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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A MÍDIA ENSINANDO O QUE É POPULAR
Um estudo sobre o Diário Gaúcho de Porto Alegre
LINHA DE PESQUISA: CURRÍCULO E PEDAGOGIAS CULTURAIS
MESTRANDO: CARLOS ALBERTO FLORES NUNES
ORIENTADORA: MARIA LÚCIA CASTAGNA WORTMANN
Canoas
2006
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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A MÍDIA ENSINANDO O QUE É POPULAR
Um estudo sobre o Diário Gaúcho de Porto Alegre
MESTRANDO: CARLOS ALBERTO FLORES NUNES
ORIENTADORA: MARIA LÚCIA CASTAGNA WORTMANN
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Luterana
do Brasil para obtenção do título de MESTRE em
Educação.
Canoas
2006
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AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos e reconhecimentos vão à minha esposa,
Janaína, pela paciência nas horas em que fugi para dentro do
texto, aos meus pais, pelo incentivo, e à minha orientadora,
Maria Lúcia, pelas várias luzes no caminho.
Así como la lógica de la mercancia prevalece sobre las diversas
ambiciones rivales de todos comerciantes, o como la lógica de la
guerra domina siempre las frecuentes modificaciones del armamento,
así la severa lógica del espectáculo domina por todas partes la
creciente diversidad de las extravagancias mediáticas.
Guy Debord
RESUMO
Nesta dissertação, analiso o jornal Diário Gaúcho, de Porto Alegre, RS, um jornal
qualificado como popular, tentando mostrar de que forma, através das notícias que publica,
dos enfoques que a algumas matérias, das pessoas e situações que escolhe para destacar,
do tratamento que dá às editorias e a aspectos como a diagramação, a linguagem e o uso das
cores, entre outros aspectos que vejo como estratégias representacionais, ele vai produzindo
significados que configuram modos de ser “popular”. Para realizar essa análise, apóio-me
nas teorizações dos Estudos Culturais, valendo-me também da análise do discurso para
indicar que tipo de acontecimentos o jornal prefere noticiar e que tipo de temas ou de
pessoas ele estampa em suas páginas. Apresento algumas reflexões sobre o modo como o
Diário Gaúcho se dirige a seu público, que, em sua maior parte, seria constituído por
pessoas pobres donas de casa e trabalhadores de muitos setores, mas com baixa renda,
moradores dos bairros periféricos de Porto Alegre. Em muitas seções desse jornal colocam-
se em destaque fofocas, tragédias, problemas a serem enfrentados no cotidiano por aqueles
que possuem poucos recursos financeiros, bem como transgressões de diferentes ordens,
além de crendices.
Também trago à discussão, nesta dissertação, algumas questões pertinentes ao
chamado jornalismo popular, no qual se encaixa o Diário Gaúcho, que geralmente exagera
nos apelos emocionais, no descaso com a linguagem e nas notícias que destacam o crime e
as tragédias em geral. Mapeando edições desse jornal, procurei problematizar
representações de cultura popular e a forma como essa é vista nesse tipo de mídia impressa,
6
e como esse jornal em especial vai configurando, nas estratégias de que se vale,
representações de povo e acerca do que é ser popular. Dessa forma, por dizer-se popular e
por trabalhar com temas como os mencionados acima, o DG vai “moldando” um certo jeito
de ser povo, ou pelo menos vai delineando uma representação de quem pensa ser o seu
público, ou seja, acerca daqueles a quem ele se endereça. Saliento, ainda, que o leitor do
DG é em geral apresentado como alguém que tem dificuldades materiais e que precisa da
ajuda do jornal para sobreviver, ajuda essa que é tanto material quanto “espiritual” e que
está expressa nas muitas “dicas” para economizar dinheiro e resolver problemas
sentimentais que o DG dá aos seus leitores, permitindo, ao mesmo tempo, que esses
também se valham do DG para falar de seus problemas, reclamar e perguntar.
Para indicar os aspectos referidos, enfoquei as três editorias principais desse jornal
(a de esportes que trata basicamente de futebol –, a de polícia e a de variedades, que
apresenta notas sobre artistas e celebridades e sua vida pessoal).
ABSTRACT
In this dissertation, I analyse the newspaper Diário Gaúcho, in Porto Alegre/RS, a
paper that is qualified as popular, trying to show how it makes meaning shaping ways of
being ‘popular’, by the news it publishes, the focus for its issues, people and events it
chooses to highlight, how it treats sections and features like diagramming, language and use
of colours, among other aspects I see as representational strategies. To conduct this
analysis, I use theories by the Cultural Studies and discourse analysis to show what kind of
events the newspaper prefers to report and which themes and people are on its pages. I offer
some reflections on how the Diário Gaúcho addresses its public, which in the majority
would be of poor people housewives and varied but low-income Porto Alegre outskirt
workers. Gossip, tragic events, daily problems to be faced by low-income people, as well as
different kinds of transgression and superstition are highlighted in many sections of this
newspaper.
I also bring into focus some questions on the so-called popular journalism, where
the Diário Gaúcho seems to fit in, which usually exaggerates with emotional appeals,
awkward language and news highlighting crime and tragedy. Mapping these newspaper
editions, I have sought to problematise the popular culture representations and how it is
seen in the print-based media, and how this particular newspaper is shaping, with its
strategies, representations for folk and what is to be popular. As it regards itself popular and
works with themes as those mentioned above, the DG is shaping a particular way of being a
folk, or at least it outlines a representation of whom it considers to be its public, that is,
8
those who it targets. I point out that the DG’s reader is usually represented as a low-income
one who needs help from the newspaper to survive, both material and ‘spiritual’ help that is
expressed in the many ‘cues’ to save money and solve sentimental problems the DG
provides for readers, also allowing them to talk about their problems, complain and/or ask
questions.
To point out the abovementioned aspects, the three main sections for this newspaper
(sports – dealing basically with football – , police and varieties offering notes on artists and
celebrities and their private life).
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ...............................................................................................
3
RESUMO .....................................................................................................................
5
ABSTRACT .................................................................................................................
7
SUMÁRIO ...................................................................................................................
9
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................
11
CAPÍTULO 1: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE
CULTURA E CULTURA POPULAR ......................................................................
14
1.1. Os estudos da cultura ...............................................................................
16
1.2. A cultura e a questão da identidade .........................................................
18
1.3 Considerações sobre o popular .................................................................
22
1.4 O gosto popular – as associações com o grotesco ....................................
26
1.5 Mas é necessário fazer um contraponto ....................................................
28
CAPÍTULO 2: APONTAMENTOS SOBRE O “JORNALISMO POPULAR” ...
30
2.1 Algumas estratégias de definição do popular ...........................................
35
2.2. Notícias sobre algumas configurações do “jornalismo popular” .............
37
CAPÍTULO 3: PEDAGOGIAS CULTURAIS ........................................................ 42
CAPÍTULO 4: PROCEDENDO A LEITURA DO DIÁRIO GAÚCHO .............. 51
4.1 O jornal se apresenta .................................................................................
56
4.2 Apresentando o jornal ...............................................................................
57
10
CAPÍTULO 5: O JORNALISMO POPULAR NO DIÁRIO GAÚCHO .............. 61
5.1 A “linguagem” do Diário Gaúcho ............................................................
61
5.2 Dando voz ao povo ...................................................................................
66
5.3 O Diário Gaúcho “ajudando” o povo a resolver problemas do cotidiano
71
5.3.1 Definindo os aspectos que envolvem sobrevivência ........................
72
5.3.2 O jornal ensinando o “povo” a lidar com emoções ..........................
76
5.4 Vivendo a vida dos ricos e famosos .........................................................
79
5.5 O escracho como sinônimo de popular .....................................................
82
5.5.1 O mundo do crime e da tragédia .......................................................
86
5.5.2 "Humano demasiado humano"? ........................................................
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................
91
REFERÊNCAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................
95
ANEXOS ......................................................................................................................
99
INTRODUÇÃO
A modernidade tardia, ou pós-modernidade, tem-se caracterizado por colocar em
ação movimentos que envolvem a globalização das idéias, dos modos de vida, da
economia. A fragilidade que se passou a perceber na busca de uma identidade fixa e estável
de sujeito, notadamente após o advento das teorizações pós-estruturalistas, nos tem levado a
estranhar comportamentos, atitudes, pensamentos, nos outros e em nós mesmos. Muitas
vezes, eu mesmo me surpreendo ao me flagrar agindo desta ou daquela maneira e a
perceber como reajo diferenciadamente frente às interpelações que as situações da vida me
apresentam. É possível dizer que vivemos hoje mais do que uma crise de identidade,
vivemos um excesso de identificações e, ao mesmo tempo, convivemos com a possibilidade
de não termos nenhuma identidade própria; além disso, muito se discute acerca da
aspiração de alcançar-se uma essência para o indivíduo, ou de estabelecer-se uma
configuração de homem centrado, unitário, tal como esse foi concebido pelo Iluminismo.
Como jornalista, e em função dos estudos que desenvolvi e que conferem à dia
centralidade e importância, comecei a me preocupar com o papel por ela desempenhado
nesse processo de mudanças constantes, nessa inconsistência que tem caracterizado os dias
atuais, nessa situação de insegurança que vivemos, sobretudo nos últimos vinte ou trinta
anos. Teria a mídia (estou considerando mídia os tradicionais meios de comunicação de
massa: rádio, televisão e jornal) o poder de interferir nos processos apontados acima, que
envolvem, por exemplo, a produção de identidades em um mundo atravessado pela
globalização? A mídia teria essa “força” que lhe atribuem aqueles que a consideram,
12
inclusive, como o “quarto poder”? De que modo esses meios de comunicação interpelam,
influenciam, ou, enfim, como eles atuam na constituição dos sujeitos? E, nesse processo,
que valores esses meios destacam e o que elegem para colocar em circulação nos seus
veículos?
Tentando me aproximar de questões envolvidas em tais perguntas, e para estudar
um pouco mais detidamente aspectos relacionados à mídia, escolhi como tema de pesquisa
dessa dissertação de mestrado um jornal impresso que pudesse me “mostrar” alguns dos
modos como nele vai-se lidando com noções tais como identidade, bem como nele vai-se
“desenhando”, através de seus textos e de sua estrutura, algumas posições de sujeito, ao
mesmo tempo em que vai-se, também, representando os sujeitos para os quais se endereça o
jornal. Assim, encontrei no jornal Diário Gaúcho, de Porto Alegre, RS, pela proximidade e
acessibilidade, o objeto de que precisava para estudar um pouco mais detidamente essas
questões, principalmente, porque nele se faz apelo a uma forma de cultura de difícil
definição, que é a cultura popular. O que seria essa cultura popular? Como se pode
caracterizar um chamado jornalismo popular? E o que ele nos diz, além das informações de
rotina (notícias e reportagens)? O que ele nos informa, além dos fatos que estão sendo
apresentados em seus textos, na escolha de determinados termos, nas fotografias com seus
ângulos e cortes? Que significados podemos ler em seus textos, fotografias, seções,
editorias, etc., e como esses vão construindo um conceito de jornalismo popular e de povo e
como, ainda, dessa forma, os textos que contém acabam conformando e ensinando aos
leitores o que é ser popular?
Esses são alguns dos questionamentos que me levaram a conduzir este estudo e a
me valer da ótica dos Estudos Culturais para discutir esse jornalismo popular e, mais
especificamente, aquele que aproxima popular de sensacionalismo, tendência bastante
polêmica dentro do jornalismo, por apelar para o exagero, tanto das emoções quanto da
abordagem das informações que veicula.
O trabalho foi estruturado em cinco capítulos. No primeiro, no qual discuto algumas
questões sobre cultura, cultura popular e gosto popular, busco explicitar algumas
teorizações que me autorizaram a fazer considerações acerca do tema selecionado para
estudo, valendo-me, principalmente, de enunciações feitas por Jesús-Martin Barbero, Stuart
13
Hall e Antônio Muniz Sodré. No segundo capítulo, tento aproximar-me do que tem sido
configurado como um jornalismo popular e sensacionalista, apoiando-me em considerações
feitas por Peter Burke sobre a história da mídia, além de voltar a me utilizar de Barbero
(autor a que muito recorri neste trabalho em função dos estudos que desenvolveu sobre a
cultura e a mídia) e de buscar fundamentos em Nilson Lage, autor renomado no campo da
comunicação social. Para desenvolver o terceiro capítulo sobre pedagogias culturais,
utilizei autores como Henry Giroux, Douglas Kellner, Beatriz Sarlo, Roger Simon e outros,
para mostrar como os artefatos da mídia vão participando da formação dos sujeitos,
exercendo desse modo efeitos pedagógicos, através das representações que colocam em
circulação; o capítulo 4 traz um pouco da abordagem analítica que é seguida nesta
pesquisa – a Análise do Discurso –, com respaldo em Dominique Maingueneau e em
Adilson Citelli. E, finalmente, no quinto capítulo desenvolvo uma análise textual do jornal
Diário Gaúcho, valendo-me de considerações feitas por todos os autores estudados ao longo
do desenvolvimento da pesquisa, já citados ou não, mas que de muitas formas contribuíram
para a definição do modo como passei a proceder a leitura que fiz desse jornal.
CAPÍTULO 1: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE
CULTURA E CULTURA POPULAR
Falar de cultura pode ser uma empreitada trabalhosa devido à multiplicidade de
significados atribuídos ao termo. O termo cultura é mais um dos muitos termos que
podem ser discutidos e problematizados, posto sob rasura, como nos propõe Stuart Hall
(1997), tal como identidade, representação e pós-colonial. A cultura sempre foi considerada
importante, principalmente como foco de estudos das ciências sociais e humanas. Mas,
como destacou Hall (idem), é a partir da segunda metade do século XX que a cultura passa
a ser vista como exercendo um "papel constitutivo em todos os aspectos da vida social"
(p.16). Ou seja: é nessa época que se passa a destacar a sua centralidade.
Nas visões mais tradicionais, cultura é todo o aprendizado humano, tudo aquilo que
é passado de geração para geração. Cabe ressaltar que essa idéia se instituiu, especialmente,
no viés da dicotomia natural–cultural e que ela contém a pressuposição de que tudo o que é
cultural não é natural, ou seja, que cultural é apenas o que é aprendido no espaço social:
família, relações diversas, escola, etc. Nesse sentido, cultura é todo o conhecimento
humano preservado por uma sociedade - suas tradições, hábitos, costumes e crenças. E é,
também, o aprendizado histórico dessa sociedade e as transformações nela ocorridas no
decorrer do tempo. Assim, nessa acepção, cultura fica fortemente associada à história de
um povo, a uma civilização, mesmo quando se considera que essas seguem uma trajetória
não linear ou evolutiva. Essa forma de definir ou entender cultura estaria, então, em
conformidade com o termo, no seu sentido etimológico: cultura, do latim colere, significa
15
cultivar, cuidar.
Todavia, outros significados foram sendo agregados ao termo cultura com o passar
do tempo. As pessoas podem referir-se a alguém como culto, por exemplo, reconhecendo-
lhe o conhecimento, a informação que acumulou e, desse modo, se individualiza a noção de
cultura que passaria a ser atributo de alguém que assimilou e conservou os saberes que
determinadas civilizações destacaram. Ou, ainda, é possível referir-se à cultura como uma
espécie de refinamento estético e moral, conforme Williams (apud Eagleton, 2005), para
quem, nessa acepção, cultura era sinônimo de civilização, "no sentido de um processo geral
de progresso intelectual, espiritual e material" (p.19).
Além disso, podemos nos reportar a uma cultura francesa, outra inglesa, outra
brasileira, e assim por diante, dando voz então a um estilo e a todos os costumes de um
grupo maior, que envolvem agora uma nação, um país. Teríamos ainda a possibilidade de
considerar cultura como as manifestações folclóricas – o que um povo conta, o que diz de si
mesmo, seus mitos ou então tradicionalistas o que um povo traz, ao longo de sua
história, como sendo sua marca própria, aquilo que o diferencia dos outros povos
(poderíamos falar numa cozinha gaúcha, por exemplo, numa indumentária típica, na dança,
nos rituais).
Chauí (2003) apresenta uma divisão de três campos de definições de cultura: a
criação da ordem simbólica da lei, a partir da atribuição de valores como bom, mau,
perigoso, etc.; a criação “de uma ordem simbólica da sexualidade, da linguagem, do
trabalho, do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível” (p. 251);
a produção de um conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições (onde se
encaixariam os rituais religiosos, do trabalho, a construção de habitações, a fabricação de
instrumentos e utensílios, e outros).
Se formos buscar mais longe, veremos que na antigüidade clássica considerava-se
cultura os cuidados do homem para com a natureza, no caso o cultivo da terra. Cultura
também remontava aos cuidados com o corpo e com a mente, e desde cedo as crianças
eram ensinadas a desenvolver esses cuidados. Chauí (ibid) resume assim esta questão: “A
pessoa culta era a pessoa fisicamente bem preparada, moralmente virtuosa, politicamente
16
consciente e participante, intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das ciências,
das artes e da filosofia” (p. 246). Ainda aqui não se percebe uma divisão entre a natureza e
a cultura, é a partir do século XVIII que cultura passa a se distanciar da natureza e passa a
ser considerada a interferência do homem, o que acaba resultando em edificações técnicas
ou físicas, como as construções de habitação, o trabalho, a criação de instituições; ou ainda
as construções e criações humanas no plano do simbólico, como as artes, a religião, a
moral, a política.
1.1. Os estudos da cultura
A partir da década de 1960, a história da cultura se aproxima da antropologia, o que
resultou numa ramificação dos estudos de cultura e na multiplicação dos sentidos atribuídos
à cultura. Paralelamente, cada campo do conhecimento passou a tratar a cultura no seu
âmbito: é possível falar numa psicologia cultural, em uma geografia cultural, numa
economia, etc. Burke (2004) mostra que no caso da economia, a atração exercida pela
cultura está associada ao crescente interesse no consumo e à percepção de que as tendências
não podem ser satisfatoriamente explicadas em termos de um modelo simples de
consumidor racional. Na ciência política, diz ele que uma tendência crescente a ver a
política como uma ação simbólica e a estudar a comunicação política em diferentes mídias.
Até mesmo conservadores como Samuel P. Huntington falam hoje em choque de culturas”
(p. 45).
A ênfase nos estudos sobre cultura começa, ainda na primeira metade do século XX,
a sofrer deslocamentos interessantes. Segundo Burke (op.cit.), os livros publicados nesse
período variavam entre “a cultura do amor, a cultura do puritanismo, a cultura do protesto,
a cultura do segredo”, e completa o autor: “Estamos a caminho da história cultural de tudo:
sonhos, comida, emoções, viagem, memória, gesto, humor, exames e assim por diante” (p.
46). Nesse ponto dos acontecimentos, já nas décadas de 1980 e 1990, formam-se as
condições sociais que dão lugar a uma “nova história cultural”, movimento internacional
que agradou a pesquisadores e historiadores dos Estados Unidos e da Europa. A diversidade
17
nas abordagens da cultura produziu expressões como a “cultura do jogo”, “a cultura da
imprensa”, “a cultura do absolutismo”, e assim por diante, representando cada uma delas
situações do fazer cotidiano, com suas peculiaridades, estilos, significados, rituais e
tendências.
Nos anos de 1960, na Inglaterra, foram os Estudos Culturais que colocaram
destaque nos estudos da cultura. Esse período começa a efetivar uma nova maneira de
conduzir os estudos das ões sociais, provocando, como nos mostra Hall (1997), "uma
revolução cultural no sentido substantivo, empírico e material da palavra", onde "o domínio
constituído pelas atividades, instituições e práticas culturais expandiu-se para além do
conhecido" (p.17). Hall (ibid) considera que "a cultura tem assumido uma importância sem
igual no que diz respeito à estrutura e à organização da sociedade moderna tardia, aos
processos de desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos
econômicos e materiais" (idem).
Os Estudos Culturais, como uma perspectiva de estudar a cultura, trazem novas
direções a esses estudos e tornam-se especialmente decisivos na validação de tudo aquilo
que não estava no centro de uma chamada elite cultural. Os Estudos Culturais, mesmo
tendo sido referidos em alguns estudos na primeira metade do século XX,
institucionalizam-se na cada de 1960, na Grã-Bretanha, com o Centro de Estudos
Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham, fundado em 1964 por Richard
Hoggart e Raymond Williams. As transformações trazidas então para os estudos de cultura
são, no dizer de Marisa Vorraber Costa (2000), “um corolário de uma movimentação
teórica e política que se articulou contra concepções elitistas de cultura” e que diz muito
menos “respeito aos domínios estético ou humanístico (do espírito cultivado)” (p. 23).
Hall (ibid) fala em uma "centralidade da cultura", referindo-se à cultura como algo
constitutivo do sujeito, e não mais apenas como objeto de estudos isolados, como vimos
anteriormente, seja como produção do espírito humano através das artes, da ética ou da
estética, ou até mesmo dos costumes, para citar alguns exemplos. E afirma: "A expressão
'centralidade da cultura' indica aqui a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida
social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo" (p.22).
Assim, a cultura não é mais uma variável do conhecimento ou do desenvolvimento
18
humano, nem é "secundária ou dependente em relação ao que faz o mundo mover-se; tem
de ser vista como algo fundamental, constitutivo, determinando tanto a forma como o
caráter deste movimento, bem como a sua vida interior" (ibid, p.23).
Esse deslocamento processado relativamente à importância da cultura, basicamente
na segunda metade do século XX, trouxe uma mudança de paradigma que passa a ver a
cultura como constitutiva da vida social, e ficou conhecido como "virada cultural". Essa
"virada" está diretamente relacionada à questão da linguagem que, de objeto de estudo de
disciplinas específicas (como a lingüística, por exemplo), passa a interessar a todas as áreas
e a ser vista não mais como apenas um instrumento descritivo de denominação do mundo,
mas como um elemento fundamental na constituição desse mundo. Em outras palavras,
Hall (ibid) diz: "A virada cultural está intimamente ligada a esta nova atitude em relação à
linguagem, pois a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de
classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar
significado às coisas" (p.29).
Essa forma de compreender a linguagem seria então estendida para a compreensão
da vida social onde as "formas de viver" e as identidades, assumidas e reconhecidas,
estariam construídas dentro de um discurso, de uma "cultura", a qual, nas palavras de Hall,
possui "um papel constitutivo e determinado na compreensão e na análise de todas as
instituições e relações sociais" (ibid, p.30).
1.2. A cultura e a questão da identidade
É tão difícil definir identidade quanto é difícil conceituar cultura. Hall (2005) coloca
três concepções de identidade, as quais ele caracteriza a partir da indicação do “sujeito do
Iluminismo”, do “sujeito sociológico” e do “sujeito pós-moderno”. No primeiro caso,
segundo ele, trata-se de indicar como o sujeito seria visto no Iluminismo; esse seria um
sujeito centrado, com uma identidade própria e exclusiva, com plena consciência do seu
papel e de suas características como indivíduo. Haveria uma “essencialidade do eu”, o que
ainda permaneceria na segunda concepção, a do sujeito sociológico, mas com algumas
19
diferenças importantes: nos seus contatos diversos com a sociedade, nas suas relações
diárias de trabalho, família, lazer e outras, pensa-se que se iria moldando a identidade dos
sujeitos. O chamado sujeito sociológico, assim, manteria uma chamada essencialidade, mas
iria se formando (seus gostos, suas preferências, por exemplo) nos seus múltiplos contatos.
