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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
TAIS GONÇALVES BERNARDO
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ARARAQUARA- SP.
2008
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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
TAIS GONÇALVES BERNARDO
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LE BESTIAIRE OU CORTÈGE D’ORPHÉE
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Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de
pós Graduação em Estudos Literáriosda Faculdade de
Ciências e Letras Unesp/Araraquara, como requisito
para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Teorias e críticas da poesia
Orientador: Silvana Vieira da Silva
Bolsa: Fundo de Desenvolvimento da Educação em
São Paulo - FUNDESP
ARARAQUARA-SP
2008
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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
TAIS GONÇALVES BERNARDO
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Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras UNESP/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Teorias e críticas da poesia
Orientador: Silvana Vieira da Silva
Bolsa: Fundo de Desenvolvimento da Educação em
São Paulo - FUNDESP
Data de aprovação: 14/03/2008
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: ProfªDrª Silvana Vieira da Silva
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Campus Araraquara
Membro Titular: ProfªDrª Guacira Marcondes Machado Leite
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Campus Araraquara
Membro Titular: ProfªDrª Norma Wimmer
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Campus
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Para a minha família, especialmente minha e, primeira
incentivadora, receptora das minhas ansiedades e sempre
disposta e me dar colo.
Kelly Martins, colega e companheira de mestrado cujos e-
mails formaram uma literatura repleta de palavras e apoio mútuo
e a quem agora chamo de amiga.
Carlos Tadeu Rosa, grande amigo e apoio técnico nos
momentos em que as máquinas entravam em pane.
A todos os amigos sem fronteiras que vivenciaram esses
dois anos de trabalho dando-me o conforto necessário para não
sair de órbita.
AGRADECIMENTOS
À Silvana Vieira da Silva que me apresentou ao Guillaume Apollinaire, contribuiu de forma
significativa para o meu crescimento intelectual compartilhando seus livros vindos da Cidade-
Luz e pela orientação séria, responsável e verdadeira com nuances de amizade.
À Guacira Marcondes Leite por transmitir e despertar o gosto e a paixão pela literatura francesa.
À Secretaria de Educação de São Paulo, pela bolsa concedida, que possibilitou a concretização de
um sonho e o incentivo para a formação de seus professores a fim de garantir um melhor ensino
aos nossos alunos.
“...os animais... trazem-me sinais de mim, provam
claramente que os contém em si mesmos. Pergunto-me onde
terão adquirido esses sinais. Será que em tempos remotos?”
(Walt Whitman)
RESUMO
A PRESENÇA DA BULA, DO LIRISMO E DA NARRATIVA EM LE BESTIAIRE OU
CORTÈGE D’ORPHÉE, DE GUILLAUME APOLLINAIRE
Taís Gonçalves Bernardo, Bolsista do Programa Bolsa Estado (Secretaria Estadual de Educação
do Estado de São Paulo)
Orientadora: Silvana Vieira Silva Amorim
Programa de Pós Graduação em Estudos Literários
Os bestiários modernos, de um modo geral, são textos líricos em que os animais são vistos como
seres providos de inteligência e sensibilidade, projetam sentimentos e conflitos humanos, às
vezes parodiando o estilo moralizador e o conteúdo ingenuamente maravilhoso dos bestiários
medievais e produzem efeitos sutilmente humorísticos. Guillaume Apollinaire, leitor de obras
medievais, cria suas “histórias”, recheia-as de lendas e mitos, e os recria mais uma vez, que
estes também não passam de histórias recontadas. Sua estrutura básica é constituída de um título,
geralmente o nome do animal, uma imagem feita em xilogravura e o poema. Apollinaire escolheu
um gênero literário tradicional, ao qual pertence o bestiário. Esse gênero vem acompanhado das
ilustrações que fazem parte de uma longa tradição. É no que consiste o bestiário medieval: ele
explica de maneira alegórica a criação e o poder de Deus apresentando as criaturas e
interpretando-as, e devido a isso, é considerado um gênero didático. Apollinaire vivenciou em
seu bestiário, intitulado Le Bestiaire ou cortège d’Orphée e publicado em 1911, a constante
dualidade entre o antigo e o moderno, a narrativa e a poesia, o caráter mítico e simbólico, os
elementos autobiográficos, a identificação do poeta com a imagem de Orfeu e os temas
universais. O fio condutor dos poemas é a figura de Orphée, que é uma espécie de porta-voz do
poeta que une os poemas e seus significados são enriquecidos com as gravuras de Raoul Dufy,
muitas vezes sem nexo aparente entre elas. As possíveis analogias que se estabelecem entre os
animais e suas respectivas lendas e simbologias harmonizam-se com a poesia e as inovações
líricas trazidas pelo poeta moderno, dando-lhe, portanto um caráter narrativo. O esforço do poeta
em construir uma obra coerente e fragmentada, não se limitou a um simples divertissement
poétiquepois o conteúdo de suas quadras traz reflexões acerca do próprio fazer poético que
permitem ao leitor a constante (re)criação de um verdadeiro cortejo”.
Palavras chave: Bestiário. Poesia. Apollinaire. Orphée. Tradição. Modernidade.
RÉSUMÉ
LA PRESENCE DE LA FABLE, DU LYRISME ET DU RECIT DANS LE BESTIAIRE OU
CORTEGE D’ORPHEE, DE GUILLAUME APOLLINAIRE.
Taís Gonçalves BERNARDO, étudiante boursière du Programme Bourse de l´État (Programa
Bolsa Estado) du Secrétariat à l´Éducation de l´État de São Paulo.
Directrice de thèse: Silvana Vieira Silva
Programme de Master (Pós Graduação) en Études Littéraires
Les bestiaires modernes sont généralement des textes lyriques les animaux sont vus comme
des êtres pourvus d’intelligence et de sensibilité, ils projettent des sentiments et des conflits
humains, parodient parfois le style moralisateur et le contenu naïvement merveilleux des
bestiaires médiévaux en produisant des effets subtilement humoristiques. Guillaume Apollinaire,
lecteur d’œuvres médiévales crée ses "histoires" les émaille de légendes et de mythes, et les
recrée encore une fois, puisque ceux-ci ne sont que des histoires racontées à nouveau. Sa
structure de base est constituée d’un titre, en général le nom de l’animal, une image faite en
xylogravure et le poème lui-même. Apollinaire a choisi un genre littéraire traditionnel auquel
appartient le bestiaire. Ce genre, est composé d´illustrations qui font partie d’une longue
tradition. Le bestiaire médiéval consiste à expliquer de fon allégorique la création et le pouvoir
de Dieu, en présentant les créatures et en les interprétant, c’est pourquoi, il est considéré un genre
didactique. Apollinaire a éprouvé dans son bestiaire intitulé Le Bestiaire ou cortège d’Orphée,
publié en 1911, la constante dualité entre l’ancien et le moderne, le récit et la poésie, le caractère
mythique et symbolique, les éléments autobiographiques, l’identification du poète avec l’image
d’Orphée et les thèmes universels. Le fil conducteur des poèmes est la figure d’Orphée une sorte
de porte-parole du poète qui les unit et leur signification est enrichie par les gravures de Raoul
Dufy, plusieurs fois n’ayant pas de liaison apparente entre elles. Les possibles analogies qui
s’établissent entre les animaux et leurs respectives légendes et symbolismes s´harmonisent avec
la poésie et les innovations lyriques apportées par le poète moderne, en lui donnant, alors, un
caractère narratif. L’effort du poète pour construire une oeuvre cohérente et fragmentée, ne s’est
pas limité à un simple "divertissement poétique" car le contenu de leurs quatrains apporte des
réflexions sur le faire poétique lui-même, ce qui permet au lecteur la constante (re)création d’un
vrai "cortège".
Mots clés: Bestiaire. Poésie. Apollinaire. Orphée. Tradition. Modernité.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
GRAVURA 1: ORPHÉE .....................................................................................................116
GRAVURA 2: LA TORTUE ...............................................................................................116
GRAVURA 3: LE CHEVAL ...............................................................................................116
GRAVURA 4: LA CHÈVRE DU THIBET .........................................................................116
GRAVURA 5: LE SERPENT ...............................................................................................116
GRAVURA 6: LE CHAT .....................................................................................................116
GRAVURA 7: LE LION .......................................................................................................117
GRAVURA 8: LE LIÈVRE ..................................................................................................117
GRAVURA 9: LE LAPIN ....................................................................................................117
GRAVURA 10: LE DROMADAIRE ...................................................................................117
GRAVURA 11: LA SOURIS ................................................................................................117
GRAVURA 12: L´ELÉPHANT ............................................................................................117
GRAVURA 13: ORPHÉE II .................................................................................................118
GRAVURA 14: LA CHENILLE ..........................................................................................118
GRAVURA 15: LA MOUCHE .............................................................................................118
GRAVURA 16: LA PUCE.....................................................................................................118
GRAVURA 17:LA SAUTERELLE.......................................................................................118
GRAVURA18: ORPHÉE III .................................................................................................118
GRAVURA 19: LE DAUPHIN .............................................................................................119
GRAVURA 20: LE POULPE ................................................................................................119
GRAVURA 21: LA MÉDUSE ..............................................................................................119
GRAVURA 22: L´ÉCREVISSE ............................................................................................119
GRAVURA 23: LA CARPE ..................................................................................................119
GRAVRUA 24: ORPHÉE IV ................................................................................................119
GRAVURA 25: LES SIRÈNES .............................................................................................120
GRAVURA 26: LA COLOMBE............................................................................................120
GRAVURA 27: LE PAON ....................................................................................................120
GRAVURA 28: LE HIBOU ..................................................................................................120
GRAVURA 29: IBIS .............................................................................................................120
GRAVURA 30: LE BOEUF ..................................................................................................120
GRAVURA 31: BRASÃO .....................................................................................................121
ILUSTRAÇÃO 31: DESENHO DE APOLLINAIRE À RAOL DUFY ...............................121
ILUSTRAÇÃO 33: L ´UNICORNE ET LA LICORNE ........................................................121
ILUSTRAÇÃO 34: L ´UNICORNE ET LA LICORNE ........................................................121
ILUSTRAÇÃO 35: LA DAME ET LA LICORNE ...............................................................121
SUMÁRIO
RESUMO .........................................................................................................................................7
RÉSUMÉ..........................................................................................................................................8
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................11
1 APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................13
1.1 Apresentação de Apollinaire ................................................................................................13
1.2 Apresentação da obra ...........................................................................................................18
2 O GÊNERO.................................................................................................................................23
2.1 O Lugar do Animal...............................................................................................................31
3 A FÁBULA.................................................................................................................................33
3.1 A fábula................................................................................................................................33
4 O LIRISMO.................................................................................................................................38
4.1 O Cortejo de Apollinaire......................................................................................................53
4.2 A elaboração de Le bestiaire ou cortège d´Orphée.............................................................54
4.2.3 A criação de Orphée......................................................................................................55
4.2.4 As leituras de Apollinaire..............................................................................................57
4.2.5 – Os animais de Apollinaire e Baudelaire.....................................................................72
4.3 Tradição e modernidade em Le Bestiaire ou Cortège d’ Orphée.........................................74
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................................91
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA................................................................................................94
Apêndice A –TRADUTORES DE LE BESTIAIRE OU CORTÈGE D’ORPHÉE.........................98
Apêndice B - POEMAS RECUSADOS PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO DE LE BESTIAIRE
OU CORTÉGE D’ORPHÉE, DE 1911....................................................................................102
Apêndice C - POEMAS BASEADOS EM BESTIÁRIOS DE AUTORES CONSAGRADOS
NA LITERATURA..................................................................................................................103
INTRODUÇÃO
O título deste estudo é o primeiro fator a ser analisado, pois é o desencadeador de nossas
análises: a presença da fábula, da lírica e da narrativa em Le Bestiaire ou cortège d’Orphée de
Guillaume Apollinaire. Obviamente não seguimos a ordem dos elementos que o título carrega,
devido à necessidade de se conceituar, na medida do possível, cada palavra que o envolve para
traçarmos o real percurso do poeta, cujo nome faz parte do conjunto das informações.
Guillaume Apollinaire (1880-1918) foi um poeta que viveu a efervescência cultural e as
mudanças na sociedade, dita moderna, que se estabeleceu em seu tempo. Não os poemas que
produziu no decorrer de sua vida, mas também estudos que realizava, conferências
importantíssimas que proferiu, como “L’Esprit nouveau”, nortearam sua vida literária ora
mostrando as fortes heranças simbolistas, ora a nova ordem do fazer poético, o “espírito novo”
que influenciaria os seus sucessores, tornando-os legítimos herdeiros de sua arte.
Le bestiaire ou cortége d’Orphée foi a primeira obra poética publicada do autor e,
infelizmente, não teve a merecida projeção na época em que foi lançada, 1911. Por isso torna-se
vital, antes de analisarmos o conteúdo desse bestiário moderno, definir todos os elementos que
nos pareçam deslocados vindos de um poeta conhecido por suas inovações. Devemos, portanto,
situar a obra do poeta francês no seu tempo e espaço em relação às outras obras que produziu,
sem abandonar os traços biográficos, imprescindíveis para aprofundar nossos estudos e
compreender certas fases poéticas do autor, como o ciclo renano, por exemplo, apenas
mencionado no corpo de nosso estudo. Entretanto, a produção dos poemas desse ciclo, que viria
compor a coletânea Alcools, está ligada a uma fase do poeta vivida na Alemanha.
Outro aspecto importante da obra do poeta de Alcools implícita nas informações contidas
no título é a constante dualidade ente o tradicional e o moderno. Nesse momento é importante a
apresentação da obra, ou seja, os poemas que compõem Le Bestiaire para ilustrar ora as marcas
simbolistas, ora a irreverência que se tornaria do poeta se tornaria de suas marcas mais pessoais.
Le Bestiaire ou cortège d’Orphée é o tulo completo da obra de nossa pesquisa e carrega
em si significados relevantes que desencadeiam análises pertinentes acerca de seu conteúdo e que
serão apresentados nos capítulos posteriores, estabelecendo-se as possíveis relações entre a
fábula, a lírica e a narrativa, assim como o diálogo com outros poemas de obras posteriores do
11
poeta, principalmente Alcools, publicada em 1913. A definição da palavra bestiaire, bestiário
para nós, é fundamental para entendermos o percurso lírico de Apollinaire, as leituras que
realizou para mostrar o conhecimento adquirido juntamente com o seu poder criativo. Considerar
o bestiário um gênero literário e situá-lo na época em que teve maior vigência nos permite
relacionar comparativamente com um outro gênero mais conhecido em nossa literatura, a fábula,
e o contexto que a envolve. Nesse estudo, a fábula é mostrada com características que, ora se
aproximam do bestiário, como a presença de moral, ora se distanciam quanto à interação dos
animais, por exemplo.
A narrativa se sobrepõe entre a fábula e o bestiário como um fator de distinção, pois o
primeiro se caracteriza por apresentar os elementos estruturais da narrativa explicitamente,
enquanto o bestiário, a grande maioria dele, foi composto em versos. Contudo, verificamos em
alguns poemas, especificamente os de Le Bestiaire de Apollinaire, alguns importantes traços
narrativos, para demonstrar o senso inovador da lírica do poeta modernista. Abordaremos
também sua lírica, seu estilo e o que ele inovou no contexto de modernidade que vivenciava,
embora esta obra não seja considerada seu trabalho mais moderno.
A apresentação de Le Bestiaire é o início de um estudo que se dispõe a mostrar a
capacidade de um poeta de mesclar gêneros diversos e estabelecer um equilíbrio constante entre
eles a ponto de se auto-denonimar Orphée, numa coletânea posterior, publicada em 1918,
intitulada Caligrammes. Além disso, para cada um dos trinta poemas que compõem o bestiário de
Apollinaire, contamos com as ilustrações de Raoul Dufy, pintor que o poeta conheceu nos
círculos artísticos, o qual, seguindo as características dos bestiários medievais, desenvolveu uma
xilogravura representando cada animal que compõe a obra.
Nosso estudo pode ser distribuído da seguinte maneira:
Na primeira seção temos uma biografia de Guillaume Apollinaire em que os fatos mais
relevantes são ressaltados para mostrar o quanto a vida do poeta influenciou suas produções. Em
seguida, apresentamos a obra Le bestiaire ou cortège d’Orphée, seu conteúdo, a composição dos
versos, a ordem em que aparecem, a estrutura, quais as principais características e como se situa
no âmbito da literatura geral como um gênero didático. Além disso, é importante traçarmos um
breve histórico de outros bestiários, que, provavelmente, serviram de modelo para que o poeta de
Caligrammes compusesse o seu.
12
A segunda seção tem como objetivo relacionar o gênero da obra de nosso estudo, o
bestiário, com as características da fábula, ressaltando as semelhanças e diferenças. Ainda nessa
seção, temos a lírica de Apollinaire, que nos é apresentada primeiro como fruto herdado de
autores franceses como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. O conhecimento sobre estes poetas é
imprescindível para caracterizar e situar Le Bestiaire dentro de um contexto de modernidade,
embora o poeta de Alcools não se desvincule de certas tradições, desprezadas pelos autores
posteriores.
A análise de Le Bestiaire é feita na quarta seção em que o mito de Orfeu e a recriação de
um Orphée por Apollinaire se encontram nas análises, que têm como ponto de partida o título da
coletânea, os percalços, as possíveis influências de outros autores e leituras do poeta, até alcançar
a definição completa da obra, que também se caracteriza pelo diálogo que estabelece com os
textos de suas outras produções.
As traduções dos poemas de Le Bestiaire utilizados aqui foram feitas por Woensel em um
estudo realizado sobre a simbologia dos animais medievais enquanto as traduções dos poemas de
Alcools que se relacionam com a obra foram feitas por Daniel Fresnot. um apêndice dividido
em três tópicos: o primeiro apresenta os tradutores de Le Bestiaire, o segundo, os poemas
recusados pela editora em 1911 e publicados somente após a morte do poeta e o último com
alguns poemas baseados em bestiários de diversos autores, priorizando aqueles cujo idioma é o
da língua portuguesa.
