O que mudou na relação entre o que era visto e o que era dito pela Medicina do
século XVIII? O autor nos mostra a grande diferença entre o discurso da Medicina
Clássica e o da Medicina Moderna ao reproduzir dois textos sobre a percepção da doença.
Um, escrito por Pomme
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, sobre a cura de um caso de histeria no século XVIII; outro,
sobre a percepção de uma lesão anatômica do encéfalo e seus invólucros, escrito por
Bayle
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, no século XIX. Os textos descrevem a maneira como uma doença era percebida
no século XVIII, carregada de simbolismo e imaginação e, aproximadamente cem anos
depois, passou a ser percebida pela verbalização fundamental do patológico.
A Medicina Moderna firmou seu nascimento nos últimos anos do século XVIII.
Foi um momento de profundas modificações no corpo de conhecimentos e na prática
desta ciência (FOUCAULT, 2004). Esta ruptura não se deu em função da evolução da
técnica ou do refinamento conceitual, diz Machado, mas por uma profunda transformação
teórico-metodológica. Este saber criticaria seu próprio passado para traçar seu futuro; os
médicos começavam a descrever algo que, por um longo período, permanecera invisível e
sem possibilidade de ser expresso.
Na verdade, não foi um momento no qual se usou mais a razão do que a
imaginação para que se conseguisse articular o que era visto e o que era dito. Foi a
circunstância na qual as palavras e as coisas ainda não haviam se separado e o modo de
ver e de dizer ainda se pertenciam. “A relação entre o visível e o invisível, necessária a
todo saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que
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Ao curar a histérica Pomme observou ‘porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho
molhado... Se desprenderem com pequenas dores e diariamente saírem na urina, o ureter do lado direito se
despojar por sua vez e sair por inteiro pela mesma via’. ‘O mesmo ocorreu com os intestinos, que, em outro
momento, se despojaram de sua túnica interna, que vimos sair pelo reto. O esôfago, a traquéia-artéria e a
língua também se despojaram e a doente lançava vários pedaços por meio de vômito ou de expectoração’.
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‘Trata-se das falsas membranas que frequentemente se encontram nos indivíduos atingidos por meningite
crônica: sua superfície externa aplicada à lamina aracnóide da dura-máter adere a esta lamina, ora de modo
muito frouxo, e então elas podem ser separadas facilmente, ora de modo firme e íntimo, e neste caso é as
vezes difícil desprendê-las. Sua superfície interna é apenas contígua à aracnóide, com a qual não contrai
união... As falsas membranas são frequentemente transparentes, sobretudo quando muito delgadas; mas
habitualmente apresentam uma cor esbranquiçada, acinzentada, avermelhada e, mais raramente, amarelada,
acastanhada e enegrecida. Esta matéria oferece quase sempre matizes diferentes segundo as partes da
membrana. A espessura dessas produções acidentais varia muito; são, às vezes, tão tênues que poderiam ser
comparadas a uma teia de aranha... A organização das falsas membranas apresenta igualmente muitas
diferenças: as delgadas são cobertas por uma crosta, semelhante às películas albuminosas dos ovos e sem
estrutura própria distinta. As outras, muitas vezes, apresentam, em uma de suas faces, vestígios de vasos
sanguíneos entrecruzados em vários sentidos e injetados. São constantemente redutíveis a lâminas
superpostas entre as quais são, com muita freqüência, interpostos coágulos de um sangue mais ou menos
descolorido’ (Foucault, 2004, P. V).