De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica
relativamente a essa questão, a identidade seria formada na interação entre o eu e
a sociedade. Nessa perspectiva, o sujeito ainda é visto como tendo um núcleo ou
uma essência interior que seria o ‘eu real’, mas se admite, também, que este é
formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. (ibid, p.11)
Essa concepção de essencialidade do eu estaria completamente desfeita no modo
como se configura o sujeito pós-moderno. Nesta desfaz-se a idéia e o entendimento de um
sujeito coerente, dotado de modos previsíveis, orientado por uma lógica de conduta; na
perspectiva pós-moderna vê-se o sujeito como capaz de assumir múltiplas identidades e,
talvez por isso mesmo, de não possuir nenhuma identidade determinada, sobrando-lhe
apenas possíveis identificações no que diz respeito à conduta, comportamento, gostos
pessoais, escolhas, etc., pois estaríamos então na era da efemeridade. Hall (ibidem) vai mais
longe, quando diz que “dentro de nós identidades contraditórias, empurrando-nos em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas”, chegando o autor a ser categórico: “a identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia” (p.13). Mas a compreensão de uma tal
identidade “perfeita” permanece ainda nos ideais formativos de muitas propostas
pedagógicas, mesmo que tenha se originado nos ideais iluministas.
Senso comum, por vezes, se fala, sobretudo no domínio do popular, em uma fleuma
inglesa, num jeitinho brasileiro, mas, na perspectiva dos E.C., tais comportamentos vistos
como peculiares a certos povos e sujeitos passam a ser entendidos como produzidos por
discursos reiteradamente enunciados. Isto é: nossas identidades são construídas no interior
do discurso e da representação, através da cultura. Hall (1997) diz que "elas {as identidades
sociais}são o resultado de um processo de identificação que permite que nos posicionemos
no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos
subjetivemos (dentro deles)" (p.27).
20
Hoje, jovens japoneses passeiam em Tóquio, com cabelos coloridos, tatuagens,
piercings e calças jeans; tocam rock' and roll e bebem Coca-Cola. Aprendemos a vê-los de
determinada maneira, através de um discurso que nos apresentou uma certa "essência" do
que seja (ou deva ser) japonês, para o que a mídia contribuiu muito, como em alguns filmes
de cinema, por exemplo. E hoje nos causa surpresa ver esses jovens comportando-se
diferentemente do que é usualmente representado; então, dizemos: eles estão
"ocidentalizados". No entanto, mesmo nesse "diferente" existe a subjetivação, no sentido de
que esses como outros indivíduos vão identificando-se com outras representações do que é
ser jovem, sendo, também, movidos por um sistema calcado no consumo, nos apelos
comerciais, etc., dentro de um processo intenso de globalização. Hall (idem) entende que
tais identidades vão formando-se nos deslocamentos provocados pela cultura, e afirma:
Esses são apenas alguns deslocamentos das culturas do cotidiano. Mas
também mudanças e transformações na vida local e no cotidiano que foram
precipitadas pela cultura. (...) Pensemos na variedade de significados e
mensagens sociais que permeiam os nossos universos mentais; tornou-se
bastante acessível obter informação acerca de nossas imagens de outros
povos, outros mundos, outros modos de vida, diferentes dos nossos; (...) a
transformação do universo visual do meio urbano (...); o bombardeio dos
aspectos mais rotineiros de nosso cotidiano por meio de mensagens, ordens,
convites e seduções... (p.22)
E, a partir daí, diante de quadros como esses, algumas questões podem ser
levantadas: o que é sujeito e identidade hoje no contexto da globalização? É possível falar-
se em culturas nacionais num mundo em que a mídia ocupa praticamente todos os setores,
interpela as relações econômicas e políticas, estabelece o entretenimento, coloca em
circulação idéias, uniformizando muitas vezes condutas, comportamentos, estilos, modos
de vida, etc? Hall (ibid), além de Kellner (2001), Yúdice (2002) e outros autores que
discutem a configuração das sociedades contemporâneas, mostra que a mídia assumiu um
papel de poderoso instrumento na pós-modernidade, quando afirma:
A velha distinção que o marxismo clássico fazia entre a "base" econômica e a
"superestrutura" ideológica é de difícil sustentação nas atuais circunstâncias em
que a mídia é, ao mesmo tempo, uma parte crítica na infra-estrutura material das
21
sociedades modernas e, também, um dos principais meios de circulação das
idéias e imagens vigentes nestas sociedades. Hoje a mídia sustenta os circuitos
globais de trocas econômicas dos quais depende todo o movimento mundial de
informação, conhecimento, capital, investimento, produção de bens, comércio de
matéria prima e marketing de produtos e idéias. (p.17)
Nesse sentido é que Kellner (2001) fala numa cultura da mídia e aponta:
Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a
urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando
opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo o material com que as
pessoas forjam sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e os outros
produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser
homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. (2001,
p.9)
Nessa linha de pensamento, pode-se dizer que a moral, a conduta, as noções de certo
e errado, a idéia de lazer, os padrões de saúde e de beleza e tantos outros aspectos da vida
cotidiana são interpelados pela mídia. É esta que aponta tendências, modismos, reforça e
produz regimes de verdade. E vale questionar: somos nós que pensamos aquilo que
pensamos? O que são e de onde vêm nossas escolhas?
Mesmo assim, seria possível afirmar que o global "abafou", anulou o individual e o
local? Creio que não, sustentado pelas idéias dos Estudos Culturais e pelo próprio Hall
(1997), para quem a cultura é sempre o resultado de uma negociação. A meu ver, o que se
poderia chamar de uma "caminhada humana" tecendo a cultura, seria um jogo entre a
disseminação de idéias e modos de vida e, ao mesmo tempo, uma resistência, o que
resultaria não em algo novo sugjugando o antigo, mas numa síntese desse novo e do antigo.
Essa idéia de um "mix cultural" está exposta nas considerações de Hall (ibidem) que
transcrevo abaixo:
A cultura global necessita da "diferença" para prosperar - mesmo que apenas
para convertê-la em outro produto cultural para o mercado mundial (como, por
exemplo, a cozinha étnica). É, portanto, mais provável que produza
simultaneamente novas identificações globais e novas identificações locais do
que uma cultura global uniforme e homogênea. (p.19)
22
Neste ponto, Hall (ibid) se refere ao surgimento ou à criação de alternativas
híbridas, que acabam sintetizando elementos e trazendo soluções multiculturais e
diversificadas.
Por isso, é dicil também afirmar que somos meros receptores dos artefatos
culturais e submetidos a uma pedagogia tendenciosa, imersa num grande e perverso plano
para “dominar o mundo”. A cultura não pode ser reduzida a um dualismo entre imposição e
resistência. Simon (2003) posiciona-se bem claramente quanto a isso quando afirma:
Não estou, de forma alguma, sugerindo que a produção de significado em locais
tais como escolas, televisão, cinema, música popular, revistas, religião e rádio
representa uma semiose sem limites. (...) Certamente as formas de capital e
interesse que controlam quais representações são produzidas e distribuídas são
centrais às relações reais de poder em qualquer comunidade... Entretanto,
também não se trata do caso de que cada local seja vazio de possibilidades
contra-discursivas. Isto é, articulações particulares de produções simbólicas em
escolas, revistas, rádio, grupos religiosos de estudo, música popular, cinema e
clínicas de saúde (só para citar uns poucos) podem fornecer, e realmente
fornecem, um quadro de referência no interior do qual os modos de
representação e compreensão que sustentam formas existentes de dominação
podem ser modificados, contestados, recusados e substituídos. (p.76)
1.3 Considerações sobre o popular
que definir cultura, como se viu anteriormente, é tarefa complexa, mais difícil
ainda seria definir cultura popular. No entanto, a expressão cultura popular é utilizada com
bastante freqüência para nomear um tipo de cultura. Os E.C. organizaram uma reação no
sentido de abandonar a dicotomização usualmente aceita entre baixa cultura e alta cultura.
A idéia de popular está freqüentemente associada àquilo que não é de elite, como o
gosto, por exemplo; haveria, nessa perspectiva, um gosto da elite pelas artes e pelos modos
de vida mais refinados, enquanto os não pertencentes a essa elite, então o povo, preferiria
modos de diversão mais rudimentares, simplórios, como as cantigas e as festas (também
qualificadas como populares), as narrativas para provocar o riso e o deleite pelas
23
realizações instintivas do corpo. A festa, na história da cultura popular, tem espaço
consagrado, sagrado para o povo, que a utilizava como ritual em diversos momentos da
vida cotidiana. Desde a festa da colheita, do casamento, da chegada da primavera, entre
outras, até a celebração de motivos religiosos, como a celebração aos deuses, a festa tem
sido um marco no espaço público. Em Sodré (2002), vemos que:
... a festa aparece como teatro simbólico das vicissitudes identitárias do grupo,
portanto, como lugar de ritualização dos conflitos em torno do controle social.
Nela pode acontecer o caos das identidades estabelecidas (paródias, ritos de
inversão dos papéis sociais), o descontrole das pulsões normalmente organizadas
(orgasmos, êxtases), a subversão dos conceitos e das categorias (trocadilhos,
apelidos, jogos de linguagem). (...) Na festa, o riso é ambivalente e coletivo.
(p.107)
Também é possível pensar no popular ligado às tradições de um povo no sentido de
um conjunto de costumes, crenças e modos de vida desenvolvidos e cultuados em
determinada região, cultura essa que hoje sobreviveria, em muitos casos, não mais no
espaço social geral da população, mas em pequenos centros de resistência onde as
apresentações em datas comemorativas especiais se tornariam o único modo de a população
entrar em contato com o que perdeu. Essa perda nos leva noutra direção para conceituar
cultura popular, ou seja, nos leva a vê-la como resultado de uma massificação cultural.
Pelas artes, e mais recentemente pela mídia, processa-se uma pretensa unificação em
âmbito mundial relativamente aos gostos, aos estilos, às preferências e até às opiniões que
os sujeitos possuem acerca de determinadas questões. Aqui, neste ponto, podemos pensar
no que foi trazido pelo conceito de indústria cultural, tal como foi enunciado por Adorno e
Horkheimer desde a Dialética do Esclarecimento, em 1947, para quem artistas e
consumidores de um produto cultural estariam numa mesma relação com essa produção em
massa, ou em série, e que para uns se descaracterizaria no aspecto simbólico, como arte,
perdendo a profundidade, e para outros se tornaria apenas trabalho, produto à venda. Essa
perspectiva de cultura como indústria cultural foi defendida por Adorno (apud Freitas,
2003), para quem essa atividade capitalista busca uma produção em série de bens culturais
para satisfazer “de forma ilusória” necessidades geradas pela estrutura de trabalho,
inclusive para manter a carência por novos produtos. “O que se estabelece é um grande
sistema em que as pessoas são constantemente enganadas em relação àquilo de que
24
necessitam” (p.18). Neste ponto, poderíamos também entrar numa discussão sobre cultura
de massa, o que, para efeitos de maior clareza, será trabalhado no próximo item que destaco
neste estudo.
Com essas visões de cultura popular e do que seja o popular, tratadas até aqui,
concorre ainda aquela idéia que associa o popular às classes trabalhadoras, numa relação
dualista entre dominantes e dominados, patrões e empregados, capital e trabalho. O
marxismo se preocupou, ao tratar da cultura, com a existência de uma ideologia dominante,
incutida rigorosamente nas classes populares para efeito de dominação, utilizando para isso
todos os instrumentos possíveis; estão entre eles, e com grande destaque, os veículos da
mídia, os quais se programariam para manipular as massas pobres e trabalhadoras, a serviço
dos interesses da elite e do acúmulo de capital. Nessa perspectiva, o povo, atrelado ao
conceito de trabalhador braçal, operário das fábricas, seria “massa de manobra”, conduzido
em suas idéias e na sua maneira de ver o mundo, praticamente sem defesa contra o poder
das classes dominantes. Marx, em 1867, publicou o primeiro volume de O capital, que
contém uma análise crítica da produção capitalista, mostrando em detalhes como funciona
o sistema capitalista. O que ficou conhecido como mais-valia era a chave para entender o
sistema:
O sistema capitalista se ocupa da produção de artigos para a venda, isto é, de
mercadorias. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho
socialmente encerrado na sua produção. 0 trabalhador não possui os meios de
produção (terras, ferramentas, fábricas, etc.), que pertencem ao capitalista. 0
valor de sua força de trabalho, como o de qualquer mercadoria, é o total
necessário a sua reprodução – no caso, a soma necessária para mantê-lo vivo. Os
salários que lhe são pagos, portanto, serão iguais apenas ao necessário a sua
manutenção. (...) A diferença entre o que o trabalhador recebe de salário e o
valor da mercadoria que produz é a mais-valia. A mais-valia fica com o
empregador - o dono dos meios de produção. É a fonte do lucro, dos juros, das
rendas. (Huberman, 1972, p. 232-233)
Detendo-me, agora, um pouco mais na consideração da expressão cultura de massa;
ela é, por definição, a “cultura para todos”, levando a uma uniformização da cultura e “...
nasce no momento em que a presença das massas, na vida associada, se torna o fenômeno
mais evidente de um contexto histórico” (Eco, 2004, p.8). Nesse sentido, a cultura de massa
torna-se inevitável, quando as chamadas massas passam a participar de uma
25
industrialização que lhes dá um certo poder de compra e, precisando adquirir agora o lazer,
sob diversas formas, “forçam” a indústria a produzir também os bens culturais. A indústria,
por sua vez, nessa situação a oportunidade de lucrar mais e praticamente se “apropria”
da cultura para vendê-la à população: num viés, reproduz industrialmente o que era
produzido originalmente nas camadas populares, como canções, histórias, mitos; noutro
viés, reproduz em massa as obras tidas como eruditas, colocando-as ao alcance de muito
mais pessoas, utilizando-se dos chamados meios de comunicação de massa para fazê-lo:
(...) a televisão, o jornal, o rádio, o cinema e a história em quadrinhos, o
romance popular e o Reader's Digest agora colocam os bens culturais à
disposição de todos, tornando leve e agradável a absorção das noções e a
recepção de informações. É interessante considerar que estamos vivendo numa
época de alargamento da área cultural, onde finalmente se realiza (...) a
circulação de uma arte e de uma cultura ‘popular’. (Eco, 2004, p. 8-9)
Mesmo antes da industrialização, a partir da prensa de Gutenberg, foi possível
produzir em série bens culturais: o livro, bem mais fácil e rápido do que os manuscritos,
passou a circular entre a população. Mas a cultura produzida ou reproduzida para a massa,
desde cedo buscou os caminhos mais fáceis, de menor custo, de menor esmero e cuidado.
Eco (ibid) nos alerta:
Vejam-se os primeiros impressos populares do século 16, que retomam a
proposta da bíblia pauperum. São editados por tipografias menores, a pedido de
livreiros ambulantes e saltimbancos, para serem vendidos ao povo miúdo, nas
feiras e praças. Epopéias cavalheirescas, queixas sobre fatos políticos ou de
ocorrência diária, motejos, anedotas ou cópias aparecem mal impressas,
esquecendo-se, com freqüência, de mencionar local e data, porque já possuem a
primeira característica dos produtos de massa, a efemeridade. (p.13)
Por outra, esses impressos também acabam marcando um mundo de emoções
fortes, trilhando já pelas histórias de amor e morte.
26
Em síntese, é possível depreender que o popular, representado numa prática da
chamada cultura de massa, se associa ao descaso, ao superficial e, muitas vezes, ao mau
gosto, o disgusto – termo que refere o mau gosto.
1.4 O gosto popular – as associações com o grotesco
O gosto popular é geralmente associado ao rudimentar e ao simplório. Sua estética,
ou por outra, a estética dos produtos que consome, desde roupas até a programação da
mídia, não apresenta nem linhas refinadas, nem equilíbrio, nem complexidade (nesse caso
estão, por exemplo, os romances populares, que apresentam uma narrativa linear, conflitos
superficiais e os happy-end). Hoje, na televisão, quando se fala em programa popular, o que
vemos são espetáculos de palco onde desfilam o deboche, o ridículo, o patético, os números
“circences”, a dança fortemente marcada pelo sensual ou erótico e, ainda, brigas, tragédias,
ou piadas. O quadro descrito aqui mostra exemplos do grotesco, termo associado ao gosto
pelo escatológico (dejetos, excreções) ou teratológico (visão de certa forma risível das
monstruosidades, deformações e aberrações). O grotesco “... um tipo de criação que às
vezes se confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e que quase sempre nos
faz rir” (Sodré, 2002, p.19) tornou-se uma espécie de rótulo do gosto popular, porque
também o termo é uma interpretação culta ou das camadas eruditas. Utilizado muitas vezes
como recurso estético, como foi o caso do estilo barroco, nos séculos XIV e XV, na
Europa, que descumpria os preceitos clássicos de linhas geométricas, equilíbrio e luz, o
grotesco trouxe para muitas obras da literatura, pintura, ou escultura, algumas
características famosas, como a animalização do humano, a sua ridicularização e a
valorização do chocante. É possível constatá-lo, por exemplo, no Quasímodo, personagem
central de O corcunda de Notre Dame, conto de Victor Hugo imortalizado pelo cinema,
cuja “feiúra” e desgraça acaba tornando-se simpática e provoca e comoção. Ou, mais
perto de nós, na obra literária O cortiço, obra naturalista do século XIX, em que Aluísio
Azevedo descreve tão bem a desgraça, a pobreza e a luta pela sobrevivência na “favela de
antigamente” – o cortiço, onde a vida parece um pântano infestado e no qual
:
27
O rumor crescia, condensando-se, o zunzum de todos os dias acentuava-se;
não se destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo
o cortiço. Começavam a fazer compras na venda, ensarilhavam-se discussões e
resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; se não falava, gritava-se. Sentia-se
naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que
mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal
de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra. (p.28)
No caso da mídia impressa, temos os chamados jornais populares (examinados mais
adiante neste trabalho) que noticiam a desgraça, basicamente, sendo pontuados aqui e ali
por notícias do esporte e por curiosidades e resumo de telenovelas. As revistas mais
vendidas nas bancas trazem a quebra da privacidade dos famosos, muitas vezes consentida
por esses em busca de notoriedade. Ali se fotografa a vida, o lar e o lazer, expõe-se a moda,
o luxo, e até as excentricidades desses sujeitos, que ganham conotação positiva, ares de
“vida ideal” e de sonho de consumo.
Mas de onde vem a idéia de popular assumida pela sociedade e por seus meios,
como os veículos de comunicação, os chamados mass midia? Aqui se costura uma relação
entre cultura popular, gosto popular, cultura de massa; no entanto numa trajetória que
parece interpretar o popular como o vazio e o feio. E tal relação, nos questionamos, é
representativa de quê? Jesus Martin-Barbero (2003), de certo ângulo, ajuda-nos a fazer tal
interpretação. Para ele (ibid):
A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que
essa invocação articula sua exclusão da cultura. E é nesse movimento que se
geram as categorias do culto e do popular. Isto é, do popular como in-culto, do
popular designando, no momento de sua constituição em conceito, um modo
específico de relação com a totalidade do social: a da negação, a de uma
identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é, mas pelo que lhe
falta. Definição do povo por exclusão, tanto da riqueza como do ofício político e
da educação. (p.37)
Isso talvez aconteça porque o fazer popular muitas vezes se deu como subversão do
clássico, ou seja, como resistência à imposição de uma cultura clássica, sem economias no
uso do deboche e do apelo ao ridículo. Ao subverter uma ordem clássica onde a estética e o
gosto se encaminham para a luz, o limpo, o sutil, o erguido, as atividades culturais
28
populares, nas suas festas e espetáculos, tendiam para baixo, para o sujo, o escuro, a lama e,
muitas vezes, para o disforme. Este conjunto de 'aberrações' foi logo identificado com o
grotesco. Para Sodré (2002, p.61): “O corpo reveste-se de uma lógica própria, que não
coincide em termos absolutos com os ditames do espírito, elaborados pelas regras culturais.
A incidência de funções relativas às partes baixas do corpo tende a ser maior do que a de
valores atinentes a elaborações intelectuais e espirituais”. Ainda nessa linha, vale a pena
refletir um pouco sobre as palavras de Barbero (2003):
Diante do realismo que conhecemos, ou melhor, reconhecemos como tal, que é
um naturalismo racionalizado segundo o qual cada coisa é uma coisa pois se
acha separada, acabada e isolada, o realismo grotesco afirma um mundo em que
o corpo ainda não foi separado e fechado, pois o que faz com que o corpo seja
corpo são precisamente aquelas partes pelas quais se abre e se comunica com o
mundo: a boca, o nariz, os genitais, os seios, o ânus, o falo. Por isso é tão valiosa
a grosseria, porque é através dela que se expressa o grotesco: o realismo do
corpo. (Idem, p.106)
Daí podemos relacionar bem, a incidência das piadas referentes àquelas partes, que
se reiteram no acervo popular, ou ainda, as músicas que insistem no palavrão, nas
insinuações dessa ordem, na malícia.
1.5 Mas é necessário fazer um contraponto...
A cultura popular não se restringe, entretanto, ao grotesco, ao riso como forma de
abafar o medo, como diz Barbero (ibid), ao gosto duvidoso (quando visto “do alto de uma
cultura erudita”). Este mesmo popular produziu cantigas de ninar, pratos saborosos, belas
indumentárias, rituais, arte, e tantos outros artefatos que até hoje servem ao prazer e,
inclusive, à produção em série, da qual se vale uma sociedade calcada no consumo. Além
disso, o entrecruzamento de culturas propicia que produtos culturais outrora tidos como
eruditos cheguem hoje de diversas maneiras às relações de consumo: nas reproduções das
pinturas clássicas em cartazes, nos livros e periódicos, nas apresentações de músicas
consideradas eruditas em programas de televisão e na publicidade de produtos diversos, nas
29
exposições em espaços populares como nas casas de cultura, no hall de shopping center,
para citar alguns exemplos. Em contrapartida ou, por outra, no mesmo movimento das
relações sociais, intelectuais colecionam histórias em quadrinhos, tornando-as objetos raros
e de desejo, e “ricos empresários” desfilam em escolas de samba no carnaval.
Porém, é idéia deste trabalho, que alguns setores da mídia – considerada aqui como
os meios de comunicação de massa parecem (pelo menos através de alguns programas de
televisão, matérias de jornal, etc) preferir aquela abordagem de popular, a do grotesco,
trazendo e atualizando representações nesse sentido, que trabalham com essas
representações de cultura popular. Esse tema será, no entanto, objeto das análises que
conduzirei neste estudo. Nessa perspectiva de ver como a mídia ensina, de certa maneira,
um "jeito de ser" popular, o foco dessas análises é mostrar aquilo que está estampado nos
jornais considerados sensacionalistas, nesse caso específico o Diário Gaúcho, de Porto
Alegre, ou seja, de indicar de quem ele fala e como fala, quem ele mostra nas fotografias e
em que cinrcunstâncias, e que seções estruturam o jornal.
Para tentar esboçar uma síntese, seria possível afirmar que esta pesquisa se assenta
em quatro esteios, os quais tento vincular e "amarrar", por considerar que estão fortemente
intrincados, relacionados, após os estudos que fiz na perspectiva dos Estudos Culturais:
cultura, identidade, mídia, educação. Dessa forma, vejo que a mídia, como um artefato no
âmbito da cultura popular e como poderosa fonte de informação e de entretenimento, está
envolvida num processo educacional intenso, na medida em que trabalha com
representações que posicionam sujeitos, colocando em circulação idéias e atuando na
constituição de identidades.
