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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
CAMPUS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Roberto Donato da Silva Júnior
Etnoconservação,
formulação teórica e suas possibilidades de intervenção sócio-ecológica
Araraquara - SP
2008
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
CAMPUS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Roberto Donato da Silva Júnior
Etnoconservação,
formulação teórica e suas possibilidades de intervenção sócio-ecológica
Texto apresentado ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da
Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”, Campus de
Araraquara, com vistas à obtenção do
título de mestre em Sociologia.
Araraquara - SP
2008
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
CAMPUS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Roberto Donato da Silva Júnior
Etnoconservação,
formulação teórica e suas possibilidades de intervenção sócio-ecológica
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________
Presidente e Orientador: Profº Dr. Sérgio Gertel – UNESP
_____________________________________________________
Membro Titular: Profº Dr. Edmundo Peggion – UNESP
______________________________________________________
Membro Titular: Profª Dra. Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello – USP
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
SILVA JÚNIOR, R. D. Etnoconservação, formulação teórica e as suas possibilidades de
intervenção sócio-ecológica. 2008. 207 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara – SP, 2008.
Resumo
Esse estudo tem como objetivo a análise sobre a problemática decorrente das relações
entre os grupos conservacionistas e as populações comumente denominadas “tradicionais”, a
partir da construção de políticas públicas do setor não-governamental no Brasil. O foco é
compreender como organizações não-governamentais, adeptas ao postulado teórico da
etnoconservação, formulam as estratégias de implantação do modelo junto às unidades de
conservação e às populações tradicionais nas quais atuam. Pretende-se demonstrar as linhas de
ação transformadora dos agentes conservacionistas sobre esses grupos, a partir das relações de
poder e as estratégias de ação daí decorrentes. Para tanto, a pesquisa se orientou por meio de três
objetivos fundamentais: (1) o estabelecimento de uma discussão teórica sobre o conceito de
etnoconservação em seus princípios fundamentais e constitutivos, assim como uma reflexão
sobre as concepções e conceitos que lhe dão fundamentação; (2) analisar a experiência de
implantação do modelo de gestão participativa da ONG Fundação Vitória Amazônica junto à
população ribeirinha localizada na unidade de conservação Parque Nacional do Jaú/AM; e (3)
elaborar uma intersecção entre postulados conceituais e práticas que constroem as possibilidades
da etnoconservação.
Palavras-chave: etnoconservação, desenvolvimento sustentável, relações de poder, organizações
não-governamentais, populações tradicionais.
Abstract
The aim of this study is analyze the derived problems of the relationship between
conservationist groups and the communities commonly named “traditional” from the public
policy-making developed inside the Brazilian non-governmental sector. The focus is to
understand how non-governmental organizations, affiliated to the ethno conservation theoretical
postulate, formulate the establishment strategies of this model to execute in the conservation
units, inside the traditional communities where they perform their functions. This study intends to
demonstrate the transforming operation ways used by conservationist agents on “traditional”
groups from power relationships and the resulting operation strategies. Therefore, three main
objectives guided the course of this research: (1) the establishment of an ethno conservation
theoretical discussion about its fundaments and constitutive principles as well as an analysis of
the conceptions and concepts that base it. (2) the analysis of the establishment model on
participative administration of the Vitória Amazônica Foundation, a non-governmental
organization, (ONG, by its initials in Portuguese) experienced inside the river margin living
population in the conservation unit located in the JNational Park in the Amazonas State; and
(3) find the linkage between theoretical postulates and practice, constitutive elements of ethno
conservation opportunities.
Key Words: Ethno conservation, Sustainable Development, Power Relationships, Non-
governmental Organizations, Traditional Communities.
Sumário
Agradecimentos.........................................................................................................................2
Lista de Siglas............................................................................................................................6
Introdução – Etnoconservação e as possibilidades de análise sociológica...........................7
Capítulo I – Caminhos metodológicos para uma pesquisa sobre etnoconservação..........16
Capítulo II – Etnoconservação e o conceito de relações de poder......................................24
1 – Foucault e as relações de poder..................................................................................25
2 – A análise da etnoconservação sob a perspectiva das relações de poder.....................36
Capitulo III – Etnoconservação: o conceito em sua construção teórica............................41
Capítulo IV – Etnoconservação e desenvolvimento sustentável.........................................67
1 – Desenvolvimento sustentável e seus caminhos conceituais.......................................67
2 – A noção de desenvolvimento e sua inseparabilidade da lógica de produção
capitalista.........................................................................................................................74
3 – A Etnoconservação orienta-se pelos princípios do desenvolvimento sustentável?...79
Capítulo V – Organizações não-governamentais e populações tradicionais como sujeitos
constitutivos da etnoconservação..........................................................................................83
1 – O conceito de organizações não-governamentais......................................................83
2 – O conceito de populações/comunidades tradicionais................................................93
3 – Complementaridade, conflito ou superação?...........................................................110
Capítulo VI – A Fundação Vitória Amazônica e o Parque nacional do Jaú...................119
1 – O Parque Nacional do Jaú e seus sujeitos................................................................119
2 – O processo de elaboração do plano de manejo do Parque Nacional do Jaú............143
3 – Os limites da mediação............................................................................................179
Capítulo VII – O diálogo entre o ideal e o possível...........................................................186
1 – A etnoconservação e a Fundação Vitória Amazônica.............................................186
Bibliografia............................................................................................................................204
2
Agradecimentos
Toda página de agradecimentos é, em última instância, uma tentativa de escapar aos
rigores dos tratados científicos. Uma forma de evitar o descolamento entre o produto final (a
própria dissertação) e a vida social do pesquisador. Por isso, realizo com muito gosto esta
exigência da vida em relação aos procedimentos acadêmicos.
Esse estudo deve muito aos meus pais, Maria Zélia e Roberto Donato, e às minhas irmãs e
irmãos, Patrícia, Aline, Márcio e Matheus. No momento em que o mestrado exigiu a renúncia de
aspectos importantíssimos de minha vida, foram eles que assumiram as responsabilidades. Além
disso, todos os princípios norteadores da minha conduta, e que estão inevitavelmente presentes
nas páginas a seguir, são frutos da tarefa árdua que eles tiveram ao me orientar nos caminhos e
descaminhos da vida. A eles, a minha devoção e meu profundo agradecimento.
Agradeço a Sérgio Gertel, orientador dessa pesquisa, pela grande liberdade e confiança
que me concedeu na elaboração desse estudo.
Aos amigos e irmãos, Fábio Ocada, Alberto Brunetta e Fábio de Pieri. A convivência e o
aprendizado com eles foram tão intensos, que não sei por onde começar a agradecer. Foi no nosso
cotidiano como família universitária que esse estudo nasceu. Na categoria “amigos e irmãos”,
também incluo os agradecimentos a Fábio Augusto Pacano, Adinan Zayat, Flávio Bersi, Rangel e
Silvia. Fábio me ensinou a ser professor e pesquisador. Adinan, companheiro e amigo de tantos
anos e muitos caminhos, me deu pouso e solidariedade. Flávio, minha referência de retidão.
Rangel e Silvia, companheiros de capoeiragem, foram também fundamentais nos momentos mais
difíceis da fase de elaboração dessa pesquisa. Não posso deixar de agradecer o amigo e
companheiro de mestrado e orientação, Ivan Manoel, pelo apoio e incentivo.
3
Agradeço também, José de Almeida Filho, o Mestre Zequinha. Homem de grande
sabedoria, me ensinou (e ensina) o caminho do equilíbrio entre corpo e mente, bem e mal,
brincadeira e seriedade. Muitos princípios constitutivos dessa dissertação nasceram de sua
postura e de suas palavras.
Gostaria de agradecer aos muitos professores universitários, que direta ou indiretamente,
tiveram influência na construção dessa dissertação de mestrado. Em especial agradeço a Norma
Felicidade (UFSCar) e Lucila Scavone (UNESP). De suas disciplinas emergiram os elementos
teóricos estruturantes dessa pesquisa. Aos Professores Maria Elisa (ESALQ/USP) e Edmundo
Peggion (UNESP), pela participação nas bancas examinadoras e pelas contribuições valiosas que
em muito enriqueceram essa dissertação. Também ao Prof. Antônio Carlos Diegues
(NUPAUB/USP), pela leitura e apontamentos importantes nos resultados dessa pesquisa.
Aos colegas de trabalho Edson, André, Mariza, Rodilson, Dilvana e Simone. Por diversas
vezes e maneiras, esses companheiros preencheram minhas lacunas, quando essas foram
necessárias para o cumprimento das exigências do mestrado. Aos Amigos de Manaus, Ana Flávia
(Fafá), Vinícius De Biase e Maiara Zanin, que me deram teto e carinho nos momentos decisivos
da pesquisa de campo. Ana Barini e Sara, que contribuíram com a tradução de partes do texto. A
Wellington, pela importante contribuição na redação desse trabalho.
Ao corpo de profissionais da Fundação Vitória Amazônica, mas principalmente a Carlos
César Durigan e Raquel Ribeiro Lange. Fui muito bem recebido por eles nos dias de pesquisa na
sede da instituição. Não posso deixar de sublinhar, também, o acesso irrestrito que tive aos
documentos da FVA para a constituição da pesquisa. Espero, dessa maneira, demonstrar o meu
profundo respeito pela seriedade da instituição, que não apresentou qualquer receio de
disponibilizar seus arquivos a um pesquisador desconhecido. Meus agradecimentos a Marcelo
4
Bresolin, funcionário do IBAMA e chefe do Posto do Parque Nacional do Jaú, pela elucidativa
entrevista.
Os moradores, ex-moradores e lideranças do Parque Nacional do Jaú e Novo Airão/AM:
Sebastião Ferreira (Bá), João Queimado, Aldenor (STR), Sônia e Maria Derly (AANA), Betão
(APNA), Ivanildes, (Comissão de Ex-Moradores do PNJ), Levi de Castro da Silva (AMOTAPI).
A eles o meu respeito, admiração e agradecimento pelas valiosas e fundamentais entrevistas.
Devo agradecimentos a Gilberto Ota, liderança comunitária do bairro Guapiruvu, em Sete
Barras/SP. De suas palavras e experiência, emergiu o título de um dos capítulos desse texto.
Por fim, gostaria de agradecer especialmente a Laura De Biase, minha namorada, esposa e
companheira. Laura participou da cada momento de realização desse estudo. Degustou cada
palavra escrita nessas páginas. Aliviou os dias amargos e iluminou os dias deliciosos. Sem ela
essa dissertação de mestrado não teria sido realizada. A única forma que encontro para retribuir
tamanha entrega e dedicação é oferecendo-lhe o meu amor incondicional.
5
Esse trabalho é dedicado à Vitória Regia Barros Silva, minha filha.
Vitória teve que abdicar, involuntária e inconscientemente,
do pai para a emergência do pesquisador.
Espero que os frutos desse estudo
contribuam para a construção
de seu caminho pelas dores
e delícias da vida.
6
Lista de Siglas
AANA – Associação dos Artesãos de Novo Airão
AMORU – Associação dos Moradores do Rio Unini
AMOTAPI – Associação dos Moradores da Comunidade de Tapiira
APNA – Associação de Pescadores de Novo Airão
CNUMAD – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz
FNS – Fundação Nacional de Saúde
FVA – Fundação Vitória Amazônica
GTA – Grupo de Trabalho Amazônico
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IMA – Instituto do Meio Ambiente
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPA – Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas
ITERAM – Instituto de Terras da Amazônia
ONG – Organização Não Governamental
PNJ – Parque Nacional do Jaú
SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente
SIG – Sistema de Informações Geográficas
SNUC – Sistema Nacional de Unidade de Conservação
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
UA – Universidade do Amazonas
UC – Unidade de Conservação
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
WWF – World Wildlife Fund (Fundo Mundial para Natureza)
7
Introdução – etnoconservação e as possibilidades de análise sociológica.
“A questão ecológica é uma questão social;
e hoje a questão social pode ser elaborada
adequadamente apenas como questão ecológica”.
Elmar Altvater – O Preço da Riqueza.
Este trabalho tem como objetivo fundamental compreender as relações entre concepção
teórica e prática das entidades ambientalistas não-governamentais, em seus objetivos de
construção de modelos de gestão em unidades de conservação, que levem em consideração a
presença humana. O foco é compreender como foram construídas as estratégias de organizações
não-governamentais para a implantação de projetos de etnoconservação, levando em
consideração as intersecções relacionais entre a ação dessas entidades e a dos grupos inseridos
nesse modelo de conservação. Pretende-se, assim, compreender em que medida a concepção
teórica da etnoconservação interage e transforma a conduta desses grupos, a partir das relações de
poder entre os referidos agentes sócio-políticos. Três objetivos norteiam a pesquisa: (1)
estabelecer uma discussão teórica sobre o conceito de etnoconservação, a fim de vislumbrar seus
princípios fundamentais e constitutivos, bem como a reflexão sobre as concepções e conceitos
que lhe dão base e sustentação; (2) analisar uma experiência concreta de implantação da assim
chamada gestão comunitária dos recursos renováveis por parte de uma organização não-
governamental – a Fundação Vitória Amazônica – atuante junto à população localizada na
unidade de conservação Parque Nacional do Jaú, no Estado do Amazonas; e, (3) elaborar uma
intersecção entre postulados conceituais e as práticas que permeiam o universo da
etnoconservação.
Assim, encontram-se no capítulo I os caminhos metodológicos percorridos para a
estruturação da pesquisa; no capítulo II, a proposta de compreensão teórica da etnoconservação
8
sob a ótica do conceito de relações de poder; no capítulo III, a elaboração reflexiva sobre a
constituição do conceito etnoconservação; no capítulo IV, situa-se a discussão crítica sobre as
relações possíveis entre etnoconservação e desenvolvimento sustentável; no capítulo V, uma
reflexão sobre a interpretação conceitual de organizações não-governamentais e populações
tradicionais como sujeitos da gestão étnica conservacionista. Os aspectos empíricos dessa
pesquisa encontram-se no capítulo VI, no qual se aborda a observação de uma experiência
prática em etnoconservação. Nele discute-se a elaboração do Plano de Manejo do Parque
Nacional do Jaú por parte da Fundação Vitória Amazônica (FVA), organização não-
governamental sediada em Manaus/AM, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) junto às comunidades que habitam o Parque Nacional
do Jaú, unidade de conservação (UC) sediada no Estado do Amazonas. É importante ressaltar
que este trabalho não contempla a atuação da citada organização estatal, restringindo-se apenas a
análise da organização não-governamental e dos moradores do parque em sua relação. O
conclusivo capítulo VII realiza a intersecção entre os postulados conceituais e as práticas da
etnoconservação, como decorrência da interação entre os aspectos teóricos e empíricos da análise
apresentada.
Vale ressaltar que a intenção dessa pesquisa não é estabelecer uma observação
privilegiada das organizações não-governamentais como objeto específico da análise, mas do
conjunto de relações entre concepções e práticas de um determinado discurso científico, com
destaque para as relações de poder decorrentes das suas estratégias de ão. A organização não-
governamental é compreendida aqui como o instrumento que viabiliza a passagem da teoria a
práxis e estrutura as relações de poder inerentes ao processo. Do mesmo modo, não há, nesse
estudo a compreensão da ação da comunidade ribeirinha frente à implantação da unidade de
conservação em seu território.
9
Nesse sentido, essa pesquisa busca dar conta de uma certa antropologia das relações. Não
se apresenta como um estudo teórico sobre o conceito de etnoconservação. Não tem, do mesmo
modo, a pretensão de ser uma análise etnográfica da situação vivida por agentes ambientalistas e
uma população ribeirinha, no interior de uma unidade conservação. A preocupação central desse
estudo é analisar o caminho entre uma proposta teórica e sua materialização como práxis.
Realiza-se, assim, um movimento que vai do geral (a discussão teórica) para o particular (a
observação das relações no parque nacional do Jaú). Após esse empreendimento, pretende-se
buscar, na observação etnográfica dessa configuração de relações, estímulo e contribuição para
uma reflexão acerca das potencialidades da teorização não só em relação à etnoconservação como
das relações entre humanidade e natureza.
Portanto, busca-se compreender a viabilidade de implantação da etnoconservação não na
atuação das organizações ambientalistas ou nas populações tradicionais, mas na tensão dinâmica
da relação entre elas. Do mesmo modo, ao analisar uma experiência de implantação da
etnoconservação no PNJ, não se tenta evidenciar a atuação da Fundação Vitória Amazônica ou
das comunidades ribeirinhas que ali residem. Seja na dimensão teórica ou na “realidade”
etnográfica, o foco é compreender as estratégias e contra-estratégias de implantação da
conservação étnica pelos sujeitos a ela expostos.
A etnoconservação é uma proposta político-acadêmica que, de maneira geral, defende a
ação conservacionista a partir de uma implicação indissociável entre populações tradicionais e
paisagens. Trata-se, portanto, de uma proposta de gestão compartilhada dos recursos naturais
entre Estado, entidades ambientalistas e populações locais. Seu princípio fundamental é a
orientação do manejo regido pela gica, saberes, práticas e usos específicos das comunidades e
povos tradicionais presentes em unidades de conservação. Para tanto, é necessária (1) a
complementaridade de relações entre o conhecimento cnico-científico e o tradicional-
10
mitológico; (2) a constituição de formas de articulação de relações de poder provenientes das
comunidades, tornado-se assim gestoras privilegiadas; e, (3) por fim, a garantia legal de posse da
terra por parte das comunidades em questão.
A etnoconservação, como conceito, compõe a fundamentação de ações políticas que
podem viabilizar a implantação de modelos de conservação da bio/sociodiversidade. Ou seja, a
partir da construção de um saber sobre as populações tradicionais, os defensores da
etnoconservação propõem uma intervenção política como forma de garantir a reprodução social
desses grupos, para mantê-los em sua dinâmica própria. Essa garantia de reprodução das
condições de existência sócio-cultural é vista pelos defensores da etnoconservação como meio
apropriado de conservação biológica. Enfatizam, dessa maneira, a sustentabilidade do uso dos
recursos por parte dessas comunidades.
Consideradas, pelos teóricos da etnoconservação, como organizações sócio-culturais
diferenciadas e à margem da sociedade capitalista, as populações tradicionais englobam uma
miríade de povos distintos entre si, tais como caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas etc.
– além das populações indígenas. Tem em comum, a organização de sua territorialidade de forma
coletivo-comunitária orientada por princípios mitológicos, relações de parentesco ou hierarquia
geracional; a constituição de uma identidade própria e diferenciada; e a relação com a natureza
em padrões sustentáveis.
Essa sustentabilidade não se apresenta conscientemente como uma preocupação
ecológica, no seu sentido ambientalista ocidentalizado. Mas antes, como uma forma de proceder
coerente com a própria sazonalidade e ciclicidade apresentada pela dinâmica dos fenômenos
naturais. Dessa forma, os territórios habitados por estas populações muitas vezes se confundem
com áreas destinadas à conservação biológica pela comunidade científica. Daí a preocupação dos
idealizadores da etnoconservação em relacionar a conservação da biodiversidade à
11
sociodiversidade, considerada, genericamente, de “tradicional”. Como proposta de prática
política oriunda do mundo acadêmico e viabilizada, principalmente, por organizações não-
governamentais, a etnoconservação se apresenta como tentativa de complementaridade entre os
resultados da reflexão de disciplinas científicas comprometidas com o conservacionismo, por um
lado, e a cognição/ação dessas particularidades étnicas, por outro.
Assim, essa pesquisa orientou-se por um conjunto de inquietações que emergiram a partir
da reflexão sobre o tema. Na passagem do discurso teórico à práxis, pode ser questionada a
materialização da cumplicidade entre o universo cientificista e o tradicional/étnico, a partir do
estabelecimento inevitável de disputas pela gestão do território. Indaga-se, também, se a
etnoconservação formulada em ambiente acadêmico, converge às concepções de sustentabilidade
das populações tradicionais. Desse modo, chega-se ao questionamento sobre as possíveis relações
de poder que se estabeleceriam entre as entidades conservacionistas e as populações tradicionais
para a viabilidade da etnoconservação.
Ao propor uma investigação sobre as estratégias de implantação de um modelo de gestão
em unidades de conservação, é preciso reconhecer que se discute, de forma geral, as
possibilidades de intervenção nas relações entre determinados grupos sociais, em territórios
específicos. Para tanto, recorreu-se a diferentes perspectivas teóricas na tentativa de compreensão
da presente proposta de estudo. Desse modo, encontra-se nos capítulos I e II, os instrumentos
metodológicos e teóricos escolhidos para a elaboração da pesquisa.
No capítulo I explicita-se os caminhos metodológicos utilizados ao longo da pesquisa.
Buscou-se fundamentação na implicação de três instrumentos: leitura e interpretação da
bibliografia referente ao tema, análise de documentos e observação de campo.
O levantamento bibliográfico foi o procedimento largamente utilizado na elaboração da
dimensão teórica do presente estudo. A análise de documentos e a observação participante foram
12
os instrumentos utilizados para análise empírica da ação realizada pela Fundação Vitória
Amazônica no Parque Nacional do Jaú. A análise documental teve como ponto de partida a
leitura de dois documentos considerados centrais: o “Plano de Manejo do Parque Nacional do
Jaú” (1998) e “A Gênese de um Plano de Manejo O Caso do Parque Nacional do Jaú” (1998).
A partir desses, buscou-se analisar outros documentos e relatórios referentes à ação da FVA junto
à população residente no interior/entorno da unidade de conservação. O cruzamento de
informações foi construído a partir de entrevistas realizadas com profissionais da FVA, técnicos
do IBAMA e com representantes da comunidade local.
No capítulo II discute-se o conceito teórico escolhido para a análise da etnoconservação:
as relações de poder, segundo a perspectiva de Michel Foucault. A utilização do conceito teve o
objetivo de instrumentalizar o olhar analítico para compreender as estratégias de efetivação da
etnoconservação na práxis. Levando em consideração que a capacidade de ação das populações
tradicionais pode ser compreendida como um “campo de possibilidades”, aberto a inúmeras
correlações de forças e interesses.
Sob esse ponto de vista, compreende-se a conservação étnica em disputa com outros
modelos conservacionistas e atividades econômicas predatórias. Assim faz-se necessária a
constituição de estratégias bem sucedidas para a orientação das condutas voltadas tanto para o
afastamento de outras práticas e discursos, quanto para a materialização do seu próprio projeto.
Daí a impossibilidade de se pensar relações de poder sem esquadrinhar as estratégias de
efetivação das mesmas. No entanto, não é possível discutir a perspectiva foucaultiana sobre as
relações de poder sem também discutir a questão da constituição dos saberes.
É de extrema importância salientar que a característica fundamental dessa concepção
sobre as relações de poder é o fortalecimento do seu caráter criativo e produtivo. O seu exercício
é possível num contexto de “liberdade”, pautando-se, fundamentalmente, numa interferência
13
sobre o campo de possibilidades do agir do outro. Assim, essas relações podem estar
relacionadas a possibilidades de produção, sejam elas materiais ou imateriais. Nessa
conceituação, é muito importante dissociar as relações de poder da noção de repressão construída
pela tradição psicanalítica; assim como da idéia de centralidade estatal elaborada pela concepção
clássica da ciência política.
Portanto, a tríade saber/relações de poder/estratégia de ação se apresenta como o caminho
teórico de elucidação da problemática proposta e dos objetivos delineados, sendo a análise da
relação entre teoria e prática da etnoconservação a opção investigativa.
O conceito de espaço (SANTOS, 1997) é suporte, nos limites da pesquisa, como forma-
conteúdo para compreensão das unidades de conservação a partir da interação dos componentes
sociais que nela atuam (a população tradicional nela residente, a organização não-governamental,
a ação estatal regulamentadora, etc.). Assim como os diferentes modos de ação sobre os recursos
naturais existentes. Além disso, a implantação do modelo ancorado na etnoconservação pode ser
compreendida com um corpo teórico de orientação para uma significação territorial, não dos
aspectos naturais como das relações sociais que determinam o uso desses recursos.
Com a apresentação das diretrizes metodológicas e teóricas de análise, parte-se para a
interpretação do tema propriamente dito. No capítulo III encontra-se a elaboração conceitual da
etnoconservação. Evidencia-se a sua constituição a partir de um histórico de contraposição
político-acadêmica com a assim denominada biologia da conservação. Além disso, analisa-se a
influência das duas perspectivas conservacionistas sobre o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC), legislação que normatiza as UC’s existentes no território brasileiro.
Dimensionam-se, assim, os elementos constitutivos da conservação étnica para a orientação da
análise empírica realizada no capítulo VI.
14
No capítulo IV apresenta-se uma teorização sobre a relação da etnoconservação com o
conceito de desenvolvimento sustentável. Como princípio orientador consensual das discussões
sobre a relação entre humano/natureza, a idéia hegemônica de se construir a sustentabilidade a
partir da readequação da noção de desenvolvimento parece, na perspectiva aqui adotada, tão
encantadora quanto inconsistente. Pretende-se compreender seus limites de forma crítica, além de
demonstrar que a etnoconservação pode, em potencialidade teórica a ser avaliada na práxis,
contribuir para sua superação.
No capítulo V realiza-se a análise conceitual dos sujeitos sociais envolvidos na construção
da etnoconservação: organizações não-governamentais (ONG’s) e populações tradicionais.
Encontra-se, também, um exercício de reflexão sobre as possibilidades de interação dialética
entre os dois agentes em questão, contextualizados no interior do movimento social
ambientalista. O objetivo desse empreendimento é problematizar a relação entre ONG’s e
comunidades tradicionais, através de questionamentos que orientem a observação das atividades
da FVA sobre os moradores do PNJ.
A partir do tratamento teórico elaborado entre os capítulos II e V, foi realizada a
pesquisa empírica situada no capítulo VI. Nele, analisa-se a ação da FVA junto ao Parque
Nacional do Jaú e seus moradores. Tem como foco o processo político de elaboração do plano de
manejo participativo do PNJ, entre os anos de 1993 e 1998. No entanto, foi constituído um breve
histórico de constituição do parque, a partir de um pequeno reconhecimento dos três sujeitos
fundamentais envolvidos: as agências estatais regulamentadoras IBDF/IBAMA, a população
ribeirinha presente no território e a própria Fundação Vitória Amazônica. No mesmo capítulo
encontra-se uma pequena tentativa de interpretação das conseqüências da ação da FVA junto aos
moradores do parque.
15
Na elaboração do texto que constituiu a análise empírica desse estudo, houve forte
fundamentação na análise documental. No entanto, deve-se evidenciar que as atividades que
compuseram a observação participante do pesquisador (entrevistas, visitas, diálogos, reuniões,
etc.) foram fundamentais para a composição da pesquisa. A partir dela é que os documentos
ganharam inteligibilidade. Além disso, não houve um relato e descrição direta dessa experiência
devido aos limites formais que se enquadra o presente estudo, qual seja, uma dissertação de
mestrado. É, inclusive com grande pesar por parte desse pesquisador que tal dimensão não tenha
sido abordada de forma direta.
Por fim, o capítulo VII pretende promover uma reflexão sobre as potencialidades teóricas
e práticas da etnoconservação. Oportunidade de refletir sobre as limitações teóricas que a
realidade expõe. Assim como reconhecer os problemas que os sujeitos enfrentam para a
implantação de uma proposta político-acadêmica inovadora no contexto do conservacionismo.
Além disso, procura-se avaliar, a partir de uma experiência local, a dinâmica política entre
entidades ambientalistas não-governamentais e povos tradicionais, em suas relações de conflito e
complementaridade. Pretende-se, dessa maneira, evidenciar a riqueza de relações que a busca
pela sustentabilidade oferece, para além do discurso harmonioso e adocicado do desenvolvimento
sustentável.
16
Capitulo I – Caminhos metodológicos para uma pesquisa sobre etnoconservação.
Este capítulo tem como objetivo clarificar os caminhos metodológicos que possibilitem
um contato apropriado com os grupos sociais que constituem a base empírica dessa pesquisa. O
cuidado na seleção dessas vias guia-se por duas preocupações básicas: (1) a aproximação ética e
responsável com os grupos sociais sobre os quais se constitui a observação; e (2) a possibilidade
de estabelecer um contato produtivo em dados e informações para a pesquisa. Assim, ao mesmo
tempo em que a atitude do pesquisador viabiliza uma relação equacionada com os grupos a serem
estudados, vislumbra-se a constituição de um forte embasamento empírico para a pesquisa,
medida de qualificação para qualquer reflexão teórica.
Como se sabe, a referida pesquisa tem como objetivo fundamental a análise de um
modelo específico de gestão sócio-ecológica, denominado etnoconservação. O que se pretende é
avaliar as potencialidades de utilização do conceito em questões relativas à gestão de espaços
naturais habitados por povos e populações dotados de relativa especificidade sócio-cultural.
Especificidade caracterizada, principalmente, por uma concepção não-capitalista de organização
sócio-econômica e por relações coletivo-comunitárias fundamentadas nas relações de parentesco
em determinado território. Esses povos são comumente denominados de tradicionais.
A implantação de uma gestão sustentável pautada no conceito de etnoconservação em
unidades de conservação brasileiras é efetivada – em suas poucas experiências – por organizações
não-governamentais. O foco de análise que se propõe aqui é observar que estratégias essas
ONG’s elaboram para a estruturação do seu campo de ação sobre as populações tradicionais nos
espaços destinados à implantação do referido modelo de conservação. Ou seja, observar as
condições em que uma elaboração conceitual acadêmica (etnoconservação) pode ser a
17
orientadora de ações políticas em determinados espaços territoriais e grupos sociais; captar sua
potencialidade teórico-prática.
Para a viabilidade desse empreendimento teórico, os procedimentos metodológicos dessa
pesquisa se constituem a partir da implicação de três instrumentos: (1) leitura e interpretação da
bibliografia referente ao tema, de (2) análise de documentos, e (3) observação participante.
A perspectiva marxista é o principal ponto de referência para a elaboração dos
procedimentos mencionados acima. Partindo do princípio de que essa pesquisa se orienta em
apreender o nexo teórico-prático possível da etnoconservação, nada mais apropriado, em nossa
perspectiva, do que se apoiar nos caminhos que Marx formulou no início de sua longa jornada
intelectual (décadas de 40/50 do século XIX) em obras como “A Ideologia Alemã” (1996) e “O
Dezoito Brumário de Luis Bonaparte” (1990).
Vale ressaltar que a proposta não é tecer uma extensa reflexão sobre o materialismo
histórico e dialético formulado pelo autor. Muito menos discutir o conteúdo explicativo que o
mesmo elaborou sobre as relações sócio-políticas que permitiram a ascensão de Luis Bonaparte
ao governo francês. Pretende-se, simplesmente, compreender as formas de acesso aos dados
empíricos que Marx e Engels formularam, para utilizá-las como base orientadora das diretrizes
metodológicas da pesquisa proposta nesse trabalho.
Os manuscritos compilados em “A Ideologia Alemã” executaram um deslocamento
profundo na perspectiva do pensamento ocidental. Ao promover uma crítica feroz ao aos
pensadores neohegelianos, a partir da denúncia de um pseudo-materialismo, Marx propõe a
observação do fenômeno humano em sua radical materialidade. Observar as condições materiais
de existência dos homens é, em sua perspectiva, o passo fundamental para compreender o
processo de produção e reprodução sócio-histórica da totalidade social.
Assim, Marx propõe na II tese sobre Feuerbach:
18
A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é
uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a
verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A
disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento isolado da práxis é
uma questão puramente escolástica (1996, p. 12).
Ao confirmar a inter-relação indissociável entre pensamento e atividade humana em
relação à natureza e à própria dinâmica social em que está imersa, Marx nos convida a centrar o
foco de análise nas relações sociais que determinam o posicionamento dos indivíduos na
organização sócio-econômica, bem como as ações políticas, culturais e ideológicas que se
estruturam a partir dela e em relação dialética com ela.
A intensidade dessa idéia aparece com toda clareza na tese VIII: “Toda vida social é
essencialmente prática. Todos os mistérios que levam para o misticismo encontram sua solução
racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (idem, p. 14). Portanto, a análise da
sociedade, na perspectiva marxista, encontra lucidez na medida em que os frutos do
pensamento forem identificados às ações de manutenção e/ou alteração de dada dinâmica
societária. Ou seja, que sua teia de relações possam ser compreendidas a partir ações políticas que
possibilitem permanência/transformação da lógica vigente em determinado espaço social.
Esta maneira de considerar as coisas não é desprovida de pressupostos. Parte de
pressupostos reais e não os abandona um instante. Estes pressupostos são os
homens, não em qualquer fixação ou isolamento fantásticos, mas em seu
processo de desenvolvimento real, em condições determinadas, empiricamente
visíveis. Desde que se apresente esse processo ativo da vida, a história deixa de
ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou
uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas (ibidem,
p. 38).
Quais são, portanto, os procedimentos cnicos de pesquisa possíveis para o acesso a essa
dimensão empírica dos processos constitutivos da sociedade? “O Dezoito Brumário de Luis
Bonaparte” (1990) talvez seja a obra em que Marx melhor demonstrou as potencialidades do seu
19
horizonte metodológico. Nas muitas edições da obra em língua portuguesa, é comum a presença
de dois prefácios o primeiro escrito por Marx em 1869 e o segundo por Engels, em 1885 que
são muito elucidativos em relação aos procedimentos procurados por essa reflexão.
É possível iniciar a discussão por meio da preocupação demonstrada pelos dois autores
em relação ao embasamento teórico sobre o tema que a obra se dedica: a ascensão de Luis
Bonaparte na política francesa de 1848 a 1852. Elaborada no calor dos acontecimentos, a reflexão
de Marx não deixa de lado uma intensa pesquisa bibliográfica, tanto em relação à especificidade
do tema, quanto do desenvolvimento histórico da sociedade francesa de uma forma geral.
Assim Marx justifica sua obra a partir da análise crítica do que tinha sido escrito sobre
o tema:
Dentre as obras que, aproximadamente da mesma época, tratavam o mesmo
assunto, duas merecem ser mencionadas: Napoleão, o Pequeno, de Victor
Hugo, e o Golpe de Estado, de Proudhon. Victor Hugo limita-se a amargas e
espirituosas invectivas contra o autor responsável do Golpe de Estado. O
próprio acontecimento surge-lhe como um relâmpago num céu sereno. Apenas
nele um golpe de força de um indivíduo. Não se conta que engrandece,
em vez de o diminuir, atribuindo-lhe uma força de iniciativa pessoal sem
precedentes na história. Proudhon esforça-se por apresentar o golpe com
resultado de um desenvolvimento histórico anterior. Mas, sob sua pena, a
construção histórica do golpe de estado se transforma numa apologia do herói
do golpe de estado. Assim cai no erro que os nossos historiadores
pressupostamente objectivos cometem (idem, p.10).
A força do embasamento histórico sobre a França, que confere tanta coerência à obra nos
aparece através das palavras de Engels:
(...) para isso, era necessário o profundo conhecimento da história da França
que Marx tinha. A França é o país onde, em cada caso, as lutas de classes foram
levadas mais do que qualquer outro sítio, até a decisão completa, e onde, por
conseguinte, as formas políticas instáveis, no interior das quais se movem e nas
quais são resumidos os seus resultados, tomam os contornos mais nítidos. (...)
Eis a razão por que Marx não estudava com predileção especial a história do
passado francês, mas também seguia detalhadamente a história atual, reunia
materiais a serem utilizados mais tarde, e por isso nunca foi surpreendido pelos
acontecimentos (ibidem, p.14).
20
É possível notar na citação acima além do cuidado de Marx em constituir um
levantamento bibliográfico qualificado a necessidade da coleta e análise de documentos
necessários para uma reflexão teórica bem fundamentada sobre o tema que foi discutido na obra.
Por outro lado, apesar do conceito “observação participante” ter sido claramente
delineado apenas no início do século XX com o desenvolvimento da antropologia funcionalista
é impossível não pensá-lo como meio metodológico utilizado por Marx em “O Dezoito”. O
autor se encarrega de ressaltar que a obra “(...) nasceu sob pressão direta dos acontecimentos e
que a matéria histórica de que trata não ultrapassa o mês de fevereiro de 1852 (
ibidem, p.9)
”. É
perceptível, também, que autor valoriza em muito o olhar participativo como um dos traços
constitutivos da originalidade da obra, chegando a afirmar que “(...) uma correção da obra que se
segue ter-lhe-ia tirado o seu tom particular. Portanto, limitei-me a corrigir seus erros de
impressão e a suprimir as alusões que atualmente seriam de difícil compreensão” (
ibidem, p.10).
Engels expressa uma empolgação incontida ao comentar esse aspecto da obra:
“De fato era um trabalho genial. Imediatamente a seguir ao acontecimento que
surpreendeu todo o mundo político como um relâmpago num céu sereno, (...)
sendo para todos objeto de espanto e de incompreensão, Marx fez sobre ele uma
exposição curta e epigramática (...) E o quadro estava esboçado com tal
maestria que todas as revelações posteriormente feitas apenas constituíram
novas provas da fidelidade com que reflete a realidade. Esta notável
compreensão da história cotidiana viva, esta clara compreensão dos
acontecimentos no preciso momento em que estes se desenrolam é, de fato, sem
precedentes
(
ibidem, p.13-14).
Talvez seja possível, a partir dessa sucinta análise, extrair a fundamentação metodológica
necessária para qualificação da presente pesquisa. Longe de qualquer pretensão em igualar a
magnitude dos estudos marxianos, o objetivo aqui é demonstrar que a tríade levantamento
21
bibliográfico/ análise de documentos/ observação participante apresenta-se como um caminho
de pesquisa seguro e produtivo para a análise sócio-antropológica.
Na presente pesquisa sobre a possibilidade teórico-prática da etnoconservação, o
levantamento bibliográfico não se destina apenas à qualificação crítica do referido conceito. Mas,
também, à formulação de um arcabouço conceitual explicativo para a teorização sobre a realidade
observada, a partir do conceito de “relações de poder”, elaborado por Michel Foucault.
Vale relembrar que o foco dessa pesquisa é observação das estratégias que as
organizações não-governamentais elaboram para a estruturação do seu campo de ação sobre as
populações tradicionais a partir do conceito etnoconservação. Para cumprir tal objetivo é
necessária a coleta de documentos que possibilitem a compreensão de todo o processo de
implantação de tais projetos, quais sejam: relatórios de viagens e de atividades, documentação
burocrática, relatórios de assessoria técnica, levantamento de dados populacionais, de atividades
econômicas, etc.
A última fase metodológica da pesquisa, a observação participante, cumpre, dentro das
limitações de tempo de uma pesquisa em nível de mestrado, os requisitos de complementação do
entendimento da rede de relações sócio-políticas que se configuram na realidade observada.
Entendimento que será previamente esboçado pelas duas fases anteriores do caminho
metodológico proposto (levantamento bibliográfico e análise de documentos). A principal meta
da observação participante nesse trabalho será o de captar a percepção dos agentes envolvidos no
processo de constituição das relações que constituem o “objeto” da pesquisa.
A estratégia de aproximação para a viabilização da observação participante segue as
referências propostas por Pierre Bordieu em “A Miséria do Mundo” (1997). Seu princípio é
estabelecer uma comunicação não-violenta na relação entre pesquisador e pesquisado para evitar
22
ao “(...) máximo a violência simbólica que se pode exercer (...)” (idem, p.695). O autor propõe,
como forma de minimizar uma inevitável arbitrariedade por parte do pesquisador, uma relação de
(...) escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista
não dirigida, quanto do dirigismo do questionário. Postura de aparência
contraditória que não é fácil de colocar em prática. Efetivamente, ela associa a
disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à
singularidade de sua história particular, que pode conduzir, por uma espécie de
mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e adotar em seus
pontos de vistas, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construção
metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma
categoria (ibidem, p.695)
.
Além disso, o autor defende a idéia de que a proximidade social e a familiaridade são
fundamentais para evitar os constrangimentos que uma relação não-simétrica pode suscitar:
A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das
condições principais de uma comunicação não-violenta. De um lado, quando o
interrogador está socialmente muito próximo daquele que ele lhe interroga, ele
lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver suas
razões subjetivas reduzidas a causas objetivas; (...) por outro lado, encontra-se,
também assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente
confirmado sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e às formas de
comunicação: esse acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de
ser produzida de maneira consciente e intencional, de todos os sinais não
verbais, coordenados com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual
enunciado deve ser interpretado, quer como ele foi interpretado pelo
interlocutor (ibidem, p.697).
Assim, a escolha de fundamentação da observação participante dessa pesquisa a partir das
referências propostas por Bordieu provém de uma necessidade empírica. Por um lado, boa parte
dos quadros técnicos das organizações não-governamentais ambientalistas compõe-se de
profissionais oriundos do universo acadêmico (biólogos, cientistas sociais, agrônomos etc.). Por
outro lado, as indagações que alimentaram a elaboração dessa pesquisa surgiram a partir da
experiência desse pesquisador como assessor técnico, nos anos de 1998 e 1999, de uma ONG
23
conservacionista de São Paulo/SP, que atuava em diversos projetos de natureza sócio-ambiental
junto a grupos indígenas no estado de Rondônia.
Por fim, na condição de observador/pesquisador que exerceu a posição do observado/
pesquisado, a proposta de uma “escuta ativa e metódica” cumpre os requisitos básicos das
condições de realização dessa pesquisa. Espera-se que esses requisitos possibilitem uma ação
investigativa ao mesmo tempo responsável em relação aos seres humanos observados, e
produtiva em relação à análise proposta.
24
Capítulo II – Etnoconservação e o conceito de relações de poder
Este capítulo tem como objetivo levantar algumas questões sobre as possibilidades de
participação da sociologia contemporânea nas reflexões recentes sobre aspectos da tensão
dialética entre homem e natureza. Nesse contexto propõe-se a refletir sobre a contribuição do
arcabouço teórico do pensador Michel Foucault na análise da etnoconservação.
Consciente de que o tema em discussão não foi uma preocupação foucaultiana, o
propósito aqui é avaliar as potencialidades de utilização do conceito de relações de poder em
questões relativas à gestão de espaços naturais entre entidades ambientalistas e povos tradicionais
dotados de relativa especificidade sócio-cultural. O que se propõe aqui é observar que estratégias
essas ONG’s elaboram para a estruturação do seu campo de ação sobre as referidas populações.
Mesmo quando se leva em consideração que a etnoconservação tem como eixo
fundamental a garantia de reprodução da organização dos próprios povos tradicionais para a
conservação e uso da natureza, é preciso levar em conta a complexa teia de relações desses
grupos com a sociedade circundante. A presença de forças político-econômicas atreladas às
relações capitalistas de produção converge, em muitos casos, para a desarticulação do modo de
vida dessas especificidades étnicas.
Assim, parte-se do pressuposto de que (1) a ação das entidades ambientalistas não pode
ser realizada sem uma ão política ou seja, sem o estabelecimento de relações de poder que
viabilize a orientação da etnoconservação sobre essas populações, a partir de uma concepção
acadêmica pautada na observação e análise dessas mesmas populações. Além disso, (2) as
medidas de implantação referem-se, também, a uma reorganização das relações entre o grupo e
outros agentes cio-econômicos integrados às relações capitalistas e inseridos na região,
geralmente caracterizados por ações predatórias dos recursos destinados ao uso sustentável. A
25
eficiência de ação dessas ONG’s, ao que parece, é validada pela capacidade de reordenação
desses dois níveis de relação; o que implica, necessariamente, na constituição de estratégias para
a cristalização das relações de poder.
1 – Foucault e as relações de poder.
Propõe-se, a partir de agora, a avaliação das possibilidades de utilização da elaboração
conceitual de Michel Foucault como abordagem para o tema proposto. Assim, a discussão que se
segue não visa formular uma visão geral e sistemática sobre o pensamento do autor, mas
simplesmente, uma reflexão sobre os conceitos considerados pertinentes para os objetivos aqui
explicitados.
Pensador francês que não encontrou abrigo teórico entre os paradigmas hegemônicos
vigentes em meados do século XX a fenomenologia e o estruturalismo –, Michel Foucault é
considerado por Machado o construtor de “(...) um novo caminho para as análises históricas sobre
as ciências” (1984, p. 295). Seguiu uma trajetória temática heterogênea para suas pesquisas,
atendo-se à loucura, a criminalidade, a sexualidade, entre outras áreas. Sobre essa sustentação
empírica, buscou compreender a articulação discurso/prática dos campos de racionalidade que se
constituíam em torno e a partir desses temas. Sua preocupação era, de uma maneira geral, refletir
sobre as formas de constituição da individualidade do sujeito, no contexto do(s) processo(s) de
racionalização característico(s) da modernidade ocidental. Segundo o próprio autor, “(...) meu
objetivo, (...), foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 2000, p.231).
A despeito da busca pela origem dos fenômenos, imposto pela história dos historiadores
que visam apreensão do supra-histórico, o autor se responsabiliza pela formulação de uma
história efetiva, a partir da noção de acontecimento.
26
É preciso entender por acontecimento não um tratado, um reino, ou uma
batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um
vocabulário retomado e voltado contra os seus utilizadores, uma dominação que
se enfraquece, se distende, se envenena e uma ou outra que faz sua entrada
mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem
a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. (1984, p.28).
A visão de uma essência ideal, pura e portadora da verdade encontrada na origem das
coisas é substituída por visão fortemente processual de que a ação da história é “(...) sem essência
ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe são estranhas” (idem.
p.18). Foucault tenta se afastar, assim, do ideal socrático-platônico de busca da metafísica das
coisas e da idealização de uma origem como o estado de perfeição dos fenômenos; a intenção é
reencontrar os “começos” em suas “meticulosidades e acasos”, suas multifacetadas configurações
inacabadas sem, inclusive, tentar reconhecer aí o pedestal da verdade.
A partir dessa noção e de um reconhecimento do real como “uma miríade de
acontecimentos entrelaçados” (ibidem, p. 29), Foucault propõe a “genealogia” como método
apropriado de apreensão e análise histórica. Afasta-se, a partir daí, da história como ontogênese e
privilegia os conceitos de proveniência e emergência, retiradas do universo filosófico de
Nietzsche. A concepção de proveniência carrega em si essa formulação múltipla e vacilante dos
“inícios”:
(...) não se trata de modo algum de reencontrar em um indivíduo, em uma idéia
ou sentimento as características gerais que permitiram assimilá-los a outros (...),
mas de descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se
entrecruzar nele e formar uma rede difícil de desembaraçar; longe de ser uma
categoria de semelhança, tal origem permite ordenar, para colocá-las à parte,
todas as marcas diferentes (...). A proveniência permite também reencontrar sob
o aspecto único de um caráter ou de um conceito a proliferação dos
acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se
formaram. (ibidem p. 20).
27
Emergência, por sua vez, seria “o ponto de surgimento” como um “jogo casual das
dominações” produzido
(...) sempre em um determinado estado das forças. A análise da Herkunft
(emergência) deve mostrar seu jogo, a maneira como elas lutam umas contra as
outras, ou seu combate frente a circunstâncias adversas ou ainda a tentativa que
elas fazem se dividindo para escapar da degenerescência e recobrar o vigor
a partir do seu próprio enfraquecimento (ibidem, p. 23).
Portanto, emergência pode ser definida como a reorganização de um estado de coisas a
partir do conflito para a superação de suas forças autodestruidoras e degenerativas, que geram,
por sua vez, novas formas de conflito e de auto-aniquilamento. Essa percepção está muita
próxima da noção de agonismo muito utilizada nos escritos do autor
1
. O método genealógico se
caracteriza, portanto, na forma fragmentária de expor, a luz da análise histórica, a intercorrelação
de forças que se confrontam e geram relações de poder no universo social.
Fazer genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não
será, portanto, partir em busca da origem’, negligenciando como inacessíveis
todos os episódios da história; será ao contrário, se demorar nas
meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar atenção escrupulosa à sua
derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto
do outro;(...). É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus
abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão
conta dos atavismos e das hereditariedades (...) (1984, p. 19).
A partir dessa base de concepção histórica construída ao longo de sua trajetória, o autor
propõe um caminho epistemológico flexível que vai do estabelecimento de uma “arqueologia dos
saberes” até a constituição de uma “genealogia do poder” que possibilitasse compreender a
emergência do humano como sujeito.
1
“(...) Mais do que um ‘antagonismo’ essencial, seria melhor falar de um ‘agonismo’ de uma relação que é, ao
mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta; trata-se, portanto menos de uma oposição de termos que se
bloqueiam mutuamente do que uma provocação permanente” (2000, p. 245).
28
Vale ressaltar, nesse momento, que a noção de sujeito para Foucault implica na
compreensão da idéia de que o os indivíduos se pautam pela ação o ato criador –, portanto,
como sujeito de determinada atividade; porém esse ato criador não é livre, mas pautado e
orientado por práticas discursivas que tornam o individuo sujeito “a” realização de determinadas
atividades. Nas palavras do autor, “(...) dois significados para a palavra sujeito: sujeito a
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência e
autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga a (algo)” (2000, p. 235).
Evitando, portanto, a construção de uma história constituída em epopéia, o autor
esquadrinha uma análise dos fragmentos, dos resquícios que foram enterrados pelos sedimentos
dos discursos oficiais e vitoriosos, a fim de encontrar o campo de luta em que os modelos de
interpretações diferentes e múltiplos se colocaram em combate para estabelecer, segundo
Machado, “como os saberes apareciam e se transformavam.(...) O que pretende é, em última
análise, explicar o aparecimento dos saberes a partir de condições de possibilidades externas dos
próprios saberes(...)” (1984, p.X).
O autor propõe, dessa maneira, formular uma visão da forma como os saberes positivos
os discursos científicos dominaram e sufocaram a possibilidade de existência das outras formas
de conhecimento, deslegitimando-as; descaracterizando as demais formas de conhecer,
eliminaram, também, suas respectivas formas de agir. Assim, no decorrer histórico das
hostilidades e lutas entre esses saberes, aquele que se sobrepõe formula, também, as relações de
poder que vão domesticar, disciplinar as formas de ação do homem sobre o próprio homem.
A cada livro publicado por Michel Foucault, a intercorrelação entre saber e poder se
impõe às suas preocupações teórico-metodológicas. História da Loucura (1961), O Nascimento
da Clínica (1963), As Palavras e as Coisas (1966) são os marcos iniciais de uma relativa
29
(...) homogeneidade de instrumentos metodológicos utilizados até então, como
o conceito de saber, o estabelecimento das descontinuidades, os critérios para
datação de períodos e suas regras de transformação o projeto de inter-relações
conceituais (notadamente o binômio saber-poder), articulação dos saberes com
a estrutura social, a crítica da idéia de progresso em história das ciências, etc
(idem, p. IX-X).