A grafia de Orfeu no corpo do texto tem uma variação, Orphée. A primeira relaciona o
nome com o mito conhecido no qual o Apollinaire se apoiou para compor sua obra. O segundo
Orphée, mantido em francês, é a recriação do poeta que ultrapassa a história e revela a
importância desse personagem na obra como um todo a ponto de fazer parte do título, o que
conclui, portanto, a nossa análise iniciada a partir do nome da obra: Le Bestiaire ou cortège
d’Orphée.
As gravuras da obra e as que contribuíram para o enriquecimento de alguma informação
relevante para complementar as análises realizadas estão anexadas a esse estudo.
13
1 APRESENTAÇÃO
A vida e obra de Guillaume Apollinaire suscitam reflexões sobre a arte, a poesia e a
variedade de personagens que podem viver no interior do homem. O escritor, crítico e poeta
demonstra em suas obras que soube inventá-los ao seu gosto, trazendo-os ao conhecimento do
mundo sem menosprezar, todavia, o passado vinculado a uma tradição que não pertencia mais
ao seu tempo, e sem temor de transformar sua própria condição de homem e poeta em temas para
compor sua lírica. A recriação que presenciamos na produção do autor de Le Bestiaire demonstra
a dedicação aos estudos das diversas artes em que discorre com igual intensidade, como por
exemplo, sobre o mundo medieval, ao mesmo tempo em que escreve sobre a nova estética dos
artistas de seu tempo.
1.1 Apresentação de Apollinaire
Guillaume Albert Dulcigni, Wilhelm Albert Vladimir Apollinaris de Kostrowitzky,Guillaume
Albert Wladimir Alexandre Apollinaire Kostrowitzky, Whilhem Apollinaire, Guillaume
Apollinaire, Kostro ou Orphée são alguns nomes que remetem a Apollinaire que nasce aos vinte
e seis dias do mês de agosto do ano de 1880 como Whilhelm Albert Wladimir Alexandre
Apollinaris de Kostrowitzky. Ele tem o nome de sua mãe, Angelica Kostrowistzky, filha de um
capitão russo nomeado capitão do papa. Seu pai, Francesco Fulgi d’Aspremont, oficial italiano e
jogador, não reconhece seus filhos, Guillaume e Albert, e abandona finalmente a família em
1885.
Suas origens biológicas permaneceram um mistério durante muito tempo e até certa idade não
teve conhecimento sobre elas e sequer conheceu seu pai biológico. No entanto usava de sua
irreverência, que futuramente o consagraria como um poeta de vanguarda, ao se referir ao
progenitor, chegando mesmo a dizer que era filho de um papa! Sua situação de bastardo levaria-o
a reconstruir, em diversas obras, mitos que se aproximam de sua condição, como o de Merlim.
Angelica viaja por vários países da Europa, com a intenção de buscar melhores condições de
vida para ela e seus dois filhos. De 1890 a 1895, Guillaume segue uma brilhante vida escolar no
liceu de Saint-Charles, no principado de Mônaco. Desde cedo, leitor de autores consagrados
como Balzac, Tolstoi e Zola, não consegue qualificar-se numa boa instituição de ensino na
14
França, pois mesmo morando ali muito tempo, era considerado um estrangeiro e não tinha o
mesmo privilégio ou direitos.
Apollinaire freqüenta em seguida o colégio Stanislas de Cannes e o liceu de Nice sem,
contudo, obter o seu bacharelado; faz numerosas leituras e começa a compor seus primeiros
poemas, os quais assina como Guillaume Macabre e depois Guillaume Apollinaire.
É em 1889 que sua mãe, ele e seu irmão deixam a Itália e a região da Côte d’Azur e de
Mônaco para começar uma nova etapa de suas vidas ao redor de Paris, onde muitas dificuldades
os esperam, além da constante ameaça de serem deportados, o que leva Apollinaire a procurar um
emprego.
No fim do verão de 1901, aos 21 anos, ele parte para a Alemanha como preceptor,
contratado pela viscondessa de Milhau, para dar aulas de francês à sua filha Gabrielle. É neste
local de trabalho que conhece uma das mulheres que marcará não somente sua vida amorosa, mas
também irá movimentar a sua produção literária: Annie Playden, a governanta inglesa de
Gabrielle.
Esse período na Alemanha representa uma importante fase dentro do universo poético de
Apollinaire. A produção do ciclo das Rhénanes, em Alcools mostra a descoberta da paisagem
renana e o desespero amoroso do poeta diante da recusa amorosa de Annie, resultando na
produção de inúmeros contos, poemas, notas de viagem.
Sua atividade literária intensifica-se nessa época, cujos poemas intitulados Rhénanes, que
fazem parte de sua obra mais conhecida atualmente, Alcools, foram produzidos nos lugares por
onde viajava pelas diversas propriedades de Madame Milhau; Colônia, Dusseldorf e em suas
férias no início de 1902, Munique, Berlim, Dresdem, Praga, Viena, entre outros.
Em 1902, Apollinaire volta a Paris e se emprega num banco. É o período em que começa
a freqüentar os meios literários. Ele se torna colaborador regular da Revue Blanche, participa de
soirées de La Plume e tem uma rubrica na revista de Arte Dramática – La revue d’art dramatique
(1903-1904). O poeta lança, com alguns amigos, Le Festin d’Ésope e passa a colaborar em
Mercure de France assim como a revista Vers et Prose (1905). Nessa época, está próximo de
alguns pintores como Derain, Vlamink, Picasso e freqüenta Montmartre, o bairro dos artistas em
Paris.
15
Em 1903 é divulgado nos meios literários, através do lançamento de Festin d’Esope,
L’Enchanteur pourrissant ; no entanto, a revista se extingue no nono número, mas é através dela
que Guillaume Apollinaire conhece Picasso, que se tornaria seu grande amigo.
Escreveu prefácios dos catálogos de exposições de seus amigos pintores, e redigiu ensaios
sobre a pintura e a nova estética, exaltando as obras dos novos, tais como: Matisse, Picasso,
Braque, Derain, Dufy, este último ilustraria posteriormente Le Bestiaire - Vlaminck, entre
outros. André Derain ilustrou com xilogravuras a edição de luxo de sua primeira obra em prosa,
L’enchanteur pourrissant, que publicaria em novembro de 1909.
Mesmo diante de tantas novidades artísticas, Apollinaire não consegue esquecer seu amor
do passado, Annie Playden que ele reencontra em Londres, em novembro de 1903 e em maio de
1904, mas sem obter qualquer esperança de reconquista. Ela muda-se definitivamente para os
Estados Unidos e o desespero que o toma é tão grande que produz um dos poemas mais
importantes de Alcools: “La Chanson du Mal-Aimé”.
Sem moradia fixa, e sem um emprego que lhe garantisse alguma renda, Apollinaire escreve
em jornais e revistas literárias e a necessidade de dinheiro supostamente o faz compor romances
eróticos na clandestinidade .
Neste mesmo ano conhece Marie Laurencin. Ela é apresentada a Apollinaire por Picasso em
maio de 1907 e se inicia, portanto, uma nova fase da vida sentimental do poeta, acompanhada de
uma intensa atividade literária em que produz muito nas revistas Ornitocritique, L’Obituaire e
inicia a revista La Phalange com três poemas que fariam parte de Alcools em 1913: La
Tzigane”, Les Colchiquese Lul de Faltenin. Em 1908, publica na revista La Phalange a
primeira versão de Le Bestiaire intitulada La Marchande de Quatre Saisons ou le Bestiaire
Mondain.
Nos anos 1910 e 1911 suas atividades como jornalista se estendem e ele colabora com o
jornal L’intransigeant, com Paris-Journal, Au Matin. Publica ainda sua obra L’Hérésiarque et
Cie e a obra de nosso estudo, Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée, ilustrado, desta vez por Raoul
Dufy. É neste ano da publicação de Bestiaire, 1911, que o poeta é acusado de roubar o quadro da
Monalisa no Louvre, passando uma semana encarcerado.
Em 1912 ele se liga a outros artistas, entre eles Delaunay, Brancusi, Archipenko e os
futuristas italianos como Marinetti, época também em que publica a Antitradition futuriste, um
meio de provocar e também mostrar sua simpatia pelo movimento, mas não pela pessoa ligada a
16
ele Filippo Marinetti. Apollinaire participa, juntamente com André Billy, René Dalize e André
Salmon do lançamento da revista Les Soirées de Pari
1
, ocasião em que Marie Laurencin rompe
definitivamente com ele. Os poemas “Le Pont Mirabeau”, “Zone” e “Vendémiaire”, fazem alusão
ao fim de seu relacionamento; no ano seguinte, em abril, publica a sua coletânea mais conhecida:
Alcools, na qual os dois primeiros poemas mencionados abrem a obra e o último a finaliza, sendo
também o primeiro poema não pontuado pelo poeta.
No início de 1913, multiplica suas conferências sobre o cubismo e a nova pintura e,
apesar do isolamento literário que sente, continua suas experiências ideogramáticas que dão
início aos seus primeiros caligrammes. Em seguida, o poeta faz uma solicitação, já em 1914, para
alistar-se no exército francês e combater na Primeira Guerra Mundial. Em setembro desse ano ele
conhece Louise de Coligny-Châtillon, conhecida como Lou. Em dezembro, é admitido no 38º
regimento de artilharia de Nîmes.
Apollinaire mostra as influências que obteve a partir de leituras de poetas como Villon,
por exemplo, um autor do século XV que explorava temas que permeariam a produção literária
do poeta do século XX , entre eles o amor, a fugacidade do tempo e a morte, promovendo um
encontro e uma constância com que persiste, principalmente os dois primeiros e “não permite
pensar que eles tenham simplesmente retomado e tratado como lugares comuns poéticos”.
(PASCAL, 1965)
A pobreza e as decepções amorosas talvez tenham contribuído para a melancolia de
Apollinaire. Em 1904, a partida de Annie, em 1910, o fracasso de seu Heresiarque au prix
Goncourt, em 1911, a sua prisão e a baixa receptividade ao lançamento de Le Bestiaire; e em
1912, a ruptura definitiva com Marie Laurencin foram infortúnios que o levaram, pouco a pouco,
senão à convicção, ao menos ao receio permanente de privar-se de amor e de dinheiro.
Apollinaire jamais esperou a opulência, tendo gostos modestos, e a guerra provou que se
adaptava sem reclamar às condições de existência as mais duras. Entretanto os menosprezos que
sofria e que tinha suportado o levaram a lamentar em “La souris”, por exemplo, os dias perdidos:
Belles journées, souris du temps,
Vous rangez peu à peu ma vie.
Dieu ! je vais avoir vingt-huit ans,
Et mal vécus, à mon envie.
2
(APOLLINAIRE, 2006, p. 155).
1
Revista que publicou importantes poemas de Apollinaire como “Zone” e “Le Pont Mirabeau” , por exemplo.
2
Ratos do tempo, os belos dias/ vocês roem, toda essa vida,/ó meu Deus, e tão mal vivida:/vinte e oito anos, ó horas
vadias! (WOENSEL, 2001, p. 129)
17
O gato e o rato servem como alegorias de um sentimento ou de uma idéia: o gato evoca a
intimidade do lar; o rato, que nunca cessa de roer, simboliza o implacável passar do tempo, roído
um pouco mais todo dia. Vários poemas apollinarianos, entre eles “Le pont Mirabeau”, o
segundo da coletânea Alcools, demonstram esta preocupação com a fugacidade do tempo. A
insistência do poeta de Alcools em tratar desses temas nas suas diversas coletâneas deve-se à
correspondência que o poeta estabelece em seus poemas e aproxima uma obra da outra,
ultrapassando o senso comum ou a possibilidade de classificar uma obra como simbolista e outra
como modernista, respectivamente Le Bestiaire e Alcools, por exemplo.
As duas obras trazem poemas que nos permitem estabelecer um diálogo temático, ou até
mesmo o aproveitamento de idéias que começam num poema e terminam em outro de uma
coletânea distinta, seja em “L’Émigrant de Landor Road”, em que se refere a Annie, e faz alusões
a vários animais presentes em Le Bestiaire, seja em La Colombequando manifesta seu desejo
de casar-se J’ aime une Marie . Ou ainda no poema Vendémiairede Alcools - em que se
pronuncia diante da perda da mesma Marie. As obras são diferentes, porém os temas
permanecem e dialogam entre si e demonstrando que vida do poeta se perpetua nestes poemas.
Em um trem entre Nice e Marselha, no início de 1915, Apollinaire encontra Madeleine
Pagès, na mesma época em que Lou se separa dele. Enviado ao front em novembro, ele descobre
os horrores da guerra.
Ferido na cabeça na primavera de 1916, segundo seus amigos, nunca mais foi o mesmo. É
nesta época que jovens poetas, como Reverdy, Soupault, André Breton e Tzara o conhecem e é
quando o poeta utiliza pela primeira vez a palavra surréalisme, - criada a partir do drama Les
mamelles de Tirésias, que acaba por dar nome a este novo movimento artístico e vanguardista
que surge, mais tarde, encabeçado por Breton. Le poète assassiné é lançado no fim deste mesmo
ano.
No dia 26 de novembro de 1917, em Paris, Guillaume Apollinaire profere uma
conferência intitulada “L’esprit nouveau” que representa a palavra de ordem para a criação de
uma nova lírica e, certamente, os conhecimentos que ela transmite nos ajudarão a elucidar
algumas questões pertinentes neste estudo.
Caligrammes é lançado no início de 1918 e em maio ele se casa com Jacqueline Kolb, la
jolie rousse. Mas o casamento dura pouco, pois no mesmo ano, o poeta não resiste a uma
18
epidemia de gripe espanhola que toma conta de Paris e morre no dia 9 de novembro, aos trinta e
oito anos.
1.2 Apresentação da obra
Nosso primeiro contato com a obra de Guillaume Apollinaire se deu por meio de um de seus
contos, Le roi lune, obra na qual o poeta expressa o seu modernismo e em que narrativa e poesia
se mesclam.
Acompanhamos a trajetória do poeta em relação à sua produção literária e ao analisá-la e
verificar os seus aspectos comuns, constatamos a presença dos mitos, lendas e histórias da
literatura medieval, foram recriados com características da modernidade. O contexto destas
produções, principalmente na primeira fase, mostra a fascinação do autor de Le Bestiaire por
personagens como o feiticeiro Merlim, Morgana, o rei Artur e seus cavaleiros que povoaram a
prosa e a poesia do jovem Apollinaire. Um exemplo é o seu conto “L’Enchanteur Pourissant”,
publicado em 1909 que demonstrava o interesse do poeta pela Idade Média e suas
características. Ele descobriu a veia medieval do bestiário, originada naquela época, e criou a
mais importante versão moderna desse gênero.
A primeira leitura de Le Bestiaire ou cortège d’Orphée nos possibilitou o reconhecimento
imediato de alguns mitos e lendas que cercam sua rica. Embora a obra seja escrita em versos,
podemos verificar também alguns traços narrativos que o poeta enriqueceu com notas no final da
obra. O próprio título da obra evoca o mito de Orfeu
3
: homem que tinha o poder de encantar e
acalmar o mais feroz dos animais através do seu canto, acompanhado pela lira que ganhara do
deus Mercúrio. Em Le Bestiaire, os poemas sobre os animais são formados por quadras divididas
de acordo com a espécie do animal e cada série é precedida por uma quadra intitulada Orphée,
que introduz à espécie de animais totalizando, portanto, quatro poemas dedicados a Orfeu,
marcando o cortejo e mostrando a obra como um todo e encadeada com o seu mito.
Percebe-se então que a presença da fábula na obra de Apollinaire consiste no recontar que
se apóia na seguinte prática: o poeta (re)inventa os mitos, lendas, histórias retiradas da literatura
medieval, apóia-se nelas como verdadeiras e lhes uma seqüência imaginada a partir deste
3
Relembrando Orfeu grafado em português, refere-se à figura mítica; grafado em francês, Orphée é a recriação do
personagem por Apollinaire, como já assinalado anteriormente.
19
mesmo mito ou de uma lenda já conhecida em que percebemos, como leitores, alguns dos
aspectos da lírica moderna que futuramente dariam vazão ao seu discurso sobre “l’esprit
nouveau”.
Os bestiários modernos, de um modo geral, são textos líricos; seus autores vêem os bichos
como seres providos de inteligência e sensibilidade e projetam neles sentimentos e conflitos
humanos, às vezes parodiam o estilo moralizador e o conteúdo ingenuamente maravilhoso dos
bestiários medievais e produzem efeitos sutilmente humorísticos.
Apollinaire referiu-se ao seu bestiário, certa vez, como um “divertimento poético” numa
nota introdutória a respeito do primeiro poema Orphée”, que abre a obra e convida o leitor a
deleitar-se não apenas com os poemas, mas também com as imagens produzidas por Raoul Dufy.
O primeiro poema da obra mostra seu Orphée como o inventor de todas as artes e elogia
seu caráter sublime, tanto nos desenhos como nos versos em que pintura e escrita estão situadas
no mesmo nível. (WITTENBERG, 1985)
Orphée
Admirez le pouvoir insigne
Et la noblesse de sa ligne:
Elle est la voix que la lumière fit entendre
Et dont parle Hermès Trimégiste en son Pimandre.
4
(APOLLINAIRE,
2006, p. 109)
Esta pequena quadra possui uma nota do próprio poeta referindo-se ao Hermes
Trimegisto
5
, que não é o deus Mercúrio da mitologia: “Il loue la ligne qui a formé les images,
magnifiques ornements de ce divertissement poétique” e continua em sua nota afirmando que na
leitura do Pimandro descendirent des ténèbres...et il en sortit un cri inarticulé qui semblait la
voix de la lumière”. (APOLLINAIRE, 2006, p. 175). Acrescenta, ainda, que a voz da luz,”
também presente em seu poema, é a voz dos próprios traços do desenho e quando a luz se
exprime pleinement tudo fica colorido, ou seja, o poeta conclui que a pintura é propriamente uma
linguagem luminosa. A intenção desta quadra, além de abrir a coletânea, e de mostrar o papel
4
Sua arte é sublime, admirável/seu traço é nobre, inimitável:/ é essa voz que a partir da luz de propalou/ e da qual
Hermes no Livro Pimandro falou. ( APOLLINAIRE, 2006, p.145, TRAD. WOENSEL)
5
Hermes Trimegisto é o nome grego do deus egípcio Thot e em um dado momento os neoplatônicos e os cristãos
fizeram de seu nome Trimegisto, isto é três vezes grande, um antigo rei do Egito, o inventor de todas as ciências,
autor de numerosos livros. O livro Pimandro é onde se encontra o hino místico que recitavam os alquimistas que
difundiram, possibilitando a chegada até nós.
