgends apresenta
em sua unidade a carga polissêmica própria da ideologia e das concepções contidas na
poesia de Kleist e Günderrode. A unidade e incontestabilidade do discurso permitem
deslindar o fundamento dos conflitos dos personagens, motivando a empatia do leitor com
os mesmos, e o engajamento em sua causa.
O termo intertextualidade, cunhado por Julia Kristeva, designa a transposição de
um ou vários sistemas de signos em um outro, passagem esta que deve exigir uma nova
articulação da tanto da temática existencial, quanto da posição enunciativa e denotativa. A
intertextualidade relaciona-se, em muitos casos, com a crítica de fontes, sendo portanto não
uma adição aleatória e misteriosa de influências, mas um trabalho de transformação e
assimilação de textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do
sentido, o que se refere à força crítica desse termo. É importante ressaltar que com sua
concepção de intertextualidade, Kristeva identifica o sujeito e o processo de significação
em uma teoria totalizante do texto que engloba as relações entre sujeito, inconsciente e
ideologia. Para tanto, a teórica se vale dos postulados bakhtinianos segundo os quais a
estrutura literária se elabora de maneira dinâmica. Em ambas as obras, a perspectiva
intertextual refere-se à incorporação de segmentos de obras ou concepções que remetem a
um significado específico, que no conjunto dos romances em estudo adquirem um novo
significado. Neste sentido, a incorporação do livro de Goethe ao enredo da narrativa de
Plenzdorf, bem como a citação de trechos do discurso do personagem goetheano indicam
uma intencionalidade crítica dirigida para determinadas situações correspondentes ao
contexto alienante e reificante conhecido por Plenzdoef. Exemplo disso é o trecho em que
Werther reflete sobre o trabalho, gravado por Wibeau em fita K7 e enviado ao seu amigo
Wilhelm, o qual aponta indiretamente para o regime de trabalho no contexto da RDA. No
que se refere à obra de Wolf, a intertextualidade é um recurso composicional fundamental,
na medida em que, para criar seus personagens, a autora extrai matéria dos poemas de
333
Idem. Ibidem. 1993. p. 94.
Günderrode e dos dramas e sobretudo das cartas de Kleist, valendo-se das concepções e
visões de mundo que os poetas expressam em relação a seu tempo como modo de refletir
sobre e alegorizar problemáticas e idéias específicas da realidade e da vida sob o
Socialismo alemão. Não cabe aqui, entretanto aprofundar os referidos pontos, visto que,
dada a sua importância, merecem um tratamento que ultrapassaria os limites fixados para o
propósito desta pesquisa.
O trabalho de análise e interpretação das obras em estudo nesta dissertação de
mestrado consistiu em abordar o papel da retomada de elementos do Romantismo Alemão
para o caráter de resistência dos aludidos romances, tendo em vista o momento de censura
e repressão em que foram produzidos; os principais aspectos da estética romântica que
perpassam a composição das obras, a saber, a melancolia, a subjetividade e o voltar-se para
o passado, visando a interpretar os sentidos para os quais apontam; e os recursos
lingüísticos empregados na elaboração romanesca através dos quais a apropriação do dado
romântico pode ser atualizado, remetendo aos problemas, anseios, conflitos e questões do
contexto histórico e artístico da RDA, revelando-se como reação à exigência de retratar
uma sociedade sem conflitos que o Realismo socialista imputava aos artistas e que os
levava a compactuar com as práticas alienadoras e reificantes impostas ao homem em
nome do funcionamento do Socialismo. Neste sentido, Emmerich
334
constata tanto em
Ulrich Plenzdorf quanto em Christa Wolf uma ruptura com o Realismo socialista, que
resulta na renúncia da harmonia na perspectiva narrativa, de modo que a linguagem
empregada pelos autores é nova e viola a norma.
É importante ressaltar a função de níveis distintos que se entretecem ao longo dos
romances: primeiro, tem-se o nível da narração, em que se segue a perspectiva de um
narrador imaginário que apresenta uma realidade puramente ficcional, que remete a uma
outra realidade literária, a saber a do Período romântico; segundo, distingue-se o nível do
autor, que, nas entrelinhas da narração, expõe idéias próprias a respeito da realidade social
que vivencia; terceiro, distingue-se um nível de comunicação com o próprio leitor/público,
numa tentativa de levá-lo à reflexão e ativar um desejo de protesto por parte deste. A par
da relevância do referido ponto, em virtude dos limites estabelecidos para a análise,
reserva-se o desenvolvimento detalhado deste para um trabalho futuro. Frisa-se por ora que
os diferentes níveis de linguagem contribuem para quebrar a aparente unidimensionalidade
da realidade e para contestar a linguagem atolada e não criativa do cotidiano político.