Procurando formular uma análise em áreas “não-privilegiadas” e periféricas do
conhecimento os comportamentos desviantes como o do louco, seu primeiro foco de análise
Foucault procurou demonstrar que o saber sobre esse desvio” implicava, primeiro, num
esmagamento da outras interpretações sobre a loucura; segundo, na formulação de uma forma de
agir sobre ela; e, terceiro, na sua institucionalização como prática de saneamento e recuperação,
agindo em prol do “retorno” à “normalidade”.
(...) temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber
estão diretamente implicados; que não relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o
sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento
são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de
suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito de
conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o saber-
poder, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam
as formas e os campos de conhecimento possíveis do conhecimento
(FOUCAULT, 1987, p. 27).
Além disso, a fundamentação desse saber-poder sobre os desvios está, segundo o autor,
em plena conformidade como a estrutura sócio-econômica vigente, as relações capitalistas de
produção, e com sua estruturação política maior, o Estado. É importante salientar, contudo, que o
fato dessas formas articuladas de “saber-poder” encontrarem-se em plena conformidade com a
macro-política estatal o significa ser apenas uma decorrência gica das relações do poder
estatal, ou meramente, uma de suas expressões. O autor insiste na autonomia de emergência e
30
proveniência das racionalidades na história, a partir da luta entre os vários saberes sem negar que
esta autonomia é cooptada pela ação estatal.
Gradativamente, a questão sobre o poder vai chamando atenção nas suas análises, a ponto
do autor chegar a ser reconhecido por muitos como um teórico sobre o poder. O que é um
empobrecimento de sua trajetória intelectual, desprezando-se a reflexão sobre o sujeito, assim
como outras possibilidades teóricas de sua produção. Contudo, Machado afirma que se uma
“(...) mutação assinalada por livros como Vigiar e Punir, de 1975, e A Vontade de Saber de 1976,
primeiro volume da História da Sexualidade, foi a introdução das análises históricas da questão
do poder como um instrumento de análise capaz de explicar a produção de saberes” (1984, p. X).
Apesar de, tanto Machado
2
quanto o próprio Foucault
3
negarem a existência de uma teoria geral
sobre o poder, a formulação teórica sobre o poder com base nas idéias do autor ganhou uma
grande visibilidade nos anos 60/70 do século XX. O próprio Machado admite que as análises
genealógicas do poder
produziram um importante deslocamento com relação à ciência política, que
limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder. Estudando a
formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas empíricas e
minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do
dispositivo da sexualidade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo
próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma não sinonímia
entre estado e poder (idem, p.XI).
Assim, também, Michel Foucault formula:
Será preciso uma teoria do poder? Uma vez que uma teoria assume uma
objetivação prévia, ela não pode ser afirmada como uma base para um trabalho
analítico. Porém este trabalho analítico não pode proceder sem uma
conceituação dos problemas tratados, conceituação esta que implica um
pensamento crítico – uma verificação constante (2000, p. 232).
2
“Não existe em Foucault uma teoria geral do poder” (MACHADO,1984, p. X).
3
Na introdução de um artigo em que o autor trata especificamente a relação entre sujeito e poder, ele afirma
categoricamente: “As idéias que eu gostaria de discutir aqui não representam nem uma teoria nem uma metodologia”
(FOUCAULT, 2000, p.236).
31
Por fim, o pensador propõe:
Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma nova
economia das relações de poder, que é mais empírica, mais diretamente
relacionada à nossa situação presente, e que implica relações mais estreitas
entre teoria e prática. Ela consiste em usar as formas de resistência contra as
diferentes formas de poder como um ponto de partida. (...) Mais do que analisar
o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar
as relações de poder através do antagonismo das estratégias (idem, p. 234).
Assim, pode se concluir que a teorização sobre as relações de poder tenha alguma
viabilidade, desde que essa teoria seja conduzida e constantemente permeada pelo rigor do
empírico, não para torná-la rasa e infecunda, mas justamente para fortalecê-la em termos
dinâmicos, buscando evitar sua ossificação. Qual seria então, o rascunho de uma conceituação
teórica, ainda que em forma de apontamentos sobre o poder, que a idéia de um arcabouço
teórico fundamentado e acabado causa tanta resistência em Michel Foucault?
Uma maneira segura de iniciar essa discussão seria indicar o que o poder não é. Uma
coisa. Algo palpável. Poder não é uma instituição, apesar de sua realização acontecer por meio de
instituições.
Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém
como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de
um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados.
Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de
poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce e se efetua, que
funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social
que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina
por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação
(MACHADO, 1984, p. XIV).
O poder acontece a partir do seu exercício; ou seja, não se detém poder, mas sim,
exerce-se poder. Por isso, sua existência formula-se por meio de uma relação. Além disso, não se
configura uma relação de poder o exercício de dominação sobre algo; sobre alguma coisa;
32
temos a noção de capacidade técnica. Não é poder, também, uma relação de comunicação, ou
seja, a forma pela qual se “transmite uma informação através de uma língua, de um sistema, de
signos ou de qualquer outro meio simbólico” (...), apesar de que, completa o autor, “(...) a
produção de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqüências
efeitos de poder, que não simplesmente um aspecto dessas. Passando ou não por sistemas de
comunicação as relações de poder tem sua especificidade” (FOUCAULT, 2000, p. 240).
O autor não faz essas distinções por mera casualidade. Ele afirma que esses três
componentes são, antes, um conjunto que age em conformidade para a formação de um “bloco
disciplinador”:
Trata-se de três tipos de relação que, de fato, estão sempre correlacionados,
apoiando-se reciprocamente, servindo mutuamente de instrumento. A aplicação
de capacidade objetiva, nas suas formas mais elementares, implica em relações
de comunicação (...); liga-se, também, a relações de poder. As relações de
comunicação implicam em atividades finalizadas (capacidades cnicas de
transformação dos objetos) e induzem efeitos de poder pelo fato de modificarem
o campo de informação dos parceiros. Quanto às relações de poder, elas se
exercem através da produção e da troca de signos; e também não são
dissociáveis das atividades finalizadas, seja daquelas que permitem exercer esse
poder, seja daquelas que decorrem, para se desdobrarem, às relações de poder
(ibidem, p. 241).
Por fim as relações de poder. O que seriam essas relações? Ou melhor, como se exerce as
relações de poder em sua especificidade? Antes de qualquer coisa, é a ação de uns sobre outros,
ou melhor, é ação de uns sobre a ação de outros, ou seja, para determinar-lhes a ação dentro de
um campo de possibilidades. Antes de prosseguir, o autor nos adverte que, na sua concepção, não
há espaço para consentimento dentro dessa conceituação;
(...) ele o é (o poder), em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência
de direito, poder de todos e de cada um a alguns (o que não impede que o
consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se
mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior
ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um
consenso (ibidem, p. 243).
33
Assim como o recurso de violência implica numa ação direta sobre o corpo, e não numa
ação sobre a ação do outro: “(...) uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas;
ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; (...) (ibidem, p.
243)”. Portanto a violência e o consentimento dois fundamentos tão caros à teoria clássica
sobre o poder são colocados antes, em relação ao poder, como seus “(...) instrumentos ou
efeitos, não constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza” (ibidem, p. 243).
Foucault delimita, então, que sua natureza consiste num “modo de ação que não age direta
e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ão sobre a ação,
sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes” (ibidem, p. 243). Essa ação sobre a ão
dos outros
(...) se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser
exatamente uma relação e poder: que “o outro” (aquele sobre o qual se
exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito
de uma ação (ação governada, é certo) e que se abra, diante da relação de
poder, todo um campo de respostas, reações efeitos, invenções
possíveis.(...); ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil,
amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, coage e
impede totalmente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou
vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir,
Uma ação sobre ações (ibidem, p. 243).
Dessa maneira o ato de “conduzir condutas” que é próprio da relação de poder, se
configura a partir da restrição do espectro de possibilidades de ação do dominado pelo dominador
a uma ação, o que implica, então, em agir sobre a liberdade dos outros de modo a determiná-la
segundos os interesses de quem exerce o poder. O poder, diz o autor, “só se exerce sobre
“sujeitos livres”, enquanto livres entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que
tem diante de si um campo de possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos
modos de comportamento podem acontecer” (ibidem, p.244).
34
Uma característica fundamental dessa concepção sobre as relações de poder é o
fortalecimento do seu caráter produtivo. Se o seu exercício só é possível num contexto de
“liberdade”, pautando-se, fundamentalmente, numa interferência sobre o campo de possibilidades
do agir do outro, essas relações podem estar relacionadas a possibilidades de produção, sejam
elas materiais ou imateriais. É muito importante dissociar, nessa conceituação, a noção de
repressão vinculada às relações de poder pela tradição psicanalítica.
(...) Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar
conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os
efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste
mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria
a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e
esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse
somente repressivo, se não se fizesse outra coisa a não ser dizer não você
acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente não pesa só como uma coisa que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais que uma instância negativa que tem por função reprimir
(idem, 1984, p. 8)
.
Por fim, falta-nos discernir as interações pelas quais as relações de poder se colocam no
devir histórico. O espaço de constituição das relações de poder implica, necessariamente, na
elaboração de formas de resistência por parte daqueles estão sujeitos à sua força orientadora.
Assim, a relação tem condição de existência no jogo de relações estratégicas que impõe a lógica
de obtenção de empreendimentos para a realização das lutas e possibilidades de reversão da
própria relação. Nas palavras do próprio Foucault,
como não poderia haver relações de poder sem pontos de insubmissão, que, por
definição, lhe escapam, toda intensificação e toda a extensão das relações de
poder para submetê-los conduzem apenas aos limites do exercício do poder;
(...). Em suma, toda estratégia de confronto sonha tornar-se relação de poder; e
toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linha de
desenvolvimento quanto ao se deparar com resistências frontais, a tornar-se a
estratégia vencedora (FOUCAULT, 2000, p. 248).
35
Qual o resultado desse empreendimento teórico? Em seu artigo “Genealogia e Poder”
(FOUCAULT, 1984), o autor estabelece dois efeitos importantes de sua analítica pelo universo
de confronto do saber-poder. Em primeiro lugar, o caráter local da crítica, que, “indica na
realidade algo que seria uma espécie de produção teórica autônoma, não-centralizada, isto é, que
não tem necessidade para estabelecer sua validade, da concordância de um sistema comum”
(idem. p, 169).
Essa decorrência contribuiu para que as concepções teóricas clássicas que determinam
tanto as formas de racionalização do Estado e da sociedade capitalista, quanto às tentativas de sua
superação revolucionária, fossem permeadas por uma série de lutas e bandeiras periféricas.
Paralelamente ao clássico movimento operário, fortaleceram-se as lutas específicas o
movimento estudantil, feminista, homossexual, racial, ambientalista, antimanicomial, etc. – como
efeitos desse deslocamento da crítica às relações de poder e de sua ‘microfísica’.
Em segundo lugar, o retorno do saber, ou melhor, dos saberes ditos “dominados”, sejam
eles os “conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em
sistematizações formais” (ibidem, p.170) tanto quanto “uma série de saberes que tinham sido
desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos,
hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento e de
cientificidade” (ibidem, p.170).
Esse efeito contribuiu tanto para relativização da ciência como forma de conhecimento
superior e inatingível fortalecendo a luta contra o positivismo e o evolucionismo quanto pela
emergência dos saberes não institucionalizados pela ciência como válidos, dando nova ênfase,
por exemplo, aos estudos antropológicos no processo de alargamento do objeto que essa ciência
empreendeu a partir dos anos 70, enxergando vida não nas “populações nativas e não
ocidentais”, mas também nos subgrupos urbanos e nas relações de gênero.
36
2 – A análise da etnoconservação sob a perspectiva das relações de poder
A síntese da reflexão acima leva-nos a compreender a conceito de relações de poder a
partir de alguns traços constitutivos fundamentais. Trata-se, portanto, de uma ação de uns sobre a
ação de outros dentro de um campo de possibilidades, ou seja, o ato de conduzir condutas; ação
guiada por discursos epistemológicos – saberes; a restrição do espectro de possibilidades de ação
do dominado pelo dominador implica, então, em agir sobre a liberdade de ação dos outros; além
disso, para Foucault, as relações de poder têm caráter produtivo para além do caráter repressivo
tão caro à tradição psicanalítica; sua estruturação possibilita a emergência de formas de
resistência; e, por fim, a dinâmica entre relações de poder e formas de resistência tem condição
de existência num jogo de relações estratégicas, como possibilidade de realização das lutas e de
reversão da própria relação.
A perspectiva que se propõe nessa pesquisa é, portanto, a análise do conceito de
etnoconservação como orientador das relações entre organizações não-governamentais e
populações tradicionais em unidades de conservação. Essa análise será conduzida pelo conceito
de relações de poder exposto acima.
Vale ressaltar que a intenção desse projeto de pesquisa não é estabelecer uma observação
privilegiada das organizações não-governamentais como objeto específico da análise, mas sim do
conjunto de relações entre concepções e práticas de um determinado discurso científico, com
destaque para as relações de poder decorrente das suas estratégias de ação. As organizações não-
governamentais são compreendidas aqui como o instrumento que viabiliza a passagem da teoria a
práxis, assim como estrutura as relações de poder inerentes ao processo.
Portanto é possível recorrer à perspectiva foucaultiana da necessidade de encontrar as
relações de poder além ou aquém das próprias instituições que lhes dão sustentação, pois,
37
Ao analisarmos a relações de poder a partir das instituições, nos expomos de
nelas buscar a explicação e a origem daquelas; quer dizer, em suma de explicar
o poder pelo poder. (...) Não se trata de negar a importância das instituições na
organização das relações de poder. Mas de sugerir que é necessário, antes,
analisar as instituições a partir das relações de poder e não o inverso; e que o
ponto fundamental destas, mesmo que nelas se incorporem e se cristalizem,
numa instituição, deve ser buscado aquém (FOUCAULT, 2000, p.245).
Porém, ao propor uma investigação sobre as estratégias de implantação de um modelo
específico de conservação em unidades de conservação habitadas por populações tradicionais, é
preciso reconhecer, num primeiro momento, que se discute de maneira generalizada, as
possibilidades de intervenção nas relações entre determinados grupos sociais e determinados
espaços naturais localizados, por sua vez, em determinados territórios. Para isso, faz-se
necessário, a utilização de conceitos geográficos como nexo de fundamentação conceitual à
discussão teórica das formas de organização do espaço.
Para Milton Santos, o espaço pode ser definido como a totalidade das realizações sociais
sobre a configuração dos objetos naturais. O encontro entre social e natural, solidificado por uma
incessante movimentação dialética, sendo, pois, um dos fatores fundamentais da edificação da
ação humana.
Consideramos o espaço com uma instância da sociedade, ao mesmo título que a
instância econômica e a instância cultural-ideológica. Isso significa que, como
instância, ele contém e é contido pelas demais instâncias, assim como cada uma
delas o contém e é por ele contida (...). Isso quer dizer que a essência do espaço
é social. Nesse caso, o espaço não pode ser apenas formado pelas coisas, os
objetos geográficos, naturais ou artificiais, cujo conjunto nos a Natureza. O
espaço é tudo isso mais a sociedade: cada fração da natureza abriga uma fração
da sociedade atual (SANTOS, 1997, p. 1).
O espaço supõe uma imbricação entre a configuração natural e as forças sociais que nela
incidem. Há uma dinâmica constante de significação social sobre as determinações geográficas, o
que define as formas de intervenção humana sobre a natureza pela decorrência histórica.
38
Como as formas geográficas contêm frações do social, elas não o apenas
formas, mas formas-conteúdo. Por isso estão sempre mudando de significação,
na medida em que o movimento social lhes atribui, a cada momento, frações
diferentes do todo social. Pode-se dizer que a forma, em sua qualidade de
forma-conteúdo, está sendo permanentemente alterada e que o conteúdo ganha
uma nova dimensão ao encaixar-se na forma (SANTOS, 1997, p. 2) .
O conceito de espaço é suporte, nos limites dessa reflexão, como forma-conteúdo para
compreensão das unidades de conservação como territórios a partir da interação dos componentes
sociais que nela atuam (as populações tradicionais, a organizações não-governamentais, a ação
estatal regulamentadora, etc.) e os diferentes modos de ação sobre os recursos naturais existentes.
Além disso, a implantação do modelo pautado na etnoconservação pode ser compreendida com
um corpo teórico de orientação para uma significação territorial, não dos aspectos naturais
como das relações sociais que determinam o uso desses recursos.
Portanto, considerando que a implantação do modelo de gestão comunitária dos recursos
renováveis pretende definir a ação humana nesse determinado espaço, é necessário estabelecer as
estratégias de ação política que materializam essa (re)configuração do espaço social. É nesse
sentido que a discussão sobre as relações de poder e suas estratégias adquire relevância, a partir
do pressuposto de que a sociedade está imersa em uma complexa teia de relações de poder que
viabilizam a ação e a orientação da condição humana.
A utilização do conceito de poder tem como objetivo principal instrumentalizar o olhar
analítico para as formas de elaboração estratégica da efetivação do discurso da etnoconservação
na práxis. Levando em consideração que a capacidade de ação das populações tradicionais que
habitam áreas destinadas à preservação pode ser compreendida como um “campo de
possibilidades”, aberto a inúmeras correlações de forças e interesses.
A efetivação de um manejo étnico, que se confronta na condução de sua ação com outros
modelos conservacionistas, necessita de uma estratégia bem sucedida para a orientação das
39
condutas voltadas tanto para o afastamento de outras práticas e discursos, quanto para a
materialização do seu próprio projeto.
(...) podemos chamar ‘estratégias de poder’ ao conjunto dos meios operados
para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também
falar de estratégia própria das relações de poder na medida em que estas
constituem modo de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros.
Podemos então decifrar em termos de ‘estratégias’ os mecanismos utilizados
nas relações de poder (FOUCAULT, 2000, p. 248).
Foucault nos alerta da impossibilidade de se pensar relações de poder sem esquadrinhar as
estratégias de efetivação das mesmas.
Ora o estudo dessa microfísica supõe que o poder não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não
sejam atribuídos a uma apropriação, mas disposições, a manobras, a táticas, a
funcionamentos (FOUCAULT, 1987, p. 26).
Portanto, a tríade saber/relações de poder/estratégia de ação se apresenta como o caminho
metodológico de elucidação da problemática proposta e dos objetivos delineados, sendo a análise
da relação entre teoria e prática na etnoconservação a opção investigativa. Finalmente, ao se
realizar tal abordagem, o que se procura evidenciar são as tramas de constituição de um discurso
que não atende às exigências acadêmicas, mas que principalmente, se orienta pela
combatividade em relação a outros discursos como a biologia da conservação. Essas práticas
discursivas lutam pela legitimidade e hegemonia da ação conservacionista dentro do próprio
domínio científico, salientando, dessa maneira, a opção pelas evidências constitutivas das formas
de intervenção política, por meio da formação de relações de poder, capaz de determinar a
conduta dos agentes conservacionistas em questão.
Finalmente, se a etnoconservação se apresenta como um conceito constituído pelo saber
científico sobre os modos de vida não-ocidentais; se, a partir desse saber, propõe práticas
40
conservacionistas pautadas por modos étnico-tradicionais de manejo dos recursos naturais,
importa saber como a etnoconservação deixa de ser tão somente uma proposta teórica para uma
prática política. Interessa conhecer as estratégias de efetivação de seus pressupostos junto às
unidades de conservação habitadas por populações tradicionais.
Como veremos no capítulo III, a legislação brasileira relativa às unidades de conservação
é orientada hegemonicamente pela perspectiva da intocabilidade. Ou seja, de forma geral, a
prioridade do modelo conservacionista é a da exclusão da presença humana das UC’s. Esse é
caso específico do Parque Nacional do Jaú, foco desse estudo, onde os moradores tradicionais
não poderiam permanecer após sua criação. Nesse contexto, pretende-se compreender como a
FVA reuniu condições para elaborar o Plano de Manejo do PNJ, levando em consideração a
participação decisória dos moradores.
41
Capítulo III – Etnoconservação: o conceito em sua construção teórica.
O objetivo desse capítulo é refletir sobre as bases de formulação teórica da
etnoconservação, conceito que se apresenta como uma das possíveis propostas de conservação de
bio/sociodiversidade de territórios e áreas legalmente constituídas como Unidades de
Conservação nos países periféricos, entre eles, o Brasil. A intenção é promover uma discussão
sobre categorias e elementos epistemológicos que possibilitaram o desenvolvimento do conceito,
assim como os debates e posicionamentos político-acadêmicos que o colocam como uma
proposta alternativa de gestão de UC´s, radicalmente diferenciada do modelo dominante de
conservação biológica implantado no Brasil. Por fim, pretende-se desenvolver as linhas gerais
constitutivas de viabilização de uma práxis orientada pela etnoconservação, no contexto da
legislação vigente no Brasil relativa às medidas conservacionistas.
A definição de etnoconservação pode ser sintetizada como a “gestão comunitária dos
recursos naturais” (ALEXANDRE 2002a). Sua idéia básica é a elaboração de uma forma de
gestão em unidades de conservação que possibilitem a permanência de populações tradicionais
e/ou indígenas historicamente concentradas nessas áreas. Além disso, propõe métodos de tomada
de decisão compartilhada entre esses grupos sociais, técnicos e instituições conservacionistas,
tendo como prioridade a reprodução da organização sócio-cultural do grupo como norteador da
ação.
(...) Esses movimentos enfatizam (...) a necessidade de se construir uma nova
aliança entre o homem e a natureza, baseada, entre outros pontos na
importância das comunidades indígenas e não-indígenas na conservação das
matas e outros ecossistemas presentes nos territórios em que habitam. A
valorização do conhecimento e das práticas de manejo dessas populações
deveria constituir numa das pilastras de um novo conservacionismo (...)
(DIEGUES, 2000, p.41).
42
A etnoconservação propõe, de maneira geral, uma implicação indissociável entre as
populações tradicionais e ecossistemas. Como garantia de viabilidade institucional deve-se
contar com a proteção legal do Estado e a participação das organizações ambientalistas, a partir
da premissa da gestão comunitária e compartilhada dos recursos naturais (ALEXANDRE, 2002b.
p.3).
Leva-se em conta, nessa concepção, que a estratégia adotada para a conservação é a
reprodução da própria lógica das comunidades que habitam historicamente as localidades a serem
conservadas. Ou seja, a cosmovisão, as formas de elaboração de saber e experiência, assim como
as estratégias de ação especificas das comunidades “tradicionais” em relação a ecodiversidade
devem ser, também, conservados e priorizados como fio condutor do manejo sustentável, em
detrimento da autoridade única do universo cientificista.
(...) Muitos agricultores entram em relação pessoal com o meio ambiente. A
natureza deixa de ser um objeto, uma coisa, tornado-se um mundo complexo,
cujos componentes vivos são freqüentemente personificados e deificados como
mitos locais. Alguns desses mitos são construídos como base na experiência de
gerações; a maneira como representam as relações ecológicas pode estar mais
próxima da realidade do que o conhecimento científico. A conservação talvez
não esteja presente no vocabulário, mas é parte integrante de seu modo de vida
e de suas percepções do relacionamento humano com o mundo da natureza
(GOMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p.130).
O conhecimento científico e sua aplicação técnica limitam-se, nessa perspectiva, a
“instrumentalizar” o conhecimento étnico de dispositivos mais eficazes para a sua própria
afirmação. Numa divisão de papéis proposta como complementar ao norteamento das lógicas das
tradicionalidades, o arcabouço técnico-científico pode, segundo os adeptos da etnoconservação,
contribuir nos níveis macro e micro de sua articulação teórico-prática:
(...) Claramente, profissionais conservacionistas e a população tem potências e
limitações. Conservacionistas e outros profissionais têm vantagens em dois
níveis. No nível macro, sistemas de informação geográfica, apoiados por
43
computadores, podem permitir que os ecólogos de paisagem integrem visões
temporais e espaciais dos fatores ecológicos. Profissionais podem também
contar com as redes mundiais de comunicação eletrônica e com o acesso de
banco de dados e trocar informações científicas. No nível micro, cientistas da
conservação tem técnicas apuradas de identificação e habilidades taxonômicas
(PIMBERT & PRETTY, 2000, p. 201).
O nível intermediário da práxis fica sob responsabilidade das especificidades étnicas
tradicionais:
(...) Mas o conhecimento coletivo que a população rural tem das águas,
florestas, pastos, faixas costeiras e áreas úmidas lhes distintas vantagens no
nível intermediário onde o esquema de manejo das áreas protegidas são de
fato almejados. Isto é, antes de tudo, o contexto ecológico e social em que a
população rural experimenta, adapta e inova (idem).
A elaboração cognitiva dos saberes tradicionais, tomados como pontos de referência para
o planejamento da conservação e uso dos recursos devem estar atrelados, também, aos fazeres
tradicionais, a partir da priorização do uso das tecnologias locais, caracterizadas historicamente
como de menor impacto à biodiversidade do que a tecnologia científica.
(...) Preferência deve ser dada para as tecnologias locais, pondo-se ênfase nas
oportunidades de intensificação de uso dos recursos disponíveis. Soluções mais
baratas e sustentáveis podem, freqüentemente, ser encontradas quando grupos
ou comunidades são envolvidos na identificação das exigências tecnológicas,
planejamento e teste dessas tecnologias, sua adaptação às condições locais, e
finalmente, sua extensão para outros grupos e comunidades (PIMBERT &
PRETTY, 2000, p. 206-207).
O ato decisório sobre os métodos de conservação deve, assim, deixar de ser monopolizado
pelos agentes técnicos, organizações ambientalistas e órgãos governamentais. Seu ponto de
partida deve emergir dos interesses da comunidade local envolvida, a partir de um deslocamento
de poder para a constituição de processos de gestão compartilhada.
Desse modo, habilidades e vantagens dos profissionais (em nível micro e
macro) precisam ser efetivamente combinadas com a força do conhecimento e
experimentação locais, pela atribuição de poder à população nativa mediante a
44
modificação de papéis e das atividades convencionais. Essa abordagem
participativa permitiria a geração de distintos programas de conservação,
localmente negociados, possivelmente mais sustentáveis a longo prazo que os
projetos correntes. O desenho e o manejo de áreas protegidas baseia-se,
portanto, em processos que objetivem dar mais força às comunidades locais
(idem, p.201-202).
A concessão de poder às comunidades tradicionais deve ser um dos pontos centrais para a
constituição de formas de conservação e uso pautadas pela etnoconservação. Colchester endossa
esse posicionamento, afirmando que
(...) o desafio é encontrar meios para fazer as organizações conservacionistas
responsáveis pelo que para elas é algo não familiar as comunidades
tradicionais de tal forma que sejam obrigadas a tratar as preocupações dos
povos tradicionais com a seriedade que merecem. (...) A reconciliação entre os
objetivos da autodeterminação das comunidades tradicionais e os da
conservação é possível se as agências conservacionistas cederem poder a quem
é marginalizado pelos modelos atuais de desenvolvimento e conservação
(COLCHESTER, 2000. p. 250).
Porém, a inversão das relações de poder por si só não garante a efetividade da proposta
em questão. Alguns autores afirmam que se a posse efetiva das terras não for garantida às
comunidades, o projeto coloca-se em risco. A insegurança de não contar com a certeza de
permanência na localidade faz as populações perderam a identificação sócio-cultural constituída a
partir da relação com o território. Pimbert & Pretty citam um exemplo bem sucedido de “direitos
locais de acesso aos recursos naturais”:
Um sucesso notável é a reserva do Monte Arfak, em Papua ocidental que
reconhece tanto os direitos ancestrais do direito do povo Hatam quanto o fato
de que as leis indonésias não garantem esses direitos. Ainda que a definição
legal da área de reserva natural estrita torne teoricamente ilegal qualquer uso
dos recursos naturais, o projeto, com aprovação do governo local, permite que
as comunidades locais continuem a usar a área até que a lei seja mudada a seu
favor. Conscientes dos benefícios os nativos começaram a se comportar como
guardiões da reserva florestal (...) (PIMBERT & PRETTY, 2000, p. 206).
45
Apesar do tom rousseauniano, fica claro que a reafirmação da posse da terra considerada
território ancestral pelas comunidades fortalece o seu comprometimento com as diretrizes da
gestão compartilhada. Além disso, garante um dos principais elementos de produção e
reprodução de sua identidade cultural decorrente da lógica de ação etnicamente distinta, tão
valorizada pela etnoconservação.
Sem a segurança dos direitos dos direitos de acesso às áreas protegidas, as
comunidades rurais sempre as considerarão como recursos comunitários
perdidos e que não vale a pena serem conservados por eles a longo prazo.
Políticas de áreas protegidas precisarão ser, conseqüentemente, reformuladas
para permitir que as populações tenham papel mais central na determinação do
que deve ser conservado, como e para quem (idem, p. 210).
Pode-se agora, como um primeiro momento-síntese da reflexão estimulada nesse texto,
delinear os traços constitutivos fundamentais da etnoconservação. Configura-se como uma
proposta político-acadêmica que, de maneira geral, defende a ação conservacionista a partir de
uma implicação indissociável entre populações tradicionais e ecossistemas. Trata-se, portanto, de
uma gestão compartilhada dos recursos naturais entre Estado, entidades ambientalistas e
populações locais. Seu princípio determinante é a orientação do manejo desses recursos regidos
pela lógica, saberes, práticas e usos específicos das comunidades e povos tradicionais presentes
nesses contextos territoriais. Para tanto, é necessária (1) a complementaridade de relações entre o
conhecimento técnico-científico e o tradicional-mitológico; (2) a constituição de formas de
articulação de relações de poder provenientes das comunidades, tornado-se assim gestoras
privilegiadas; e, (3) por fim, a garantia legal de posse da terra por parte das comunidades em
questão.
Historicamente, pode-se afirmar que o amadurecimento das categorias constitutivas do
conceito aconteceu no contexto dos debates da ECO-92 – Conferência Das Nações Unidas para o
46
Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro. Mas, as condições sócio-políticas que propiciaram
seu aparecimento surgem no início da década de 70. Seus postulados nascem de um movimento
político-acadêmico que tem forte presença no México, mas principalmente na Índia denominado
de ecologia social.
Seus maiores representantes, segundo Diegues, são Murray Bookchin, ecólogo e ativista,
Arthuro Gómez-Pompa, botânico e Ramachandra Guha, historiador e ativista (DIEGUES 1994,
2000). A ecologia social propõe
que as sociedades tradicionais requerem alta diversidade dos recursos naturais e
que essas sociedades sobreviveram porque desenvolveram práticas culturais de
manutenção dessa diversidade. Conseqüentemente, conservar essas práticas é o
método ideal para conservar a diversidade biológica (SARKAR, 2000, p.49).
A etnoconservação pode ser considerada, portanto, uma expressão específica, relativa ao
conservacionismo, do movimento mais amplo da ecologia social. A proposta de uma forma de
conservação, que contemple tanto a bio quanto a sociodiversidade, levando-se em consideração a
indissociabilidade de suas relações, surge no confronto e luta com outras propostas
preservacionistas que se sintetizaram na assim denominada biologia da conservação. A
etnoconservação nasce como uma possibilidade alternativa ao modelo dominante e,
principalmente, pela oposição político-acadêmica aos seus pressupostos teóricos e sua
decorrência na práxis.
É muito difícil encontrar um adepto da gestão compartilhada dos recursos naturais que
não elabore uma crítica contundente aos pressupostos teórico-práticos da biologia da
conservação. A definição do conceito pode ser um ponto de partida para a análise do confronto
entre as duas propostas:
A biologia da conservação é uma ciência multidisciplinar que foi desenvolvida
como resposta à crise com a qual a diversidade biológica se confronta
47
atualmente (...). A biologia da conservação tem dois objetivos: primeiro,
entender os efeitos da atividade humana nas espécies, comunidades e
ecossistemas, e, segundo, desenvolver abordagens práticas para prevenir a
extinção de espécies e, se possível, reintegrar as espécies ameaçadas ao seu
ecossistema funcional (PRIMACK & RODRIGUES, 2001, p. 5).
A biologia da conservação, segundo seus defensores, nasce do desejo de manutenção e
recuperação da biodiversidade decorrente, por sua vez, de duas necessidades básicas: conter a
ação destrutiva do homem; e aperfeiçoar/articular estratégias preexistentes de conservação a
partir de um norteamento comum e coerente de pesquisa científica e atividade prática.
A biologia da conservação surgiu uma vez que nenhuma das disciplinas
tradicionais aplicadas são abrangentes o suficiente para tratar das sérias
ameaças à diversidade biológica. (...) A biologia da conservação complementa
as disciplinas aplicadas fornecendo uma abordagem mais teórica e geral para a
proteção da diversidade biológica; ela se difere das outras disciplinas porque
leva em consideração, em primeiro lugar, a preservação a longo prazo de todas
as comunidades biológicas e coloca os fatores econômicos em segundo plano
(idem, p. 6).
O caráter biocêntrico
4
de suas proposições fica claramente evidenciado não pela
premência da conservação biológica em relação aos fatores econômicos, mas também pela
hierarquização epistemológica de sua constituição como “ciência interdisciplinar”:
As disciplinas de biologia de populações, taxonomia, ecologia e genética
constituem o centro da biologia da conservação e muitos biologistas da
conservação procedem dessas disciplinas. Além disso, muitos dos experts em
biologia da conservação saíram de zoológicos e jardins botânicos trazendo
consigo experiência em manter e difundir espécies em cativeiro (ibidem, p. 7).
As ciências humanas e sociais são incorporadas de forma secundária, com o objetivo de
adequar as atividades humanas no fim último da conservação biológica.
4
Segundo Diegues, biocentrismo é uma perspectiva ideológica que “pretende ver o mundo natural em sua totalidade,
na qual o homem está inserido como qualquer outro ser vivo. Além disso, o mundo natural tem um valor em si
mesmo, independente da validade que possa ter entre para os humanos” (1994, p. 42).
48
Uma vez que grande parte da crise da biodiversidade tem origem na pressão
exercida pelo homem, a biologia da conservação também incorpora idéias e
especificidade de várias outras áreas além da biologia. (...) As ciências sociais
tais como antropologia, sociologia e geografia fornecem a percepção de como
as pessoas podem ser encorajadas e educadas para proteger as espécies
encontradas em seu ambiente imediato. Os economistas ambientais analisam o
valor econômico da diversidade biológica para sustentar argumentos a favor da
preservação (...) (ibidem, p. 7).
Segundo Sarkar (2000, p. 50-51), o nascimento da biologia da conservação tem data
precisa. Em 8 de maio de 1985, como decorrência da Segunda Conferência da Biologia da
Conservação, realizada na cidade norte-americana de Ann Arbor, Michigan, foi fundada a
Sociedade para a Biologia da Conservação. Agente importante nesse processo foi Michael Soulé,
responsável tanto pela organização da citada Sociedade quanto pela redação do manifesto “O que
é a Biologia da Conservação?”, publicado, também em 1985, na Revista BioSciencie.
Nessa publicação, Soulé define cinco pressupostos básicos da nova ciência (idem, p. 51-
52; PRIMACK & RODRIGUES, 2001, p. 5), a saber: (1) a diversidade de organismos é positiva,
pressuposto que leva em consideração a idéia da consciência da humanidade na importância da
biodiversidade; (2) a extinção prematura de populações e espécies é negativa, ou seja, a ação
humana não concernente com a dinâmica natural de aparecimento e desaparecimento de espécies
é uma ameaça não só para a biodiversidade biológica, mas para o próprio ser humano; (3) a
complexidade ecológica é positiva, premissa que enfatiza a importância da conservação de
ambientes naturais onde as interações ecológicas se dão em sua completude, longe da interação
induzida ou restrita dos jardins botânicos, por exemplo; (4) a evolução é positiva, portanto a
dinâmica evolutiva das espécies deve ser respeitada com o mínimo de ou nenhuma atividade
humana que lhe perturbe; e, (5) a diversidade biológica tem valor em si, ou seja, um valor
intrínseco que precede e transcende a valoração humana em bases econômicas. Essa valoração
49
per se encontra-se na funcionalidade e importância das interações ecológicas entre espécies ou
pela sua existência única.
Para alguns autores, como Diegues (2000), a biologia da conservação tem como uma de
suas bases um movimento surgido na década de setenta do século XX, denominado ecologia
profunda. O biocentrismo latente da biologia da conservação é tributário das idéias cunhadas
“(...) por Arne Naess, filósofo norueguês que teve a intenção de ir mais além do simples nível
factual da ecologia como ciência, para um nível mais profundo de consciência ecológica (idem, p.
9)”. Aproximando-se de uma quase completa adoração da natureza pela natureza, “(...) Naess,
Bill Devall e George Sessions (...) e Warwick Fox continuaram desenvolvendo uma série de
princípios básicos dessa linha de pensamento (...) (ibidem)” que podem ser descritos a partir da
idéia de que
(...) a vida humana e não humana tem valores intrínsecos independentes do
utilitarismo; os humanos não têm direito de reduzir a biodiversidade, exceto
para satisfazer as necessidades vitais; o florescimento da vida não humana
exige um decréscimo substancial da população humana; a interferência humana
na natureza é demasiada; as políticas públicas devem, portanto, ser mudadas,
afetando as estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas (ibidem).
A biologia da conservação pode ser considerada, portanto, uma expressão específica,
relativa ao conservacionismo, do movimento mais amplo da ecologia profunda. Por fim, a outra
base pela qual floresceu a biologia da conservação foi o velho preservacionismo norte-americano.
Ele pode ser descrito, ainda por Diegues, “(...) como a reverência à natureza no sentido da
apreciação estética e espiritual da vida selvagem (...). Ele pretende proteger a natureza contra o
desenvolvimento moderno, industrial e urbano (1994 p.30)”. As idéias preservacionistas surgiram
em meados do século XIX e seu resultado prático, a criação de parques e reservas pautada pela
noção de intocabilidade dos recursos a partir da exclusão da presença humana, a não ser pela ação
50
turística contemplativa, foram fundamentais para a formulação do modelo vigente de
conservação atual. Segundo Diegues,
é nessa perspectiva que se insere o conceito de parque nacional como área
natural, selvagem, originário dos E.U.A. A noção de wilderness” (vida
natural/ selvagem), subjacentes à criação dos parques, no final do século XIX,
era de grandes áreas não-habitadas, principalmente após o extermínio dos
índios e a expansão da fronteira do oeste. Nesse período se consolidara o
capitalismo americano, a urbanização era acelerada, e se propunha reservarem-
se grandes áreas naturais, subtraindo-as à expansão agrícola e colocando-as à
disposição das populações urbanas para fins de recreação (idem, p. 24).
Pode-se afirmar como um segundo momento-síntese da reflexão proposta que a
biologia da conservação tem como elementos constitutivos, a busca pela conservação da
biodiversidade a partir da tentativa de contenção do caráter predatório da atividade humana,
assim como do aperfeiçoamento/articulação de técnicas e práticas conservacionistas esparsadas
em diferentes áreas do conhecimento; uma perspectiva biocêntrica que coloca em segundo plano
tanto as necessidades econômicas quanto as bases epistemológicas das ciências humanas e
sociais; a consideração de que a natureza é dotada de um valor intrínseco (ecologia profunda); e,
finalmente, a criação de parques e reservas intocáveis onde o mundo natural pode ficar livre das
perturbações humanas (preservacionismo norte-americano).
É possível perceber que as duas propostas a biologia da conservação e a
etnoconservação tem orientações radicalmente opostas. Essa oposição nasce, justamente, da
luta entre seus representantes e defensores para a definição de práticas de conservação também
distintas. Não se pode pensar, porém, nesse antagonismo de forma simplificada. As duas
propostas são, de uma forma geral, pontos de ntese e intersecção de diversas tendências do
movimento ecológico em geral e do conservacionismo em particular que transitam entre o pólo
biocêntrico para o antropocêntrico.
51
A biologia da conservação no estilo norte-americano e a versão indiana da
ecologia social não são os únicos enfoques possíveis para a conservação
biológica. Eles representam dois extremos de ideologias sobre as interações
entre humano e a biota não humana, e ambos apresentam estruturas teóricas
bem articuladas. A maioria dos outros enfoques cai dentro do espectro das
possibilidades definidas por esses extremos (SARKAR, 2000, p.49).
A etnoconservação, foco central desse estudo, estrutura-se como discurso teórico
articulado a partir da crítica à biologia da conservação. Para que seja possível compreender a
emergência das linhas gerais constitutivas da prática discursiva de gestão étnica, pretende-se
evidenciar esse diálogo crítico entre as duas perspectivas.
Em primeiro lugar, a idéia de que a conservação da biodiversidade pode ser efetivada
com a contenção da atividade predatória humana. Segundo Janzen, reconhecido defensor da
biologia da conservação,
o
objetivo aparente da humanidade é converter o mundo num pasto destinado a
produzir e sustentar os humanos como animais de carga. O desafio, no qual o
ecólogo tropical é um general, um pajem, um soldado de infantaria é impedir
que a humanidade atinja esse objetivo. A verdadeira batalha é, no entanto,
reprogramar a humanidade em direção a um objetivo diferente. Essa batalha
está sendo levada a cabo por outras categorias de profissionais além dos
ecólogos; no entanto, é uma batalha sobre o controle das interações e, por
definição, a pessoa competente para reconhecer, entender e manipular essas
interações é o ecólogo (JANZEN, apud. GUHA, 2000, p. 84).
De maneira geral, a biologia da conservação considera que toda atividade humana é
inevitavelmente, destrutiva. Assim, seus articuladores não levam em conta qualquer possibilidade
de atuação planejada por concepções culturais diferenciadas e não-destrutivas em relação à
natureza. Numa pequena alusão ao pensamento de Boaventura de Souza Santos (2002), parece
haver uma clara apropriação metonímica do que é considerado humano. Ao referir-se como
objetivo humano converter o mundo num pasto”, Janzen imprime à humanidade aquilo que é
característica da civilização ocidental em um determinado momento histórico, a vigência da
52
lógica capitalista de produção. A ação de outras formas de organização sócio-econômicas não
são, necessariamente, pautadas por essa lógica destrutiva e homogeneizante. Gómez-Pompa
afirma que
Os conservacionistas tradicionais, (...) vêem o valor estético, biológico e
ecológico da mesma terra, mas não vêem necessariamente as pessoas.
Normalmente falham em perceber os efeitos das ações humanas passadas ou
atuais; em diferenciar os tipos de uso pelo ser humano; ou em reconhecer o
valor econômico do uso sustentável (GÓMEZ-POMPA, 2000, p. 131).
Pimbert e Pretty também criticam a miopia dos conservacionistas biocêntricos quanto à
diversidade de formas de relação entre humano e natureza. Miopia que tornou-se o fator
fundamental para propostas de criação de parques e reservas intocáveis.
As crenças conservacionistas têm sustentado que existe uma relação inversa
entre ações humanas e a saúde (bem-estar) do meio ambiente. Os profissionais
têm estado de acordo em que problemas tais como a erosão do solo, degradação
das pastagens, desertificação, perda de florestas e a destruição da vida
selvagem, exigem intervenção para prevenir deteriorização ainda maior. (...)
Muitos esquemas de áreas protegidas não consideraram apropriadamente a
importância das formas locais pelas quais as comunidades se abastecem em
alimento, medicina, habitação, energia e suprem outras necessidades básicas.
Profissionais externos e instituições têm falhado freqüentemente em levar em
consideração as várias formas e meios de satisfazer as necessidades humanas
básicas. Ainda que as necessidades sejam universais, suas formas de satisfazê-
las variam de acordo com cada cultura, região e condições históricas
(PIMBERT & PRETTY, 2000, p. 183).
O segundo fundamento da biologia da conservação, ou seja, sua intenção de se apresentar
como o aperfeiçoamento/articulação de técnicas e práticas conservacionistas esparsadas em
diferentes áreas do conhecimento é criticada pela estreiteza de sua concepção de inter ou
transdisciplinaridade. Ao que parece, a biologia da conservação tenta promover uma junção de
disciplinas, mas não elabora uma concepção epistemológica que transcenda a fundamentação
tradicional de cientificidade, ancorada na especialização, neutralidade, objetividade e crença na
53
verdade absoluta de seus resultados. Pimbert e Pretty dão especial atenção à crítica desses
pressupostos.
Eles (os cientistas da conservação) argumentam que a melhor forma de
estabelecer prioridades é reunir vários especialistas-chave, que são
invariavelmente cientistas nacionais e internacionais. (...) Entretanto, nesse
contexto, a ‘interdisciplinaridade’ é restrita às bem conhecidas tribos de
botânicos, zoólogos e outros cientistas naturais: a ênfase é tornar a ‘ciência’
correta (idem, p. 188)
.
Mesmo restrito às ciências naturais, esses especialistas não contemplam uma visão
integrada:
Os cientistas da conservação e agentes de campo tendem a olhar os
ecossistemas pela perspectiva de sua disciplina profissional. Seu treinamento os
ensinou a olhar somente o aspecto do ecossistema em que se especializaram,
que pode ser de plantas medicinais, orquídeas raras, árvores (...). Esse aspecto
se transforma no foco principal de sua atenção quando visitam uma área rica em
diversidade biológica. Muito freqüentemente, no entanto, a especialização
disciplinar dos profissionais da conservação age contra o entendimento dos
fatores que sustentam o êxito de sistemas nativos de manejo dos recursos
naturais (ibidem, p. 186).
O resultado dessa interdisciplinaridade restrita e pouco eficaz é, segundo os críticos da
biologia da conservação, a atribuição de poder aos técnicos/cientistas no planejamento e gestão
das unidades de conservação de maneira incisivamente autoritária, bem disfarçada sob a capa da
neutralidade científica.
(...) a ciência positivista da conservação e a ética da preservação do mundo
selvagem estiveram juntas nesse modelo de transferência de tecnologia
conservacionista. Elas são elementos constitutivos desse paradigma que ainda
estrutura grande parte do planejamento e manejo das áreas protegidas nos
países em desenvolvimento, (...) promovido seletivamente por amplas forças
que podem apropriar-se de valores comerciais dos recursos biológicos dentro e
no entorno das áreas protegidas (
ibidem, p.189)
.
54
Guha refere-se explicitamente ao imperialismo conservacionista do universo cientificista
(intrinsecamente ligado aos países do norte/ocidente) sobre as gicas de conhecimento e manejo
dos recursos naturais das especificidades étnicas (situadas no sul/não-ocidental).
Essa é uma versão ecológica moderna da ‘Responsabilidade (fardo) do Homem
Branco’, em que os biólogos (mais que os funcionários ou militares) sabem que
é do interesse verdadeiro dos nativos que eles abandonem seus lares e corações
e deixam seus campos e florestas aos novos dominadores não aos animais
com os quais conviveram, mas aos biólogos, administradores de parques e da
vida selvagem – a responsabilidade de determinar coletivamente como seu
território deve ser manejado (GUHA, 2000, p. 86).
Assim, pode-se agora refletir sobre as críticas ao terceiro elemento constitutivo da
biologia da conservação, ou seja, a perspectiva biocêntrica, que coloca em segundo plano tanto
as necessidades econômicas, quanto as bases epistemológicas das ciências humanas e sociais.
Intimamente ligado ao segundo fundamento, a adoção de uma perspectiva em que a
‘natureza’ é o centro e referência de todas as abordagens e preocupações, coloca a biologia da
conservação na “defesa” da preservação dos ecossistemas per se, sem qualquer preocupação com
os fatores e intervenções humanas. Esse posicionamento, segundo seus críticos, leva duas atitudes
práticas: (1) a desconsideração das ciências humanas e sociais no conjunto de saberes aplicados
ao planejamento e gestão das unidades de conservação; e, (2) o menosprezo com as atividades
conservacionistas de uso sustentável, por enquadrá-las como atividades humanas que, como
vimos, são sempre consideradas laboração degradante.
Numa avaliação recente da conservação global, o biólogo norte-americano
Michael Soulé queixa-se de que a linguagem de políticas de conservação ‘tenha
se tornado mais humanista em valores e mais economicista em substância e,
portanto, menos naturalista e ecocêntrica’. Ele está preocupado com que, em
teoria (e certamente não na prática), alguns governos e algumas organizações
internacionais dêem mais atenção aos direitos das atividades humanas que à
vida selvagem. Uma prova dessa mudança é que ‘os administradores seniores
da maioria das organizações conservacionistas são economistas, advogados e
especialistas em desenvolvimento, e não biólogos’. ‘Ele alega que’ os cientistas
55
sociais, particularmente os economistas, tenham tomado o movimento
conservacionista internacional (idem, p. 85).
Pimbert e Pretty afirmam que esse biocentrismo se apresenta nos seguintes pressupostos:
(1) A conservação da vida selvagem somente pode funcionar ao se adotar uma
posição totalmente contrária ao uso dos recursos.
(2) A conservação da biodiversidade pode ser conseguida se não se comprar os
produtos originados dessa vida selvagem, mesmo que tenham sido
produzidos por esquemas de manejo aprovados.
(3) A conservação nos países em desenvolvimento pode ter êxito sem gerar
retorno econômico para os proprietários da terra, e para os que protegem
tradicionalmente a diversidade biológica.
(4) Toda população natural é constituída por seres frágeis, levados à beira da
extinção por qualquer uso humano (PIMBERT & PRETTY, 2000, p. 187).
As críticas a esses pressupostos são, talvez, os ponto centrais de constituição do discurso
da etnoconservação contra o da conservação biocêntrica e, ao mesmo tempo, o ponto de partida
de constituição do seu arcabouço de propostas. Sarkar usa um exemplo empírico para a
elaboração de sua denúncia:
Evidências (que) desafiam o pressuposto de que os parques nacionais
resultaram em diversidade biológica sustentável também foram ignoradas (...).
Um dos melhores exemplos é o da Planície de Serengeti na Tanzânia e no
Quênia. O ecossistema Serengeti e a cratera vizinha de Ngorongoro são habitats
para cerca de 20% de todos os grandes mamíferos da África, incluindo muitas
espécies herbívoras, quase todas as espécies carnívoras africanas, assim como
450 espécies de pássaros. Pesquisas detalhadas mostram que os pastores, o gado
e a vida selvagem coexistiam na área por mais de 2000 anos e que o pastoreio e
as técnicas de queimada criaram e mantiveram a paisagem que hoje é tão
valorizada pelos conservacionistas, e que a presença dos pastores não causaram
impacto negativo mensurável nas populações de animais selvagens ou na erosão
do solo (SARKAR, 2000, p. 48-49).
A argumentação dos adeptos da etnoconservação, ou dos defensores de uso sustentável
dos recursos naturais de uma maneira geral, aponta para a idéia de que a biodiversidade não é
fruto apenas da tendência à variabilidade intrínseca dos ecossistemas, mas também efeito da ação
56
humana orientada por modos de organização produtivos não degradantes ao longo da história,
assim como da presença de culturas não-ocidentalizadas na contemporaneidade.