CAPÍTULO 2: APONTAMENTOS SOBRE O “JORNALISMO POPULAR”
Sensacionalismo é o termo utilizado para definir o jornalismo de sensação, como o
próprio termo já aponta, no qual as notícias exageram os fatos, às vezes exacerbando
detalhes para apelar às emoções do público. Textos com tal característica, também
conhecidos no campo da comunicação social como imprensa marrom, circulam com
alguma freqüência no Brasil, e também em outros países, sendo sua produção muitas vezes
justificada por razões econômicas, que visariam ao aumento das tiragens das edições de
jornais e, evidentemente, ao aumento das vendas. Acusa-se geralmente os jornais
sensacionalistas de apelarem a sentimentos mórbidos, de explorarem o grotesco (já
discutido no capítulo anterior), o mau gosto, os detalhes negativos, feios e agressivos, tanto
através da linguagem dos textos noticiosos quanto das fotografias que acompanham suas
matérias jornalísticas. Além disso, tem sido matéria desses jornais a invasão de privacidade
de celebridades, preferindo, inclusive, dar destaque a situações que relatam escândalos.
Buscando fazer um contraponto com outros textos, se poderia dizer, por exemplo, que a
notícia de um crime, num jornal não sensacionalista, abordaria o fato principal e alguns
desdobramentos considerados necessários para o esclarecimento possível desse fato. Além
dos itens principais de uma notícia, consenso no jornalismo como sendo o quê, quem,
quando, onde (estes são tidos como elementos essenciais), geralmente tais notícias abordam
o porquê do fato (nos casos em que é possível apurar) e o como, incluindo muitas vezes
uma fonte (alguém que fala na notícia, que depõe, credibilizando as informações ali
anunciadas). Essa notícia seria, pode-se dizer, mais descritiva, embora construída como um
texto narrativo. nessa chamada imprensa marrom, a notícia desse mesmo crime, e até de
31
outros tipos de informação, ganharia dimensões de espetáculo e as palavras empregadas
teriam conotações muito mais fortes, pejorativas e impactantes, marcadamente apelativas
como: limpam (em vez de furtam), amarela (no sentido de não ser eficiente), vexame, feliz
reencontro, corações solitários, mutirão de vasectomia, pega o povo de jeito, festa pra
galera, venda o seu peixe todos eles retirados da edição de 4 de novembro de 2005, do
jornal Diário Gaúcho, de Porto Alegre, RS, jornal que focalizo neste estudo. Assim, em tal
tipo de notícia, buraco passaria a ser rombo, uma senhora de mais idade apareceria como
velha, travesti seria chamado de traveco, entre tantos outros exemplos que serão apontados
nas análises que apresentarei no último capítulo deste trabalho. Quanto às imagens,
teríamos nesses jornais fotografias mais coloridas, focalizando rostos desfigurados, corpos
mutilados, poças de sangue no chão. Já em outras seções do jornal, a editoria de variedades,
por exemplo, o que está privilegiado são as fotografias de atrizes ou modelos seminuas, ou
as que destacam as mansões de luxo em que vivem as celebridades.
Rabaça e Barbosa (1998) definem assim o jornalismo sensacionalista:
Estilo jornalístico caracterizado por intencional exagero da importância de um
acontecimento, na divulgação e exploração de uma matéria, de modo a
emocionar ou escandalizar o público. Este exagero pode estar expresso no tema
(conteúdo), na forma do texto e na apresentação visual (diagramação) da notícia.
(p.531)
Nesse sentido, não nas páginas policiais, onde por natureza o crime é o tema
predominante, mas também em outras editorias de um jornal com tal foco pode aparecer o
sensacionalismo. Em uma notícia que envolvesse uma situação política, econômica, ou de
qualquer outra área, também são explorados certos detalhes, exagerando o enfoque dado
sobre eles, a ponto de chocar e escandalizar. É o caso, por exemplo, de matéria publicada
em 4 de novembro de 2005, no Diário Gaúcho, às vésperas do final da novela América,
veiculada pela Rede Globo de Televisão. A notícia centra-se na possibilidade de ocorrer um
beijo entre dois homens no último capítulo da novela os personagens Junior e Zeca ,
protagonizados por Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro, respectivamente. O texto apela para
expressões da gíria como forma de dar ênfase ao caso, colocando em destaque a pergunta
que aparece no primeiro parágrafo: “... vai ou não vai rolar a bitoca entre Junior e Zeca?”.
32
Sendo assim, no âmbito do sensacionalismo não está apenas em jogo o trágico, a
exploração da morte e das imagens “sangrentas” (aspectos que acabaram identificados com
esse tipo de jornal), mas também o erótico, através da nudez muitas vezes estampada nas
páginas de tal imprensa. E, além dessas, também as fofocas de celebridades, as intrigas,
tudo pode ser motivo para uma “informação picante”. Exemplo disso podemos encontrar na
notícia publicada no Diário Gaúcho, no dia 22 de junho de 2005, nas páginas centrais, 18 e
19, com o título Toma lá, dá cá:
Lívia Lemos também caiu nas graças de Ronaldo Nazário no último final
de semana, a exemplo da modelo Marcelie Bittar, como o Diário
publicou ontem. Tudo certo se a loira não fosse a ex do advogado Flávio
Zveiter, atual de Daniela Cicarelli.
Aconteceu na madrugada de domingo: enquanto Daniela jantava com
seu novo par em Ipanema, Ronaldinho brincava de solteiro no Rio, em
duas festanças. Primeiro ele deu uma passadinha na festa da estilista
Lenny Niemeyer, para mais tarde cair na gandaia, na suíte Millenium, do
motel Vip's.
Lá, Ronaldo e Lívia protagonizaram cenas calientes à beira da piscina,
segundo informou o jornal carioca O Dia. No ano passado, os dois
tiveram um rápido romance. Na semana passada, no evento de moda
Fashion Rio, a loira comentou sua atual fase, de cabelos mais curtos:
– Visual novo, vida nova! Mas, sobre assuntos pessoais, eu não falo.
Diário Gaúcho, 22.06.2005, p.18-19
Algumas expressões foram sublinhadas para marcar a forma como o veículo aborda
tal tipo de assunto: às vezes vale-se de um tom jocoso; outras vezes denota um forte
preconceito, valorizando a identificação de pessoas por algum detalhe ao referir-se à
Lívia Lemos, como “a loira”, por exemplo –, mas tudo sempre ao gosto da chamada
imprensa sensacionalista. O próprio título da reportagem “toma lá, dá cá” coloca em
destaque as trocas amorosas processadas entre os personagens, além, é claro, de ir
caracterizando o jogador Ronaldo como um conquistador inveterado, o que vem conjugado
ao próprio jogo insinuante com o apelido do atleta: o Fenômeno. A matéria acima é
acompanhada de uma fotografia três vezes maior do que o texto, trazendo Lívia Lemos de
biquíni, com a legenda: O véio vai fazer um curso de conquistador com o Fenômeno!
Espetáculo!
33
No esclarecimento do conceito de sensacionalismo como um gênero ou um estilo
que vive da especulação e do exagero, encontramos ainda em Rabaça e Barbosa (idem) a
seguinte consideração: "(...) qualquer manifestação literária, artística, etc., que explore
sensações fortes, escândalos ou temas chocantes, para atrair a atenção do público” (p.531).
Assim, não seria então uma prerrogativa do jornalismo este tipo de abordagem dos fatos ou
dos temas; a literatura, o cinema, a pintura, a sica, para citar alguns ramos da produção
cultural (e no capítulo anterior mostramos um pouco desses casos ao abordarmos a questão
do grotesco) se utilizariam desse “recurso” em muitas de suas obras. E, dentro do próprio
jornalismo, pontos de conflito nesse sentido. Alguns jornalistas, como Alberto Dines,
apresentador do programa Observatório da Imprensa, da TV Cultura, de São Paulo,
consideram, por exemplo, que todo e qualquer gênero jornalístico é muitas vezes
sensacionalista, pois se utiliza de técnicas de atração do público através de destaques no
tamanho da foto, nas manchetes e na ênfase do detalhe. Nesse sentido, até mesmo a
chamada imprensa ria usaria a técnica do lead, termo retirado da língua inglesa para
designar a abertura da notícia, que corresponderia a utilizar no primeiro parágrafo do texto
os chamados elementos principais da informação como quem, o quê, quando, onde, por que
e como. Essa técnica é estudada nas faculdades de Jornalismo e ensina tipos diferentes e
atrativos de lead, sempre empregados com a intenção de buscar “vender” a notícia.
No entanto, apesar de apontar argumentos que permitem dizer que toda forma de
jornalismo de algum jeito se vale dos apelos sensacionalistas em maior ou menor grau,
destaco que se convencionou chamar de sensacionalistas os jornais, as revistas, ou similares
cuja linha editorial seja marcada pelas notícias policiais, fofocas e esportes. Além disso, o
bairro, o local mais restrito e periférico no qual os editores parecem pensar viverem os seus
leitores, como veremos no último capítulo, é trazido para as ginas desses jornais
geralmente através do crime e da tragédia. De fato, a periferia dos grandes centros –
usualmente onde se localizam os bairros populares têm sido geralmente menos assistida
pelo Estado, tanto no que se refere a questões de segurança, quanto de urbanização,
saneamento etc. Além disso, os sistemas de saneamento básico e de serviços chegaram bem
mais tarde a esses locais se comparados ao centro das cidades. Sarlo (1997) assim comenta:
Estes (os moradores de bairros) carecem de uma cidade mais limpa, segura, com
bons serviços, transitável a qualquer hora; vivem em subúrbios de onde o Estado
34
se retirou e a pobreza impede que o mercado ocupe esse lugar vacante; suportam
a crise das sociedades vicinais, a deterioração das solidariedades comunitárias e
o noticiário cotidiano da violência. (p.20)
Mas isso não habilitaria ninguém a localizar a transgressão e o crime como próprios
a tais locais e, muito menos, a passar a representar seus moradores como dotados de uma
natureza intrinsecamente voltada ao crime e à transgressão. Mesmo assim, o que se vê são
jornais sensacionalistas valerem-se abundantemente de tais representações, como se
dissessem: prolifera a escória, é a margem da sociedade, é o local onde nascem os
crimes e onde estão os criminosos. E ainda, está o mau gosto, a desinformação, o gosto
pelo bizarro, pela tragédia etc. Assim, oferecem como produto (a edição do jornal) um
conjunto de informações que julgam ser aquilo que essas pessoas, moradoras desses
bairros, querem ler. Essa situação nos remonta à noção de modos de endereçamento,
trabalhada por Ellsworth (2001). Mesmo que a autora se refira ao cinema, parece-me ser
importante valer-se dessa noção para discutir outras mídias, como o jornal. Para essa autora
(ibid):
(...) a maioria das decisões sobre a narrativa estrutural de um filme, seu
acabamento e sua aparência final são feitos à luz de pressupostos conscientes e
inconscientes sobre quem são seus públicos, o que eles querem, como eles vêem
filmes, (...) e quem eles pensam que são, em relação a si próprios, aos outros e às
paixões e tensões sociais e culturais do momento. (p.14)
Nessa linha de pensamento, partindo de um suposto perfil de leitor, é que os jornais
oferecem determinado tipo de notícias. No caso dos impressos sensacionalistas, estes são
também classificados como veículos de notícias populares e parecem oferecer ao seu
público dois grandes temas recorrentes: o mundo do crime, representado nos assaltos,
latrocínios, tráfico de drogas, brigas em família, estupros, incestos; e o mundo do glamour,
no qual ocorrem as nem sempre “pequenas” transgressões da elite econômica, as ousadias
dos ricos e famosos ou até mesmo os seus escândalos. Assim, parece que se define o
“gosto” popular e suas preferências de informação, circunscrevendo-o pelo menos a dois
mundos bem definidos: um que é o próprio espelho onde eu, o sujeito do povo, me vejo
35
como o que não tem, o pouco que sou, o ambiente vil ao qual pertenço, e de outro lado, o
mundo que desejo ter, que também tem suas vilanias, mas que admiro e invejo.
Mesmo assim, é preciso fazer uma ressalva no que diz respeito às matérias desses
jornais. Tais jornais que se autoclassificam como populares apresentam, é claro, outros
temas e outros tipos de informação. Estão neles também as colunas de prestação de serviços
(previsão do tempo, página de editais, registros de falecimento, as cartas dos leitores e as
consultas a especialistas o Diário Gaúcho, jornal no qual centrei meu estudo, apresenta,
por exemplo, uma seção na qual uma nutricionista conselhos e esclarecimentos aos
leitores sobre questões alimentares; outra chamada "ajude a encontrar", onde se publica
uma relação de pessoas desaparecidas e suas fotografias; o "espaço do trabalhador", coluna
em que são publicadas as ofertas de empregos e oportunidades; "presságios", onde o
chamado professor Nathanael divulga simpatias, responde a perguntas e analisa sonhos).
Assim, em tais jornais, reafirma-se uma das funções marcadas para o jornalismo de um
modo geral – a prestação de serviços. Em geral, os jornais trazem notícias sobre as
condições do trânsito, divulgam cursos e concursos, respondem às cartas dos leitores. Nos
jornais populares também não faltam as dicas de culinária, o resumo das telenovelas e, às
vezes, alguma reportagem envolvendo problemas de infra-estrutura num determinado
bairro da cidade. Não faltam, tampouco, as denúncias de “buracos” nas ruas, o registro do
descaso com a “coisa pública”, a problemática dos camelôs, etc. Todos esses itens, e todo
esse volume de informações neles apresentados, circulam em tais jornais. Ainda assim, o
que me interessa focalizar especialmente nesta pesquisa é o sensacionalismo, que entendo
ser dominante nessa categoria de jornais e que neles ganha uma dimensão tão expandida da
qual decorre a já indicada qualificação de imprensa marrom.
2.1 Algumas estratégias de definição do popular
O autodenominado jornalismo popular, considerado para fins deste trabalho como
aquele que se utiliza extensa e abundantemente de estratégias sensacionalistas como marca
principal da sua linha editorial, o começou propriamente na imprensa. Ou melhor, as
36
peculiaridades desse jornalismo popular, que envolvem publicar predominantemente
matérias jornalísticas marcadas pelo grotesco, pelo apelo emocional, como apontei
anteriormente, já se encontravam presentes em artefatos culturais também usualmente
qualificados de populares, como cantigas e narrativas. A literatura de cordel, por exemplo,
notadamente a que circulava no Brasil na segunda metade do século XIX, misturava o
noticioso ao poético e às chamadas narrativas populares. Com o tempo, essas produções
começaram a incluir cada vez mais a informação, inclusive em detrimento da própria
poesia. E essas passaram, assim, a assumir, aos poucos, uma função aproximada do
jornalismo, inclusive no seu formato, como aponta Barbero (2003):
Estão lá os grandes títulos chamando a atenção para o principal fato narrado em
versos, importância assumida pela parte gráfica, com desenhos ilustrando o
texto, a melodramatização de um discurso que parece fascinado pelo sangrento e
o macabro, o exagero e até a atração pelos ídolos de massa dos esportes ou dos
espetáculos. (p.257)
Barbero (ibid) chega a falar num protojornalismo popular, referindo-se ao cordel,
“que será escrito em grande parte visando à difusão oral, para ser lido, declamado, cantado
em lugares públicos como o mercado, a estação de trem ou mesmo pelas ruas”, onde,
completa ele, “já se encontram as chaves do jornal sensacionalista” (idem).
Como destaca Barbero (ibid), desde o início do século XX começaram a aparecer
jornais sensacionalistas mais parecidos com os que se conhece hoje. Em 1922, no Chile,
Los Tiempos é considerado o responsável pela introdução desse estilo e, na Argentina, o
jornal Crítica contraria o que era conhecido até então como imprensa séria e apresenta
ligações com os modos de expressão popular: sua página policial apresentava, por exemplo,
comentários e ilustrações que mostravam a vida nas ruas. Também no Chile, vamos ter, em
1944, o aparecimento de Las Noticias Gráficas, que se autodefinia como um “jornal do
povo” e que passava a publicar e a mostrar aqueles sujeitos que geralmente ficam de fora
dos discursos oficiais: os que vivem em reformatórios, em penitenciárias, as mulheres, os
aposentados, os alcoolistas, as prostitutas, o que vai, segundo nos mostra Barbero (ibid),
dar ênfase à reportagem policial, de um modo inclusive mais escandaloso, com “freqüente
emprego da gíria e da linguagem popular”.
37
O jornalismo conhecido hoje como sensacionalista acabou por configurar o popular
como um âmbito de carências, onde a idéia de povo fica reduzida praticamente ao mundo
do crime, da linguagem escrachada, da fofoca e da bisbilhotice, e das necessidades pontuais
de sobrevivência. Essa maneira de fazer jornalismo popular começou no final do século
XIX, nos Estados Unidos. O jornal World publicava o suplemento dominical em amarelo,
dentro de seus esforços para "atrair a atenção do público" (Rabaça e Barbosa, 1998, p.329).
Daí esse estilo ficar conhecido como imprensa amarela. No Brasil, por sugestão de
Francisco Calazan Fernandes, editor chefe do Diário da Noite, do Rio de Janeiro, na década
de 1960, passou a se chamar de imprensa marrom, "por se tratar de uma cor mais forte"
(idem, p.329).
2.2. Notícias sobre algumas configurações do “jornalismo popular”
Muitos fatores, entre eles os de cunho econômico, educacionais e até mesmo os
decorrentes da chamada revolução tecnológica, contribuíram para a configuração de
mudanças significativas na imprensa, no século XIX, mas principalmente a partir do
século XX. Aqui seria interessante pensar no que Briggs e Burke (2004) nos apontam:
Enquanto demandava circulação de informação mais substancial e confiável,
tanto por motivos financeiros quanto para o controle dos processos industriais, a
industrialização também precisava a longo prazo de um acesso público mais
amplo à educação, começando com a escola, cuja freqüência se tornou
compulsória na Grã-Bretanha em 1800, e na França, com ensino totalmente
laico, em 1882 (...). A instrução de massa era agora julgada essencial, assim
como a educação continuada e o aprendizado da computação se tornaram
imprescindíveis nas últimas décadas do século XX. (p.194)
Como conseqüência de acontecimentos tais como os apontados por esses autores,
uma grande parte da população iletrada, a partir dos investimentos na educação por
exigência dos novos tempos e da modernização do sistema industrial, tornou-se letrada e
converteu-se em público potencial para uma imprensa emergente e ávida por se afirmar
como negócio. Nessa nova configuração foram-se constituindo as condições necessárias à
proliferação de jornais e à confirmação dos existentes. Briggs e Burke (ibid)
38
consideravam que “a importância da informação era claramente apreciada em alguns
círculos (políticos e científicos) no século XVII, mas foi ressaltada ainda mais na sociedade
comercial e industrial do século XIX, quando as noções de velocidade e distância sofreram
transformações” (p.193).
Nesse quadro, junto com o aumento do mero de jornais, a estrutura desses foi-se
modificando: até esse momento tínhamos uma imprensa caracterizada pela publicação de
edições com predomínio da opinião, em que os textos não eram noticiosos como os
entendemos hoje, e se posicionavam relativamente aos fatos, mas que, aos poucos passaram
a incluir mais informações generalizadas. A notícia já fora vinculada a informações oficiais
(na sociedade colonial norte-americana, por exemplo), mas aos poucos pendeu para o
político no final do século XVIII, quando havia “mais interesse em formar opiniões do
que noticiar” (Medina, 1988, p.51). A informação, aponta a autora, “está a serviço da
movimentação política, dos grupos liberais da independência. O Brasil se enquadra neste
esquema na imprensa que se implanta no século XIX” (p.51). No Brasil, conforme relata
Medina, a imprensa operava mais como um “arauto do governo”. De fato, nosso primeiro
jornal impresso no País, A Gazeta do Rio de Janeiro, de 1808, era uma espécie de porta-voz
do império português. É somente a partir de 1821 que os veículos impressos brasileiros
tornam-se mais independentes, mas ainda assim não tinham adotado a informação como
conteúdo editorial principal. “A imprensa politicamente militante é, então, mero reflexo de
uma situação efervescente. O interesse principal dos jornais é, antes de informar, formar
opiniões” (idem, p.51).
Esse quadro começa a se modificar no último quarto do século XIX, e depois com o
impacto da 1ª Guerra Mundial, com a invenção do rádio e também com o apoio das
conquistas tecnológicas na esfera industrial. O interesse do público pela atualização e pelas
questões mundiais formou uma demanda pela notícia. Essa nova demanda buscava
informações sobre emprego, sobre a situação das fábricas, sobre as cidades vizinhas e assim
por diante. Aquele momento foi caracterizado por Medina (op.cit.) da seguinte maneira:
A pressa em ficar sabendo o que ocorre em todo o país, no mundo, começa a
tomar corpo e cria um universo de leitores até então inexistente. A notícia
empurra a opinião de grande parte das páginas de jornal; a necessidade de a cada
39
dia conseguir levantar um novo mar de novidades, via telegrama, vai montar a
manifestação-núcleo do jornal-notícia; (...) nas salas de redação, uma
modificação fundamental: do escritor, figura principal de produção
individualizada, chega-se à criação anônima pelo corpo de repórteres. (p.53)
ainda outro fator que concorreu para que essa imprensa se transformasse no
jornalismo popular assemelhado ao que é visto hoje. Além de buscar atender às
necessidades de uma sociedade que se industrializava cada vez mais, a imprensa se tornava
ela própria uma indústria. A prensa rotativa, surgida nos Estados Unidos 400 anos depois
da prensa fixa de madeira com tipos móveis de metal, de Gutenberg (Alemanha),
multiplicava as tiragens dos jornais e uma nova situação começava a ser configurada para
escoar essa produção e para resistir a uma concorrência entre os próprios veículos de
informação: o preço dos jornais caía e as notícias precisavam tornar-se mais populares a
fim de despertarem um interesse maior na população. O jornal “barato” surgiu em Nova
Iorque, o Sun, de 1838, lançado por Benjamim Day. Esse jornal trazia notícias sobre
pessoas comuns e assuntos policiais, além de relatos ficcionais, a título de entretenimento.
Mais tarde, em 1896, como apontam Briggs e Burke (2004), em Londres, Alfred
Harmsworth lançou o jornal Daily Mail, ao preço de meio centavo, sendo que nele era
afirmado explicitamente que o seu objetivo era a informação e o entretenimento.
Acreditava-se que o leitor dito “comum” precisava divertir-se e não agüentaria apenas
receber informação “séria”. Começava a corrida para manter o público fiel ao veículo.
Briggs e Burke (idem, p.197) citam Charles Knight (1791-1873), que se destacou como
editor de livros baratos e que foi chamado de precursor da imprensa popular, quando
afirmou que conhecimento “útil” não poderia ser difundido, a menos que os leitores se
divertissem.
Por outro lado, o espaço onde se foi constituindo uma imprensa popular, que passou
a tender aos poucos para o sensacionalismo, com a utilização do grotesco, da
espetacularização do trágico e de outras características afins, não se instituía, apenas, por
conta de pressões econômicas e tecnológicas. O cultural teve por função exercer efeitos
fundamentais nesse processo. É claro que o desenvolvimento tecnológico e as mudanças
econômicas radicais trazidas pela indústria no século XIX vão agir na formação das
40
condições onde se vão tecer as características na nova imprensa. Mas pensar somente assim
seria uma perigosa redução. Há mais coisas postas em jogo nesse momento. Por exemplo: a
imprensa popular, mesmo quando se utiliza do sensacionalismo, poderia ser vista como um
espaço público onde as várias tendências, linguagens e desejos populares estariam
ganhando algum destaque, no sentido de que esses jornais poderiam estar dando voz a
quem geralmente é deixado fora dos discursos, como vimos em exemplos anteriores. De
outra maneira, ainda é importante indagar por que não podemos considerar que o
jornalismo popular “trabalha” com a emoção da cotidianidade, a qual, de forma recorrente
fica fora das informações que circulam no mundo da elite econômica, interessada a priori
em dados técnicos, estatísticas, estratégias, investimentos e leis?
