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Este gesto de ‘seleção’
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, de delimitação do que poderia ou não fazer parte da
enciclopédia poderia ser explicitado, conforme entendemos, a partir do que Pêcheux
e Fuchs (1997) afirmam sobre a enunciação em geral. Segundo estes autores (ibid),
(...) os processos de enunciação consistem em uma série de determinações
sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm
por característica colocar o ‘dito’ e em conseqüência rejeitar o ‘não-dito’. A
enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre o que é ‘selecionado’ e
tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o ‘universo do
discurso’), e o que é rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num
espaço vazio o campo de ‘tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer
(mas que não diz)’ ou o campo de ‘tudo a que se opõe o que o sujeito
disse’. Esta zona do ‘rejeitado’ pode estar mais ou menos próxima da
consciência e há questões do interlocutor que o fazem reformular as
fronteiras e re-investigar esta zona. (p. 175-176).
Por ela ser circunscrita, quando o sujeito autor da enciclopédia afirma X e não
Y, quando ele apresenta determinados verbetes e não outros, quando aborda um
saber sob um prisma e não outro, ele constrói discursivamente na enciclopédia um
fechamento imaginário dos sentidos, que faz com que os saberes ali expostos sejam
tomados em uma “relação de evidência entre e sobre si mesmos” (Morello, 2003, p.
122). E que faz também com que se produza a ilusão de que todas as ‘coisas a
saber’ passíveis de nos serem necessárias se encontram nos verbetes das
enciclopédias.
Embora a totalidade numérica dos saberes seja o almejado, sabemos que isto
não é possível. O que o enciclopedista – atravessado pela “vontade do um, do
completo, do todo” (Orlandi, 2004, p. 137) – faz, portanto, é apresentar um universo
de ‘coisas a saber’ que projeta no espaço uma imagem do mundo. Tal como o
cartógrafo, o enciclopedista delineia um mapa, um mapa-múndi de saberes.
Em cada civilização, em cada época, há uma concepção do que seja a
“totalité des choses à connaitre”
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(cf. Rey, 2007), pois cada momento histórico traz
consigo uma certa maneira de compreender o mundo. Sob esta perspectiva, a
enciclopédia oferece um conjunto de saberes que se traduzem para quem a consulta
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É preciso salientar que, além deste processo de seleção relativo ao que Pêcheux denomina
‘esquecimento nº. 2’, também está presente, na constituição de todo discurso, o esquecimento nº 1,
que faz com que o sujeito tenha a impressão (a ilusão) de que é ele próprio a fonte de sentido, isto é,
o sujeito se representa como criador absoluto de seu discurso. Esse apagamento, que seria total, é
chamado de inconsciente, ideológico (cf. Orlandi, 1988).
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Tradução nossa: totalidade das coisas a conhecer.