334
Emmerich, Wolfgang. Kleine Literaturgeschichte der DDR. 1987. p. 181.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura e a contextualização dos romances Kein Ort. Nirgends e Die neuen
Leiden des jungen W. permitem comprovar a hipótese inicial de que o interesse pelo
elemento de cunho romântico encerra um sentido de resistência. A incorporação de
características estéticas largamente empregadas no Romantismo, como a subjetividade, a
melancolia e o olhar para o passado, remete à assimilação de formas que expressem o
conteúdo de uma identificação com os valores e com o sentimento de crise existencial
desencadeado pela dominação e marginalização social de um grupo de poetas que viveram
a virada do século XVIII para o XIX. Essa retomada constitui-se ainda como reação contra
um preconceito da crítica e da política cultural da RDA contra a mencionada geração de
escritores. Tal rejeição funda-se na oposição do Realismo socialista à Vanguarda, bem
como na dicotomia em que se colocou o Classicismo e o Romantismo no domínio da
discussão acerca da importância da herança cultural e da tradição artística para a
construção do Socialismo.
O Realismo socialista baseou-se na transposição do ideal e do modelo humanistas
para a produção artística do regime socialista, considerando fatalistas e patológicas outras
manifestações, que condenou como prejudiciais ao sistema. Esse programa para a
produção artística tem como base teórica os pressupostos de Georg Lukács acerca do
espelhamento da realidade, no sentido de representar a mobilidade social e histórica e o
agir político do homem através da imagem positiva do trabalhador na fábrica. Deste modo,
ao pretender aplicar à produção literária um padrão pré-industrial e anterior à divisão do
trabalho, o Realismo socialista pode ocasionar certa inadequação entre forma e conteúdo,
assim como um erro na transposição histórica de modelos e concepções de mundo. O
modelo romanesco proposto pelo teórico húngaro desconsidera a evolução da história, a
introdução da técnica e a transformação das formas artísticas em suas ligações com as
necessidades reais da vida humana.
Afirma-se inicialmente que a tendência literária na qual se inserem os romances
em estudo é, por um lado, caudatária da tradição moderna da literatura alemã, que guarda
uma estreita relação com os problemas sociais e humanos do século XX, sendo que, de
modo geral, influências da situação histórica concretizada no capitalismo imperialista, nos
sistemas totalitários e nas destruições das duas guerras se refletem tanto em um sujeito
cindido e em descompasso com o mundo, quanto na necessidade de reação crítica e
afirmação do sujeito frente ao estado de coisas dado; e, especificamente, essa produção
resulta das condições históricas particulares da RDA, da relação dos escritores com os
acontecimentos e da sua posição em face das decisões políticas, sociais, culturais e
ideológicas do momento. Remetendo aos termos composicionais das obras, pode-se
constatar que por um lado elas incorporam o movimento de desrealização da arte,
assinalado por Rosenfeld, no qual a perspectiva passa pelo interior do sujeito ou pela
percepção simultânea de vários focos. Com isso, revela-se a problematização das certezas
do artista para com a experiência sobre o mundo, passando-se a expressar a contingência
que envolve a vida do homem. Além disso, o romance passa a assimilar as inovações
técnicas desenvolvidas em outros campos, como o cinema e a fotografia – a exemplo da
montagem. A esse respeito, a literatura deve muito às contribuições de Brecht e Eisler, que
aproveitam tais recursos como meio de acompanhar as necessidades reais e as condições
sociais e históricas de seu tempo.
De posse do conhecimento dessas manifestações modernas, Wolf e Plenzdorf
podem realizar, em temos de forma, a chamada apropriação crítica da tradição, proposta
nas reflexões de Brecht com o fito de ampliar o conceito de realismo vigente. Em termos
de conteúdo, a dissonância entre os ideais de construção de uma ordem justa, humana e
igualitária alimentados por intelectuais e artistas e as práticas opressivas e exploratórias
exercidas pelo Estado sobre o povo provoca um sentimento de crise em muitos escritores.
Isso põe em dúvida o lugar e a função da arte e o próprio ato de escrever. Por um lado, essa
crise leva a um interesse por poetas ou personagens marginalizados do período romântico,
trazendo-os como protagonistas para o interior da ficção; por outro, impele a tematizar o
valor da própria arte em sua relação com o homem e a sociedade, seja na reflexão do
narrador, seja na dos personagens.