Em Barbero (2003), vamos encontrar essa questão que diz respeito aos motivos que
originaram um tal jornalismo popular, conforme é discutido no seguinte excerto:
O surgimento dos jornais sensacionalistas foi em geral explicado, tanto nos
Estados Unidos da América quanto na Europa, em razão do desenvolvimento
das tecnologias de impressão e da concorrência entre as grandes empresas
jornalísticas. Na América Latina, quando a imprensa sensacionalista é estudada,
é para apresentá-la como exemplo palpável da penetração dos modelos norte-
americanos que, situando os negócios acima de qualquer outro critério,
corromperam as sérias tradições do jornalismo independente. (p.257)
Através desse jornalismo, as massas seriam manipuladas e circunscritas a um
mundo pobre, de poucas ambições. Mas Barbero (ibid) chama a atenção:
Claro que fica muito mais fácil e seguro continuar reduzindo o sensacionalismo
a um 'recurso burguês' de manipulação e alienação. Foi preciso bastante fôlego
para se arriscar a afirmação de que por trás da noção de sensacionalismo, como
exploração comercial da reportagem policial, da pornografia e da linguagem
grosseira, se esconde uma visão purista do popular. (p.258–259)
Barbero argumenta que o jornalismo popular pode ser “uma estética melodramática
que se atreve a violar a separação racionalista entre os assuntos sérios e os temas
destituídos de valor, a tratar os fatos políticos como fatos dramáticos e a romper com a
'objetividade'”. E continua ele: “(...) observando as situações a partir daquele outro ponto de
vista que interpela a subjetividade dos leitores” (idem).
41
Mesmo assim, considero que o denominado jornalismo popular, o que se vale de
uma perspectiva sensacionalista na abordagem dos fatos e na construção das notícias, em
que pese considerar a “subjetividade dos leitores” e “a coragem” de tratar temas usualmente
considerados como destituídos de valor, tem efeitos produtivos nos seus leitores, nas
posições de sujeito e no espaço simbólico das representações de indivíduos, bem como na
produção de papéis sociais.
CAPÍTULO 3: A MÍDIA COMO UMA PEDAGOGIA CULTURAL
Neste ponto do trabalho, é importante abordar aspectos que dizem respeito à
intenção de expandir a compreensão que estou assumindo acerca do educativo, valendo-me
da noção de pedagogias culturais. A partir dessa noção (posta em destaque por autores
como Henry Giroux, 2003, Susan Steinberg, 1997, Roger Simon, 2003) tem-se pensado que
a educação se dá em uma multiplicidade de locais e instâncias e não apenas na escola. Entre
tais locais e instâncias estão as produções cinematográficas, os anúncios publicitários, os
programas de televisão, tanto aqueles que seus produtores configuram como educativos
quanto os classificados a priori comode entretenimento”, bem como os jornais, as
revistas, os shopping centers e tantos outros locais nos quais são postas em circulação
idéias, conceitos e modos de ver o mundo, que vão, indiscutivelmente, subjetivando o
público que freqüenta tais locais e consome tais produtos.
Douglas Kellner (2001) também destaca o papel fundamental exercido pelos
artefatos da mídia como pedagogias culturais. Ele afirma que "na sociedade de consumo
atual, a criação da individualidade passa por grande mediação" (p.297), referindo-se à
sociedade pós-Segunda Guerra Mundial, na qual, segundo ele, tomou forma tal predomínio
da mídia. Kellner (ibid) chega a considerar a sociedade pós-moderna como "racionalizada,
burocratizada, consumista e dominada pela mídia" (p.311), dando ênfase à televisão como
um meio decisivo na "construção" dessa nova cultura. Ele argumenta, por exemplo, que "...
a televisão e outras formas da cultura da mídia desempenham papel fundamental na
reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e
43
comportamentos" (ibid p.304). E enfatiza:
Para começar, a cultura da mídia põe à disposição imagens e figuras com as
quais seu público possa identificar-se, imitando-as. Portanto, ela exerce
importantes efeitos socializantes e culturais por meio de seus modelos de papéis,
sexo, e por meio das rias 'posições de sujeito' que valorizam certas formas de
comportamento e modos de ser, enquanto desvalorizam e denigrem outros tipos.
(p.307)
Silva (1999) também se refere a essa dimensão pedagógica da cultura, ao afirmar
que "tanto a educação quanto a cultura em geral estão envolvidas em processos de
transformação da identidade e da subjetividade", acrescentando, ainda, que "sem ter o
objetivo explícito de ensinar, entretanto é óbvio que elas {as produções culturais} ensinam
alguma coisa, que transmitem uma variedade de formas de conhecimento que, embora não
sejam reconhecidas como tais, são vitais na formação da identidade e da subjetividade"
(p.139/140).
Pode-se dizer, também, que os jornais diários são um artefato cultural
importantíssimo. Mais do que um simples transmissor de notícias, também nos textos do
jornal se instituem visões de mundo e se constroem posições para os sujeitos. Pode-se
dizer, ainda, que neles “fabricam-se” as notícias ao privilegiarem-se determinados assuntos
para comentar e divulgar em detrimento de outros, ao escolher-se o “ângulo” sob o qual a
notícia será abordada, bem como ao destacarem-se determinadas fotografias dentre as
tantas que chegam à sala de redação do jornal. Tal processo também inclui a escolha das
fontes (as pessoas que falam, no texto jornalístico), a seleção das manchetes e dos textos. E
é dessa forma, e a partir de escolhas como as referidas, bem como a partir da forma como
essas passam a configurar o jornal, que se exerce uma pedagogia, que, ao integrar-se ao
grande grupo de artefatos que acima referi, "ensina" modos de ser, (con)forma sujeitos,
além de, por certo, colocar em circulação idéias e reafirmar visões de sociedade.
Nessa mesma linha, ou seja, a de considerar a multiplicidade de instâncias
produtoras de significações e de sujeitos, autores como Stuart Hall, Paul du Gay, Raymond
Williams e outros, do chamado grupo de Birmingham, bem como Henry Giroux (1995,
2003) propõem um deslocamento teórico e político em direção à cultura. Giroux (2003),
44
valendo-se, especialmente, da análise que faz das produções da Disney, investiga e marca
questões que dizem respeito à instituição de uma identidade nacional americana e de como
essa grande corporação se utiliza de uma imagem de inocência, ao narrar suas histórias e
apresentar seus personagens, através da qual "tenta assegurar sua legitimidade moral e
pedagógica" (p.136). Para Giroux, é preciso pensar-se em uma "nova política cultural", a
qual deve compreender a intenção de ensinar os sujeitos a lidar criticamente com esses
locais de produção cultural e com os discursos que eles trazem ou fazem circular. Para
tanto, ele convoca à ação os trabalhadores culturais, afirmando que qualquer ativismo
político não pode abrir mão da consideração das produções culturais. Assim, o autor desafia
a esses a quem chama de "ativistas", a atuarem em uma variedade de locais e a centrarem-
se na política da cultura. Vejamos como o autor (ibidem) enuncia esse propósito:
(...) a esquerda precisa estar mais criticamente atenta à forma como o poder está
organizado através do enorme número de aparatos culturais que vão desde as
bibliotecas, os cinemas e as escolas até aos conglomerados hightech da mídia
que fazem circular signos e significados através de jornais, revistas, publicidade,
programação eletrônica, máquinas, filmes e programas de televisão. Neste
contexto, a esfera da política amplia enormemente seu potencial tanto para a
hegemonia cultural quanto para a resistência. (p.135/136)
Além disso, cabe lembrar, a partir do mesmo autor, que a pedagogia, vista agora
como uma área da educação que abrange um conjunto de práticas ou de teorias que
conduzem as práticas de ensino/aprendizagem, está assentada em relações de poder e
institui saberes a partir dessas relações, quando, por exemplo, define currículos a serem
aplicados nas escolas. Certo é que, ao pôr em prática tais currículos, a pedagogia é mediada
e interceptada por quem os condiciona, por aqueles que os aplicam no dia-a-dia da escola,
bem como pelas escolhas feitas para operacionalizar esses currículos, e assim por diante,
sem falar-se nos diferentes modos de recepção desses "ensinamentos". No entanto, a
pedagogia escolar parece ser mais clara, pelo menos ela se mostra e constantemente busca
se definir assim, por ser mais explícita em sua intencionalidade do que as pedagogias
culturais que têm sido posicionadas "fora" da escola, por estarem essas emaranhadas a uma
rede de relações culturais que mais explicitamente invocam a economia, a psicologia, a
sociologia, a comunicação e tantos outros setores da vida social, mas que igualmente
produzem efeitos e interpelam os públicos.
45
Também por isso, estudos com tal foco são cada vez mais importantes, como
também aponta Giroux (2003), ao destacar consideração feita por Edward Said. Diz ele
(2003):
Como observa Said, seria irresponsável, politicamente, se os trabalhadores
culturais subestimassem os profundos efeitos que os novos meios estão tendo na
moldagem da vida cotidiana e nas agendas globais. Diferentemente das formas
sociais culturais tradicionais, a emergência dos novos meios assinala um
momento único na ampliação do imperialismo cultural para a esfera da vida
cotidiana. (p.134)
Incluo tal consideração, neste texto, especialmente para indicar que é possível ver-se
esses meios, dos quais nos fala o autor, atuando de diferentes formas: além de as produções
culturais serem por si só produções que se inserem nesse contexto das pedagogias culturais,
porque estão sempre "ensinando alguma coisa" cujos efeitos sempre atuam na produção de
significados, mesmo quando não têm explicitamente essa intenção, veículos de
comunicação, como jornais e revistas, têm buscado, com bastante freqüência, vincularem-
se às programações escolares. Assim, por exemplo, tais veículos de comunicação mantêm
programas e seções endereçados a professores, alunos e seus familiares, estendendo, desse
modo, seus produtos para dentro das salas de aula e dos lares.
Com grande freqüência tais produtos carregam nas sugestões acerca de como fazer
para aprender, para dar aulas mais produtivas e interessantes, a como preparar-se para
provas ou para o ingresso no mundo do trabalho etc. A revista Veja, por exemplo, mantém
desde 1998 um programa chamado "Veja na sala de aula", com essa finalidade, isto é,
fornecendo, além de material de leitura, guias de discussões para alunos e professores,
estabelecendo praticamente aquilo que deve ser discutido e destacando os temas que julga
importantes em cada momento. O programa disponibiliza também um site
(www.vejanasaladeaula.com.br) que é voltado à atualização dos interessados, como se o
professor devesse inclusive, a partir desse site, buscar as mais novas informações
pedagógicas e didáticas também, na medida em que ali recebe dicas de como trabalhar os
assuntos em pauta. No próprio site da Revista, encontramos uma das propostas do
programa, colocada da seguinte maneira:
46
Trata-se de uma ferramenta pedagógica complementar, que traz os
fatos do Brasil e do mundo para dentro da escola. Seu maior objetivo é
contribuir para o desenvolvimento dos alunos do Ensino Médio,
fornecendo-lhes subsídios para que se tornem atuantes, preparados e
bem informados. VEJA NA SALA DE AULA proporciona aos
professores, orientadores e coordenadores pedagógicos os conteúdos
de todas as disciplinas de modo atraente, dinâmico e inovador,
permitindo que os estudantes compreendam a realidade que os cerca e
tornando-se cidadãos críticos e sintonizados com seu tempo.
A revista VEJA, um guia prático, o site www.vejanasaladeaula.com.br,
uma fita de vídeo e o Guia do Professor compõem o programa, que se
propõe transformar as matérias de VEJA em conteúdos didáticos. Para
tanto, oferece propostas modernas e ousadas, conforme preconizam as
Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, valorizando a
interdisciplinaridade e estimulando a autonomia e a capacidade de
análise do estudante.
Site de Veja na Sala de Aula, acesso em 24.04.2006
No entanto, não é essa a discussão que orienta a organização dessa seção, mas sim,
a intenção de tentar ver como as muitas produções da mídia podem ser postas em
articulação, quando se trata de interpelar os sujeitos. O caso da revista Veja é apenas um
exemplo de como certos veículos da mídia participam diretamente da educação formal.
Longe disso, os efeitos dos artefatos midiáticos que quero discutir são produzidos em uma
rede complexa de produções culturais que incluem também a estratégia de referirem umas
as outras.
Wortmann (2004) dá destaque a esse processo quando afirma que:
(...) nessa cultura da informação, não os diferentes programas televisivos
estão constantemente sendo conectados uns aos outros no decorrer das
programações das diferentes emissoras; esses estão, também, e diariamente,
sendo veiculados, narrados, e produzidos/reproduzidos nos jornais (em muitas e
diferentes seções), em também diferenciados tipos de revistas, em páginas da
Web, em peças publicitárias, etc.
Ao mesmo tempo, a literatura é tema de novelas, de seriados, de filmes, entre
outras produções culturais, e os/as personagens/atores/atrizes/apresentadores/as
das histórias narradas (...) transformam-se em bonecos/as, estampam cadernos,
borrachas, lápis, canetas, mochilas... (p.35)
No jornal que analiso nessa Dissertação, o Diário Gaúcho, uma das seções,
justamente a que se destaca por sua localização na gina central (tida no meio
jornalístico como a mais importante da edição) e por ser editada em cores, aborda o
47
mundo das telenovelas e dos artistas. Nela são feitos comentários sobre o enredo das
novelas, anunciadas novidades e trazidas antecipações de acontecimentos a serem
focalizados nos próximos capítulos das séries, tudo fartamente ilustrado com fotografias de
qualidade. Essa é uma forma bastante comum de cruzamento midiático que implica, por
exemplo, a convergência de temas e procedimentos colocados em circulação por diferentes
mídias. Reforça-se, desse modo, os chamamentos atrativos exercidos pela programação
televisiva, bem como faz-se propaganda da novela e de seus atores.
Busco, então, nas análises que conduzi neste estudo, entender e marcar aspectos que
permitem indicar a ocorrência de tal processo pedagógico, bem como as estratégias
acionadas na e pela mídia jornalística. As relações sociais, desde a família até os encontros
entre amigos, também envolvem, certamente, uma dimensão pedagógica, mas vejo, tal
como Kellner (2001), Giroux (2003), entre outros autores já referidos, que a mídia em geral
exerce efeitos intensos e extensivos, por suas possibilidades de circulação em espaços cada
vez maiores, bem como por sua acessibilidade, atingindo, desse modo, a um número cada
vez maior de pessoas e provocando efeitos sempre mais amplos. Como diz Simon (2003):
"{os produtos da mídia}tentam orientar nossa concepção daquilo que é importante e
'verdadeiro', assim como do que é desejável e possível" (p.65).
Ou seja, como destaquei, a mídia, através de suas produções mais populares, tais
como o jornal, as revistas, os programas de televisão, os sites da internet, bem como out-
doors, anúncios publicitários etc, vai desenhando e colocando em destaque uma maneira de
ser e de agir no mundo, a ponto de os indivíduos passarem a se ver através dela. Enfim, a
mídia atua na direção de uma determinação e de uma "oficialização" das identidades
possíveis, estabelecendo, ao mesmo tempo, algumas "verdades" e definindo papéis para os
sujeitos nas relações sociais. É freqüente verem-se representados em anúncios publicitários
executivos bem sucedidos, homens brancos de uma faixa etária entre 30 e 40 anos de idade.
Tal representação coloca em destaque alguns atributos vinculando-os ao sucesso uma
faixa etária, um gênero (o masculino), uma etnia/raça (européia/branca). De modo
semelhante, anúncios publicitários e programas de auditório mostrados na TV têm
apresentado um conceito de "mulher bonita", que é reiterado pelas outras dias, como as
revistas, por exemplo. Neles estão mulheres brancas, preferencialmente magras e,
48
sobretudo, jovens (a mulher negra aparece, no mais das vezes, vinculada ao carnaval, ao
samba, freqüentando bares de esquina) vestidas com os produtos "da moda".
Entendendo então a mídia como uma importante pedagogia cultural, que produz
efeitos através das suas produções, podemos dizer que vivemos hoje uma obsessão por
algumas coisas em detrimento de outras; por exemplo, quando pensamos que seremos
felizes ao adquirirmos um telefone celular de última geração ou ao usarmos roupas de
marcas famosas e assim por diante. Até as horas de lazer parecem "monitoradas",
conduzidas, quando andamos em círculos nos shopping centers, e quando entramos numa
sala de cinema para assistirmos a um filme divulgado pela televisão, recomendado por
uma revista e sobre o qual já se venderam camisetas, bonés e outros apetrechos que
carregam sua marca. Mesmo assim, não haveria por trás desse vasto número de artefatos a
simples implantação de uma ideologia de dominação, embora se possa pensar que esses até
constituam um "currículo cultural", como destacou Steinberg (1997). Tal currículo produz
efeitos, sim, sendo muitos deles coincidentes com organizações que, segundo ela, têm
"interesses comerciais que agem não em favor do bem social, mas da vantagem individual"
(idem, p.102). A produção de significados gerada aqui, como destaca a mesma autora
(ibid), mais do que formas de lazer e entretenimento, carregaria um potencial muito forte na
direção da formação identitária de indivíduos e de grupos inteiros. Questões sexistas e
étnicas, para tomar dois aspectos importantes considerados nos Estudos Culturais,
emergem nesse contexto. Cabe ainda destacar que os interesses comerciais a que se refere
Steinberg (ibidem) se assentam, muitas vezes, em narrativas que fazem uma leitura muito
particular do mundo: não é raro filmes norte-americanos, por exemplo, apresentarem
negros como bandidos, corruptos ou corruptores, traficantes, enfim, como a escória social,
ou mulheres que exercem papéis secundários, de muita dependência em relação aos
homens. Toda essa "distribuição" de papéis que atua na direção de posicionar pessoas em
categorias, também se acopla àquelas outras "informações" relacionadas ao que é
configurado nesses filmes como ser feliz, ser homem, ser jovem etc.
A essas práticas, que "estão implicadas na produção de significados que dão às
pessoas uma idéia de quem elas são e de quais são seus futuros" e que, de alguma forma,
regulam as suas identidades, Simon (ibid) nomeia como "tecnologias" (p.71). As
49
tecnologias, segundo ele, não são meros instrumentais pedagógicos, materiais facilitadores
de aprendizagem e de divulgação de conteúdos; seriam antes uma espécie de plataforma
onde se assentam maneiras de mostrar o que deve ser sabido e o que, exatamente, merece
ser sabido. As tecnologias seriam, assim, um tipo de verdade em que se acredita, um
"fazer"
1
. E, ao falar de tecnologias, Simon (ibid) se refere a todas elas, inclusive às
praticadas na escola. Neste estudo, como já mencionei, interessa-me sobremaneira dar
destaque a tecnologias culturais praticadas "fora da escola" e, especialmente, indicar o
papel que essas exercem na produção de significados para o popular, bem como as
estratégias que colocam o popular em destaque.
Certo é que diversas tecnologias culturais: algumas se completando nas ações
que empreendem e outras até em oposição. Cada indivíduo entra em contato com um
emaranhado de atividades (e de significados) e freqüenta tantos espaços, que está sujeito
(ou mesmo interage) a efeitos produtivos variados, nos quais vai-se constituindo como ser
que julga, pensa, escolhe e também interfere no meio. À semelhança do que faz Simon
(2003), lembro, por exemplo, de alguém que trabalha como caixa de um banco, toma um
chope com os amigos, um pouco da revista Veja numa sala de espera qualquer, corre os
olhos pela revista Nova, em casa escuta seus cds de pop, rock, samba e rap, assiste à novela
das oito, da Rede Globo, depois "belisca" um filme de ação e suspense, conversa com o
psicólogo ou a psicóloga da escola de um dos filhos. No final de semana, vai ao shopping
com a família, assiste a um filme cult e, passando pela banca mais próxima, após um
contato visual com todo o material exposto lá, algumas manchetes e trechos, e acaba
comprando um livro de auto-ajuda. Isso tudo sem falar ainda nos momentos reservados ao
futebol, às reuniões e assembléias, aos cultos, às comemorações escolares de Páscoa, ao
Dia das Mães...
Nesse sentido, aponta-nos Simon (2003), referindo-se às relações sociais como uma
"textura da vida cotidiana":
1
Simon trabalha aqui com uma noção de poiesis buscada em Heidegger, um "trazer à presença", onde
estariam implicados modos de regular e organizar os saberes.
50
Ao enfatizar a capacidade produtiva das tecnologias culturais, estou sublinhando
que esses arranjos não precisam ser vistos simplesmente como veículos de
socialização, planejados para adaptar as pessoas às exigências das formas sociais
existentes. Embora não haja dúvida de que algumas tecnologias culturais possam
ser usadas, e o são, no contexto desses esforços, é importante avaliar que outras
tecnologias são fundamentais para contestar horizontes normalizados e ampliar
as possibilidades que temos para reconstituir nossa idéia daquilo que nossos
futuros podem ser. (p.77)
Portanto, sem querer reduzir a questão da produção de significados na cultura e seus
produtos a relações de causa e efeito, nem tampouco desconsiderar a capacidade criativa e
os diversos modos de resistência e de contrapropostas discursivas, considero fundamental
estudar um pouco mais detidamente como nessa rede de relações um produto da mídia,
como o jornal, vai "ensinando" formas de ver e de configurar os sujeitos, ao eleger
determinados temas para colocar em destaque e determinadas maneiras de abordá-los.
Embora as pedagogias escolares também sejam culturais, as outras pedagogias culturais,
como a exercida pela mídia, por exemplo, produzem efeitos importantíssimos,
considerando-se que a mídia assumiu capacidades incontestáveis de "participar"
diariamente, e a todo momento, da vida social. As representações que produções midiáticas
constroem são, a meu ver (e apoiado nas linhas de análise dos Estudos Culturais), uma
forma efetiva e eficaz de educação.
CAPÍTULO 4: PROCEDENDO A LEITURA DO DIÁRIO GAÚCHO
A Análise do Discurso como teorização e método possível para a análise textual
começou a ser considerada na França, na década de 1960. Em linhas gerais, pode-se dizer
que essa se trata de uma disciplina que vai além da lingüística estruturalista e que não vê a
língua como um sistema fechado; ao contrário, a Análise do Discurso a língua como
uma conversação, uma relação entre o eu e o outro. Isso é o que explica Maingueneau
(apud Mussalim, 2001), ao afirmar que: “A outra região, de contornos instáveis (...), se
refere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em
estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas”. Ao que
Mussalim acrescenta: “a Análise do Discurso pertence a essa última região, ou seja,
considera esse último modo de compreender a linguagem, o que não significa que, para ela,
a linguagem não apresente também um caráter formal (...)” (p. 60). Esse método de análise,
portanto, trabalha com os efeitos de significado que podem ser produzidos pelas
ambigüidades do discurso. Ou ainda: nesse sentido, o discurso pode trazer reforços a
determinadas representações sociais. Como diz Hall (1997), ao assumir uma perspectiva de
análise de discurso que busca colocar em interação as noções de significado, representação
e discurso, “a linguagem é um dos ‘meios’ através dos quais pensamentos, idéias e
sentimentos são representados numa cultura. A linguagem funciona como um sistema de
representação, sendo, então, a representação através das linguagens
2
central para os
2
Hall (1997, p.1) destaca que os sinais e símbolos que utilizamos nessas linguagens podem ser sons, palavras
escritas, imagens produzidas eletronicamente, notas musicais e até objetos, que significam ou representam
para outras pessoas nossos conceitos, idéias e sentimentos.