A composição atual da vegetação madura bem pode ser o legado das
civilizações passadas, a herança dos campos cultivados e das florestas
manejadas, que foram abandonados centenas de anos atrás. A tardia
compreensão dessa possibilidade foi causada pela crença antiga de que apenas
as áreas limpas e plantadas são manejadas como acontece nos campos arados
que conhecemos e pela crença de que vegetação madura representa uma
comunidade no seu clímax final estável refletindo a ordem da natureza sem
interferência humana. Aentendermos e ensinarmos que as florestas tropicais
são ‘tanto artefatos como habitats’ (...) continuaremos a advogar políticas para
um meio miticamente original que existe em nossas imaginações. (...) À
medida que aumenta o nosso conhecimento e entendimento sobre as influências
antropogênicas na composição da vegetação madura, é necessário redefinir e
qualificar o que se quer dizer por habitat não modificado (GOMEZ-POMPA &
KAUS, 2000, p. 133).
Portanto, o biocentrismo conservacionista – ao propor a secundarização da presença
humana, tanto na hierarquia epistemológica dos saberes aplica à gestão, quanto na viabilidade
econômica sustentável das UC’s desconsidera que a preservação dos territórios se fez com e a
partir da presença humana de culturas não formatadas pela gica capitalista de produção. É
justamente nessa premissa que reside a defesa de que as unidades de conservação estejam
“protegidas” pelo mecanismo jurídico da intocabilidade. É, também, nesse mesmo princípio que
se estrutura a crítica do conservacionismo antropocêntrico e a sua proposta de inclusão das
lógicas/práticas sócio-econômicas não-capitalistas e sustentáveis na política de conservação.
O quarto elemento constitutivo da biologia da conservação refere-se à dimensão
“metafísica” presente em seu discurso: a natureza é dotada de um valor intrínseco. Primack &
Rodrigues (2001), discorrendo sobre os princípios éticos da biologia da conservação afirmam
que:
(...) todas as espécies representam soluções biológicas singulares para o
problema de sobrevivência. Com base nisso, a sobrevivência de cada espécie
deve ser garantida independente de sua abundância a importância para nós. Isto
57
é verdadeiro se a espécie é grande ou pequena, simples ou complexa, velha ou
recentemente surgida, de grande importância econômica ou de pequeno valor
imediato. Todas as espécies são parte da comunidade dos seres vivos e tem
tanto direito de existir quanto qualquer ser humano. Toda espécie tem seu
próprio valor, um valor intrínseco às necessidades humanas. Além de não ter o
direito de destruir as espécies, as pessoas têm a responsabilidade de agir para
evitar que as espécies entrem em extinção como resultado das ações do homem.
Este argumento apresenta os humanos como parte de uma comunidade biótica
maior, na qual nós respeitamos e reverenciamos todas as espécies (PRIMACK
& RODRIGUES, 2001, p. 63).
Argumento central da ecologia profunda, a idéia de um valor intrínseco se apresenta como
um apelo emocional e quase divinizador da diversidade biológica, na medida em que lhe confere
uma valoração apriorística e autônoma em relação à ação humana. Pimbert e Pretty, no contexto
de formulação de propostas de conservação etnicamente orientadas, formulam a seguinte crítica à
idéia de valoração intrínseca da natureza:
Mais recentemente, essa ideologia preservacionista se estende mais
radicalmente por uma versão norte-americana do movimento da ecologia
profunda (...). Para os ecologistas profundos, preservar a natureza tem um valor
intrínseco sem levar em conta benefícios que a preservação possa ter para as
gerações futuras. Propostas radicais de política têm sido apresentadas pelos
ecólogos profundos com base nesse argumento. Intervenções na natureza,
dizem, devem ser guiadas primariamente pela necessidade de preservar a
diversidade biológica e a integridade e não pelas necessidades humanas. Alguns
desses militantes argumentam que uma extensa área do globo deve ser isolada
dos seres humanos (...). As conclusões radicais da ecologia profunda têm sido
criticadas tanto nos Estados Unidos e pelos pesquisadores do Terceiro Mundo
preocupados com as consequências dessa obsessão pela vida selvagem
(PIMBERT & PRETTY, p.187).
Colchester enfatiza a filiação da noção de valoração intrínseca da natureza ao caráter
dualista/maniqueísta do pensamento ocidental, que deseja a conservação biológica apartada da
humanidade, mas que, ao mesmo tempo, foi a matriz geradora da ação altamente degradante da
civilização ocidental, judaico/cristã e capitalista.
Assim como lançaram as bases para um programa de parques nacionais nos
Estados Unidos, essas visões de natureza influenciaram poderosamente os
padrões globais de conservação. Nos Estados Unidos essa visão de conservação
58
e natureza permanece tão profundamente enraizada como nunca. O mundo
selvagem é ainda reverenciado pelos norte-americanos como um lugar para se
descobrir o sentido da vida, ainda que, para muitos ele seja também
“biodiversidade” (...). A noção de que a natureza e sociedade humana são
essencialmente antagônicas e incompatíveis racionaliza o profundo sentido de
alienação que fundamenta muitas versões norte-americanas da ecologia
profunda (...). Para esses ecologistas profundos o mundo selvagem significa
grandes áreas de vegetação nativa em vários estágios de sucessão fora dos
limites da exploração pelo homem (...) (COLCHESTER, 2000, P.227).
A percepção da fragilidade da noção de valor intrínseco da natureza encontra eco nas
críticas do processo de simplificação e compartimentação do mundo, promovido pelos excessos
do cientificismo. Existe mesmo a possibilidade de algo ter “valor” fora da apropriação cognitiva
do ser humano? A idéia de uma natureza com valor em si, não é, em “si” mesma, uma valoração
humana que tenta se desprender da sua própria humanidade, para talvez, legitimar certo tipo de
ação humana?
(...) o mito introduziu-se no pensamento racional no momento em que este o
expulsava do universo (e talvez por causa disso mesmo), enquanto as ideologias
e doutrinas abstratas dissolviam as narrativas e lendas concretas das mitologias
antigas. A idéia torna-se mito quando nela se concentra um formidável
“animismo” que lhe dá vida e alma; impregna-se de partições subjetivas quando
nela projetamos as nossas aspirações e quando identificando-nos com ela lhe
consagramos a nossa vida; assim as noções soberanas das grandes ideologias
modernas (...) adquirem uma aura adorável e as noções descritivas ou
explicativas transformam-se em seres-sujeitos (...); as críticas racionais
transformam-se em condenações éticas (...). os conceitos chave das grandes
doutrinas racionalistas e até científicas (...) tornam-se palavras chave
concentrando em si todo o sentido e toda a verdade operando assim uma
apropriação quase mágica do real (...) A própria razão e a própria ciência
tornam-se mitos ao tornarem-se entidades supremas que se encarregam da
salvação da humanidade (MORIN, 1996, p.157).
A transposição analógica de uma significação antropomórfica para os elementos
exteriores naturais é próprio da inteligibilidade mítica. Ou seja, é próprio do pensamento mítico
promover diálogos entre o que é humano e o que é natural como forma de classificação,
ordenação e inserção no mundo para a maioria das sociedades humanas. Longe de considerar o
mito uma forma inválida de entendimento do mundo, vale ressaltar que essa divinização da
59
natureza, com vontade e valoração própria, não se distingue em nada de outras concepções de
natureza como a das populações indígenas e/ou não-ocidentais de um modo geral. Nada é
intrínseco, tudo é relacional.
A compreensão do mundo por oposições, como na civilização ocidental, leva ao extremo
que rompe o equilíbrio dinâmico das relações e formata propostas excludentes de interação entre
bio e sociodiversidade. Nietzsche revolta-se contra o antropomorfismo incapaz de compreender a
riqueza das interações:
A observação inexata comum na natureza por toda parte oposições (como
por exemplo quente e frio) onde não oposições, mas apenas diferenças de
grau. Esse mal hábito nos induz também a querer entender e decompor a
natureza interior, o mundo ético-espiritual, segundo tais oposições. É indizível
o quanto de dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza, penetrou no
sentimento no sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar das
transições (NIETZSCHE, 1983, p. 146).
Sobre a idéia de valorar a natureza com uma dimensão própria, o filósofo alerta:
O caráter geral do mundo é, (...), por toda eternidade o caos, não no sentido da
falta de necessidade, mas da falta de ordem, articulação, forma, beleza,
sabedoria, ou como se chamem todos esses humanismos estéticos. (...), mas
como poderíamos censurar ou louvar o todo! Guardemo-nos de lhe imputar
falta de coração e irrazão ou seus contrários: ele não é perfeito, nem belo, nem
nobre, e não quer tornar-se nada disso, nem se quer se esforçar no sentido de
imitar o homem! E nem é atingido por nenhum de nossos juízos estéticos e
morais! Também não tem um impulso de autoconservação nem em geral
qualquer impulso; também não conhece nenhuma lei. Guardemos-nos de dizer
que há leis na natureza (...) (idem, p. 199).
É perceptível que todos os elementos constitutivos anteriores da definição de biologia da
conservação convergem para a afirmação e reprodução da prática do seu quinto e último
elemento estruturante – a criação de parques e reservas intocáveis.
A premissa orientadora é a tese de que as unidades de conservação devem ser espaços
onde a presença humana esteja radicalmente separada da natureza “selvagem”. As atividades
60
humanas nesses espaços estão restritas à intervenção de técnicos especializados na ação
conservacionista e de pesquisa (fundamentalmente formados nas ciências naturais) e, num limite
de tolerância, à observação contemplativa fomentada pelo ecoturismo. Diegues argumenta que
essas diretrizes decorrem de uma longa tradição cultural arraigada na civilização ocidental,
segundo a qual a natureza humana e a natureza selvagem são duas realidades antagônicas e
divergentes.
A noção de mito naturalista, da natureza intocada, do mundo selvagem diz
respeito a uma representação simbólica pela qual existiram áreas naturais
intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado
“puro” até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a
incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação
da natureza. O homem seria, desse modo, um destruidor natural e, portanto,
deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitariam de uma
“proteção total” (DIEGUES, 1994, p.53).
“Desde que o conceito de ‘parque nacional’ foi criado, ele vem espalhando-se pelo mundo
com sua premissa básica de que a natureza deve ser preservada de toda interferência humana”,
afirma Colchester (2000, p. 228). A diretriz de implantação de reservas intocáveis representa,
portanto, a conclusão das ciências naturais de que o afastamento do ser humano é fundamental
para a conservação da diversidade biológica.
Contudo, os críticos dessa concepção insistem que a necessidade de “ausência humana”
escamoteia a presença de determinados tipos de interesses humanos. A intocabilidade, de um
lado, e a perspectiva de um manejo étnico, de outro, são apresentados, dessa forma, como os
discursos representantes da luta política sobre a preponderância do sujeito da conservação.
O problema central de todos esses argumentos é o conceito de conservação e
proteção da natureza utilizado. A conservação, nessa concepção, é um bem
global, um benefício para a humanidade e, tipicamente, uma dívida para com as
populações locais. Um modelo econômico muito citado de utilidade do parque
mostra um valor crescente para o parque em relação à distancia da população,
generalizando esse princípio (...). São os cientistas, ou mais precisamente os
61
biólogos da conservação (ou talvez zoólogos) que falam no interesse global em
oposição à população local, cujo comportamento míope seria o problema. O
sujeito da conservação, nesse enfoque, é o cientista, como representante do
interesse planetário. A possibilidade que os “nativos” possam ser os sujeitos da
proteção ambiental o ocorre ou é explicitamente rejeitada. (...) eles
“significam algo diferente” para a conservação da biodiversidade. Conservação
pura é algo denso, por definição, algo a ser imposto do exterior, ou comprado
por incentivos financeiros (SCHWARTZMAN, 2000, p. 265-266).
Nesse sentido o conservacionismo biológico não pode ser considerado uma ação
que visa, tão somente, priorizar a preservação dos recursos em detrimento do seu uso social, mas
sim como “um conjunto de escolhas sobre visões de mundo e relações de poder. Essas escolhas
não são entre áreas naturais virgens e uso humano, mas entre diferentes tipos de uso e diferentes
formas de controle político (...)” (PIMBERT & PRETTY, 1994, p.191). Decisões que beneficiam
interesses bem distantes das assim chamadas populações tradicionais.
Em um mundo com uma superpopulação e com restrições econômicas, é
necessário estabelecer prioridades para a conservação da diversidade biológica.
(...) As questões fundamentais que devem ser tratadas pelos conservacionistas
são: o que precisa ser protegido, onde deve ser protegido e como deve ser
protegido (...). Três critérios podem ser usados para estabelecer as prioridades
de conservação para a proteção das espécies e comunidades. (1) Diferenciação
é dada a maior prioridade conservação a uma comunidade biológica quando
ela se compõe basicamente de espécie endêmicas raras do que quando é
composta basicamente de espécies comuns disseminadas. (2) Perigo as
espécies em perigo de extinção preocupam mais do que as espécies que o
estão ameaçadas. (3) Utilidade as espécies que tem um valor atual ou em
potencial tem mais importância para a conservação do que as espécies que não
tem nenhum uso evidente para as pessoas
(PRIMACK & RODRIGUES,
2001, P.207)
.
Como pode ser observado acima, o conservacionismo biocêntrico projeta seus interesses e
objetivos nas dimensões universais ancoradas numa suposta neutralidade científica. Quando se
refere à utilidade da econômica da conservação, orienta-se por dimensões globalizantes e
generalizantes da dinâmica social. Será que as espécies relevantes em contexto sócio-cultural
local são as mesmas a que se referem os conservacionistas profissionais? Quem são as “pessoas”
62
levadas em consideração no critério “utilidade” apontado por Primack & Rodrigues? Guha
responde:
Cinco maiores grupos sociais alimentam a conservação da vida selvagem no
terceiro mundo: em primeiro lugar estão os moradores das cidades e turistas
estrangeiros que tomam algum tempo de férias para visitar o mundo selvagem.
Seus motivos diretos são prazer e recreação. O segundo grupo são as elites
governantes que vêem na proteção de um animal (tigre, por exemplo) a
veneração de um símbolo de prestígio nacional. O terceiro grupo é formado
pelas organizações ambientalistas internacionais, como IUCN e WWF, que
trabalham para “educar” os individuos nas virtudes da conservação biológica. O
quarto grupo é formado pelos funcionários dos serviços dos parques. Ainda que
uma minoria deles esteja motivada pelo amor à natureza (...) a maioria deles
está motivada pelos privilégios que podem extrair (...). Finalmente, o último
grupo é o dos biólogos que acreditam na importância da vida selvagem e na
preservação da das espécies por causa da “ciência” (GUHA, 2000, p. 82).
Assim, demonstradas as concepções, posicionamentos e as divergências entre o
biocentrismo e antropocentrismo conservacionista, parece lícita a interrogação: é possível uma
síntese entre epistemológica entre biologia da conservação e etnoconservação?
O que talvez seja mais promissor sobre dialética entre a ecologia social e a
biologia da conservação é que suas diferenças podem ser, potencialmente,
utilizadas para enriquecer as tradições da conservação. Para a biologia da
conservação, enquanto a consistência entre os valores intrínsecos e
antropocêntricos pode ser impossível, um compromisso para os valores das
espécies não humanas não deveria impedir o respeito adequado aos interesses
humanos. A experiência da ecologia social prove duas lições importantes. Uma
estratégia geral de começar com o modelo de hábitat que inclua os humanos
pode levar a uma descrição biológica acurada de um ecossistema ameaçado; e
o reconhecimento dos interesses humanos pode levar a resoluções construtivas
de conflitos políticos sobre a conservação parques nacionais não funcionam
sem apoio local. (...) a biologia da conservação tem duas lições específicas.
Primeira, a ecologia social assume muito facilmente que o uso tradicional é
sustentável. A ecologia social terá de emprestar técnicas da biologia da
conservação de ecologia para ser capaz de avaliar os efeitos de longo prazo das
atividades desenvolvidas pelas comunidades locais. E segunda, até agora a
ecologia social se fundamental basicamente em modelos qualitativos. Se as
populações decrescerem muito, a ecologia social poderá ter de adotar técnica de
análise quantitativa (...), no esforço de prevenir extinções (SARKAR, 2000, p.
63-64).
63
Se a síntese, como quer Sarkar, se apresenta como uma saudável, porém difícil, ousadia
no presente momento, a possibilidade de se contemplar as duas visões de conservação é o que
está determinado na legislação brasileira relativa à conservação da natureza.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação SNUC (2002) coloca como seus
objetivos fundamentais tanto a conservação da biodiversidade quanto a elaboração de estratégias
de utilização sustentável dos recursos. Além disso, encontra-se explicitamente declarada a
preocupação de garantir às comunidades tradicionais, as possibilidades de reprodução de sua
especificidade cio-cultural, assim como a incorporação de seus saberes na gestão das unidades
de conservação. No Capitulo II, Art. 4
o
do seu texto, estão expressos os seguintes objetivos:
I contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos
genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais; II – proteger as
espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional e nacional; III contribuir
para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas naturais; IV –
promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais; V
promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da natureza no
processo de desenvolvimento; VI proteger paisagens naturais e pouco
alteradas de notável beleza cênica; (...) XI valorizar econômica e socialmente
a diversidade biológica; (...) XIII proteger os recursos naturais necessários à
subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu
conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.
(SNUC, 2002. p. 3-4).
Além disso, no artigo 5
o
do mesmo Capítulo, determina-se que as práticas
conservacionistas no Brasil devem regidas por diretrizes que:
(...) II assegurem os mecanismos e procedimentos necessários ao
envolvimento da sociedade no estabelecimento e na revisão da política nacional
de unidades de conservação; III assegurem a participação efetiva das
populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de
conservação; (...) V incentivem as populações locais e as organizações
privadas a estabelecerem e administrarem unidades de conservação dentro do
sistema nacional; (...)VIII – assegurem que o processo de criação e a gestão das
unidades de conservação sejam feitos de forma integrada com as políticas de
administração das terras e águas circundantes, considerando as condições e
necessidades sociais e econômicas locais; (...) IX considerem as condições e
necessidades das populações locais no desenvolvimento e adaptação de
64
métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais; (...) X garantam
às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos
naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de
subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos; (...)
(idem, p. 4-5).
Em seus objetivos e diretrizes, portanto, é assegurada a importância da conservação
biológica, assim como a manutenção das culturas tradicionais que estão presentes nas áreas
destinadas à proteção. É bem perceptível, também, a ênfase em princípios democráticos de
implantação e gestão dessas unidades. Assim, o objetivo conjunto da conservação da bio e da
sócio diversidade saltam aos olhos do leitor em suas orientações gerais.
Porém, quando a legislação refere-se aos aspectos específicos de normatização, a
equidade desaparece. Os aspectos conservacionistas biocêntricos se sobrepõem às preocupações
sociais e a autoridade única do universo técnico-científico surge de maneira sutil, mas decisiva. A
dicotomia mais importante é a diferenciação entre dois modelos básicos de conservação, a saber:
unidades de proteção integral, orientada pela noção da intocabilidade; e as unidades de uso
sustentável, orientada pela tolerância com a presença humana. No Capítulo III é determinada a
seguinte diferenciação:
§ 1o O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a
natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com
exceção dos casos previstos nesta Lei. § 2o O objetivo básico das Unidades de
Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso
sustentável de parcela dos seus recursos naturais (idem, p. 6).
Nas unidades de proteção integral existem cinco categorias diferenciadas: estação
ecológica; reserva biológica, parque nacional; monumento natural e refúgio de vida Silvestre.
Salvo suas especificidades de objetivos, a todas elas estão excluídas as possibilidades de presença
permanente de populações tradicionais ou existem sérias restrições de atividade e permanência.
65
Nas unidades de uso sustentável existem, por sua vez, sete categorias diferenciadas de
conservação: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta
Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e
Reserva Particular do Patrimônio Natural. Nelas, de uma maneira geral, a presença humana sofre
uma série de medidas reguladoras em relações às práticas de uso dos recursos. Assim, mesmo
contemplando as duas perspectivas de conservação o biocentrismo e o antropocentrismo não
existe a preocupação de constituir-se um modelo integrado de gestão dos recursos naturais e
sociais.
Mas, é no Capitulo IV – Da Criação, Implantação e Gestão das Unidades de Conservação
que a preponderância da intocabilidade se materializa e a autoridade cientificista nas decisões
de implantação e gestão se confirma. Demonstrando aparente preocupação com as formas
participativas, o parágrafo define que a decisão sobre a criação das unidades de conservação
deve ser “(...) precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a
localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade” (ibidem, p. 13). No entanto,
a equidade decisória entre a análise técnica e consulta pública é tornada vazia de sentido, pelo
Parágrafo 4°: Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória a
consulta de que trata o § 2o deste artigo”.
A reflexão mais atenta aos meandros da determinação pode revelar aspectos muito
importantes na práxis conservacionista. Se a decisão sobre a criação de estações ecológicas e
reservas biológicas cabe exclusivamente à avaliação técnico-científica, a ela cabe, portanto,
decidir o que deve ser conservado de uma maneira geral. São os recursos metodológicos
científicos – e, conseqüentemente, aqueles que controlam sua discursividade – que detêm o poder
de decidir se os territórios devem ser destinados à proteção integral ou ao uso sustentável. Que
poder decisório cabe, então, à consulta pública?
66
Por fim, dessa pequena e parcial análise do SNUC, pode-se ponderar sobre a
incongruência entre seus princípios e suas determinações efetivas. Em seu aspecto generalizante,
a sociedade de uma forma geral e as comunidades tradicionais de forma especifica são
convocadas à decisão “participativa”. Porém, nos termos efetivos de atribuição de poder, as
diretrizes biocêntricas regem a implantação das unidades de conservação. Mesmo se a decisão de
implantação de unidade de conservação seja para orientada para a constituição do “uso
sustentável”, a decisão passa, anteriormente, pelos resultados dos laudos elaborados pelos
cientistas naturais sobre o “valor” da biodiversidade encontrada.
Finalmente, pode-se considerar que a implantação dos modelos de conservação pautadas
pela gestão étnica encontra-se possível no Brasil a partir dos parâmetros da lei vigente. Essa
possibilidade, certamente, é resultado de muitos anos de disputas políticas que não se restringem
aos aspectos acadêmicos de elaboração das formas de conservação com a presença humana, seja
ela “tradicional” ou “moderna”. As discussões e propostas acadêmicas nascem, obviamente, dos
conflitos e contradições inerentes à nossa realidade sócio-ecológica.
Mas a efetivação de uma perspectiva de equilíbrio de conservação da bio/sociodiversidade
está condicionada, como vimos, ao cientificismo biocêntrico e aos seus beneficiários. Deve ser
consentida por aqueles que estão treinados para a realização de levantamentos taxonômicos e
para a tradução, em termos humanos, do “valor” que as espécies e interações ecológicas dão a si
mesmas.
67
Capítulo IV – Etnoconservação e desenvolvimento sustentável
Este capítulo tem como objetivo discutir a noção tão amplamente invocada em nossos
dias de desenvolvimento sustentável. Propõe-se demonstrar que o desejo de convergência entre
uma perspectiva sustentável de uso dos recursos naturais e os “benefícios” da noção de
desenvolvimento é incoerente do ponto de vista conceitual. Assim, procura-se demonstrar que o
desenvolvimento sustentável (1) não rompe com a lógica capitalista de produção; e, (2) seus
objetivos declarados são estruturalmente incompatíveis com a vigência da mesma lógica. A partir
daí, a intenção (3) é argumentar que a propostas de manejo postulados pela etnoconservação não
se guiam pelos princípios gerais da sustentabilidade defendida por documentos como a Agenda
21.
1 – Desenvolvimento sustentável e seus caminhos conceituais.
Para a elaboração do conceito de desenvolvimento sustentável, as referências utilizadas
nesse estudo se concentraram em quatro documentos: O Nosso Futuro Comum (1991), a Agenda
21(1992), a Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável (2002) e o Plano de
Implantação da Conferência de Joanesburgo (2002).
Para o Nosso Futuro Comum (Relatório Brundtland), a noção desenvolvimento
sustentável implica em quatro premissas fundamentais inter-relacionadas: (1) desenvolvimento
econômico responsável, (2) estratégias de “racionalização” de utilização dos recursos para que
esses estejam disponíveis às gerações futuras; (3) a minimização das desigualdades sociais e
redução da pobreza, e (4) o fortalecimento de esferas participativas de decisão política seja em
nível nacional (eleições democráticas), seja no âmbito internacional (óros multilaterais).
Assim, o relatório discute a primeira premissa nos seguintes termos:
68
Essa comissão acredita que os homens podem construir um mundo mais
próspero, mais justo e mais seguro. Este relatório, (...), não é uma previsão de
decadência, pobreza e dificuldades ambientais cada vez maiores num mundo
cada vez mais poluído e com recursos cada vez menores. Vemos, ao contrário,
a possibilidade de uma nova era de crescimento econômico, que tem de se
apoiar em práticas que conservem e expandam a base de recursos ambientais
(NOSSO FUTURO COMUM, 1991, p. 1).
A segunda premissa, por sua vez, julga “(...) a humanidade é capaz de tornar o
desenvolvimento sustentável – de garantir que ela atenda as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras atenderem também às suas” (idem, p. 9). O
terceiro ponto apresenta-se bastante otimista com as potencialidades de redução da pobreza,
que
(...) tanto a tecnologia quanto à organização social podem ser geridas e
aprimoradas a fim de promover uma nova era de crescimento econômico. Para
a comissão, a pobreza generalizada já não é inevitável. A pobreza não é um mal
em si mesma, mas para haver desenvolvimento sustentável é preciso atender às
necessidades básicas de todos e dar a todos a oportunidade de realizar suas
aspirações de uma vida melhor. Um mundo onde a pobreza é endêmica estará
sempre sujeito a catástrofes, ecológicas ou de outra natureza (ibidem p. 9-10).
O relatório reconhece que “muitos dos atuais esforços para manter o progresso humano,
para atender às necessidades humanas e para atender as ambições humanas são simplesmente
insustentáveis” (idem, p. 8), ou seja, que ações político-econômicas direcionadas para o
crescimento/desenvolvimento são as grandes responsáveis pelo enorme desequilíbrio ecológico
que assistimos. Mas responsabilizar a “pobreza endêmica” por qualquer tipo de catástrofe, não
deixa de ser um erro grosseiro de interpretação, a partir da confusão entre as causas e os efeitos
dos problemas do mundo contemporâneo.
Por fim, a quarta condição de sustentabilidade se concentra no processo político de busca
da equidade, que, segundo o relatório, seria “(...) facilitada por sistemas políticos que
assegurassem a participação efetiva dos cidadãos na tomada de decisões e por processos mais
69
democráticos na tomada de decisões em âmbito internacional” (ibidem, p.10). Talvez seja
importante salientar aqui a importância dada às instâncias de participação e cooperação
internacional, como possibilidade de projetos de ação conjunta entre os países em busca de
condições sustentáveis de ação econômica.
Talvez nossa tarefa mais urgente hoje seja persuadir as nações da necessidade
de um retorno ao multilateralismo. (...) O desafio de encontrar rumos para um
desenvolvimento sustentável tinha de fornecer o ímpeto ou mesmo o
imperativo para uma busca renovada de soluções multilaterais e para um
sistema econômico internacional de cooperação reestruturado. Esses desafios se
sobrepunham às distinções de soberania nacional, de estratégias limitadas de
ganho econômico e de várias disciplinas científicas (ibidem, p. XII).
A Agenda 21 (1992), longo documento redigido a partir das discussões elaboras no
âmbito da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO/92 ou
RIO/92), não escapa das orientações propostas pelo Relatório Brundtland. A tríade
desenvolvimento econômico/redução da pobreza/ conservação dos ecossistemas a partir da
preocupação com as gerações futuras continua como princípio norteador da noção
desenvolvimento sustentável.
(...) caso se integrem, as preocupações relativas a meio ambiente e
desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às
necessidades básicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemas melhor
protegidos e gerenciados e construir um futuro mais próspero e seguro. São
metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos em
uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável (idem, p. 3).
Assim como no relatório Brundtland, o documento de 1992 estabelece que a
responsabilidade maior de realização de esforços políticos para o desenvolvimento sustentável é
das nações, por meio do regime de cooperação internacional. O elemento novo da Agenda 21 é o
convite para que instituições e grupos (como as organizações não-governamentais) participem da
construção do desenvolvimento sustentável.
70
A Agenda 21 está voltada para os problemas prementes de hoje e tem o
objetivo, ainda, de preparar o mundo para os desafios do próximo século.
Reflete um consenso mundial e um compromisso político no nível mais alto no
que diz respeito a desenvolvimento e cooperação ambiental. O êxito de sua
execução é responsabilidade, antes de mais nada, dos Governos. Para
concretizá-la, são cruciais as estratégias, os planos, as políticas e os processos
nacionais. A cooperação internacional deverá apoiar e complementar tais
esforços nacionais. Nesse contexto, o sistema das Nações Unidas tem um papel
fundamental a desempenhar. Outras organizações internacionais, regionais e
sub-regionais também o convidadas a contribuir para tal esforço. A mais
ampla participação pública e o envolvimento ativo das organizações não-
governamentais e de outros grupos também devem ser estimulados. (ibidem, p.
4)
Quando trata de aspectos estritamente econômicos, a Agenda 21 aposta, também, na
dinamização das atividades produtivas como condição fundamental para a implantação da
sustentabilidade. Além disso, defende uma relação de compromisso, cooperação e “tolerância”
entre as economias desenvolvidas com as “em desenvolvimento”. Aqui está implícita a idéia de
que todos os países têm condições e direitos de atingir padrões de desenvolvimento apresentados
pelos os países do norte.
Tanto as políticas econômicas dos países individuais como as relações
econômicas internacionais têm grande relevância para o desenvolvimento
sustentável. A reativação e a aceleração do desenvolvimento exigem um
ambiente econômico e internacional ao mesmo tempo dinâmico e propício,
juntamente com políticas firmes no plano nacional. A ausência de qualquer
dessas exigências determinará o fracasso do desenvolvimento sustentável. A
existência de um ambiente econômico externo propício é fundamental. O
processo de desenvolvimento não adquirirá impulso caso a economia mundial
careça de dinamismo e estabilidade e esteja cercada de incertezas. Tampouco
haverá impulso com os países em desenvolvimento sobrecarregados pelo
endividamento externo, com financiamento insuficiente para o
desenvolvimento, com obstáculos a restringir o acesso aos mercados e com a
permanência dos preços dos produtos básicos e dos prazos comerciais dos
países em desenvolvimento em depressão. A década de 1980 registrou números
essencialmente negativos para todos esses tópicos, fato que é preciso inverter.
As políticas e medidas necessárias para criar um ambiente internacional
marcadamente propício aos esforços de desenvolvimento nacional o,
conseqüentemente, vitais. A cooperação internacional nessa área deve ser
concebida para complementar e apoiar e não para diminuir ou subordinar
políticas econômicas internas saudáveis, tanto nos países desenvolvidos como
71
nos países em desenvolvimento, para que possa haver um avanço mundial no
sentido do desenvolvimento sustentável (ibidem, p.4).
Portanto, guardadas as diferenças que refletem as transformações político-ideólogicas dos
anos 80 para os anos 90 do século XX, tanto o Relatório Brundtland quanto a Agenda 21
sedimentam a noção de desenvolvimento sustentável nos mesmos fundamentos. É nítido que no
documento mais recente não se encontram expressões como “crescimento”, “pobreza endêmica
responsável por catástrofes”, etc. Encontram-se agora, expressões consideradas éticas como
“reativação e a aceleração do desenvolvimento”, “dinamismo”, além da inclusão cooperativa de
novos atores sociais como as organizações não-governamentais.
Porém, é inevitável reconhecer que os postulados do conceito são os mesmos:
continuidade e expansão do dinamismo capitalista, porém em padrões responsáveis; preocupação
com a redução da pobreza; conservação dos recursos naturais e ação política voltada para a
cooperação internacional.
Recentemente (2002), a Conferência de Joanesburgo (Rio+10) ratificou o seu
compromisso com a noção de desenvolvimento sustentável por meio de dois documentos a
Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável (2002) e o Plano de
Implementação (2002). O primeiro, inclusive, assume o caráter histórico de continuidade e
revisão das duas conferências mundiais anteriores.
Trinta anos atrás, em Estocolmo, concordamos na necessidade urgente de reagir
ao problema da deterioração ambiental. Dez anos atrás, durante a Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio
de Janeiro, concordamos em que a proteção do meio ambiente e o
desenvolvimento social e econômico o fundamentais para o desenvolvimento
sustentável, com base nos Princípios do Rio. Para alcançar tal desenvolvimento,
adotamos o programa global Agenda 21 e a Declaração do Rio, aos quais
reafirmamos nosso compromisso. A Cúpula do Rio foi um marco significativo,
que estabeleceu uma nova agenda para o desenvolvimento sustentável
(DECLARAÇÃO DE JOANESBURGO SOBRE DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL, 2002, p. 1).
72
Amparada num discurso de tom notadamente populista, a Declaração de Joanesburgo
reafirma as bases conceituais discutidas sobre desenvolvimento sustentável. O olhar sobre as
novas gerações é colocado nos seguintes termos:
No início desta Cúpula, crianças do mundo nos disseram, numa voz simples,
porém clara, que o futuro pertence a elas e, em conseqüência, conclamaram
todos nós a assegurar que, através de nossas ações, elas herdarão um mundo
livre da indignidade e da indecência causadas pela pobreza, pela degradação
ambiental e por padrões de desenvolvimento insustentáveis. (...) Como parte de
nossa resposta a essas crianças, que representam nosso futuro coletivo, todos
nós, vindos de todos os cantos do mundo, formados por diferentes experiências
de vida, estamos unidos e animados por um sentimento profundo de que
necessitamos criar, com urgência, um novo e mais iluminado mundo de
esperança. (idem, p.2).
A clássica convergência entre desenvolvimento econômico, luta contra a pobreza e
conservação dos recursos naturais:
Por conseguinte, assumimos a responsabilidade coletiva de fazer avançar e
fortalecer os pilares interdependentes e mutuamente apoiados do
desenvolvimento sustentável desenvolvimento econômico, desenvolvimento
social e proteção ambiental nos âmbitos local, nacional, regional e global
(ibidem, p. 2).
O documento não esquece do quarto pilar fundamental para o desenvolvimento
sustentável: a cooperação internacional.
Para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável, necessitamos de
instituições multilaterais mais eficazes, democráticas e responsáveis. (...)
Reafirmamos nosso compromisso com os princípios e propósitos da Carta das
Nações Unidas e do Direito Internacional, bem como com o fortalecimento do
multilateralismo. Apoiamos o papel de liderança das Nações Unidas na
condição de mais universal e representativa organização do mundo, e a que
melhor se presta à promoção do desenvolvimento sustentável (ibidem, p. 2).
73
alguns elementos novos. O reconhecimento de que a busca por sustentabilidade
implica numa ação em todos os níveis de sociabilidade do local ao global é uma delas. A
noção de diversidade de povos culturas e experiências também está presente.
Na Cúpula de Joanesburgo muito se alcançou na convergência de um rico
tecido de povos e pontos de vista, numa busca construtiva por um caminho
comum rumo a um mundo que respeite e implemente a visão do
desenvolvimento sustentável. Joanesburgo também confirmou haver sido feito
progresso significativo rumo à consolidação de um consenso global e de uma
parceria entre todos os povos de nosso planeta (ibidem, p. 3).
Por fim, num tom mais técnico e menos apelativo, o Plano de Implantação da RIO+10
confirma os componentes fundamentais do que se compreende por sustentabilidade.
O presente plano de implementação tem como base os resultados obtidos desde
a CNUMAD
5
e busca acelerar o cumprimento dos demais objetivos. Neste
sentido, comprometemo-nos a atuar e a adotar medidas concretas em todos os
níveis, bem como a ampliar a cooperação internacional, levando em
consideração os princípios da Conferência do Rio(...). Esses esforços
promoverão ainda a integração dos três componentes do desenvolvimento
sustentável, ou seja, o crescimento econômico, desenvolvimento social e
proteção do meio ambiente, como três pilares interdependentes que se reforçam
mutuamente. A erradicação da pobreza e a modificação dos padrões
insustentáveis de produção e consumo, assim como a conservação e
gerenciamento dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento
econômico e social, constituem objetivos gerais e um requisito essencial para o
desenvolvimento sustentável (PLANO DE IMPLANTAÇÃO, 2002, p. 1).
Guardadas as diferenças de linguagem, de pequenos temas e preocupações específicas do
momento histórico no qual foram elaborados, a revisão conceitual em torno dos quatro
documentos permite-nos concluir que suas linhas gerais praticamente não se alteraram ao longo
dos últimos anos do século XX e no início do século XXI.
Apesar do processo de fortalecimento das relações capitalistas de produção, seguido do
processo de pauperização dos países do Sul e da situação de degradação ambiental do planeta, o
5
Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
74
discurso manteve o otimismo na tríade desenvolvimento responsável/ redução da pobreza/
eficiência ecológica. Apesar do processo de globalização das relações e mundialização do capital
convergente com o crescimento da arrogância unilateral dos Estados Unidos da América; da
fraqueza da ONU em resolver os conflitos entre terrorismo fundamentalista e terrorismo de
Estado, a no multilateralismo e na cooperação entre as nações mantêm-se como condição
estruturante para a viabilidade do desenvolvimento sustentável.
Talvez os fatos históricos sejam suficientes para demonstrar que os debates políticos em
torno da construção do desenvolvimento sustentável não foram eficazes para conter minimamente
a dinâmica destrutiva que as relações da sociedade capitalista imprimem no mundo. Assim, o
próximo passo é realizar uma reflexão teórica que permita o questionamento do conceito de
desenvolvimento em relação à sustentabilidade. Sua vigência é incompatível tanto com a
possibilidade da erradicação das desigualdades sociais, quanto com o respeito à renovabilidade da
natureza e da viabilidade da presença humana no planeta.
2 – A noção de desenvolvimento e sua inseparabilidade da lógica de produção capitalista.
Discutir o conceito de desenvolvimento talvez seja um dos empreendimentos mais amplos
das ciências sociais. Não espaço muito menos intenção de empreender uma discussão
aprofundada sobre o tema nesse estudo. O propósito aqui é fundamentar a idéia de que a noção
desenvolvimento é inseparável do caráter expansionista das relações capitalistas. Assim como das
condições de alargamento das desigualdades sociais/degradação ecológica que vigoram no
mundo contemporâneo.
Para isso, busca-se aqui a fundamentação teórica do conceito a partir da teorização
clássica sobre o tema, o que nos leva inevitavelmente ao pensamento marxiano. Em 1848, início
do período em que Marx volta suas atenções para a lógica de produção e reprodução capitalista, a
75
noção de desenvolvimento aparece intimamente associada à especificidade do caráter de
autodestruição criadora e ao mesmo tempo expansionista de suas relações. Essas duas
características estão fortemente ancoradas, por sua vez, do desenvolvimento tecno-científico da
modernidade. Encontramos esse ponto de vista com impressionante clareza em seus escritos:
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos
de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto, todo o
conjunto de relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de
produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de todas as classes
industriais anteriores. O contínuo revolucionamento da produção, o abalo
constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas
distinguem a época burguesa de todas as precedentes (MARX & ENGELS,
1977, p. 24).
A condição de contínuo revolucionamento” da produção capitalista aparece como
condição básica do seu processo de expansão, na medida em que antigas formas de organização
da produção, circulação e troca de mercadorias são rapidamente superadas por novas.
(...) A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos
impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda
parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte. Através da
exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à
produção e ao consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários,
retirou debaixo dos pés da indústria o terreno nacional. As antigas indústrias
nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas a cada dia. São
suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida
e morte para todas as nações civilizadas indústrias que não mais empregam
matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das mais remotas
regiões, e cujos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em
todas as partes do mundo. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pela
produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfeitas
exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar da antiga
auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em
todas as regiões um intercâmbio universal, uma universal interdependência das
nações (idem p.24-25).
Esse caráter autodestruidor e expansionista age, como nos mostra Marx, de maneira
avassaladora sobre o conjunto das relações sociais e sobre a reconfiguração da dinâmica sócio-
espacial. Mas, nos interessa ressaltar que mesmo de maneira implícita, o autor vislumbra que a
76
expansão da escala mundial da industrialização incide diretamente sobre a apropriação dos
recursos naturais, na medida em que a busca de matéria-prima necessária ao desenvolvimento
capitalista deixa de ser explorada no âmbito “local” para ser encontrada nas regiões mais
“remotas” do planeta.
Além disso, Marx evidenciou uma relação indissociável entre desenvolvimento das forças
produtivas e o recrudescimento das desigualdades sociais no processo de acumulação capitalista a
partir da produção da mais valia, tanto relativa quanto absoluta
6
.
Dentro do sistema capitalista, todos os métodos para a elevação da força
produtiva social do trabalho se aplicam à custa do trabalhador individual; todos
os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de
dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, transformando-o
num ser parcial, degradam-no, tornando-o um apêndice da máquina; aniquilam,
com o tormento de seu trabalho, seu conteúdo, alienam-lhe as potências
espirituais do processo de trabalho na mesma medida em que a ciência é
incorporada a este último como potência autônoma. (...) Mas todos os métodos
de produção de mais valia são, simultaneamente, métodos da acumulação, e
toda expansão da acumulação torna-se, reciprocamente, meio de desenvolver
aqueles métodos. Segue, portanto, que à medida que se acumula capital a
situação do trabalhador, qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo, tem de
piorar. Finalmente, a lei que mantém a superpopulação relativa ou exército
industrial de reserva sempre em equilíbrio com o volume e a energia da
acumulação prende o trabalhador mais firmemente ao capital do que as
correntes de Hefaísto agrilhoaram Prometeu ao rochedo. Ela ocasiona uma
acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. A acumulação
da riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria,
tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral
no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como
capital (MARX, 1984, p. 209-210).
Interessante notar a atualidade das citações acima. Nelas, é possível encontrar alguns
componentes estruturais de constituição da dinâmica econômica contemporânea, a saber:
autodestruição criadora, expansionismo das relações econômicas, organização do meio tecno-
6
Seleciona-se aqui a síntese de Harvey sobre esse conceito central na obra marxista: mais-valia absoluta “(...) apoia-
se na extensão da jornada de trabalho com relação ao salário necessário para garantir a classe trabalhadora num dado
padrão de vida. (...) Nos termos da segunda estratégia, denominada mais-valia relativa a mudança organizacional e
tecnológica é posta em ação para gerar lucros temporários para firmas inovadoras e lucros mais generalizados com a
redução dos custos dos bens que definem o padrão de vida do trabalho” (HARVEY, 1992, p. 174).
77
científico, alargamento dos abismos sociais, exclusão... Longe de proporcionar uma atualização
forçada dos escritos oitocentistas de Marx, é coerente admitir que a dinâmica capitalista ainda
está presente nos nossos dias. É claro que não se pode procurar em Marx um tom profético sobre
os rumos do mundo, principalmente nos séculos XX e XXI. Mas, é inevitável reconhecer que
essas características ainda persistem.
Harvey defende categoricamente que a transição anunciada entre a condição moderna e
pós-moderna implica em mudanças que quando confrontadas com as regras básicas de
acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações de aparência superficial do que
como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial
inteiramente nova” (HARVEY, 1992, p.10). Assim, segundo o autor, deve-se refletir, com muito
cuidado e posicionamento crítico, sobre a pós-modernidade como algo que se estrutura para além
dos limites da própria modernidade e modernização de tipo capitalista.
O autor fundamenta sua argumentação a partir da análise do processo transição do modelo
de produção fordista para o da acumulação flexível (também denominado toyotismo) a partir da
afirmação de que muitos sinais de continuidade, em vez de ruptura, com a era fordista
(idem. p. 160). Parte de três pontos que considera relevantes para sua tese. O primeiro, centra-se
no caráter expansionista do capital:
O capitalismo é orientado para o crescimento. Uma taxa equilibrada de
crescimento é essencial para a saúde de um sistema econômico capitalista, visto
que através do crescimento os lucros podem ser garantidos e a acumulação
do capital, sustentada. Isso implica que o capitalismo tem de preparar o terreno
para uma expansão do produto e um crescimento em valores reais, pouco
importam as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou ecológicas
(ibidem, p.166).
O segundo argumento refere-se à exploração do trabalho como condição de acumulação
que ainda persiste na atualidade, pois, segundo o autor
78
O crescimento em valores reais se apóia na exploração do trabalho vivo na
produção. Isso não significa que o trabalho se aproprie de pouco, mas que o
crescimento sempre baseia na diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo
que cria. Por isso o controle do trabalho, na produção e no consumo é vital para
a perpetuação do capitalismo. Como o controle do trabalho é essencial para o
lucro capitalista, a dinâmica da luta de classes pelo controle do trabalho e pelo
salário de mercado é fundamental para trajetória do desenvolvimento capitalista
(ibidem, p. 169).
Por fim, o dinamismo tecnológico.
O capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico.
Isso decorre em parte das leis coercitivas, que impelem os capitalistas
individuais a inovações em sua busca de lucro. Mas a mudança organizacional e
tecnológica também tem papel-chave na modificação da dinâmica da luta de
classes, movida por ambos os lados, no domínio dos mercados de trabalho e do
controle do trabalho (ibidem, p. 169).
O modelo de acumulação flexível contemporâneo segundo Harvey reproduz a gica
do desenvolvimento capitalista tal como compreendida por Marx. Suas bases constitutivas, a
exploração do trabalho produtor de mais-valia, o dinamismo autodestruidor e criativo, assim
como o caráter expansionista de suas atividades sustentam o processo de acumulação.
Ou seja, a dinâmica capitalista tende ao crescimento e à expansão como condição
inevitável de existência. Se essa tendência é, na perspectiva teórica adotada, parte constitutiva da
lógica capitalista, como estabelecer bases de conservação e renovabilidade dos recursos naturais
em padrões ecologicamente aceitáveis? Como acreditar na possibilidade de um desenvolvimento
que tenha capacidade de erradicar ou atenuar as desigualdades de nossa sociedade? É possível,
como pretendem muitos pensadores contemporâneos, desvincular crescimento de
desenvolvimento? Quais experiências sociais podem servir de estímulo para uma reflexão teórica
que proponha o questionamento do conceito desenvolvimento sustentável? Apesar da boa
intenção, é possível pensar que somente a racionalização’ dos métodos produtivos voltados para
as técnicas de “produção mais limpa”, o “tratamento de dejetos” e a “reciclagem” são capazes de
79
garantir uma sustentabilidade aceitável? Por fim, é possível pensar o equilíbrio
econômico/ecológico na forma de organização societária vigente do mundo contemporâneo?
3 – A Etnoconservação orienta-se pelos princípios do desenvolvimento sustentável?
O desenvolvimento sustentável, a partir das reflexões apresentadas, parece não garantir as
bases efetivas da sustentabilidade. Pela ótica marxista, como vimos, é impossível dissociar
produção capitalista da expansividade de suas relações sociais; e estas são inevitavelmente
orientadas para a reprodução e alargamento das desigualdades e pela dependência cada vez maior
dos recursos naturais. Além disso, o contexto histórico de emergência do conceito
desenvolvimento sustentável coincide com o fortalecimento da unilateralidade dos Estados
Unidos da América no cenário político internacional. Portanto pode-se afirmar que as bases
fundamentais de edificação do desenvolvimento sustentável garantia de renovabilidade dos
recursos naturais, promoção da equidade social, dinamismo econômico responsável e
multilateralismo político nas relações internacionais são estruturalmente inviáveis num mundo
regido pela lógica de organização capitalista.
Assim o objetivo nesse momento, é demonstrar que os elementos constitutivos da
etnoconservação não se adequam aos princípios comumente aceitos para formulação do
desenvolvimento sustentável. Não se trata, contudo, de colocar a etnoconservação como o mais
adequado modelo de gestão da relação entre paisagens e culturas. Mas procurar nela assim
como nas diversas experiências que possibilitam relações não-capitalistas de produção
subsídios empíricos e teóricos para a superação da noção insustentável de desenvolvimento
sustentável.
A etnoconservação consiste em estruturar o campo de possibilidades das populações
tradicionais, através da ação política das organizações governamentais e não-governamentais,
80
para o uso sustentável. Esse uso advém da garantia de continuidade dos seus próprios modos de
vida e do afastamento de sua incorporação à praticas e relações sociais degradantes. Conta-se,
ainda com a proteção jurídico-institucional do Estado, ou pelo menos com sua tolerância em
relação ao processo. Se a centralidade da práxis conservacionista, segundo a proposta conceitual,
pertence às populações tradicionais, é coerente afirmar que a lógica a presidir a gestão seja a não-
ocidental e a não-capitalista.
Portanto, aquilo que propõe o desenvolvimento sustentável como princípio de uso-
conservação não é o que a etnoconservação almeja para o mesmo pressuposto. O primeiro
acredita que a sustentabilidade pode ser alcançada nos limites da lógica capitalista, a partir da
readequação de sua dinâmica. Não ousa, contudo, tocar em seus elementos constitutivos
fundamentais. O segundo conceito não se configura numa ação revolucionária longe disso –,
mas reconhece em certas práticas não-capitalistas estratégias adequadas para a sustentabilidade
da relação humano-natureza.
Sabe-se, contudo, que a lógica de produção capitalista tem como uma de suas
características, a incorporação de modelos organizativos estranhos as suas relações de produção.
Desde que esses modelos não coloquem em xeque sua reprodução enquanto relação social
dominante. Pode-se afirmar, portanto, que, geralmente, as singularidades sociais ou são
absorvidas ou tornam-se subservientes às relações de produção capitalista.
Por outro lado, isso não significa que as experiências não-capitalistas não possam
sobreviver ser o consentimento do modelo hegemônico. Para alguns autores, como Santos (2002)
trata-se de reconhecê-las e evidenciar suas potencialidades, através da busca de um duplo
movimento sociológico.
Enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências
sociais disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das
81
experiências sociais possíveis. As duas sociologias estão estreitamente
associadas, visto que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no
mundo mais experiências são possíveis no futuro. Quanto mais ampla for a
realidade credível, mais vasto é o campo dos sinais ou pistas credíveis e dos
futuros possíveis e concertos (idem, p. 27).
Desse modo, parte-se da premissa que em todo fenômeno social não-capitalista reside
tanto as potencialidades de sua inserção, quanto a capacidade de elaboração de novas formas de
vida. Nesse sentido, o jogo das forças políticas que nelas incidem é fundamental para destinação
rumo à inserção ou à resistência. No contexto da etnoconservação enquanto modo de atuação
política, a relação entre as organizações não-governamentais e as populações tradicionais pode
ser um elemento muito importante na determinação desse destino.