20
fundamental de Orphée, é destacar o quanto a pintura é indissociável da própria arte
apollinairiana, ou seja, apresenta a proposta poética do autor e a coerência que nela já se pode
antever, transformada em metalinguagem.
Não é por acaso que o título completo do livro é Le bestiaire ou cortège d’ Orphée, visto
que Orphée tinha o poder de encantar homens e animais e este bestiário apollinairiano forma
como um cortejo, uma procissão de bichos que seguem alegremente o som da lira mágica do
mestre da música. Além disso, o Orphée/Apollinaire apresenta cada uma das quatro categorias
dos animais que compõem os trinta poemas, a maioria formada por quadras de octossílabos.
Le Bestiaire foi composto em duas séries de poemas. A primeira, composta por dezoito
poemas, foi publicada sem ilustrações sob o título La marchande des quatre saisons ou le
bestiaire mondain”, na revista La Phalange de 15 de junho de 1908. Os outros doze poemas se
intercalariam na publicação de março de 1911, lançado pela Editora Deplanche com as
xilogravuras de Raoul Dufy. Nesta, o poeta criaria os quatro poemas dedicados a Orfeu. O título
foi modificado: Le bestiaire ou Cortège d’Orphée. Dos dezoito poemas iniciais, quatro foram
recusados pelo editor, por possuírem um carater licencioso: Le Condor Le Morpion”, Le
Singee L’Araignée
6
e os outros doze foram acrescentados, incluindo-se os quatro intitulados
Orphée”.
Le Bestiaire é estruturalmente composto por trinta pequenos poemas, em que o
predomínio das quadras, tendo apenas três em quintilhas e dois, em sextilhas. quatro
dedicados a Orfeu: o primeiro, o 13°, o 18° e o 24° que introduzem as séries dos títulos dos
animais e separam as espécies representadas sem grande equilíbrio aparente: onze poemas
dedicados aos animais terrestres, quatro aos insetos, seis às aves e cinco aos peixes, que foram
criados para a versão definitiva.
O primeiro poema, Orphée I”, introduz a série dos animais terrestres sendo sucedido por:
La Tortue”, “Le Cheval”, “Le Serpent”, “Le Chat”, “Le Lion, “Le Lièvre”, “Le Lapin”, “Le
Dromadaire”, “ La Souris” e “L’Eléphant”.
O poema “Orphée II” introduz a série dos quatro insetos: “La Chenille”, “La Mouche”,
“La Puce” e “ La Sauterelle”. A série dos animais aquáticos é introduzida pelo poema “Orphée
III”, seguido por “Le Dauphin”, “Le Poulpe”,” La Méduse”, L’Écrevisse” e “La Carpe”.
6
Incluídos nos Apêndices desse estudo.
21
Curiosamente, o primeiro animal dessa série, o golfinho, era considerado na antiguidade
um peixe e não um mamífero e, provavelmente, Apollinaire optou por manter essa característica
incluindo a quadra na primeira série que abre sua coletânea.
A última série de animais, introduzida pelo quarto poema intitulado Orphée IV , traz
duas surpresas: a primeira é a de considerar a sereia e o boi seres alados, segundo a ilustração
produzida por Raoul Dufy a respeito dessas quadras, observação que será explanada com maior
profundidade na seção subseqüente. A segunda surpresa recai sobre a palavra ibis”, a única da
obra que não vem acompanhada pelo artigo definido. Além de Orphée IV, os últimos animais
da série são: “Les Sirènes”, “La Colombe”, “Le Paon”, “Le Hibou”, “Ibis” e “Le Boeuf”.
O árduo trabalho de Apollinaire e Raoul Dufy não foi valorizado pelo público em 1911,
pois dos 120 exemplares impressos, somente 50 foram vendidos, os demais exemplares ficaram
encalhados por muitos anos. Provavelmente este pode ter sido um dos motivos que tenham
levado Dufy a abandonar a arte da xilogravura e tornar-se um célebre pintor. O que também
instiga este estudo é percebermos que, segundo Woensel (2001), Le Bestiaire foi o primeiro livro
em versos de Apollinaire, no entanto, ainda hoje não atingiu a mesma dimensão de estudos por
parte dos muitos admiradores e críticos do poeta, que exaltam o pioneirismo poético mostrado em
outras obras.
Vladimir Divis julga que o livro é moderno demais, novo demais para os bibliófilos que,
em geral, são conservadores. Porém, reconhece que a obra não foi produzida para um leitor
qualquer. (DIVIS apud WITTENBERG, 1985). A crítica ficou muito reservada: não se achava a
razão da característica luxuosa da obra e a sua tiragem limitada. Uma das notas de imprensa
divulgada na época, no jornal Paris-Midi do dia sete de abril de 1911, por André Billy, amigo do
poeta, sob o pseudônimo de Jean de l'Escritoire afirma que
Le Bestiaire ou Cortège d'Orphée par Guillaume Apollinaire, paraît demain en
une édition qui n'est pas précisément populaire. Les gravures sur bois de Dufy sont d'une
frappante beauté, avec quelque chose de barbare, de capricieux et de réfléchi, et le
sentiment le plus moderne en même temps le plus traditionnel, de la décoration linéaire.
Quant aux vers d'Apollinaire, ils sont chargés de sens et de subtilités. Seuls, quelques
amis et confrères ont signalé la publication du Bestiaire.
7
7
Le Bestiaire ou cortège d’Orphée de Guillaume Apollinaire, sai amanhã em uma edição que não é exatamente
popular. As xilogravuras de Dufy são de uma espetacular beleza, com alguma coisa de bárbara, de caprichoso e
de reflexivo, e o sentimento mais moderno e ao mesmo tempo o mais tradicional da decoração linear. Quanto aos
versos de Apollinaire, eles são carregados de sentido e de sutilezas. Somente alguns amigos e camaradas
participaram da publicação do Bestiaire. (TRAD NOSSA)
22
As críticas publicadas pela imprensa da época foram, portanto, favoráveis à obra e a
receberam com elogios e reconheciam-na como uma obra de elite, e infelizmente, não acessível à
maioria dos leitores. Um dos fundadores do surrealismo, Louis Aragon, homenageia a obra e o
poeta em 1919, morto quase um ano antes, num poema publicado na Revue Littérature
8
chamando Guillaume Apollinaire de Orphée Apollinaire:
Les fruits à la saveur de sable
Les oiseaux qui n'ont pas de nom
Les chevaux peints comme un pennon
Et l'Amour nu mais incassable
Soumis à l'unique canon
De cet esprit changeant qui sable
Aux quinquets d'un temps haïssable
Le Champagne clair du canon
Chantent deux mots panégyrique
Du beau ravisseur de secrets
Que répète l'écho lyrique
Sur la tombe Mille regrets
Où dort dans un tuf mercenaire
Mon sade Orphée Apollinaire
Marie-Jeanne Durry (1936-) qualifica a coletânea como um “exercício poético” e Marcel
Raymond (1897-1981) de “jogo literário”. Mesmo em 1968, Pierre Adema (1968) fala de um
divertissement poétique”, ainda pouco significativo para o talento de Apollinaire. Em 1966 Marc
Poupon considera Le Bestiaire merecedor de um estudo no qual explica alguns enigmas que o
circundam .
Wittemberg (1985) considera Le Bestiaire muito importante entre as obras de Apollinaire,
o que justifica a obstinação do poeta em publicar a coletânea da forma mais completa possível.
Ele retomou seu trabalho em diversos momentos entre os anos de 1906 a 1911 apesar das muitas
dificuldades: a falta de inspiração, as dúvidas do editor, e a renúncia de Picasso em trabalhar as
gravuras que ilustrariam os poemas.
8
Revue Littérature, número 2 , abril de 1919. Revista lançada junto com André Breton.
23
2 O GÊNERO
O bestiário ou Livro dos Bichos se assume como uma obra singular no âmbito da
literatura da Idade Média, em primeiro lugar, por nele se descreverem várias espécies animais,
sejam elas existentes ou fruto do imaginário da época. Em segundo lugar, por subordinar essa
descrição a uma interpretação de caráter simbólico e alegórico. Terceiro, ao integrar imagens que
complementam o texto escrito, estabelecendo com ele um diálogo permanente. E, ainda, porque
se constitui como uma obra literária circunscrita à época medieval que o viu nascer e morrer.
O bestiário organiza-se em torno de pequenas narrativas que descrevem várias espécies
animais, com propósitos morais e didáticos. Neste sentido, cada uma dessas narrativas é
composta por duas partes distintas, sendo uma parte descritiva de sentido literal (a descrição,
proprietas ou naturas) e a sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-
alegórico (também designada como moralização, moralitas ou figuras). Os termos latinos
adotados nessa apresentação, naturas e figuras, são utilizados, por exemplo, no Bestiaire de
Philippe de Thaon. Subordinando a naturas a figuras, na maioria das vezes por intermédio da
citação bíblica que organiza as narrativas, o bestiário remete para o modo de significação
característico da Idade Média em que os animais deixam de ser apenas animais para se
assumirem como exempla, isto é, como símbolos de vícios ou virtudes e fonte de ensinamentos
religiosos e morais. Por este motivo, embora muitos críticos tenham defendido o caráter científico
do bestiário, a descrição dos animais nele apresentada não pretende ser exata. Na verdade, ele
afasta-se, em larga escala, dos Tratados de História Natural e até dos seus congêneres mais
próximos: os herbários e os lapidários, estes últimos fornecendo, respectivamente, uma descrição
detalhada de plantas e pedras, não com propósitos didáticos e moralistas, mas com o intuito de
veicular a sua utilidade prática para fins medicinais.
O que nele se procura transmitir, pelo contrário, é uma verdade espiritual de ordem cristã,
preocupação para a qual terá contribuído o fato de ter sido produzido nos mosteiros e destinado a
um público religioso – noviços e convertidos (sendo os últimos pessoas que se haviam convertido
à vida monástica numa fase mais tardia das suas vidas e que, por isso, não podiam celebrar o
ritual religioso)- para o qual funcionava como manual de estudo.
24
Os bestiários medievais, assim como a literatura medieval, tomaram emprestados da
Bíblia elementos de seus modelos formais, da tetica, do estilo e outros. que os bestiários
nasceram dos círculos clericais e foram redigidos com intenções catequizadoras, seus autores
recorriam espontaneamente aos modelos literários e estilísticos da Bíblia, o livro que conheciam
de cor.
As origens do bestiário remontam à época clássica greco-latina e a autores como Heródoto
ou Plínio, embora a fonte mais importante seja o Physiologus. O Physiologus ou Fisiólogo, ou
ainda, o Naturalista, foi uma obra escrita em grego e produzida em Alexandria, entre os séculos I
e III. Esse original grego nunca foi encontrado e o único manuscrito grego que hoje em dia se
conhece é uma retradução dessa fonte perdida. Sabe-se, porém, que a sua popularidade foi tanta
que logo começaram a produzir traduções para várias línguas, tendo a primeira surgido na
Etiópia, no século V, e as seguintes na Síria e na Armênia. A partir do mesmo século, apareceu
possivelmente a primeira tradução para o latim, embora os manuscritos latinos mais antigos
tenham começado a circular apenas no século VIII.
Entre os autores aos quais se tem atribuído a primeira versão cristã do Physiologus
contam-se: Santo Ambrósio (referido no Decretum Gelasium), S.Pedro de Alexandria, Santo
Epifânio, São Basílio, São João Crisóstomo, Santo Atanásio e São Jerônimo. Mas é apenas após
o século VIII que começam a surgir as muitas versões latinas do Physiologus que, por sua vez,
vieram originar o bestiário. Foi também a partir desse século que essa obra foi traduzida para
línguas tão variadas como o anglo-saxônico, o árabe, o islandês, o provençal, o castelhano e o
italiano, entre outras.
Através da comparação entre estes textos, verificou-se que o Physiologus integra
habitualmente quarenta e oito ou quarenta e nove capítulos que começam por descrever o animal
para logo o relacionarem com o dogma cristão. Assim, cada um destes capítulos obedece a um
esquema padronizado, iniciando-se por uma citação da Bíblia, à qual se segue a expressão “O
Physiologus diz que...” que introduz a descrição do animal, imediatamente seguida da sua
interpretação moral e alegórica.
Alguns estudiosos acreditam, contudo, que o original perdido procurava apenas descrever
a criatura de forma literal, transformando-se gradualmente ao longo dos séculos, tendo as morais
sido introduzidas posteriormente pelos autores cristãos, como também observa Woensel. (2001)
25
A história natural e a zoologia fazem parte do ensinamento das Universidades. Dessas
ciências Aristóteles e Plínio são os profetas, mas os animais destes autores pagãos foram
batizados e tornaram-se símbolos cristãos. Para se dar conta disso, basta percorrer o Speculum
majus de Vincent de Beauvais e, sobretudo o Bestiário de Phillippe de Than ou Thaon.
Apollinaire, leitor de obras medievais, tais como o Physiologus (O naturalista)
9
que foi,
segundo Woensel, um dos livros mais lidos e copiados na Idade Média, assim como O livro dos
Emblemas, do século XVI, pode ter se baseado na estrutura dessas obras para criar o seu
bestiário.
Jean Calvet e Marcel Cruppi (1954) afirmam num estudo sobre os bestiários na literatura
francesa que o homem se defende contra as maldades dos outros homens; serve-se de uma
linguagem para entender nos homens aquilo que não ousa dizer frente a frente ou admitir a si
mesmo. E o que um homem conhece sobre o homem, provém das analogias que estabelece com
os animais. A propósito disso, Umberto Eco, em seu romance O Nome da Rosa, também afirma
que para cada virtude e para cada pecado “há um exemplo tirado dos bestiários, e os animais
tornam-se figuras do mundo humano”. (ECO, 2000, p.100)
É ainda uma tradição muito pouco conhecida que se apóia na idéia de que o mundo
material e o mundo espiritual, sendo a obra do mesmo Deus, são feitos sob o mesmo plano e que
o olho do crente se diferencia nas linhas da criação, tornando as imagens do universo
sobrenatural. A natureza é uma parábola na qual é necessário buscar o sentido, um enigma do
qual é necessário achar a palavra. Cada pedra, cada vegetal, cada animal tem, de início, um valor
simbólico, como dirá mais tarde Baudelaire:
La nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des fôrets de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.
10
Calvet e Cruppi apresentam uma pouco conhecida e ainda desvalorizada Idade Média.
Com freqüência ingênuo, mas muito mais variado do que parece de início, o modo de pensar
medieval não é exclusivamente teológico e a rica imaginação dos clérigos acentua a diversidade.
9
Em algumas traduções também é chamado de “O fisiólogo
1A natureza é um templo onde vivos pilares/ deixam às vezes sair palavras confusas/O homem passa sobre elas
através das florestas de símbolos/ Que o observam com olhares familiares. (TRAD. NOSSA)
26
O povo francês é, provavelmente, o que estudou com mais cuidado o homem através da arte e das
ciências que envolviam os animais. Calvet e Cruppi negam que seus conterrâneos procuraram
estabelecer sistemas de filosofia ou de moral. Os primeiros franceses a estabelecer estas relações
foram, também os primeiros de que se tem conhecimento a produzir os bestiários. Eles haviam
olhado os animais, a princípio, pelo prazer de vê-los para, em seguida, utilizá-los ou para se
defender contra eles. Mas toda literatura sendo então substância de “clérigo” e que deveria servir
à religião, indica possibilidades de se admitir possível, portanto, a presença de uma interpretação
religiosa a respeito da fauna.
Os bestiários propriamente ditos desenvolveram-se particularmente na Inglaterra, embora
também tenham conhecido algum prestígio na França, como demonstram os bestiários de
Philippe de Thaon (?-1154), Guillaume Le Clerc (1102-1128), Pierre de Beauvais (?-?) e Richard
de Fournival (1201-1260). Enquanto os manuscritos ingleses foram descritos a partir do latim, os
franceses são traduções para vernáculo do Physiologos grego.
Os mais importantes bestiários franceses são: o Bestiaire de Philippe de Thaon, o
Bestiaire de Gervaise, o Bestiaire Divin de Guillaume Le Clerc, as duas versões de Pierre de
Beauvais e Richard de Fournival com Le Bestiaire d’Amour. Todos são traduções para o francês
das versões do Physiologus grego, exceto do Bestiaire de Gervaise, que é uma tradução da Dicta
Chrysostomi, de origem italiana.
O Bestiaire de Philippe de Thaon (ou Thaun ou Than), o mais antigo bestiário francês,
escrito em torno de 1121 é, na realidade, a tradução rimada em francês do Physiologos, e o que
mais próximo se encontra do Physiologus grego. É constituído por 3194 versos, divididos em
trinta e oito capítulos, e é dedicado à rainha Aelis de Louvain, segunda esposa do rei Henrique I
de Inglaterra. Philippe de Thaon teria produzido também um ou dois lapidários
11
.
O Bestiaire de Gervaise é um bestiário com apenas 1280 versos rimados, produzido no
início do século XIII.
O Bestiaire de Guillaume le Clerc ou Guillaume de Normandie, como também é
reconhecido em estudos acerca do assunto, apresenta o mais longo dos quatro bestiários franceses
rimados: possui 3426 versos. É conhecido apenas como Bestiaire ou como Bestiaire Divin e é
11
Os lapidários medievais eram tratados que apresentavam, geralmente, os minerais de acordo com uma ordem
alfabética em que havia uma maior preocupação com o seu significado heráldico, o seu uso medicinal e a função
simbólica do que com a sua composição.
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dedicado a um Raoul. Foi produzido entre 1210 e 1211 e é, de todos os bestiários franceses,
considerado o mais popular.
Os bestiários são um fiel reflexo do imaginário da época e um produto típico do universo
cultural medieval dominado pelos clérigos. Os animais inspiravam tanto medo quanto admiração.
Para os homens medievais a fauna e a flora representavam um mundo misterioso, fascinante e, ao
mesmo tempo, ameaçador, uma vez que desconheciam muitas das explicações hoje existentes a
respeito da zoologia e dos fenômenos da natureza.