52
processos através dos quais é produzido o significado” (p.1).
A Análise do Discurso empreendida neste trabalho contribuiu para me permitir
delinear como o Diário Gaúcho configura o seu público leitor - aqueles a quem esse jornal
preferencialmente se endereça - nas diversas reportagens e colunas que publica. Ou seja,
vali-me dessa abordagem analítica para examinar representações postas em destaque nesse
jornal e para indicar alguns dos significados que nelas podem ser lidos e que interpelam
esses leitores. Como bem destacou Hall (ibid), os significados culturais não estão ‘na
cabeça’ dos sujeitos que com eles lidam. Eles organizam e regulam as práticas sociais,
influenciam nossas condutas e conseqüentemente têm efeitos reais, práticos sobre essas”
(p.2). Portanto, torna-se importante que procuremos “lê-los” nas diversas produções da
cultura a que temos acesso, sendo que, no caso deste estudo, atenho-me à leitura do Diário
Gaúcho.
Mas é importante destacar que a Análise do Discurso vai além de um simples olhar
para o texto, na medida em que ao realizá-la vai-se, também, considerar as circunstâncias,
os contextos, em que se constitui um dado discurso. Para esclarecer melhor o que
considerei, apresento o seguinte excerto de Maingueneau (2001):
Suponhamos que eu escreva um cartão postal de férias a um amigo; ele sabe
tanto quanto eu o que esperar desse tipo de mensagem, e cada um de nós sabe
que o outro detém tal saber: ele não ficará magoado pelo fato do meu texto ser
muito curto, nem chocado por eu falar somente do tempo e de meus passeios ou
por eu não enviar um cartão em um envelope, etc. Respeitando assim as normas
do gênero do cartão postal, não corro o risco de ofender meu destinatário ou de
perder sua consideração. (p. 64)
O que o autor (ibid) nos indica, tal como ressaltou Mussalim (2001), é que a leitura
dos significados faz-se possível para aqueles que partilham mesmos sistemas de
significação e que é preciso estar-se atento, quando da realização de análises discursivas,
para as características próprias ao gênero textual em questão. Assim, um texto que se
configura como apropriado a um cartão postal não se ajusta tão bem a uma carta e muito
menos a um texto jornalístico. Como também estarei indicando neste estudo, o enfoque
textual do Diário Gaúcho também apresenta muitas peculiaridades. Além disso, tanto na
53
acepção assumida por Hall (1997), quanto na indicada por Mainguennau (2001), é
ressaltado que é preciso atentar-se para a circunstância na qual os discursos são enunciados.
Nessa linha, também o tipo de mídia utilizada (aqui escolhi o impresso) interfere no
discurso, como nos aponta Maingueneau (ibid):
Hoje, estamos cada vez mais conscientes de que o mídium não é um simples
meio de transmissão do discurso, mas que ele imprime um certo aspecto a seus
conteúdos e comanda os usos que dele podemos fazer. O mídium não é um
simples meio, um instrumento para transportar uma mensagem estável; uma
mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero do discurso.
(p.71-72)
Como os autores que consultei enfatizam, o discurso não é inocente nem
desinteressado, não pode ser encontrado nem produzido em estado puro. Todo discurso está
inserido num contexto histórico e social: é representativo, vale-se de não-ditos, de
implícitos e pressupostos. Mas também julgo oportuno destacar que, em qualquer produção
cultural, há sempre uma grande diversidade de significados e mais de uma forma de
interpretá-los ou representá-los. É preciso dizer também, a partir de Hall (1997), que as
representações presentes nas produções culturais atuam na organização e regulação dos
significados, mesmo que essas representações não possam garantir que a produção desses
significados se em uma determinada direção: “o processo de produção de significados é
potencialmente aberto e indeterminado, impedindo qualquer redução simplista do
significado à representação” (p.2).
Além disso, como refere o mesmo autor, as representações não contêm significados
"diretos" e "transparentes"; ao contrário, os significados podem ser comparados a um
"cliente" escorregadio, que muda e que se adapta conforme o contexto, as circunstâncias
históricas e o uso que deles se faz. E isso equivale a dizer que o significado essendo
sempre negociado e inflectido nas práticas sociais para ressoar em novas situações.
Como também salientou Hall (ibid), o significado das "coisas" surge em relação a
todos os diferentes momentos ou práticas do que o autor denomina de o “circuito da
cultura” - na construção da identidade e na delimitação da diferença, na produção e no
consumo, bem como na regulação das condutas sociais.
54
Quero ainda destacar que não tenho a intenção, neste texto, de buscar culpados nem
de trabalhar com a noção de ideologia, tantas vezes invocada por estudos alinhados a
vertentes críticas em educação. A análise que faço no capítulo seguinte busca conhecer um
determinado jornal impresso e seus discursos; que discursos são esses e a quem se dirigem?
Que representações de sujeito são configuradas na rotina diária de informar realizada pelo
jornal? Que tipo de jornalismo o Diário Gaúcho faz e como esse se apresenta? Com que
representações de povo ele lida e de que forma vai “ensinando” em suas páginas o que é ser
popular (isto é, que atributos, sentimentos, preferências, interesses são próprios às camadas
ditas populares)? Em outras palavras: que efeitos produtivos um veículo da mídia impressa
como o Diário Gaúcho poderia exercer na instituição/produção/fabricação
3
de seus leitores
enquanto povo?
Entre tantos jornais considerados populares, ou que inclusive se autodenominam
como populares, escolhi o Diário Gaúcho, de Porto Alegre, por ser esse um jornal que além
de se enquadrar nessa linha (a imprensa popular), está próximo de nós (e se endereça a
nós), gaúchos. Para a análise, selecionei um número de dez edições por considerar que tal
quantidade é suficiente para fazer um pequeno mapeamento desse jornal, pelo menos sob
alguns dos aspectos que interessam a este trabalho. A periodicidade aqui não foi tomada
como o aspecto mais importante, tanto é que as edições vão variar num período aproximado
de dois anos, todavia sem que atendam à escolha de uma edição por mês. Essas edições
foram adquiridas ao acaso, sem que eu verificasse detidamente a capa. A idéia foi
justamente dar uma certa “liberdade” ao jornal, para que ele se “imponha” ao trabalho e não
o contrário (quando pareceria que um pré-julgamento estivesse norteando os estudos).
Acredito que o uso de edições aleatórias pode mostrar melhor se de fato uma
configuração padrão no Diário Gaúcho, como ela se desenha e o que ela nos diz. No
entanto, tudo foi feito já partindo da idéia de que esse jornal é tido como popular, conforme
comentei, e é nessa perspectiva que o observei mais demoradamente nas edições
escolhidas.
Cabe agora considerar, em relação às escolhas que referi, que não isenção nas
3
Estou reafirmando aqui o que Hall (1997) refere como efeitos construcionistas dos sistemas de
representação, mas destacando sempre que estou lidando com possibilidades de atribuição de significado.
55
pesquisas, sejam elas de que ordem forem: alguém sempre vê “de algum lugar”, a partir dos
referenciais que assume e de suas informações e formações prévias. É inegável que tenho
uma intenção que interfere na escolha do tema, na escolha e produção do objeto de
pesquisa, como bem demonstrou Sommer (2005) em seu texto Tomando as palavras como
lentes, mas saliento novamente que pretendo evitar de qualquer forma fazer uma
condenação desse jornal. Descarto aqui a idéia de manipulação presente em algumas
análises conduzidas em uma vertente crítica mais tradicional. Ou seja, não estou falando
acerca de uma mídia perversa que estaria a serviço dos ricos “para dominar e espezinhar os
pobres”.
Os jornais denominados populares, ou sensacionalistas, têm sido alvo de muitas
análises e condenações entre os profissionais de comunicação. Mas, neste texto, o que
pretendo é conhecer um pouco mais acerca de um periódico que ganhou nome rapidamente
no Rio Grande do Sul, desde o seu lançamento em 2000. E que se configura, conforme uma
série de padrões usados nesse jornal – no uso de cores exageradas, no pouco refinamento do
texto escrito, nos assuntos que circulam em torno de três áreas básicas, como veremos mais
adiante (notícias policiais, notícias de esportes e notas sobre acontecimentos que envolvem
pessoas famosas, artistas e celebridades), como um jornal popular.
Enfim, optei por empreender uma Análise do Discurso, porque preciso ir um pouco
mais longe na minha leitura dessas edições do Diário Gaúcho; preciso entender com quais
meios, com que linguagem, com que jogo de imagens e cores, com que “discurso”, afinal, o
jornal se insere no mercado e, dessa forma, ver como é esse “popular” que se atribui a ele.
Da mesma maneira, representações postas em circulação na sociedade sobre o
que é da “índole” da cultura popular, por exemplo, bem como sobre o que é o gosto popular
e sobre quais são suas preferências por determinado tipo de informação, acabam
constituindo o público a quem e de que modo se endereçam as informações do jornal.
Arriscando alguns passos pela ótica dos Estudos Culturais, estudei mais detidamente
aspectos relacionados a essas representações. Pergunto, então: que estratégias e práticas
representacionais o jornalismo praticado em jornais populares, como o DG, colocam em
destaque para configurar o povo”, o “popular” e, nesse processo, configurarem-se eles
56
mesmos como veículos a serviço dos grupos populares? E ainda: a que atributos o popular é
associado em tais práticas representacionais?
4.1 O jornal se apresenta
As edições do Diário Gaúcho escolhidas para análise se inserem no período de
outubro de 2004 a julho de 2006. E, dentro desse período, a opção por determinadas
edições, como indiquei, não dizem respeito a uma pré-configuração de corpus de estudo
por essas apresentarem características mais voltadas a determinadas direções. A idéia
inicial, como já mostrei em parágrafos anteriores, foi justamente a de trabalhar com o jornal
num processo de descoberta, deixando que “ele se apresentasse” ao investigador.
Posteriormente, após olhar este conjunto de forma mais abrangente e de ter visto
especialmente o que nele se reafirmava e repetia, selecionei alguns aspectos que passaram a
se constituir nas direções principais da análise que empreendi, o que me levou a selecionar
as matérias que falavam mais explicitamente daquilo que decidi focalizar.
Mas, evidentemente, o jornal Diário Gaúcho mantém certo padrão na sua
diagramação e no seu conteúdo, isto porque os veículos de comunicação de massa, como
usualmente são chamados os jornais impressos, precisam ter uma aparência que os
identifique. Procuram estabelecer uma certa intimidade com o seu blico, acostumando-o
a buscar neles aspectos que envolvem, por exemplo, encontrar sua coluna preferida sempre
no mesmo lugar (na mesma página ou em uma página muito próxima), ou, ainda, encontrar
seu assunto preferido na mesma editoria (na mesma seção do jornal). Estes são alguns dos
princípios básicos, podemos dizer, da “atitude” desse tipo de mídia com a intenção de
firmar-se no mercado e de granjear leitores.
57
4.2 Apresentando o jornal
O Diário Gaúcho, não fugindo à norma, apresenta-se ao público observando
algumas regularidades, variando sua configuração em apenas pequenos detalhes, como o
número de páginas, deslocando às vezes determinada seção para uma outra página ou
estendendo ou reduzindo ocasionalmente alguma coluna. No geral, as dez edições
estudadas neste trabalho mostram a seguinte estrutura:
1. Variam entre 32 e 36 páginas, dependendo principalmente da publicação ou não dos
anúncios classificados;
2. A capa e a contracapa são coloridas, com os fios (traços que circundam fotos e textos)
das fotos em vermelho, fios separadores e sublinhações em verde, balões das fotos em
amarelo (espécie de legendas, mas que não vêm na forma tradicional, embaixo da foto),
fazendo alusões às cores do Rio Grande do Sul, que também fazem parte do logotipo do
jornal (veja em Anexos);
3. O preço de capa é de R$ 0,60
4. Apresentam geralmente um selo para recortar e concorrer a brindes como “kit sopa”,
“kit chope”, talheres, copos, etc. (normalmente também estampado na capa);
5. Na página 2 está a coluna com os indicadores econômicos (poupança, dólar, salário
mínimo e aluguel), meros sorteados nas loterias; expediente, pergunte a quem sabe
(sobre nutrição, medicina, linguagem...); cartum; notas com indicação de eventos;
6. Na página 3 uma coluna de comentários; uma notícia “de geral” (cujos assuntos
podem envolver tanto uma informação sobre camelôs, quanto a polêmica de um beijo
gay na telenovela referindo-se aqui ao indicado capítulo final da novela da Rede
Globo, América, que foi ao ar no segundo semestre de 2005). Além disso, metade desta
página é ocupada geralmente, com um anúncio de supermercado (verduras, frutas,
ovos...);
58
7. Nas páginas 4 e 5 aparece uma reportagem especial; nelas não nenhum anúncio
comercial. Esta é uma das reportagens que pode estar deslocada para outras páginas, em
algumas edições;
8. As ginas 6 e 7 são praticamente ocupadas por anúncios comerciais; nelas apenas
uma coluna intitulada “O que há de novo”, com pequenas notas que misturam
informações e comentários sobre política, mega sena, enchentes, informações sobre
início ou término das estações do ano etc.;
9. nas páginas 8, 9, 10, 11, 12, 13 aparecem as notícias sobre esportes, sendo que entre
essas anúncios comerciais variados (de telefones celulares, utilitários para cozinha,
eletrodomésticos, entre outros). Essa é a editoria que ocupa maior espaço no jornal,
superando até mesmo a dedicada a notícias policiais;
10. Na página 15 estão as “dicas” de cinema e de shows dispostas sob a forma de colunas;
11. As páginas 16 e 17 são dedicadas às variedades (coluna sobre sexo, notas de
apresentação de pessoas disponíveis para encontros e relacionamentos, notas sobre
artistas e gente da TV, horóscopo, anúncios de nascimentos, simpatias, interpretações
de sonhos etc.);
12. As páginas centrais (18, 19) vêm em cores as colunas estão em azul, verde e rosa.
Elas trazem notícias e notas de celebridades, farta ilustração com fotografias grandes e
coloridas, sendo dado um destaque visual a essa seção;
13. Na página 20, tem-se a coluna do Gugu, bem como os resumos das novelas e a
programação da TV aberta;
14. Na página 21 estão as palavras cruzadas, as tiras e as piadas;
15. Quando a edição apresenta anúncios classificados, estes estão, geralmente, entre as
páginas 22 e 29;
16. Nas páginas 30 e 31 há os textos classificados como interativos, colunas que publicam
as posições dos leitores (Fala, leitor, Opinião do povo, Espaço do trabalhador). Além
59
desses, geralmente, está um anúncio comercial que ocupa perto de dois terços da
página, anunciando artigos de cozinha, fogões, microondas e outros;
17. A editoria intitulada Ronda Policial (notícias policiais, crimes, denúncias, assaltos,
tiroteios, sumiços, drogas...) ocupa as páginas 32, 33 e 34;
18. As publicações legais (como é o caso dos editais de casamento, de licitação etc.) estão
na página 35;
19. E na gina 36 (contracapa) está a coluna de Sérgio Zambiasi (homem de mídia e da
política, bastante conhecido no Rio Grande do Sul, que se popularizou como alguém
que ajuda as pessoas, conseguindo-lhes remédios, cadeiras de roda e outros artigos de
necessidade). estão, também, a previsão do tempo e uma matéria que “dicas”
diversas (presente em todas as edições) chamada Faça você mesmo.
É interessante indicar que não há, no Diário Gaúcho, editorias com nomes
tradicionais no jornalismo impresso, como esporte, polícia, mundo, política, etc. No Diário,
ganham destaque três seções do jornal: a de esportes, que recebe o nome de Jogo Total, a
da página central (sobre celebridades), intitulada Retratos da Fama, e a de polícia, chamada
de Ronda Policial.
Em uma das direções que focalizei neste estudo, centrei minhas análises no jornal
Diário Gaúcho, buscando entender que aspectos, características, modos de diagramação,
matérias, editorias, discursos e outros permitem configurar este periódico na categoria
jornalismo popular que vem sendo trabalhada até aqui. O objetivo mais amplo deste estudo
é, como argumentei, verificar de que maneira o Diário Gaúcho vem configurando uma
idéia de popular e, dessa forma, veiculando discursos e valendo-se de estratégias
representacionais que atuam na direção de “ensinar” o que é o popular, bem como de
instituir seus leitores como populares ao dar destaque ao que muitas vezes se tem
configurado como “temas e expressões populares”. Também busquei ver se esse popular
vincula-se no jornal ao inculto e ao grotesco, ou seja, se nele os leitores são configurados
como incultos quem sabe como sujeitos cujos saberes restringem-se ao cotidiano e
cujos interesses pouco vão além das fofocas, dos escândalos, dos crimes, ou ainda como
60
apreciadores de coisas grotescas. Ao valer-me da Análise do Discurso para realizar as
análises textuais, parti da organização de um mapeamento introdutório do que constituía o
texto posto em circulação pelo jornal, detendo-me tanto na “linguagem” utilizada nas
notícias, reportagens, notas e colunas, quanto na própria diagramação do jornal, incluindo
as fotografias. Ao mesmo tempo, fui colocando tais textos em articulação, buscando ver as
repetições, as convergências, bem como associando o que estava neles dito com o que li em
Barbero (2003), em Muniz Sodré (2002), em Stuart Hall (2003), em Sarlo (1997) entre
outros autores e autoras que inspiraram minhas reflexões. Busquei ver, ainda, como tais
textos se aproximavam ou se afastavam de outros textos jornalísticos.
CAPÍTULO 5: O JORNALISMO POPULAR NO DIÁRIO GAÚCHO
É certo que, no que diz respeito à tendência sensacionalista assumida na abordagem
dos fatos jornalísticos, bem como na própria escolha dos fatos transformados em notícia, o
Diário Gaúcho não é tão marcante no que diz respeito ao grotesco quanto outros jornais
considerados populares. Esse é o caso, por exemplo, do jornal Notícias Populares, de São
Paulo, que parece investir bem mais nas notícias de tragédia (desabamentos, acidentes,
assassinatos, seqüestros etc.) e que apresenta uma linguagem muito mais grotesca, no
sentido de valer-se de gíria escrachada, do termo grosseiro e plebeísmos, muitas vezes
dando indícios de preconceito em relação aos temas e pessoas de que trata em suas notícias,
e enfatizando ainda mais do que o DG as informações da área policial. No jornal que
examinei – O Diário Gaúcho – um maior investimento, especialmente no que se refere à
concessão de espaços (em torno de 70% do volume da informação) a assuntos como
futebol, celebridades, “fofocas”, embora nele também se noticiem casos de crimes, assaltos
e outras notícias desse gênero.
5.1 A “linguagem” do Diário Gaúcho
Aponto a seguir como alguns textos do Diário Gaúcho vão delineando o popular a
partir do uso que nele se faz da linguagem. Cabe marcar, antes disso, que o jornalismo tem
por preceito utilizar linguagem coloquial. É possível dizer, inclusive, que uma máxima
em jornalismo que estabelece que, entre o sofisticado e o popular, é sempre preferível
62
valer-se do popular, mesmo que se busque manter uma proximidade com a língua culta
padrão, por princípio.
Lage (1985) nos indica:
A conciliação entre esses dois interesses de uma comunicação eficiente e de
aceitação social – resulta na restrição fundamental a que está sujeita a linguagem
jornalística: ela é basicamente constituída de palavras, expressões e regras
combinatórias que são possíveis no registro coloquial e aceitas no registro
formal. (p. 38)
As gírias, portanto, e as expressões classificadas na gramática como plebeísmos,
cacofonias, etc. são vedadas. Na linguagem jornalística um equilíbrio a ser mantido: a
linguagem dever ser fácil, compreensível e capaz de atingir ao maior mero possível de
pessoas, mas correta, sem vícios e precisa. E, no caso dos jornais considerados
sensacionalistas, as diferenças começam justamente pelo tratamento dado à linguagem,
onde nem sempre o equilíbrio é praticado e, na qual, no mais das vezes, não acontece
aquele registro coloquial que pode ser aceito no “registro formal”.
No caso do jornal Diário Gaúcho, grande parte de suas matérias contém termos e
expressões mais próprias ao domínio da fala popular e das conversas informais. Na edição
de mero 1613, de 22 de junho de 2005, por exemplo, aparecem expressões como “pagar
o pato” (p.11), numa notícia intitulada “Rouparia”, que trata de uma reunião no Sport Club
Internacional para discutir a derrota contra o time do Fluminense Football Club, do Rio de
Janeiro. Nessa pequena notícia, usa-se, também, a expressão coloquial e metafórica
“lavagem de roupa suja”. Na página 10, referindo um jogo de futebol da Seleção Brasileira
contra a do Japão, o título da notícia “Olho aberto contra o Japão” é também uma expressão
coloquial, usualmente utilizada para referir a importância de “tomar-se cuidado”, de
“prevenir-se”, ou “acautelar-se” contra algum perigo ou problema iminente. Na mesma
edição, vamos encontrar também o título “Reclamação é choradeira” (p.33), que
destaque e trata da maneira como o comando da Brigada Militar se refere às reclamações da
população a respeito das blitze; o termo “sumiço” (p.34), usado para referir um caso de
desaparecimento de mãe e filho, bem como uma frase bastante popular na capa do jornal
“Uma cabeça tinha de rolar” –, usada como título da notícia que abordava a demissão de
63
Mário Sérgio, um colaborador importante do Grêmio Futebol Portoalegrense, do cargo
administrativo que ocupava no clube. Na edição de 04 de novembro de 2005, o jornal
utiliza, nessa mesma linha, as expressões limpam”, no título Ladrões limpam a prefeitura
(p.32), referindo-se a roubo de CPUs de computadores na prefeitura da cidade gaúcha de
Arroio dos Ratos; “acabou a moleza”, na página 15, para dizer que os jogadores do Vasco
da Gama, time de futebol do Rio de Janeiro, voltaram aos treinos. E o título Suspense em
América pega o povo de jeito, para apresentar uma matéria da página 18 na qual o
articulista pergunta-se, ainda, se vai ou não rolar a bitoca entre Junior e Zeca”
(personagens homossexuais da referida novela América, sucesso da Rede Globo),
durante o “finalzão”.
Trazendo ainda mais elementos da edição mencionada no início deste capítulo (a
de 22 de junho de 2005) para o que estou argumentado, indico que, na página 32, em
reportagem que relata como um menino foi vítima de uma bala perdida, aparece a seguinte
frase: “No muro de uma casa, defronte ao mercado, marcas de tiro são o resultado do final
de semana, quando o local, segundo apurou a polícia, virou ponto para a prática de tiro”.