Como orientadora da práxis envolvida pela etnoconservação, essas entidades
ambientalistas podem servir muito bem à incorporação das comunidades tradicionais à lógica de
expansão capitalista. Podem, contudo, contribuir para a emergência de modelos de organização
social que possibilitem, em longo prazo, elementos para novas concepções de produção,
circulação e trocas não-capitalistas. Talvez resida nessa potencialidade um traço importante da
contemporaneidade das populações “tradicionais”.
É nesse sentido que se justifica a análise de modelos alternativos de gestão não orientados
pela concepção de desenvolvimento sustentável, mas, como afirma Diegues (1992), na busca de
“sociedades sustentáveis”.
A questão de fundo, no entanto, permanece válida e atual, isto é, como construir
sociedades ecológica e socialmente mais justas? Nesse sentido, a conceituação
de “sociedades sustentáveis” ainda está num “canteiro de obras”, exigindo a
elaboração de novos paradigmas (...). A conceituação de sociedades
sustentáveis, baseada na necessidade de se manter a diversidade ecológica,
social e cultural dos povos, das culturas e dos modos de vida nos parece não
somente mais substantiva, mas portadora de grandes desafios. Ela relança, de
alguma forma, a necessidade de se criarem novas utopias para o século XXI.
Ela acena para a necessidade de se pensar na diversidade de sociedades
sustentáveis, com opções econômicas e tecnológicas (...) (idem, p. 29)
82
Mesmo não pretendendo a constituição de práticas revolucionárias e muitas vezes
interessados em reproduzir a lógica vigente, essas propostas podem permitir a emergência de
gotas subversivas que minam demoradamente as gigantescas rochas estruturantes da sociedade
capitalista contemporânea. Para avaliar as potencialidades de construção de “sociedades
sustentáveis” ou da mera inserção das diferenças étnicas tradicionais nas relações capitalistas de
produção, busca-se, no próximo capítulo, refletir sobre a relação entre as organizações não
governamentais e populações tradicionais no contexto do ambientalismo e da etnoconservação.
83
Capítulo V Organizações Não-Governamentais e Populações tradicionais como sujeitos
constitutivos da etnoconservação
Este capítulo tem por preocupação central discutir os dois conceitos que permeiam e
estruturam a presente proposta de análise sobre a etnoconservação: organizações não-
governamentais e populações tradicionais. Essas noções amplamente utilizadas na esfera
acadêmica e ambientalista, referem-se aos grupos sociais pela qual a proposta da etnoconservação
transita no seu caminho de postulado teórico à práxis conservacionista. Dada à amplitude do
tema, a opção aqui apresentada é refletir de forma panorâmica sobre os elementos sociais e
intelectuais constitutivos dos referidos conceitos. A intenção é elaborar uma reflexão mínima de
contextualização histórica e epistemológica dos surgimentos dos movimentos sociais, para uma
fundamentação adequada da análise central desse trabalho: a etnoconservação como possibilidade
política para as populações tradicionais, residentes em unidades de conservação, por meio da
ação de organização não-governamentais ambientalistas.
Pretende-se problematiza-los no contexto da dinâmica de formação do ambientalismo
enquanto movimento social, principalmente no Brasil. Assim, além de vislumbrar suas
potencialidades e limitações teóricas, o objetivo é criar os subsídios necessários para a
observação empírica das relações entre a FVA e os ribeirinhos residentes no Parque Nacional do
Jaú, no processo de formação do plano de manejo participativo.
1 – O conceito de organizações não-governamentais.
O termo “organização não-governamental” ganhou grande visibilidade a partir dos anos
70, mas principalmente, nos anos 80 do século XX, como decorrência do aparecimento de
instituições e organizações não-estatais e não-lucrativas que se propunham à defesa de direitos
das mais diversas áreas de atuação política, mas que colocavam em xeque a dimensão de
84
centralidade do trabalho como propulsor das lutas contra a exploração capitalista. Porém, o termo
permite uma abrangência quase infinita de entidades que não se encontram atreladas à ão do
Estado, de um lado, e à do mercado, de outro. Também por isso a dimensão das ONG’s é
denominada de “terceiro setor”, ou seja, a sociedade civil organizada.
Genericamente, a literatura agrupa nessas denominações todas as organizações
privadas, sem fins lucrativos, e que visam à produção de um bem coletivo. O
termo “terceiro setor” foi utilizado pela primeira vez por pesquisadores nos
Estados Unidos na década de 70, e a partir da década de 80 passou a ser usado
pelos pesquisadores europeus. Para eles, o termo sugere elementos amplamente
relevantes. Expressam uma alternativa para as desvantagens tanto do mercado,
associadas à maximização do lucro, quanto do governo, com sua burocracia
inoperante. Combina a flexibilidade e a eficiência do mercado com a equidade e
a previsibilidade da burocracia pública (COELHO, 2000, p. 58).
Encontram-se, portanto, sob essa mesma designação, desde entidades de interesses
coletivos privados associação de orquidófilos, criadores de pássaros, liga das senhoras
católicas, etc. –, passando por organizações comunitárias, até grupos de ão internacional na
defesa de áreas de atuação pública (idem). Em busca de uma maior especificação e diferenciação
das entidades do assim chamado terceiro setor, Scherer-Warren afirma que as instituições que
atuam no âmbito da sociedade civil são denominadas de “formas de associativismo civil” e estão
classificadas em: (1) associações comunitárias, (2) mútua-ajuda, (3) associações de classe, (4)
organizações não-governamentais, (5) Organizações de defesa da cidadania e (6) associativismo
de base religiosa (2000 p. 41-44).
O refinamento conceitual da autora é adotado nesse trabalho. A diferenciação entre ONG
e associação comunitária é útil para a análise da relação política entre os grupos sociais
envolvidos no âmbito do ambientalismo e da etnoconservação: os cientistas/técnicos
conservacionistas e as populações tradicionais. Assim, segundo Scherer-Warren, as organizações
não-governamentais
85
(...) trabalham a serviço de outros grupos carentes ou em prol da defesa ou
conquistas em torno de problemas específicos (meio ambiente, mulher, negro,
direitos humanos, etc), normalmente fazendo mediações de caráter educacional,
político, assessoria técnica, apoio material ou logístico para desenvolvimento
socioeconômico, o bem estar social ou a construção da cidadania de
populações-alvo. Têm institucionalidades próprias, com registro civil como
entidades sem fins lucrativos, públicas, porém não estatais (...) (idem, p. 44).
A partir de um ponto de vista histórico, o surgimento das ONG’s, como fenômeno político
de expressão organizadora dos movimentos sociais, está atrelado ao conjunto de transformações
que a sociedade ocidental moderna atravessou (e atravessa) no último quartel do século XX e
início do século XXI: a globalização. Litsz Vieira, com uma posição otimista sobre o papel das
ONG’s, afirma:
(...) nas condições atuais, em face das graves implicações sociais da
globalização econômica, o Estado não parece interessado em incentivar a
mobilização popular, mantendo a cidadania passiva e apolítica. Como ao
mercado não interessa outra coisa, coube à sociedade civil, agrupada em torno
do interesse público, a tarefa de mobilizar as energias cívicas da população
para defender, no plano transnacional, os princípios da cidadania fertilizados
com os ideais de democracia política, diversidade cultural e sustentabilidade
ambiental
(VIEIRA, 2001 p. 28-29)
.
A flexibilização do modelo fordista-taylorista para os padrões do toyotismo japonês, a
crescente mundialização produtiva e do capital, além da disseminação da informatização ou
seja, a reestruturação das relações capitalistas de produção promoveram um sobre um intenso
processo de reorganização o conjunto de relações constitutivas da sociedade moderna. No âmbito
político, essas transformações foram acompanhadas pelo questionamento sobre a dimensão da
ação do Estado.
Com o desmoronamento das hostilidades constitutivas da Guerra Fria, acompanhado pelo
período de crise que assolou as economias nacionais na década de 1970, o Welfare State começa
ser questionado em seus objetivos de constituição de um Estado protetor e promovedor de
86
políticas sociais. A partir daí, inicia-se uma série de reformas na ação estatal em escala mundial
que promovem o enxugamento das máquinas estatais a partir dos princípios oriundos da lógica de
mercado. A esse conjunto de reformas dá-se a denominação genérica de neoliberalismo.
Montaño, numa perspectiva crítica ácida sobre o papel do terceiro setor, discute da seguinte
forma sua contextualização histórica:
Nosso caminho para abordar o tema foi diametralmente oposto ao seguido pela
maioria dos autores do “terceiro setor”. Aqui o ponto de partida não foi o
próprio conceito em tela, mas o processo de reestruturação do capital pós-70,
orientado pelos princípios neoliberais e para a América latina a partir dos
ditames do Consenso de Washington –, de flexibilização dos mercados nacional
e internacional, das relações de trabalho, da produção, do investimento
financeiro, do afastamento do Estado das suas responsabilidades sociais e da
regulação social entre capital e trabalho, permanecendo, no entanto,
instrumento de consolidação hegemônica do capital mediante seu papel central
de desregulação e (contra-) reforma estatal, na reestruturação produtiva, na
flexibilização produtiva comercial, no financiamento ao capital, particularmente
o financeiro (MONTAÑO, 2001, p. 16).
A partir do momento em que o Estado, paulatinamente, deixa de se ocupar com as suas
“responsabilidades sociais”, constitui-se, então, o terreno fértil para o florescimento das
organizações não-governamentais. Montaño é, talvez, o representante mais incisivo de uma
tendência de análise das organizações não-governamentais como braços operacionais desse
processo de desarticulação do papel social do Estado pelo neoliberalismo.
(...) O Estado, que comandado pelo capital se reestrutura, desvencilha-se
progressivamente da atividade social (e alivia o capital na co-responsabilidade
do seu sustento), recortanto financiamentos, precarizando, focalizando,
centralizando, diminuindo a abrangência, ou diretamente eliminado políticas
sociais assistenciais. Como então ocultar e mascarar esse processo, tornando-o
aceitável pela população? Como evitar a rejeição social que ponha limites a
esse processo de verdadeira perda dos direitos universais e de evidente
desresponsabilização estatal e do capital? Procura-se, ideologicamente, que esse
processo seja percebido como de “transferência de um setor “falido”, o Estado,
para outro mais eficiente, empreendedor, livre, a “sociedade civil” (que alguns
chamam de “terceiro setor”) (...). A parceria entre o Estado e o “terceiro setor”
tem a clara função ideológica de encobrir o fundamento, a essência do
fenômeno ser parte estratégica de reestruturação do capital –, e fetichizá-lo
87
em transferência, levando a população a um enfrentamento/aceitação desse
processo dentro de níveis de conflitividade institucional aceitáveis para a
manutenção do sistema, e ainda mais, para a manutenção da atual estratégia do
capital e seu projeto hegemônico: o neoliberalismo (idem, p. 226-227).
Segundo os autores que refletem sobre o assim denominado terceiro setor, no processo de
reorganização da modernidade capitalista na virada do século XX para o século XXI formula-se,
também, uma nova concepção de cidadania. A condição de exercício e consciência dos direitos
adquiridos pelo ser social ganha, a partir de agora uma dimensão transnacional.
Diante desse quadro, a grande maioria da população dos diversos Estados,
marginalizada social e economicamente pela globalização, perde interesse e
energia para participar das lutas políticas internas, que percebe como
secundárias, mergulhando em passividade e alienação. À parte dessa maioria
inerte, surge, entre outros, um grupo desorientado que vai servir de massa de
manobra para políticas direitistas e, de outro, uma minoria de militantes
idealistas que oferece resistência à globalização dominante, propondo uma
globalização alternativa, um projeto emergente de construir uma sociedade civil
global visando à democratização das relações internacionais. Esse projeto de
uma democracia cosmopolita é entrecortado pelas diversas identidades ligadas a
gênero, raça, meio ambiente, concepções espirituais etc. Nesse contexto, a
cidadania clássica, definida no interior de um Estado territorial, afigura-se
marginal a essa agenda, que expressa, de certa forma, a necessidade de
enfrentar a globalização econômica no plano global, isto é, além das fronteiras
territoriais do Estado-Nação (VIEIRA, 2001, p. 28).
Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que a partir da década de 1960, uma
reestruturação do campo ideológico de luta dos movimentos sociais. A centralidade da orientação
economicista do marxismo para o confronto do trabalho contra o capital sofre um processo de
“relativização”, ou seja, pulveriza-se em diversos campos específicos de luta orientados para a
dimensão cultural. O movimento negro, estudantil, feminista e ecológico são os precursores dessa
descentralização da luta revolucionária para o imediatismo das lutas de causas específicas. Esse
fenômeno tem sido comumente denominado como “novos movimentos sociais".
A idéia diretriz da argumentação é de que tem surgido novos movimentos
sociais” (NMS) que almejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio
88
de forças entre o Estado (aqui entendido como o campo da política
institucional: do governo, dos partidos e dos aparelhos burocráticos de
dominação) e sociedade civil (campo da organização social que se realiza a
partir das classes sociais ou de todas outras espécies de agrupamentos sociais
fora do Estado enquanto aparelho), bem como no interior da própria sociedade
civil nas relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e
subordinados (SCHERER-WARREN, 1993, p. 49-50).
Apesar da autora discutir o contexto brasileiro de organização e articulação desses
movimentos, não deixa, por sua vez, de enfatizar o caráter universalizante do fenômeno.
Assim os denominados NMS não são um fenômeno exclusivo da sociedade
brasileira, pois estes têm surgido em diferentes países (capitalistas mais
avançados ou mais atrasados, principalmente a partir da década de setenta) e
compartilham alguns aspectos comuns de um mesmo modelo cultural – ou
contracultural ao existente (idem, p. 51).
Nesse sentido, as organizações não governamentais se configuram como a
expressão institucionalizada desses movimentos, característica intensa presente, principalmente,
nas décadas de 80 e 90 do século XX. Scherer-Warren enfatiza a impossibilidade de um
movimento social ser abarcado em sua totalidade por uma entidade, dando-lhe uma perspectiva
transcendente em relação à cristalização institucional.
Podemos falar de Movimentos Sociais quando começam a surgir práticas de
lutas pela cidadania que transcendem as reivindicações específicas de cada
associação. O movimento social transcende a prática localizada e temporal de
uma organização. É um conjunto mais abrangente de práticas sócio-político-
culturais, resultante de múltiplas redes de relações sociais entre sujeitos e
associações civis, que visam à realização de um projeto de mudança: social (a
partir do cotidiano), sistêmica ou civilizatória (ibidem, 2002, p. 45).
O caráter descentralizado da movimentação social a partir da década de 70 do século XX
parece estar ancorado, também, a um conjunto de transformações epistemológicas em relação à
produção do conhecimento científico. Produção que lhe legitimidade e condições objetivas de
ação política. A partir das décadas de 50 e 60 do século passado, a condição totalizante das
89
análises científicas em particular das ciências sociais começa ser colocada em avaliação
crítica.
A produção do conhecimento filiada à concepção marxista, pautada em interpretações
ortodoxas dos conceitos marxianos passa a ser veemente criticada. A determinação monista das
infra-estruturas sobre as super-estruturas é recusada tanto por autores não-marxistas quanto por
uma parte dos próprios marxistas. Desse processo crítico, que não se restringe somente às bases
do marxismo, mas aos princípios gerais do racionalismo científico, nasce uma tendência à
descentralização e à polissemia das determinações causais. Gohn enfatiza a rejeição
do marxismo como campo teórico capaz de dar conta da explicação da ação dos
indivíduos e, por conseguinte, da ação coletiva da sociedade contemporânea tal
como efetivamente ocorre. Apesar da simpatia dos teóricos dos NMS pelo
neomarxismo, que enfatiza a importância de consciência, ideologia, lutas
sociais e solidariedade na ação coletiva, o marxismo foi descartado porque trata
da ação coletiva ao nível das estruturas, da ação das classes, trabalhando num
universo de questões que prioriza as determinações macro da sociedade. Por
isso, ele não daria conta de explicar as ações que advém de outros campos, tais
como o político e, fundamentalmente o cultural; (...) É importante destacar que
a negação do marxismo refere-se à sua corrente clássica, tradicional, vista como
ortodoxa. Mas algumas categorias básicas, como o da ideologia, influenciaram
a fundamentação de um conceito central dos NMS, o de cultura (1997, p.122).
Assim, nasce um processo de “antropologização” da sociologia e a política. A
incorporação dos componentes culturais as mentalidades, a idealidades, as oralidades no
processo de reconstrução dos conceitos sociológicos tais como “classe social” e “consciência de
classe” tendem à valorização do cotidiano e da experiência como fatores fundamentais de análise.
(...) o novo sujeito que surge é um coletivo difuso, não hierarquizado, em luta
contra as discriminações de acesso aos bens da modernidade e, ao mesmo
tempo, crítico de seus efeitos nocivos, a partir da fundamentação de suas ações
em valores tradicionais, solidários, comunitários. Portanto, a nova abordagem
elimina a centralidade de um sujeito específico, predeterminado (...) (idem).
90
No âmbito da ciência política, surgem perspectivas teóricas que possibilitam a reflexão
das relações de poder disseminadas nas e não somente sobre as relações sociais. Ou seja, inicia-
se um processo de valorização da pluralidade de possibilidades no exercício do poder para além
da centralidade estatal.
(...) a política ganha centralidade na análise e é totalmente redefinida. Deixa de
ser um nível numa escala em que hierarquias e determinações e passa a ser
uma dimensão da vida social, abarcando todas as práticas sociais (Laclau e
Mouffe). Esta perspectiva abriu possibilidades para pensar a questão do poder
na esfera pública da sociedade civil nos termos de Foucault, e não apenas na
esfera do Estado (idem, p. 123).
No interior da própria antropologia os resultados da dialética entre o relativismo
funcionalista e universalismo estruturalista permitem uma abertura da ciência para a influência
das outras ciências sociais, assim como sua politização. A valorização das particularidades
proporcionada pelas análises funcionalistas permitiu a possibilidade de afirmação da diferença
enquanto possibilidade humana legítima. Por outro lado, o reconhecimento de uma base
estrutural comum entre as diversas realidades sócio-culturais específicas, conferindo assim
universalidade à condição humana, possibilita/obriga a racionalidade ocidental descer de sua
auto-atribuída superioridade.
Apesar das duas dimensões antropológicas constituírem-se em contraposição dialética, o
fato do reconhecimento da diferença como condição de universalidade e de não-inferioridade,
garante legitimidade epistemológica à luta tanto das especificidades étnicas não-ocidentais,
quanto dos setores inferiorizados da própria sociedade moderna, frente à tendência
homegeneizante da lógica racional-capitalista.
A partir das décadas de 60/70 do século passado, o discurso antropológico incorporou da
sociologia os debates marxistas e da ciência política as reflexões sobre poder configurando-se,
91
por exemplo, no marxismo antropológico que, como será discutido, foi fundamental para a
formulação do conceito de populações tradicionais.
Desse modo, a reconfiguração epistemológica da ciência – e das ciências sociais em
particular permitiram a atuação política contestadora agir para além da superação da
contradição capital/trabalho, preocupando-se com problemas sócio-culturais relacionados às
identidades étnicas, às relações de gênero e à dimensão ecológica. Nesse sentido, é possível
perceber um resfriamento da intencionalidade revolucionária para a resolução imediatista de
problemas localizados. Em concordância com esse processo, também uma transição na forma
de organização estratégica do ato político. A prática denunciatória, herdada pelas primeiras
ONG’s (anos 70) dos movimentos revolucionários da década de 50/60 do século passado,
gradativamente cede espaço a formas de atuação educativa de práticas de inclusão produtiva,
sócio-cultural e política.
Referindo-se ao desenvolvimento do ambientalismo entre as décadas de 80 e 90 do século
XX, Viola sentencia:
A denúncia, muitas vezes radical, da degradação ambiental foi o motor implícito
ou explícito das entidades ambientalistas do período formativo (1970-80). As
organizações profissionais (1980-90) não têm como objetivo a denúncia. Elas têm
como objetivo central a firmação de uma alternativa viável de conservação ou
restauração do ambiente danificado (1995, p.86).
É necessário ressaltar, ainda, que no processo de rearticulação epistemológica das ciências
e da politização dos temas culturais, o meio técnico-científico articula-se como a fonte de
reflexão e elaboração de propostas de ação sobre a sociedade civil. As organizações não-
governamentais configuram-se em instituições com grande potencial de implantação de propostas
político-acadêmicas – tais como a etnoconservação. Assim pode-se constatar uma relação estreita
92
entre as demandas dos nichos de produção científica e este tipo possível de organização da
sociedade civil.
Assim, a partir da discussão teórica exposta acima, pode-se propor a construção dos
elementos constitutivos do conceito de organização não-governamental. Trata-se, pois (1)
organizações não-estatais e não-lucrativas que desenvolvem ações políticas para a resolução de
problemas específicos (ecológicos, de gênero, étnicos, sobre direitos humanos, etc); (2) originam-
se no espaço da sociedade civil, e (3) desenvolveram-se historicamente como decorrência do
processo de globalização econômica e/ ou mundialização do capital, (4) da retração do papel
social do Estado na emergência do neoliberalismo, (5) da formação de uma concepção de
democracia/cidadania transnacional ou global e, por fim, (6) tem como base teórica de ação o
amplo processo de rearticulação epistemológica da ciência – em particular, as ciências sociais
a partir da segunda metade do século XX.
Pode-se considerar, então, que as organizações não-governamentais são formas de
institucionalização da ação política, como práxis transformadora, que transitam do global ao local
num discurso que, aparentemente, pretende agir nas fissuras corroídas da ação estatal. Tanto os
críticos quanto os defensores concordam que o Estado, em seu processo de retração em relação às
políticas sociais, permitiu a proliferação das ONG´s. A diferença está na constatação de que
alguns interpretam essas entidades como instrumento neoliberal para a deteriorização do papel
social do Estado. O outros consideram as organizações não-governamentais como a reação da
sociedade civil ao mesmo processo de deteriorização.
A partir da discussão sobre a premissa de atuação, parece lícito indagar quais são as
condições possíveis das organizações não-governamentais se apresentarem como uma alternativa
viável ao papel social Estado. A problematização exposta acima, por certo, carece de grande
atenção por parte do mundo acadêmico. Porém ela não encontra ressonância direta nesse
93
trabalho. Pretende-se aqui, a inversão do foco: observar a ação das organizações não-
governamentais sobre os territórios específicos de atuação dos seus projetos.
Assim, recorre-se aqui a um outro tipo de problematização. Ou seja, o questionamento das
possibilidades de ação das ONG’s sobre os grupos sociais em situação de exclusão. Pretende-se
compreender como essas entidades intermediam as relações da desses grupos com a sociedade
moderna e capitalista. Num certo sentido, se o objetivo fundamental é construir sujeitos dotados
de autonomia, pode-se prever a construção de uma potencialidade dos grupos sociais assistidos
em se apropriar do papel próprio das ONG’s. O quanto de transitório no fenômeno cio-
político das organizações não-governamentais?
Pretende-se, também, contextualizar essas potencialidades e limites de ação no interior do
ambientalismo, a partir de sua relação com o conceito de populações tradicionais. O esforço de
promover um diálogo entre os conceitos visa dimensionar a viabilidade de programas e
estratégias que possam produzir, efetivamente, diferentes formas de relação humano/natureza. Ou
seja, para além das propostas de sustentabilidade que não rompem com as diretrizes das relações
capitalistas de produção, levando-se em consideração a perspectiva de que não é possível discutir
sustentabilidade no interior da lógica capitalista.
Além disso, essa problematização tem como objetivo dotar o pesquisador de instrumentos
para observação da relação entre a Fundação Vitória Amazônica e os moradores do Parque
Nacional do Jaú. Relação que visa equacionar a presença dos ribeirinhos na unidade de
conservação.
2 – O conceito de populações/comunidades tradicionais.
O conceito de populações tradicionais tem configuração relativamente recente tal como se
apresenta na dinâmica do ambientalismo. É resultado, porém, de um longo processo de discussão
94
antropológica que se confunde com o seu próprio histórico de formação. Basta lembrar o título de
uma das obras clássicas da antropologia, Ancient society, de Morgan. Pode-se afirmar, com
grande segurança, que a antropologia construiu-se como ciência a partir da dicotomia
tradicional/moderno.
Essa oposição atravessou as suas sucessivas perspectivas teóricas, a partir da re-
significação dos seus termos segundo a imagem construída sobre a alteridade entre o não-
ocidental e o ocidental. Primitivo e civilizado sob o olhar evolucionista; simplicidade e
complexidade sob as lentes funcionalistas; a-historicidade e historicidade de uma mesma matriz
cognitiva, sob a interpretação estruturalista.
Com a notória exceção do evolucionismo, discurso que justificou o processo de
construção do jugo não-ocidental pela modernidade capitalista ocidental, a teorização
antropológica caracterizou-se pela constituição de um aparato conceitual capaz de reconhecer a
humanidade das diversas realidades sócio-culturais existentes no mundo contemporâneo. Isso não
significa afirmar que o discurso antropológico não tenha sido utilizado, e muitas vezes
formulado, em proveito do imperialismo ocidental. Mas, de forma geral, seu sentido, ou pelo
menos seu resultado, caminhou para uma capacidade de dotar o não-ocidental de instrumentos
possíveis de construção sua autonomia enquanto existência legitima.
Desse modo, o funcionalismo operou uma incursão metodológica sobre as alteridades, a
observação participante, que possibilitou uma valorização per se dessas realidades. As diversas
formas de humanidade são ressaltadas em suas particularidades internas. Esses elementos
endógenos articulam-se em funcionalidade da totalidade sócio-cultural do grupo estudado.
Apesar do êxito em seu empreendimento metodológico, a observação participante, houve uma
preocupação excessiva com a reprodução interna dos diversos grupos não-ocidentais. Ênfase que
não permitiu aos funcionalistas construir elementos teóricos que rompessem com o processo de
95
dicotomização estruturante da antropologia. Uma tendência exagerada à relativização que
contribuiu para a compreensão das diversas formas de humanidade como realidades excludentes.
A resposta relativista (funcionalista) aponta que o outro era, na verdade, um ser
tão diverso que nada nele poderia lembrar um eu sobre si mesmo. Um outro que
não poderia ser medido de maneira alguma em relação ao um. O relativismo
representou uma forma de redenção da antropologia, que passou a ser
visualizada como uma ciência que, em nome do respeito à diferença’, poderia
remediar todos os danos causados pela visão etnocêntrica. Isso fez do
antropólogo um sujeito que procurava agir como se não estivesse sujeitado à
sua própria realidade cultural, despido de toda possibilidade crítica e que
paradoxalmente, teria como missão preservar o outro de si mesmo, uma vez que
tratava-se de preservá-lo da civilização ocidental, da qual, quisesse ou não ele
fazia parte. O um (eu) e o diverso (outro) tornam-se, ambos diversos
(CARVALHO, 1997, p. 23).
A abordagem estruturalista, por seu turno, mirou seus esforços metodológicos na tentativa
de encontrar humanidade nos grupos sociais não-ocidentais por meio de busca da matriz
cognitiva comum, universalizante e estrutural, subjacente à diversidade de práticas cio-
culturais. O imenso arcabouço intelectual levi-straussiano, principalmente, demonstrou de forma
decisiva as fissuras interpretativas que os outros modelos explicativos antropológicos deixaram
como legado. Ao mesmo tempo, conseguiu elaborar formas adequadas de explicação para essas
deficiências. Do evolucionismo, ultrapassou finalmente a concepção de inferioridade cognitiva
do mundo não-ocidental, com a comprovação de que o pensamento mitológico-mágico é
diferente, mas não desigual, em relação ao pensamento lógico-científico.
Entretanto, não voltamos à tese vulgar (e aliás inadmissível, na perspectiva
estreita em que se coloca) segundo a qual a magia seria uma forma tímida e
balbuciante da ciência, pois privar-nos-íamos de todos os meios de
compreender o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento
ou a uma etapa da evolução técnica e científica. Mais uma sombra que antecipa
seu corpo, num certo sentido ela é completa como ele, tão acabada e coerente
em sua imaterialidade quanto o ser sólido por ela simplesmente precedido. O
pensamento mágico não é uma estréia, um começo, um esboço, a parte de um
todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente,
nesse ponto, desse outro sistema que constitui a ciência, salvo a analogia formal
que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de expressão metafórica do
96
segundo. Portanto, em lugar de opor magia e ciência, seria melhor coloca-las
em paralelo, como dois modo de conhecimento desiguais quanto aos resultados
teóricos e práticos (...), mas não devido à espécie de operações mentais que
ambas supõe e que diferem menos na natureza que na função dos tipos de
fenômenos aos quais são aplicadas (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 28).
Do funcionalismo, superou a excessiva relativização de humanidades excludentes, ao
demonstrar que a práticas culturais organizam-se de formas diferentes a partir dos mesmos
elementos estruturais.
Se, como cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas
a um conteúdo, e se as formas são fundamentalmente as mesmas para todos os
espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados – (...) é preciso e basta
atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição ou a cada costume,
para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e
costumes, sob a condição, naturalmente de estender bastante a análise (idem,
1970, p.38-39).
Assim, a antropologia estrutural tem o mérito de equacionar aquilo que era tomado por
tons hierárquicos de inferioridade e superioridade. Além disso, possibilitou pensar as diferenças a
partir uma base universal do que é considerado humano em sua realidade sócio-cultural. Contudo,
não conseguir transcender o eixo dicotomizador da visão antropológica. Levi-Strauss, em uma
das reflexões-síntese de sua obra estabeleceu a diferenciação entre o mundo moderno e
tradicional a partir da idéia de que as sociedades americanas indígenas são sociedades “sem
história” ou com uma historicidade fria, enquanto o mundo moderno é caracterizado por “ter
história” ou com uma historicidade quente.
Não se trata de saber se as sociedades ditas “primitivas” têm ou uma história,
no sentido que atribuímos a este termo. Estas sociedades estão na temporalidade
como todas as outras, e com os mesmos direitos que elas, mas diferentemente
do que acontece entre nós, recusam-se à história, esforçam-se para esterilizar
em seu seio tudo o que poderia constituir o esboço de um devir histórico. (...)
Nossas sociedades ocidentais são feitas para mudar – é o princípio de sua
estrutura e de sua organização. As sociedades ditas primitivas nos parecem
como tais, sobretudo porque foram concebidas por seus membros para durar.
97
Sua abertura para o exterior é muito reduzida, e o que se chamaria de “espírito
endógeno” as domina (LEVI-STRAUSS, 1985 p. 326).
A antropologia, na perspectiva adotada nesse trabalho, reuniu as condições necessárias de
superação da dicotomia tradicional/moderno a partir da emergência do assim denominado
marxismo antropológico. Além disso, fato de suma importância na reflexão aqui apresentada, foi
um dos eixos constitutivos da concepção de populações tradicionais, tal como utilizada na
proposta da etnoconservação.
Maurice Godelier, dentre outros autores, responsabilizou-se por desenvolver uma
teorização que fosse capaz de promover uma interação dialética entre o estruturalismo e o
materialismo histórico. Pretende dotar, dessa maneira, o discurso antropológico de instrumentos
metodológicos capazes de compreender a constituição das relações de produção e reprodução
inerentes aos povos não-ocidentais. Assim como o papel das idealidades mitológicas e das
relações de parentesco nessas relações. Além disso, preocupou-se por interpretar a relação de
encontro/confronto desses povos com a expansividade dominadora da sociedade moderna. Um
dos méritos do marxismo antropológico parece ter sido a capacidade metodológica de encontrar a
historicidade inerente das relações constitutivas dos povos não-ocidentais. A partir de uma
análise do estruturalismo, Godelier parte de um duplo movimento crítico. De um lado, demonstra
a relevância da generalização levi-straussiana para a superação dos limites de interpretação
funcionalista e de compreensão da complexidade do mundo não-ocidental.
Diremos, primeiramente, que sua obra subverteu dois domínios, a teoria do
parentesco e a teoria das ideologias, e que todo o progresso nesses domínios
far-se-á com ajuda de seus resultados, como de seus fracassos. Problemas
fundamentais como o da proibição do incesto, da exogamia e endogamia, do
casamento de primos cruzados, das organizações dualistas, que foram tratadas
separadamente e sem êxito, foram postos em relação com os outros e
explicados a partir do fato fundamental de que o casamento é uma troca, a troca
de mulheres; e que as relações de parentesco, antes de serem relações entre
indivíduos, são relações entre grupos (GODELIER, 1978, p. 65).
98
Em relação à teoria do pensamento, Godelier afirma:
mostramos com Levi-Strauss provocou grande progresso na teoria das
ideologias que pretendia desenvolver após Marx, quando, tratando dos mitos
dos índios da América, de um lado fez aparecer com precisão minuciosa todos
os elementos da realidade ecológica, econômica e social que nele são
transpostos e que fazem nesses mitos o pensamentos de homens que vivem em
relações materiais e sociais determinadas; e, de outro, evidenciou a presença e o
fundamento no âmago desse pensamento social, de um lógica formal de
analogia; ou seja, da atividade do pensamento humano que raciocina sobre o
mundo e organiza o conteúdo da experiência da natureza e da sociedade nas
formas simbólicas da metáfora e da metonímia (ibidem, p. 67-68).
Por outro lado, enfatiza os limites da obra de Levi-Strauss em compreender o resultado de
suas pesquisas sobre o parentesco e o pensamento selvagem, em articulação com as instâncias de
produção no decorrer do processo histórico das sociedades não-ocidentais. Articulação que, na
visão de Godelier, é necessária para a antropologia firma-se como a esfera do conhecimento que
conta da dimensão de complexidade das diversas formas de humanização. Sobre a análise do
parentesco, afirma que
Entretanto, a análise estrutural, ainda que não negue a história não pode
incorporá-la porque, desde o início, separou a análise das “formas” de relação
de parentesco da análise de suas “funções”. Não que essas funções sejam
ignoradas ou negadas, mas jamais são exploradas enquanto tais. Assim, jamais
analisou o problema da articulação real das relações de parentesco com outras
estruturas sociais que caracterizam as sociedades concretas, historicamente
determinadas: Levi-Strauss limitou-se a retirar desses dados concretos o
“sistema formal” das relações de parentesco, sistema que em seguida estuda em
sua gica interna e compara com outras “formas” semelhantes ou opostas (...),
Nesse sentido pode-se dizer que Levi-Strauss, opostamente aos funcionalistas,
não estuda jamais sociedades reais e não procura dar conta de sua diversidade e
complexidade internas. Não ignora, bem entendido, esses problemas, mas
jamais os tratou sistematicamente (idem, p. 67).
Do mesmo modo, o autor critica o deslocamento da compreensão da lógica formal do
pensamento em relação a outras instâncias da realidade social.
99
Mas, o que ficou ausente e impensado no fim desse imenso esforço teórico foi a
análise da articulação da forma e conteúdo do pensamento em estado selvagem
e dos pensamentos dos selvagens, assim como as funções sociais dessas
representações e das práticas simbólicas que as acompanham, as transformações
dessas funções e desse conteúdo e as condições dessa transformação (idem, p.
68).
Evidenciado os êxitos e limitações do estruturalismo de Levi-Strauss, Godelier empreende
o esforço teórico-metodológico de incorporação do materialismo histórico no interior da
antropologia.
(...) d
iante de nós se distingue um caminho que conduz a outras partes e que
nasceu além e aquém do funcionalismo e do estruturalismo, fora dos seus
limites. A outras partes quer dizer em direção à possibilidade de fazer aparecer
e estudar “a ação das estruturas” sociais umas sobre as outras e à possibilidade
de pensar as relações de causalidade estrutural entre os diversos modos de
produção e as diversas formas de organização social (as relações de parentesco,
as mitologias e as diversas formas jurídico-políticas) (ibidem, p. 69).
Para Godelier, as diversas sociedades não-ocidentais articulam os modos de produção
com as instâncias provenientes da super-estrutura, de modo que essas instâncias passam a
controlar tanto as relações de produção quanto as forças produtivas como forma de garantir a
reprodução da totalidade social. Esse controle dos fatores de produção pode ser operacionalizado
desde o parentesco, das idealidades míticas, das diferenças geracionais ou outra forma de relação
social – de acordo com a especificidade de cada grupo.
O parentesco domina a organização social quando não regula apenas as relações
de descendência e aliança que existem entre os grupos e os indivíduos, mas
também regula seus direitos respectivos sobre os meios de produção e os
produtos do trabalho, define as relações de autoridade e obediência, dominando
as relações políticas no interior dos grupos (ou entre eles) e, eventualmente,
serve de código, de linguagem simbólica para exprimir as relações do homem
entre si e com a natureza. Esse não é o caso dos caçadores-coletores Mbuti do
Congo, onde as relações entre gerações sobrepõem-se às relações de parentesco.
Não é igualmente o caso dos incas, entre os quais a instância político-religiosa
funciona como relação de produção, posto que, de bom ou mal grado as tribos
índias consagram parte de sua força de trabalho a entreter os deuses, os mortos
100
e membros da classe dominante, personificados pelo inca Schinti, o filho do sol
(ibidem, p. 49).
O autor enfatiza que a dominância e controle das relações residentes no nível
superestrutural sobre as forças produtivas e relações de produção de cada grupo social não
implica, contudo, numa inversão do paradigma marxista da determinação irredutível das relações
econômicas sobre a totalidade das relações. Antes, é necessário uma incursão metodológica
sofisticada para compreender a complexidade dialética de interações entre infra e super-estrutura,
na medida em que muitos antropólogos fazem objeção ao primado do econômico em sociedades
não-ocidentais.
Na verdade, a objeção cai por terra a partir do momento em que se constata não
ser suficiente que uma instância assuma várias e não importa quais funções
para ser dominante, se assumir a função de relações de produção, o que não
quer dizer necessariamente, o papel de esquema organizador do processo
concreto de trabalho, mas o controle do acesso dos meios de produção e aos
produtos do trabalho social. Esse controle significa, igualmente, autoridade e
sanções sociais, portanto, relações políticas. São as relações de produção as
responsáveis pela dominância de determinada instância. Têm, portanto, eficácia
determinante geral sobre organização da sociedade, uma vez que determinam a
dominância e através da dominância a organização geral da sociedade (ibidem,
p. 50).
Desse modo, Godelier propõe, a partir da adoção do materialismo histórico e dialético,
que as diversas populações não-ocidentais são passíveis de intensa historicidade, decorrente das
suas particularidades internas definidoras dos termos de produção e reprodução da totalidade
social. Assim, o autor problematiza a reflexão antropológica nos seguintes termos:
Em que condições e por quais razões uma instância assume as funções de
relações de produção e controla a reprodução dessas relações, assim com a de
relações sociais em seu conjunto? Vemos de imediato, que essa problemática é
a de Marx, e retoma a hipótese, colocada por ele, da determinação, em última
instância, do processo de vida social e intelectual pelo modo de produção da
vida material. Vemos, igualmente, que essa hipótese não é contestada pela
análise das sociedades sem classes ou das sociedades de classe não capitalistas
101
e que não há, portanto, razão alguma para opor antropologia e história (ibidem,
p. 50).
É possível interpretar que o marxismo antropológico defendido por Godelier consegue,
portanto, transcender a limitação estruturalista em conceber as sociedades não-capitalistas como
sociedades sem história. Se essas sociedades se nutrem, em suas relações constitutivas, de uma
dinâmica interna repleta de historicidade, a dicotomia tradicional/moderno tem suas bases de
sustentação corroídas. Finalmente, podem existir condições de superá-la através reflexão
antropológica. Portanto, podemos pensar as sociedades não-ocidentais ou não-capitalistas como
tão contemporâneas quanto às sociedades regidas pelas relações capitalistas de produção.
Isso não significa, contudo, homogeneizar diferentes realidades sócio-culturais, tampouco,
reduzir a especificidade da civilização ocidental e capitalista em sua dinâmica avassaladora e
auto-destrutiva. É importante, desse modo, compreender a percepção que Godelier tem das
diferenças entre o mundo ocidental e não ocidental para atingir sua contribuição na formulação
do conceito de populações tradicionais.
Ao criticar a dificuldade dos funcionalistas em compreender as relações de produção em
interação com as demais instâncias da vida social das sociedades não-ocidentais, Godelier nos
uma importante pista:
(...) todo o problema está no fato de que os antropólogos funcionalistas e,
freqüentemente, aqueles que se pretendem marxistas, acreditam, mas de
maneira espontânea e não científica, que as relações de produção podem
existir sob uma forma que as diferencie e as separe de outras relações sociais,
como é o caso das relações de produção no modo de produção capitalista. Não
nos espantemos, pois, se (...) muitos antropólogos tratem de maneira deformada
e insuficiente a análise das bases econômicas das sociedades que estudam. Na
verdade, a economia se reduz a seus olhos ao que diretamente visível como tal.
Ora, sabendo-se que, freqüentemente, uma parte das relações de parentesco e
das relações político-religiosas, o estudo da economia fica necessariamente
reduzido (...) (ibidem, p. 47).
102
Assim, o autor ressalta a concepção de que as sociedades capitalistas têm na
compartimentação dos níveis estruturais econômico, político, jurídico e cultural uma de suas
bases constitutivas. Essa compartimentação permite uma relativa independência dos mesmos
níveis ao mesmo tempo em que a esfera econômica torna-se superlativa e auto-valorativa e,
portanto, fetichizada. A mercadoria substitui impiedosamente as concepções sagradas de
reprodução social. Por outro lado, as sociedades não-capitalistas estão, para Godelier,
organizadas a partir de um entrelaçamento dos níveis estruturais que permitem que as instâncias
superestruturais parentesco, gênero/geração, mitologia, etc constituem-se em responsáveis
pela orientação das relações de produção. Nesse sentido, o autor revela a sua filiação, também, a
Marcel Mauss. Este autor formulou o conceito de “fato social total” para analisar as formações
econômicas de grupos não-ocidentais. Foi possível, assim, assinalar a especificidade das relações
não compartimentadas dos modos de produção não-capitalistas. O sistema de prestações totais
seria, para o Mauss, a forma de circulação não só de bens “economicamente úteis”. Sua
abrangência se estende para todos os níveis de sociabilidade.
Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprime-se,
ao mesmo tempo e de uma vez, toda espécie de instituições: religiosas,
jurídicas e morais (...); econômicas supondo formas particulares de produção
e consumo, ou antes de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos
estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que
manifestam essas instituições (ibidem, 41).
Godelier incorpora as reflexões de Mauss em relação à forma de organização das
sociedades não-ocidentais ao discutir o potlach nos seguintes termos:
As características do potlach o, portanto, características multifuncionais,
como sublinha Piddocke, “fatos sociais totais”, com dizia Mauss, “fatos de
economia política” no sentido pleno do termo; ou seja, fatos que, por receberem
explicação científica, exigem que se lhes reconheçam as funções econômicas
das relações de parentesco e das relações político-ideológicas; portanto que se
lhe reconstrua, pelo pensamento, a configuração exata do modo de produção
103
que permita a produção e o controle de vastos excedentes de bens e de prestígio
(GODELIER, 1978, p. 55).
Assim, a diferença entre sociedades capitalistas e não-capitalistas não reside somente ao
nível das idealidades. A diferença não se encontra, do mesmo modo, na historicidade das
primeiras em detrimento da não-historicidade das segundas. A partir do auxílio de Marx e Mauss,
pode-se perceber que Godelier as diferencia entre compartimentação (capitalistas) e
entrelaçamento (não-capitalistas) dos níveis sociais estruturais constitutivos de toda e qualquer
sociedade. Daí a tarefa árdua de se reconhecer a riqueza de interações das sociedades não-
capitalistas, pois, na aparência da simplicidade reside um complexo jogo de relações de
causalidade entre esses níveis. Garantindo-se, assim, a produção e reprodução de suas relações
sociais.
É dos resultados do marxismo antropológico que se reúnem às condições para a superação
da dicotomia entre tradição e modernidade. Ambas estão repletas de historicidade, movimento,
transformação e contemporaneidade. O fato das “populações tradicionais” não apresentarem o
padrão de inovação tecnológica apresentado pela “modernidade” não é argumento, como vimos,
para considerá-las “estanques” e “atrasadas” como o termo tradicional inevitavelmente sugere.
Paradoxalmente, é junto ao marxismo antropológico que se a fundamentação para o
termo população tradicional, tal como se difundiu o conceito no âmbito do conservacionismo e
do ambientalismo. Desse modo, quais condições validam a utilização do termo?
A concepção de populações tradicionais ganhou força no Brasil pela obra O Mito
Moderno da Natureza Intocada (1994) de Antonio Carlos Diegues. Nela, o autor estabelece uma
ampla discussão teórica para a definição do termo populações tradicionais, com o objetivo de
fundamentar a viabilidade da etnoconservação como proposta de práxis conservacionista.
104
Diegues utiliza-se dos elementos conceituais do marxismo antropológico para a construção do
conceito.
Dentro de uma perspectiva marxista (especialmente dos antropólogos
neomarxistas) as culturas tradicionais estão associadas a modos de produção
pré-capitalistas, próprios de sociedades em que o trabalho ainda não se tornou
mercadoria, onde grande dependência dos recursos naturais em que a
dependência do mercado já existe, mas não é total. Essas sociedades
desenvolveram formas particulares de manejo dos recursos que não visam
diretamente o lucro, mas a reprodução social e cultural, como também
percepções e representações em relação ao mundo natural marcadas pela idéias
de associação com a natureza e dependência de seus ciclos. Culturas
tradicionais, nessa perspectiva são as que se desenvolvem dentro do modo da
pequena produção mercantil (DIEGUES, 1994 p. 82).
Como forma de fundamentar a idéia de que cada cultura tradicional desenvolve formas
particulares de organização social e de relação com a natureza, Diegues recorre diretamente a
Godelier.
Godelier (...) afirma que essas duas sociedades têm racionalidades intencionais
diferentes, ou melhor, apresentam sistema de regras sociais conscientemente
elaboradas para melhor atingir um conjunto de objetivos. Segundo esse
antropólogo, cada sistema econômico e social determina uma modalidade
específica de exploração dos recursos naturais e de uso da força de trabalho
humana e, conseqüente mente utiliza formas específicas do “bom” e do “mau”
uso dos recursos naturais (...) (idem, p. 82).
Em sua argumentação, Diegues define três eixos para a classificação de uma população ou
cultura tradicional: a territorialidade, a identidade e a sustentabilidade. Para o autor a noção de
território deve perspassar espaço físico onde se estruturam as relações sociais de
produção/reprodução do grupo por formas particulares de concepção de posse e uso dos recursos
nele disponíveis.
Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é
também o lócus das representações e do imaginário mitológico dessas
sociedades tradicionais. A íntima relação do homem com seu meio, sua
dependência maior em relação ao mundo natural, comparada ao do homem
105
urbano-industrial faz com os ciclos da natureza (...) sejam associadas a
explicações míticas e religiosas. As representações que essas populações fazem
dos hábitats em que vivem, também se constroem no maior ou menor controle
de que dispõem sobre o meio-físico (idem, p. 85).
A identidade também é apresentada por Diegues como ponto fundamental de estruturação
do conceito.
Um dos critérios mais importantes para a definição de culturas ou populações
tradicionais, além do modo de vida, é, sem dúvida o reconhecer-se como
pertencente àquele grupo social particular. Esse critério remete à questão
fundamental da identidade, um dos temas centrais da antropologia. Esse auto-
reconhecimento é frequentemente, nos dias de hoje uma identidade construída
ou reconstruída, como resultado, em parte de processo de contatos cada vez
mais conflituosos com a sociedade urbano-industrial, e com os neomitos
criados por esta. Parece paradoxal, mas os neomitos ambientalistas ou
conservacionistas explícitos na noção de áreas naturais protegidas sem
população têm contribuído para o fortalecimento dessa identidade sócio-cultural
em populações como os quilombeiros do Trombetas, os caiçaras do litoral
paulista etc. Para esse processo tem contribuído também a organização de
movimentos sociais, apoiados por entidades não-governamentais, influenciadas
pela ecologia social, por cientistas sociais, etc. (idem, p. 88).
Por fim, a idéia de que a forma de organização das populações tradicionais é pautada pela
sustentabilidade dos recursos naturais existentes em seus territórios.
Essas últimas informações nos remetem à questão das sociedades tradicionais e
da sustentabilidade. É importante recordar que o modo de produção (que)
caracteriza essas formas sociais; isto é, ainda que produzam mercadoria para a
venda, são sociedades que garantem sua subsistência por meio pequena
agricultura, pequena pesca, extrativismo. (...) E a pequena produção mercantil,
como bem lembrou Barel (...), é uma forma social que tem história muita mais
longa que a dominante, como a feudal e a capitalista. Essa longa permanência
histórica desse modo de produção se deve ao seu sistema de produção e
reprodução ecológica e social. São sociedades mais homogêneas e igualitárias
que as capitalistas, com pequena capacidade de acumulação de capital, o que
dificulta a emergência de classes sociais. As relações sociais como o compadrio
funcionam como verdadeiras relações de produção (...). Além disso, a
tecnologia utilizada tem impactos ecológicos reduzidos sobre os ecossistemas
que utiliza, permitindo a renovabilidade dos estoques e a sustentabilidade dos
processos ecológicos fundamentais (idem, p. 90-91).
106
A percepção do conceito de populações tradicionais oferecida por Diegues traz, no ponto
de vista aqui adotado, forte influência do assim chamado marxismo antropológico. Além disso, é
necessário ressaltar que sua adequação à realidade brasileira exigiu, também, a fundamentação
teórica na gênese das diversas matrizes culturais como a caipira, caiçara, gaúcha etc. A
representação mais clara dessa fundamentação talvez se encontre em Darci Ribeiro. Daqueles
grandes teóricos que tentaram explicar a alma brasileira Gilberto Freire, Sergio Buarque de
Holanda, Antônio Candido, entre outros Ribeiro foi, no ponto de vista aqui adotado, o que
aperfeiçoou uma explicação antropológica mais abrangente sobre a diversidade cultural
brasileira.
A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela precocidade da
constituição dessa matriz básica de nossa cultura tradicional, como por seu
vigor e flexibilidade. Essa última característica lhe permitirá, como herdeira de
uma sabedoria adaptativa milenar, ainda dos índios, conformar-se com
ajustamentos locais, a todas as variações ecológicas regionais e sobreviver a
todos os sucessivos ciclos produtivos, preservando sua unidade essencial. A
partir daquelas proto-células, através de um processo de adaptação e
diferenciação que se estende por quatro séculos, surgem as variantes principais
da cultura brasileira tradicional (RIBEIRO, 1999, p. 272).
O ponto de vista apresentado por Darci Ribeiro torna-se interessante para a constituição
do termo populações tradicionais, justamente por alcançar a construção de diversas formas
culturais, a partir dos mesmos elementos constitutivos, conferindo-lhes como o autor afirma,
“vigor e flexibilidade” com a preservação de “sua unidade essencial”.