Na cosmovisão cristã, incontestada durante tantos séculos, cada animal e cada planta, os
rios e o relâmpago, a floresta e o arco-íris eram figuras de outra realidade sobrenatural e eterna.
Tudo o que Deus criou tinha um sentido profundo e os clérigos se empenhavam na descoberta do
significado de cada coisa ou ser criados. (WOENSEL. 2001)
O bestiário foi profundamente popular na Idade Média, devido à enorme importância do
neoplatonismo na cultura medieval. Ele assume-se, na verdade, como obra de raízes e tendências
neoplatônicas, ligando-se aos fundamentos subjacentes à exegese bíblica e à arte da memória.
Woensel o caracteriza ainda como um texto híbrido, revelando-se, ao mesmo tempo, como livro
naturalista, livro maravilhoso, livro de estudo, livro mnemônico, livro exegético, livro didático e
livro alegórico.
Foi a necessidade medieval de ler a Bíblia de uma forma alegórica que condicionou a
própria estrutura e organização do Livro dos Bichos. A teologia medieval, sobretudo o
pensamento de Santo Agostinho, entendia que a oposição entre signans (o significado
saussuriano) e signatum (o significante saussuriano) prefigurava a oposição entre o sensível e o
inteligível. Todas as coisas, res, em latim, possuíam um significatio - um sentido espiritual. Este
se revestia de uma componente alegórica, pela qual a maioria dos textos eram dotados de três
sentidos alegóricos que iam além do seu sentido simplesmente literal: o alegórico, propriamente
dito, o moral e o analógico ou místico. Todos eles se encontram no Bestiário em que os animais
se assumem como signos e símbolos de uma realidade transcendente, são revelações do Logos
divino, os quais que podem ser decodificados em sua estreita articulação com a Sagrada
Escritura. As suas características literais reveladas na primeira parte das narrativas (a naturas)
logo adquirem uma dimensão alegórica à qual se alia uma vertente moral (a figuras): o
comportamento dos animais vem mostrar de que forma o homem deve evitar o pecado e
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aproximar-se da virtude. Além disso, vem também ilustrar determinados momentos da Sagrada
Escritura, remetendo, finalmente, para uma interpretação mística e analógica.
Na verdade, as várias criaturas do Bestiário surgem constantemente referidas à voz, quer
através do texto escrito, quer através da imagem que o acompanha. No plano alegórico, esta voz
evidencia-se como manifestação da Palavra, que, na Bíblia, é sopro de vida e unidade criadora,
pelo que, também no Livro dos Bichos observa-se à transfiguração dessa voz não em sopro,
mas também em rugido (ex: o leão), hálito (ex: pantera), canto (ex: sereia) e até imitação do
discurso humano (ex: hiena).
A vertente alegórica e simbólica do Bestiário não se restringe ao texto escrito, mas
também inclui imagens. Na Idade Média, as imagens surgem como uma outra forma de leitura,
proporcionando aos que não sabiam ler as palavras registradas pela escrita uma compreensão
igualmente eficaz e viva das histórias bíblicas; as imagens constituem-se, portanto, como a
literatura dos laicos (litterature laicorum). Tal como o texto escrito, elas contam histórias: as
mesmas histórias narradas pelas palavras, ou até outras histórias, porque dão ênfase a um
determinado acontecimento narrativo, omitem alguns dados ou adicionam outros. Por essa razão,
tal como as palavras escritas, também as imagens são dotadas dos mesmos processos complexos
que estas envolvem, isto é, a sua interpretação se processa, igualmente, em duas etapas: a lectio e
a meditatio.Tal como acontece com o texto escrito, a imagem pode e deve ser lida de diversas
maneiras, em que o sentido literal é ultrapassado para ceder lugar aos significados alerico,
moral e analógico através da contemplação.
Por sua vez, as imagens narrativas, muitas delas evocando paisagens rurais ou ambientes
urbanos, têm a particularidade de representar a passagem do tempo, bem como os movimentos e
direções tomados por certas figuras e as seqüências narrativas da história ilustrada. É o que
acontece, por exemplo, com as imagens do castor fugindo dos caçadores, narrada pela primeira
vez no Physiologos e retomada pelas obras que o sucederam, em que a repetição das figuras dos
animais em momentos diferentes da ação representa a passagem do tempo e episódios variados.
Cabe ao ilustrador escolher o momento de criar a ilustração em que a narrativa apresenta o
seu momento mais significativo. Segundo Debon, Le Bestiaire mostra em diversos poemas que o
tempo não é imóvel, comprovado pelos estudos mais avançados dos tempos verbais Assim ocorre
com as souris” que róem peu à peua vida do poeta, com o leão desonrado que pára de nascer
em Hamburgo, com os animais que passent aux sons/de ma tortue, de mes chansons”. ainda
29
alusões ao tempo futuro, como no poema “Le cheval” “Mes durs rêves formels sauront te
chevaucher”, ou no poema Ibis”: Oui, j'irai dans l'ombre terreuse; ou os subjuntivos de desejo
ou ordem como no quarto poema com o título de Orphée” : N'oyez pas ces oiseaux maudits,, ou
o desejo de casar-se como aparece explicitamente em La colombe”: Qu’ avec elle je me marie.
momentos de interrogações como no poema Les sirènes”: Saché-je d'où provient, Sirènes,
votre ennui /Quand vous vous lamentez, au large, dans la nuit ?
Por outro lado, as próprias narrativas animais podem ser ambivalentes, uma vez que as
criaturas nelas descritas não funcionam como mbolos uniformes, podendo ser lidas in bono ou
in malo, dependendo do contexto em que surgem. (FONGARO, 1998)
O bestiário propriamente dito havia já desaparecido na transição da época medieval para a
renascentista. Com o surgimento do espírito humanista, os bestiários devotos e moralizantes
perderam parte de sua utilidade e popularidade. No século XVI, o drama shakespeariano revela
que as metáforas animais não possuem uma preocupação teológica ou exegética, mas
pretendem, por outro lado, discorrer sobre a organização do mundo social e político, cumprindo
ainda funções de natureza estética e ideológica. Desse modo, na sua apropriação da temática
animal, Shakespeare não recorre aos bestiários, mas às fontes clássicas, em especial às fábulas
esópicas que circulavam pela Europa no século XV. A presença dos animais nas peças de
Shakespeare revela o espírito antropocêntrico característico dos tempos da época. Porém, a
tradição dos bestiários teve uma sobrevida ainda em plena época renascentista como, por
exemplo, em Luis de Camões (1524-1580) que escrevia esporadicamente alguns poemas na linha
do bestiário. Um de seus sonetos retoma a lenda do canto do cisne para transpô-lo ao caso de sua
“Senhora minha” num poema intitulado “O Cisne”
12
.
Nos dias de hoje, perduram ainda algumas metáforas animais que remontam ao
simbolismo medieval, porventura as mais populares, como a da raposa manhosa e bajuladora, do
leão régio e majestoso ou do cão fiel. Outras histórias, contudo, como a da pantera de hálito doce
ou da doninha que concebe pela boca e à luz pelo ouvido, ficaram perdidas no tempo, nas
páginas dos manuscritos medievais ou nos bestiários em pedra construídos nas igrejas e catedrais
.
Alguns poetas da modernidade também se valeram de atribuições animais para ilustrar
algum comportamento humano. Entre eles temos Fernando Pessoa (1888-1935), Manuel
12
Poema completo incluído nos Apêndices dessa Dissertação.
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Bandeira (1886-1968), TS Elliot (1888-1965), Vinicius de Moraes (1913-1980), Jorge de Lima
(1893-1953), Murilo Mendes (1901-1975), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e na língua
francesa um dos precursores da modernidade, Charles Baudelaire (1821-1867). Alguns permitem
traçar um diálogo entre suas produções acerca dos animais com as de Apollinaire em relação à
temática, algumas estruturas e animais em comum, como os gatos e as corujas de Baudelaire, ou
as aves de Fernando Pessoa.
13
O bestiário enquanto gênero literário, erudito ou popular, foi caindo em desuso a partir do
século XVIII, época do Iluminismo, que rejeitava em bloco o legado dos séculos das trevas. Hoje
em dia, os bestiários, de uma maneira geral, não passam de uma breve menção nos manuais de
literatura e o conhecimento que se tem deles é indireto, ou seja, eles exerceram profunda
influência na história da cultura ocidental: na iconografia religiosa e profana, no imaginário
popular, na heráldica, na arte moderna, na literatura; em expressões da linguagem atual
encontramos alusões e referências aos bestiários como, por exemplo, as gargouillesas gárgulas
de Notre Dame de Paris em que dragões e monstros com suas grinaldas enigmáticas
petrificadas ou mesmo a lenda da fênix renascida das cinzas. (WOENSEL, 2001).
A estrutura mais utilizada e que remonta à maior parte dos bestiários medievais é
composta de três partes: a Figura (1), o título (2) e o texto (3):
(1)
(2)La Colombe
(3) Colombe, l’amour et l’esprit
Qui engendrâtes Jésus-Christ,
Comme vous j’aime une Marie.
Qu’avec elle je me marie.
14
(APOLLINAIRE, 2006, p. 170)
13
Exemplos das relações entre os poemas em um capitulo específico e em Apêndices.
14
Pomba, espírito, és amor,/geraste Jesus Salvador:/amo, qual tu, uma Maria./Que com ela me case um dia!
(WOENSEL, 2001, p. 159)
31
Apollinaire retoma esta estrutura em seu Le Bestiaire e mostra que, assim como no
bestiário medieval, sua obra também não é apenas uma mera coleção de imagens e textos
justapostos, mas uma construção sistemática e coesa: cada animal era escolhido em função do
aproveitamento que se podia tirar de sua descrição em vista de uma lição moral e contribuía para
a sua finalidade didática. Mostra também que o fio condutor que a atravessa e a une é a figura de
Orphée, espécie de porta-voz do poeta, responsável por unir e “conduzir” os poemas e as
gravuras que se seguem, embora, algumas vezes, sem nexo aparente entre eles.
2.1 O Lugar do Animal
As quadras e quintilhas de Le Bestiaire não abordam praticamente o animal de forma
direta: elas se utilizam do animal para falar do homem. Um exemplo desta prática é fornecida
pelo poema La Chèvre du Thibet”. O poema começa não pela cabra, mas pelos seus pêlos. A
metonímia é imediatamente explorada como referência desvalorizada em proveito de outros
“pêlos”, os cheveux dont je suis épris”, ou seja, os cabelos da amada do poeta que no caso,
referia-se à Marie Laurencin. O coelho fornece também um outro exemplo, pois ele é
imediatamente substituído por um “autre connin” cobiçado por um caloroso coelho estipulado
pelo jogo de palavras connin/lapin.
ainda o gato que é o único com quem o poeta sonha em sua casa. O felino aparece
apenas no terceiro verso do poema em uma estrutura central, pois é um poema formado por uma
quintilha. Os quatro dromedários começam e terminam o poema Le Dromadaire”, no entanto,
eles apenas acompanham o personagem principal, Don Pedro d’Alfaroubeira.
O animal é sempre introduzido por uma comparação. Tem-se, por exemplo, em La
Lièvre (Ne soit pas lascif et peureux/ Comme le lièvre et l’amoureux”), em “L’Eléphant”,
(“Comme um élephant son ivoire”), e em “L’Écrevisse”) “Comme s’en vont les écrevisses”).
Geralmente os poemas têm uma estrutura dupla: dois ou três versos são consagrados ao
animal, depois os dois seguintes (ou o seguinte), o introduzem como que o comparando, como se
analisará posteriormente em La Sauterelle”. O mesmo ocorre em Le Dauphin”, Le Poulpe”,
La Méduse”, “ La Colombe”, entre outros.
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Os demais poemas m estruturas ainda mais complexas, nas quais o animal e o humano
estão bem dispostos. Assim em La Puce, imediatamente uma ambiguidade identificada pela
justaposição “amis, amantes même”, de maneira que não se sabe se as pulgas são comparadas aos
amigos ou amantes ou se os amigos e amantes é que são comparados às pulgas. Na realidade,
Claude Debon (1998) acredita que eles são colocados exatamente sobre o mesmo plano, o que
cria um efeito humorístico. Em La Souris poema em que souris du temps como se viu
anteriormente, designa apenas indiretamente a figura do rato, evocada somente através do verbo
rongez”. Mesmo em La Tortueexiste essa relação, pois desde o início do poema a tartaruga é
identificada como o instrumento de música que serve para fabricar a lira.
Mesmo o pavão aparece apenas como o modelo presunçoso da pretensão humana, como
sugere a boa tradição fabulista. A derrière”, que finaliza a quadra, curiosamente, é sentida como
uma parte muito mais humano do que animal, pois Debon relembra que historicamente, o poeta
viu o que havia em comum entre ambos e designou inicialmente essa parte da anatomia do
animal que se familiarizou de imediato com a do homem. É necessário aqui ainda ressaltar que
este aspecto do bestiário é o mais tradicional: ele se remete à uma literatura muito antropocêntrica
por fazer do animal seu próprio objeto. O animal aparece apenas numa relação com o homem ou
com Deus, a serviço de um projeto do qual ele não é o fim, ou ainda, o que interessa à literatura
medieval no animal é que o seu conteúdo atinja o homem.
33
3 A FÁBULA
A presença da fábula e do lirismo são primordiais para a compreensão e análise de Le
Bestiaire de Apollinaire: a fábula possui a mesma gênese que o bestiário, entretanto, num certo
momento, há uma dissociação dos conceitos que unem os dois gêneros, permitindo que se
desenvolvam paralelamente, cada um com características e estruturas próprias. A presença do
lirismo na obra de 1911 deve-se a influências românticas e simbolistas do século XIX que o poeta
recebeu, antes de aderir à ruptura de algumas das estruturas da época e que representa, nessa
coletânea, um equilíbrio entre o tradicional e o moderno, importantes para compreendermos a
evolução do poeta na lírica moderna do século XX.
3.1 A fábula
O bestiário, assim como a fábula, tem a preocupação de atribuir aos animais certas
características humanas, somadas, em alguns casos, às aptidões e características naturais dessas
criaturas. Criaturas porque se reconhece nos modelos de bestiários mais antigos a presença dos
seres fantásticos que, mesmo na atualidade, fazem parte do universo imaginário de outras
manifestações artísticas, psicológicas e sociais, que vão além da narrativa e da poesia.
A fábula e o bestiário apresentam pontos em comum que não se limitam apenas à
presença de animais em suas literaturas nem tampouco ao caráter moralizante que seus conteúdos
costumam englobar. Ambas possuem aspectos comuns que as aproximam e seus autores mais
antigos, possivelmente, tiveram as mesmas leituras sobre a origem, os costumes e, sobretudo, a
propósito dos mistérios que circundavam esses animais, atribuindo-lhes o caráter místico e
simbólico que chegou aos nossos dias.
Na fábula, o animal age e fala como um ser humano com fins didáticos. No bestiário
também, mas o autor se propõe a descrever o animal com suas características naturais para
constituir uma rede simbólica significante ao homem, a seu destino e à grandeza de Deus.
Não se deve confundir os bestiários com as fábulas em verso ou prosa que remontam aos
poetas clássicos Esopo, na língua grega, e Fedro, em latim. Via de regra, elas representam como
protagonistas animais dotados de fala, raciocínio e comportamento de todo humano;
infalivelmente, cada história contém, no início ou no fim, uma lição de conduta humana, às vezes
a ilustração de um provérbio ou um dito da sabedoria das nações. Mas cada fábula contém uma
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intriga, um encontro de dois ou mais animais, um incidente qualquer que leva a uma lição. Nos
bestiários, pelo contrário, não há conflito e a lição é deduzida a partir da descrição “científica” da
natureza de um animal.
Coube a cada autor selecionar e determinar quais características e quais símbolos
exploraria ao realizar o seu trabalho dentro do contexto em que estava inserido, o período
literário que representava e o compromisso em destacar o papel social do poeta.
A fábula e o bestiário começam a percorrer caminhos literários diferentes no momento em
que cada um adota um estilo próprio de falar do homem através dos animais.
A fábula estrutura-se numa narrativa cujos personagens são animais e um conflito a
resolver-se, uma conseqüência e, implícita ou explicitamente, há uma moral embutida neste
pequeno texto. Dois ou mais animais por fábula narrada, cada qual com as suas características,
interagem através de diálogos, que são somados ao comportamento humano que mais se
aproximam daquelas previamente estudadas naqueles animais. O animal fala como um ser
humano, podendo, muitas vezes, ter subtraída a sua verdadeira natureza, do ponto de vista
biológico, passando, portanto, a pertencer somente a uma natureza de caráter puramente
simbólico.
As verdades corporificadas na narrativa constituíram a “alma” da fábula, podendo estar ou
não explicitadas pelo narrador. Assim, segundo Dezotti, a fábula estando explícita em uma
moralidade ou implícita na narrativa, o seu caráter pedagógico é o traço que a diferencia dos
outros gêneros próximos a ela como o mito, a lenda, o conto popular e o bestiário.
O bestiário apresenta uma estrutura mais complexa por ter maior diversidade de recursos
artísticos, podendo variar entre uma narrativa e um poema com elementos pictóricos, como
podemos comprovar com a leitura de Le Bestiaire. O animal do bestiário não é dotado de fala e
nem apresenta qualquer interatividade direta como na fábula, assim como também o gênero, de
um modo geral, não contém um conflito que envolva a narratividade, gerando alguma
conseqüência.
Como se verifica com leitura dos poemas de Apollinaire, o animal de seu bestiário possui
um caráter didático, mas também pode simplesmente representar uma anedota acerca de algum
hábito humano sem uma obrigação de moral da história como nas fábulas ou mesmo nos
bestiários tradicionais. Portanto, o sentido que se pretende atribuir ao bestiário não é apenas o de
ter uma moral, mas o de possibilitar interpretações diversas acerca do animal representado nos
35
poemas, mesmo quando o poeta do Le Bestiaire distorce alguns significados a fim de provocar e
inovar em sua lírica, ora trazendo leveza, ora críticas e reflexões sobre o comportamento humano
ou, de forma metalingüística, a condição do poeta.