Aqui temos duas situações a comentar: a primeira diz respeito a uma definição bastante
simplificadora do que caracterizaria um final de semana naquele lugar (Vila Intersul, no
município de Alvorada/RS), onde vivem os personagens da história narrada ponto para a
prática de tiro! Além disso, dá indícios de que tudo o que acontece naquele lugar se
resumiria na violência, com a afirmação: “marcas de tiro são o resultado do final de
semana”. É claro que, se o conflito aconteceu, é papel da imprensa noticiá-lo, mas existem
muitas outras alternativas de linguagem para relatar um caso como esse. Mesmo que não
pretenda enquadrar o texto examinado em um padrão de linguagem culta, faço um exercício
na direção de pensar como outros jornais poderiam noticiar a mesma ocorrência. Seria
possível dizer, por exemplo, que “os tiros atingiram o muro de uma casa” (expressão que, a
meu ver, informa sem dar ênfase aos tiros como sendo o resultado mais freqüente de um
final de semana naquele bairro). Na mesma notícia, a expressão “virou ponto”, que apela à
gíria, à linguagem que fica à margem da língua culta, poderia trazer a mesma informação
com afirmações como “tornou-se ou transformou-se em local de... Valho-me, no entanto,
desses exemplos, apenas, para estabelecer um contraponto com o que seria o modo de
noticiar um episódio como esse, na maior parte dos jornais que não apelam ao
64
sensacionalismo. Ou seja, para marcar o espaço que as expressões da gíria, que as
metáforas de uso popular recebem nas notícias do jornal que analiso.
Mesmo assim, os textos das notícias examinadas no DG não se restringem à gíria e
ao uso de uma linguagem que sempre apela ao grotesco, o que poderia ser visto como uma
das formas de marcar ser unicamente essa a linguagem entendida e utilizada por seus
leitores. Circulam também em seus textos outros tipos de apelos lingüísticos, os
metafóricos, que referi anteriormente, como é o caso do uso do termo “grito” no título de
coluna da página 31: “O grito dos acorrentados”. O texto é uma nota mandada publicar por
advogados que defendem os direitos humanos; todavia, essa visa colocar em destaque o
sofrimento, o sufoco, a angústia e o abandono em que vive a população carcerária. Em que
pese a intenção de dar voz a essas pessoas, as que, segundo a nota, padecem da falta de
atendimento médico e psiquiátrico, as expressões assinaladas a partir dos textos que
comentei vão indicando uma estratégia que inclui a busca de praticar uma linguagem
interativa com o leitor. Mesmo que esse não seja um texto de responsabilidade da editoria
do jornal, é interessante indicar que também nele foi assumida uma linguagem interativa e
mobilizadora. Tal como em outras publicações contidas neste jornal, parece estar sempre
presente a intenção de marcar como esse jornal entende os seus leitores. É como se o jornal
constantemente dissesse: eu falo com você na sua língua, a seu modo, por isso estou do seu
lado.
Quanto à forma de apresentação das notícias, podemos invocar, ainda, algumas
técnicas literárias que nelas aparecem. Entre essas, a utilização de seqüências de frases
curtas, geralmente compostas de orações coordenadas, estratégia que permite tornar o texto
mais dinâmico. Além disso, em algumas situações, tem-se a impressão de que o redator
trata com um certo descaso a construção do período, provocando às vezes redundâncias e
ambigüidades. Essas situações podem ser observadas em uma nota da página 20 da edição
de 22 de junho de 2005, do D.G., em uma coluna que apresenta os resumos das novelas de
TV:
O índio José Aristides pede Serena em casamento. Serena diz a José
Aristides que não quer se casar. Cristina pede que Felipe ajude Rafael a
esquecer Luna. Felipe diz ao pai que sua obsessão por Luna fez com
que ele esquecesse de cuidar dele. Rafael sente que sua esposa está
65
viva. (...) José Aristides conta para Serena que os brancos estão
querendo expulsar os índios das terras. Serena descobre que Josias é o
líder dos garimpeiros e vai à procura do pai para pedir por seu povo.
Josias trata Serena mal e afirma que não tem filha mestiça. Adelaide e
Agnes comentam o quanto Cristina mudou e se tornou boazinha depois
da morte de Luna.
Diário Gaúcho, 22.06.2005
A estrutura dessa nota pode convocar a idéia de uma conversa informal,
aproximando muito o discurso jornalístico do discurso da fala e, por isso mesmo,
distanciando-o do discurso dissertativo, mais argumentado, que inclui períodos e orações
mais complexas. Tal situação pode também nos levar a pensar acerca de quem o jornal
busca ou mesmo entende ser o seu público leitor aquele mais afeito à fala do que à
escrita, um público que é integrado por uma parcela da população que lê pouco ou que
estudou pouco.
Como destacou Mainguenau (2001):
Ao lado dos gêneros de organização textual rígida, como a dissertação, há outros
que seguem roteiros mais flexíveis, como a conversa em família. Uma conversa
começa com falas ritualizadas sobre o tempo, a saúde, por exemplo, e encerra-se
por despedidas e promessas de um novo encontro; entre essas duas partes, os
coenunciadores tomam sucessivamente a palavras e a conservam durante um
tempo relativamente curto, sem seguir um plano rigoroso. (p. 68)
Essa simplicidade da fala é utilizada por esse jornal, e ela poderia ser ainda mais
acentuada a partir da seguinte afirmação de Maingueneau (ibid, p.76), quando se refere ao
texto simples de uma conversa: “Geralmente o locutor não constrói uma sintaxe elaborada,
usando a subordinação (ou hipotaxe); ele recorre facilmente à justaposição de frases
(parataxe), sem explicar suas relações por meio das conjunções de coordenação ou de
subordinação de sentido preciso”. Isso pode ser percebido na notícia em questão, se
examinarmos no início do texto as afirmações: O índio José Aristides pede Serena em
casamento e Serena diz a José Aristides que não quer se casar, que poderiam estar
articuladas com uma conjunção adversativa, como o "mas". No entanto, a preferência por
deixá-las separadas torna as frases mais "rápidas" e simples e, provavelmente as destaca
mais, além de facilitar a sua leitura.
66
Além do que tem sido trabalhado até esse momento neste texto, também é possível
esboçar uma panorâmica do tipo de linguagem preferida no Diário Gaúcho através dos
apelos dos títulos de suas matérias e notas, embora alguns tenham sido mencionados nos
parágrafos anteriores. Assim temos as seguintes manchetes: Camelódromo já está em
obras; Paraguai é a vida dos sacoleiros; Relax no dia da demissão; Para técnico, time
sofre nos jogos; Olho aberto contra o Japão; A gaúcha que voa no céu e nas pistas; Jovem
sofre até para falar; Susto na madrugada; Negócio mineirinho; Presa fácil; Toma
cá; Prefeitura fecha após furto; PMs teriam recebido R$ 5mil por assalto; Gaúcho preso
no Rio; Ladrão recapturado; Acidente acaba em morte e tiros; Vigaristas aplicam golpe;
Prisão sem muros; Mais uma carta de presidiário; Menino atingido por bala perdida;
Estação do trensurb assaltada; Assaltante identificado; Denúncia confirmada; Investigado
sumiço de mãe e filho; Engano leva um inocente à prisão; Assalto à residência;
Apreendidos 241 kg de maconha; Para usar e arrasar; Mãe e filho 30 anos depois; Fala
pra galera; Galã sem rodeios.
Por outro lado, é fato inegável que os outros jornais também trabalham um pouco
com esse tipo de apelo; no entanto, apresentam esses temas em uma editoria específica do
jornal, restrita a uma ou duas páginas, que buscam evidentemente “atingir” (como se diz em
comunicação) a todos os públicos, inclusive aos que estou considerando neste estudo como
“mais populares”, pois o objetivo de um jornal impresso é ser lido pelo maior número
possível de pessoas. Mesmo assim, a ênfase nesse corpo de informações começa a assumir
tal importância e interesse, nesse tipo de jornal como o Diário Gaúcho, que aquilo que era
apenas uma editoria torna-se um veículo, o qual vai explorar, então, exclusivamente esse
tipo de notícias, tomando-as como o seu foco central.
5.2 Dando voz ao povo
As páginas 30 e 31, desta mesma edição, são bem marcantes no sentido de abrir
espaço à opinião e às reivindicações do povo/leitor desse jornal. Essas páginas apresentam
quatro colunas intituladas: Opinião do Povo, Fala, Leitor, Espaço do trabalhador e o
referido O Grito dos Acorrentados. A primeira mencionada aqui, Opinião do Povo,
67
apresenta ou descreve geralmente uma situação do cotidiano, buscando mobilizar os
leitores para ela a partir de uma pergunta como a seguinte: Você vai comprar roupas de
inverno em oferta? As respostas transcritas na edição que examinei foram dadas por quatro
pessoas, duas negras e duas brancas: entre elas há um homem e três mulheres que detêm as
ocupações de conferente (ele), duas são donas-de-casa e a outra é pensionista do INSS.
Todos responderam que iriam comprar roupas em ofertas, mas que estavam esperando o
momento certo e aguardando as ofertas melhores, numa clara indicação de que são pessoas
que têm baixo salário e que vivem com alguma dificuldade ou que pelo menos consideram
ser importante economizar em gastos com roupas. A escolha de tais sujeitos para
participarem da coluna parece ser intencionada todos eles pertencem às chamadas classes
populares –, bem como o foco selecionado para colocar em destaque a necessidade de
comprarem roupas para o inverno. Ou seja, o jornal objetivava lidar com um “problema
real” e levantar alternativas “populares” para a sua resolução, não desconsiderando, no
entanto, a necessidade do investimento em roupa, configurada como “natural” nessa
ocasião.
A notícia reúne, então, sujeitos que o “jornal” parece considerar serem seus leitores
mais assíduos, e situações que o “jornal” entende corresponderem a necessidades que esses
seus mesmos leitores precisam resolver. Além disso, parece-me ser importante indicar que
essa não seria uma matéria muito destacada em jornais menos voltados às chamadas classes
populares. Valendo-me da noção de endereçamento, tal como foi enunciada por Ellsworth
(2001), penso ser possível dizer que aqui é uma das situações em que se enuncia quem são
preferencialmente os leitores desse jornal: pensionistas, donas-de-casa, funcionários com
pouca qualificação, todos eles representantes das chamadas classes populares, que ocupam
cargos ou funções com baixo status social. Nesse sentido, afirma Ellsworth (idem): “Os
filmes, assim como as cartas, os livros, os comerciais de televisão {podemos incluir os
jornais impressos}, são feitos para alguém. Eles visam e imaginam determinados públicos”
(p.13). Nesse tipo de coluna e nesse jornal (pelo que me foi possível verificar nas edições
que acompanhei nesse período), não figuraram para falar de questões de ordem semelhante
advogados, médicos, professores, gerentes de banco, ou mesmo um lojista que pudesse
trazer algum esclarecimento acerca da melhor oportunidade das compras indicadas. Houve
apenas uma exceção na edição de 14 de novembro de 2004, em que uma relações públicas
68
falou sobre como iria passar o feriadão de 15 de novembro – num sítio com amigos – , e em
11 de novembro de 2005 em que uma administradora de empresas foi solicitada a falar
sobre o medo que tinha de sair à noite por causa da violência. Ou seja, no geral, não parece
que o jornal considere sujeitos que ocupam tais posições como seus leitores diários; ele não
se endereça preferencialmente a tais sujeitos. Mas, ao mesmo tempo, o texto convoca a
todos a pensarem sobre essa violência que não se circunscreve a alguns bairros da cidade,
mas que se estende a todos eles – inclusive aqueles freqüentados pela referida empresária.
O que poderia de certa forma marcar melhor as diferenças de endereçamento
assumidas nesse jornal (uma das noções de que estou me valendo para organizar minhas
discussões nesta dissertação), inclui fazer uma breve comparação com o que está
apresentado no Jornal Vale dos Sinos, de São Leopoldo, RS, edição número 8269, de 9 de
novembro de 2005, em que figuram, na seção Página do Leitor, as opiniões de dois
comerciantes, uma artesã e um administrador, sobre uma questão semelhante à abordada no
exemplo anterior. E, ainda, do que foi apresentado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre,
RS, edição número 14680, de 3 de novembro de 2005, na coluna Palavra do Leitor, página
2, na qual os sujeitos cujas opiniões foram apresentadas eram dois funcionários blicos,
um advogado, um agrônomo, um engenheiro, um jornalista, um escritor, dois empresários e
dois aposentados, que falaram sobre problemas gerais do cotidiano. O que se nessa
indicação comparativa é que os jornais que escapam à classificação de sensacionalistas
colocam em destaque sujeitos de um outro estatuto social, ao incluírem em suas colunas,
preferencialmente, opiniões de empresários e de funcionários que ocupam altos cargos”,
enquanto o Diário Gaúcho restringe-se àqueles leitores mais humildes como as donas-de-
casa suburbanas, os balconistas de loja, os pedreiros, etc. Ou seja, em todos os casos
apontados, desenha-se um perfil bastante específico para o público leitor, conforme
apontei acima.
Ainda na edição de 22 de junho de 2005 do Diário Gaúcho, na página 34, uma
matéria em que uma cartola se destaca sobre o título, Mistério na capital, trata do
desaparecimento de uma mulher e de seu filho, em Porto Alegre, RS. A reportagem
destaque ao desconhecido, ao suspense, denotando um gosto pelo melodrama, característica
considerada bem própria a narrativas qualificadas como populares. Quanto a esse aspecto,
69
aponta-nos Barbero (2003):
Desde 1790 vai-se chamar melodrama, especialmente na França e na Inglaterra,
um espetáculo popular que é muito menos e muito mais que teatro. Porque o que
chega e toma a forma-teatro, mais que com uma tradição estritamente teatral,
tem a ver com as formas e modos dos espetáculos de feira e com os temas das
narativas que vêm da literatura oral, em especial com os contos de medo e de
mistério, com os relatos de terror
(p.169-170)
.
Na edição de 04 de novembro de 2005, na página 16, também uma chamada
nessa direção uma pequena reportagem intitulada Mãe e filho 30 anos depois fala do
reencontro dessas duas pessoas, em Sapucaia do Sul, RS. A reportagem faz um claro apelo
às emoções, usando, inclusive, na referida matéria, afirmações como “nem 30 anos
apagaram o amor” (no mesmo texto, informa-se que eles foram separados quando o filho
tinha ainda poucos meses de idade, o que tornaria difícil a formação de um vínculo como
esse). Como destacou Sarlo (2004), esse apelo ao sentimentalismo, às desgraças, às
vicissitudes que a vida apresenta é bem próprio à literatura popular. Para a autora, as
narrativas literárias populares são “también el mundo del cine, de los consejeros
sentimentales, de los horóscopos: espacios de uma imaginación regulada, que no pretenden
reflejar las regulaciones reales” (p.26). Da mesma forma, as notícias do Diário Gaúcho não
se referem a esses desencontros de pessoas, separações e crimes, por exemplo, como um
problema efetivamente social, às vezes gerado na política e na economia, mas sim como um
acontecimento isolado e que produz medo, que invoca o absurdo, o patético e o emocional,
como é o caso de “uma orelha decepada por ciúmes”, matéria apresentada na edição de 11
de novembro de 2005. A reportagem conta que um homem, que teria sido traído pela
namorada, corta a orelha do rival. Dar a acontecimentos desse tipo um enfoque emocional
descontextualiza os fatos da sua problemática social e os insere apenas no plano individual,
como enfatiza Sarlo (idem, p.29) ao indicar que esses são: “...centrados sobre el
democrático mundo de la emoción”.
Seguindo com a leitura do jornal, destaco que figuram no Diário Gaúcho, além das
informações que circulam em forma de notícia propriamente dita, como um gênero
jornalístico, algumas temáticas consideradas de interesse popular sob a forma de “notas” e
“colunas” de serviços. Na página 2, por exemplo, temos a indicação de O santo do Dia
70
nessa também se descreve o santo do dia, no caso do texto, São João Fischer, conta-se
algum aspecto importante de sua história, o que lembra um pouco os almanaques ou os
calendários as chamadas “folhinhas”, que circulavam entre a população mais
intensamente até os anos de 1950. Além disso, na mesma nota, é fornecido um número de
telefone para que o leitor interessado saiba mais sobre o santo do dia, que pode ser o seu
santo padroeiro. na editoria de variedades (página 17), nos deparamos com a coluna do
professor Nathanael, que apresenta presságios, simpatias, e também respostas diretas às
solicitações dos leitores, e esclarecimentos sobre o anjo do dia, além do tradicional
horóscopo. Nesse caso, marca-se o interesse popular pela religião e pelas soluções
esotéricas para os seus problemas diários. Não é novidade aparecerem na mídia reportagens
e programas que vinculam a população mais pobre às romarias, aos pagamentos de
promessa, às procissões e a outros ritos religiosos, fazendo uma conexão entre crenças
simples e espíritos mais puros, indivíduos mais ingênuos e mais carentes de uma vida
material mais confortável, apresentando como possível solução justamente o não material.
Também aí, as simpatias, as adivinhações e outras do gênero estariam “a serviço” da
esperança e das realizações que não vêm por meios naturais nas relações de trabalho.
Na contracapa, parecendo até uma pequena reportagem pelo seu formato, em uma
seção intitulada Faça você mesmo, dicas, na edição de 22 de junho de 2005, de como
modificar as próprias roupas, gastando pouco. O que, novamente, parece se evidenciar aqui
é a tendência para localizar o público do jornal como necessitado de dicas para se safar dos
problemas mais rotineiros eles precisam aprender a improvisar, a valer-se do que têm a
mão para sanar suas necessidades. Tais dicas e sugestões limitam-se a lidas domésticas, a
trabalhos manuais e sem técnica especializada ou, pelo menos, não reconhecidas como uma
forma de know-how, o que também tira essas pessoas do mercado de trabalho cada vez mais
exigente em nível de escolaridade e de preparo técnico, além, é claro, de a matéria
apresentar uma evidente recomendação para se “lidar” bem com o dinheiro que se tem.
Assim, o próprio jornal, além de um instrumento de informação, estaria ajudando
(ensinando) a poupar, a saber gastar o (pouco) dinheiro, única forma de sobreviver nessas
circunstâncias difíceis em que se insere esse leitor.
71
5.3 O Diário Gaúcho “ajudando” o povo a resolver problemas do cotidiano
Algumas seções do Diário Gaúcho poderiam ser configuradas como prestadoras de
serviço ao seu leitor. É claro que a prestação de serviços é uma das atribuições do
jornalismo (como vimos anteriormente), mas, nesse caso, trata-se de uma prestação de
serviços a meu ver muito especial, pois o DG parece querer "ajudar" o seu público na
resolução de seus problemas diários, naquilo que é usualmente referido como a “luta pela
sobrevivência”. Nessa direção, o jornal publica colunas que sugerem "soluções" para
aqueles problemas que julga serem vividos pelo leitor: promovem encontros entre
familiares queo se vêem muito tempo; apontam medidas que permitiriam aos leitores
economizar o seu dinheiro; dão dicas para melhorar a vida doméstica etc. Enfim, o jornal
constitui-se, dessa forma, numa espécie de consultoria, onde o leitor encontra alento e
propostas práticas de solução para dificuldades que vão sendo marcadas no jornal como
próprias ao seu cotidiano.
Tal “ajuda”, segundo pude perceber em minha análise, transita em dois campos da
vida cotidiana: uma, que diz respeito a problemas materiais do dia-a-dia, como as
dificuldades financeiras e a busca de emprego, por exemplo; a outra, que atinge as
"necessidades" do indivíduo na sua afetividade e até mesmo na sua espiritualidade, como é
o caso das soluções voltadas a minimizar a solidão de leitores idosos, bem como a mitigar
problemas amorosos, entre outros.
A seguir, passo a analisar um pouco mais detidamente esses dois âmbitos,
apontando os setores do jornal que lidam com aspectos que qualifiquei como materiais e os
que tratam daquele aspectos que considerei serem mais próprios ao domínio espiritual ou
emocional, lembrando que algumas seções do DG contemplam, ao mesmo tempo, essas
duas direções, que tentei separar para facilitar a indicação de aspectos que coloquei em
destaque em minhas análises.
72
5.3.1 Definindo os aspectos que envolvem sobrevivência
Em coluna intitulada Venda o seu peixe, geralmente localizada na página 27, o
Diário Gaúcho abre espaço para os que estão procurando emprego oferecerem seus
serviços. Para tanto, divulga uma foto em tamanho 3x4, focalizando o rosto do candidato, e
um breve currículo que inclua sua experiência profissional e formação. A referida coluna
termina com um apelo público, colocando-se como uma espécie de “amigo” do trabalhador,
preocupado com ele e que, por isso, convida o público em geral a colaborar com o
solicitante com a mediação do “jornal”. O convite é: Se você quiser ajudar, entre em
contato com o Diário Gaúcho pelo telefone xxxxxx. (Diário Gaúcho, 12 de novembro de
2004). É interessante indicar que em edições posteriores (as analisadas nos anos de 2005 e
2006), o jornal excluiu essa frase da seção, tendo passado a instruir o leitor a como enviar
sua apresentação pessoal para a coluna. Mesmo assim, a coluna Venda o seu peixe foi
mantida pelo jornal, tendo sido acrescentada na mesma página, uma outra, chamada de
Espaço do trabalhador, em que são divulgadas oportunidades de emprego na região da
Grande Porto Alegre.
É consenso entre os jornalistas que a capa, a contracapa e a página central são os
espaços nobres do jornal por serem, geralmente, os mais visitados pelos leitores. A
contracapa do DG apresenta, invariavelmente, uma matéria que ocupa praticamente 80% da
página e trata de temas do tipo faça você mesmo: nela são publicadas, normalmente,
pequenas reportagens que contêm, por exemplo, dicas de culinária, de costura, de trabalhos
manuais em geral, sempre com a característica de enfocar a possibilidade de o leitor “fazer
economia”, de ajustar melhor suas finanças pessoais e isso inclui sugestões sobre o
reaproveitamento de roupas, bem como de utensílios da casa e, ainda, de substituição de
alguns alimentos por outros, de menor preço, mas de mesmo valor nutritivo, que permitam
cozinhar de forma mais barata etc.
Isso pode ser visto, especialmente, em um espaço publicado na edição de número
1613, de 22 de junho de 2005, mencionada no início deste capítulo, cujo propósito era
ensinar aos leitores a como reaproveitarem roupas usadas, valendo-se de “apliques” ou do
73
tingimento para enfeitar a peça ou esconder imperfeições. na edição de número 1735, de
11 de novembro de 2005, a matéria da contracapa não ensina especificamente algum
"truque" para economizar, mas oferece como brinde, um jogo de taças para sorvete e de
copos para suco – utensílios domésticos que o jornal vai configurando como necessários, ou
como objetos de cobiça, para seus “simplórios” leitores. Para ter direito ao kit, o leitor
deveria juntar 60 selos publicados diariamente em cada edição do jornal. Ou seja, seria
preciso adquirir 60 exemplares seqüenciais do jornal para ter-se direito ao brinde, que é
valorizado pelo depoimento de alguns leitores previamente consultados. A matéria traz o
depoimento de duas pessoas do Bairro Lami, periferia de Porto Alegre, que elogiam e falam
da praticidade e da beleza das taças e dos copos. Na fotografia que acompanha o texto,
dona Laci e seu Delci (o jornal identifica esses sujeitos anteriormente desconhecidos da
maior parte dos leitores, colocando-os em destaque para divulgar o brinde oferecido e,
também, o jornal) estão saboreando um "delicioso" sorvete nas taças do kit. É
interessante registrar que o casal é idoso e tem uma fisionomia simpática, eles representam
"bons tios" ou "bons avós" e estão sentados atrás de uma mesa coberta com uma toalha
xadrezinha de vermelho e branco: a ambientação transmite uma sensação de aconchego,
como se estivéssemos em nossa casa, mas ela reafirma, também, a simplicidade desses
sujeitos que vivem na periferia da cidade e para quem o kit permite viver um momento de
felicidade e de bem-estar propiciado pela fidelidade à leitura do DG. Assim, não é difícil
notar, nessa matéria, bem como em outras que aponto ao longo desse estudo, como o DG
não só vai se colocando ao lado do público-leitor como um amigo, alguém que olha por ele,
que o defende, mas, também, como vai representando seus leitores como sujeitos de hábitos
e aspirações “simples” e pouco ambiciosos. Além disso, valendo-se dessas estratégias
representacionais, o jornal vai se configurando como perfeitamente sintonizado com os
interesses daqueles que pensa serem os seus leitores – os sujeitos pertencentes às chamadas
classes populares.