O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre das
qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da
proporção particular em que elas se congregaram no Brasil; das condições
ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de
produção que as engajou e reuniu. Essa unidade étnica básica não significa,
porém nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças
diversificadoras. A ecológica, fazendo paisagens humanas distintas onde as
condições de meio ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica,
criando formas diferenciadas de produção, que conduziram a especializações
107
funcionais e aos seus correspondentes gêneros de vida. E, por último, a
imigração, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos,
principalmente europeus, árabes e japoneses. Mas o encontrando formado e
capazes de absorvê-los e abrasileirá-los (...) (idem, p. 20-21).
Dessa lógica formativa nasce a unidade pluralística da cultura brasileira.
Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos
brasileiros, que permitem distingui-los hoje, como sertanejos do Nordeste,
caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do
país, gaúchos das campanas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros,
nipo-brasileiros etc. Todos eles muitos mais marcados pelo que têm de comum
como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou
funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria
a uma ou outra parcela da população (idem, p. 21).
Ainda que o processo de modernização capitalista tenha solapado em grande medida a
rusticidade dessa dinâmica de formação cultural, as populações tradicionais continuaram a
fundamentar-se nela, a partir da ocupação dos interstícios entre os grandes centros urbano-
industriais e dos espaços homogeneizados pela ação da agroindústria exportadora. Como bem
ilustra Arruda,
(...) as populações alijadas dos núcleos dinâmicos da economia nacional ao
longo de toda a história do Brasil, adotaram o modelo da cultura rústica,
refugiando-se nos espaços menos povoados, onde a terra e os recursos naturais
ainda eram abundantes, possibilitando sua sobrevivência e a reprodução desse
modelo sociocultural de ocupação do espaço e exploração dos recursos naturais,
com inúmeros variantes locais determinados pela especificidade ambiental e
histórica das comunidades que nele persistem (2000, p. 277-278).
Nesse esboço de constituição do conceito de populações tradicionais, vê-se que a proposta
de ampla abrangência sobre as diversas realidades sócio-culturais encontra eco na literatura
antropológica, tanto na caracterização das relações sociais constitutivas (através do marxismo
antropológico), quanto na especificação da realidade brasileira (através de alguns pensadores
clássicos de nossa ciência social). Vê-se, também, que no encontro entre as perspectivas teóricas,
108
não espaço para a não-historicidade, ou para uma historicidade fria na caracterização das
assim chamadas populações tradicionais. Essa dinâmica histórica própria é, certamente, posta em
enfrentamento com o avanço da sociedade ocidental capitalista. No que, então, consiste a
persistência da denominação tradicional?
Por enquanto, achamos melhor definir as “populações tradicionais” de maneira
“extensional” isto é, enumerando seus “membros” atuais, ou candidatos a
“membros”. Essa abordagem está de acordo com a ênfase que daremos à
criação e à apropriação das categorias, e, o que é o mais importante, ela aponta
para a formação de sujeitos por meio de novas práticas. Isso não é nenhuma
novidade. Termos como “índio”, “indígena”, “tribal”, “nativo”, “aborígine” e
“negro” são todos criações da metrópole, o frutos do encontro colonial. E
embora tenham sido genéricos e artificiais ao serem criados, esses termos foram
sendo aos poucos habitados por gente de carne e osso. (...) Não deixa de ser
notável o fato de que com muita freqüência os povos que começaram habitando
essas categorias pela força tenham sido capazes de apossar-se delas,
convertendo termos carregados de preconceitos em bandeiras mobilizadoras
(ALMEIDA & CUNHA, 2001, p. 2).
Inevitável constatar, para além da fundamentação “meramente” antropológica, a
intensidade política que o conceito traz em sua argumentação. No interior do conceito pretende-
se englobar uma infinidade de realidades sócio-culturais muito distintas entre si. A busca de um
conjunto de elementos comuns que possa constituir uma identificação comum tem o objetivo
claro de construir o fortalecimento político dessas comunidades que, entregues à própria sorte,
dificilmente teriam forças para elaborar estratégias eficazes de enfrentamento dos agentes
político-econômicos que disputam o uso social dos recursos naturais disponíveis.
Assim, o termo população tradicional pode ser encarado como uma prática discursiva,
construída a partir de uma concepção antropológica sobre os grupos sociais não-ocidentais.
Colocada em atuação política no interior do movimento social ambientalista e com a assunção
dos próprios grupos sociais que nele sentiram-se abrigados frente aos conflitos a que estão
imersos. Um conceito exógeno a partir da observação dessas diversas realidades e assumidas por
109
elas como estratégia na defesa dos seus direitos de existências específica em relação à sociedade
ocidental.
Nesse sentido é importante ressaltar que nas décadas de oitenta e noventa do século
momento de gestação da atual concepção de populações tradicionais XX a politização dessas
identidades étnicas ganhou ímpeto no Brasil. Carvalho, um dos defensores do marxismo
antropológico nesse período coloca a questão nos seguintes termos:
Numa abordagem que se pretenda histórica, a identidade étnico-cultural e a
formação da consciência que lhe corresponde não se reduz, nem se sustenta
como a mera diferença constatada. Essa diferença tem que ser capaz de se
expressar politicamente para que não seja folclorizada apenas no sabor de se
sentir diferente e afirmar-se como tal. É aqui que o binômio língua/cultura se
reinsere, não como código formal, nem como padrões singulares que permitem
o exercício da diferença, mas como ação capaz de condicionar o surgimento de
uma linguagem étnico-cultural que construa um novo sujeito coletivo, que se
afirma no universo de uma identidade nacional mais inclusiva. Para isso, a
identidade étnico-cultural deverá estar referida a uma história aberta para o
acontecimento, simbolizada por uma herança cultural singular, constituída não
apenas pela constatação empírica da diferença, mas também pela passagem de
uma consciência étnica em si para uma consciência étnica para si, em que os
traços diferenciais dariam lugar a um conjunto de reivindicações coletivas que
permitissem a vivência real de uma identidade particular (CARVALHO, 1983,
p.5).
Desse modo, podemos atentar para a complexidade contraditória que envolve o conceito
de populações tradicionais. Trata-se, portanto, (1) de um conceito que é formulado na esteira da
própria história de constituição interpretativa da antropologia, a partir da dicotomia
tradicional/moderno; (2) conquista sua fundamentação teórica atual a partir dos autores filiados,
principalmente ao marxismo antropológico; (3) está articulada sob o trinômio territorialidade,
identidade, sustentabilidade; (4) ganha sua especificidade no contexto brasileiro a partir dos
estudos pautados no conceito de rusticidade; (5) trata-se de um conceito exterior a realidade que
pretende classificar tanto pela fundamentação científica, quanto pela dinâmica política no qual
110
estão envolvidos mas, (6) assumido em grande parte por grupos sociais, denotando, assim seu
alto grau de politização.
Assim, pode-se perceber que a tensão em que se encontra na abordagem do conceito
populações tradicionais reside no fato de que ele fundamenta-se cientificamente em posições
teórico-metodológicas que não validam a dicotomia tradicional/moderno, por assegurar-lhes
grande intensidade de dinâmica histórica. Mas, ao mesmo tempo, valida o termo tradicional pela
sua necessidade de identificação étnica no contexto do ambientalismo e da etnoconservação com
proposta também política.
Porém, também dificuldades em assumir-se como tradicional. Ao mesmo tempo em
que se constituem como sujeitos políticos, corre-se o risco do termo se apresentar como uma
camisa de força no interior de políticas conservacionistas. Essas políticas podem tornar-se
restritivas em relação aos processos inerentes de transformação dos grupos sociais assim
classificados. Do mesmo modo, uma ação voltada para a revalorização dos aspectos tradicionais
desses grupos pode levar a um processo de folclorização forçada, como teme Carvalho, levando-
os a ossificação de seus elementos, ou, no sentido oposto, a transformação de seus aspectos
culturais em mercadoria.
3 – Complementaridade, conflito ou superação?
A partir dos apontamentos conceituais evidenciados nesse capítulo, o objetivo dessa
conclusão é dimensionar a potencialidades teóricas de instrumentalização e capacitação das
populações tradicionais em sujeitos políticos, dotados de plena autonomia, por parte das
organizações não-governamentais de maneira geral e no contexto da etnoconservação como
práxis política de forma particular.
111
A partir da década de 1970, como uma das variantes dos assim denominados novos
movimentos sociais, o ambientalismo surgiu como força política atuante num mundo em
culminante processo de industrialização e assombrado por grandes impactos ambientais. Assim
como outras expressões políticas do momento histórico, o ambientalismo foi impulsionado pela
proliferação de organizações não-governamentais, dentre outras instituições, dispostas a
denunciar o processo de degradação ambiental. Surgiram também organismos estatais e agências
multilaterais orientados pra a formulação de políticas ambientais. Segundo Leis & Viola, muitos
atores e processos
constituem o movimento ambientalista global cujos valores e propostas vão
disseminando-se por estruturas governamentais, organizações não-
governamentais, grupos comunitários de base, comunidade científica e
empresariado (...). O ambientalismo, surgido como um movimento reduzido de
pessoas, grupos e associações preocupados com o meio ambiente, transforma-se
num capilarizado movimento multissetorial (1995, p. 76).
Esse incipiente movimento ambientalista setentista organizou-se a partir de visões sobre o
problema da degradação em curso.
No início da década de 1970 havia duas posições polarizadas: uma minoria
catastrofista (expressa pelo relatório “Os Limites do Crescimentoelaborado
pelo Clube de Roma) pensava que era necessário para imediatamente o
crescimento econômico e populacional; e uma maioria gradualista (expressa
pela declaração da Conferência de Estocolmo em 1972) pensava que era
necessário estabelecer imediatamente mecanismos de proteção ambiental que
agisse corretivamente sobre os problemas causados pelo desenvolvimento
econômico e reverter a dinâmica demográfica para atingir a médio prazo (idem,
p. 76).
É perceptível, nas posições descritas acima, a bifurcação básica do ambientalismo entre as
perspectivas biocêntrica e antropocêntrica. Importante salientar que, no caso das ONG´s, na sua
orientação, independentemente das opções conceptuais, a pratica denunciatória predomina em
suas ações políticas.
112
A partir dos anos 1980, o biocentrismo se expressa através de grupos que se propõem
defender medidas radicais de contenção da presença humana, orientados por premissas ético-
espirituais em relação à natureza. Grupos como o Earth First! Defendiam medidas coercitivas
para a diminuição dos níveis demográficos (idem, p.76). A ecologia profunda se encontra
amplamente difundida nesse ponto de vista.
Por outro lado, surge uma outra vertente, de caráter antropocêntrico, que transita, por sua
vez, entre duas propostas políticas. A primeira, de transformação radical do modelo de
organização sócio-econômica vigente, considerado não só degradante, mas também excludente (o
eco-socialismo
7
). A segunda, baseada numa perspectiva de reforma das diretrizes do modelo de
desenvolvimento, voltado para a construção de um “desenvolvimento sustentável” (expressa pela
primeira vez, de forma consistente, no relatório Nosso Futuro Comum/Brundtland, em 1987)
(idem, p. 77).
Na década de 1990, o ambientalismo como movimento social ganha tanto projeção quanto
legitimidade. A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD-ECO/92) realizada no Rio de Janeiro, estabelece definitivamente as preocupações
relativas ao meio ambiente como questão prioritária, seja nas relações internacionais,
intranacionais, estatais, civis e até mercadológicas. Ou seja, do âmbito global ao local, o discurso
ambientalista atinge uma multiplicidade de espaços sociais. Obviamente, há também um processo
de banalização da temática. A partir de 1992 até as empresas de papel e celulose tornam-se
sustentáveis e “ecologicamente corretas”. Este é, segundo Ferreira, um momento de crise para o
movimento.
7
Segundo Löwy, o eco-socialismo é “uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as aquisições
fundamentais do marxismo (...). Para os ecossocialistas a lógica do mercado e do lucro – assim como a do
autoritarismo burocrático de ferro e do “socialismo real” são incompatíveis com as exigências de preservação do
meio ambiente natural” (2005, p. 47).
113
È curioso notar a quantidade de eventos patrocinados pelo próprio ambientalismo,
cujo objetivo central é a auto-avaliação, seja ela de um período específico, seja do
processo de constituição do “movimento” como um todo (...). A grande
motivação dessa conduta pode ser resumida em uma preocupação em avaliar suas
origens, características, seu desempenho e o rumo tomado (2002, p. 59).
Além disso, importante para os objetivos aqui delineados, é digno de nota o processo de
fortalecimento e proliferação generalizada das organizações não-governamentais ambientalistas.
Milhares de ONG´s emergiram em todos os continentes; algumas movimentam
milhões de dólares e contam com contribuições pelo mundo afora. O European
Enviromental Bureau, por exemplo, congrega 120 ONG’s ambientalistas; tem
20 milhões de sócios, distribuídos em 12 países europeus, e dispõe de acesso à
Comissão da Comunidade Européia. Na América Latina e no Caribe há cerca
de 6 mil ONG´s e na Índia são mais de 12 mil, que se ocupam com temas
ligados ao desenvolvimento. Entre 1983 a 1981 a renda da World Wildlife
Found (WWF) cresceu de 9 milhões de dólares para 53 milhões de dólares, e
seus membros aumentaram de 94 mil para mais de um milhão. Hoje, a WWF
tem 4,7 milhões de filiados em todo o mundo e dispõe de um orçamento anual
de 293 milhões de dólares (idem, p. 69-70).
O ambientalismo no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1990, é dividido em dois
momentos distintos: O bissetorial (1971-1985) e o multissetorial (a partir de 1986). Sobre o
primeiro:
A profundidade (e até a violência) das mudanças modernizadoras dos anos 70
brasileiros explica inclusive, o maior espaço de atenção que aqui tiveram as
novas questões ambientais (...). Essas circunstâncias marcam a força e a origem
do ambientalismo brasileiro que, promovido por “cima” e por “baixo”,
estrutura-se no seu período formativo como um movimento bissetorial
constituído por associações ambientalistas e agências estatais de meio ambiente.
Esses dois atores terão uma relação complementar e contraditória confluindo
ambos na definição da problemática ambiental recortada pelo controle da
poluição urbano-industrial e agrária e pela preservação dos ecossistemas
naturais (Leis & Viola 1995, p. 81-82).
O segundo momento, afinado ao processo de redemocratização da política brasileira, é
caracterizado pela diversificação dos sujeitos partícipes do movimento ambientalista.
114
A progressiva disseminação da preocupação blica, interna e externa ao
Brasil, com a deteriorização ambiental transforma o ambientalismo num
movimento multissetorial e completo, na segunda metade da década de 80 (...).
Esse ambientalismo está constituído por cinco setores (...): 1) as associações e
grupos comunitários ambientalistas; 2) as agências estatais de meio ambiente;
3) o socioambientalismo constituído por organizações não-governamentais e
movimentos sociais que outros objetivos precípuos, mas incorporam a proteção
ambiental como uma dimensão relevante de sua atuação; 4) os grupos e as
instituições que realizam pesquisas sobre a problemática ambiental; 5) um
reduzido setor dos gerentes e do empresariado que começa a pautar seus
processos produtivos e investimentos pelo critério da sustentabilidade ambiental
(idem, p.85).
Nesse processo de pulverização de agentes sociais ambientalistas, o grupo com
preponderância de atuação política na sociedade civil e que interessa a essa proposta de análise
é o socioambientalismo. Essa vertente “abrange uma vasta variedade de organizações não-
governamentais, movimentos sociais e sindicatos, que têm incorporado à questão ambiental como
uma dimensão importante de sua atuação” (ibidem, p. 88). É no interior desse grupo que a
etnoconservação transita entre a condição de proposta teórica à prática política conservacionista.
É nesse contexto, portanto, que o encontro entre as populações tradicionais e as organizações
não-governamentais.
As organizações não-governamentais, com equipes de profissionais compostas de forma
hegemônica pelo grupo quatro descrito por Leis & Viola, é descrita como grupo de grande
relevância por tais autores.
Um setor cada vez mais importante das organizações não-governamentais de
desenvolvimento social e apoio aos movimentos sociais, de enorme
responsabilidade e capacidade para formar opinião e intervir no espaço público,
que com diferentes ritmos mas com velocidade crescente a partir de 1990 é
motivo pelos movimentos sociais e pelo ambientalismo, a propósito da Rio-92,
a tomar posição e vincular a questão do desenvolvimento, frente a suas
preocupações, com a questão ambiental (ibidem, p. 89-90).
115
Ferreira aponta, também, a especificidade de ação das ONG`s no âmbito socioambiental,
na formulação de propostas de ação conservacionista junto a diversas formas de especificidades
étnicas.
Há ainda uma consequência da ação atual das ONG`s que merece ser ressaltada,
porque talvez seja a de maior impacto para a compreensão das mudanças
sociais em curso. Essa consequência é representada pelo diálogo intenso e pelo
estabelecimento de acordo visando a implementação de projetos conjuntos entre
categorias extremamente diferenciadas de sujeitos: do lado das ONG`s, grupos
sociais oriundos das classes médias intelectualizadas, muitas vezes sem uma
importante experiência prévia na vida política; do lado do público-alvo
preferencial dos projetos encontram-se categorias sociais apartadas da vida
citadina, algumas previamente mobilizadas, como é o caso, por exemplo, de ex-
sem-terra assentados ou ribeirinhos ligados ao movimento de seringueiros.
Outros estão penetrando o sistema político graças à presença de seus novos
parceiros urbanos, como é o caso de pescadores, roceiros e extratores que
habitam a faixa litorânea da mata atlântica (FERREIRA, 2002, p. 74).
As ONG’s têm-se configurado em importantes agentes de disseminação de propostas de
ações sustentáveis juntos aos grupos tradicionais. Ferreira, em sua perspectiva otimista, afirma
que
As ONG’s ambientalistas têm contribuído para transmitir o conhecimento
técnico científico interdisciplinar a coletividades anteriormente apartadas do
direito de usá-lo em seu benefício. Em um mesmo movimento, sua atuação tem
propiciado a pesquisadores e estudiosos uma nova compreensão das metas
populares, seus anseios, crenças e interpretações sobre o que seria um futuro
viável. Mesmo sem objetivo imediato, muitas delas têm contribuído em grande
medida para o delineamento de uma linguagem pactuada entre sujeitos sociais
diferenciados que conta de uma possível inteligilibilidade do mundo
contemporâneo (idem, p. 73).
Assim, parece claro que, a partir dos autores supracitados, as organizações não-
governamentais têm papel fundamental na disseminação de propostas de organização e
capacitação das populações tradicionais. Mas, ao contrário do que possa parecer, muitas dessas
populações não são passivas politicamente. De forma geral, elas detêm, paralelamente ao
116
processo de proliferação das ONG’s ambientalistas, um histórico intenso de luta fundiária na
defesa dos seus territórios.
Como vimos, antes de se tornarem “populações tradicionais” no sentido que a literatura
antropológica lhes classifica eram grupos que se organizavam para a luta isolada frente aos
agentes sócio-econômicos da expansão capitalista de apropriação dos recursos naturais.
Buscaram um processo de fortalecimento político estabelecendo alianças tanto entre as
comunidades locais, que pereciam com a mesma situação de conflito, quanto com outros grupos
que reconheceram no discurso ambientalista a legitimidade de luta pelos seus direitos.
Os seringueiros que, poucos anos antes, formavam uma categoria que se
supunha condenada ao rápido desaparecimento assumiram no final da década
de 1980 uma posição de vanguarda em mobilizações ecológicas. No final de
1988, emergiu no Acre uma aliança para a defesa das florestas e de habitantes
com o nome de Alianças dos Povos da Floresta, abrangendo os seringueiros e
grupos indígenas por meio das duas organizações nacionais que se haviam
formado nos anos anteriores: o Conselho Nacional dos Seringueiros e a União
das Nações Indígenas. A reunião de Altamira, organizada pelos Kayapó contra
o projeto da represa do Xingu, tinha uma conotação ambiental explicita. No
final do decênio de 1980, a conexão ambientalista tornara-se inevitável
(CUNHA & ALMEIDA, 2001, p. 187).
A intensificação das relações entre populações tradicionais e organizações não-
governamentais durante a década de 1990, tem como característica a constituição de uma
linguagem comum entre modos diferentes de lutas a fundiária e a conservacionista
incorporadas ao movimento ambientalista. ONG’s ambientalistas enxergaram, no modo de vida
das populações tradicionais, formas de sustentabilidade que contrastam com o modelo degradante
de ação ocidental. Assim como, as populações tradicionais encontraram, na sociedade
envolvente, aliados capazes de promover a visibilidade de sua luta contra os seus oponentes no
conflito pelo uso social dos recursos naturais. Essa complementaridade, contudo, conta da
compreensão das relações entre os sujeitos em questão? Fica evidente que, a ação das
117
organizações não-governamentais sobre as populações tradicionais, tem como objetivo a
construção de um processo emancipatório de sustentabilidade e de autonomia política.
As ONG’s ambientalistas com atuação no território nacional tem levado a cabo
inúmeros tipos de projetos: dentre eles merecem destaques os de diagnóstico
participativo dos recursos naturais e dos usos a que se destinam, popularização
de técnicas de agroecologia ou de manejo de espécies e sistemas, alternativas de
geração de emprego e renda para moradores de Unidades de Conservação e seu
entorno, incluídos os cursos de capacitação, técnicas sustentáveis de
abastecimento de água para zonas semi-áridas, mutirões para reposição
florestal, além de projetos de co-gestão de áreas protegidas em parceria com
órgãos governamentais. O público-alvo preferencial desses projetos é
constituído por índios, seringueiros, ribeirinhos, sertanejos, pescadores (...)
(FERREIRA, 2002, p.72).
Uma das ações freqüentes das ONG’s tem sido o estímulo de criação das associações
comunitárias, como forma de incitar a organização coletiva e cooperativa das populações
tradicionais. Segundo Scherer-Warren,
(...) é por meio delas que os moradores encaminham reivindicações para a
melhoria da infra-estrutura do bairro ou das comunidades de referência; para a
melhoria da qualidade de vida (na saúde, educação, lazer, meio ambiente, etc.);
para reconhecimento de suas tradições culturais (pela promoção de eventos,
festas, festivais, etc.). Pode-se incluir nessa categoria desde as antigas
Sociedades Amigos de Bairro, os conselhos comunitários (criados por
iniciativas governamentais, mas que na prática muitas vezes se confundem com
as associações criadas por iniciativa da sociedade civil), as mais recentes
associações de Bairro, Moradores ou de Favelados e grupos locais de defesa
cultural (2002, p. 42).
Levando-se em consideração que o objetivo, de forma geral, das organizações não-
governamentais é contribuir para a autonomia das populações tradicionais, é admissível
pressupor que quando esta autonomia se materializa, esses grupos assistidos tendem a conquistar
para si a condição de proponentes das ações políticas controladas por essas entidades. As
comunidades tradicionais, através da construção de sua autonomia podem tornar-se articuladoras
de suas próprias demandas sócio-políticas. É possível questionar, então, se esse processo de
118
emancipação tem gerado conflitos entre os grupos tradicionais e as organizações não-
governamentais que lhe assistem. Por outro lado, plausível que essas organizações busquem
construir as ações estratégicas para a reprodução do seu papel político. Essa contradição entre
promoção da autonomia e reprodução da suas condições de existência parece ser umas das mais
difíceis questões a serem resolvidas pelas ONG’s.
Por fim, quando a proposta de ação política envolve um processo de reorganização
territorial através da etnoconservação, é necessário um forte comprometimento com estratégias
contemplem a efetividade do projeto de emancipação dos grupos tradicionais. Nesse sentido é
relevante para esse estudo analisar a estratégias que as organizações não-governamentais
elaboram para a consolidação de uma etnoconservação junto a populações tradicionais que
habitam unidades de conservação. Importa, também compreender como essa consolidação
coaduna-se com as estratégias de manutenção das relações de poder que permitem reproduzir o
papel político das ONG’s.
119
Capitulo VI – A Fundação Vitória Amazônica e o Parque nacional do Jaú.
Este capítulo tem como objetivo abordar as atividades da Fundação Vitória Amazônica
(FVA) no processo de consolidação do parque nacional do Jaú (PNJ), unidade de conservação
sediada nos municípios de Novo Airão e Barcelos, Estado do Amazonas. As atenções são
voltadas para a ação da FVA no caminho de elaboração do plano de manejo do PNJ, entre 1993 e
1998, a partir de uma cooperação técnica com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
Recursos Naturais (IBAMA).
A análise aqui realizada pretende compreender as estratégias que a FVA elaborou para a
efetivação da sua proposta de adequadação da presença humana no interior do PNJ. Presença
problematizada em vários aspectos, levando-se em consideração que o modelo de conservação
previsto na legislação vigente para a categoria “parque nacional” não admite a permanência de
moradores. Assim pretende-se, também, dimensionar as possibilidades de diálogo entre as
atividades da FVA junto ao poder público e aos ribeirinhos residentes no PNJ e a proposta
teórica da etnoconservação.
1 – O Parque Nacional do Jaú e seus sujeitos.
Nesse primeiro tópico, analisam-se os três sujeitos sociais relevantes para a reflexão
proposta, ou seja, (1) os moradores do parque nacional do Jaú, (2) o IBAMA e (3) a Fundação
Vitória Amazônica. O fio condutor da análise é a elaboração de um breve histórico de formação
do PNJ, no qual fica evidenciado o entrelaçamento entre os sujeitos em questão, assim como as
relações conflitantes decorrentes desse processo.
O parque nacional do Jaú é uma das maiores unidade de conservação do território
Brasileiro, com 2.272.000 hectares. Foi criada no dia 24 de setembro de 1980, pelo decreto
120
85.200 e abrange os rios Unini (limite norte), Carabinani (limite sul) e Jaú (região central). Seu
único acesso é pelo rio Negro, que os rios que compõe o PNJ fazem parte de sua bacia
hidrográfica. É, portanto, uma região que integra o sistema de rios de água preta, com variação
anual no nível da água de 6 a 10 metros entre o seu período de seca/verão (julho a dezembro) e
cheia/inverno (janeiro a junho).
A criação do parque nacional do Jaú está contextualizada politicamente no quadro
integração da Amazônia ao cenário econômico brasileiro proposto pelos governos militares.
Nesse sentido é possível compreender o surgimento de uma política preservacionista no contexto
amazônico durantes os anos 1970/80, como um componente do processo de ocupação territorial e
da concepção de desenvolvimento levado a cabo no período da ditadura militar.
Verifica-se, (...), um grande progresso de medidas conservacionistas, tanto
administrativas quanto jurídicas, ao tempo do governo Figueiredo, o último do
regime militar. Essa coincidência é tanto mais significativa quanto
aparentemente contraditória, pois, (...), esse é o período de expansão induzida
da fronteira agrícola para a Amazônia – via projetos de colonizações oficiais – e
de criação de localizações privilegiadas para a valorização de capitais privados
e o crescimento “polarizado” subsídios e investimentos públicos no setor de
infra-estrutura regional. Foi, portanto, o mesmo contexto histórico em que o
regime militar levou adiante as políticas que têm sido responsabilizadas por
efeitos sociais e ambientais deletérios na região, aquele em que mais avançou
em termos de medidas conservacionistas por meio de criação de UCs de uso
indireto. (...) essa relativa facilidade em se estabelecerem UCs de uso indireto
nos regimes militares é mais do que o resultado de um mero concurso favorável
de circunstâncias, devendo-se a um conjunto complexo de fatores, entre os
quais se destaca a gestão estatal estratégica do território a politização da
estrutura espacial do país como instrumento e condição da via brasileira,
eminentemente autoritária, para a modernidade (BARRETO FILHO, 2001, P.
160-162).
A política preservacionista, como um dos elementos do projeto de modernização
brasileiro proposto pelo regime militar, foi estabelecida, em grande parte, a partir da pressão
internacional pelo tratamento desprezível dado aos problemas relacionados à degradação
121
ambiental. Além disso, que se considerar o apreço dos militares pela linguagem “cientificista
e “racionalizada” amplamente utilizada pelo discurso conservacionista de caráter biocêntrico.
(...) as UCs criadas na Amazônia pelo IBDF entre meados da década de 1970 e
início da de 1980, teriam sido fruto, em larga medida, da astúcia política dos
planejadores da conservação, conjugada ao ambiente tecnocrático do governo
federal no regime militar que favorecia as iniciativas cientificamente
orientadas e às oportunidades que assim se apresentavam nas propostas de
criação de áreas sopesando a força e a influência de outros atores e agencias
com presença na Amazônia naquele momento (os colonos e o INCRA, a
FUNAI e as populações indígenas, os especuladores, o grande capital privado e
os próprios projetos de desenvolvimento articulados pelo Estado) (idem, p.
177).
Favorecidas por um ambiente político favorável, justificativas de cunho cientificista
foram fundamentais para a criação de unidades de conservação de uso indireto na Amazônia. No
contexto de criação do PNJ ainda sob a administração do Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal (IBDF) utilizou-se como referencial teórico a teoria dos refúgios,
desenvolvida por Haffer, para a explicação da grande diversidade de espécies em regiões
tropicais.
Em 1969, o pesquisador Jügen Haffer (...) propôs uma abordagem teórica para o
tema. Haffer sugere que durante o Quaternário a floresta amazônica foi
fragmentada em “blocos” de florestas separadas por vegetação não florestal (...)
durante os períodos climáticos mais secos. Nesse cenário, as populações de
aves estariam isoladas nos “refúgios” de matas úmidas, o que poderia iniciar
um processo de divergência evolutiva. Quando o clima retornou às condições
úmidas, a floresta começou a dominar a paisagem. As populações de aves
poderiam novamente entrar em contato. Entretanto, novas espécies poderiam ter
se originado durante o processo de isolamento provocado pela fragmentação da
paisagem amazônica. A teoria dos refúgios foi estendida a outros grupos
taxonômicos (...) sendo considerada um importante modelo de especiação da
Amazônia. As políticas de conservação no Brasil na década de 1970 foram
amplamente influenciadas pela teoria dos refúgios, uma vez que a maioria das
UC’s existentes hoje na Amazônia coincide com os postulados dos refúgios do
Pleistoceno (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p.5).
122
Atualmente, a teoria dos refúgios não parece mais ser a grande orientadora do processo de
criação e consolidação das unidades de conservação.
Os estudos sobre a distribuição e o uso da diversidade biológica na Amazônia,
como forma de gerar subsídios para ações de implementação de UCs, devem
ser planejados levando-se em conta a alta diversidade de espécies, a grande
heterogeneidade dos ecossistemas e as complexas formas de interação entre
populações locais e recursos naturais (BORGES et. alli, 2004, p. 4).
De uma maneira geral, as características do PNJ parecem contentar os dois discursos
biológicos justificadores da proposta conservacionista. A região do rio Jaú foi recomendada como
área prioritária para preservação pelo IBDF a partir da cooperação com pesquisadores do Instituto
Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA).
Realizou-se uma expedição à região do rio Jaú, coordenada pelo Dr. H. O.
Schubart, com os alunos do Curso de pós-graduação em Ecologia e em
Botânica Tropical do INPA. O relato dessa expedição, e algumas informações
locais, deu impulso para a criação do PNJ. O relatório menciona ainda que a
região coincidiria com refúgios do Pleistoceno mapeados por Haffer (...) e
Prance (...), apesar de não existirem, na época, dados de distribuição de fauna e
flora de toda a região do PNJ (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b,
p.6).
Vê-se que o embasamento científico utilizado para a criação do parque carece de
consistência metodológica, já que a determinação da área como local dos tais refúgios foi
afirmada sem um levantamento prévio da fauna e da flora existente. O posicionamento baseado
na premissa da diversidade biológica parece, ao menos, encontrar uma legitimação maior, na
medida em que define o Jaú como uma área que abriga diversos ecossistemas característicos do
bioma de floresta tropical úmida, tais como floresta densa tropical, floresta aberta tropical,
capinarama, dentre outras (idem, p. 3).
É interessante notar, ainda, que a criação do PNJ, além de ter o impulso a partir de uma
constatação científica pouco fundamentada, não levou em consideração a presença humana
123
dentro de seus limites. Assim seu ímpeto formador perece ter sido gerado mais por facilidades
político-administrativas do que pela sua relevância ecológica.
Não parecia haver no Jaú, àquela época, nada de singular do ponto de vista
biológico nem de cenicamente excitante embora o relatório da equipe do
INPA mencionasse a rara beleza da paisagem. Contudo, o Jaú apresentava
grandes vantagens do ponto de vista do administrador: era um vácuo
interessante, não havendo índios, depósitos de ouros conhecidos, planos de
desenvolvimento para a região ou preocupações com a questão da segurança. A
ocupação humana parecia rarefeita, com poucos tulos definitivos de posse
e/ou propriedades privadas a serem adquiridas (FUNDAÇÃO VITÓRIA
AMAZÔNICA, 1998a, p. 22)
Parecia rarefeita, mas não era. Em 1992, elaborou-se uma estimativa de que existiam 1149
pessoas residindo no interior do PNJ (Carvalho e Sizer, 1992, p. 14). A baixíssima densidade
demográfica (0,04 hab/km
2
) não deixa transparecer a intensidade das relações sócio-ecológicas
existentes naquele território. Além disso, esses grupos humanos, por não serem considerados
“indígenas” sofriam e sofrem uma situação perniciosa de não-existência, na qual Darci Ribeiro
explica criticamente na sua “teoria da ninguendade” (1995). Quem são esses moradores? De uma
forma geral esses grupos são considerados de caboclos ou ribeirinhos. No plano de manejo são
definidos da seguinte maneira:
A forma como tais populações relacionam-se com a natureza imprime
singularidades a seu modo de vida, o que as caracteriza como populações
tradicionais pois possuem um corpo de conhecimentos tradicionais do
ambiente e de seus recursos. Tais conhecimentos visam à subsistência da
unidade familiar, e os vínculos com o mercado são permeados por uma teia de
relações não somente econômicas como também sócio-culturais (FUNDAÇÃO
VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 22).
Como nos lembra Ribeiro, a população amazônica nasceu a partir de uma dinâmica
cultural relativa ao processo de ocupação empreendida pela Coroa Portuguesa, no século XVI e
XVII, com objetivo de afastar invasores estrangeiros e garantir o estabelecimento de uma
organização econômica de exploração dos recursos da floresta.
124
Ao longo de cinco séculos surgiu e se multiplicou uma vasta população de
gentes destribalizadas, deculturadas e mestiçadas que é o fruto e a vítima
principal da invasão européia. Somam hoje mais de três milhões aqueles que
conservam sua cultura adaptativa original de povos da floresta. Originaram-se
principalmente das missões jesuíticas, que, confinando índios tirados de
diferentes tribos, inviabilizaram as suas culturas de origem (...). No curso desse
processo de transfiguração étnica, eles se converteram em índios genéricos, sem
língua, nem cultura próprias, e sem identidade cultural específica. A eles se
juntaram, mais tarde, grande massa de mestiços, gestados por brancos em
mulheres indígenas, que também não sendo índios e nem chegando a serem
europeus, (...), se dissolveram na condição de caboclos (RIBEIRO, 1995, p.
319).
O que é caracterizado de forma generalizante pelo autor encontra eco nas descrições mais
específicas sobre a ocupação humana na região do baixo rio Negro.
Em 1693, os padres mercedários fundaram o primeiro povado do rio Negro na
foz do rio Jaú, sendo por isso denominado de Santo Elias do Jaú. Essa área
serviu de base aos trabalhos dos missionários de preparação de mão-de-obra
indígena. Para esse local eram trazidos inúmeros indígenas de várias tribos do
alto rio Negro, pois os missionários acreditavam que com a distância de seus
hábitats naturais diminuía-se o risco de fuga. Os relatos de viagens de
historiadores que estiveram na região, nos séculos XVII e XIX, mostram que o
extrativismo, a agricultura e a criação de alguns animais eram as principais
atividades efetividades pelos moradores do lugar, que constituíam a base da
economia local. Embora predominasse a produção de subsistência, as principais
atividades econômicas eram: comercialização de óleos de copaíba, tamaquaré e
andiroba para utilização medicinal; extração de madeira breu; pesca; produção
de manteiga de tartaruga e coleta de ovos. (...) a produção de borracha no início
do século XX constituiu-se na principal atividade econômica, absorvendo a
força de trabalho disponível e atraindo maior contingente de imigrantes do
Nordeste brasileiro (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 138).
Localizada muito próxima à foz do rio Jaú, nas margens do rio Negro surgiu o município
de Airão, que
A partir da década de 1950, por um complexo de motivos não de todo
compreendido, a população Airão foi aos poucos se dirigindo ao povoado de
Tauapessassu, onde hoje se localiza a cidade de Novo Airão. O último morador,
da outrora opulenta da família Bezerra, retirou-se de Velho Airão em 1985,
quando a mata tomava conta de boa parte da cidade (...) (FUNDAÇÃO
VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 26).
125
Esse “complexo de motivos” deve estar relacionado ao longo processo de decadência da
economia da Borracha, levando ao despovoamento da região. De qualquer forma, nota-se que a
região que se pretende intocável para a consolidação do parque nacional foi uma área
intensamente habitada, muito longe dos sonhos dicotômicos de radical separação entre humano
e natureza – dos biólogos conservacionistas.
Desse modo, no início da década de 1980, a população ribeirinha foi totalmente
desconsiderada no processo decisório de criação do PNJ. Fatores políticos, administrativos e
científicos se coadunaram para a sua concretização e a presença humana foi considerada um
pequeno entrave a ser resolvido. A partir de 1982, o então IBDF começou a tentar solucionar esse
pequeno entrave. Uma série de medidas restritivas/repressoras foram utilizadas para forçar a
saída dos grupos de moradores da área.
Em 1985, cinco anos decorridos desde a publicação do decreto de criação do
Parque Nacional do Jaú, O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
(...) contratou o Instituto de Terras da Amazônia (o extinto ITERAM) para
realizar um levantamento fundiário e um cadastramento das famílias residentes
dentro do perímetro desta unidade de conservação. Nos mesmos moldes dos
formulários do INCRA, foi feito o trabalho nos rios Jaú, por inteiro, e no
Carabinani, até a cachoeira. Segundo relato de moradores, esse fato
desencadeou um êxodo de várias famílias residentes do Parque. A partir de
1987, o antigo IBDF proibiu a entrada de regatões
8
no Rio Jaú, para conter o
comércio ilegal de caça e outros produtos, e proibiu também a expansão do
cultivo de subsistência em áreas de floresta primária. (CARVALHO & SIZER,
1990, p.3).
Segundo relatos de ex-moradores do PNJ em entrevistas realizadas por ocasião da
presente pesquisa o episódio do levantamento fundiário acima descrito ficou marcado pela
incompreensão e espanto sobre a notícia de criação do parque. Até então, cinco anos após o
8
Regatão é o termo utilizado para a caracterização do comerciante que trafega pelos rios e igarapés da região
empreendendo trocas comerciais com a população ribeirinha. É o regatão que traz os produtos que não podem ser
extraídos na floresta, como sal, açúcar, roupas, panelas, etc. Em troca recebe com a produção a produção extrativista
dos ribeirinhos. Em muitos casos existe uma relação de dependência entre o regatão e o ribeirinho devido através das
dividas contraídas pelo último. Denomina-se essa relação de dependência de sistema de aviamento.
126
decreto de criação os moradores não haviam sido comunicados que aquela região tornara-se
uma unidade de conservação. Além disso, segundo os mesmos relatos, a forma de abordagem dos
técnicos responsáveis pelo levantamento foi marcada pelo não esclarecimento da situação e
direitos dos moradores. Tampouco ficou esclarecido para os ribeirinhos o que era o IBDF e quais
as suas eram as atribuições; muito menos o significado da expressão “parque nacional”. Ficou
claro, apenas que deveriam sair da área.
Durante os anos de 1985 a 1990 muitas famílias deixaram de viver área do parque num
processo muito controverso de ação estatal via IBDF/IBAMA.
No ano de 1985, o IBAMA (IBDF) instalou na foz do rio Jaú um uma base
flutuante iniciando a fiscalização da área do Parque, e também começou a
pressionar os moradores a abandonarem suas posses. Logo, subentende-se que,
a partir de 1985, os moradores saíram sob pressão, coagidos, sem o
reconhecimento de seus direitos sobre a terra em que trabalhavam e viviam, o
que caracteriza uma ilegalidade (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA,
1998b, p. 19).
Barreto Filho, em estudo comparado sobre o processo de criação da Estação Ecológica de
Anavilhanas e do Parque Nacional do Jaú, aborda as proibições empreendidas pelo então IBDF
através da descrição da atuação do primeiro chefe do PNJ, Vivaldo Campbell de Araújo, um dos
responsáveis pela proibição do comércio dos regatões. Engenheiro agrônomo, com carreira
acadêmica (mestrado em ecologia pelo INPA), Vivaldo é descrito como “o mais longevo chefe
do parque que fez história e a memória da falta de civilidade e descortesia para não dizer
truculência no tratamento com os moradores está estritamente vinculada à sua figura”
(BARRETO FILHO, 2001, p. 402). O autor utiliza as próprias palavras do técnico para
caracterizar as medidas restritivas impostas aos moradores.
(...) eu encontrei uma figura dentro do Parque do Jaú que eu achei simplesmente
horrorosa, chamada regatão. (...) Além de ter o seringalista que explorava o
127
cara, ainda chegava esse outro comprando os produtos que o seringalista não se
interessava. Porque o seringalista aviava o seringueiro para a produção de
borracha. Agora, couros e peles e outros produtos o seringalista não se
interessava. Então, os caras tinham que vender para alguém. O que eles faziam:
vendiam esses couros e peles, vendiam sorva, balata e outras coisas que eles
tiravam paralelamente, para esses camaradas que eram os regatões. Trocavam
por querosene, por leite, por açúcar, sal esses produtos de primeira
necessidade que o homem tem e que não se encontra em nenhum interior (...).
Ah, eu me queimei! Proibi a entrada do regatão no rio. Porque a primeira vez
que eu encontrei com ele, ele vinha abarrotado de produto. (...) Inclusive com o
barco cheio de quelônios (...) Tudo quanto é bicho ele vinha trazendo (...).
Rapaz, aquilo me deixou numa tristeza, numa agonia. (...) Eu disse, ‘Eu acabo
com essa figura’. (...) Ora, então isso é um Parque ou uma área de exploração?
(...) Então nós proibimos a entrada do regatão. Com a proibição do regatão,
todo o pessoal se melindrou. Então, o que eles fizeram? Tinham que descer o
rio e ir comprar suas necessidades na cidade de Novo Airão, que era o lugar
mais perto que eles tinha pra comprar. E isso gerou, na população um mal estar
para comigo. (Vivaldo Campell de Araújo, 65, Pça 14 de Janeiro, Manaus,
02.08.1999) (idem, p. 402-403).
Assim, Barreto Filho considera a atuação do IBDF via técnico Vivaldo sobre as
relações preexistentes na região onde foi estabelecido o PNJ:
Foi com essa determinação, esse sentido de propósito e de responsabilidade,
essa pertinácia, olhando para o Jaú como se ele sempre tivesse sido um Parque
unidade destacada da paisagem inclusiva e para as pessoas que residiam
como intrusos, invasores e criminosos invertendo a cronologia dos fatos –,
que Vivaldo administrou o PNJ por sete anos. (...) Não obstante, foi a partir de,
fundamentalmente, de ões repressivas que a existência do Parque chegou ao
conhecimento da maioria das pessoas que lá residiam (ibidem, p. 403).
A partir de 1989, o IBDF, submetido ao Ministério da Agricultura, e o SEMA (Secretaria
do Meio Ambiente), ligado ao Ministério do Interior, fundiram-se para a criação do IBAMA,
atrelado, agora, ao Ministério do Meio Ambiente. Apesar da reforma administrativa, o IBAMA
parece não ter se desvinculado totalmente da postura restritiva/repressora típica do extinto IBDF.
A interpretação dos técnicos da FVA sobre a dinâmica interna do órgão é digna de nota.
O fato do IBAMA resultar da acomodação administrativa de órgãos
governamentais que tiveram origens, trajetórias, formas de atuação e
prerrogativas distintas na gestão da natureza e na modulação do espaço
128
territorial nacional – e que, em alguma medida, competiam entre si parece ter
contribuído para a constituição de uma “cultura institucional” marcada por
rivalidades internas e interpretações divergentes sobre o sentido da política de
proteção à natureza. (...) O contexto histórico que propulsiona a criação do
IBAMA também é significativo para compreender um pouco o sentido de
propósito de seus membros, bem como a persistência de certas desconfianças.
O final da década de 1980 é caracterizado pela estrondosa repercussão
internacional do aumento da taxa de desmatamento e queimadas na Amazônia
brasileira, e pelo movimento dos seringueiros em defesa dos recursos naturais
de que dependem. Em 1988, o assassinato de Chico Mendes alcança grande
ressonância mundial. Diante da forte pressão internacional e da emergência de
propostas de gestão compartilhada do bioma amazônico por governo de outros
países e entidades não governamentais do país e do exterior (algumas delas
articuladas ao movimento social dos seringueiros), o governo Sarney responde
com uma reação nacionalista, por meio do Programa ‘Nossa Natureza’. É nesse
contexto que se dá a criação do IBAMA. (...) De lá para cá foram incontáveis os
presidentes do IBAMA uma situação de instabilidade e descontinuidade
administrativa que representou mais um obstáculo ao bom desempenho das
atribuições do órgão. Ao mesmo tempo, o IBAMA, como de resto todos os
órgãos governamentais de formulação e execução de políticas públicas nos
marcos da redefinição do papel do Estado em países da semiperiferia do
capitalismo internacional, sempre foi assombrado pela carência crônica de
recursos humanos qualificados e financeiros. Isso repercutiu numa situação de
quase abandono das Unidades de Conservação (UC) na última década e meia
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 3-4).
A citação acima aponta tanto para uma situação de “cooperação conflitante” entre o
IBAMA e a FVA (que será analisada mais adiante), quanto para a dificuldade de organização
interna do órgão estatal, que parece refletir diretamente na ação junto aos moradores do PNJ.
(...) A conseqüência imediata desse problema não resolvido é a existência de
uma confusão enorme sobre o que os moradores podem ou não fazer. três
anos atrás, a entrada de “regatões” (barcos comerciais) foi proibida (a aplicação
da ordem de proibição não tem validade apenas para os regatões de propriedade
dos moradores do Parque); o IBAMA vem tentando evitar o corte da mata
virgem, mas tem liberado as áreas de mata secundária para serem utilizadas
para a plantação de roças; a caça de alguns animais está proibida, mas não
queda claro para os moradores quais estes animais; incerteza também em
saber se está proibida toda espécie de caça ou somente caça comercial. A
impressão do observador é a de que os próprios guardas localizados no Parque,
no flutuante do Rio Jaú, também não têm certeza dos direitos dos moradores,
uma vez que a indenização ainda não foi paga (SIZER, 1991, p. 10).
129
Como se vê, a situação de conflito entre moradores/ex-moradores e IBAMA desenvolveu-
se a partir de um conjunto de descasos político-administrativos em relação à presença humana
no interior do PNJ que remontam ao processo de criação da unidade de conservação e que,
como veremos, persistem até hoje. Esse conflito agravou-se, também pela controvérsia das
indenizações que deveriam ser pagas àqueles que deixaram o parque pela pressão exercida pelo
IBDF/IBAMA nos anos de 1985-1990. Segundo Barreto Filho,
Em 1989, foi providenciado junto à Coordenadoria de Orçamento da Diretoria
de Ecossistemas DIREC do IBAMA, a transferência de recursos do Projeto
Calha Norte (...) no valor de NCz$ 480.000,00 (...) para indenização das
famílias que se viram inseridas na unidade. (...) Ocorre que a equipe do IBAMA
que deslocou-se até a cidade de Novo Airão para viabilizar as referidas
indenizações nos contatos mantidos com a população do município, tomaram
conhecimento “de que a prefeitura de Novo Airão tinha realizado uma reunião
com aproximadamente 100 moradores do Parna-Jaú, no sentido de ser
viabilizada uma decisão conjunta de não recebimento das respectivas
indenizações” (...). Esta informação indica que a posição final dos moradores,
do prefeito e dos vereadores foi a seguinte: “as famílias do Parna-Jaú retiram-se
do seu interior mediante os valores da avaliação atual [atualização monetária do
valor supracitado], desde que concomitantemente seja efetuada a realocação
para um Projeto de Assentamento elaborado pelo INCRA”. O “Projeto de
Assentamento Pacatuba” estava sendo proposto à margem direita do rio Negro,
na localidade homônima, adjacente à estrada projetada que lhe daria acesso à
sede do município de Novo Airão. Os objetivos do Projeto de Assentamento
eram: (a) o “remanejamento de centenas de famílias que habitam o Parque
Nacional do Jaú, Estação Ecológica de Anavilhanas e a Reserva Indígena
Waimiri Atroari”; (b) a “incorporação de novas áreas ao processo produtivo”; e
(c) a “ordenação das ocupações, invasões e especulações quanto a posse e uso
da terra”. (...) Em função, por um lado, da morosidade do processo de
regularização fundiária da área do Parque, e por outro, da resistência dos
moradores articulada pelo poder público municipal, não se desintrusou nem se
demarcou a área do Parque até hoje. Isso produziu uma situação de
instabilidade e insegurança quanto ao destino dos moradores e do trabalho
materializado em suas posses/ocupações (BARRETO FILHO,
2001,
p. 19-20).
Através de entrevistas realizadas com ex-moradores e com lideranças comunitárias de
associações de Novo Airão, constatou-se que há uma opinião generalizada de que a verba
destinada às indenizações foi desviada pelas autoridades municipais e pelos próprios técnicos do
130
IBAMA, sendo o acordo referido na citação acima uma forma de manipulação política com o fim
último da corrupção. Nessa situação de oposição e conflito entre moradores e ex-moradores de
um lado e IBAMA de outro, quais seriam as condições de consolidação do parque nacional do
Jaú? As dificuldades político-administrativas articuladas a uma visão biocêntrica simplista sobre
a conservação, foram elementos fundamentais para a constituição de uma postura
restritiva/repressora do IBAMA junto às famílias residentes no PNJ. Assim, o órgão construiu
para si uma representação extremamente negativa de sua ação na região do baixo rio Negro. O
IBAMA tornou-se um entrave para a continuidade das relações sócio-econômicas existentes no
mundo amazônico. O extrativismo engendrado ao mercado nacional e internacional através do
sistema de aviamento foi o padrão básico de relação econômica desde o período colonial.
Representando novos interesses político-econômicos por parte do Estado brasileiro em relação à
Amazônia a partir dos anos 1970, o IBAMA interrompeu drasticamente esse conjunto de relações
historicamente estabelecidas.