Madeleine Boisson em Apollinaire et les Mythologies antiques (1989) afirma que o
recurso à mitologia nas obras de Apollinaire não é gratuito e não possui apenas a beleza, mas a
verdade que ele pretende revelar. Para ele o “mito reveste a verdade” (p.55). Apollinaire usa a
palavra fábula referindo-se a mito, tornando-os sinônimos.
Essa idéia é reforçada em sua conferência sobre o espírito novo ao afirmar que se pode
exprimir uma suposta verdade a fim de causar surpresa porque ainda não se ousou apresentá-la. O
poeta toma como exemplo o mito de Ícaro o qual ele chamou de fábula:
Tant que les avions ne peuplaient pas le ciel, la fable d’Icare n’était qu’une verité
suppose. (APOLLINAIRE, 1991, p. 950)
Apollinaire utiliza a lírica e o papel que julga caber aos poetas de “criadores, inventores e
profetas”. Em Le Bestiaire, o poeta reconta as bulas, recheando-as de mitos. Fato observado a
cada quadra ou até mesmo nas notas que incluiu no final da obra para explicar algumas delas.
Em suas quadras encontram-se diversos personagens e nomes que fazem alusões aos
mitos e lendas colocando no mesmo plano as histórias cristãs e pagãs a começar pelo próprio
Orfeu cujo personagem é recriado, em um dos poemas com o mesmo nome, como um Orphée
dentro dos moldes dos primeiros Cristãos. não falta nem mesmo a figura do peixe, referindo-
se à história da proximidade de Cristo com os antigos pescadores; ou um outro Orphée cuja
ilustração que acompanha o poema o mostra trajado como as estátuas gregas. ainda
personagens como o próprio Cristo, o querubim, dois Hermes que serão apresentados durante as
análises dos respectivos poemas, Eva, Cleópatra. Porém, é a figura de Orfeu que apresenta a
maior diversidade literária: na mitologia grega todos os Orphées, o poema La Tortue”, em
que aparece também a Thrace magique”, La chèvre du Thibet”, onde surge, implicitamente,
juntamente com Jasão, e indiretamente em Les Sirènes”. As referências cristãs aparecem, por
exemplo, em Le serpent”, La Sauterelle”, La Colombe”, e Le boeuf”; na literatura francesa
tem-se o poema Le Lapincom o país de Tendre e a mitologia geral, como no poema Le
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Dromadairea partir da interpretação do Le Monde Enchanté de Ferdinand Denis, as moscas
gânicas do poema “La Mouche, o íbis egípicio em “Ibis”.
Amorim (2003) ressalta que para Apollinaire a “fábula ora identifica-se com mitos, ora
com lendas, e até com experiências pessoais”. (p.35). Cada animal escolhido para integrar Le
Bestiaire possui interpretações desde a natureza biológica do animal, com um caráter científico,
até fatos duvidosos ou distantes do significado original. Novamente torna-se função do poeta,
portanto, selecionar esses dados e recriar a sua própria fábula. É o que ocorre, por exemplo, com
o terceiro poema intitulado Orphée que introduz a série dos animais aquáticos e é um dos raros na
obra compostos em alexandrinos:
Orphée III
Que ton coeur soit l'appât et le ciel, la piscine !
Car, pêcheur, quel poisson d'eau douce ou bien marine
Egale-t-il, et par la forme et la saveur,
Ce beau poisson divin qu'est JÉSUS, Mon sauveur ?
15
(APOLLINAIRE, 2006, p. 162)
Além disso, é também um dos poucos que vêm arrematados com uma lição
aparentemente devota e catequética, nos moldes dos bestiários medievais.
A gravura
16
igualmente carrega em si significados que completam o sentido do poema
verifica-se, portanto, uma mistura à beira-mar em que há um Orfeu, o herói pagão, cercado de um
veleiro, moluscos e peixes, segurando sua inseparável lira. Estes são símbolos cristãos antigos
com os quais Apollinaire entrelaça à sua lírica. Aqui, a interpretação do peixe remete às
narrativas evangélicas da convivência de Jesus com Pedro, And e outros pescadores
profissionais, como a multiplicação dos pães e dos peixes: pão, peixe e vinho, a cesta básica dos
apóstolos.
Essa imagem se distingue das demais pelo fato de que nela aparecem letras; lê-se no
dorso do golfinho a palavra em letras gregas maiúsculas que se trata do termo grego para “peixe”,
mas por acaso, Woensel (2001) lembra que as cinco letras são as letras iniciais da fórmula do
ritual cristão em grego, para “Jesus Cristo Filho de Deus Salvador”. É válido ressaltar que esta
fórmula, e por extensão o desenho do peixe, constituía para os cristãos, especialmente em épocas
de perseguição, uma espécie de senha secreta para os iniciados. Desta forma, Dufy e Apollinaire
15
Tua alma seja a isca, teu viveiro seja o céu!/ Há peixe no mar ou rio, pecador réu,/que possa igualar, por sua forma
ou sabor,/o belo peixe divino, JESUS Salvador? (Trad. Woensel)
16
Gravura 18 em Anexos.
37
retomam a linguagem e o simbolismo dos cristãos dos primeiros séculos sem, contudo, deixarem
de inovar, pois o Orfeu desta gravura é diferente dos outros três. Apesar de segurar a lira, símbolo
da mitologia pagã, ele usa uma túnica dos primeiros cristãos e seu dedo em riste evoca a típica
pose dos santos na tradicional iconografia.
No entanto, a mensagem devota tem uma conotação irreverente, que o poeta
aproxima o peixe, símbolo religioso, do peixe feito iguaria; peixe.../que possa igualar, pela
forma ou sabor,/ o belo peixe divino, Jesus Salvador?”
As experiências pessoais de Apollinaire se inserem no conteúdo dos poemas e servem
de exemplos para se estabelecer correspondências entre o animal e o comportamento do homem.
Uma das inovações que Apollinaire traz às suas “fábulas” é a opção em incluir ou não a “moral
da história”. Ele não se limita à inspiração simbolista que lhe trouxe tantas lendas e fábulas,
tantos heróis místicos e inquietantes. Pelo contrário, ele lhes dá uma roupagem diferente daquelas
que empregaram seus antecessores como uma espécie de renovação e, ao mesmo tempo, de certa
popularização dos mitos, tornando-os conhecidos, dialogando com a tradição, reformulando-a e
reativando-a. A análise do poema acima permitiu observar um exemplo da dessacralização e
esvaziamento de seus significados, ou seja, a fábula pode ser transformada e invertida e é recriada
em diferentes versões, novas e inovadoras, surgindo dessa criação um elo com a lírica, passado e
futuro, tradição e modernidade, sagrado e profano, continuidade e fragmentação.
38
4 O LIRISMO
Apollinaire contribuiu para a formação de uma lírica moderna do século XX a partir de
fundamentos teóricos iniciados por Charles Baudelaire (1821-1867). Esses fundamentos
somaram-se às novas experiências artísticas que o autor de Le Bestiaire exercitou e apresentou
aos novos poetas em sua conferência L’esprit nouveau”, consolidando-se, portanto como
fundador de tendências. Essas tendências influenciariam profundamente os artistas posteriores.
Temos o maior exemplo disso com o uso que o poeta fez pela primeira vez da palavra
surréalisme
17
, resultando na criação do movimento de mesmo nome, inaugurada por André
Breton e Louis Aragon. Essa conferência é resultado de suas práticas artísticas que determinaram
a trajetória literária do poeta e já verificadas em seu Le Bestiaire.
Uma dessas práticas pode ser reconhecida na primeira parte da conferência que ele
proferiu em 1917, seis anos após a publicação de seu bestiário, considerado distante e obsoleto
em relação às novidades estéticas que sucederam a sua publicação. Entretanto, o autor de
Caligrammes mostra em seu discurso que não renuncia ao passado ao contrário da vanguarda
estética do começo do século XX, pois segundo ele, os clássicos nos dão uma herança pautada no
bom senso e na crítica. (APOLLINAIRE apud CAMPA, 1996)
Para Apollinaire a lírica moderna do século XX é dotada de um novo espírito que é, antes
de tudo, inimiga de esteticismos, de fórmulas e de qualquer esnobismo. Esse novo espírito não
luta contra escola alguma, pois ele não pode querer ser uma escola, mas uma das grandes
correntes da literatura, englobando todas as escolas, desde o simbolismo e o naturalismo. Ele luta
para o restabelecimento do espírito de iniciativa, para a clara compreensão de seu tempo e para
atender às novas visões sobre o universo exterior e interior que não são inferiores àqueles que os
sábios de todas as categorias descobrem a cada dia e das quais tiram maravilhas.
Podemos supor, portanto, que Apollinaire manteve alguns elementos da lírica de
Baudelaire e inovou em outros e que o seu Le Bestiaire não possui apenas as características que
mantém suas quadras distantes das inovações líricas que seu autor trouxe à modernidade das duas
primeiras décadas do século XX. É possível, nessa coletânea, estabelecer algumas
correspondências que sustentam a lírica baudelairiana e da qual Apollinaire usufrui não só em seu
bestiário como também em outras obras, como poderemos depreender.
17
A obra teatral Les Mamelles de Tirésias publicado em 1917.
39
O soneto Correspondance” de Les Fleurs du Mal de Charles Baudelaire pressupõe que o
poeta possui um sentido divinatório ao estabelecer relações com a natureza e, através dela, ele
tem a tarefa de perceber as analogias e estabelecer as correspondências que revestem o aspecto
literário da metáfora, do símbolo, da comparação ou da alegoria. (RAYMOND, p. 21). A
primeira estrofe considera a natureza um templo e cabe ao homem (o poeta) desvendá-la:
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.
Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.
Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,
Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.
18
(BAUDELAIRE, 1985, p. 114)
O poema La Chèvre du Thibet que está incluído entre os poemas de Le Bestiaire é um
exemplo dessa prática, pois contém elementos que permitem a Apollinaire estabelecer a
correspondência entre o homem e a natureza, entre a poesia e a narrativa. Natureza porque se
refere à presença de um animal e que, a partir de uma particularidade da natureza desse animal, é
que o poeta desenvolve a sua lírica estabelecendo uma comparação, uma correspondência, entre
“le toison d’or”, com os cabelos de sua amada. A presença implícita da narrativa na pequena
quadra é necessária para intensificar essa correspondência e também importante por atribuir à
lírica um valor elevado que justifique a intensidade do sacrifício do poeta dentro do contexto do
poema:
La Chèvre du Tibet
18
A natureza é um templo onde vivos pilares/Deixam filtrar não raro insólitos enredos;/O homem o cruza em meio a
um bosque de segredos/ que ali o espreitam com seus olhos familiares./Como ecos longos que à distância se
matizam/Numa vertiginosa e lúgubre unidade,/Tão vasta quanto a noite quanto a claridade,/Os sons, as cores e os
perfumes se harmonizam./Há aromas frescos como a carne dos infantes,/Doces como o oboé, verdes como a
campina,/ E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,/ Com a fluidez daquilo que jamais termina,/ Como o
almíscar. O incenso e as resinas do Oriente,/Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. (BAUDELAIRE, Les
Fleurs du Mal, 1985, p 115. Trad. Ivan Junqueira)
40
Les poils de cette chèvre et même
Ceux d'or pour qui prit tant de peine
Jason, ne valent rien au prix
Des cheveux dont je suis épris. (APOLLINAIRE, 2006, p.148 )
A correspondência é uma das características que Apollinaire manteve em sua lírica,
inovando-a, porém, alguns aspectos são implantados e somados ao o fascínio demonstrado pelo
poeta com as máquinas, principalmente após ter visto seu crânio radiografado. Esse novo
universo será apresentado nos poemas de Apollinaire que creditara a ascensão tecnológica à
imaginação. Sua composição mais célebre, “Zone”, é cheia de termos adquiridos diante da “febre
apollinariana pelo novo”: os carros, os hangares de aviões, os prospectos dos catálogos de
anúncios que o próprio poeta considera como poesia, os jornais, o avião, os aviadores, a máquina
de tração são todos mesclados e rodeados de um ritmo tão frenético para sua época. (AMORIM,
2003).
A visão simbólica que o poeta toma do mundo sensível é o que precisa para forjar uma
visão simbólica de si mesmo ou de seu sonho e é nesse aspecto que Apollinaire se distancia de
seu precursor, pois Baudelaire demonstra, segundo Amorim:
O poeta de “Correspondances” considera a cidade pavorosa repleta cheia de
uma beleza artificial. Os cidadãos são angustiados diante do anonimato, pois não se pode
mais reconhecer as pessoas das ruas. Eles são apenas fragmentos de uma loucura que se
entedia e que habita uma cidade cheia de máquinas, esses seres formidáveis com os quais
o homem está familiarizado.(AMORIM, 1997, p.17)
Se Baudelaire teve como mérito fazer da paisagem urbana, das casas, dos quartos e os
interiores, o “objeto de sua contemplação” e de ter percebido até em sua feiúra e em seus
disparates analogias secretas e contradições, Apollinaire, por sua vez, torna possível o mesmo
efeito tendo em seus animais o pano de fundo para exprimir seus sentimentos mais intensos.
O século XX inaugura a época da recriação contínua da linguagem, o que acarreta um
rompimento com as regras gramaticais e com a ordem do discurso proposto por Rimbaud
quando Apollinaire fez uso dos versos livres. Esse pensamento teria o seu auge de radicalismo
com o Manifesto Futurista de Marinetti, principalmente em relação à pontuação dos textos.
(FRIEDRICH, 1978)
41
Na medida em que a lírica moderna se define em relação ao leitor, também se define
como ataque a esse mesmo leitor, pois a ruptura entre autor e público é mantida por meio de
efeitos de choque. Em relação à palavra em si, o substantivo ganha em intensidade e se eleva
acima de sua significação corrente, assim como a ambigüidade é acentuada sempre no discurso
humano, a fim de elevar a linguagem poética acima da linguagem usual, ainda mais amiúde do
que fez a poesia anterior tornando insólito aquilo que é familiar. Se todas as regras são
observadas, a poesia pode tornar-se o prazer das pessoas que sabem apreciá-la como demonstra o
décimo sétimo poema de Le Bestiaire, “La Sauterelle”:
Voici la fine sauterelle,
La nourriture de saint Jean.
Puissent mes vers être comme elle,
Le régal des meilleures gens
19
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 161)
Com a ajuda desta quadra, o poeta exprime certo esoterismo: somente as pessoas de boa
educação sabem apreciar os versos, para quem ele os escreveu, ou seja, é preciso um preparo por
parte do leitor para que a poesia seja verdadeiramente apreciada, ou seja, o santo profeta da
quadra serve para introduzir outra lição” no campo da poesia: o poeta associa seus versos ao
“fino manjar”, no caso, o gafanhoto, o que revela certa ironia. Apollinaire faz alusão à história de
São João Batista, ao destacar em nota um trecho bíblico de São Marcos I, 6, traduzido do latim e
que revela a ligação do poema com a figura do santo:
“E João se vestia com pêlos de camelo e cingia-se com um cinturão de
pele e alimentava-se com gafanhotos e mel selvagem.” ( APOLLINAIRE, 2006 p.
177. Tradução de Woensel)
A fim de enfatizar as correspondências que Apollinaire estabelece entre suas obras, eis em
Alcools também é explorada a figura de São João Batista, o que mostra o quanto esse persongaem
bíblico fascinou o poeta na época de seus amores não correspondidos. No poema Saloméa
história do santo é recontada:
Pour que sourie encore une fois Jean Baptiste/Sire je danserais mieux que les séraphins
20
19
Eis o gafanhoto, manjar/fino e esquisito de São João./Possam meus versos deliciar/gente de boa educação
(WOENSEL, 2001, p. 141)
20
Para que uma vez mais João Batista sorria/Senhor eu dançarei melhor que um serafim. (APOLLINAIRE, 2005,
p.59. Tradução de Daniel Fresnot)
42
A personagem é apresentada como alguém apaixonada pelo profeta, mas quando este a
rejeita, seu amor transforma-se em ódio mortal que custa ao santo homem a própria cabeça. Em
Le Bestiaire o poeta volta a evocar a figura de João Batista, com quem se identificava, na época
de seus amores frustrados. Dufy destacou na gravura
21
o contraste entre as casas, o mundo dos
homens, naparte superior e, embaixo, uma rica vegetação, o mundo do guloso inseto.
(WOENSEL, 2001)
A lírica do século XX traz, portanto, originalidade a partir da ruptura das tradições que,
entre outras novidades, propõe a abolição da pontuação, o uso preferencial pelos substantivos, e a
fragmentação das idéias, o que provoca, conseqüentemente, um distanciamento entre o poeta, sua
poesia e o leitor, acarretando um obscurantismo herdado dos autores simbolistas, principalmente
de Mallarmé. Entretanto, traz também uma poesia que é rica de versos plenos de ressonâncias, de
um patrimônio universal poético mítico e arcaico em que ecoam assuntos e lendas heróicas da
Idade Média e da Antigüidade. Em Apollinaire, isso se comprova com a leitura não apenas do seu
Le Bestiaire, mas com obras mais conhecidas como Alcools e Caligrammes, representantes de
sua fase mais moderna.
O leitor da primeira fase poética de Apollinaire se ainda diante de uma poesia
preocupada com uma estrutura que lhe permita reconhecer elementos musicais provocados por
efeitos como rima, métrica e ritmo, além de estar tradicionalmente pontuado. Além disso, a
presença dos mitos antigos das histórias e lendas que enriquecem os seus breves versos,
colaboram para dar maior obscuridade às quadras que compõem Le Bestiaire.
Os poemas contidos na coletânea de 1911 não se desprenderam da pontuação, cuja
ausência tornaria seu poeta tão conhecido e um dos primeiros de seu tempo a aboli-la totalmente.
A preocupação com a musicalidade, provocada principalmente pelo jogo de palavras que sustenta
a maioria dos poemas de sua primeira coletânea poética, demonstra a coerência entre forma e
conteúdo, reforçando o mito de Orfeu, que produz a música com a sua lira e conduz os animais
aparentemente dispersos em suas quadras, como expresso anteriormente na leitura do poema La
Tortue”.O poeta futuramente argumentaria a favor dessas estruturas afirmando que a assonância,
a aliteração, assim como a rima são convenções e que cada uma tem seus méritos, sem deixar de
demonstrar mais uma vez o seu fascínio pelas máquinas, principalmente a tipografia, considerada
21
Figura 17 em Anexos.