Dando prosseguimento ao que venho argumentando, registro que, geralmente na
página 14 o DG publica várias pequenas colunas agrupadas em um quadro. Essas recebem
títulos como: Meu sonho é..., Onde anda você?, Casos do outro mundo.
Em Meu sonho é, os leitores escrevem comunicando suas aspirações mais urgentes.
74
Nas edições analisadas, constatamos que tais sonhos são: pagar contas, ganhar objetos
considerados de alta necessidade - desde móveis, aparelhos auditivos, até brinquedos e
jogos, entre outros. Em Onde anda você? depoimentos de pessoas que tentam
reencontrar amigos, parentes, namorados. Ainda nessa mesma página, acompanhando as
colunas já mencionadas, está inserida uma coluna maior, intitulada Pede-se providência, na
qual os leitores publicam suas queixas relativas a problemas na sua rua, bairro ou cidade,
como buracos, acúmulo de lixo, barulho à noite, etc. Entre essas duas colunas, e
centralizada na página, consta sempre no jornal uma pequena reportagem cujos assuntos
envolvem, também, ajuda e solidariedade, bem como busca de reencontros, resolução de
problemas de saúde, entre outros.
Nas edições de 22 de junho de 2005, 4 de novembro de 2005 e 11 de novembro de
2005, respectivamente, as reportagens que ocuparam tal espaço intitulavam-se: Seu
problema é nosso (jovem com afonia não é atendido em hospital, mas, a partir da
reportagem, o hospital se dispõe a rever o caso); Feliz reencontro (relato do referido
reencontro de mãe e filho separados trinta anos, a partir da intermediação do DG, que
publicara a carta da mãe na coluna Onde anda você?); "Meu sonho é real" (relato de uma
doméstica que, após escrever para a coluna Meu sonho é..., conseguira realizar uma festa de
comemoração dos 50 anos de casamento de seus pais).
É possível incluir ainda nessa linha que estou configurando como de ajuda afetivo-
material prestada pelo jornal a seu público, uma pequena coluna publicada normalmente na
página 35, com o título Ajude a encontrar. Nela são divulgados retratos e dados pessoais de
desaparecidos, e apelos para que todos ajudem e informem o que for possível a respeito
desses sujeitos. Além disso, está localizada, na segunda página, uma outra coluna de
“dicas”, essas agora na área da saúde ou da linguagem ou ainda jurídicas. Ali aparecem
dicas e conselhos de nutricionistas, advogados e professores de Português (esses com
“dicas” e recomendações sobre o uso da linguagem, sendo interessante destacar que essa
ajuda ganha uma particularidade o jornal estaria auxiliando os leitores a se apropriarem
da norma culta da língua portuguesa).
As pistas que a análise de tais colunas e reportagens me fornecem indicam a
prevalência do uso de estratégias representacionais nas quais o DG se posiciona sempre
75
como estando “ao lado do leitor” – e o leitor está representado no jornal como tendo muitas
carências -, como um seu parceiro na “luta pela sobrevivência”. O jornal sugere dicas-
para que o leitor lide melhor com seus problemas financeiros, mas, ao mesmo tempo, o
responsabiliza pelo uso que faz do seu (pouco) dinheiro. Parece estar sempre implicada nas
sugestões dadas, a idéia de que os problemas do dia-a-dia podem ser resolvidos com
soluções criativas que envolvam reaproveitamento de bens utilizados (até por outros) e
um competente gerenciamento das (parcas) finanças. Além disso, o jornal concentra-se em
destacar suas ações de solidariedade e essas vão bem além das sugestões e dicas para os
problemas financeiros: buscam-se parentes, ex-amores, emprego, bem como a solução para
problemas imediatos um aparelho ortopédico para alguém que não possa andar, um
remédio não disponível através do SUS –, faz-se chamamentos aos poderes públicos para
que resolvam questões como saneamento etc. Enfim, o DG configura-se como parceiro para
um público que, em sua maioria, pertenceria às chamadas classes populares para quem esse
jornal novamente nessas seções parece claramente endereçar-se. O preço de capa do jornal
(R$ 0,60, ao tempo desta análise) é um outro importante indicador nesse sentido, mas,
além disso, os outros chamamentos – as ofertas de brindes ( jogos de panelas, de cafezinho
ou de copos, por exemplo) e mesmo os anúncios publicitários publicados no jornal, que se
concentram nos produtos de varejo (lojas anunciando fogões, cobertores, produtos para
cozinha e outros do mesmo gênero) reafirmam tal endereçamento. Cabe destacar, por
exemplo, que nas dez edições analisadas, não foram encontrados anúncios de automóveis e
que apenas em duas edições – as dos dias 4 e 11 de novembro de 2005 – encontrei
propagandas de motocicleta, certamente um veículo mais econômico e mais acessível. A
propósito, vale lembrar que em jornais como Zero-Hora e Folha de São Paulo, por
exemplo, páginas centrais anunciam apartamentos em bairros de classe média e alta.
Enfim, o que estou novamente pretendendo destacar é que, em todas essas matérias,
o DG vai-se caracterizando como popular, mas vai também definindo, valendo-se de
estratégias representacionais, quem são esses seus leitores “populares”, ao associarem o
popular à pobreza, à necessidade, às ausências (de coisas” materiais e de pessoas). O DG
opera, assim, nesse sentido, na configuração das chamadas classes populares, inscrevendo
(e circunscrevendo) o popular como uma "categoria" de desabonados, carentes e
desamparados, que precisam ser auxiliados a lidar com as vicissitudes que o seu cotidiano
76
lhes apresenta.
5.3.2 O jornal ensinando o “povo” a lidar com as emoções
As carências apontadas no item anterior situavam-se bem mais na direção da busca
do auxílio “material”, mesmo que uma forte conotação afetiva o interesse que o jornal
manifesta por seus leitores – precise ser sempre considerada. Mas há outras lacunas a serem
também consideradas e essas dizem respeito àquelas relacionadas à sobrevivência que
encontram alento no sonho, na esperança e até mesmo na fé. Nesse sentido, o Diário
Gaúcho também se faz presente, "estendendo a mão" ao leitor. Algumas seções do jornal
são dedicadas a questões que dizem respeito a crenças, problemas sentimentais,
relacionamento familiar, amoroso e profissional. Ou seja, o jornal lida explicitamente,
nessas seções, com uma outra ordem de “coisas” que não se restringem mais, apenas, às
carências materiais, ao colocar em pauta sonhos, expectativas, esperanças, inseguranças.
Ao mesmo tempo, o jornal vai configurando serem essas próprias a seus leitores,
alimentando as crenças, o desejo de buscar amparo na sorte, nas novas relações, na
melhoria das relações estabelecidas, pelo investimento na afetividade e na
espiritualidade.
A coluna Corações solitários, por exemplo, abre espaço para que o leitor publique
(e desse modo se apresente aos demais leitores) alguns de seus dados pessoais visando
encontrar alguém para se relacionar afetivamente. A cada edição do jornal são publicadas,
geralmente, quatro notas que descrevem quatro leitores selecionados e que têm divulgadas
algumas formas de contatá-los, como endereço e telefone. Transcrevemos a seguir uma
dessas notas publicada na edição de 4 de novembro de 2005 do DG:
Sou viúva, morena clara, da terceira idade. Tenho 1,55m, 58kg. Gosto
de passear e curtir as coisas boas da vida. Quero conhecer um homem
de 69 a 70 anos, viúvo ou divorciado, que ainda esteja inteiro, sem
vícios, com situação financeira definida, de preferência da Grande Porto
Alegre. (p.17)
Diário Gaúcho, 04.11.2005
O jornal abre espaço, desse modo, para que pessoas carentes (e essa carência aqui
77
inclui especialmente a dimensão afetiva), mais uma vez presumidamente pobres, porque
precisam da intermediação do jornal para promoverem seus encontros, busquem, através do
DG, encontrar oportunidades de resolver sua vida afetiva.
Na mesma página encontrei, em todas as edições estudadas, um outro espaço
dedicado ao contato direto com o leitor trata-se da coluna Falando de amor, que presta
aconselhamentos aos leitores que a ela relatam seus problemas no campo dos
relacionamentos amorosos. Na coluna Corações Solitários o DG abre espaço para a
apresentação de leitores que buscam estabelecer contatos com outros leitores que por eles
se interessem. Nessa, o leitor relata seus problemas, suas incertezas e indecisões e a
colunista
4
do jornal o escuta, expõe seus problemas ao público em geral e responde
aconselhando, advertindo ou incentivando a tomada de certas decisões (a colunista não está
respondendo apenas ao consulente, mas a todos os leitores da coluna que identifiquem sua
situação como semelhante à relatada). Para deixar mais claro o teor das consultas feitas e
das respostas dadas, indico tema tratado na edição de 4 de setembro de 2005, quando uma
leitora conta que conheceu alguém a quem ela se refere como "Gatinho peludo", por quem
se apaixonou. A recomendação da colunista é de que a leitora tenha cuidado e que não
"fantasie" demais. E também em outra, feita em 12 de novembro de 2004, na qual uma
leitora pergunta o que fazer com a dor de perder alguém. A resposta da colunista é que ela
tenha paciência e que procure ver o problema como um aprendizado pelo qual temos que
passar. Ou seja, nas situações indicadas, os conselhos implicam cautela ou conformação.
em uma outra coluna intitulada Falando de sexo, o caráter mais sentimental abre
espaço para um tipo de colaboração que apela ao conhecimento especializado ao abordar,
especialmente, “problemas” ligados aos relacionamentos sexuais. Nela são tratados, embora
superficialmente, assuntos como cirurgia de fimose (3 de abril de 2005), vasectomia (4 de
novembro de 2005), gravidez na adolescência (15 de julho de 2006), câncer de próstata (12
de novembro de 2004), entre outros. A coluna procura legitimar o tratamento dado aos
temas, buscando, para tanto, o auxílio de profissionais das áreas em questão. Os
comentários sobre a cirurgia de fimose, por exemplo, foram organizados a partir dos
4
Quem assina a coluna é Isabella Fernandez.
78
esclarecimentos de um urologista, que explicou os procedimentos realizados em cirurgias
desse tipo. A matéria traz a indicação do endereço e do telefone do profissional consultado
(ou seja, nela também se faz um tipo indireto de propaganda...). Nessa coluna, pode-se
perceber, como indiquei, uma preocupação com o fornecimento de respostas oficiais,
com a busca de caracterizar a informação como idônea, com o uso de estratégias que
forneçam credibilidade à informação jornalística, o que não é percebido por exemplo, na
seção que comentei anteriormente. Naquela seção, tratava-se de sentimentos paixões,
saudades, amor , aqui trata-se da sexualidade. Assim, o jornal, mesmo encaminhando-se
pelas vias do atendimento a aspectos mais voltados à dimensão dos “problemas”, dos
afetos, da sentimentalidade e da exploração da emotividade e até, algumas vezes, da
ingenuidade de seus leitores, mantém o caráter jornalístico de objetividade, em algumas
colunas, ao trabalhar com dados e com fontes credibilizadas. Isso provavelmente soma
pontos a favor do veículo e o torna ainda mais "confiável" diante da opinião pública,
embora seu leitor, em princípio, não desconfie do jornal.
Uma outra coluna, denominada Presságios do professor Nathanael atendendo a
um princípio jornalístico de que informações afins devem vir agrupadas para facilitar a
leitura vem sempre localizada na gina seguinte àquela em que se encontram as colunas
Falando de amor, Corações solitários e Falando de sexo. Nesse espaço, cita-se alguém
famoso que esteja de aniversário, e a partir daí passam a ser descritas as características das
pessoas nascidas nesse dia. Aqui o que está em destaque é o “poder” dos astros, mas joga-
se, também, com a identificação do leitor comum com os famosos” que aniversariam no
mesmo dia que ele. Dessa forma, promovem-se aproximações entre esses anônimos leitores
e os “astros” e “estrelas”, emprestando-se de certa forma aos leitores um pouco do brilho
daqueles. Cabe destacar que as orientações dadas nessa coluna são gerais, mas nela há,
também, recomendações acerca de como balizar ações diárias, a indicação de
oportunidades (regidas pelo astral) que precisam ser consideradas a partir de uma incursão
ao território do desconhecido muitas vezes marca-se como o futuro até poderia ser mais
bem aproveitado pela consideração de conselhos bem amplos tais como: “seja mais
ousado” ou, então, “seja mais cauteloso com amizades e oportunidades”, por exemplo.
Associadas a essa coluna são também publicadas "simpatias" que poderiam auxiliar o leitor
na conquista de objetivos diversos (emprego, namoro, sucesso). Além disso, são indicados
79
também números da sorte para aquele dia e, finalmente, uma seção que faz análise de
sonhos: o leitor conta seu sonho para o jornal, e o professor Nathanael o interpreta como na
edição de 4 de novembro de 2005:
Leitor - Sonho muitos anos que estou pescando e que pego muitos
peixes. Gostaria de saber o que pode significar.
Resposta - Sonho de bons presságios, indicando sucesso nos
empreendimentos (p.20).
Diário Gaúcho, 04.11.2005.
Mais uma vez, textos genéricos são usados para falar-se de soluções que podem ser
situadas no campo do imaginário e das utopias.
A mesma página encerra com o horóscopo do dia. Devemos lembrar, ainda, que a
"disposição" do DG em "auxiliar" e "orientar" o seu leitor nas suas buscas de solução,
mesmo que essas sejam, muitas vezes, esotéricas, não se limita às páginas onde se
concentram as colunas acima observadas. Na página 2 do jornal (como referi),
encontramos a indicação do santo do dia, com uma breve descrição dos seus feitos e "para
que serve" rezar por ele. Enfim, o jornal atende a todas as crenças e invoca devoções de
diferentes naturezas.
5.4 Vivendo a vida dos ricos e famosos
Continuando a análise da linha editorial do Diário Gaúcho, pode-se perceber um
outro viés através do qual o popular vai sendo configurado: o Diário discorre com bastante
sistematicidade sobre o mundo do glamour e das celebridades e, para tanto, entra na vida
dos ricos e famosos, dos que estão freqüentemente expostos na mídia e, principalmente, na
televisão. O jornal, ao mesmo tempo em que configura o povo como sendo os
“desabonados”, os mais pobres (aspectos que vimos nos itens anteriores), também se
autoriza a determinar alguns desejos, sonhos e interesses que o público ao qual se dirige
possua. Ou seja, nessa focalização, o texto opera, especialmente, e novamente, com o
contraste, ao destacar modos de vida que diferem bastante da vida diária desses sujeitos
populares. O que aparece na página central do DG, em todas as edições analisadas, são
80
pequenas notícias ou notas sobre artistas, atuem esses na música, no cinema ou na TV (são
estes os que freqüentam mais assiduamente essa coluna). O jornal percorre detalhes que
envolvem a vida dessas celebridades entra em suas casas, nos seus automóveis muitas
vezes luxuosos, no seu mundo de negócios, nos seus projetos, bem como nos seus
momentos de diversão e em suas relações amorosas, como veremos mais adiante.
É interessante indicar que na apresentação dessas notícias um constante jogo de
contraposição: ao mesmo tempo em que o jornal aproxima os famosos do público, porque
mostra que eles também têm uma vida comum passeiam, namoram, m problemas em
seus relacionamentos e obrigações na exuberância das fotografias, dos ambientes em que
são flagrados e pelos assuntos que muitas vezes envolvem limousines e palácios, e
principalmente por tratar de pessoas que são vistas através, por exemplo, da televisão,
tornam esse mundo ainda mais distante daquele que é vivido pelos leitores do jornal,
representando-o como uma espécie de conto de fadas, onde tudo parece ser fácil, acessível
e, onde, ainda, de repente, algo pode acontecer e definir um novo rumo para a vida.
As duas ginas do DG dedicadas a esse tipo de notícia, que equivalem ao que se
pode chamar de uma editoria (em jornalismo: um setor do jornal que concentra informações
da mesma área), recebem o título de Retratos da Fama e apresentam aspectos e
curiosidades da vida íntima dos famosos; informações de determinado ator ou atriz, que
lembram bastante aqueles questionários para adolescentes, muito em voga até os anos
1970: se namora ou não, do que tem medo, do que mais gosta, quem é seu ídolo no
momento, que mensagem gostaria de deixar para os seus fãs etc. Este setor do DG explora
também o que as celebridades fazem em termos de empreendimento: no que investem seu
dinheiro, como está relatado na edição de 11 de novembro de 2005, em uma nota intitulada
Negócio mineirinho. Nela se informa que Joana Prado, a atriz que fazia a performance de
"Feiticeira" na TV Bandeirantes de São Paulo, está abrindo um centro de estética para
gestantes, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Nessa mesma coluna, o jornal explora a "vida
amorosa" dos ricos e famosos: seus namoros, casamentos, divórcios, bem como as cenas
íntimas os flagrantes nas discotecas, praias isoladas e outros lugares freqüentados pelas
celebridades e seus amigos.
No que se refere aos namoros, por exemplo, as preferências das matérias são para as
81
situações relativas ao término dos relacionamentos, as revanches e as novas relações
amorosas. Na edição de 11 de novembro de 2005, uma notícia informa que Ana Maria
Braga (uma rica e muito conhecida apresentadora de programas matinais da Rede Globo de
Televisão) está "ficando" com o jogador brasileiro de futebol Roberto Carlos, do Real
Madri e da Seleção Brasileira. O texto até brinca ao fazer uma advertência à Ana Maria:
"Cuida, Ana, que o homem chuta forte" (p.16/17). Para exemplificar melhor a conformação
que assumem tais notícias, trago, ainda, mais dois excertos extraídos da mesma edição de
11 de novembro de 2005:
Pintou um climão!
Mais um namoro que começou na ficção passou para a realidade. Ao
que tudo indica, Duda Nagle, o Radar de América, engatou namoro com
Luana Carvalho. Filha da cantora Beth Carvalho, a bela interpretou
Sheila, a paquera do seu personagem no final da novela.
Duda, filho da apresentadora Leda Nagle, fez seu primeiro trabalho de
sucesso na telinha como o Peteca, de Malhação. Em seguida, integrou o
elenco da novela Agora é que são elas, todos na Globo (p.16).
Namoro vai...
Alinne Moraes e Cauã Reymond terminaram o namoro de três anos,
tempo em que dividiram o mesmo teto. A informação foi confirmada pela
assessoria de imprensa da beldade.
Sempre juntos, os atores globais constumavam chamar a atenção dos
fotógrafos nas festas da emissora, quando dançavam grudadinhos.
Alinne vive Penny Lane em Bang Bang, e Cauã, o garoto de programa
Mateus em Belíssima. A assessoria da atriz garante que eles continuam
amigos (p.16).
Diário Gaúcho, 11.05.2005
Esse quadro em geral, ao concentrar-se em tal tipo de informação, de forma
sistemática, vai configurando uma outra característica daquilo que o DG apresenta como
sendo o gosto popular: essa corresponderia ao gosto pela fofoca, pelo conhecimento da
privacidade do outro, notadamente por esses que são os heróis desse nosso tempo os
atores e atrizes das telenovelas - e, além disso, o gosto pela superficialidade da informação,
pela notícia trivial, corriqueira. Enfim, o gosto por aquelas notícias que não envolvem a
discussão de questões morais, éticas etc. Pode-se dizer, ainda, que o jornal usa o mundo do
espetáculo (as pessoas que freqüentam ou produzem o cinema, a televisão etc) para também
82
divulgar um outro espetáculo, o dos bastidores. Além disso, entra em questão o modo como
o jornal se vale disso para vender seus exemplares enfim, misturam-se nessas notícias
interesses de diferentes ordens. Nesta página central do jornal, não se comenta o filme, o
disco ou o show realizado por esses artistas, o que também é tema de interesse jornalístico;
nela o foco principal restringe-se à vida dos artistas, seus dramas, sucessos, privacidade etc.
Quanto a isso, porém, faz-se uma exceção para as novelas. Além delas
predominarem no palco de um espetáculo que se conta também nas páginas gerais, é
possível dizer que é do mundo das novelas que sai a maior parte da "matéria-prima" para
essa página. Com freqüência, o jornal comenta o próprio capítulo, ou uma determinada
cena, ou até mesmo uma determinada trama, dando, inclusive, pistas ao leitor dos próximos
passos a serem seguidos por essa ou aquela personagem. Nessa linha um ápice quando,
em edições do jornal que coincidem com capítulo final de novela, a editoria Retratos da
Fama dedica a isso todo o seu espaço. Disso temos um exemplo recente: na edição de 7 de
julho de 2006 que coincidiu com o final da novela Belíssima, da Rede Globo, a página
central foi toda dedicada à novela. Comentou-se e especulou-se sobre os cinco finais
possíveis da novela, bem como apresentou-se uma enquete com o público sobre esse último
capítulo, além de fotos, muitas fotos dos atores e de cenas da novela. É interessante
ressaltar que entre os entrevistados do DG havia dois delegados de polícia de Porto Alegre,
RS, que opinaram sobre o possível assassino que seria desmascarado no final da novela. O
cruzamento com a realidade (nesse caso a opinião de profissionais) marca aqui, novamente,
a preocupação em apontar ao leitor a verossimilhança do que sucede na ficção com a
realidade, "amarrando em uma teia" seus assuntos pessoais, suas emoções e interesses e o
que sucede nas histórias contadas nas novelas que ocupam espaços de destaque em tantas
modalidades de mídia – os jornais, as revistas e a própria TV.
5.5 O escracho como sinônimo de popular
A terceira abordagem específica que passo a fazer agora do Diário Gaúcho diz
respeito às notícias que envolvem crimes ou que apelam a um sentimentalismo, usualmente
qualificado como “barato”, grosseiro, ou, ainda, piegas, que provocam tantas vezes o que se
83
poderia chamar de um "senso do trágico". Destaco que nessas matérias o interesse humano
e a solidariedade são transformados, muitas vezes, em compaixão com o intuito de comover
o público que se mobiliza com a tragédia narrada em uma dimensão mais individualizada
por aqueles por ela atingidos. E coloco mais uma vez alguns aspectos da linguagem
utilizada pelo jornal, que, somados às temáticas do crime e do sentimentalismo, constroem
uma outra configuração do popular, diferente daquelas anteriormente abordadas, nas quais
o povo, ou os sujeitos populares eram configurados como aqueles que precisam de ajuda
para sobreviver, e também como aqueles que se interessam pela vida privada das pessoas
famosas e artistas. Nas notícias que passo a referir agora, uma outra configuração de
"povo” construída pelo jornal e, nessa direção, o popular estaria não apenas ligado ao
sentimentalismo piegas, mas, também, ligado ao escracho e ao mau gosto.
Algumas das considerações apontadas aqui foram de alguma forma analisadas na
primeira parte deste capítulo, quando me detive no tipo de linguagem geralmente utilizada
pelo Diário Gaúcho. Farei, agora, uma abordagem mais detalhada de uma das dez edições
examinadas neste trabalho, buscando aprofundar um pouco mais as minhas considerações
iniciais.