A população ribeirinha, base fundamental sobre o qual se assentava o processo de
exploração anterior, sofreu a ação repressora de maneira direta. Seu modelo de extrativismo não
foi visto a partir da especificidade de relações com o conjunto de interações ecológicas, tornando-
se, aos olhos do IBAMA, tão destruidores quanto à indústria madeireira ou da pesca. Contudo,
estavam lá, residindo/resistindo no interior dos limites do parque. A presença humana que parecia
“rarefeita” adquiriu status de problema real e de grandes proporções. A criminalização das
atividades cotidianas dos moradores do parque colocou os dois sujeitos em situação de
enfrentamento. De modo contraditório, a presença desses grupos se faz, não obstante, necessária
ao processo de consolidação do parque. Levando-se em consideração a magnitude da área
(2.270.000 ha.) e as dificuldades de reconhecimento e localização da paisagem amazônica, quem
teria condições de orientar técnicos e cientistas no processo de investigação científica para o
131
reconhecimento da biodiversidade inerentes naquela paisagem? Se o ribeirinho, por um lado, é
visto como um intruso que “mancha” o ideal de intocabilidade do parque, por outro, ele é o único
que detém o conhecimento das espécies biológicas, assim como de suas interações ecológicas.
Ademais, sem ter uma perspectiva clara de resolução dos problemas relativos à remoção,
indenização e reassentamento dos moradores, a convivência com eles é, em certo sentido,
inevitável. Malgrado os esforços para gerar as condições de saída “voluntária” dessas famílias,
elas continuam residindo no interior do parque.
É nesse contexto que a Fundação Vitória Amazônica inicia suas atividades no Parque
Nacional do Jaú. A entidade se identifica com uma
Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, baseada em Manaus.
Fundada em 1990, tem por objetivos a conservação do meio ambiente aliada à
melhoria da qualidade de vida dos habitantes da região amazônica, em
particular da bacia do rio Negro, mediante o uso sustentável dos recursos
naturais de seus ecossistemas e com respeito às culturas e à diversidade étnica
regional (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, contracapa).
De forma geral, a FVA pretende atuar no âmbito do socioambientalismo, na medida em
que se declara promotora das possibilidades de adequação da conservação biológica e uso
sustentável na região do baixo rio Negro. Essa inclinação, porém, pode ter surgido não por uma
opção político-ideológica apriorística, mas sobretudo pela situação sócio-ecológica a qual a
entidade se deparou ao pretender atuar na consolidação do PNJ.
As primeiras atividades da FVA se dão sem um plano de ação mais definido,
atendendo a necessidades pontuais (...). Nos primeiros momentos de sua
existência, a entidade é vista, no cenário local, como conservadora, associada às
elites políticas locais do Amazonas, não se relacionando com outras
organizações não governamentais. (...) A entidade assume um perfil mais
estritamente conservacionista, que é posto em cheque no confronto com a
realidade da região quando da realização do censo e levantamento
socioeconômico dos residentes do Parque Nacional do Jaú, em 1992. A nova
equipe de profissionais montada por (Carlos) Miller irá encontrar uma situação
que aponta para a viabilidade de associar a conservação da biodiversidade na
132
área do Parque com a presença de uma “população tradicional” local (idem, p.
1-2).
Esse perfil conservacionista estrito é expresso pela primeira ação da FVA, o projeto
Campanha Sauim-de-Coleira entre 1991 e 1992, na cidade de Manaus. O projeto “(...) de
educação ambiental, ajudou no processo de criação do Parque Municipal do Mindu, um dos
maiores fragmentos de floresta localizados na capital amazonense onde ainda existem populações
naturais do sauim-de-coleira” (FVA, www.fva.org.br). A eleição de uma espécie específica como
objeto de conservação é uma estratégia bastante usual do conservacionismo biocêntrico. Esses
são os totens da conservação biológica, sacralizados pela valoração biológica (GUHA, 2000, p.
88). A assunção de um perfil sócio-ambientalista coincide com a consolidação da entidade no
cenário regional.
Há, ao longo desse período, um amadurecimento da noção de ambientalismo da
instituição, passando da fase conservacionista para uma visão mais abrangente,
em que a antinomia natureza/homem é revista à luz de novas interpretações da
relação sociedade/natureza nos trópicos (...). Esse amadurecimento é
acompanhado pela consolidação físico-finaceira da instituição e sua inserção na
cena nacional por meio da participação nos debates das políticas públicas
ambientais e dos projetos de desenvolvimento da região amazônica (...)
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 2).
Importante salientar que a FVA se compromete a atuar em prol da conservação da
biodiversidade e da melhoria da qualidade de vida das populações locais, no entanto, esses
objetivos se dão através ou para a viabilidade de sua vocação primordial que é a pesquisa
científica: A Fundação Vitória Amazônica (FVA) foi fundada em janeiro de 1990 para atender
às necessidades de grupos de pesquisadores de Manaus que buscavam alternativas mais ágeis à
burocracia estatal para o financiamento de suas pesquisas (idem, p.1)”. Como veremos, a ênfase
dada aos trabalhos de elaboração do plano de manejo do PNJ até 1988 foi relacionado a um
montante considerável de pesquisas científicas das mais diversas áreas sobre a sua paisagem.
133
Essa vocação para a pesquisa parece persistir até a atualidade, através do seu maior projeto após a
conclusão do plano de manejo: o projeto “Janelas para a Biodiversidade”.
Ampliar o atual nível de conhecimento da biodiversidade regional, talvez seja
um dos maiores desafios das pesquisas a serem desenvolvidas na região
amazônica. Foi com este objetivo que o Projeto Janelas para a Biodiversidade
foi concebido. O projeto foi elaborado por técnicos da Fundação Vitória
Amazônica (FVA), contando com estreita colaboração de pesquisadores de
várias entidades, com vistas a dar continuidade aos estudos da biodiversidade
de uma das maiores áreas protegidas do Brasil o Parque Nacional do Jaú
(BORGES, et al., 2004, p.1).
Parece ser bem claro para o corpo técnico da FVA que a constituição de um conjunto de
pesquisas sobre a paisagem ecológica e social é determinante para a elaboração de estratégias de
ação política de conservação e uso sustentável.
A Fundação Vitória Amazônica nasceu, em 1990, da vontade de cidadãos
amazonenses, de fato e de coração, de reverter o processo de destruição da
região e oferecer, através do conhecimento de ecossistemas e do respeito às
culturas locais, propostas concretas para o desenvolvimento sustentável da
região. O conhecimento da Amazônia foi considerado fundamental para que
ações de proteção fossem suficientes para que o desenvolvimento realmente
gerasse qualidade de vida e não destruição dos recursos naturais (idem, p.IX).
Desse modo, a FVA se apresenta como uma alternativa às instituições tradicionais de
produção de pesquisa.
A pequena equipe da FVA não tinha, no entanto, a pretensão de fazer o que as
grandes instituições de pesquisa da e na região já faziam. O diferencial ao que a
FVA se propôs era servir de catalisador para recursos financeiros, materiais e
humanos, e gerar métodos inovadores de abordagem das questões científicas
que permitissem potencializar a atuação dos pesquisadores (ibidem).
A entidade se apresenta, portanto, como uma instituição de pesquisa que a partir de um
corte temático específico, o PNJ pretende constituir-se como um “catalisador” de condições
para a produção do conhecimento sobre a biodiversidade. Nesse sentido, a FVA atribui para si
134
mesma a responsabilidade de estruturar a intersecção de pesquisas e pesquisadores das mais
diversas instituições que voltam os seus interesses para a região do baixo rio Negro.
Além disso, vale destacar a presença maciça dos pesquisadores do INPA no conjunto de
expedições científicas que deram subsídio à elaboração do plano de manejo do PNJ. Dos 57
pesquisadores participantes, 23 estavam ligados ao INPA. O número de pesquisadores de outras
instituições é bem inferior. 13 pesquisadores são da própria FVA e todas as outras instituições
participaram com menos de cinco pesquisadores. A participação dos pesquisadores do INPA
denota a grande influência da instituição nas diretrizes ambientalistas da Amazônia de uma forma
geral. Sugere, também, que esses pesquisadores estiveram receptivos à possibilidade de
intervenção política na territorialidade da região, assim como às organizações não-
governamentais como instrumentos eficazes de ação na dinâmica conservacionista.
É assim, como, antes de tudo, uma instituição de pesquisa, que a FVA se lança na
dinâmica política relacionada ao Parque Nacional do Jaú e ao baixo rio Negro. Sua primeira ação
junto ao parque foi a realização de um levantamento sócio-econômico por amostragem em 1990
(Carvalho & Sizer, 1990). Esse documento, com dados de natureza demográfica, esforça-se por
apresentar uma visão panorâmica sobre as atividades dos habitantes do PNJ, tais como saúde,
educação, condições de moradia, agricultura, e extrativismo (animal e vegetal). Além disso,
aborda a problemática da presença humana na unidade de conservação de forma que, na
perspectiva aqui adotada, foi fundamental para a construção do posicionamento da FVA sobre a
questão.
Moradores do Parque e habitantes das áreas circunvizinhas vêem com
desconfiança toda e qualquer ão do IBAMA na área, temerosos de ocorrer
com eles o mesmo tipo de ação de realocação, vista como traumática, que
sofreram alguns dos ex-moradores da atual Estação Ecológica das Anavilhanas.
Esse tipo de receio torna-os opositores de toda e qualquer ação conservacionista
na região. Eles convivem também com um total desconhecimento técnico
135
acerca do impacto real das atividades desempenhadas no Parque. É imperativo
conhecer, avaliar e compreender a natureza e a intensidade dos impactos
antrópicos resultantes das atividades desempenhadas pelos moradores atuais
sobre a conservação da biodiversidade do Parque Nacional do Jaú. Somente o
conhecimento dessas variáveis e a projeção do impacto das mesmas no futuro
permitirá a elaboração de propostas para a realocação dessas famílias ou, quiçá,
a integração de parte delas ao esforço de conservação efetiva do Parque (idem,
p. 4).
Há, na citação acima, o reconhecimento claro das tensões que envolvem a relação entre
IBAMA e população, assim como a interpretação de que esse conflito pode colocar em xeque a
consolidação do projeto conservacionista. Por outro lado, ao apresentar o “total desconhecimento
técnico” da população sobre suas próprias atividades e enfatizar a prioridade de se conhecer o
“impacto” dessas atividades, as autoras reconhecem no conhecimento científico duas
possibilidades mais ou menos implícitas: a função educativa de “conscientização” do ribeirinho
sobre sua intervenção nas interações ecológicas e, dessa maneira, o surgimento da possibilidade
de integração dos mesmos na prioridade de conservação biológica. Mesmo colocando claramente
a possibilidade da realocação, a premissa “de integrar a conservação, proteção do meio ambiente
e uso adequado dos recursos pelas populações locais” (BORGES et. alli., 2004, contracapa),
orientadora daão da FVA, pode ser pela primeira vez fundamentada. O documento ressalta, de
forma intensa, a necessidade da comprovação científica das possibilidades de adequação da
presença humana. Ênfase que, como veremos, foi uma das características da elaboração do plano
de manejo.
As atividades predominantes que desempenham os moradores do Parque
nacional do Jaú se são representativas de todos os caboclos e ribeirinhos
amazônicos – são certamente muito adaptadas à área e, no geral, não são
detrimentais à conservação dos recursos naturais (...). Se isso é certo ou não só
o monitoramento científico pormenorizado, continuado e de longo prazo poderá
comprovar; contudo, estudos preliminares podem servir para identificar áreas
que apresentem ameaças potenciais e para produzir recomendações
preliminares para a elaboração de planos de manejo e orientação de futuras
136
pesquisas a serem desenvolvidas dentro do Parque (CARVALHO E SIZER,
1990, p. 10).
Apesar de atestar o baixo nível de intervenção da ação antrópica sobre os recursos
naturais existentes no Jaú, o documento sempre considera essa ão como “impacto”, exterior ao
equilíbrio ecossistêmico da composição biológica. Desse modo, persiste a noção de que o
humano é sempre um intruso degradante no meio harmonioso da natureza.
Ao discutirmos acerca das relações entre “homem e conservação”, no contexto
da Amazônia Brasileira, é útil especularmos até que ponto a modificação da
natureza é aceitável, no âmbito de nossa finalidade de conservação ambiental.
Quando um homem entra na mata, torna-se um elemento integrante e,
inevitavelmente, suas ações provocam alterações. Mas qual o nível de ações
que pode ser considerado aceitável? E o que fazer para minimizar estas
alterações? (idem, p.10).
Portanto, mesmo tendo evidenciado o baixíssimo “impacto” da intervenção do ribeirinho
na paisagem do PNJ, a concepção eminentemente negativa sobre a “ação antrópica” leva à
interpretação de que a presença humana deve ser levada em conta pelo fato de ser inevitável.
Parece ter ficado bem claro, naquele momento, que a possibilidade de realocação/indenização das
famílias era muito difícil de ser efetivada em curto prazo. Tratava-se, então, de considerar a
presença dos moradores, para desse modo, adequá-los a gestão territorial conservacionista.
O problema então, é: como podemos criar mecanismos de manejo da área que
permitam compatibilizar a presença de populações humanas com a conservação
da biodiversidade do Parque Nacional do Jaú? Não queremos com isso dizer
que devemos excluir a possibilidade de remoção total ou parcial dos moradores.
O que queremos é aceitar o desafio de trabalhar com a realidade dos fatos: um
plano de manejo para o Parque Nacional do Jaú terá que levar em conta a
necessidade das populações ribeirinhas locais desde o início do planejamento,
porque, do contrário falhará em conseguir o que mais almeja a efetiva
conservação de sua formidável diversidade biológica (ibidem, p. 36).
Finalmente, aceitar a realidade dos fatos significa considerar que
137
Para diminuir o impacto humano, a mera remoção dos habitantes dentro da área
do Parque não será suficiente. As necessidades das populações ribeirinhas terão
que ser consideradas desde o planejamento. Ademais, o desenvolvimento de
programas de educação ambiental, e o incentivo de alternativas econômicas à
caça, à pesca, e ao extrativismo predatórios serão indispensáveis (ibidem, p.
38).
Pode-se considerar que, além da inevitabilidade da presença de seres humanos no PNJ,
outros fatores pesaram na decisão da FVA em propor uma política de adequação entre
“conservação e gente”. No documento intitulado “Parque Nacional do Jaú: sugestões para
integração da população humana local com a conservação da biodiversidade” (1991), a
consultora Nigel Sizer, responsável pela realização do “Levantamento Sócio-econômico do
Parque Nacional do Jaú” (1990), ressalta rapidamente o surgimento de uma crise social
decorrente dos problemas do fechamento do parque: “Concluímos que a média de uma família
por dia está deixando o Jaú. E dado que a maioria dos moradores é analfabeta, com pouca
experiência sobre a convivência no meio urbano, a chance de que possa melhorar seu padrão de
vida é muito pequena” (SIZER, 1991, p. 12). Nesse mesmo documento, a autora apresenta
algumas “razões explicativas” para a permanência dos moradores. (1) a diminuição do conflito
entre IBAMA e habitante; (2) a veiculação de imagem “moderna” do IBAMA em âmbito
nacional e internacional; (3) a utilização do “conhecimento e mão-de-obra” dos moradores como
viabilidade para a consolidação do parque; (4) melhoria de renda dos moradores as serem
incorporados como mão-de-obra (5) integração dos moradores como fator de interesse para
turista e pesquisadores; e (6) a importância de se experimentar novas formas de conservação
(idem, p. 14-15).
A presença do ribeirinho considerada é importante, também, pelos seus conhecimentos e
mão-de-obra para a elaboração do plano de manejo.
138
Conhecimento e mão-de-obra serão recursos necessários para implementar o
plano de manejo do Parque. Os moradores são ao melhor fonte desses recursos.
Eles, mais que ninguém, conhecem bem a geografia e a ecologia do Parque,
atributos vitais para o desenvolvimento de pesquisas científicas, ecoturismo e
manejo (ibidem, p.14).
Pode-se, portanto, evidenciar através da presente análise que a inserção da FVA nos
problemas relacionados à consolidação do parque nacional do Jaú se deu nas seguintes premissas:
(1) enquanto uma instituição de pesquisa, sua preocupação básica era oferecer condições viáveis
à pesquisa científica sobre a biodiversidade no baixo rio Negro e, a partir delas, reunir subsídios
estratégicos para a intervenção na política conservacionista local; (2) a incorporação da
problemática social do PNJ foi realizada por uma intersecção de fatores, tais como a
inevitabilidade da presença humana, a preocupação com uma crescente crise social relacionada à
saída não planejada dos moradores e, por fim, a consciência de que sem o conhecimento e o
trabalho dos ribeirinhos era impossível efetivar os objetivos de pesquisa, turismo e gestão; e, (3)
finalmente, a inserção dos moradores deveria ser feita de modo que o “impacto” de suas
atividades fosse interrompido para não comprometer a reprodução da biodiversidade do PNJ,
através de uma adequação do seu modo de vida aos princípios conservacionistas.
Nesse sentido, pode-se perceber que há uma configuração complexa de causalidades que
explica a inserção da FVA ao contexto sócio-ecológico do parque nacional do Jaú. O trânsito de
um posicionamento biocêntrico para uma postura sócio-ambientalista não se explica unicamente
por um pragmatismo político. Também não é suficiente explicar essa inserção pela via da
preocupação única quanto à problemática social e seus “impactos” à biodiversidade. A opção
pela defesa da presença humana, portanto, deve ser buscada na interação dos fatores acima
relacionados. Trata-se de não dicotomizar esses fatores em “aparência” e “essência”. Mas, antes,
139
compreendê-los como “emergência”, tal como nos propõe Foucault (1984, p. 24-25) e Morin
(2003, p.139).
Assim, em 1991, a FVA desenvolve o conjunto de propostas para as suas atividades na
região, através da elaboração do Programa Rio Negro,
que tinha como principal objetivo encontrar soluções criativas e inovadoras,
para consolidar as unidades de conservação da bacia do rio Negro. Este
programa foi um marco importante no estabelecimento do atual perfil da FVA.
É neste projeto que se explicita a decisão de ter nossa atuação focada na Bacia
do rio Negro, tendo como justificativas, a grande diversidade biológica e
cultural, além do impacto antrópico relativamente baixo na região. Este cenário,
torna a bacia do rio Negro uma região privilegiada, para implementar formas
alternativas de associar a conservação da biodiversidade à melhoria da
qualidade de vida de seus moradores (FVA, www.fva.org.br).
Em abril de 1992 foi realizada, como umas das primeiras atividades do formulado
Programa Rio Negro, a Expedição Multidisciplinar ao Parque Nacional do Jaú. A expedição,
composta por pesquisadores e técnicos da FVA, IBAMA, INPA e UFMG, tinha como razão
fundamental “(...) a necessidade de dotar o Parque Nacional do Jaú de um documento que viesse
a preencher o vácuo de planejamento que se estabelece no interregno desde o instante da criação
da unidade até o momento da publicação do seu Plano de Manejo” (FUNDAÇÃO VITÓRIA
AMAZÔNICA, 1992, p. 2-3). Ou seja, o objetivo da expedição foi delinear o conjunto de
diretrizes para a constituição de planejamento e elaboração do plano de manejo, assim como as
atividades a serem empreendidas enquanto este fosse confeccionado.
O conjunto de trabalhos realizados pela expedição foi orientado pela metodologia ZOPP
9
.
De forma geral, a conclusão da expedição foi de que o problema fundamental a ser resolvido
9
Segundo o próprio relatório o Método ZOPP (Ziel Orientiert Projekten Planung Planejamento de Projetos
Orientado Por objetivos) “é um sistema muito eficaz de planejamento, utilizado correntemente pela Deutsche
Gesellschaft für technische Zusammenarbeit GTZ Agência Alemã de Cooperação técnica) desde 1983”
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1992, p. 6). De maneira geral, o método consiste, através da visualização
por imagens/quadros e do trabalho em equipe, em reconhecer os problemas, propor objetivos de ação e analisar
possibilidades de resolução dos problemas.
140
consistia na afirmação “o Parque Nacional do Jaú não foi implementado” (idem, p. 13). Como
causas do problema-chave” foram enumeradas a seguintes sentenças: (1) o “IBAMA não
prioriza a implementação do sistema U.C.”; (2) “não são alocados recursos humanos
financeiros”; e (3) a existência de uma grande “centralização do IBAMA”. Como “efeitos” do
“problema-chave” foram evidenciados: (1) “situação fundiária complexa”, por haver “moradores
no Parna-Jaú”, além da entrada de “novos moradores” e de haver “propriedade privada no PNJ”;
(2) as informações científicas não são suficientes; (3) “depredação da biodiversidade” com
“perigo de extinção de espécies raras”; e (4) “não há Plano de Manejo” (idem, p. 13).
A descrição da identificação dos problemas acima permite identificar as diretrizes de ação
promovidas pela expedição. Há que se considerar que seus integrantes definiram de forma
bastante clara que era muito importante evitar “dar peso excessivo às questões sociais, em
detrimento da questão central que é a conservação da biodiversidade do Parque”. Talvez seja por
isso que o “problema-chave” foi considerado a não-implementação do parque, e a “situação
fundiária complexa” foi tomada como “efeito”. Se a questão social fosse, numa possibilidade
remota a prioridade, muito provavelmente os componentes poderiam chegar a conclusão que a
não implementação do parque é, ao contrário, conseqüência de um conflito que tem suas raízes na
questão político-fundiária não resolvida.
Assim, a partir da definição do objetivo fundamental “ver o Parque Nacional do Jaú
implementado” (ibidem, p. 14), ficou decidido que a expedição deveria confeccionar um esboço
para um plano de ação para a consolidação do parque nacional do Jaú. As discussões centraram-
se em dois temas fundamentais: a “questão fundiária e da população do entorno, e aos problemas
da fiscalização e da administração do Parque” (ibidem, p. 15). Com respeito à questão fundiária,
foco de interesse da pesquisa nesse momento,
141
Quedou claro para os participantes que o regulamento de Parques Nacionais do
Brasil não permite (...) que os recursos do Parque sejam usados de forma direta,
seja por moradores seja por forasteiros. Os participantes também concordaram
que conformar-se à legislação, provendo os meios de indenizar os atuais
ocupantes e proprietários de forma justa, deve ser sempre um objetivo
prioritário dentro das ações voltadas para o manejo da área. O Plano de Ação
deve ser desenhado de forma que, de imediato, encaminhe soluções para o
problema fundiário (ibidem, p. 15).
Conscientes de que o problema fundiário não teria resolução a curto prazo e preocupados
em “encaminhar soluções realistas para o problema, o Plano de Ação deve contemplar ações que
ajudem o manejo dos atuais ocupantes, considerando o cenário mais conservador possível, isto é,
que a população não vai ser retirada dentro do prazo de vigência deste Plano de Ação (até junho
de 1994) (ibidem, p. 15-16)”.
Desse modo duas possibilidades de remoção foram aventadas: a priorização do problema
na dinâmica política interna do IBAMA, como forma de orientação de recursos para tal fim, e a
possibilidade de captação de recursos externos a partir de uma ONG, para assim, comprar a terra
dos moradores, de forma “lenta e gradual”. Para fundamentar as alternativas possíveis de
resolução, o relatório da expedição aponta que “o primeiro passo para resolver o problema é
realizar o recadastramento dos ocupantes, o que deverá ser realizado ainda este ano pelas
seguintes instituições: IBAMA/IMA/FVA. O recadastramento será acompanhado de um
levantamento que subsidiará a elaboração de um programa para o encaminhamento de soluções
para a questão fundiária” (ibidem, p. 16).
Dessa forma, a formulação do plano de ação para a consolidação do PNJ foi constituída
pelas seguintes linhas de ação: (1) montagem de um banco de dados com vistas ao plano de ação
e plano de manejo; (2) promover alternativas para mitigar a destruição dos recursos naturais do
parque; (3) implantar o parque nacional do Jaú; e (4) avaliar e monitorar periodicamente o plano
de ação.
142
O Plano de Ação, fruto da expedição de 1992, parece ser o documento que legitima a
FVA no contexto de planejamento e atuação no PNJ junto com o IBAMA. Por ser a primeira
atividade elaborada em conjunto pelas duas entidades, pode-se perceber, nesse momento, um
processo de aproximação que vai culminar na assinatura do termo de co-gestão e cooperação
técnica, no ano de 1993. Quais são as condições que propiciam essa aproximação? O próprio
relatório de 1992 nos dá uma pista interessante, ao relatar a preocupação dos seus participantes
com a “imagem” da expedição junto aos moradores devido à participação dos técnicos do
IBAMA.
(...) se percebessem que havia pessoas do IBAMA na Expedição, talvez não
fossem tão francos e tentariam ocultar dados ou exagerar outros (por vigorar
ainda no local uma imagem pouco favorável do IBAMA, já que o que a
comunidade conhece do IBAMA é só o aspecto policialesco da atuação de
alguns dos seus fiscais). (...) Ao final das discussões, o grupo concordou que
deveríamos nos apresentar como uma expedição organizadas pela Fundação
Vitória Amazônica com cientistas e autoridades de diversas áreas e instituições
para fazer o reconhecimento do Parque Nacional do Jaú e entender seus
problemas (ibidem, p. 9).
A citação acima ilustra as dificuldades pela qual o IBAMA criou para si mesmo, a partir
de um histórico de atuação simplista e autoritária em relação ao PNJ. Para que os resultados da
expedição não fossem colocados em risco, foi necessário esconder-se sob a capa da FVA e de
uma designação generalizante “autoridades de diversas áreas” –, diante da possibilidade de
oposição dos moradores. Portanto, é licito dimensionar que a incorporação da FVA no quadro de
planejamento e gestão do PNJ se fez pela incapacidade do IBAMA promover uma política de
consolidação da unidade de conservação levando em consideração a complexidade da presença
humana.
Por outro lado, a FVA parece ter, em comparação aos documentos anteriores, arrefecido
seu discurso de defesa da permanência dos moradores no interior do parque. Torna-se evidente
143
que ao aceitar conformar-se à legislação prevista para a classificação “parque nacional”, a
entidade restringiu-se, ao menos temporariamente, à possibilidade única da remoção. Nos
documentos anteriormente analisados, sempre se levou em consideração a possibilidade de
realocação dos moradores, mas, de forma geral, a postura era de construir subsídios para a
argumentação da permanência. Aqui, contudo, essa hipótese é levada em conta até que se reúnam
as condições efetivas para a retirada da população.
Enfim, a FVA, para cumprir seus objetivos quanto à construção científica da
biodiversidade do Jaú, aproxima-se dos moradores, ciente da importância destes para o acesso à
paisagem natural, tanto pelo conhecimento geográfico, quanto pelo seu conhecimento “etno-
ecológico”. Contudo, essa aproximação não pode efetivar-se sem uma sensibilização mínima da
situação calamitosa dos ribeirinhos frente ao autoritarismo conservacionista do IBAMA. Fatores
que pesam na definição do posicionamento socioambientalista da FVA. O IBAMA, por sua vez,
encontra na FVA o canal possível de intermediação da sua emperrada relação com os moradores
dos rios que compõem o PNJ. Do mesmo modo a FVA, ao aproximar-se do IBAMA, vê-se
fortalecida nas suas intenções de articulação entre pesquisa científica e capacidade de atuação
sobre a dinâmica política conservacionista no baixo rio Negro. É nessas condições que se efetiva
a co-gestão IBAMA/FVA para a elaboração do plano de manejo do Parque Nacional do Jaú.
2 – O processo de elaboração do plano de manejo do Parque Nacional do Jaú.
O objetivo desse tópico é analisar o processo de elaboração do plano de manejo do parque
nacional do Jaú, entre os anos de 1993 e 1998, a partir das atividades da Fundação Vitória
Amazônica. A partir da reflexão realizada no tópico anterior, é possível estabelecer as linhas
fundamentais que constituem a FVA como entidade conservacionista. Trata-se, portanto, (1) de
uma organização não-governamental que tem por objetivo a articulação entre pesquisa científica
144
e política conservacionista no baixo rio Negro; que (2) fez sua opção pelo socioambientalismo
por uma conjugação de fatores tais como: a inevitabilidade da presença humana no PNJ, a
sensibilização frente a uma situação de opressão e injustiça enfrentada pelos moradores dos rios
que compõe a UC, a consciência da impossibilidade de realização de pesquisa e gestão do parque
sem moradores, além de uma conjuntura internacional favorável a esses pressupostos; e, por fim,
(3) visa promover o processo de consolidação do PNJ através da construção do seu plano de
manejo.
Como pode se evidenciar até o presente momento, a entidade mergulhou num processo
marcado pela ruptura das relações historicamente constituídas pelo extrativismo, a partir da
imposição de uma nova ordenação territorial orientada pelo conservacionismo biocêntrico, via
ação estatal. As comunidades ribeirinhas, fortemente exploradas pelo modelo anterior, passaram
a ser criminalizadas por suas atividades de subsistência
10
, qualificadas agora como degradantes à
biodiversidade. A inserção fortemente autoritária do conservacionismo, via IBDF/IBAMA,
suscitou uma situação de conflito e enfrentamento entre este e a população residente. É na
intersecção desse campo de conflito que a FVA propõe-se a desenvolver suas atividades de
pesquisa e, a partir delas, promover uma intervenção política sobre o campo de possibilidades
inerentes ao próprio conservacionismo.
Diante das dificuldades apresentadas para a consolidação do PNJ, a FVA, como vimos,
apresenta-se como uma entidade que visa contribuir para “soluções criativas” de estabelecimento
da conservação da biodiversidade. Essas soluções nascem da percepção de que a referida
consolidação passa necessariamente pela inclusão das comunidades nas estratégias de sua
10
Entende-se por subsistência o conjunto de atividades minimamente necessárias para a produção e reprodução vida
social. Nesse sentido, não se considera aqui apenas aquelas atividades em que o ribeirinho desenvolve de forma
endógena ao seu território, ou seja, caça, coleta e pesca. Mas, também, o comércio de parte de sua produção para a
obtenção de produtos exógenos à sua territorialidade imediata, tais como o sal, açúcar, tecidos, etc.
145
efetivação. Seja de forma provisória até o surgimento das possibilidades de realocação ou de
forma permanente, é imprescindível levar em consideração as interações sócio-ecológicas da
região do Rio Jaú.
Assim, pretende-se evidenciar, através da análise do processo de elaboração do plano de
manejo, quais foram as estratégias desenvolvidas pela FVA para inserção das comunidades
ribeirinhas ao campo de possibilidades interno aos limites das diretrizes conservacionistas.
Espera-se, dessa maneira, reunir as condições para estabelecer um diálogo entre as proposições
teóricas da etnoconservação com as evidências de uma situação concreta de presença humana em
unidades de conservação.
Como foi demonstrado, entre 1992 e 1993 reuniram-se as condições para a concretização
da co-gestão/cooperação técnica entre IBAMA/FVA para a consolidação do PNJ. Segundo os
documentos da ONG, a assinatura do “convênio” foi realizada entre as atividades que
constituíram o relatório “Os Moradores do Parque Nacional do Jaú: Censo e Levantamento
Sócio-Econômico” (1994), no ano de 1993. O “Censo” foi a concretização de umas das principais
atividades previstas no plano de ação para a consolidação do parque nacional do Jaú. É, também,
o início oficial das atividades para a elaboração do plano de manejo.
O levantamento de dados atingiu 90% dos residentes e usuários do PNJ. Esse
contato marcou o início de uma aproximação maior entre a FVA e os
moradores. O documento relatando os resultados preliminares do censo e do
levantamento sócio-econômico favoreceu as relações políticas da FVA e
contribuiu principalmente para a concretização do convênio de co-gestão com o
IBAMA (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 64).
Trata-se de um momento muito importante. A primeira atividade de grande porte da FVA
no PNJ que atingiu praticamente todos os moradores. Entrevistas realizadas com lideranças de
associações do interior e entorno do PNJ, sugerem que a ação da FVA foi compreendida pelos
146
ribeirinhos de forma bastante diferenciada da atitude do IBAMA. Os relatos coincidiram em
afirmar que na ocasião da coletas dos dados pelos técnicos houve, pela primeira vez, a
preocupação de explicar e explicitar as condições colocadas pela “nova” situação da área
constituir-se numa unidade de conservação. Esse posicionamento pode ter sido fundamental para
o estabelecimento de uma relativa confiança dos moradores para com a FVA. Por outro lado, é
conveniente lembrar que o Censo e Levantamento foi realizado num quadro de comprometimento
declarado com a “conformidade legal de retirada da população, assumido na Expedição de
elaboração do Plano de Ação de 1992. Portanto, nesse momento, a FVA parece ter iniciado um
processo de construção de legitimidade junto aos dois sujeitos em oposição no interior do PNJ:
IBAMA e moradores. É curioso notar, contudo, que a redação final do relatório do Censo e
Levantamento, em 1994, apresenta um discurso mais radical em defesa da permanência dos
moradores. Logo na apresentação do documento, encontra-se um manifesto contra o
conservacionismo excludente e biocêntrico.
O Parque Nacional do Jaú (PNJ) é um típico “parque de papel”, ou seja, é uma
daquelas Unidades de Conservação (UC’s) criadas na intenção, desenhadas no
mapa, contabilizadas como “área protegida”, mas que no campo se revelam
meras ficções, não implantadas, abandonadas, a sua própria sorte, áreas
públicas onde o poder público não chega. O que muitas vezes é melhor. Pois
quando este se manifesta revela-se um “fardo” para a população tradicional dos
ribeirinhos, habitantes históricos do interior da Amazônia. Recaem sobre essas
populações as “proibições”, as “autoridades”, os “doutores”, figuras que
esporadicamente aparecem por , ditando regras e distorcendo normas, como
representantes de uma sociedade que assim estão “Conservando a Natureza”.
Ainda parece ser amplamente aceita a idéia que: a presença de moradores em
um PN, é um problema por si só, pois atividades como caça, pesca, agricultura
e coleta de produtos, no dia-a-dia, seriam sinônimo de destruição. Como se a
Conservação da Natureza fosse a busca redentora do tão falado “vazio
demográfico” da Amazônia (mito persistente de que a floresta seria desabitada).
Ou ainda, imaginar ser possível criar ou manter “ilhas” de natureza, onde não
vivam pessoas. Unidade de Conservação como redomas, parecem ser fantasias
tentadoras e recorrentes em muitas discussões de sobre a conservação da
natureza, mas fora do imaginário só parecem possíveis em pequenas áreas.
Pensar numa área como o PNJ (23.300 km²) desabitada, além de torná-la
147
inadministrável, ainda implica em remover moradores (FUNDAÇÃO
VITÓRIA AMAZÔNICA, 1994, p. 1-2).
Na continuidade do discurso, o documento é colocado quase como um instrumento de
denúncia de uma situação social crítica.
Este trabalho serve não apenas para orientar planejadores e satisfazer nossa
curiosidade, mas também para mostrar a dramática situação dos moradores. O
PNJ é uma área pública, mas a população não tem acesso a serviços básicos.
Isto é um paradoxo, por que não para implantar uma UC desse tamanho sem
moradores permanentes, e as pessoas que já moram precisam de melhores
condições para permanecer. Como implantar uma UC com moradores? O que é
implantar uma UC, afinal? São questões que precisam ser respondidas pela
sociedade pela sociedade brasileira (especialmente pelos ambientalistas e
pesquisadores), pelo governo (especialmente pelos setores responsáveis pelas
políticas ambientais) e pelos moradores de UC’s (idem, p.2).
O Censo e Levantamento Sócio-Econômico contou com a participação de 13
pesquisadores. Os trabalhos de campo foram realizados entre 12 de novembro e 05 de dezembro
de 1992. Num total de 404 perguntas e 3 tipos de questionários (inclusive marcado por diferenças
de gênero), a pesquisa procurou guiar-se por três objetivos básicos: “(a) estimar a população
residente e mapear a sua distribuição, (b) diagnosticar o funcionamento da economia dos
moradores e os eventuais impactos decorrentes, e (c) consultar os moradores sobre as possíveis
soluções para a questão fundiária” (ibidem, p. 6).
Através da resposta ao primeiro objetivo o censo identificou a presença de 1030
moradores, distribuídos em 156 famílias, com 56% de homens e 54% de mulheres. Identificando
uma população bastante jovem (média de 17 anos). Demonstrou uma densidade demográfica
baixíssima (0,04 hab/Km²). Foram identificadas oito comunidades
11
no interior do PNJ. Cinco
comunidades no Rio Unini e três no rio Jaú. No rio Carabinani, igarapés Papagaio e Guariba,
apesar de existem moradores, não foram identificadas comunidades.
11
Por comunidade, o documento citado compreende um “conjunto de casas mais ou menos próximas, com mais de
30 moradores” (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1994, p. 9-10).
148
Para segundo objetivo, foram levantadas informações sobre todas as atividades
executadas pelos moradores, além da relação destes com os “Regatões” e “Patrões”. De forma
geral o documento avaliou que “(...) os moradores do PNJ, como outras populações de
ribeirinhos, são adaptadas à Amazônia. A variedade de produtos que compõe a base de sua
economia é não uma evidencia do conhecimento da floresta e dos rios, mas também do ajuste
ao ambiente” (ibidem, p. 41). Contudo, como em outros documentos (Carvalho & Sizer, 1990 e
Sizer, 1991) há uma tendência de se analisar as atividades extrativistas a partir de uma bifurcação
entre o bom” (autoconsumo) e o “mau” (fins comerciais). Nesse sentido, considera-se que os
principais problemas parecem ser consequência das atividades dos comerciantes, não
necessariamente dos moradores.
Vale ressaltar, que o que foi considerado “econômico” para o documento centrou-se em
informações essencialmente quantitativas. Talvez, pela excessiva preocupação em dimensionar o
“impacto” da ação dos ribeirinhos sobre a “biodiversidade”, a quantificação ganho um peso
excessivo no levantamento. Essa tendência foi objeto de debate interno sobre as diretrizes na
confecção do relatório.
manifestei que uma ênfase excessiva no registro quantitativo do volume
da produção, talvez refletindo uma preocupação com os “eventuais impactos
decorrentes” das atividades produtivas desenvolvidas pelos moradores do PNJ.
Isso expressa uma visão segmentada do domínio das atividades econômicas.
Estas são sempre inseridas em contextos sociais e históricos precisos que lhe
dão sentido, que configuram prioridades e que constituem valores segundo os
quais se semiotiza o ambiente, a natureza, a terra e os recursos naturais. Nesse
sentido, estudos antropológicos sobre a organização social da produção e
sistemas econômicos, têm apontado recorrentemente para a relação existente,
nas sociedades tradicionais entre economia e outros domínios da vida social,
i.é., do parentesco. (...) É imperativo realizar uma investigação sobre a lógica de
organização e das relações sociais de produção nessa área, levando em conta
todas as variáveis intervenientes (relações de endividamento e
comprometimento dos patrões, pressão difusa do poder público, relações com
agente econômicos “de fora do PNJ”, etc.) e buscando integrar na análise estes
diferentes níveis de determinação (BARRETO FILHO, 1993 p. 13).
149
Sobre a questão fundiária – o terceiro objetivo – o documento apresenta, essencialmente, a
visão dos moradores. Assim considera que,
ninguém sabe ao certo se pode ou não haver moradores no PNJ. Na
possibilidade de poder ficar no PNJ, mesmo cercado de proibições sobre o uso
dos recursos, muitos se interessariam em continuar se puderem trabalhar. Se
fossem retirados da terra em que vivem, e pudessem esperar algo do governo, a
maioria gostaria de ir principalmente para as cidades (inclusive Manaus), locais
onde seu modo de vida de agricultores e extratores não teria muita utilidade
para sobrevivência (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1994, p. 42-43).
De forma geral, o documento aponta a necessidade de organização sócio-política da
população como pré-condição para a elaboração do plano de manejo da unidade, seja da
perspectiva da remoção ou da permanência.
Melhorar a educação, criando e mantendo escolas, treinando monitores de
saúde e educação, pode levar, a longo prazo, a reduzir a população, diminuindo
eventuais impactos. (...) uma boa educação no interior provocaria um
esvaziamento da floresta, pois jovens educados vão migrar para as grandes
cidades. Outra consequência conhecida é a redução na taxa de natalidade se as
mulheres forem à escola (...). pra supor ainda que a população iria tender a
se agregar, a discutir seus problemas e a se organizar em associações ou
cooperativas. Os moradores do PNJ hoje se ressentem da falta de escolas, posto
de saúde e instrumentos de expressão coletiva, e não outra forma possível
para que a população possa participar do plano de manejo e sua implementação
(e não apenas ser “participada” do plano). Mesmo um plano realista será
efetivo se os moradores participarem desde a sua concepção, e seu produto
possa melhorar as condições de vida da população. Um trabalho de
ordenamento das atividades, com ampla participação dos moradores pode
reduzir ou eliminar a exploração predatória sobre alguns recursos. (...) Além de
um primeiro zoneamento, definindo áreas intocáveis (exclusivas), áreas de
manejo (com uso intensivo tipo hotel/barco/serviços; e uso suave tipo camping
selvagem, turismo de aventura) e áreas de uso coletivo (comunidades, escolas,
postos de saúde, posto do ibama, e os “portões” do PNJ) (idem, p.48-49).
A citação acima demonstra importantes diretrizes para a construção do plano de manejo.
Nela encontra-se – para além de um amargo tom malthusiano – a nascente idéia de que a
participação efetiva dos moradores passa por um processo educativo e de organização
150
comunitária. Além disso, identifica-se a primeira proposta de zoneamento do parque por parte da
FVA.
Por fim, o documento aponta para uma definição maleável de ‘parque nacional’ como
forma de ratificar sua proposta de permanência dos moradores.
Em princípio nenhum dos recursos que o hoje explorados devem ter seu uso
proibido, ao contrário, é uma excelente oportunidade de manejá-los
experimentalmente, envolvendo moradores, comerciantes, universidades e
institutos de pesquisa. Desencadeando uma rica experiência de uso sustentado
dos recursos naturais nessa área da Amazônia. O fato de uma experiência como
essa vir a se realizar num PN não me parece ser incompatível com a categoria
de manejo. Uma vez que um PN prevê a pesquisa como atividade fim, portanto
tal experiência incluiria um conjunto de experimentos numa área pública. (...)
Essa aparente subversão da definição de PN permite encarar de forma realista
as questões de conservação da natureza na Amazônia, sem ignorar seus
moradores e as lições que eles podem dar, e tem dado, da posse e uso coletivo
da floresta (ibidem, p. 49-50).
Proposta muito ousada para o IBAMA. Em 1995, técnicos do órgão denunciam: “Alguns
técnicos da FVA envolvidos no processo têm procurado trabalhar com as populações residentes
no interior do Parque, no sentido de criar condições para que as mesmas se sintam cada vez mais
incentivadas a permanecer na área, apesar da mesma constituir-se em Unidade de Conservação de
uso indireto” (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 7).
A partir desse momento, a relação FVA/IBAMA parece ser caracterizada por uma
ambivalência entre a cooperação e o conflito. De qualquer modo, até o presente momento, a
relação parece render frutos para ambos os lados, pois, apesar das discordâncias, completam-se
14 anos de co-gestão/cooperação técnica. Segundo a FVA,
(...) as principais divergências centram-se em questões conceituais sobre a
permanência dos grupos locais residentes no Parque e o entendimento mesmo
da co-gestão (parceria ou terceirização das ações?). Some-se a isso a
dificuldade em lidar com a burocracia do poder público federal. Tudo isso
emperrou o pleno desenvolvimento das atividades propostas. A centralização
151
das decisões em Brasília também se apresentou como um entrave (...)
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 7).
Assim, finalmente, o relatório do Censo e Levantamento (1994) sugere uma readequação
dos termos do Plano de Ação (1992) por conta da impossibilidade de se cumprir os prazos de
elaboração do plano de manejo (previsto para 1996), a partir de um entendimento mais realista da
complexidade da situação do PNJ.
(...) o PA (plano de ação) ainda tem muitos problemas que não o fáceis de
resolver. A alocação de pessoal treinado deve ser feita com cuidado e reduzida
ao máximo. A fiscalização incide mais sobre os moradores, do que sobre
invasores, aumentando conflitos. Educação ambiental apenas, é pouco, os
moradores precisam de educação de qualidade. O ecoturismo tem que ser bem
controlado e de dispor de uma infra-estrutura mantida pelos moradores, se eles
concordarem com isso. A realocação voluntária de moradores só será uma
hipótese plausível se realizada num contexto onde haja condições de escolha e
não como produto de uma política de “estrangulamento e esvaziamento” (seria
a tal desintrusão?). O plano de manejo deve ser produto de ampla participação
dos moradores. E, finalmente, o PA necessita de um calendário de revisão
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1994, p. 47).
Paralelo a esse processo de discussões sobre a presença humana entre os anos 1992-1994,
iniciaram-se as atividades de pesquisa relacionados aos esforços de se conhecer a biodiversidade
do PNJ. A partir de 1993, “a FVA reuniu pela primeira vez o grupo multidisciplinar de
pesquisadores especialistas em ecologia aquática, peixes, répteis, aves e botânica que iriam
trabalhar no PNJ pelos três anos seguintes e cujos estudos subsidiam o (...) Plano de Manejo
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 8). Assim, o estabelecimento de duas linhas
de ação passou a orientar o processo de construção do plano de manejo. De um lado, a
abordagem cio-econômica, de outro, a abordagem bio-ecológica. Se nos primeiros anos as
energias foram canalizadas para problemática da presença humana, a partir desse momento, as
prioridades incorporam também o reconhecimento da biodiversidade do PNJ. Nesta última,
houve o envolvimento de 60 pesquisadores.
152
Interessante notar que o empreendimento científico bio-ecológico se estabeleceu após
certo desenvolvimento da “questão sócio-econômica” no interior da FVA. Somente após o
reconhecimento mínimo da vida social dos ribeirinhos é que as levas de pesquisadores se
estabeleceram no parque. Sem ignorar o processo gradativo de fortalecimento institucional da
entidade, referente à capacidade de financiamento e organização da estrutura logística para as
pesquisas, é possível compreender uma estratégia coerente de inserção da FVA no PNJ.
Informação correta e em linguagem acessível parece ser um dos elementos
chaves de aproximação com a população local. A compreensão das atividades
da FVA e dos resultados (para eles ou não) destas atividades também é
fundamental para uma convivência pacífica. Cuidado, pois rapidamente os
comerciantes (lideranças econômicas) da região vão se sentir ameaçados por
vocês. O conhecimento das redes de poder atuantes na região podem ser muito
úteis (líderes religiosos, políticos, sociais, matriarcas ou patriarcas, “donos” de
rios ou região): com o mapa na mão é mais difícil se perder (SARAGOUSSI,
s/d, p.2)
Desse modo, a combinação pesquisa científica/ política conservacionista (premissa de
atuação da FVA) pode finalmente estabelecer o objetivo claro de determinar as diretrizes
constitutivas do plano de manejo. As pesquisas relacionadas à configuração bio-ecológica do PNJ
foram articuladas a partir da preocupação de um norteamento metodológico.
A princípio, a participação dos pesquisadores como atores políticos no processo
de planejamento da Unidade se deu de modo individual, seguindo o padrão
acadêmico tradicional. Rapidamente, contudo, as discussões sobre os critérios
para estimar a biodiversidade da área e as metodologias para integrar as
diferentes linhas de pesquisa (como instrumento de planejamento) levaram à
definição de uma posição de respeito às culturas a aos conhecimento
tradicionais encontrados no PNJ, sem que isso impedisse o desenvolvimento de
projetos capazes de identificar impactos ou avaliar a sustentabilidade dos
recursos naturais apropriados pelos residentes na área do Parque (FUNDAÇÃO
VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 27).
Na impossibilidade de configuração de um referencial metodológico totalizante sobre a
magnitude dos recursos naturais do parque, a decisão foi de promover uma articulação entre três
153
perspectivas metodológicas: (1) o conceito de rio contínuo
12
(CRC), relacionado as espécies e
ecossistemas passíveis de serem abordados de uma forma geral pelo sistema aquático; (2)
geomorfologia, relacionado a estudos que exigem escala de abordagem ampla; e (3) a topografia,
compreendendo estudos sobre espécies e interações ecológicas em escala local. Os dois últimos
instrumentos metodológicos referem-se principalmente a ambientes terrestres não abordados pelo
CRC. Esse esforço investigativo resultou no fato de que o PNJ é uma das unidades de
conservação com maior número de pesquisas sobre as espécies e interações ecológicas da
Amazônia (Fundação Vitória Amazônica, 1998a, p. 29-30). No entanto, a proposta metodológica
foi considera pela FVA insuficiente para dar conta das magnitudes do PNJ.
A utilização do CRC, da geomorfologia e da topografia como abordagens
integradoras produziu resultados parciais em termos da generalização sobre a
distribuição da biodiversidade no PNJ. Parte da frustração em não conseguir
extrapolar as informações amostradas sobre biodiversidade para toda a região
deve-se a grande heterogeneidade de habitats encontrada, relacionada à
extensão do Parque (idem, p. 29).
A articulação entre as informações sócio-econômicas e bio-ecológicas levantadas durante
as pesquisas da FVA foram fundamentais para o processo de elaboração do plano de manejo.
Essa articulação foi concretizada através da estruturação do SIG – sistema de informações
geográficas. Sua concepção está vinculada à preocupação da FVA em reconhecer
detalhadamente as atividades da população, para a avaliação dos “impactos” sobre as interações
bio-ecológicas, assim como para determinar as possibilidades de zoneamento do parque.
12
O conceito de rio contínuo “foi proposto por um grupo de pesquisadores norte-americanos trabalhando em
sistemas aquáticos temperados (...). Numa bacia hidrográfica, as variáveis físicas como distancia entre as margens,
velocidade e volume do fluxo d’água, profundidade e temperatura, entre muitas outras, apresentam um gradiente
contínuo das cabeceiras até a boca dos rios ou dos igarapés (...). O CRC mostra que muitos dos atributos das
comunidades bióticas (diversidade e composição de espécies) são continuamente ajustados a essas variações físicas
do ambiente, especialmente às características geomorfológicas e hidrológicas (...) (FUNDAÇÃO VITÓRIA
AMAZÔNICA, 1998b, p. 92).
154
Os mapas disponibilizados para esta região pelo Radambrasil foram
digitalizados e incorporados a um Sistema de Informações Geográficas (SIG).
Isto possibilitou a obtenção de mapas das bacias hidrográficas, da geologia,
vegetação, geomorfologia e dos tipos de solo da região do Parque na escala de
1:250.000. Paralelamente à construção do SIG, os técnicos da FVA realizaram
uma detalhada caracterização sócio-econômica dos grupos sociais residentes na
área do Parque e entorno, incluindo informações sobre o uso de recursos,
demografia, migração, história de vida e grau de parentesco. As informações
coletadas junto aos moradores deram uma visão geral sobre quais eram os
recursos naturais utilizados no PNJ (...). Para integrar essas informações em
uma base geográfica, foi desenvolvida uma metodologia de mapeamento
participativo do uso dos recursos naturais pelos moradores (BORGES et. alli,
2004, p. 4).