Lukács, ao exigir um padrão objetivo de representação, rejeitava as manifestações
da subjetividade, considerando-a em termos de contingência, de relatividade, de
aproximação imediata e acrítica da realidade, de falta de unidade, de incapacidade para
organizar-se politicamente e promover a transformação histórica da sociedade. A
subjetividade nas obras em estudo afigura-se como a expressão de sujeitos particulares que
sofrem a crise de seu contexto histórico, sujeitos individuais e desarticulados que revelam a
desarticulação da própria coletividade, capazes de agir isoladamente, mas avessos à
organização em movimentos políticos, sentidos como massificação no contexto da RDA.
As relações sociais são sentidas pelos personagens como limitação da liberdade do
indivíduo. Nos romances em questão, a falta de liberdade em favor das convenções
aniquila o sujeito. A incorporação dos traços românticos vincula-se a uma estrutura
romanesca que quebra com os padrões realistas por conceber que tal padrão, em sua
pretensão de representação fiel do real, transmite uma visão simplista e distorcida do
material tematizado.
Em ambas as obras o momento romântico associa-se à marginalização social. A
idolatria lukácsiana do legado humanista legitima um tipo de arte concorde com o poder e
a ideologia dominante. Ao contrário, o apreço pelos românticos revela-se como
descontentamento e reação contra o poder. As concepções de Wolf acerca da estética
romântica acompanham as idéias de Ana Seghers, ao defender do menosprezo de Lukács
poetas críticos em relação à sociedade de seu tempo, esmagados pela pressão da mesma,
como Kleist, Hölderlin, Günderrode, Lenz e Büchner. Plenzdorf, por seu turno, ciente da
exigência por parte da política cultural de retomada do modelo do Goethe clássico a fim de
harmonizar o Humanismo com o Socialismo, apropria-se de uma obra do Goethe Sturm
und Drang como função crítica e problematização do legado artístico.
Assim, a retomada do elemento romântico e pré-romântico denota a intenção de
posicionar-se contra e traz à tona o universo dos excluídos. Kleist e Günderrode, poetas
que a posição lukácsiana deprecia com base nos argumentos do patológico e do sujeito
fragmentado e frágil, em comparação com a racionalidade clara, a integridade e a atividade
do Goethe clássico, são os personagens que atuam e se manifestam no romance de Wolf.
Aludindo ao enaltecimento do trabalho, do capricho, da seriedade, do homem ativo e
positivo pelo sistema socialista, Plenzdorf põe em cena um personagem revoltado,
influenciado pelos arroubos subjetivos e sentimentais de Werther e caracterizado pela
dissidência, com os signos do vagabundo, do desleixado, do bobo, do palhaço e do
fanfarrão.
A atitude do romântico é a interiorização, seu ponto de vista é o da interioridade.
Os românticos não rejeitam os clássicos, são pelo contrário grandes leitores e admiradores
da literatura antiga. Renegam o conjunto de normas clássicas e a concepção classicista e
iluminista de um mundo que se desenvolve conforme um padrão universal e definido, um
conjunto de leis universalmente válidas e de idéias eternas e imutáveis. O Romantismo
norteia-se pela dimensão do individual, do particular e do contingente. Se o fundamento do
Classicismo é o princípio da imitação, o Romantismo prima pelo princípio da criação. A
questão da criação chama a atenção sobre si pelo fato de que o dogmatismo e a censura sob
o regime socialista tolhem as faculdades criativas, limitando, pois, o desenvolvimento do
homem ao separar a atividade intelectual do trabalho braçal.
O subjetivismo permite expressar o que há de específico no sujeito, em seu
estatuto de pessoa, que pensa, sente e sofre, afetada por fatores contextuais e impulsos
interiores, e principalmente, portadora de contradições. Assim, o romance pode tomar
como ponto de partida o sujeito individual em seus embates com o mundo social, um ente
que não pode ser apreendido segundo o padrão universal da concepção clássica e
racionalista, cujas características devem ser válidas para definir o homem a partir da
generalidade. Neste sentido, retoma-se a afirmação de Hauser de que o valor histórico do
movimento romântico consiste no predomínio da sensibilidade sobre o racionalismo,
representando um ponto de mutação no espírito europeu. Tratam-se de concepções a partir
das quais Wolf e Plenzdorf podem questionar a categoria do tipicismo, que em Lukács
funciona como um postulado de objetividade e exatidão na representação, mas que ao
objetivar distorce uma realidade que não pode ser apreendida de modo exato e objetivo.
Nos dois romances, a marca do passado é reatualizada com a finalidade de
reflexão sobre o presente. Em ambos é possível perceber determinado nível de comparação
entre a situação romântica e as vivências no contexto histórico da RDA. Em Kein Ort.