A linguagem de que se vale o DG, seja no setor de variedades ou no de polícia, ou
até mesmo em suas outras colunas, contém, em muitos momentos, expressões consideradas
grosseiras, pelo menos se as compararmos às utilizadas na língua culta padrão. São termos
irônicos, algumas vezes, mas em outras jocosos, debochados, que denotam até um certo
descaso com a própria qualidade do texto. Como indiquei anteriormente, o jornal tenta
visivelmente valer-se daquela que considera ser a linguagem do povo, bem como dar
destaque a aspectos que ele considera serem de interesse do povo. Aliás, é uma tática do
jornalismo falar a linguagem daqueles que são considerados pelos editores como “o seu
público”. Assim, uma revista especializada em surf, por exemplo, preencherá suas
reportagens com gírias e um linguajar próprio àquele grupo a quem se endereça. Trazendo
um outro exemplo, seria impensável que uma revista especializada em skate falasse de
balança comercial ou utilizasse termos como dumpping, superavit etc. O DG dirige-se a seu
público na linguagem que considera poder ser entendida por seus leitores vale-se de uma
linguagem que visa “ganhar” leitores e prendê-los ao texto, tentando deixá-los à vontade.
84
Novamente destaco: a busca pela linguagem popular é a regra no jornalismo, é o
padrão. O jornalismo busca colocar em prática uma leitura que sai dos livros (veículo mais
elitizado) para cair no domínio de todos. Um jornal é lido no bar da esquina, na
universidade, no hospital, no campo de futebol, no Congresso Nacional. Precisa, portanto,
valer-se de uma linguagem praticamente universal, que atinja a todo esse público que o
em tão diferentes situações e lugares. Nesse sentido, algumas normas são estabelecidas,
para garantir que a comunicação se faça de forma clara e precisa. Lage (1985, p.38) mostra
uma pequena tabela de equivalências entre termos de mesmo significado, utilizados na
linguagem formal, coloquial e jornalística, que apresento abaixo, após ter feito algumas
adaptações:
FORMAL JORNALÍSTICO COLOQUIAL
1. próximo a Perto de
perto de
2. mora à rua X Mora na rua X
mora na rua X
3. edil Vereador vereador
4. concomitante ao mesmo tempo ao mesmo tempo
5. homossexual Homossexual veado, bicha
6. o marido de o marido de o homem de
7. esposa Mulher Mulher
8. denegou Negou Negou
9. prurido Coceira Coceira
10. perfunctório Superficial Por alto
11. neoplasia Câncer Câncer
12. indigitado Acusado Acusado
Tabela 1. Exemplos de termos e expressões utilizadas nas linguagens formal, jornalística e
coloquial, adaptada de Lage (ibid).
Como vemos, ao texto jornalístico caberia escolher o caminho do meio, com
tendência ao popular, mas com equilíbrio, para que todos os tipos de público sejam capazes
85
de entender rapidamente o texto. Cair na coluna da esquerda aproximaria o texto do
pomposo e do pedante, características essas condenadas no meio jornalístico. Cair em
alguns casos na coluna da direita corresponderia ceder ao escrachado, ao mau gosto e ao
agressivo. Os jornais chamados de populares ou sensacionalistas se encaixam nesta última
categoria, isto é, no que se refere à linguagem são aqueles que escolhem o termo que, mais
do que popular, é geralmente de mau gosto. Por exemplo: qualquer jornal da chamada
grande imprensa, como Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e outros, referiria o
termo homossexual. No jornal Notícias Populares, de São Paulo (sensacionalista), não é
raro aparecerem manchetes do tipo Traveco é assassinado na Paulista, Bicha arma barraco
no Centro e outras que se valem de expressões semelhantes.
A seguir, indico mais algumas expressões utilizadas pelo Diário Gaúcho e que
também vão mostrando o escracho na linguagem. É interessante ressaltar que as dez
edições que examinei valem-se de recursos lingüísticos bastante semelhantes; coloquei em
destaque, no entanto, expressões retiradas da edição de 7 de julho de 2006, por considerá-
las relevantes para esta análise: o condutor foi conduzido (a notícia apresentada indicava a
prisão de um rapaz e sua motocicleta pela Polícia Militar; p.32), toma uma tunda (a notícia
refere o que ocorre num jogo de futebol entre o Grêmio e a Ulbra, no qual o Grêmio foi
derrotado; capa), sestrosa (referência a uma leitora desconfiada com a compra de carne de
frango, devido à doença que atacou esses animais no interior do Estado; p.7), eles não se
bicam (falando da final da Copa do Mundo de Futebol de 2006, entre as seleções da França
e da Itália; p.10), fiasco (novamente mencionando a derrota do Grêmio para o time de
futebol da Ulbra; p.12), manja o entrevero (ainda sobre a matéria do futebol, agora como
legenda da foto em que aparecem jogadores disputando a bola; p.12), levou uma sova
(idem; p.12), gororoba (indicando a falta de estratégia de jogo do meio-campo do time do
Internacional, ao criticar o trabalho do treinador da equipe, Abel Braga; p.14), Rafa se
safou (notícia sobre a intoxicação alimentar sofrida pelas candidatas ao título de Miss
Universo, num jantar em Miami, problema do qual escapou a candidata brasileira, Rafaela
Zanela, por não ter ido ao evento; p.16), esquisitão (referência ao ator Luiz Melo cujo
personagem se veste de mulher na novela Cobras e Lagartos, da Rede Globo; p.16), o
grego pinta de bandido (sobre o personagem de Toni Ramos, da novela Belíssima, da Rede
Globo; capa), Playboy e o véio te amam (legenda da foto da modelo Ana Paula Moraes, que
86
pousou para a revista Playboy; p.19), o cara não envelhece (ao falar do cantor de música
popular, Jair Rodrigues; p.23), Érica foi pra cama com o padrasto (comentando uma cena
da novela Belíssima, da Rede Globo; p.24).
Lembro, novamente, que os jornais dessa linha muitas vezes escolhem tal
linguagem para poderem se aproximar do leitor, por acharem que, desse modo, estão
exercendo uma comunicação mais eficaz; penso ser possível dizer que essa é uma visão
muito mais mercadológica do que ideológica, social ou de qualquer outro tipo. No entanto,
penso que ao fazê-lo as editorias estão sim contribuindo para a perpetuação desse universo
lingüístico, porque todo o termo usado na mídia ganha força, notoriedade, destaque, e
muitos deles se consagram. Mais uma vez se ensina que ser do povo é falar assim e mais
uma vez se consagra o popular (como já nos apontava Martin-Barbero (2003), invocado em
capítulos anteriores) como uma falta, como aquilo que não é; nesse caso configura-se o
povo como iletrado, tosco, rudimentar, e se banalizam sentimentos, tragédias etc, pelo uso
de expressões grosseiras.
5.5.1 O mundo do crime e da tragédia
É normal os jornais diários apresentarem uma editoria de polícia onde são notícia os
fatos que envolvem o crime. No caso do Diário Gaúcho, essa editoria assumiu proporções
maiores, na medida em que ocupa aproximadamente 30 % do conteúdo editorial do jornal.
Esse espaço aumenta consideravelmente se somarmos as situações que envolvem tragédia,
mas que não são necessariamente ligadas ao crime, como é o caso dos acidentes,
catástrofes, etc. Ou seja, o popular fica associado nessas situações ou ao interesse pelo que
ocorre no submundo ou pelas desgraças.
Observemos alguns títulos destacados das edições estudadas: Preso médico suspeito
de mandar mutilar rival, Jovem escondia dinamite no quintal, Dois jovens são mortos a
tiros, Fugitivo assassinado em São Leopoldo, Açougueiro mata ex-mulher (11.11.05);
Taxista morto no norte gaúcho, Autora de crime confessa após 19 anos, Assassino levava
mulher morta no carro (04.09.05); Três mortes em acidentes, Tiros e dois feridos em roubo
87
a mercado, Carroça levava 1,5kg de maconha (16.07.05); Traficante negociava por
telefone, BM mata homem na Zona Norte, Homem atropela e atira em ladrão, PM reage a
assalto e mata ladrão a tiro, Fogo mata três jovens (07.07.06); Acidente acaba em morte a
tiros, Vigaristas aplicam golpe, Assalto deixa vigilante ferido em Caxias do Sul, Motorista
de táxi é morto com cinco tiros em Gravataí (04.11.05).
As notícias em questão relatam fatos que ocorreram. Como também afirmei, é
dever de ofício do jornalista informar o público sobre elas. O que norteia esta análise,
todavia, é a intenção de mostrar a concentração de matérias desse tipo veiculadas pelo
Diário Gaúcho e a freqüência e o destaque que o DG lhes confere. É a intenção de também
indicar como isso acaba diferenciando e identificando esse jornal, enquadrando-o no rol dos
jornais de cunho sensacionalista, para os quais a matéria criminal ou trágica é mais do que
simples fato a ser informado, mas beira a uma espécie de atrativo do veículo jornalístico,
como se esse dissesse: aqui é certo que você encontra isso que tanto lhe interessa e o
mobiliza.
5.5.2 "Humano demasiado humano"?
Existe um grupo de informações também pautadas em jornalismo, que trabalham
com fatos os quais se costuma chamar de interesse humano ou social. Nesse nível, qualquer
jornal costuma publicar uma reportagem sobre meninos de rua, sobre a precariedade dos
hospitais, sobre o abandono dos idosos, sobre vítimas de racismo, e assim por diante.
Costuma-se dizer nas faculdades de Jornalismo, que esse seria o verdadeiro jornalismo,
pois esse se preocupa com o social, acusa as injustiças, cobra decisões etc. Isso é o que se
espera que o jornal faça, atendendo a esse aspecto do “humano”; mas como se espera que o
jornal lide com o que vou chamar de o "demasiado humano"? Ou seja, com a ênfase
exagerada nesses aspectos ditos humanos (dó, solidariedade, compaixão etc)? Cabe indicar
que é muito tênue a linha que separa o jornalismo "engajado" do apelativo. Esses mesmos
fatos – as tragédias, os cataclismas, entre outros - são temas propícios para os apelos
emocionais, porque lidam com dificuldades humanas e com sentimentos.
88
O Diário Gaúcho traz reportagens nessa linha, mas a meu ver pendendo mais ao
apelo emocional do que à questão social. Vejamos, por exemplo o que está dito na edição
de 22 de junho de 2005. Nessa edição, o DG traz, nas páginas 4 e 5, uma reportagem
intitulada Paraguai é a vida dos sacoleiros, que fala sobre os brasileiros que cruzam a
fronteira e vão ao Paraguai comprar mercadorias baratas para revenderem no Brasil. Se um
jornal não sensacionalista tomasse esse tema como foco, a reportagem geralmente seguiria
o interesse mais social e trabalharia em cima da questão do que leva o indivíduo à
economia informal, ou passaria pelas questões de desemprego, pela economia e pela
política. A matéria em questão vai, no entanto, por um outro caminho: o foco é pessoal e se
concentra em determinada pessoa, dona Maria Natalícia Cardoso, de Alvorada, RS, que,
com 59 anos de idade, vai sozinha ao Paraguai e, apesar de dormir pouco e se alimentar
mal, consegue fazer suas compras. Segundo ela mesma diz: "Comecei 15 anos e foi
assim que sustentei meus filhos". E aos poucos a reportagem vai marcando uma vida de
necessidade, de sofrimento, de vitória pessoal e de luta que pode levar à comoção e à
compaixão, reforçadas por expressões como: "A viagem é um desafio à resistência física e
emocional", "O medo dos assaltos e de acidentes na estrada é constante", "A maioria dos
sacoleiros compra em atacadões itens de baixo preço. O lucro é feito de centavo em
centavo". A matéria é acompanhada da foto de dona Maria dormindo precariamente no
ônibus. Pode-se dizer, também, que a reportagem reforça a idéia de que é preciso trabalhar
com afinco para poder ter alguma recompensa, para melhorar as condições de vida e para
poder, tal como dona Maria Natalícia, sustentar os filhos.
Como essa, outras reportagens que focalizam vidas de sacrifício e de pouca
recompensa ganham destaque no DG. Transcrevo, apenas para referir mais algumas
direções implicadas nos aspectos que venho salientando, tulos de mais algumas
reportagens: Fé e cachaça na roda-viva das ruas, que fala sobre a vida de dois moradores
de rua de Porto Alegre (04.09.05); Não é fácil tirar leite da pedra, que comenta a vida dos
vendedores ambulantes (14.11.04) e Dedicação de Tia Lolô é premiada, sobre Losângela
Ferreira Soares, que desenvolve trabalho comunitário com crianças em Viamão (12.11.04).
Destaco, ainda, a seção Retratos de vida (publicada aos domingos), que, na edição
examinada, focalizava uma mulher de 30 anos de idade, vendedora de cosméticos e casada
com um jornaleiro, que tem dois filhos e ainda ajuda a sustentar a sobrinha de 12 anos e o
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irmão de 14 anos, portador de lesão cerebral (16.07.06).
Todas essas reportagens indicam a importância da solidariedade, da dedicação que
permite suportar a adversidade, além de colocarem em destaque as dificuldades vividas por
muitos desses sujeitos das camadas ditas populares.
E também a partir do exame das manchetes do DG já é possível indicar tais
representações. Lembro que ao principal título de notícia ou de reportagem de uma edição,
aquele que recebe destaque na capa do jornal, com fonte maior e em negrito, dá-se o nome
de manchete. As manchetes costumam dizer muito de um jornal ou revista, porque escolher
uma manchete para ocupar a capa implica determinar o que é mais importante, ou o que
deva ser lido primeiro, ou o que deva, enfim, receber naquele momento a atenção maior do
leitor. Para finalizar esta análise, deixo listadas aqui as manchetes das dez edições
analisadas, com a área a que pertencem:
Colorado joga por ele e pelo Tricolor (esporte; 17.10.04)
Afinal, quem salvou Vera? (polícia; 12.11.04)
Eles ganham a vida no grito (social; 14.11.04)
Vigília pela vida de João de Deus (comportamento e religião; 03.04.05)
Vida de sacoleiro (social; 22.06.05)
A vida em uma sacola (social; 04.09.05)
Beija ou não beija? (novela; 04.11.05)
Vingança macabra (polícia; 11.11.05)
Traficante usava esquema de telentrega (polícia; 07.07.06)
Fúria no trânsito (polícia; 16.07.06)
A partir desses títulos é possível perceber que assuntos pertinentes às três principais
editorias do jornal (esporte, polícia e coluna social) aparecem sempre na sua capa. Nesse
aspecto, o DG se coloca coerentemente nos moldes jornalísticos, porque a capa contempla
os principais setores do jornal. No entanto, uma visível preferência pelas notícias que
envolvem a editoria de polícia e também por aquelas que envolvem o apelo emocional,
marcando assim o sofrimento humano, geralmente associado a uma vida de perigo e de
dificuldades. Nas dez edições consideradas, a informação sobre esporte aparece uma
vez, e em outra abre-se espaço para um outro veículo da própria mídia, quando o tema
ressaltado é a novela. E, mesmo quando a edição de 3 de abril de 2005 fala da morte do
Papa João Paulo II, isso é feito com um enfoque predominantemente sentimental e
90
espetacular, falando das milhões de pessoas que aguardavam em prantos o desfecho de seu
estado crítico de doença.
A partir de todas as considerações que fiz ao longo deste capítulo, penso ser
possível afirmar que o Diário Gaúcho trabalha dentro de uma orientação conhecida como
sensacionalista e que nele se marca que o seu público prefere e busca por informações
desse tipo. Além disso, o seu endereçamento fica muitas vezes caracterizado como voltado
àqueles que pertencem às camadas que têm acesso restrito a bens materiais, à saúde, à
informação e ao conhecimento de um modo geral e àqueles que precisam de ajuda de
diversas ordens, bem como possuem gostos “duvidosos”, são curiosos, esperançosos,
desejosos de viver a vida dos ricos e famosos, mas que também gostam de consumir
notícias de crime, de tragédia e de fofocas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pedagogia, como nos apontaram autores como Kellner, Giroux e Steinberg, entre
outros, não está restrita ao âmbito escolar e às "classes", onde os professores transmitem
informações a seus alunos. Além dessa consagrada instância da escola, pode-se considerar
que muitas outras formas de exercer-se uma pedagogia, outras formas de ensinar-se os
sujeitos, as quais se distribuem em uma malha complexa de relações e significados postos
em circulação, e em ação, em uma variedade de instâncias e produções da cultura.
A mídia jornalística, por exemplo, que foi o foco deste trabalho, atua nesse sentido,
mesmo sem assumir este papel explicitamente; ou seja, tal como a escola e outras
instituições das sociedades contemporâneas, ela também atua na configuração dos sujeitos e
os posiciona. Resulta disso, uma complexidade de significações e de ressignificações que
vão "moldando", ao lado de outras as tecidas nas próprias relações que praticamos em
nosso cotidiano , o nosso jeito de ser e de ver o mundo. Assim, é possível dizer que, por
exemplo, se sou professor, o modo como me represento como professor resulta de um
cruzamento de representações e de discursos com os quais tive contato ao longo de uma
trajetória: os professores que tive na infância e na adolescência; os comentários que ouvi a
respeito do ofício do magistério; as reportagens da imprensa que colocam o professor ora
como um indivíduo fraco, injustiçado pela sociedade, ora como alguém frustrado, ora
ainda, com atribuições e qualidades idealizadas tais como a de sempre lutar sem sucesso
pela educação de seus alunos pobres, carentes ou, ainda, rebeldes, representação essa
muitas vezes coincidente com as contidas em filmes norte-americanos que, tantas vezes,
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desenharam o professor como um herói responsável pelo sucesso de seus alunos. Enfim,
foram todos esses, bem como muitos outros significados, que teceram as representações
que tenho acerca de ser professor. Dessa forma, posso dizer que sou “produzidono meio
em que vivo, nas múltiplas interações que processo, mas, que, igualmente, também
participo da produção de significados ao colocá-los, de diferentes modos, em circulação.
Mas não trato, neste estudo, de questões tão individuais... Preocupado,
especialmente, com esses processos relacionados à produção de significados e com o modo
como essas significações têm sido apontadas como atuando na “produção”, "formação" dos
sujeitos, problemática essa que se associa especialmente ao processo conhecido como “a
virada lingüística”, escolhi trabalhar com um meio de comunicação de grande força e
circulação junto aos chamados grandes públicos, o jornal, para estudá-lo como uma
pedagogia. Isto é, para mostrar como ele vai ensinando aos públicos sobre muitas “coisas”,
ao colocar determinadas idéias em circulação, bem como ao eleger alguns assuntos e
pessoas para pôr em destaque. Apoiado nos Estudos Culturais, busquei fazer uma análise de
algumas edições do Diário Gaúcho, de Porto Alegre, tido, usualmente, como um jornal de
caráter popular. Assim, procurei indicar algumas representações e discursos postos em
circulação por esse jornal, ao destacar algumas notícias e colunas que ele publica, bem
como ao falar acerca da distribuição das suas editorias e de outros aspectos que julguei
interessantes. Detive-me, especialmente, em buscar ver como é esse “popular” que o jornal
vai configurando nas suas sucessivas edições, bem como estive atento ao modo como nele
se representa o povo e como, dessa forma, o jornal vai "ensinando" a seus leitores quais são
os gostos, as aspirações, as ações, as preocupações etc, próprias ao povo, inscrevendo,
nesse processo, esse mesmo povo, nesse universo em que o jornal os vai configurando.
Nessa leitura mais detida e analítica que fiz desse jornal, pude, então, apontar alguns
aspectos que, em primeiro lugar, me permitem afirmar que o Diário Gaúcho é um jornal
que pode ser caracterizado como popular. Destaco que, embora meu objetivo principal não
tenha sido o de comparar veículos da mídia, é importante dizer que outros jornais, como
Notícias Populares, de São Paulo, e O Dia, do Rio de Janeiro, abordam temas bastante
semelhantes aos tratados pelo DG e se dirigem praticamente ao mesmo tipo de público.
O Diário Gaúcho foi abordado, na análise que conduzi de exemplares editados entre
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o final de 2004 e o início de 2006, por três caminhos: em um deles, examinei o jornal a
partir da focalização que faz na direção de contribuir com os seus leitores na chamada “luta
pela sobrevivência”. Nessa direção, o jornal “dicas” sobre formas de economizar
dinheiro, maneiras de reaproveitar materiais como roupas, utensílios para o lar etc, além de
oferecer o espaço do jornal para que trabalhadores, desempregados ou não, ofereçam seus
serviços através da publicação de um breve currículo. Vimos também que essa “ajuda” que
o DG tenta prestar a seus leitores não se restringe aos componentes materiais da vida, mas
inclui, também, incursões pelo mundo da espiritualidade e da afetividade, quando “ensina”,
no primeiro caso, simpatias para que o leitor conquiste seus desejos, e, no segundo caso,
procura promover encontros entre familiares que estejam distantes muito tempo, dar
conselhos sobre relacionamentos amorosos, falar de problemas de sexo entre outros mais.
Pode-se dizer que ao enfatizar tais aspectos, o jornal configura o seu público como sujeitos
desabonados e necessitados, aos quais precisa ajudar de diferentes formas.
Uma outra ênfase que aparece reiteradamente no jornal corresponde ao que chamei
de preocupação com “a vida dos ricos e famosos”. São colunas de notas e às vezes
reportagens inteiras que buscam aproximar o leitor do mundo em que vivem os artistas e as
celebridades e nas quais imperam as informações sobre vida pessoal, namoro, projetos
pessoais, passeios realizados etc. Nessas colunas transforma-se a vida privada de tais
sujeitos em espetáculo, ao mesmo tempo em que o jornal vai configurando o seu leitor
como alguém que, obviamente, se interessa por esse tipo de informação, alguém que talvez
queira “espiar” os seus ídolos e, desse modo, até viver um pouco mais próximo deles.
E, finalmente, a partir do exame que fiz do Diário Gaúcho, encontrei nele elementos
para indicar o quanto esse jornal também trabalha com um estilo de linguagem que
denominei escrachado”; ou seja, o quanto nele se assume uma peculiar forma de uso da
linguagem. Muitas vezes vale-se de um tom jocoso, noutras, do deboche, noutras, ainda, de
um vocabulário grosseiro para relatar acontecimentos e situações que afetam indivíduos das
classes menos abonadas ocorridas, geralmente, na periferia das grandes cidades. Mais uma
vez, pode-se dizer, que o jornal marca o seu leitor. Nesse caso, como aquele que vive nesse
universo lingüístico, sugerindo, ao mesmo tempo, que essa é a linguagem própria a esse
público: enfim, aquela que esse seria capaz de entender.
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Cabe referir, ainda, ao finalizar este trabalho, que esse me trouxe interessantes
efeitos produtivos. Através dele empreendi uma tentativa de ler criticamente a mídia
jornalística, de mapear alguns dos discursos e representações sobre temas nela colocados
em destaque e, ainda, de circular entre significados acionados em um determinado veículo
da imprensa, refletindo, ao mesmo tempo, acerca das possibilidades desses irem
configurando um determinado tipo de leitores. Essa se configurou, para mim, em uma outra
forma de olhar para o jornal, veículo com o qual possuo bastante familiaridade por força de
ofício e de interesse. Esse mesmo olhar pode agora ser colocado sobre outros artefatos
culturais, ou seja, o olhar, interessado sim, mas que procura perceber os discursos e as
representações postas ali, que vão espelhando e ao mesmo tempo "formando" os sujeitos.
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