Esse momento parece ter sido marcado, também, pela tentativa de reorientação das
pesquisas sócio-econômicas para uma vertente mais qualitativa do que o modelo essencialmente
quantitativo utilizado até então. Esse fato coincide com a incorporação do pesquisador e
professor Hênnio Trindade Barreto Filho ao corpo do conselho curador e também técnico da
FVA. Segundo o próprio,
De membro do conselho curador a participante da equipe de pesquisa
coordenada pela FVA foi uma questão de tempo. Os objetivos gerais da
proposta que eu elaborei então não eram distintos dos das demais
coordenadorias de pesquisa: contribuir, no âmbito da equipe, com o
levantamento de dados para subsidiar a elaboração do plano de manejo e reunir
elementos sobre o “modo de vida” dos “moradores” do PNJ, (...). Os objetivos
específicos previam: (a) uma etnografia dos processos produtivos e do sistema
econômico; (b) um mapeamento das representações, concepções, práticas e
atitudes “nativas” em torno do espaço, da terra, do meio ambiente e dos
recursos naturais; (c) um estudo genealógico e de organização social; (d) uma
investigação do modo como se dava a intervenção do IBAMA; e (e) a
integração dos resultados da pesquisa de campo qualitativa com as informações
disponíveis na base de dados na FVA, sobre “a situação sócio-econômica dos
moradores” (...). Tratava-se, assim, de verdadeiro projeto bastidiano de
engenharia social, fundado no modelo cartesiano de concepção das relações
entre teoria e prática nas ciências sociais. Previa, inclusive, arroubos
etnometodológicos do tipo ethnografic decision tree modeling, para estabelecer
modelos de como as pessoas tomavam decisões quanto à exploração de
recursos, na tentativa de prever o desdobramento de seu comportamento futuro,
a partir da introdução do novo conjunto de variáveis representado pela
limitação do acesso a recursos. No papel, tudo muito bonito, porém, limitações
de tempo, dinheiro, logística e o próprio tamanho da área a ser investigada
impediram a continuidade do projeto. (BARRETO FILHO, 2001, p. 481-482).
155
Reconhecendo a não continuidade do “subprojeto de Ciências Sociais no PNJ” (Fundação
Vitória Amazônica, 1998b, p. 8), Barreto Filho nos a possibilidade de interpretar os limites de
compreensão sobre os ribeirinhos não como sujeitos da conservação, mas antes, como um dado a
ser dimensionado para conservação da biodiversidade, a partir do gerenciamento científico-
fiscalizador da parceria FVA/IBAMA. Isso não desconsidera a participação da população no
processo de consolidação do PNJ, mas restringe as possibilidades de ação conservacionista
àquelas determinadas pelos sujeitos exógenos. Ao não captar, pela perspectiva antropológica, a
interação sócio-ecológica ali existente, não foi possível dimensionar a riqueza de elementos que
compõe a condição de sustentabilidade da referida interação. Ficou claramente evidenciado o
baixo “impacto” da presença humana no PNJ, porém não foi alcançada a compreensão dessa
presença como partícipe às relações ecológicas.
Assim, pode-se perceber que entre os anos 1990 e 1993, a FVA conseguiu reunir as
condições necessárias para legitimar-se como sujeito da consolidação do PNJ. Entre 1993 e 1995,
a entidade estruturou-se a partir do conjunto de informações sócio-econômicas e bio-ecológicas
para a formulação do plano de manejo. A partir de 1995, as atividades da FVA concentraram-se
efetivamente na sua elaboração.
Em novembro de 1994, foi realizado o seminário de planejamento para a elaboração do
Plano de Ação Emergencial (PAE), em Manaus/AM. A necessidade de um documento norteador
de ações qualificado como emergencial”, nasceu do reconhecimento de que as atividades
previstas para a elaboração do plano de manejo a1995 não tinha condições de concretizar-se.
Dessa maneira, o seminário de planejamento foi realizado com a presença de 21 integrantes de
diversas instituições e representantes políticos. Apesar da presença de somente um morador, mas
não como representante legal das comunidades, o seminário teve a participação de 3 técnicos do
IBAMA, 5 técnicos da FVA, além de representantes da FNS, INPA, EMBRAPA, UA, INCRA e
156
Capitania dos Portos. Contou, também, com representantes das instituições políticas municipais
(Novo Airão e Barcelos) e um empresário da área de celulose/papel e turismo (IBAMA, 1994,
p.15). Mais uma vez a orientação das atividades deu-se pela utilização do método ZOPP de
analise e planejamento de projetos.
Desse modo, foram identificados os seguintes problemas: (1) não existe um modelo de
manejo adequado às características da UC; (2) capacidade administrativa insuficiente (3) o PNJ
não tem plano de manejo elaborado; (4) os recursos naturais não estão sendo protegidos; (5)
questão fundiária não resolvida; (6) reduzido número de visitantes no PNJ; e (7) parque não é
apoiado pela sociedade local.
A elaboração das propostas de ação do PAE guiou-se pelo diagnóstico e preparou
elementos importantes para o plano de manejo. Sua estrutura de organização pode ser
considerada um “ensaio” para o próprio plano.
O Plano de Ação Emergencial é um instrumento que tem como objetivo
estabelecer ações de curto prazo a serem implantadas nas Unidades de
Conservação (UC), para assegurar proteção à área e possibilitar o processo de
gestão. Com isso busca-se iniciar da UC no contexto regional, para que a
unidade possua um instrumento de planejamento até que se elabore o Plano de
Manejo. As atividades devem se restringir as medidas emergenciais para a
viabilização do trabalho, dentro de um planejamento de curto prazo, de no
máximo dois anos (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA/IBAMA, 1995, p.
1).
O documento está estruturado em três “momentos”: (1) uma caracterização geral do
Parque, que inclui informações técnicas, caracterização biofísica, fatores antrópicos,
contextualização regional e aspectos institucionais; (2) o levantamento dos problemas que
envolvem o parque; e (3) as propostas de ação emergencial. Foram definidas dez linhas de ação:
administração, infra-estrutura, proteção, uso público, educação ambiental, integração
157
comunitária, regularização fundiária, pesquisa, relações públicas e monitoramento. Das ações que
interessam para o presente esforço de análise destacam-se as ações de educação ambiental,
integração comunitária, regularização fundiária e pesquisa.
Na proposta de ação para a educação ambiental encontra-se a seguinte diretriz: “apoiar e
promover a implementação de projetos de educação ambiental na área de entorno e no Parque”
(idem, p.46). A responsabilidade da ação ficou a cargo da FVA e da Superintendência Estadual
do IBAMA (SUPES), a partir da realização de oficinas, palestras e material didático. A educação
ambiental parece não ter sido uma prioridade no planejamento apresentado no PAE, pois, suas
propostas se apresentam como uma mera continuidade das atividades já empreendidas. Não há,
dessa maneira, qualquer indício de incremento de esforços para fortalecimento dessa diretriz.
As ações de integração comunitária têm como característica geral a preparação da
população para a retirada do PNJ. A elaboração do “projeto comunitário” tem o “objetivo de
reassentar os moradores, minimizar os impactos ambientais causados pelos moradores e para
implantar pequenos projetos de conservação sustentáveis na área de entorno, até que haja o
reassentamento (...) (ibidem, p. 47)”. Desse modo, as linhas de ação foram definidas em : (1)
diagnosticar as sistemas agrícolas e extrativistas praticados pelos moradores do PNJ e área de
entorno; (2) diminuir o impacto das atividades dos moradores no PNJ; (3) promover com
instituições de saúde tratamento aos moradores do Parque e entorno; (4) articular com instituições
de educação a alfabetização dos moradores do PNJ e entorno; (5) identificar projetos de interesse
para a população do Parque e entorno; (6) apoiar a organização do Parque e entorno; e ( 7)
incentivar a integração entre IBAMA e moradores (ibidem, p.48-49).
As justificativas para a integração comunitária demonstram uma certa visão sobre a
presença dos moradores. A justificativa do item 2, por exemplo, afirma que
158
Muitas técnicas de manejo e utilização dos recursos naturais que não causam
impacto são conhecidas e utilizadas com sucesso na região amazônica. Ter os
moradores do Parque e entorno utilizando estas técnicas iria contribuir para
uma maior participação nas atividades a serem implantadas (ibidem, p. 48).
No item 6 a organização da população é justificada nos seguintes termos:
A organização da população deverá ser incentivada para que se esclareça quais
medidas deverão ser tomadas pela população para minimizar impactos
ambientais e sociais. A criação de Associações auxiliaos contatos com os
moradores e à implantação de projetos que visem minimizar impactos (ibidem,
p. 49).
Nos termos colocados pelo PAE, a população é vista, de forma apriorística, como um
fator de degradação dos recursos naturais do parque. A organização comunitária é compreendida
como forma de garantir um processo de adequação de uma sustentabilidade exterior ao seu modo
de vida. Não existe a preocupação de se encontrar na própria comunidade os caminhos para a
adequação de um comportamento conservacionista. Quando se propõe a compreensão das
atividades realizadas pelos ribeirinhos, esta é direcionada para as possibilidades futuras de
realocação para fora dos limites do PNJ.
O item 1 (diagnóstico das atividades agrícolas e extrativistas) tem com objetivo
“contribuir para se entender como os moradores utilizam os recursos naturais do parque, e dará
suporte ao mapeamento dos recursos utilizados e à elaboração de propostas em áreas de futuros
assentamentos de moradores” (ibidem, p. 47). Essa visão manipuladora sobre a organização
comunitária dos ribeirinhos fica evidente nas palavras do relatório de planejamento do PAE: “os
moradores do Parque, apesar de não estarem formalmente representados durante a oficina, devem
ser mobilizados para apoiar o Plano de Ação Emergencial e buscar alternativas que minimizarem
(sic) os impactos de sua atividade sobre o Parque” (FUNDAÇÃO VITÓRIA
AMAZÔNICA/IBAMA, 1994, p. 26).
159
As ações de regularização fundiária foram organizadas pelas seguintes diretrizes: (1)
realizar o levantamento fundiário do Parque; (2) promover a demarcação do PNJ; (3) fazer
gestões para assentar famílias da UC em projetos do INCRA; (4) fazer gestões junto ao
Congresso para alocar recursos financeiros para a regularização fundiária; (5) firmar convênios
ou termos de cooperação com o INCRA e Secretaria de Assuntos Fundiários do Estado; e (6)
regularizar a situação das famílias que desejam sair do Parque de imediato (Fundação Vitória
Amazônica/IBAMA, 1995, p. 50-51).
As ações de pesquisa foram, por sua vez, delimitadas nos seguintes termos: (1) inventariar
os recursos naturais do PNJ; (2) apoiar as atividades em andamento no Parque; e (3) formar
banco de dados informatizados sobre os recursos naturais do PNJ (idem, p. 51-52). De forma
geral, as diretrizes sobre a ação de pesquisa parecem legitimar as atividades pré-estabelecidas
pela FVA e sua predisposição para a catalisação de esforços para pesquisa. Interessante notar que
as atividades de pesquisa são consideradas quase exclusivamente para a elaboração do plano de
manejo.
Para que este resultado seja atingido, faz-se necessário aumentar o número de
pesquisa relativas a inventários e levantamento de fatores bióticos e abióticos
da Unidade; ampliar o apoio institucional, conforme matriz de planejamento,
para se organizar uma base sólida de informações científicas e mapear recursos.
Pesquisas científicas devem ser constantes no Parque e se deve buscar
pesquisadores para suprir as áreas ainda não investigadas (ibidem, p. 38).
Pode-se perceber que as linhas de ação do PAE, nas diretrizes aqui analisadas, foram
elaboradas de forma excessivamente segmentadas em atividades que poderiam ser integradas. As
áreas de integração comunitária, educação ambiental e de pesquisa poderiam ter uma forte
vinculação não no sentido “conscientizar” as comunidades sobre a importância da
biodiversidade e sua conservação, mas, sobretudo, como forma de valorizar os conhecimentos
160
que os próprios ribeirinhos apresentam sobre a paisagem na qual estão imersos. Mas parece que,
de forma geral, o PAE prevê uma solução em curto prazo para a retirada dos moradores. Por isso
as ações ou excluem a participação dos ribeirinhos ou os integram no seu próprio processo de
expulsão. O fim último é a regularização fundiária, desde que o fator “presença humana” seja
rapidamente removido.
Os documentos até aqui analisados permitem dimensionar uma linha de interpretação
relevante. Pode-se perceber que os documentos “normativos” (aqueles que estabelecem diretrizes
de ação política) apresentam grande diferença dos documentos “propositivos” (aqueles que
oferecem subsídios para a ação da FVA junto ao PNJ), quando a questão é a presença humana no
Parque.
O Plano de Ação (1992) e o Plano de Ação Emergencial (1995) são documentos
normativos que tratam a questão fundiária sempre da perspectiva da remoção dos moradores.
Suas diretrizes se empenham em fortalecer as ações que facilitem a retirada das famílias
residentes no interior do PNJ. Por outro lado, os documentos propositivos, como o Levantamento
Sócio-Econômico (1990) e o Censo e Levantamento Sócio-Econômico (1994) sempre
apresentam argumentos e soluções para a permanência dos moradores, a partir da demonstração
de que suas atividades causam mínimo impacto e podem oferecer um outro modelo de
conservação da natureza.
É lícito dimensionar, portanto, que a FVA encontrou dificuldades, até aqui, em fazer valer
sua argumentação em favor da presença humana junto às instituições que contribuíram para o
processo decisório para a consolidação do PNJ principalmente, o IBAMA. Por outro lado, o
aspecto científico da atuação da FVA parece ter grande legitimidade junto às mesmas
instituições. Sua proposta de investigação científica sobre a biodiversidade foi colocada, como
vimos, de forma prioritária para a elaboração do plano de manejo.
161
Foi sob a égide das diretrizes do PAE que as atividades para a elaboração do plano de
manejo ganharam ímpeto. Nesse momento, as atividades da FVA concentraram-se em construir
os subsídios necessários para o zoneamento da área do parque. Como as ações previstas pela
regularização fundiária voltadas para a “desintrusão” do PNJ dificilmente sairiam do papel no
período de vigência do PAE, a FVA parece ter se cercado de ações que garantissem uma margem
de ação para as atividades dos ribeirinhos no interior do plano de manejo.
Desse modo, foi realizado em julho de 1995 a I Reunião com Moradores do Parque
Nacional do Jaú sobre Manejo e Conservação de Bicho de Casco (Quelônios). Contado com a
presença de 150 pessoas de 22 comunidades do PNJ, além de representantes da FVA, INPA e
IBAMA, o evento teve como objetivo de resgatar o modo de uso de bichos de casco pelos
moradores, apresentar aos moradores diferentes opiniões sobre isso (inclusive do IBAMA) e
propor soluções (...)” (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1995, p. 2). A atividade de
captura de quelônios é considerada a mais crítica em relação ao uso dos recursos pelos
moradores. É também onde se concentra atividade mais rentável para os ribeirinhos, sendo
considerada uma atividade ilegal com sérias restrições por parte do IBAMA. O relatório da
reunião apresenta a justificativa do encontro nos seguintes termos:
Quelônios são capturados sobretudo para comer, mas um comércio
clandestino que se abastece dos estoques naturais, que permanecem abertos,
pois o PNJ ao invés de ser uma “área pública” parece “terra de ninguém”. A
curto e médio prazo vai se confirmando a tendência ao esvaziamento do PNJ
pela população humana, que levaria à redução da pressão sobre os principais
produtos extrativistas, entre eles os quelônios. O atual sistema de manejo
favorece sobretudo comerciantes e intermediários, penalizando os moradores
que manejam o recurso se valendo do seu conhecimento tradicional. A
permanência de moradores na área não pode significar sua manutenção no nível
de subsistência em que se encontram, preservando sua pobreza extrema com um
item exótico da biodiversidade. Por outro lado, manter os recursos livremente
acessíveis aos moradores, comerciantes e pescadores levará necessariamente à
“tragédia dos comuns” (o esgotamento dos recursos). Assim, para conservar o
recurso (Quelônio) é preciso discutir seu uso com os moradores, sobre bases
estabelecidas onde os recursos estejam disponíveis apenas para o seu uso e de
162
forma limitada, que é seguramente mais realista que a política legal de não uso,
ou a política vigente de vistas grossas (idem, p.1).
A partir da utilização de várias técnicas de envolvimento, tais como dramatizações,
exposições de fotos, oficinas de artesanato e até um “forrozão animado”, a reunião sugeriu uma
negociação que envolveu, inclusive, a questão da permanência dos moradores.
A permanência dos moradores no PNJ depende de vontade política e de
modificações na legislação pertinente. Uma vez que sua permanência precisa
ser viabilizada através do manejo adequado dos recursos do PNJ. O uso desses
recursos precisa ser objeto de negociação entre os moradores, através de suas
entidades representativas e o Estado, através de seu representante o IBAMA. O
papel da FVA, como ONG é de auxiliar os moradores, para que atinjam seus
objetivos de garantir o acesso à terra, ao uso dos recursos, à saúde, à educação,
aos preços justos e às boas condições de comercialização. Em troca, os
moradores além do privilégio de viverem num local de extrema beleza natural,
ainda deveriam assumir o compromisso de zelar para que muitas áreas
permaneçam intocadas no PNJ (ibidem, p. 4-5).
Na citação acima se encontra clarificada a proposta da FVA junto aos moradores. A
conformidade a um campo de possibilidades restritas a uma concepção de conservação e
sustentabilidade exógena ao seu modelo de organização sócio-econômica e de interação
ecológica. Convidados a aceitar a intocabilidade de determinadas áreas, a restringir seu
extrativismo ao autoconsumo, estariam aptos a continuar nos limites do parque. A FVA
demonstra, assim, sua tentativa de equacionamento junto aos pólos antagônicos de relação sócio-
política no PNJ. O IBAMA aceita uma população comportada e os moradores aceitam as
diretrizes de um conservacionismo regido por alguns dos princípios biocêntricos. Desse modo a
FVA apresentou suas três propostas de manejo de quelônios a serem incorporadas no plano de
manejo:
1. Zoneamento de lagos e praias (...). Assim uma primeira tentativa seria
recolher sugestões junto aos moradores sobre quais áreas seriam zoneadas e
mapeá-las. Além de uma contribuição ao manejo de BC (bicho de casco), seria
também uma contribuição ao Plano de Manejo do PNJ. Seriam 4 critérios
163
básicos de zoneamento: a) áreas de livre acesso (para moradores e visitantes).
b) áreas de pesca de subsistência (para obter alimento). c) áreas de pesca para
produção (capturas destinadas à venda). d) áreas de preservação e recuperação
de estoques (acesso vedado a todos, moradores e visitantes).
2. Defeso de espécies ameaçadas ou de distribuição restrita (...) nesse caso
propusemos um período (ainda indefinido) durante o qual a captura de adultos
e; ou a coleta de ovos de algumas espécies seja proibido ou drasticamente
limitado.
3. Monitoramento da produção (...) estatísticas confiáveis de produção, vão
gerar séries temporais necessárias para avaliar as tendências de manejo (ibidem,
p. 6-7).
Destaca-se aqui o caráter participativo do processo decisório em relação ao manejo de
quelônio proposto aos moradores.
As 3 propostas são a base sobre a qual pode se assentar um programa de manejo
realista para BC no PNJ. Nenhuma delas pode ser descartada, apenas ajustada.
Essas idéias forma lançadas para discussão entre os moradores. Além disso,
foram recolhidas outras propostas, produtos dos 2 dias de discussão, para serem
encaminhadas para a próxima reunião da Câmara Técnica de Unidades de
Conservação (...) (ibidem p. 7).
A participação dos moradores em relação ao manejo de quelônios foi colocada, como
vimos, em uma margem de ação muito restrita, na medidas que suas sugestões foram adequadas a
um conjunto de propostas intocáveis. Essas propostas, oriundas das pesquisas biológicas
empreendidas e organizadas pela FVA, deixam evidentes alguns dos fatores constitutivos da
dinâmica política pela qual se construiu o plano de manejo. Não se trata aqui de contestar o
laudo-técnico científico e sua conseqüente proposta de manejo. Nem demonstrar, pura e
simplesmente o modelo de “participação passiva” proporcionado aos ribeirinhos. Trata-se de
evidenciar o posicionamento dos três sujeitos em questão e em especial da FVA em relação
ao conjunto de diretrizes determinadas por uma visão de conservacionismo restritivo/repressor de
fundamentação biocêntrica.
164
Ao IBAMA cumpre assegurar as condições de interpretação da presença dos moradores
como essencialmente nociva à biodiversidade. No entanto, ao não conseguir reunir os elementos
necessários para uma remoção minimamente aceitável do ponto de vista legal, tolera a presença
dos moradores a partir de uma série atos restritivos e fiscalizadores. Aos moradores, cabe a
condição de vida criminalizada por insistir em relações econômicas de subsistência
historicamente determinadas. À FVA, cumpre equacionar a presença dos moradores ao modelo
de conservação sustentado pelo IBAMA, através da determinação de parâmetros de ação
pautados no discurso cientificista. Linguagem aceita pelo IBAMA, no qual as comunidades de
moradores precisam adequar-se e submeter-se se quiserem ter o “privilégio de viver num local de
extrema beleza natural”.
A proposta de zoneamento elaborada pelos técnicos da FVA em relação aos quelônios
demonstra, também, um arrefecimento do discurso sobre as possibilidades de ação extrativista no
interior do PNJ. Por ocasião do censo e levantamento de 1992” (1994), como vimos, a proposta
da FVA era não limitar áreas intocáveis, dada a constatação de que o “impacto” da atividades era
baixíssimo. Agora, ao aceitar a premissa da intocabilidade, é possível constatar tanto um
abrandamento estratégico no discurso sobre a permanência dos moradores, quanto a influência da
intensificação de pesquisas bio-ecológicas promovidas pela FVA no período de construção do
plano de manejo.
Em documento redigido em 1995 para o estabelecimento de critérios de zoneamento do
parque, Bruce Forsberg, pesquisador do INPA e coordenador do subprojeto de ecologia aquática
da FVA, lamenta a impossibilidade de uma proteção integral do sistema fluvial.
O ecossistema fluvial do rio Jaú é um sistema contínuo onde água, energia
orgânica e nutrientes essenciais passam em seqüência através de uma série de rios
de tamanho crescente e uma série de comunidades biológicas (...). Esta
interdependência entre diferentes partes do sistema fluvial dificulta o processo de
165
zoneamento, pois, no sentido mais básico, a integridade funcional do ecossistema
requer a preservação de todos estes componentes (...) (FORSBERG, 1995, p. 3).
Sendo impossível a intocabilidade irrestrita no PNJ, o pesquisador limita-se a sugerir as
“áreas críticas” a serem preservadas.
1. As cachoeiras, tanto pela função crítica que elas exercem na distribuição dos
habitats aquáticos, quanto pela comunidade biológica distinta associada a elas,
devem ser protegidas da ação humana.
2. Os igarapés de primeira e terceira ordem e as florestas marginais associadas a
eles, pela diversidade de habitats e biota encontrado neles, pela influência que
tem nos rios a jusante e por sua vulnerabilidade ao impacto humano também
deve ser protegidas (...).
3. A floresta alagada nas margens dos rios de quarta ordem a sexta ordem
também constituem um habitat crítico para o funcionamento do ecossistema
fluvial (...) por esta razão o corte de florestas alagadas deve ser proibido no
parque.
4. o ciclo anual de enchentes nos rios maiores e os ciclos mais freqüentes de
enchente nos rios de menor ordem têm um papel crítico nos ciclos de vida de
muitos animais aquáticos no Parque. O ciclo de desova de tartarugas ligada a
formação das praias e a produção dos frutos (...) são dois exemplos claros desta
interdependência. É essencial que as atividades humanas não interfiram com
estes ciclos hidrológicos. Portanto, a criação de barragens artificiais de qualquer
espécie e para qualquer fim deve ser proibido no parque
13
(...) (idem, p. 3-4/
Apud SANTOS, s/d, p. 91-92).
As sugestões de Forsberg parecem ter sido importantes nas determinações do
zoneamento, já que ele foi o defensor da adoção do conceito de rio continuo (CRC) como um dos
eixos metodológicos para o estudo da biodiversidade no PNJ. Desse modo, parece haver
subsídios para compreender que o processo de construção do plano de manejo foi orientado por
referenciais científicos e que estes, por sua vez, determinaram os limites da participação
13
A sugestão de Forsberg sobre a proibição de barragens artificiais parece incidir diretamente sobre a atividade
extrativista de quelônios, pois uma das técnicas de captura consiste na construção de “currais de praia”: “esta técnica
á utilizada anualmente de maneira intensa pelo menos vinte anos durante o período de nidificação (verão) e os
alvos são as fêmeas reprodutoras. As principais praias e barrancos utilizados por quelônios do rio Jaú (...) e
Carabinani (...) são fechadas com estas armadilhas com varas de madeira amarradas com cipó. Quando o pescador
regressa, a armadilha tem que ser desmontada para que os animais não permaneçam presos, morrendo ao sol”
(BORGES, et. all. p. 217).
166
comunitária. A partir desses parâmetros, entre os anos de 1996 e 1997, o processo de inserção das
populações nas discussões sobre o zoneamento do parque intensificou-se.
A atuação na área e a convivência com os moradores do PNJ resultaram na
elaboração de uma metodologia participativa envolvendo diferentes linhas de
pesquisa. A partir de 1996, centrado na Coordenadoria Sócio-Ambiental,
efetuou-se um redirecionamento no trabalho da equipe da FVA. Com base na
pesquisa-ação, articularam-se extensão rural, educação e organização
comunitária. A partir da identificação das formas de organização sócio-cultural
dos moradores do rio Jaú e do Rio Unini, buscou-se fortalecer a ampliar a
prática organizativa destes por meio de mecanismos participativos e
instrumentos didático-pedagógicos, com reuniões, visitas domiciliares
atividades formativas e informativas (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA,
1998a, p.66).
A pesquisa-ação, princípio norteador das atividades da FVA foi definido por seus técnicos
nos seguintes termos:
(...) a pesquisa-ação é compreendida como uma prática científica que promove
a interação entre pesquisadores e os sujeitos sociais envolvidos no caso
concreto de estudo. Dessa interação resulta uma ação que intervém nos
processos sociais em curso, promovendo a superação das condições de exclusão
e/ou resolução de problemas coletivos, ao mesmo tempo que possibilita uma
ampliação do conhecimento científico e do grau de politização dos envolvidos
(ibidem, p. 66-67).
Além disso, foi utilizada uma intersecção de procedimentos metodológicos para a
construção do envolvimento dos moradores: (1) entrevistas estruturadas e semi-estruturadas; (2)
observação sistetica a assistemática; (3) reuniões comunitárias; (4) encontro de representantes;
(5) trabalhos em grupo; (6) conversas informais; e (7) mapeamento comunitário participativo
(ibidem, p. 67-70).
Parte das atividades acima relacionadas foram subsidiadas por informações levantadas no
contexto de elaboração do censo e levantamento de 1992.
167
A primeira fase dos trabalhos ocorreu entre 1992 e 1994, com a definição da
utilização dos recursos por grupo doméstico, nos locais de realização das
atividades produtivas e de extrativismo (...). o resultado desse levantamento e o
georreferenciamrento dos principais lagos e igarapés utilizados possibilitaram o
conhecimento preliminar das relações existentes nas áreas (...) e criaram
condições necessárias para o retorno das informações organizadas aos seus
protagonistas (ibidem, p. 70).
A partir de 1996, as atividades predominantes parecem ter sido as reuniões comunitárias,
encontro de representantes e o mapeamento comunitário participativo, este último considerado
“inovador” e “paradigmático” para construção do plano de manejo (ibidem, p. 70). Nesse sentido,
em 1997, realizou-se o II Encontro de Representantes do PNJ e Artesãos de Novo Airão
14
. O
objetivo geral do encontro era
(...) contribuir para o fortalecimento da participação comunitária no processo de
elaboração e execução do Plano de Manejo do referido Parque. Teve, ainda,
como objetivos específicos: a) resgatar as discussões do I Encontro,
especialmente aquelas referentes ao Zoneamento e à Questão fundiária, b)
discutir uma proposta de fiscalização participativa e c) discutir a participação
dos moradores no Seminário de Planejamento do (Plano de Manejo)
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1997b, p. 80).
De forma geral, o encontro se organizou em torno do estímulo para a compreensão, por
parte dos representantes, de termos e conceitos básicos para a construção do plano de manejo, tais
como: parque nacional, estação ecológica, zoneamento, zona intangível, zona primitiva, dentre
outros. Além disso, foi apresentado aos representantes experiências bem sucedidas de
envolvimento comunitário em unidades de conservação. Por fim, discutiu-se a forma de
participação da comunidade no planejamento para o plano de manejo. Diante das grandes
dificuldades de interpretação dos moradores sobre os conteúdos da linguagem conservacionista, o
técnico responsável pelo relatório do encontro recorre à antropologia para encontrar as formas de
interpretação que podem viabilizar a participação dos moradores no plano de manejo.
14
Infelizmente, não foi encontrado o relatório do I encontro para análise na presente pesquisa.
168
O II Encontro de Representantes dos Moradores do PNJ e Artesãos de Novo
Airão constituiu-se certamente em mais uma etapa positiva no processo de
organização e articulação destes atores sociais para melhor enfrentarem a
dinâmica social do processo social no qual estão envolvidos. Todavia, deve-se
compreender que, a forma que adquire o movimento social do PNJ tem um
colorido próprio, ditado pela dinâmica político-cultural dos seus moradores e
que se constitui em tarefa para FVA apreender sócio-antropologicamente as
estruturas internas desta dinâmica e, assim, poder perceber como uma
participação efetiva destes sujeitos sociais no manejo do Parque pode ser
efetivada de acordo com tais estruturas. Será necessário, portanto, um olhar
para as práticas de interação como um texto obscuro, cuja mensagem principal
encontra-se subjacente e que, para fazê-lo emergir será, ainda preciso um
esforço de interpretação. Finalmente, poder-se-á então articular os saberes
produzidos por tal texto com a idéia de conservação e preservação do PNJ sem
perder de vista um necessário relativismo cultural (idem, p. 22).
Paralelamente aos encontros, a FVA empreendeu o já referido mapeamento comunitário
participativo junto aos moradores do PNJ.
A dinâmica de realização do mapeamento participativo de uso dos recursos
naturais pelos moradores do PNJ iniciou-se com visitas domiciliares.
Posteriormente, foram realizadas reuniões em locais estrategicamente definidas,
durante as quais, além do mapeamento propriamente dito, ocorreram discussões
sobre a questão fundiária e sobre o conteúdo e conceitos subjacentes ao Plano
de manejo do PNJ. Em todas elas, a equipe era multidisciplinar, compostas por
pesquisadores das áreas biológicas e sociais (FUNDAÇÃO VITÓRIA
AMAZÔNICA, 1998a, p. 70).
A atividade consistiu em desenvolver junto aos moradores uma forma de compreensão da
sua territorialidade a partir através do uso de mapas. Foi possível identificar a área de uso de cada
grupo doméstico através da utilização de bandeiras identificadoras dos recursos
extraídos/cultivados em cada localidade.
Como forma de garantir a familiarização com mapas, representação em duas
dimensões do rico mundo em que vivem, e com imagens de satélite, estas eram
decodificadas e, a partir delas e de grandes mapas apenas com a rede
hidrológica desenhada, nomeava-se os rios, lagos e outros acidentes geográficos
das áreas próximas das comunidades. Sobre os mapas, agora com referências
(nomes dos locais) por eles mesmos definidas, os grupos familiares espetavam
bandeirinhas com ícones de um lado e cores do outro. Os ícones representavam
169
as diferentes atividades desenvolvidas pelos moradores, tais com a roça, a casa,
a pesca e os diferentes produtos do extrativismo vegetal, ou seja, todas aquelas
identificadas na primeira fase do trabalho. As cores representavam cada família.
As bandeiras eram colocadas nos locais onde as atividades eram realizadas,
buscando-se marcar no mapa o ponto mais longínquo da mesma, por exemplo,
o local aproximado onde a última árvore de seringa havia sido cortada (idem, p.
72).
Esse modelo de visualização iconográfica referente ao mapeamento dos recursos, além de
viabilizar a atividade com comunidades com altos índices de analfabetismo, contribuiu
decisivamente para a intersecção entre uso social dos recursos e distribuição da diversidade bio-
ecológica no interior do parque. A possibilidade do estabelecimento de uma base comum para o
tratamento de dados diferenciados a planificação geográfica foi fundamental para o processo
de zoneamento do PNJ.
O conjunto de bandeiras de uma comunidade permitia formar um mapa social
da área, visualizando não somente o “território” de cada família, mas a
distribuição do uso de cada recurso A posterior integração de todos esses dados
no sistema de informações geográficas (SIG) da FVA permitiu a compreensão
do conjunto de atividades humanas no Parque e de sua configuração social, ou
seja, da divisão espacial em seus ordenadores socioculturais. Essas informações
foram completadas durantes os anos de 1997 e1998, atingindo 100% dos
moradores. Os dados coletados mostraram consistência quando confrontados
com outros dados do sistema de informações geográficas. A análise dos mapas
assim gerados serviu para que os moradores e pesquisadores elaborassem a
proposta final de zoneamento do PNJ (ibidem, p. 72).
Em conjunto com as atividades do mapeamento participativo, ocorreram outras ações
tanto de assistência às famílias quanto ao levantamento de informações para regularização
fundiária e o recadastramento dos moradores, previstas no Plano de Ação Emergencial de 1995.
Os resultados do levantamento fundiário acabaram por constituir uma parte importante do plano
de manejo.
Com o intuito de realizar o Plano de manejo e o levantamento fundiário do PNJ
a Fundação Vitória Amazônica realizou em 1996 o recadastramento de todos os
170
moradores do Parque (...). Esses moradores formam o que podemos denominar
de pequenos produtores rurais de base familiar fundamentada no
agroextrativismo. Sob a ótica fundiária são posseiros, pois ocupam terras sem
consentimento de terceiro, consequentemente, não possuem títulos legais que
lhes garantem o domínio da terra que estão de posse, os únicos “títulos” que
têm é o trabalho que realizam na terra para dar sustento a si e a suas famílias
(BENATTI, 1997, p. 13).
Além de outros aspectos jurídicos, o levantamento preocupou-se em apresentar as visões
jurídicas de compreensão sobre a posse de populações tradicionais para, desse modo a
formulação das perspectivas de regularização fundiária. O relator do documento oferece três
possibilidades: a visão civilista, agrarista e agroambiental. Sobre a primeira:
O Código Civil Brasileiro não definiu posse, mas sim possuidor. Em seu texto
legal encontramos a definição no art. 458, ao dizer que “considera-se possuidor
todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns poderes
inerentes ao domínio, ou propriedade.” Para a concepção civilista a posse é a
exteriorização da propriedade, advém de um direito, de um título (idem, p.13).
A concepção agrarista de posse é definida nos seguintes termos:
A atividade agrária pode ser classificada como sendo a ação rurícola que se
cumpre através de um processo agro-biológico sobre o conjunto de bens que
integram a exploração rural a que se dedica profissionalmente, com o fito de
lucro e para suprir as necessidades do ser humano”. Portanto, é o conjunto de
bens e ações que integram a exploração racional da área rural a que se dedica o
posseiro (ibidem, p. 14).
E, por fim, a visão agroambiental.
Para que se configure a posse civil a necessidade do elemento subjetivo e
que o possuidor tenha o título do bem; ao passo que a posse agrária completa-se
apenas com o fato objetivo de exploração da terra pelo possuidor. Na posse
agroecológica, o fato objetivo é o uso sustentável da terra, pois para “ter” a
posse é preciso interagir com o meio. É interessante notar que para esses
segmentos de camponeses não tem o caráter mercantil, não se constitui em
objeto de troca; assim como não é vista como um bem sujeito a apossamento
individual, mas somente na forma familiar conjugada com a coletiva. Essa
forma coletiva de apossamento dos recursos naturais e a presença de práticas de
171
trabalho familiar com base no agroextrativismo, são características da posse
agroecológica (ibidem, p. 15).
A partir da definição de posse agroambiental ou agroecológica, o relator do documento
oferece duas alternativas para a regularização fundiária com relação aos moradores: (1) a
combinação reassentamento/indenização e (2) a reclassificação do PNJ em reserva extrativista ou
reserva ecológico-cultural. A segunda proposta aparece pela primeira vez, dentro de um suporte
legal
15
como possibilidade política factível. De qualquer modo, apesar da possibilidade jurídica,
A FVA parece não ter incorporado a possibilidade da reclassificação no espectro de ações
políticas junto aos moradores. De qualquer modo, o documento por ora analisado revelou a
construção das possibilidades de regularização fundiária que escapou à perspectiva jurídica
utilizada até então pelo IBAMA, como instrumento de incentivo e convite para a retirada da
população no interior do PNJ.
Assim, pode ser afirmar, que a partir de 1997, a FVA conseguiu reunir as condições e
elementos necessários para a concretização do plano de manejo do PNJ. Entre 1993 e 1997, foi
desenvolvida uma série de atividades no sentido de dimensionar a presença humana aos limites
mínimos de concordância às diretrizes conservacionistas. Estabeleceu-se, também uma estrutura
capaz de gerar um montante considerável de pesquisas bio-ecológicas, como forma de
compreender incipientemente a biodiversidade do PNJ. Por outro lado, a FVA alcançou a
articulação entre o conhecimento dos fatores antrópicos e das interações bio-ecológicas através
de uma linguagem comum pautada pela geografia, ou seja, pela estruturação de um sistema de
informações geográficas (SIG). Além desses fatores, através de uma ação pedagógica, a FVA
desenvolveu também um processo de organização comunitária que visava a adequação do modo
15
A possibilidade estava fundamentada no Projeto de Lei nº2.282/92 Sistema nacional de Unidades de
Conservação. Atualmente a revisão da Lei 9.985, datada em 18 de julho de 2000, não extinguiu a categoria
“reserva ecológico-cultural” pela de “reserva de desenvolvimento sustentável” e não permite mais a referida
reclassificação.
172
vida dos ribeirinhos à nova ordenação político-territorial conservacionista imposta no PNJ. Por
fim, foram apresentadas as condições jurídicas de regularização fundiária do parque.
Em agosto de 1997, foi realizada em Silves/AM a Oficina de Planejamento do Plano de
Manejo do Parque nacional do Jaú. Os objetivos da oficina eram “buscar dos diferentes atores na
consolidação do PNJ, fazer o zoneamento do PNJ, (e) estabelecer os programas de manejo para o
PNJ, para os próximos cinco anos” (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1997b, p.2). Com a
presença de 24 participantes entre técnicos da FVA, IBAMA, dentre outros órgãos
governamentais/não- governamentais e moradores do PNJ.
De forma geral foram estabelecidos os consensos mínimos para o zoneamento e para
plano de manejo.
“As áreas de moradia e uso de recursos dos moradores ficam na zona
especial.
As atividades dos moradores da zona especial serão feitas com impacto
mínimo.
Polígonos de uso e calhas de rio servem de base para a definição da zona
especial” (idem, p. 14).
Ficaram definidos, também, os objetivos específicos do plano de manejo:
“Manter a integridade do PNJ como UC visando a proteção integral da bacia
hidrográfica do rio Jaú.
Proporcionar o conhecimento dos recursos naturais e arqueológicos do PNJ
para sua proteção e manejo.
Integrar o PNJ no sistema de proteção da bacia do rio Negro e no corredor
central da Amazônia” (ibidem, p. 17).
A partir desse ponto, foi realizado um trabalho de detalhamento das atividades a serem
contempladas no PNJ. Elementos que subsidiaram a redação final do plano de manejo. Além
disso, foi apresentado à FVA, por parte do IBAMA, as diretrizes de construção do plano através
173
do Roteiro Metodológico para o Planejamento de Unidades de Conservação de Uso indireto
(2002).
Assim, desse intenso processo de elaboração do plano de manejo do PNJ, foi construído
um documento considerado pela FVA como “como inovador e de grande qualidade técnica”.
Contendo 255 páginas apresenta não as diretrizes de ão possíveis e planejadas para os anos
de 1998 a 2002, mas um compêndio com o histórico de formação da unidade, análise dos
problemas fundiários, uma farta contextualização do PNJ (em nível federal, estadual e regional),
um demonstrativo sobre as pesquisas relacionadas aos fatores abióticos e bióticos, uma
caracterização da população local e os aspectos institucionais da unidade.
Desse modo, os elementos que subsidiaram o plano de manejo ao longo de cinco anos
encontram-se todos demonstrados no próprio plano. Isso certamente garante a satisfação de
especialistas e estudiosos em conservação da natureza, mas não necessariamente tornou o plano
de manejo mais factível. A parte relacionada ao planejamento efetivo do PNJ compreende por
volta de 20% de todas as informações contidas no plano. Se por um lado, demonstra e oferece
acesso a uma quantidade considerável informações sobre uma das mais importantes unidades de
conservação do território nacional, tornou-se um documento de difícil acesso ao público
diretamente afetado por ele.
Não obstante, o encarte 6 do plano de manejo, reúne as diretrizes básicas do planejamento
do parque. Comporta dois itens fundamentais: o zoneamento e os programas de manejo. Sobre o
primeiro item estão as definições das áreas e as respectivas formas de uso ou em certos casos,
de não uso – no interior do PNJ.
Para a elaboração do zoneamento foram admitidos seis tipos diferentes de áreas, quais
sejam:
174
Zona primitiva. Definição. É a zona onde ocorreu pequena ou mínima
intervenção humana e contém espécies da flora e da fauna ou fenômenos
naturais de grande valor científico. O objetivo geral de manejo é preservar o
ambiente natural e ao mesmo tempo facilitar as atividades de pesquisa científica
e de educação ambiental, e proporcionar formas primitivas de recreação (...).
Zona de uso extensivo. Definição. É aquela constituída por áreas naturais e
pode apresentar algumas alterações. (...) O objetivo do manejo é a manutenção
de um ambiente natural com mínimo impacto humano, apesar de oferecer
acesso e facilidades públicas para fins recreativos e educacionais. (...) O
objetivo geral do manejo é facilitar a recreação intensiva e educação ambiental
em harmonia com o meio.
Zona de uso especial. Definição. É aquela que contém as áreas necessárias à
administração, manutenção e serviços da Unidade de Conservação, abrangendo
habitações, oficinas e outros (...).
Zonas de recuperação. Definição. É aquela que contam áreas
consideravelmente alteradas pela presença do homem. É uma zona provisória,
pois uma vez restaurada será incorporada a uma das zonas permanentes. O
objetivo geral do manejo é deter a degradação dos recursos ou restaurar a área.
Zona histórico-cultural. Definição. É aquela onde se encontram manifestações
históricas e culturais ou arqueológicas que serão preservadas, estudadas,
restauradas e interpretadas para o público, servindo à pesquisa educação e uso
científico. O objetivo geral do manejo é o de proteger sítios históricos ou
arqueológicos em harmonia com o meio ambiente (...) (FUNDAÇÃO
VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p.180-183).
Um dos problemas do processo de zoneamento foi equacionar áreas em diferentes escalas
de representação especial.
Numa unidade das dimensões do Parque Nacional do Jaú, a questão da escala
espacial é de fundamental importância para a compreensão do zoneamento.
Algumas áreas o passíveis de serem mapeadas numa escala local, pois sua
representação se perde num mapa de zoneamento que abrange toda a Unidade.
Isso se aplica, em especial, às zonas de recuperação que cobrem pequenas
extensões a ponto de poderem ser assinaladas na escala dos mapas utilizados no
zoneamento (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 177).
Além disso, o plano apresenta outras dificuldades no estabelecimento no processo de
construção do zoneamento. Não houve condições de determinação das áreas de uso extensivo e
uso intensivo, sendo estas incorporadas à zona de uso especial. Além disso, esta última foi
elaborada de forma a parcial e provisória, pelo fato de que o mapeamento das atividades dos
moradores não foi completamente identificado.
175
O mapeamento dos usos de recursos serviu para sua delimitação especial. Os
pontos conhecidos de usos dos recursos ao mapa da bacia de drenagem,
determinado os rios de circulação interna. (...) A partir da calha desses rios,
foram traçados limites a 1,5 km que definiram a área ocupada pela zona. A
escolha da distância foi baseada na distância média percorrida pelos moradores,
turistas e pesquisadores em suas atividades. (...) A delimitação da área está
incompleta, pois exclui informações de aproximadamente 1/3 dos moradores e
está superestimado em certas áreas (...) (idem, p. 179).
Determinante no processo decisório do zoneamento, o mapeamento participativo não
contemplou um aspecto importante para a determinação da zona de uso especial: a intensa
mobilidade geográfica dos moradores do PNJ. Em trabalho posterior ao plano de manejo (Borges
et. alli, 2004), técnicos da FVA desenvolveram um completo estudo sobre esse tema.
Os pesquisadores que participaram das oficinas do Projeto Janelas para a
Biodiversidade indicaram a análise demográfica da população residente no
Parque Nacional do Jaú (PNJ) como um dos temas prioritários de pesquisa,
que estas informações são fundamentais para caracterização da população local
e para o manejo do PNJ (idem, p. 44).
Ao que parece, essa lacuna apresentada no processo de zoneamento da área especial, foi
compreendida pela FVA na sua importância de determinação na presença dos moradores do PNJ
nos planejamentos futuros.
A construção das variáveis demográficas desta pesquisa permitiu fazer um
rápido retrato de 10 anos da dinâmica populacional dos moradores do PNJ. (...)
Estas informações demográficas podem contribuir para direcionar atividades de
manejo, como o planejamento e elaboração dos termos de compromisso entre
os moradores do PNJ com o IBAMA, previstos no recém aprovado Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) (ibidem, p.60).
176
A definição da zona primitiva foi estipulada a partir do desenvolvimento das pesquisas
bio-ecológicas e da incorporação das áreas que potencialmente seriam destinadas à zona
intangível.
Todas as áreas do Parque, com exceção daquelas que abrigam as zonas de uso
especial, extensivo, intensivo (no caso desta Unidade, sobrepostas) e a zona de
recuperação, fazem parte da zona primitiva. Grande parte encontra-se nas áreas
interfluviais intangíveis, sem intervenção humana. Porções significativas das
áreas próximas à calha dos rios principais foram também incluídas nesta zona,
assegurando maior proteção das comunidades bióticas presentes nos ambientes
associados aos rios. Seguindo as recomendações do Roteiro Metodológico,
decidiu-se nesta fase por não estabelecer zonas intangíveis, pois essa é a
primeira vez que se realiza um zoneamento do Parque e grandes áreas da
Unidade permanecem majoritariamente desconhecidas, não sendo prudente
indicar áreas ainda tão carentes de pesquisas científicas como intangíveis
(FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p. 178).
Por fim, foi feita também a determinação inacabada das zonas de recuperação e histórico-
culturais.
Devido ao tamanho do Parque, somente um conhecimento mais afinado das
muitas realidades locais permitirá um zoneamento em escala menor que 1:
250.000, não somente para uma definição mais apurada das zona especiais, mas
também para tornar visíveis de forma exata as zonas de recuperação e as zonas
histórico-culturais que foram em parte identificadas. Esse zoneamento
demandará um intenso trabalho de campo e deve em parte ser realizado nos
próximos cinco anos (idem, p. 179).
Dessa maneira, a definição possível contemplada pelo plano de manejo estabeleceu
85,94% para a zona primitiva, 13,95% para a zona especial e 0,11% para a zona de recuperação.
Os pontos recomendados para o zoneamento histórico-cultural não apresentaram representação
estatística sobre a área do PNJ.
Os programas de manejo, por sua vez, foram definidos em cinco tópicos principais: (1)
programa de conhecimento, (2) programa de uso público, (3) programa de integração com a área
de influência, (4) programa de manejo do meio ambiente e (5) programa de operacionalização. O
177
programa de conhecimento, subdividido nos subprogramas de pesquisa e de monitoramento
ambiental, prevê a continuidade do modelo de pesquisa até então empregado pela FVA: as
pesquisas sócio-econômicas, que possam promover uma
Avaliação da utilização dos recursos naturais pelos usuários do Parque, seus
atuais moradores e populações residentes nas zonas de transição e de influência,
e dos impactos desse uso. Essa análise deve abranger a quantificação dos
recursos utilizados, a sazonalidade das atividades, o valor dos produtos, uma
avaliação de mercado, identificação de áreas de maior impacto e suas
características, o desenvolvimento de indicadores para o monitoramento do
estado de conservação dos recursos, (ibidem, p. 189).
As pesquisas bio-ecológicas, organizadas para prover a
análise da distribuição dos recursos naturais no Parque Nacional do J, por
meio da realização de inventários dos grupos taxonômicos ainda não avaliados
e daqueles sobre os quais foi desenvolvida alguma pesquisa, identificando e
analisando os processos determinantes da distribuição e da abundância dos
diversos organismos (...) (ibidem, p. 188).
Foi previsto, também a conhecida integração dos dados sócio-econômicos aos bio-
ecológico através do SIG: “O sistema de informações geográficas deve ser levado em conta em
todas as atividades. A coleta de dados deve alimentar o SIG por meio de formulários específicos
para cada linha de pesquisa (...)” (ibidem, p. 190). O SIG, a partir do plano de manejo, foi
também designado para atuar pelo subprograma de monitoramento do parque. Tornou-se um
instrumento poderoso de fiscalização, que a maior parte das atividades previstas nesse
subprograma refere-se ao acompanhamento das atividades humanas no PNJ (ibidem, p.191).
O programa de uso público volta suas prioridades para o planejamento da área visando as
possibilidades do ecoturismo, articuladas às atividades de educação ambiental. O programa de
integração com a área de influência estabelece diretrizes para o relacionamento com os
moradores das cidades próximas e com os próprios moradores do parque. Seu eixo estruturante é
178
também as atividades de educação ambiental. Está dividido nos subprogramas de (a) relações
públicas, (b) educação ambiental, (c) controle ambiental e (d) incentivo a alternativas de
desenvolvimento.
O programa de manejo de meio ambiente es prioritariamente orientados para os
mecanismo de proteção da biodiversidade do parque. Está dividido nos subprogramas (a) manejo
de recursos e (b) proteção. O primeiro subprograma não tem atividade prevista. O segundo
articula métodos tradicionais de fiscalização com o envolvimento das comunidades através da
formação de agentes ambientais voluntários.