43
um artifício que impele para muito longe e com uma grande audácia e com a vantagem de fazer
nascer um lirismo visual desconhecido até o momento. Esses artifícios podem ir muito longe
ainda e consumar a síntese das artes, da música, da pintura e da literatura.
Ainda segundo Friedrich, a poesia veio colocar-se em oposição a uma sociedade
preocupada com a segurança econômica da vida. Torna-se o lamento pela decifração científica do
universo e pela generalizada ausência de poesia; derivou daí uma aguda ruptura com a tradição,
de originalidade poética, a qual se justificou, recorrendo à anormalidade do poeta. A poesia
apresenta-se como a linguagem de um sofrimento que gira em torno de si mesmo, que não mais
aspira à salvação alguma, mas sim à palavra rica de matizes; a lírica foi, de agora em diante,
definida como o fenômeno “mais puro e sublime da poesia” que, por sua vez, colocou-se em
oposição à literatura restante e arrogou-se a liberdade de dizer sem limites e sem consideração
tudo aquilo que lhe sugeria uma fantasia imperiosa, uma intensidade estendida ao inconsciente e
o jogo com uma transcendência vazia. Esta transformação espelha-se muito nas categorias com as
quais poetas e críticos falam da lírica.
Por outro lado, Marcel Raymond em De Baudelaire ao Surrealismo (1997) acrescenta à
teoria de Friedrich que Apollinaire vai muito mais além chamando-o de “revolucionário” e
conclui que existia nele algo do profeta, do vidente. Se ele estimulava as experiências literárias
mesmo arriscadas é porque elas lhe pareciam dever fornecer matérias para um “novo realismo” o
qual acarretou numa nomenclatura a qual foi o primeiro a chamar de surrealimo. Um exemplo é a
conferência que o autor de Le Bestiaire proferiu, L’esprit nouveau, discorre a respeito do papel
atribuido ao poeta, que deve ser visto como um ser criador, inventor e profeta:
L’esprit nouveau exige qu’on se donne de ces tâches prophétiques. C’est pourquoi
vous trouverez trace de prophétie dans la plupart des ouvrages conçus d’après l’esprit nouveau. Les jeux
divins de la vie et de l’imagination donnent carrière à une activité poétique toute nouvelle.
22
(Apollinaire,
1991, p. 950)
L’esprit nouveau é, possivelmente, o resultado das constantes aspirações de Apollinaire
em equilibrar o novo e o antigo. Laurence Campa em L’esthétique de Apollinaire ( 1996) admite
que o poeta de Le Bestiaire valoriza a inovação sem preconizar a ruptura com as correntes
22
O espírito novo exige que se entreguem a tarefas proféticas. Eis porque encontrarão traço de profecia na maior
parte das obras concebidas conforme o espírito novo. Os jogos divinos da vida e da imaginação dão ampla
liberdade a uma atividade poética totalmente nova. (TRADUÇÃO NOSSA)
44
literárias e os criadores que a precedem, pois acredita que não se pode reproduzir eternamente as
belas formas do passado ou manter artificialmente os movimentos artísticos adormecidos que
fizeram seu tempo. A estética de Alcools, por exemplo, deve muito ao simbolismo mas esta
coletânea não representa o seu fim. Interpretá-la assim seria menosprezar o trabalho do poeta
sobre essa herança e a novidade da qual ele é prova.
A época de Apollinaire é fértil em produzir uma nova arte e todas as tentativas pictóricas
ou literárias que vão nesse sentido recebem o seu apoio e as acolhe generosamente, o que suscita
uma posição delicada nos meios artísticos: de um lado, ele afronta a estética do passado,
comprovada pelo fascínio que o discurso de Marinetti exerceria sobre sua posição estética, por
exemplo. Além disso, Campa alude a um artigo feito pelo poeta de Le Bestiaire no Mercure de
France
23
em que defende a liberdade e a audácia do poeta em ousar num momento de rupturas e
críticas a tudo que esteja ligado a uma tradição e aproxima suas idéias com as do poeta do
moderno contrastando-os e mostrando que, embora com visões diferentes seja de política, seja de
literatura, podem ter um ponto em comum mais importante que os aproxima:
“N’appartiennent-ils pas tous deux a une même communion, celle de la divinité
d’Homère? (APOLLINAIRE apud CAMPA, 1996, p. 200).
Apollinaire aproxima aqueles, os artistas, que tem o même amour pour la divine poesie
e com isso, assume uma posição paradoxal que marca outro texto em que afirma:
“On ne peut transporter partout avec soi le cadavre de son
père”
24
.(APOLLINAIRE 1991, p.6)
Campa observa que Apollinaire, de certa forma, não apresentava tanto radicalismo em
seus discursos, estabelecendo um equilíbrio entre as idéias novas que serviriam para impulsionar
outros artistas como Breton e os surrealistas, seus herdeiros literários mais próximos e as
tradições que ainda o ligavam ao Simbolismo. Essa posição se repetiria em vários veis nas
produções literárias e produções sobre a estética de Apollinaire. Freqüentemente se pensa que
esta recusa ao dilema entre o velho e o novo poderia levar à esterilidade e à paralisia, mas seria
23
Mercure de France, nov. de 1918.
24
Não se pode transportar consigo por toda parte o cadáver de seu pai (TRAD. NOSSA)
45
menosprezar a fecunda tensão entre passado e futuro, invenção e tradição. É sobre ela e não sobre
sua redução, sua anulação ou sua síntese que se constrói a escrita e a estética
apollinarianas.(CAMPA, 1996)
Mas o novo existe sem ser um progresso. Campa observa uma presunção com o uso das
palavras “moderno” e “novo”. Apollinaire utiliza pouco a palavra “moderne”, ele a emprega
como sinônimo de atual, de contemporâneo. a palavra nouveau” evoca, para o poeta, o
surgimento da audácia, do acontecimento e da surpresa. E é através da surpresa que o novo
espírito se distingue de todos os movimentos artísticos que o precederam. (CAMPA, 1996)
Temos no poema “La mouche” um exemplo de surpresa que é acentuada e transformada a
partir de um evento corriqueiro, como a visão de uma simples mosca, que assume, porém, uma
dimensão muito além da discussão entre moderno e antigo; ao contrário, mostra um equilíbrio
nos versos de Apollinaire, amplia-se a simplicidade do inseto para uma lenda e, logo em seguida,
para um ensinamento. Ele atribui às palavras dimensões mágicas na quadra, em que a mosca
exerce um papel especial: não mais o de uma mosca do dia-a-dia, mas o de uma mosca gânica:
La mouche
Nos mouches savent des chansons
Que leur apprirent en Norvège
Les mouches ganiques qui sont
Les divinités de la neige.
25
(APOLLINAIRE, 2006, p. 159)
A lição do poema diz respeito ao universo da poesia: assim como as moscas enfeitiçadas,
o poeta também possui o segredo de canções mágicas, que são seus versos, com os quais encanta
seus ouvintes/leitores. Dado o exemplo de entoar narrativas em seus poemas, Apollinaire incluiu
uma nota sobre La mouche explicando que estas moscas não aparecem sob a forma de flocos,
mas muitas foram adestradas por feiticeiros finlandeses, aos quais obedecem. Os magos as
entregam de pai para filho, e as guardam presas em uma caixa, invisíveis, prestes a voar em
enxames para atormentar os ladrões enquanto cantam palavras mágicas, tão imortais quanto elas
mesmas. (DEBON, 1988). O poeta mostra também que a força transformadora da poesia reside
na fantasia metafórica que produz imagens irreais que têm o valor de mitos e aproximam os
campos distantes entre si. Essas imagens irreais com valor de mito revelam a necessidade que o
25
Nossa mosca sabe a canção/que na Noruega lhe ensinaram/moscas magas, a geração/que os deuses da neve
engendraram. ( WOENSEL, 2001, p.137)
46
poeta demonstrava, já em seu bestiário, de se valer da verdade, embora afirmasse que a sua
suposta verdade não fosse mais extraordinária nem mais verossímil que a dos gregos que
mostravam Minerva saindo armada da cabeça de Júpiter, como afirmou na conferência sobre o
esprit nouveau”.
A noção de artista e criador não se limita apenas a quem se proclama poeta. A poesia não
se encerra, portanto, no autor, cabendo ao leitor a “graça de poetar”. (FRIEDRICH, 1978). Um
dos pontos fortes que revolucionou a estética moderna, a falta de pontuação dos versos, tornar-se-
ia um fio condutor da responsabilidade que caberia ao leitor atribuir ao poema lido à diversidade
que a sua imaginação e combinações permitissem. Apesar de a pontuação ainda fazer parte de Le
Bestiaire, ela não impede as inúmeras interpretações que cada um pode depreender no conjunto
que unem a figura pictórica, o título, e os versos, onde o poeta cria e permite que o leitor (re)crie
a sua arte.
Em relação à palavra em si, o substantivo ganha em intensidade e se eleva acima de sua
significação corrente, assim como a ambigüidade é acentuada sempre no discurso humano, para
assim tratar a linguagem poética acima da linguagem usual, ainda mais amiúde do que fez a
poesia anterior, tornando insólito aquilo que é familiar. O exemplo do poema La Mouche
estende-se ao contexto obscuro que encerra e distancia, ou estreita a relação entre o poeta e o
leitor.
O que torna alguns versos de Le Bestiaire obscuros é a intensa presença de mitos e lendas,
somados à simbologia nem sempre tão evidente a qual cerca a figura dos animais, embora a
natureza destes fosse preservada, embora, por vezes, seja ignorado pelo grande público mais
habituado às fábulas, em que os animais são dotados de fala e sempre uma moral no final da
história. O conhecimento de fábulas e mitos que não se restringem apenas à figura do animal
representado na quadra, mas também às referências trazidas de modo fragmentado entre os
versos, os chamados intratextos, fazem a ligação com a poesia moderna de Apollinaire, ou seja, a
sua recriação sobre um mito, uma lenda ou uma história que se desdobra em significados de
acordo com o conhecimento do leitor. Assim, torna-se possível estabelecer uma relação tríplice
entre o leitor, o autor e a poesia, esta adquire seu valor prático, pois o autor atribui ao leitor a
responsabilidade de conduzir sua poesia até o seu entendimento, podendo aferir a ela diversos
significados, alguns até mesmo de caráter paradoxal.
47
O lado paradoxal encontrado na lírica de Apollinaire mostra que o poeta vive em um meio
perigoso, porém, indispensável pois é a fonte da sua inspiração. No poema Le dauphin”, ele se
deleita nas ondas amargas da vida. (WITTEMBERG, 1985)
Dauphins, vous jouez dans la mer.
Mais le flot est toujours amer.
Parfois ma joie éclate-t-elle?
La vie est encore cruelle
26
.(APOLLINAIRE, 2006, p.163)
Os golfinhos são comparados aos poetas, aqueles que não são fiéis à forma e que têm o
gênio espontâneo. O golfinho possui a imagem clássica da alegria, ele brinca alegremente na
amargura dos movimentos do mar, assim como o poeta se deleita com a vida amarga. Este
amargor é explorado pelo poeta através de um jogo de palavras. É uma quadra com elementos
emocionais gradativos: Dauphins, vous jouez dans la mer” e a este mar, onde os golfinhos
brincam, um gosto amargo: Mais le flot est toujours amer”. La mer” e amer”: O mar amargo,
local onde os golfinhos brincam, e suas presenças ali saltitando trazem uma conotação leve de
brincadeira e alegria, assim como alude também ao mau tempo, cuja presença no mar, com o
movimento das águas em que brincam, – le flot - prenuncia tempestade e perigo.
O pessimismo do poeta nos versos formadores desta quadra completa-se com a imagem
que podemos visualizar da xilogravura
27
onde se percebe um mar ameaçador, repleto de ondas
altas que cercam um estranho navio: tem suas grandes velas abertas, mas é movido a rodas
hidráulicas e seus caldeirões funcionam a todo vapor, a julgar pela longa fumaça preta saindo de
uma alta chaminé. E ao finalizar com o verso la vie est encore cruelle”, percebe-se que o poema
não apresenta uma moral como na maioria dos poemas de Le Bestiaire, e não segue, portanto, a
didática embutida na tradição medieval. No entanto, esses versos mostram quão perigoso é o mar,
tanto para os animais quanto para os homens e que por detrás de toda alegria que cerca os
homens nos momentos de brincadeira e descontração, sempre uma tristeza com um gosto
amargo que vem tornar a vida cruel e difícil de ser vivida.
As relações que o poeta moderno deve estabelecer não se limitam, no caso de Apollinaire,
apenas ao leitor e à obra, pois, nota-se em toda a sua produção, literária ou crítica, a preocupação
26
Golfinho, saltitais no mar,/mas a onda só traz pesar./Se um dia a vida me apraz,/cruel, logo tudo
desfaz.(WOENSEL, 2001, p. 145)
27
Gravura 19 em Anexos.
48
em demonstrar as afinidades com os pintores, e em Le Bestiaire, a ligação entre o poeta e o pintor
Raoul Dufy é essencial para a compreensão da obra.
Whillard Bohn em um artigo para a revista Que vlo-ve? intitulado Le lion et la carpe
enfatiza a importância do contexto criado para a produção das ilustrações que acompanham os
poemas de Le Bestiaire ou cortège d’Orphée, que varia de uma gravura para outra. Enquanto as
palmeiras e as pirâmides da quadra Le Dromadairesão puramente decorativas, em Orphée
III”, o peixe com a inscrição grega ICHTHUS desempenha um papel essencial para a
compreensão da quadra. Bohn exemplifica com a análise que Anne Hyde Greet realiza em
Apollinaire et le livre de Peintre (1979) demonstra que cada gravura é o resultado de uma
colaboração estreita entre o poeta e pintor e algumas colaborações foram mais eficazes que
outras. Há diversos exemplos na coletânea que comprovam o quanto a gravura completa o poema
tão profunda e intimamente que não se sabe onde começa um e termina o outro. Esse fenômeno
parece manter não a imagem principal, o animal, mas os objetos secundários que estão ao redor
em harmonia; ou seja, a síntese depende do contexto pictóricos e de uma sorte de correlativos
objetivos que comentam o texto e a imagem.
As reflexões de Greet e Bohn são demonstradas nos poemas “Le Lion” e “ La Carpe:
Le lion
Ô lion, malheureuse image
Des rois chus lamentablement,
Tu ne sais maintenant qu'en cage
A Hambourg, chez les Allemands
28
. (APOLLINAIRE, 2006, p.151)
Segundo o Physiologus e o dicionário de mbolos de Jean Chevalier, o leão é um ser
alegórico, rei dos animais, que simboliza os reis históricos desaparecidos assim como Jesus
Cristo, rei espiritual, martirizado por aqueles que buscavam a salvação. Para exemplificar estas
afirmações, recorremos à narrativa do leão, o primeiro animal a ser habitualmente descrito nos
manuscritos dos bestiários como o próprio Physiologos, por exemplo. Em quase todas as fontes
que remetem ao leão há em comum três características: a primeira, o animal apaga com a cauda o
próprio rastro para não ser capturado por caçadores; a segunda característica o descreve como um
ser que dorme de olhos abertos e por último, a fêmea à luz às crias mortas. De acordo com a
última característica, a leoa, durante três dias, vigia os corpos inanimados dos seus filhos e ao
28
Ó leão do rei destronado/és a imagem que nos acanha,/só nasces agora enjaulado/em Hamburgo, lá na Alemanha.
( WOENSEL, 2001, p. 121)
49
terceiro dia, segundo o Physiologus, é o rugido do pai que os acorda para a vida. Uma das versões
que o Physiologus apresenta é a de que o rugido é transformado em sopro e a alusão bíblica não
poderia ser mais explícita, pois também o Senhor acordou o Seu Filho ao terceiro dia,
ressucitando-O para a vida eterna. O leão é, assim, mbolo animal do Deus Pai e do Deus Filho
ressuscitado pois
“…au troisième jour surgit leur père qui souffle sur leurs corps et leur insuffle la vie.
Ainsi fit le Tout-Puissant pour Notre-Seigneur Jésus-Christ qu’il ressuscita des morts le troisième
jour. (ZUCKER, 2005, p. 54)
Aqui, a voz é o sopro da vida, o mesmo sopro com que Deus criou o primeiro homem
Adão e ressuscitou para a vida o seu filho, Cristo. O sopro é, portanto, sinônimo da Palavra
criadora, remetendo também para a respiração e, mais precisamente, para a expiração, outro
símbolo de vida.
A narrativa do leão é aquela que, de modo geral, abre todos os manuscritos dos bestiários,
confirmando a idéia de que é ele o rei dos animais. Também, pelo mesmo motivo, é ao leão que
cabe o capítulo mais longo em que se torna igualmente claro um maior empenho por parte dos
artistas. Na verdade, o leão é o rei dos animais do bestiário e o que mais claramente identifica a
Voz e Palavra, fato acentuado por ser também o primeiro a ser descrito: portanto, mesmo de
maneira implícita, o leão é o rei das criaturas terrestres. Embora seja o primeiro animal em
Physiologos, porém Apollinaire inova mais uma vez, rompendo com a tradição ao apresentar esse
felino apenas em sua sétima quadra.
Bohn questiona o leão de Apollinaire e Dufy em Le Bestiaire.
29
Primeiro, a imagem que
acompanha o poema. Como explicar os edifícios, os barcos no segundo plano? Evidentemente,
essa imagem faz menção a um porto marítimo que, a julgar pelo poema que acompanha a
gravura, seria Hamburgo, apesar de a imagem não corresponder àquela cuja interpretação atribui
nobreza a um leão em plena liberdade. Dufy fornece uma imagem que seria a chave para a
interpretação do poema ao representá-lo como um animal heráldico, um leão rastejante.
Possivelmente a gravura deveria simbolizar um indivíduo ou um país. Como se observa, em um
primeiro momento, ele gira em torno dos dois. Pois se o leão representa o Cristo e a realeza, é
29
Gravura 7 em Anexos.