Nirgends, várias das situações vivenciadas pelos personagens remetem a preocupações,
conflitos e idéias da própria escritora com respeito à opressão e à repressão, assim como
aos conflitos ideológicos envolvendo os intelectuais e a política cultural nas décadas de 60
e 70. Em Die neuen Leiden des jungen W., reconhece-se via paródia um paralelismo
entre os personagens Werther e Wibeau, pois este assimila traços daquele a ponto de, em
situações-limite, responder com citações de suas palavras. Plenzdorf encobre com as
críticas e as brincadeiras de Wibeau sobre o livro de Goethe as críticas endereçadas às
práticas sociais, institucionais e políticas de sua época. Nas entrelinhas do livro, podem ser
notadas referências à tecnificação, à ação dos aparelhos ideológicos a fim de criar a adesão
incondicional do povo ao regime e ao investimento em planejamento, administração e
direção ao passo que a massa é privada do acesso a uma formação que vise à autonomia e à
capacidade crítica. A palavra técnica adquire nestas considerações um papel dúplice, sendo
empregada ora no sentido brechteano de permitir à arte incorporar elementos da realidade
circundante e de sua transformação histórica; ora no sentido da racionalização, que
suplanta o esclarecimento e a libertação do homem ao desenvolver e aperfeiçoar aparatos
de dominação.
O caráter melancólico dos personagens revela a desilusão a respeito de um
regime que se acreditou libertador e justo. Escritores como Wolf e Plenzdorf percebem que
a produção e a técnica são sobrepostas ao valor humano. O sonho do Socialismo como
mundo em que seriam satisfeitas as necessidades e alcançada a felicidade do homem
converte-se em perda de utopia ao perceber-se a exploração, a ignorância, a alienação e a
reificação do proletariado, bem como a opressão e a repressão de artistas e intelectuais. A
melancolia resulta de um choque entre indivíduo e mundo social. O tema da morte está
associado nas obras à pressão da realidade social sobre o sujeito humano. O mundo
aniquila os personagens, seja através da imposição de padrões, comportamentos e práticas,
seja através da marginalização e da falta de oportunidade.
O tema da arte, que perpassa os três aspectos examinados, indica reação a um
contexto em que as Humanidades são suplantadas ou colocadas a serviço da técnica, em
que a produção de bens materiais suplanta os valores culturais e humanos, ao passo que a
arte deve manter importante papel para a formação do homem e para a construção da
sociedade. A referência ao período romântico serve de paralelo para esse problema ao
lembrar um momento em que o utilitarismo marginaliza as manifestações de natureza
sensível e a ideologia burguesa desbanca as manifestações socialmente críticas. O
problema artístico torna-se patente para as obras em questão em função do papel atribuído
pela política cultural da RDA à apropriação da tradição e da herança artísticas.
Esse problema vincula-se à subjetividade ao indexar o fato de que a expressão do
sujeito é um dos problemas fundamentais dos românticos apropriada como antinomia da
objetividade clássica e racionalista elevada por Lukács a princípio norteador da arte
realista; à melancolia, pelo fato de que nos dois momentos a arte, sendo expressão do
indivíduo, indica a falta de liberdade do homem, sujeito a regras impostas pelo sistema
político, tanto em sua vida social quanto no que diz respeito ao ato criador, atrelado a
preceitos rígidos e condicionado pelas impugnações da censura; ao interesse pelo passado,
pela necessidade de revisar, à luz de uma perspectiva histórica que desvele suas raízes, um
conjunto de problemas do presente, a saber, as implicações da divisão do trabalho sobre a
vida do povo, do intelectual e da mulher, no sentido da limitação de suas possibilidades de
ação e expressão: trata-se de um processo de exclusão que implica na cisão entre homem e
sociedade, no qual a marginalização repercute no interior do sujeito.
Essa identificação com o Romantismo resulta em última instância do sentimento
de impotência diante dos acontecimentos políticos e sociais da RDA, e de desilusão quanto
à possibilidade de agir politicamente, o que se deve a uma discrepância entre o ideal de um
socialismo voltado para a satisfação das necessidades do povo e o Socialismo real com
suas instituições centralizadoras, normas impostas, aparelhos repressores e ideológicos,
bem como o regime exploratório de produção, elementos que levam a coletividade à
alienação e à reificação. Os temas da morte e do fracasso representam tabus que o sistema
reprime, pois podem abalar a submissão do povo ao mandamento de atividade e a
aceitação irrefletida da imagem positiva forjada pelos setores dirigentes. A literatura é,
portanto, um meio através do qual escritores como Wolf e Plenzdorf refletem acerca da
situação histórica de seu país.
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