O programa de operacionalização está organizado nos subprogramas de (a) regularização
fundiária, (b) administração e manutenção (c) infra-estrutura e equipamentos e (d) cooperação
institucional. Sobre a regularização fundiária, tema importante para a presente pesquisa, o plano
de manejo estabelece, pela primeira vez, uma proposta respeitosa quanto aos destinos dos
moradores em relação ao parque. Desse modo, foi previsto a elaboração de um
(...) plano de transição socialmente conseqüente e culturalmente adequado para
definição da sua situação; (...) por plano de transição entende-se a evolução da
situação dos atuais moradores do PNJ, hoje caracterizada por comunidades sem
vínculo oficial com a Unidade, para um cenário em que os moradores que
permaneçam sejam incorporados ao manejo do parque (...) (ibidem, p. 202).
Assim, chega-se ao final da presente análise, com os subsídios necessários para
interpretação da ação da Fundação Vitória Amazônica no processo de elaboração do plano de
manejo do parque nacional do Jaú.
As estratégias da FVA para a consolidação do PNJ através da elaboração do referido
plano organizaram-se: (1) por um processo inicial de reconhecimento da situação sócio-
econômica dos moradores do parque; (2) acompanhado por mecanismos de construção de sua
legitimidade frente aos mesmos moradores e ao IBAMA; (3) pela construção de uma vasta
179
compilação de pesquisas bio-ecológicas sobre a biodiversidade do parque. (4) a integração entre
dados sócio-econômicos e bio-ecológicos numa base comum de interpretação geográfica (SIG);
(5) a formulação de ações sócio-educativas com o objetivo de incorporar o modo de vida
ribeirinho a um campo de possibilidades restrito às diretrizes conservacionistas; (6) a construção
de uma proposta de adequação de presença humana com proteção integral de uma unidade de
conservação; e, por fim, (7) a elaboração de um plano de manejo participativo, porém delimitado
por parâmetros cientificistas.
3 – Os limites da mediação.
No mesmo ano de aprovação e publicação do plano de manejo do parque nacional do Jaú,
1998, a FVA colocava nos seguintes termos seu posicionamento frente às relações conflituosas
inerentes aos conservacionismo:
A FVA reconhece hoje, explicitamente, que a consolidação de uma UC na
Amazônia implica a negociação com distintos grupos de interesse (direto e
indireto) conflitantes em torno da área (...). Construídas por uma combinação de
definições jurídicas, planos governamentais, interpretações científicas, pressões
setoriais e outros, as UCs de uso indireto em geral e o Jaú em particular não são
objetos acabados. A sua abertura e a possibilidade que oferecem de múltiplas
semiotizações e apropriações são as mesmas que caracterizam quaisquer
artefatos socioculturais produzidos por membros de uma sociedade particular,
vivendo num tempo particular. Somos obrigados a avançar na ressignificação
do mundo contemporâneo e na superação dos paradigmas desenvolvimentistas
e conservacionistas vigentes, construindo, pela prática, alternativas ainda não
consolidadas juridicamente, isto é, a integração real de uma população residente
ao manejo efetivo de um Parque Nacional, unidade de conservação de uso
indireto (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998a, p. 106-107).
O anunciamento da escolha de um novo caminho para a conservação da natureza, como o
feito acima, permeia a ação da FVA desde sua inserção no baixo rio Negro, e em especial, na
região do Jaú/Unini/Carabinani. Através da análise do seu histórico de atividades, bem como pela
presente citação, pode-se perceber que a proposta da FVA era, efetivamente, adequar a presença
180
humana em uma unidade de conservação de uso indireto. Não teve a pretensão de propor a
reclassificação da unidade para uma reserva extrativista ou para uma reserva de desenvolvimento
sustentável. Nesse sentido, a classificação “parque nacional” nunca se apresentou como um
entrave para a sua proposta. Sendo uma instituição de pesquisa, a experiência seria perfeitamente
adequada à classificação da unidade, que tem como um dos seus objetivos, a conservação da
biodiversidade para fins científicos.
Quais foram, então, os elementos estratégicos para a efetivação de sua proposta junto ao
Parque Nacional do Jaú? Diante da situação de conflito estabelecida entre IBAMA e moradores,
assim como das necessidades de legitimação como sujeito potencialmente capaz de consolidar a
unidade, a opção da FVA foi a intermediação.
A crise do planejamento centralizado, pretensamente racional, e de feição
hegemonicamente econômica (...) é o marco mais amplo da crise do “padrão de
gestão” das Ucs de uso indireto na Amazônia. (...) os rastros territoriais
deixados por aquele modelo vêm sendo apropriado de diferentes modos por
diversos atores e agências com interesses distintos ou mesmo antagônicos.
Algumas vezes esse interesses são coincidentes, gerando articulações do tipo
“parceria ecológica”, com a identificada entre ONGs ambientalistas e
organizações sociais locais na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (...) de
Mamirauá (...). Outras vezes eles são conflitantes, como parece ser o caso das
UCs de uso indireto na Amazônia brasileira, em particular o caso do Jaú até a
entrada em cena de um novo agente mediador, a FVA, que reconhece os
direitos de “soberania” (por assim dizer) dos grupos sociais locais, sugerindo,
preparando e efetivando a sua inclusão no manejo da Unidade (idem, p. 103).
Desse modo, apesar do mérito de prover a inclusão das comunidades no processo de
consolidação do PNJ, através da participação na elaboração do plano de manejo, a FVA não se
configurou como uma defensora dos interesses dos moradores frente ao IBAMA. Não se colocou
como defensora dos interesses do IBAMA frente aos moradores. Isso não significa afirmar que
em muitos momentos, a entidade, não tenha se colocado em favor dos moradores face aos abusos
do IBAMA. Por outro lado, a FVA contribuiu muito para o arrefecimento das hostilidades entre
181
moradores e IBAMA, com suas ações sócio-educativas e de organização comunitária. Nesse
sentido, ela fortaleceu a legitimidade do IBAMA como órgão gestor e fiscalizador da unidade.
Além desses fatores, vale mencionar que o papel da intermediação situou a Vitória
Amazônica numa posição muito privilegiada nesse processo. Deu a ela condições para a
concretização do seu ambicioso empreendimento científico sobre a situação sócio-econômica e
bio-ecológica do PNJ. As dificuldades do IBAMA em regularizar a situação fundiária dos
moradores ao seu gosto a “desintrusão” da área possibilitaram muitos anos de pesquisa sobre
o impacto” da presença humana articuladas às pesquisas sobre a biodiversidade. Num certo
sentido, o IBAMA, mesmo a contragosto, tem criado as condições para a experiência pretendida
pela FVA.
Essas condições não se restringiram ao processo de elaboração do plano de manejo. Na
continuidade das suas atividades, entre 1997 e 2007, a FVA empreendeu experiências de
organização comunitária e de capacitação de lideranças em Novo Airão, contribuindo para o
aparecimento de diversas associações. A AANA Associação de Artesãos de Novo Airão, a
APNA – Associação dos Pescadores de Novo Airão, a Comissão de Ex-moradores do Rio Jaú são
exemplo de organizações que estabelecem intensa relação com a FVA. Do mesmo modo, no Rio
Unini, área limítrofe do Parque Nacional do Jaú e trabalhada pela FVA, duas associações atuam
no processo de fortalecimento comunitário, a AMORU Associação dos Moradores do Rio
Unini e a AMOTAPI Associação dos Moradores de Tapiira. Além da organização das
comunidades para a conquista de benefícios e direitos junto à prefeitura de Barcelos, a AMORU,
com o apoio da FVA, GTA e WWF, conseguiu junto ao governo federal a implantação da reserva
extrativista do rio Unini, em 21 de junho de 2006
16
.
16
Informações coletas nas observações de campo realizadas para a presente pesquisa, nas cidades de Manaus e Novo
Airão, durante o mês de janeiro de 2007.
182
No aspecto científico, a FVA desenvolveu um projeto subseqüente à elaboração do plano
de manejo, “Janelas para a Biodiversidade
17
”, a partir de uma nova experiência metodológica
para o estudo da biodiversidade, com base no parque nacional do Jaú. Entre 1999 e 2004, os
estudos realizados no período de elaboração do plano de manejo foram redimensionados e
completados com novas pesquisas. Atualmente, a FVA vem trabalhando para a elaboração da
nova versão do Plano de Manejo do PNJ, previsto para o segundo semestre de 2007.
Assim, a condição de mediadora dos conflitos ofereceu condições efetivas para o processo
de consolidação do PNJ em particular, assim como para a consolidação das diretrizes
conservacionistas no baixo rio Negro de forma geral. Mesmo não sendo essa a sua vocação
fundamental, a intermediação possibilitou à FVA a concretização em certa medida de seus
objetivos enquanto instituição.
Contudo, no caso particular do PNJ, a mediação do conflito entre IBAMA e moradores
não significou estabelecimento de uma ordem harmônica. Além da continuidade de atividades
consideradas clandestinas no interior do PNJ, parece haver uma reordenação das estratégias de
oposição ao IBAMA por parte das comunidades ribeirinhas. Esta reordenação traz o conflito para
o interior das diretrizes e representações discursivas próprias do conservacionismo. A capacitação
de lideranças, a organização comunitária e as atividades sócio-educativas, empreendidas pela
FVA, parecem ter dotado os moradores de instrumentos capazes de elaborar mecanismos para a
obtenção de conquistas políticas nos marcos da sustentabilidade e afirmação de sua identidade
17
“Janelas para a Biodiversidade é um projeto participativo elaborado pela Fundação Vitória Amazônica (FVA) para
estabelecer estratégias para inventariar, monitorar e disseminar informações sobre a biodiversidade do Parque
Nacional do Jaú (PNJ) com vistas a dar subsídios ao manejo desta unidade de conservação. Durante a primeira fase
do projeto foram localizadas 12 áreas focais de pesquisas, denominadas Janelas, consideradas prioritárias para o
estudo da biodiversidade do PNJ. Os critérios para delimitação destas áreas foram baseados em fatores que podem
influenciar a distribuição da biodiversidade em escala regional e que foram identificados em oficinas de trabalho e
reuniões técnicas com pesquisadores e técnicos de várias entidades conservacionistas. Além das áreas focais para
estudos, foram identificadas as temáticas de pesquisas consideradas mais relevantes para ampliar o conhecimento e o
manejo da biodiversidade do PNJ” (BORGES, et alli, 2004, p.3).
183
cultural. Desse modo potencializaram as condições de estabelecimento de luta desses grupos
pelos seus direitos em uma linguagem inevitavelmente admitida pelo ambientalismo. Apesar da
presença muito intensa de organizações (governamentais ou não) junto a esses sujeitos, é possível
constatar uma grande dose de autonomia na formulação de suas diretrizes políticas.
Em 19 de maio de 2006, de forma surpreendente, tanto para o IBAMA quanto para a
FVA
18
, a comunidade do Tambor, situada no rio Jaú, foi reconhecida pelo Diário Oficial da
União como um “comunidade remanescente de quilombo”. Esse fato tem como um de seus
articuladores o ex-morador da comunidade do Tambor, Sebastião Ferreira de Almeida, o “Bá”.
Sob sua condução, organizou-se junto à comunidade a Associação de Moradores Remanescente
de Quilombo da Comunidade do Tambor/AM. A ação teve apoio da FIOCRUZ e da Fundação
Palmares. Em entrevista para a constituição da presente pesquisa, “Bá” afirmou ser filho adotivo
de uma das famílias do Tambor, constituída por (ex) escravos que saíram de Sergipe por volta de
1910 para se abrigarem no interior do rio Jaú. “Bá” tem atuação reconhecida junto ao movimento
de ex-moradores e é uma liderança construída no contexto de relações que se desenvolveram no
processo de criação e consolidação do PNJ.
Além da questão antropológica de reconhecimento dos direitos de uma minoria étnica
historicamente marginalizada pela sociedade brasileira, é possível reconhecer nesse processo a
constituição de mecanismos legais de permanência da comunidade do Tambor em seu território.
Em seus aspectos jurídicos, é atribuída ao INCRA a responsabilidade de determinação do
processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por comunidades quilombolas, através do Decreto 4.887, de 20 de novembro de
2003. Nesse sentido há uma possibilidade de reconhecimento pelo INCRA de posse da área do
18
Informação recolhida junto ao Diretor Executivo da FVA, Carlos César Durigan e ao Chefe do PNJ Marcelo
Bresolin em entrevista nas observações de campo para essa pesquisa.
184
parque à comunidade, a partir de sua determinação como quilombola. O artigo 11 da referida lei
trata da possibilidade de sobreposição de territórios quilombolas à unidades de conservação,
dentre outras propriedades do Estado.
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às
áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o
INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a
FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando
garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do
Estado (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4887.htm).
Como se vê, a lei que trata do assunto traz dentro de si uma excessiva generalidade,
deixando em aberto – portanto terreno fértil para uma disputa jurídico-política – as possibilidades
de concretização do processo de demarcação das terras em favor da comunidade. É justamente
nesse campo de possibilidades reconfiguradas pelo novo elemento “quilombo”, que se estabelece
uma nova rede de oposições entre moradores e IBAMA no interior do PNJ. Assim, parece
inevitável um recrudescimento desse conflito. Nesse sentido, a presença de um quilombo ganha
uma simbologia muito intensa. É uma das maiores representações de resistência de nossa história,
tão marcada por relações de dominação e opressão.
Nesse processo de reconfiguração das relações entre os sujeitos presentes no Parque
Nacional do Jaú, é possível detectar as limitações do papel mediador da Fundação Vitória
Amazônica. O gradativo fortalecimento político das comunidades envolvidas nesse contexto,
assim como as atividades empreendidas na luta por seus direitos, coloca em questionamento a
posição que a entidade construiu no processo de consolidação do PNJ. A apropriação do discurso
da sustentabilidade, atrelado as ações afirmativas de caráter étnico-cultural, por parte das
comunidades ribeirinhas pode ser considerada, em grande parte, fruto das atividades sócio-
educativas desenvolvidas pela entidade. É justamente um desses frutos, a auto-identificação da
185
comunidade do tambor como remanescente quilombola, que expôs as limitações da proposta de
ação política engendrada pela FVA. Desse modo, para manter-se fiel aos propósitos de adequar
conservação da biodiversidade à presença humana, talvez seja necessária a redefinição de
posicionamento frente à oposição que se estabelece entre os defensores do conservacionismo
biocêntrico e excludente e as comunidades presentes na bacia do Baixo Rio Negro.
186
Capítulo VII – O diálogo entre o ideal e o possível.
Este último e conclusivo capítulo tem a responsabilidade de promover uma intersecção
entre as duas dimensões até então abordadas nesse estudo. A intenção é estabelecer um diálogo
entre os princípios conceituais da etnoconservação e uma experiência neles fundamentada.
Pretende-se dimensionar as possibilidades de oxigenação da teoria a partir das evidências
oferecidas pela práxis, assim como sugerir alguns possíveis direcionamentos a práxis, a partir da
formulação teórica apresentada. Espera-se, desse modo, oferecer uma problematização que se
constitua num estímulo para a continuidade dos estudos sobre sustentabilidade, em direção a uma
visão abrangente das relações entre humanidade e natureza.
1 – A etnoconservação e a Fundação Vitória Amazônica
Em artigo intitulado “O Parque Nacional do Jaú e a Etnoconservação: A Insurreição dos
Saberes Sujeitados”, o então técnico da FVA, Luis Fernando Souza Santos definiu nos seguintes
termos a ação da entidade juntos aos moradores do PNJ:
(...) podemos perceber a inclusão dos agentes sociais locais nos cálculos de
manejo e gestão, como resultado de uma insurreição de saberes sujeitados
contra os efeitos de poder produzidos pelo discurso biológico preservacionista
que fundamentou a criação desta uc. O discurso conservacionista da FVA, de
pesquisadores não-alinhados ao modelo preservacionista de criação de uc's e
dos agentes sociais residentes em localidades situadas às margens dos rios Jaú,
Unini, Carabinani e Paunini, compõe o mosaico de saberes sujeitados que se
insurgiram contra o discurso até então hegemônico e estão, aos poucos,
desenhando um modelo de concepção de área protegida menos excludente e
autoritário (SANTOS,
2001
, p.2).
Santos reflete sobre a ação da FVA a partir do mesmo referencial teórico utilizado no
presente estudo, ou seja, as relações de poder engendradas por saberes hegemônicos os
187
discursos científicos –, sobre formas epistemológicas periféricas, denominadas de tradicionais.
Assim, confere a FVA uma posição de aliada dos saberes sujeitados na construção de estratégias
de insurgência frente ao conservacionismo biocêntrico. Algum tempo mais tarde, porém, o autor
apresenta um ponto de vista diferente sobre a entidade em sua ação no Parque Nacional do Jaú.
Embora se propusesse a respeitar as especificidades culturais dos grupos sociais
localizados no PNJ, a FVA apresentou um verdadeiro projeto de reinvenção
destes, no qual todo o sistema econômico em que estavam organizados foi
repensado, tendo em vista que “o objetivo geral de todo este debate é a
proteção do PNJ” (...). O discurso construído em torno dos grupos sociais
locais, o aprofundamento do conhecimento dos mesmos, a preocupação em tê-
los presentes nas diversas etapas de elaboração do plano de manejo da unidade,
não ultrapassou o umbral das preocupações biológico-ecológicas
conservacionistas. (...) todo o aumento de conhecimento científico da área do
PNJ – (...) – deve sempre ser situado, considerando a reflexão sociológica
desenvolvida neste estudo, no contexto das práticas de saber e, uma vez que
teoricamente o fio condutor passa pela analítica foucaultiana, práticas de poder.
A construção de um quadro de diversidade biológica do Parque e da
caracterização dos grupos sociais que nele residem, deste modo, é apenas um
elemento que contribui para produção do mesmo. Indica o avanço inexorável do
bio-poder no processo de ambientalização da bacia do rio Jaú (SANTOS, 2002,
p.102 ).
Nesse momento, Santos compreende a FVA como a promotora privilegiada do
conservacionismo biocêntrico e, portanto, responsável pela conformação das comunidades
residentes no parque às suas diretrizes. O autor utiliza-se do mesmo referencial teórico, o saber-
poder de Michel Foucault, para conclusões radicalmente opostas sobre a relação entre a
organização e as comunidades do PNJ. Portanto, num primeiro momento, reconhece a FVA
articulada à resistência dos ribeirinhos contra a premissa de uma conservação restrita e
excludente. Num segundo momento, situa a entidade como articuladora principal do mesmo
modelo conservacionista.
A exposição dessa aparente contradição tem como objetivo oferecer uma interpretação
que permita transcender essas posições dicotômicas e excludentes, para assim compreender a
188
inserção da Fundação Vitória Amazônica em sua complexidade. Pretende-se demonstrar que as
duas perspectivas integram-se num conjunto de relações no qual conflito e complementaridade
transitam no mesmo campo de possibilidades.
Como foi esmiuçado no capítulo II, o estabelecimento de uma relação de poder gera as
condições de surgimento de estratégias de resistência. Esse jogo de relações se no interior de
um campo de ações estabelecido por quem domina, ou seja, quem age sobre a ação do outro.
Aquele que é dominado elabora suas possibilidades de resistência e subversão a partir das
concepções geradas pelo seu saber-fazer submetido. No entanto, o faz no interior dos limites
impostos por aquele que exerce o poder de ação e a partir de instrumentos dominantes,
apropriando-se de elementos exógenos a sua existência. Assim, redireciona esses elementos
contra aquele que determina as relações de poder vigentes. Esse parece ser o caso das relações
que se estabeleceram no processo de consolidação do PNJ. Para tanto, é preciso compreender que
nessa situação em particular, a instituição que inseriu as comunidades aos limites do
conservacionismo biocêntrico, também os instrumentalizou para a resistência contra ele.
A pesca e a caça ilegal apresentaram-se, num primeiro momento, como as formas de
resistência mais comuns frente às imposições que acompanharam a criação do PNJ. Essas
atividades intensificaram-se com a proibição do comércio dos regatões realizada pelo IBAMA, o
que tornou mais difícil o acesso de mercadorias industrializadas por parte dos ribeirinhos. Para
muitos moradores, a pesca e caça ilegal tornaram-se a garantia de sobrevivência e continuidade
no interior do parque. Assim, essas atividades representam, também, uma forma de resistência
política, na medida em que expressam a luta pela permanência na área.
Num segundo momento, o fortalecimento das estratégias de resistência foi diversificado
através da incorporação dos signos de sustentabilidade e autodeterminação cultural por parte das
comunidades. Porém, utilizadas de forma criativa e autônoma. Os primeiros frutos dessa
189
dinâmica aparecem incipientemente na região do Jaú, com a auto-declaração como remanescente
quilombola realizada pela comunidade do Tambor. A FVA, portanto, situa-se nessa tensão entre
complementaridade e conflito. Foi do seu esforço para a organização comunitária que surgiu a
instrumentalização necessária para que a comunidade e seus líderes buscassem no passado os
seus elementos de resistência. A mesma organização comunitária que possibilitou a consolidação
da autoridade do IBAMA, assim como a incorporação das concepções conservacionistas junto à
cultura ribeirinha rio-negrina.
O estabelecimento dessa dinâmica de relações de poder e estratégias de resistências,
implica na reflexão sobre a interação entre organizações não-governamentais e as populações
tradicionais. As ONG’s têm sido articuladoras privilegiadas na constituição de práticas políticas
ambientalistas e conservacionistas. No caso aqui estudado, a Fundação Vitória Amazônica
assumiu o papel de mediadora entre ação estatal e a comunidade tradicional. Não evidências
para a interpretação da referida ONG no sentido de agir em substituição ao Estado, mas como
alternativa para o Estado. É importante lembrar que a FVA surgiu da iniciativa de,
principalmente, pesquisadores do INPA, como uma forma de garantir maior rapidez e menor
sofrimento burocrático para o financiamento de suas pesquisas. Assim como, para agilizar a
relação entre produção de conhecimento e ação conservacionista. Como foi demonstrado, a
presença institucional do INPA e de outras instituições públicas de pesquisas foi constante nas
atividades da FVA. Além disso, como foi exaustivamente salientado, a FVA contribuiu para a
legitimidade da ação estatal, via IBAMA, no processo de consolidação do PNJ.
Por outro lado, como populações consideradas tradicionais, as comunidades ribeirinhas
residentes no interior do PNJ foram um dos alvos principais de atuação da FVA. O elemento
exógeno de identificação foi, após a criação do parque, o termo “morador”. Esse termo parece ter
sido incorporado pelos ribeirinhos mesmo quando suas ações voltavam-se frontalmente contra o
190
parque. Como elemento de incorporação e identificação, serviu para adequar a presença humana
ao processo de elaboração do plano de manejo. Tornou-se símbolo de resistência quando, por
exemplo, foi utilizado para a construção de instâncias para a conquista de direitos, como a
“Comissão do Ex-Moradores”. Postas em relação, a ONG “FVA” e a população tradicional
“moradores” estabeleceram uma reciprocidade permeada, fundamentalmente, pela questão da
regularização fundiária.
Colocando-se a favor da permanência dos moradores, a FVA alimentou um desejo de
resistência que acabou por não excluir a resignação de uma possível retirada, sucessivamente
marcada na memória dos moradores por ondas de levantamentos e recadastramentos. Na
condição de, ao mesmo tempo, aliada da população na questão fundiária e parceira do IBAMA na
consolidação do parque, a FVA engendrou-se num posicionamento intermediário, vedada à
possibilidade de colocar-se ao lado dos moradores na assunção de uma luta aberta em defesa da
posse da terra. Diante do conflito entre os agentes do conservacionismo estrito e os grupos
extrativistas residentes no Jaú, a opção pela conservação étnica realizada pela Fundação Vitória
Amazônica foi coerente, num primeiro momento, com a perspectiva mediadora de sua atuação.
Assim, a conservação da biodiversidade poderia, segundo essa proposta, coadunar com a
presença desses grupos humanos. No entanto, esse posicionamento mediador foi suficiente para a
adequação dos princípios da etnoconservação de forma efetiva?
Como proposta político-acadêmica que defende uma implicação indissociável entre
populações tradicionais e paisagens, a etnoconservação apresenta-se como uma forma de gestão
compartilhada dos recursos naturais entre Estado, entidades ambientalistas e populações locais.
Prevê a orientação do manejo regido a partir da gica, saberes, práticas e usos específicos dos
povos tradicionais presentes em unidades de conservação. São condições para a sua efetividade,
(1) a constituição de relações de poder provenientes das comunidades, tornado-se assim gestoras
191
privilegiadas; (2) a garantia legal de posse da terra por parte das comunidades em questão; (3) e a
complementaridade de relações entre o conhecimento cnico-científico e o tradicional-
mitológico. Cabe-nos refletir como o papel mediador da FVA relacionou-se com as condições
propostas por esse ponto de vista teórico da etnoconservação.
O empoderamento das comunidades primeira condição para a etnoconservação não
poderia ter-se realizado como uma cessão pura e simples do gerenciamento/manejo do PNJ às
comunidades, no seu sentido burocratizado e administrativo. A atribuição de comando da gestão
implica na garantia e fortalecimento do seu modo de vida tradicional, assim como a sua ação
junto à paisagem.
A sustentabilidade apresentada por esses grupos, como se sabe, é definida pelo respeito à
ciclicidade e sazonalidade da natureza. O que não significa, contudo, uma mera submissão ao
domínio natural pela ausência de recursos tecnológicos, como sugere o simplismo biocêntrico e
cientificista. uma outra lógica de relações nesse envolvimento, próximo daquilo que Morin
sugere como a dupla pilotagem: a capacidade de guiar e, ao mesmo tempo, ser guiado pela
natureza (Morin, 2002, p. 116). No entanto, sabe-se também que o extrativismo praticado pelas
comunidades do Jaú está articulado, de forma submissa e oprimida, ao conjunto de relações
capitalistas. A criação do Parque Nacional do Jaú não extinguiu essas relações, apenas tornou-as
ilegais. Assim, promover uma efetiva gestão étnica implica num duplo movimento em articulação
com as relações de produção econômicas da vida dos ribeirinhos. Esses dois movimentos se
apresentam no âmbito endógeno (o conjunto de relações internas da reprodução social ribeirinha)
e exógeno (o conjunto de relações externas que articulam os moradores do parque à dinâmica
capitalista hegemônica).
192
O primeiro momento implica em viabilizar a reprodução da vida sócio-econômica das
comunidades ribeirinhas, levando-as em consideração como um elemento presente e atuante nas
interações bio-ecológicas.
A forma e o uso da terra pela população aborígine, e a seguir também pelas
populações de ‘caboclos’ neobrasílicos imigrantes, foi e continua sendo a
shifting cultivation, quer dizer, a do estabelecimento de pequenas áreas de
derrubada e de queimadas, ‘roças’, bem distantes entre si. Em conseqüência da
rápida exaustão, estas roças são, dois a três anos após, invariavelmente
abandonadas, iniciando-se alhures, da mesma maneira, e por igual lapso de
tempo, novas plantações. Nas áreas abandonadas cresce rapidamente uma mata
secundária (‘capoeira’), a qual 30 ou 40 anos depois é reconhecível apenas por
um botânico e por este distinguível da floresta primitiva, em vista de algumas
espécies peculiares de árvores. As ‘alfinetadas’ na floresta primitiva, coesa,
saram inteiramente no decorrer deste período (SIOLI, 1985, p. 216).
Esse modelo de organização descrito por Sioli de forma geral na Amazônia, pode ser
encontrado também na região do Rio Jaú.
O sistema de agricultura tradicionalmente praticado na Amazônia, característico
das populações indígenas e das unidades de produção familiares, é o sistema de
pousio, no qual a fase de cultivo agrícola é regionalmente conhecida como roça.
Os levantamentos agrícolas realizados no PNJ fornecem dados a partir do
mapeamento e do inventário dos cultivos desenvolvidos (...). O sistema de roças
(...) envolve uma integração ecológica sustentável entre a agricultura e o uso
dos recursos florestais. (...) A plantação de roças é um processo desenvolvido
não somente a partir de conhecimentos técnicos, mas também de um conjunto
de conhecimentos tradicionais, crenças e costumes relacionados aos fenômenos
da natureza (...) (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b, p.158-160).
Como a predominância das análises sobre as ações humanas concentra-se na linguagem
quantitativa, foi determinado pelos estudos da FVA que essas atividades agroflorestais ocupavam
0,054% da área total do parque em 1992 (idem). Essa produção, quase totalmente voltada para o
auto-consumo, está articulada ao extrativismo vegetal e animal, que, por sua vez, é utilizado tanto
para o auto-consumo quanto para o estabelecimento de relações econômicas exógenas. É digno
de nota que a FVA desenvolveu um intenso trabalho de zoneamento levando em consideração o
uso das necessidades humanas no PNJ.
193
Ao considerar o ser humano como elemento partícipe da dinâmica natural, poder-se-ia
compreender a contribuição da sua presença na dinâmica de reprodução das relações ecológicas.
É preciso levar em consideração, a concepção de que a floresta amazônica não vive num eterno
clímax estático, mas tende a uma estabilização ou seja, ao clímax por meio de irrupções e
regenerações das próprias interações ecológicas. As ‘alfinetadas’ humanas na floresta podem
fazer parte desse dinamismo.
(...) a qualidade eco-organizadora mais notável não é manter sem cessar, em
condições iguais, por meio de nascimentos e mortes os estado estacionário do
clímax, mas ser também capaz de produzir ou inventar novas reorganizações a
partir de transformações que sobrevêm no biótopo e na biocenose. Assim
aparece-nos a virtude suprema da eco-organização: não é estabilidade, mas a
aptidão para construir novas estabilidades; não é o retorno ao equilíbrio, mas a
aptidão da reorganização a reorganizar a si mesma de novas maneiras, sob o
efeito de novas desorganizações. (...) Assim observa-se que as associações entre
uma fauna e uma flora dadas atingem, após uma seqüência de estágios
transitórios, o estado de maturidade que é o clímax. Uma perturbação
desorganizadora rompe esse clímax, determina fenômenos ditos de
‘rejuvenescimento’, os quais conduzem, por etapas, a novo clímax
(MORIN,
2002, p. 51).
Importa refletir que essas aberturas na floresta não se restringem a fenômenos antrópicos.
Dentre outros, existe na região do rio Jaú um fenômeno de derrubada de árvores por fortes
rajadas de ventos.
As quedas de árvores por causas naturais são responsáveis pela grande
dinâmica das matas tropicais, que pode variar em diferentes escalas: indo desde
pequenas clareiras, causadas pela queda de uma única árvore, até a derrubada
de grandes áreas causadas por ventos fortes. Esse fenômeno (blowdowns) tem
sido reportado em regiões da América do Sul e sudeste da Ásia. (...) a
distribuição geográfica indica que são mais freqüentes no interflúvio dos rios
Japurá e Negro, onde se localiza o Parque Nacional do Jaú. Na imagem de
satélite de agosto de 1994, observa-se a ocorrência de 36 clareiras causadas por
ventos fortes, totalizando uma área de 6.420 ha, a maior parte na região oeste
do Parque. Essas perturbações catastróficas têm importantes implicações na
dinâmica sucessional da floresta (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA,
1998b, p.97-98).
194
A comparação entre o fenômeno natural de derrubada de árvores (0,28% da área total do
parque) e das áreas utilizadas para agricultura (0,054%) demonstra que, na especificidade do
Parque Nacional do Jaú, as atividades humanas têm um grau de abrangência mínimo em relações
aos próprios fenômenos naturais, guardadas as especificações de cada fenômeno. O biocentrismo
conservacionista considera, de forma geral, as clareiras por causas naturais fatores muito
importantes para o processo de sucessão florestal. Mas, invariavelmente, tomam as roças e
queimadas antropogênicas como fatores negativos para a biodiversidade. A relação agricultura-
extrativismo enseja uma organização sócio-econômica que dificilmente apresentaria riscos
efetivos para o processo de sacralização da biodiversidade. Portanto, o conjunto de relações
econômico-ecológicas das comunidades ribeirinhas não engendra ameaças significativas a
degradação da paisagem do PNJ. Delegar poder de gestão aos ribeirinhos implica em garantir
essa dinâmica interna que integra o humano ao natural.
O segundo momento de relações o exógeno talvez apresente ameaças sérias a
sustentabilidade da dinâmica sócio-ecológica do PNJ. A prática extrativista nos rios da Amazônia
é a ponta produtiva de um complexo processo econômico de uso dos recursos naturais. Essas
relações alcançam uma territorialidade internacionalizada. O modelo de exploração do trabalho
ribeirinho é denominado de sistema de aviamento. Nele estabelece-se uma relação de
dependência econômica entre o regatão e o morador extrativista das margens dos rios. Um
endividamento contínuo atrela os dois agentes num padrão exploratório que tem suas raízes no
período áureo da produção de borracha. A dependência moral entre os dois, no entanto, é fruto do
antigo processo de catequização missionária que Amazônia é palco desde o século XVII. Pelo
regatão, chegam as mercadorias do mundo exterior ao ribeirinho e os produtos da floresta ao
atacadista de Manaus. Assim, esses produtos atingem o mercado nacional e internacional.
195
A relação que as populações locais mantêm com as esferas externas ao seu
contexto com o mercado através da comercialização dos seus produtos e na
obtenção de mercadoria para manutenção de seu grupo – contribui para a
geração de mudanças. Embora de forma mediatizada e não determinista, o
mercado detém força até certo ponto imperativa ao incidir no plano local que
exige o estabelecimento de vínculos diferentes dos tradicionais, seja na relação
com a natureza, seja no interior do próprio grupo. Faz-se notória a relativa
independência que os moradores possuem em relação às mercadorias, apesar da
acentuada diminuição nas práticas de troca de produto entre os grupos
domésticos e o aumento na troca dos produtos por mercadorias, se comparados
às populações nativas em contextos similares. Observa-se a diversificação
crescente nas formas de comercialização diante das restrições à entrada dos
regatões no rio pelo IBAMA, que impede a entrada de comerciantes no rio Jaú
desde 1982. Observa-se que eles utilizam diferentes formas para vender os seus
produtos, sobretudo a venda direta (em Novo Airão), a negociação com o
regatão e a troca entre vizinhos (BORGES et alli, 2004, p.74-75).
A pesca e caça ilegal são elementos contemporâneos que se incorporam às relações de
produção e comercialização do extrativismo, atuantes sobre os ribeirinhos viventes no PNJ. As
restrições ambientalistas ao comércio no parque podem ser, paradoxalmente, as responsáveis pela
intensificação das práticas ilegais. O custo de locomoção para fora dos limites do parque até as
cidades mais próximas para obtenção de mercadorias, fez da caça e da pesca para
comercialização, atividades mais procuradas por serem mais rentáveis. Assim, por essas vias, as
relações econômicas capitalistas engendram-se num ambiente não totalmente moldado por elas,
mas que intensificam a produção de atividades o-sustentáveis e opressoras aos ribeirinhos. As
relações capitalistas de produção impelem, desse modo, a procedimentos destrutivos junto à
natureza, levando a uma espécie de “falha metabólica” nas relações entre a ação humana e os
fenômenos naturais. Foster evidencia a constatação de Marx sobre esta falha.
Um componente essencial do conceito de metabolismo sempre foi a noção de
que ele constitui a base que sustenta a complexa teia de interações necessária a
vida e viabiliza o crescimento. Marx empregou o conceito de “falha” na relação
metabólica entre os seres humanos e a terra para captar a alienação material dos
seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições naturais que
formaram a base de sua existência o que ele chamou “a(s) perpétua(s)
condição(ões) da existência humana imposta(s) pela natureza”. Insistirem em
que essa tal falha metabólica entre os seres humanos e o solo foi em larga
196
escala criada pela sociedade capitalista era afirmar que as condições de
sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido violadas. “A produção
capitalista”, observou Marx, “volta-se para a terra depois que esta foi
exaurida pela sua influência e depois que as suas qualidades naturais foram por
ela devastadas” (FORSTER, 2005, p.229).
A generalização do aspecto destrutivo da relação humano-natureza a todas as formas
sócio-culturais de humanidade, realizadas pelos conservacionistas biocêntricos, portanto, é a
generalização do modus operandi capitalista de produção. Especificidades étnicas podem exercer
outras formas de relação metabólica com a natureza. É imperioso atentar, portanto, que as
possibilidades de ruptura das relações sócio-ecológicas no Parque Nacional do Jaú residem,
preponderantemente, no grau de articulação entre as comunidades ribeirinhas e as relações
capitalistas de produção e troca.
Um papel reclamado pelas organizações não-governamentais, tem sido a tentativa de
promoção de geração de renda para populações tradicionais através da comercialização de
produtos sustentáveis. Essa tentativa de mediação entre o mercado capitalista e comunidades
tradicionais tem como objetivo gerar alternativas para evitar atividades predatórias sobre a
paisagem, assim como garantir a inserção desses grupos étnicos a partir de atividades adequadas
às suas especificidades sócio-culturais. Experiências inovadoras de comercialização sustentável
tem alcançado êxito nesses objetivos. A Fundação Vitória Amazônica também lança mão dessas
estratégias.
A integração dos moradores de Novo Airão nas discussões e elaboração do
Plano de Manejo do Parque, e o debate sobre a importância do desenvolvimento
do ecoturismo e da comercialização do artesanato produzido pelos moradores
como alternativas econômicas, colaboraram para a criação do Projeto
FIBRARTE, da FVA. Como fruto de amplas discussões e estudos no âmbito
desse projeto, criou-se a Associação dos Artesãos de Novo Airão. Buscou-se
constantemente potencializar as organizações populares que estão se formando
em Novo Airão e no interior do PNJ com vistas à melhoria de suas condições e
da qualidade de vida, a partir de alternativas econômicas sustentáveis que
197
reduzam os impactos negativos sobre os recursos naturais pela incorporação de
procedimentos adequados na relação com o meio ambiente, num processo que
proporcione informações, favoreça a articulação das organizações e estimule o
debate, elevando o nível do exercício da cidadania combinado ao compromisso
ambiental com as gerações presentes e futuras premissa fundamental de um
desenvolvimento sustentável (FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA, 1998b,
p.97-98).
Recentemente, a FVA sistematizou essas atividades com a criação do Programa de
Alternativas Econômicas. Até o momento de redação desse texto, as afirmações contidas no site
da instituição referem-se à primeira fase de desenvolvimento desse programa, denominado de
Diagnostico Participativo.
O diagnóstico está sendo a ferramenta que guiará o recém criado Programa de
Alternativas Econômicas da FVA no planejamento de uma estratégia de ação
para a área do médio e baixo rio Negro (campo de atuação da FVA) referente à
organização das atividades econômicas e a comercialização de produtos das
comunidades e entidades locais que tiverem interesse em participar deste
processo. Nesta primeira fase, o PAE se concentrará na realização do
diagnóstico para atualização dos dados sobre a situação ecológica e econômica
da exploração dos recursos naturais e das potencialidades das
comunidades/grupos participantes. (...) Em uma segunda fase, mais ativa e
propositiva, ainda a ser planejada ao final dos trabalhos, o objetivo do
programa será trabalhar pesquisas participativas (economia, produção,
comercialização, sustentabilidade, manejo etc.), implementação e viabilização
das atividades econômicas surgidas no diagnóstico e buscar resolver, também
de forma participativa, as questões relativas à comercialização dos produtos,
busca e análise de mercado (www.fva.org.br).
De modo geral, projetos de inserção mercadológica das comunidades tradicionais têm
alcançado frutos positivos no processo de geração de renda e de manejo sustentável. No entanto,
essas atividades implicam necessariamente na formulação de estratégias que não pertencem ao
conjunto de concepções do modo de vida dessas populações. É imperativo, para que esses
projetos frutifiquem, a inserção de uma lógica produtivista e lucrativa exterior ao conjunto de
princípios orientadores do modo de organização econômico-ecológica. É necessária, também, a
fetichização da etnicidade desses grupos sociais, constituindo-os assim, em mercadoria. Por outro
198
lado, na medida em que a atividade de produção e comercialização sustentáveis torna-se um
importante fator de geração de renda à população, o tempo de trabalho e o esforço coletivo de
produção acabam por interferir na organização econômica. Numa terminologia marxiana,
promove-se um processo de reestruturação das relações de produção internas às comunidades
tradicionais e indígenas. Relações que, como vimos, são parte integrante fundamental da
incorporação desses grupos ao conjunto de interações ecológicas em determinado bioma. Além
disso, esse processo de inserção mercadológica pode provocar tendências de especialização de
trabalho e produção em atmosferas onde a não-especialização configura-se como determinante na
articulação da vida econômica endógena.
Em suma, grande parte dos programas e projetos de geração de renda por comercialização
de produtos sustentáveis, solidários, étnicos, etc., não rompem com a lógica própria das relações
capitalistas. Fazem parte do conjunto de atividades características do desenvolvimento
sustentável. Por isso, não conseguem ultrapassar a lógica de produção de desigualdades e
degradação que pretendem combater. A garantia de reprodução da sustentabilidade dos grupos
étnicos envolvidos na etnoconservação encontra grandes dificuldades, pois a introdução de
práticas capitalistas resulta no comprometimento da sustentabilidade efetiva.
Nesse sentido, é de importância fundamental discutir, não só emergências de organizações
não-capitalistas e sustentáveis, mas também o estabelecimento de formas de circulação e troca
igualmente não-capitalistas. Normalmente, essa discussão é considerada inviável e utópica.
Reside nesse debate um processo de naturalização dos princípios de regulação mercadológicos do
capitalismo. No entanto, as relações comerciais de troca de bens (materiais ou imateriais) não é
um fenômeno unicamente capitalista; existem em todas as formas de organização econômica.
Marcel Mauss contesta a idéia de que as culturas não-ocidentais limitavam-se ao
199
empreendimento de uma economia natural, voltada para o autoconsumo e para o escambo.
Demonstrou, também, a existência de uma lógica diferenciada de comercialização:
Descreveremos os fenômenos de troca e de contrato nessas sociedades que não
são destituídas de mercados econômicos, como se tem pretendido – pois o
mercado é um fenômeno humano que, ao nosso ver, não é estranho a nenhuma
sociedade conhecida mas cujo regime de troca é diferente do nosso (...). Em
primeiro lugar, não são indivíduos, e sim coletividades que se obrigam
mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas
morais clãs, tribos, famílias que se enfrentam e se opõem, seja em grupos
face a face, seja por intermédio dos seus chefes, ou seja, ainda nas duas formas
ao mesmo tempo. Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e
riquezas, (...), coisas exclusivamente úteis. Trata-se, antes de tudo, de
gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, (...), feiras em que o mercado é
apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um
termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente. Enfim, essas
prestações e contra-prestações são feitas de uma forma sobretudo voluntária,
por presentes, regalos, embora sejam no fundo, rigorosamente obrigatórias (...).
Propusemos chamar tudo isso de sistemas de prestações totais (MAUSS, 2002,
p. 42-45).
Um dos aspectos mais interessantes dessa outra racionalidade econômica é que a
circulação se opera por meio da concessão e da dádiva, formas opostas à comercialização
capitalista, orientada pelo acúmulo, compra e expropriação. A obrigação de oferecer constitui um
importante instrumento de socialização de bens e relações, possibilitando um processo não-
cumulativo que restringe a possibilidade de edificação de desigualdades sociais. Uma economia
da dádiva, portanto, se constitui a partir de uma inversão de sentido no processo de
comercialização vigente; assim como, pela circulação de um complexo de significações e práticas
que extravasam a simples troca de mercadorias. Num esforço coletivo de proporções históricas, a
viabilidade de sobrevivência das configurações sócio-culturais não-capitalistas e sustentáveis,
passa pela reinvenção de um paradigma de circulação e troca, no qual experiências de produção,
tecnologias, alianças e compromissos sociais permitam articular essas configurações. A
emergência de um novo modelo de circulação não é responsabilidade de uma única instituição ou
200
grupo social. Implica num processo amplo de reformulação sócio-econômica, que deve envolver
movimentos sociais, instituições e grupos não-alinhados com o discurso dominante sobre a
sustentabilidade. Isso não significa desprezar as necessidades imediatas de geração de renda e
redução da pobreza, não reconhecer as exigências reais de sobrevivência desses grupos no
complexo mundo contemporâneo. Contudo, é parte fundamental da reflexão sobre a
sustentabilidade, buscar os caminhos que ultrapassem a noção limitada de desenvolvimento
sustentável.
Desse modo, o estabelecimento de relações de poder a partir das comunidades tradicionais
como condição para a etnoconservação articula-se à capacidade desses grupos em manter sua
lógica de produção e reprodução econômico-ecológica do ponto de vista endógeno. Assim como,
em resistir a um conjunto de relações exógenas que possa conduzi-los a um processo de
proletarização e de degradação da paisagem da qual são partícipes. Constituir poder de decisão na
gestão conservacionista implica em garantir o fortalecimento de sua identidade sócio-cultural,
para tornarem-se sujeitos do processo no qual estão inseridos. Mas, como vimos, a constituição
de relações de poder a partir das comunidades pode materializar-se enquanto apropriação dos
elementos exógenos para sua reordenação segundo a lógica endógena de cognição-ação.
Essa constatação advém, justamente, da reflexão sobre a segunda condição de
estabelecimento da etnoconservação a garantia legal de posse da terra por parte das
comunidades. Esse ponto fundamental na relação entre FVA e moradores do PNJ, conheceu
conquistas significativas por parte da ação relativamente autônoma das comunidades, cristalizada
no caso já comentado sobre a comunidade do Tambor. Essas considerações não minimizam a
atuação da FVA no processo de discussão sobre a presença dos moradores no parque. Levando-se
em consideração, ainda, as dificuldades inerentes a defesa de uma proposta que não conta com
uma fundamentação jurídica, na medida em que a categoria “parque nacional” não admite a
201
presença humana na gestão conservacionista. Não despreza, também, as grandes resistências
apresentadas pelo IBAMA, que é composto por técnicos que, de forma geral e com raras
exceções, insistem numa visão de conservação “conservadora”, restritiva e fiscalizadora.
Finalmente, a complementaridade científico-mitológica terceira condição para
etnoconservação. No processo de consolidação do Parque Nacional do Jaú, o conhecimento
científico agiu preponderantemente sobre o conhecimento tradicional, restringindo-lhe os limites
de atuação e colocando-o como auxiliar na busca de elementos para observação da
biodiversidade. Além disso, a composição saber-fazer dos ribeirinhos foi constantemente
colocada como objeto da análise científica quase que exclusivamente do ponto de vista
quantitativo. Um indicativo persistente dessa preponderância foi a utilização indiscriminada do
termo “impacto nos relatórios e documentos da FVA. Do ponto de vista da biologia da
conservação, a palavra é utilizada para determinar toda e qualquer ação humana em relação à
natureza. Terborgh, conhecido conservacionista biocêntrico, refuta, a partir de um evolucionismo
grosseiro, a especificidade dos modos de vida não-ocidentais em relação ao uso humano dos
elementos naturais. Para o autor, se populações indígenas e extrativistas não são destruidoras, isto
se deve unicamente ao fato de se configurarem em “museus vivos”.
(...) é inevitável que mesmo as sociedades mais tradicionais venham
eventualmente ser acordadas pelo mundo moderno e, quando isso acontecer,
não existirá um ponto natural de parada além da completa assimilação da
cultura dominante. O ponto final da acumulação é um estilo de vida como o
nosso repleto de cidades, infra-estrutura de comunicação e transporte e
economia de mercado – um estilo de vida que é incompatível com o conceito de
parque ou de preservação da natureza. As populações indígenas que vivem
dentro de áreas protegidas não podem, então, se juntar ao principal fluxo
econômico e social sem transgredir as definições legais e comprometer
severamente a proposição de conservar a natureza da área (TERBORGH, 2002,
P. 336).
202
A partir dessas considerações, o autor afirma que toda ação humana é inevitavelmente
impactante para a natureza e pode ser mensurada por uma simples equação matemática.
(...) então o que propomos em relação a isso? Por questão de princípio, parques
livres de pessoas devem ser sempre a meta final. (...) Mesmo que a presença de
residentes dentro do parque não possa parecer ameaçadora, ela eventualmente
se tornará, à medida que seu número crescer e seu estilo de vida mudar. Toda e
qualquer medida proativa para minimizar impactos humanos dentro de áreas
protegidas deve contar com a inevitável tendência das populações humanas de
crescer ao longo do tempo. O impacto da população humana no ambiente é
representada pela seguinte fórmula: Impacto = (número de humanos) x (o
consumo per capita de recursos) x (um “fator tecnológico”) (idem, p. 337).
Esse libelo malthusiano demonstra a tendência dos conservacionistas biocêntricos em
tomar a presença humana como impactante em relação às interações ecológicas. O ser humano é
inevitavelmente e aprioristicamente considerado um elemento exógeno e perturbador das
referidas interações. Desse modo, o que determina a nocividade da presença humana é a sua
densidade demográfica. Poucos seres humanos, pouca degradação; muitos seres humanos, muita
degradação. Os levantamentos sócio-econômicos empreendidos pela FVA sempre demonstraram
a não-degradação das atividades ribeirinhas, porém essas sempre foram classificadas pelo termo
“mínimo impacto”. Assim, essas pesquisas não ofereceram subsídios para compreender as
múltiplas dimensões da ação humana no conjunto das interações ecológicas, nem das
possibilidades de diversificação da biodiversidade através das atividades antrópicas.
Desse modo, é possível notar que a FVA desenvolveu uma práxis orientada para a
etnoconservação, porém, manteve-se atrelada a conceitos e concepções constitutivos da biologia
da conservação. A proposta de incluir a presença humana na conservação da natureza foi
defendida a partir de concepções que tomam as duas dimensões como realidades antagônicas e
excludentes. Essa não-correspondência entre concepção e ação, pode ter comprometido os
esforços da FVA em construir argumentos capazes de demonstrar a viabilidade da presença
203
humana no PNJ, junto, principalmente, ao IBAMA. Assim como, ao conjunto de instituições,
movimentos e sujeitos que compõem a legitimidade das atividades relacionadas ao
ambientalismo.
Por fim, a análise sobre a relação entre a FVA e a população ribeirinha do PNJ a partir da
ótica sobre o conflito entre saberes, permite um breve questionamento sobre a idéia de
complementaridade entre mito e razão, presente na maior parte dos estudiosos da
etnoconservação. A dinâmica cio-ecológica imersa na história de formação e consolidação do
PNJ demonstrou um intenso jogo de relações de poder e estratégias de resistência, no qual a
complementaridade não teria sido produzida automaticamente. A apropriação do saber-fazer
cientifizante e seus efeitos pelo saber-fazer mitológico, ou seja, a incorporação das concepções e
práticas conservacionistas exteriores ao mundo dos ribeirinhos do Jnas suas estratégias de
resistência, produziu as condições necessárias para as comunidades tornarem-se interlocutoras
privilegiadas da presença humana na unidade de conservação. Nesse sentido, parece válida a
máxima proposta por Morin: “Os antagonismos, sem deixar de ser antagonismos, tecem
complementaridades” (2002, p. 77).
É possível, portanto, pensar em complementaridade como a constituição de uma relação
harmônica? Talvez a complementaridade seja, antes, resultado de um jogo de relações
conflituosas.
204
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