50
igualmente o símbolo de o Marcos. E segundo Bohn, assim como os habitantes da antiga
realeza de Veneza adotariam o evangelho de S. Marcos como patrono, esee animal tornou-se
também, um símbolo monumental e heráldico. Nesse contexto é evidente que o segundo plano
representa uma cena veneziana. À esquerda reconhece-se la piazza San Marco, enfeitada, a
basílica bizantina e o palácio Doge. À direita, vários navios antigos que representam o antigo
poder marítimo do reino. Como o leão, lamentavelmente destronado, a imagem de Veneza é o
símbolo de um passado glorioso, tanto que ela se opõe a Hamburgo, cidade moderna, cidade
banal onde o nobre animal parece muito mais um cão doméstico, típico animal de circo, como
observou Woensel (2001). Mas para Bohn, (1981) esta última alusão se reporta, provavelmente, à
monarquia constitucional e observa uma situação análoga existente no poema “La Carpe”:
Dans vos viviers, dans vos étangs,
Carpes, que vous vivez longtemps!
Est-ce que la mort vous oublie,
Poissons de la mélancolie
30
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 167)
Neste poema ainda as imagens são indispensáveis. No entanto, Bohn questiona a respeito
da presença do palácio do segundo plano da gravura
31
de Dufy. Seria a castelo de Versalhes ou o
Chantilly? Ou ainda um átrio romano? Talvez os jardins de Versalhes em torno das estufas de
laranjas. Observando na direção norte do palácio, vê-se no primeiro plano a estátua eqüestre do
rei Luís XIV, depois la Pièce d’Eau des Suisses. (BOHN, 1981)
Como o leão, a carpa se associa a um passado glorioso. Única testemunha viva dos
triunfos de Luis XIV, ela se reporta ao esplendor da corte francesa e contempla a civilização
moderna. Novamente, a comparação entre o antigo e o moderno não é favorável, pois se percebe
a “melancolia” do peixe que lamenta o passado de seus antigos amigos. Deixada sozinho entre as
lembranças, a carpa está isolada no tempo e no espaço. Ainda em uma comparação com o leão,
ela representa um antigo ideal derrubado e em desuso. Como o leão, ela se lamenta. Em ambos os
poemas sua triste sorte é intensificada pelo contexto que favorece um rico diálogo entre a imagem
e o texto.
O fazer poético de Apollinaire em seu bestiário possui alguns desses aspectos,
sobretudo estruturais, o qual se verificou com a leitura dos poemas acima e que mostram certa
30
No viveiro, à revelia,/ carpa, vives anos sem fim!/ Ó peixe da melancolia,/ a morte se esqueceu de ti? ( WOENSEL,
2001, p. 153)
31
Gravura 23 em Anexos.
51
herança vinda, principalmente, da poética de Stéphane Mallarmé (1842-1898), que trabalhava
com a precisão formal do verso e com uma lírica que observa as convenções das leis métricas, da
técnica da rima e da estrofe. Quando observamos a estrutura de Le Bestiaire, percebemos ainda a
presença dos versos predominantemente octossílabos. Esse tipo de verso costumava ser o
preferido inclusive dos poetas trovadores da Idade Média, a fim de acentuar a musicalidade de
seus poemas. Mallarmé também foi um leitor das obras medievais e para ele poetar significava
renovar tão radicalmente o originário ato criativo da linguagem que “o dizer fosse sempre dizer o
que não fora dito até então”. (FRIEDRICH, 1978, p. 117). A presença dos intertextos e de
narrativas dentro da lírica do poeta de Le Bestiaire exige, portanto, um preparo do leitor
separado do autor e da obra, assim como nas referências humanas. A lírica de Mallarmé é, ainda
mais que os versos de Rimbaud, destinada a um leitor predisposto a aceitá-la, mesmo que este
seja devidamente criado pelo poeta moderno .
Para Rimbaud, assim como para Mallarmé, quase toda a lírica vinda posteriormente deve
manter-se uma única ponte com o leitor e essa ponte está justamente no efeito sugestivo da poesia
a que os escolásticos deram o nome didático de literatura simbolista.
Segundo Mallarmé, existe um parentesco secreto entre as antigas práticas e a magia que
atua na poesia; poetar significa, portanto, evocar o objeto calado numa obscuridade propositada,
por meio de palavras alusivas, jamais diretas e o poeta é o mago das palavras. (MALLARMÉ
apud FRIEDRICH, 1978, p. 134)
Mallarmé ressalta ainda a necessidade sentida de unir uma poesia altamente refletida a
estratos da alma mágico-arcaicos. A magia lingüística de seus versos constitui muito
particularmente o meio para escrever aquela sugestão com a qual o poeta gostava de haver
substituído a compreensibilidade simples. Pode-se perceber em Apollinaire a mesma aptidão com
a releitura dos mitos implícitos nas quadras de Le Bestiaire. O próprio poema de abertura da
coletânea intitulado Orphée”, assim como os outros três que possuem o mesmo nome, são
exemplos essenciais para a compreensão da obra e serão devidamente relacionados nesse estudo.
Mallarmé teve grande influência na fase inicial da poesia apollinairiana, quando a sua
obra, especialmente a primeira coletânea de poemas publicada, ainda não havia se desprendido
das regras formais às quais a poesia era submetida; contudo já havia assimilado a situação
primordial do poeta de que está com a sua linguagem e é nela que tem a sua pátria e a sua
liberdade, correndo o risco de que tanto possam entendê-la ou não. Uma outra fonte assinalada há
52
algum tempo é a súbita influência de Mallarmé, ao qual o culto é estendido à revista simbolista
La Phalange, onde o primeiro Le Bestiaire foi publicado. Um dos poemas de Le Bestiaire de
1911 que, eventualmente inspira a questão mallarmeniana é a quadra dedicada ao elefante, em
que a situação do poeta é colocada nos seguintes versos:
L’eléphant”
[...]Pourpre mort!...J’achète ma gloire
Au prix des mots mélodieux
32
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 156)
As palavras pourpre e mort nascem de uma impressão de pastiche, outra característica do
simbolismo e própria de Mallarmé. Mas a expressão mourir pourpre se encontra em Mallarmé
em um contexto diferente, mais relacionado ao contexto social, aos valores materiais, ao passo
que Apollinaire, em sua quadra, alude à cena dos gladiadores romanos, na hora da morte
iminente, saudando o imperador vestido de púrpura. Estão interligados os elementos “morte”
imperador – “púrpura” para reforçar a imagem, um tanto hiperbólica, do poeta, vítima de sua arte.
O elefante é comparado ao poeta incompreendido, que sofre por possuir dons elevados e,
inspirado por sua musa, ele extrai palavras tão preciosas quanto o marfim é para este animal. O
poema do elefante foi publicado apenas em 1911, na segunda versão de Le Bestiaire, o que
levanta a dúvida se já teria sido escrito anteriormente numa fase infeliz do poeta.
A inadaptação do poeta à sociedade é como uma morte. É isso que aproxima de forma
mais autêntica os dois poetas, visto que o hermetismo de Mallarmé provém, de início, da sintaxe
e o de Apollinaire das referências raras ou das curiosidades, como as moscas gânicas, a
superfecundação das coelhas, entre outras. É de seu gosto as alusões eróticas difíceis de se
compreender e que se apresentam sempre em sub-impressão de um outro sentido. Em Le
Bestiaire, alguns poemas têm um caráter atrevido e irreverente, como por exemplo Le lièvre”,
“Le Lapin”, “Le paon
·
, em que nos perguntamos se não referências únicas que somente o
poeta compreende, como no caso de La chèvre”. Marc Poupon em Quelques Énigmes du
Bestiaire”, questiona o porquê de ser a cabra do Tibete e não uma cabra de outro lugar qualquer.
No entanto, a efemeridade do tempo e seu novo ritmo veloz tornou instável a consciência
artística; reflexo disso é a opinião de que o desprezo da tradição mostra uma corrida tão rápida
como a moda que esteja por transformar-se em “beleza”, ou seja, em costume. (FRIEDRICH,
1978). E sob esse aspecto incluem-se igualmente as alusões aos temas relacionados à Idade
32
[...]Morte ilustre!...Fama adquiri/pagando com versos maviosos. (WOENSEL, 2001, p. 131.)
53
Média, e aqui se podem acrescentar as mesclas entre a arte pictórica e a arte textual que
Apollinaire empresta dos bestiários antigos.
Assim, o poeta se transforma naquele que se aventura em campos lingüísticos até então
não trilhados. Acima de suas dissonâncias e obscuridades domina a clara consciência artística em
que, desde o início do século XIX com o Romantismo, a emoção inspiradora tinha perdido
prestígio como única legitimação da qualidade poética.
Friedrich acrescenta que para o poeta e crítico Paul Valéry (1871-1945) a palavra é o meio
de o espírito multiplicar-se no nada. Sob essa ótica, podemos considerar Le Bestiaire um produto
da linguagem criada a partir do próprio mito de Orfeu a começar do seu título completo: Le
bestiaire ou cortège d’Orphée em que popularmente se sabe que Orfeu é presenteado com uma
lira pelo deus Mercúrio (ou Hermes) e que assim adquire o poder de entoar as mais belas
músicas, capazes de acalmar e encantar a mais feroz das feras, e na recriação apollinairiana
aparecem as 26 espécies animais seguindo o som da lira como num verdadeiro cortejo. Os versos
que o seguem são fragmentados em sua estrutura e demonstram que a poesia, frente à sua meta,
permanece sempre insuficiente, pois a fragmentação é uma característica da lírica moderna em
que se retiram fragmentos do mundo real e se reelaboram, muitas vezes em si mesmos, cuidando,
porém, que suas superfícies o se ajustem mais. O poeta já demonstrava, portanto, uma visão
cubista, que foi um dos movimentos de vanguarda mais atuantes do modernismo e que influiria
principalmente nas artes plásticas. Percebe-se, assim, o desprendimento do poeta, em aliar a arte
pictórica à poesia e equilibrar em Le Bestiaire o antigo e o moderno, o tradicional e o prenúncio
das inovações que, seis anos depois, seriam proferidas em sua conferência sobre o espírito novo.
4.1 O Cortejo de Apollinaire
Os poemas de Le Bestiaire não m um empreendimento descritivo ou realista. O animal,
segundo a tradição dos bestiários medievais, é apenas um pretexto, um apoio permitindo um
discurso sobre o homem e sobretudo sobre o poeta. Aqui, todavia, se instaura uma forma de
originalidade para relacionar se a esta tradição. Há, freqüentemente, poemas evocando o animal
na terceira pessoa e deixando ao narrador o cuidado de tirar a lição mais edificante. Em
Apollinaire, a maior parte dos poemas em je” não se refere ao “eu” do animal, mas ao do poeta.
Poder-se-ia tentar uma comparação entre Le Bestiaire d’amour de Richard de Fournival, escrito
54
igualmente na primeira pessoa e que se dirige à mulher amada. Contudo, observa-se que o longo
discurso de Richard de Fournival é formalmente muito distante de Le Bestiaire de Apollinaire, e
que, por outro lado, retoma finalmente a estrutura tradicional, ou seja, desenvolvimento da
descrição de um animal, aplicação ao homem. No caso de Le Bestiaire de Apollinaire, o poeta
implica-se diretamente, seja como sujeito lírico, seja como interlocutor sempre em posição de
interpelação e a necessidade do contato com o leitor retomado em toda a obra poética de
Apollinaire.
Desde o primeiro poema, o poeta de Le Bestiaire dirige-se a seus leitores: Admirez le
pouvoir insigne(Orphée I) e os incita a fazer uma leitura e uma contemplação. Em outro,
Regardez cette troupe infecte”, há uma comunicação entre o poeta e o leitor que é convidado em
Orphée II” a olhar cette troupe infecteassim como adverte esse mesmo leitor a não escutar as
perigosas canções das sereias em Orphée IV(n’oyez pas ces oiseaux maudits”), em que não se
pode impedir de entender noyez pasquando se sabe que as sereias provocavam certamente a
morte por afogamento marítimo – origem da angústia de Apollinaire. Ele os associa à seu
discurso quando evoca “ Nos mouchesou a crueldade de ceux que nous aiment” em La Puce
e termina seu Le Bestiaire dirigindo-se aos mes chers amis”. Os dêiticos como o Voici la fine
sauterelle” participam da instauração de um diálogo.
Contudo, Apollinaire interpela também os animais: o cavalo Mes durs rêves formels
sauront te chevaucher”, a serpente Tu t’acharnes sur la beauté”, o leão “Ô lion, (...) Tu ne sais
maintenant que’en cage”, os ratos belles journées, souris du temps(“Vous rongez peu à peu
ma vie”) os golfinhos, Dauphins vous jouez dans la mer”, as medusas Méduses(...) Vous vous
plaisez dans les tempêtes, a carpa Carpes, que vous vivez longtemps”, as sereias e o mar “Sache-
je d’où provient, Sirenes, votre ennui (...) Mer, je suis comme toi”, entre outros.
Essa voz do poeta é exaltada a partir de suas experiências de vida, pois ela modula todos
os tons diversificados pelos destinatários, admiração, exaltação, censura, piedade, saudade,
atração-repulsão, sadismo, humor, entre outros, formando o seu auto-retrato, ou seja, tendo os
animais seguindo-o como num cortejo moldado em um pretexto para falar de si mesmo.
4.2 A elaboração de Le bestiaire ou cortège d´Orphée
Le bestiaire ou cortège d´Orphée teve uma elaboração bastante singular e gradativa,
dotada de elementos que contribuíram para a maturidade literária de Guillaume Apollinaire. Essa
55
maturidade foi adquirida também com estudos e leituras de lendas e mitos, principalmente, para
depois reinventá-los em seus poemas. A figura de Orphée é o maior exemplo de recriação que o
poeta realiza e a presença desse personagem em Le Bestiaire torna-se necessária para
acompanhar os poemas, e provar que a sua composição não é apenas um agrupamento de versos
aleatórios.
4.2.3 A criação de Orphée
A importância da presença de Orphée em Le Bestiaire mostra que a sua criação faz parte
de uma construção de um projeto cujos significados são obscurecidos pelas lendas e mitos que
norteiam a maioria de seus poemas, e requer do leitor certo conhecimento para que a obra não
seja considerada apenas uma coletânea de poemas aleatórios sobre animais, e que a figura mítica
de Orfeu não passe de um “divertissement poétique” .
Nem sempre Orphée fez parte da coletânea. A primeira versão de Le Bestiaire, La
marchande de quatre saisons ou le bestiaire mondain tinha como personagem uma marchande,
que a princípio é uma vendedora ambulante de frutas e verduras.
Apollinaire talvez tenha tomado emprestada de Mallarmé a idéia de sua “marchande”, que
elogia em 1908. Ao lermos, por exemplo Les Chansons bas do poeta simbolista podemos
verificar que as pequenas empregadas de um vendedor de alhos e cebolas, uma vendedora de
roupas e outra de ervas aromáticas insinuam-se para um desconhecido na rua. Será que a
marchande de quatre saisons” do poeta de Le Bestiaire não seria na verdade uma prostituta?
(POUPON, 1966). Esta dúvida acerca da primeira versão de Le Bestiaire prolonga-se a partir dos
empréstimos que o poeta faz em sua obra e que se estendem ainda até o subtítulo da primeira
versão - ou le bestiaire mondain - pois a questão que se instaura é: por que o bestiário é
qualificado de mundano? Seria por um puro divertimento poético, como o poeta se referiu em
nota?
Em 1908, Apollinaire qualificou seus poemas publicados em La Phalange de poétiques
fragments”, antecipando a vinda das xilogravuras que viriam completar o texto poético
inacabado. Mas também, sem dúvida, dentro de seu espírito algumas pressuposições que se
mostram a favor dessa interpretação: a marchandedas quatro estações intervém apenas em três
poemas. Alguns dos poemas que faziam parte da primeira versão como “Le morpion”, Le
56
condor”, Le singee “L’araignée
33
por terem uma veia bastante licenciosa, foram excluídos da
versão definitiva de Le Bestiaire, reaparecendo somente em uma publicação póstuma no ano de
1931.
As alusões feitas por Apollinaire nem sempre obedecem aos seus sentimentos, parecem-
nos deslocadas nos poemas que têm na figura zoológica e simbólica dos animais o pano de fundo
necessário para o autor falar de suas emoções, sensações e desilusões. O lirismo pessoal toma seu
lugar e o poeta coloca no mesmo plano a figura de Cristo, da Virgem Maria e Marie Laurencin,
sua amada, ao mesmo tempo em que reconhece para a sua nova versão de Le Bestiaire que os
animais não podem mais ser artigos confiados à tagarelice de uma Marchandecomo apresenta
na primeira versão (POUPON, 1966). Torna-se necessário encontrar outro ser para conduzi-los
sem ter que renunciar ou sacrificar os animais de 1908 e, ao mesmo tempo, equilibrar sua obra.
Assim, Orphée torna-se o responsável pelo cortejo.
Apollinaire mostra que os poemas La tortue”, “La Chèvre du Thibete “Les sirènes nos
convidam a valorizar o personagem de Orfeu, não se limitando, portanto, aos quatro poemas que
levam seu nome. É ele quem acompanha Jasão na busca pelo “toison d’ore é ele quem distrai as
sereias sobrepujando seu canto ao delas para que os navegantes não fiquem seduzidos e pereçam
numa importante e perigosa etapa da expedição dos Argonautas
34
. Após decidir-se por essa
substituição, provavelmente o poeta escreveu os poemas La sauterelle e Le serpent que
também estão relacionados ao mito de Orfeu. Em “La sauterelle”, o inseto importa bem menos
que São João, cujo destino lembra o de Orfeu, quando ambos são mortos degolados, vítimas das
mulheres e por terem profetizado a vinda de Cristo.
33
Poemas incluídos nos Apêndices.
34
A saga dos argonautas descreve a perigosa expedição rumo à Cólquida em busca do Velocino de Ouro.
Aproximadamente cinqüenta jovens se apresentaram, todos eles heróis de grande renome e valor. Cada um deles
desempenhou na expedição uma função específica, de acordo com suas habilidades. A Orfeu , por exemplo, que
tinha o dom da música, coube a tarefa de cadenciar o trabalho dos remadores e de, principalmente, sobrepujar com
sua voz, o canto das sereias que seduziam os navegantes. Argos construiu o navio e por isso, em sua homenagem, a
embarcação recebeu seu nome.
