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Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela,
meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Vou
dormir". E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de conciliar o sono
me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a
vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém
tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era
de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de
Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu
despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos,
impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois, principiava a
me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as idéias de uma
existência anterior; o assunto do livro se desligava de mim, eu ficava livre para
me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por
estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém
ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa,
incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que
horas poderiam ser; ouvia o silvo dos trens que, mais ou menos afastado, como
um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre
a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima
parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança pela
excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação
recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio
da noite, e pela doçura próxima do regresso. (PROUST, 2003a, p. 9)
Podemos observar que a leitura, conforme se apresenta na passagem acima,
também assume uma dimensão mítica, além de mística, que pode, igualmente, ser
percebida no trabalho de Diana Werkmeister, pois, ao analisar as formas pelas
quais se dá o encontro de seus entrevistados com os livros, a pesquisadora consta-
tou que isso ocorre de quatro formas distintas, que dependem da natureza de cada
um, bem como de suas visões de mundo, interesses pessoais, e formas de sentirem
a vida.
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Embora saibamos que, em nenhum momento de seu trabalho, houve a in-
tenção por parte da autora de descobrir algo que ao menos se assemelhe a um mito
de leitor, conseguimos, em nossa leitura, perceber que isso ocorre.
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Ressaltamos que essas quatro “formas de encontro com os livros” foram observadas entre aqueles entrevis-
tados, especificamente, ou seja, outros leitores poderão enxergar o ato de ler de outras formas, que poderão
ser associadas a outros mitos.