57
4.2.4 As leituras de Apollinaire
Poupon dispõe de uma certeza: Apollinaire leu Le Monde enchanté: Cosmographie et
Histoire Naturelle de Ferdinand Denis (1798-1890)
35
. Publicado em 1843, descreve uma
cosmografia e história natural fantástica da Idade Média. É nessa obra que se encontra também a
alusão feita aos quatro dromedários de Don Pedro, que originaria o poema Le Dromadaire,
décimo poema de Le Bestiaire. Os quatro dromedários de Don Pedro se projetam no livro de
Denis e em Le Bestiaire, tanto na primeira, como na segunda versão. Em suas quadras,
Apollinaire não explorou a lenda do cavalo árabe nascido ao vento ou as infinidades da pomba e
do unicórnio. Provavelmente a leitura de Denis atesta que Monde Enchanté inspirou o poeta de
Le Bestiaire para a composição de um brasão para a sua coletânea.
A importância da idéia da produção de um brasão renderá frutos, ou melhor, poemas, pois
as informações que Apollinaire obtém para a produção do brasão referem-se ao unicórnio.
Curiosamente, o unicórnio é um dos animais fantásticos que não aparece entre os animais de Le
Bestiaire, mas veremos que o poeta não buscou suas fontes acerca dessa figura apenas para
compor o brasão.
O unicórnio aparece em poemas de Guillaume Apollinaire como em “L’Ermite” e “Le
Larron” ambos da coletânea Alcools e estabelece relações curiosas que se aproximam do
sagrado e do profano. No entanto, como mencionado anteriormente neste estudo, Apollinaire
sempre se mostrou um leitor atento, disposto a buscar o máximo de informações possíveis acerca
das figuras que enriqueceriam seus poemas, mesmo que essas informações nem sempre fossem
textuais, como sugere Antoine Fongaro num artigo intitulado “Apollinaire, l’unicorne et la
licorne”
36
em que relaciona o unicórnio unicorne em francês com licorne, numa alusão a uma
figura sagrada intitulada La dame à la licorne.
37
Para Fongaro, mais interessante do que o contexto onde aparece o unicórnio, é o Post-
scriptum de uma carta de 29 de agosto de 1910, na qual Apollinaire propõe a Dufy um brasão
para a edição de Le Bestiaire:
35
Escritor francês, viajante, historiador é especialista em História do Brasil. Publicou diversas obras divulgando os
costumes e a cultura brasileira.
36
Que vlo-ve? Série 4 nº 12 de outubro-dezembro de 2000
37
Ilustração 35 dos Anexos. Representa uma série de tapeçarias do século XV que faz parte da coleção do Musée
National du Moyen Âge, em Paris.
58
“Pour marque de notre éditeur j’ai trouvé ceci: un A traversé par un licorne avec la
devise: j’émerveille”
38
Apollinaire traça o desenho correspondente e explica que ele gira em torno do delta do
Nilo, por causa do endereço do editor no Cairo e da arquitetura egípcia da editora, e que é
também a letra inicial do nome do editor: Déplanche. Segue junto com a carta uma reprodução do
desenho manuscrito que Apollinaire enviou a Dufy.
39
Comentando esse texto em seu estudo Quelques énigmes du Bestiaire”, Marc Poupon
observa que a letra grega “delta” maiúscula pode, a rigor, simbolizar o Deus trinitário.
Certamente, Apollinaire forma regularmente o delta grego maiúsculo (triângulo isósceles com o
ângulo agudo no topo) em sua escritura, mas em seu desenho o delta toma a forma de um
triângulo quase eqüilátero, detalhe que, observa Fongaro, Poupon parece não ter notado.
Sobretudo, Marc Poupon assinala que a capa da obra de Ferdinand Denis, Le Monde
enchanté, de onde Apollinaire tirou os quatro dromedários de Don Pedro d’Alfaroubeira,
s’orne d’une gravure représentant une licorne endormie au giron d’une demoiselle
cependant que Dieu trône dans le ciel, entouré des anges” (POUPON, 1966,p.)
40
A indicação de Marc Poupon é interessante, segundo, Fongaro, mas sua descrição da
gravura é imprecisa, como revela a figura 33 contida nos Anexos deste estudo.
A figura da capa está sentada (pois não está sobre um trono, mas sobre um tipo de
cadeira), circundada por anjos, no céu; parece ser Jesus Cristo: a auréola contém os quatro braços
da cruz, a mão direita levantada com os dois primeiros dedos no ato de benzer, a mão esquerda
apoiada sobre o livro do Evangelho pousada sobre a coxa esquerda. Os anjos do lado esquerdo da
gravura direita de Cristo) têm apenas a cabeça e as asas, mas cinco anjos do lado direito estão
na mesma direção do corpo sentado de Cristo numa atitude notável: três entre eles olham o Cristo
e tem as mãos juntas à altura da boca, em uma atitude de prece, de súplica; os dois anjos
colocados em posição inferior viram as costas para Cristo e olham para baixo: um apóia sua mão
38
Para a marca de nossa editora, encontrei: um A atravessado por um unicórnio com o lema: Eu maravilho.
39
Figura 32 nos Anexos
40
Orna-se de uma gravura representando um unicórnio adormecido no colo de uma dama, enquanto Deus ocupa um
importante lugar no céu, rodeado de anjos. (TRAD. NOSSA)
59
esquerda à altura de sua têmpora esquerda em um gesto de desespero: o outro, situado mais
abaixo, estende seus dois braços como se fosse deter um perigo ameaçador.
Na parte inferior da gravura, ao centro, está sentada uma mocinha, a quem Marc Poupon
chama um pouco levianamente de “une demoiselle”, ressalta Fongaro, cujo torso está nu, um
tecido cobre seus joelhos e um unicórnio senta-se a seus pés, colocando a cabeça sobre o colo da
moça. Esta cena está situada em um lugar com uma vegetação luxuriante, onde se distingue um
pássaro com as asas estendidas para o alto à esquerda, um dragão alado rasteiro sobre o sol
abaixo à esquerda, e, sobretudo, à direita, abaixo, muito visível, uma longa serpente negra, a
cabeça com uma coroa que abre sua garganta ameaçadora em direção à figura feminina.
Curiosamente, em uma copa de árvores à direita, aparecem duas cabeças humanas. Não
dúvidas de que seria uma alusão ao paraíso terrestre, de Eva e de sua tentadora: isso explica os
gestos de preces ou de repulsão dos cinco anjos da direita. Eva representa a inocência da criatura
antes do pecado original (onde está o unicórnio, como mbolo dessa pureza). A serpente (o
príncipe do mal) é a tentadora.
Contudo, Apollinaire à sua Eva uma conotação diferente. Ele descreve na suposta
última quadra composta para Le Bestiaire, “Le serpent”, uma Cleópatra, Eva e Eurídice
utilizando-se de três de seus maiores temas: o amor, a poesia e a saúde da alma:
Le Serpent
Tu t'acharnes sur la beauté.
Et quelles femmes ont été
Victimes de ta cruauté !
Ève, Eurydice, Cléopâtre;
J'en connais encore trois ou quatre.
41
(APOLLINAIRE, 2006 p.149)
Em uma das raras quintilhas de Le Bestiaire, Apollinaire desmonta os mitos reinventando-
os, e recriando uma outra história. Na literatura, e particularmente nos escritos clericais da Idade
Média, a mulher é equiparada a uma serpente por ser fonte de pecado e de sedução, raízes dos
males no mundo. Até o próprio Apollinaire, quando vivia uma grande decepção amorosa, tempos
antes de publicar Le Bestiaire, considerava-se vítima da perversidade feminina e, por várias
vezes, colocava a mulher no mesmo nível da sereia, que seduz os homens incautos para aniquilá-
los. Mas o namoro com Marie Laurencin havia de dissolver essa visão negativa e aqui
41
Tu espreitas todas as belas/mulheres e quantas entre elas/ vitimaste, quantas donzelas! Cleópatra, Eurídice e Eva/e
outras que a história releva. (WOENSEL, 2001p. 117)
60
encontramos a mulher como vítima da serpente, das forças do mal. Ao lado de Eva, a figura
bíblica, encontramos Eurídice, a figura mitológica, esposa fiel de Orfeu, e Cleópatra, figura
histórica, ambas mulheres que pagaram um alto preço por seu amor; Eva foi vítima da tentação
por parte do demônio-serpente, enquanto as outras duas morreram vítimas da mordida do réptil.
Sabe-se que o pecado de Eva é a causa da encarnação do filho de Deus para efetuar a
redenção da humanidade, assim como a Virgem Maria, que foi preservada do pecado original (ela
nasceu sem pecado) é a nova Eva, mãe da humanidade regenerada (e o Cristo é o novo Adão).
Assim, cada vez que acreditamos descobrir suas fontes ou seus modelos formais,
Apollinaire nos aparece muito mais devedor dele mesmo do que dos outros. Poupon levanta duas
hipóteses acerca da elaboração da obra, deixando certa dúvida. Mas se podemos seguir a
elaboração do último Le Bestiaire, quase passo a passo, o motivo que incitou o poeta mal-amado
a escrever os poemas de 1908 nos escapa a ponto de ele não saber decidir-se se queria fazer uma
diversão no ateliê dentro da atmosfera dos anos em que freqüentava os círculos dos artistas
plásticos de Montmartre, ou opor-se à criação divina do amor e da imaginação poética como duas
manifestações de uma anti-religião, o que explicaria a inclusão no mesmo plano da figura pagã de
Orfeu, ao mesmo tempo em que o personagem mítico assume a postura de um pregador cristão
que anuncia a chegada de Jesus Cristo.
Nesse ponto, para retomar o assunto que nos ocupa, pode-se perguntar se Apollinaire teria
se interessado pelo unicórnio a partir da gravura que figura a capa de Ferdinand Denis, livro que
ele possuía em sua biblioteca.
42
É certo que Ferdinand Denis emprega em seu texto a palavra
unicornepara designar o animal da fábula, e mais especialmente uma variedade de licorne
que ele chama também pela forma grega:monóceros. Isso explica as variações da palavra
unicórnio que aparecem em poemas do autor de Alcools, em francês e que não percebemos
quando traduzimos para o português:
Seigneur que t’ai-je fait Vois Je suis unicorne
Pourtant malgré mon bel effroi concupiscent
Comme un poupon chéri mon sexe est innocent
D'être anxieux seul et debout comme une borne
(APOLLINAIRE, “L’ermite”, dans Alcools, 2006, p.80)
43
42
La Bibliothèque de Guillaume Apollinaire, Éditions du CNRS, 1983, p. 54.
43
Senhor o que te fiz Veja eu sou unicórnio/ No entanto apesar de seu belo medo concupiscente/Feito uma criança
querida meu sexo é inocente/ De estar angustiado sozinho e erguido como um marco (APOLLINAIRE, 2005, p.
75. Trad. Daniel Fresnot)
61
A sexta estrofe do poema L’ermite” mostra o escárnio obsceno que Apollinaire joga
sobre a palavra “unicórnio, e que toma o grave impacto de uma blasfêmia. O poeta sabia
perfeitamente contra quem (ou o que) dirigia sua brincadeira. Aluno dos Maristas, ele tinha
recebido uma formação religiosa rígida que o levou a sentir-se atraído ou preocupado com o
problema da religião. Empreendeu leituras variadas concernentes às correntes agnósticas e
esotéricas dos primeiros tempos do cristianismo. Ele sabia sem dúvida que uma das veias mais
profundas de sua primeira produção era constituída pelos ataques contra a religião cristã.
Portanto, é importante ressaltar que, embora a ausência do unicórnio seja notável em Le
Bestiaire, supõe-se que Apollinaire possuía um objetivo que não se limitava a caracterizar ou
fazer gaiatices numa simples quadra em torno do mito e a simbologia que envolve a figura desse
animal fantástico. A presença do seu Orphée em quatro poemas que abrem cada uma das séries
de animais é uma importante alusão, pois o Orphée que o poeta de Alcools criou é dotado ora de
características divinas, ora pagãs.
Fongaro ressalta que a marca proposta por Apollinaire para a edição de Le Bestiaire
parece ir infinitamente mais longe do que uma simples alusão erótica imediatamente visível, ou
seja, o sexo feminino penetrado pelo sexo masculino, pois Apollinaire não está perto de uma
aproximação óbvia. Mas também aparece uma nova implicação, a de que Apollinaire, para os
motivos eróticos transcendentais considera o triângulo isósceles os tufos do púbis feminino como
“le parfait triangle de la Divinité(Apollinaire, 1965, p.634) e provoca uma outra distorção
(se assim pode dizer) da realidade. O sexo feminino é na realidade um delta” maiúsculo com a
ponta virada para baixo, ao passo que a Divina Trindade é representada por um triângulo
eqüilátero com a ponta para o alto, e é com a ponta virada para o alto que Apollinaire desenha seu
“delta” quase eqüilátero do Post-scriptum enviado para Dufy
44
.
Tão polivalente em suas interpretações quanto o triângulo, é o unicórnio. Para Poupon
(1966), o unicórnio designa o poder, evocado pelo seu chifre, símbolo fálico. Esta interpretação
coincide com uma das qualidades representadas pelo delta. Com seu único chifre no meio da
testa, o unicórnio sugere também a flecha espiritual, o raio solar, a espada de Deus. Na tradição
iconográfica cristã, ele representa a Virgem fecundada pelo Espírito Santo, seja espiritualmente,
seja fisicamente. No quadro pictórico criado por Apollinaire e Dufy, o chifre se reporta também à
inspiração poética: o poeta fecundado pela inspiração.(WITTEMBERG,1985)
44
Figura 33 em Anexos.
62
O chifre sugere o raio de luz, retornando, portanto, ao tema da luz, evocada pelo
triângulo. Em outra interpretação, pode-se atribuir a ele um senso erótico: estaria o chifre
designado como sexo masculino que atravessa o triângulo negro do púbis feminino ao realizar o
ato sexual, visando à procriação? A interpretação espiritual dada por Wittemberg mostra que a
atividade humana para sair da idéia de circularidade sugerida por esse triângulo isósceles que
demonstra a busca de Apollinaire pelo novo, desejando ultrapassar o mundo da ordem antiga para
criar um mundo novo e é essa criação que coloca o poeta em pé de igualdade ao Homem e a
Deus. Isso significaria uma síntese do amor terrestre e do ideal espiritual, presente entre os temas
principais de Le Bestiaire. Em seu brasão, misturam-se o imaginário cristão, o erotismo e o
misticismo, atitude significativa em toda a coletânea.
A pluraridade de significados que percorrem o contexto da produção do brasão
45
possivelmente orientou Dufy a produzir a gravura que corresponde à pomba, que há, ao fundo
da figura da ave divina o formato de um triângulo.
46
De uma maneira geral, Poupon tem razão em concluir que Apollinaire deseja sugerir e
dissimular uma preocupação religiosa em constraste aos apelos carnais confundidas em sua
malícia. (POUPON, 1966). Apenas é necessário assegurar-se de não dar aqui à palavra “malícia”
o sentido habitual na língua de hoje, pois isso seria inclinar a balança para o lado da
superficialidade, do prazer; convém dar-lhe seu sentido forte, seu sentido clássico, segundo a raiz
latina (que significa o mal; em particular, o mal diabólico, o feito do maligno), porque ele se
direciona, em sua essência, a um escárnio de alcance blasfematório.
Em 1910, quando o autor da Chanson du mal-aiméencontra Raoul Dufy, consegue
finalmente dar continuidade ao antigo projeto e completa as lacunas deixadas pelos fragmentos
não ilustrados da primeira série de Le Bestiaire. Divulga ao público, no jornal L’Intransigeant do
dia 28 de dezembro, a versão definitiva de Le bestiaire ou cortège d’Orphée em que destaca
admiravelmente o trabalho de Dufy, cujas xilogravuras viriam completar as quadras de seus
poemas. Para justificar o valor que elas teriam na obra, Philipp Rehage, num artigo publicado na
revista Que vlo-ve
47
, resgata as observações que o poeta faz sobre a imagem que acompanha a
quadra Les sirènese a interessante trajetória que cerca e enriquece a simbologia desse animal
fantástico.
45
Figura 32 em Anexos.
46
Gravura 26 em Anexos.
47
Que vlo-ve, série 4, nº 6,avril-juin 1999, pages 74-80.
63
Para instigar os leitores a respeito das admiráveis xilogravuras de Dufy, Apollinaire
comenta que uma delas acompanhará a quadra Les Sirènese explica as possíveis origens da
figura da sereia que, em sua obra, surge com asas e rabo de peixe. Segundo Apollinaire, o
maremoto que destruiu Messina, que se localiza no canal da Sicília, em 1908, eliminou,
infelizmente, a possibilidade de se desenharem as sereias, pois, segundo ele, era o local onde se
situavam estas famosas criaturas mitológicas. A concepção grega das sereias, consideradas
mulheres-pássaros, descreve-as dotadas de asas cujos corpos terminavam com um rabo de peixe.
Philipp Rehage confronta esse artigo de Apollinaire ao demonstrar que estas indicações
que considera “graciosas e galantes” de Apollinaire à mitologia e à iconografia antiga e medieval
levantam duas questões. Em primeiro lugar, os romanos conheciam as sereias com rabo de
peixe; em segundo, uma combinação de duas aparências de sereias já existiu antes das gravuras
de Dufy?
As sereias aparecem pela primeira vez em um conhecido episódio da Odisséia (canto XII,
v. 134-200), mas Homero não fornece em seu texto informações que identifiquem a aparência
delas. Alguns dados de arqueologia revelam a imagem pictórica que as sereias teriam na época
desse escritor. O mais antigo documento é uma hidra de estilo ático-coríntio representando dois
pássaros com seios de mulher. Os gregos emprestaram a idéia das mulheres-pássaros aos
Egípcios que representavam assim as almas dos defuntos. É no decorrer dos séculos V e IV antes
da nossa era que a aparência da sereia se diferencia. Elas apresentam “a forma mais
antropomórfica e recebem braços e seios”. A gravura de Dufy se inscreve portanto nesta tradição.
No século III a.C. a literatura grega encontra, enfim, as representações pictóricas das sereias.
Apolonios de Rodes diz explicitamente que elas lembram por seu aspecto em parte as asas e em
parte as jovens (Argonautiques, chant IV, v.898 apud REHAGE, 1999, p. 75)
No que se refere aos autores latinos, segundo Rehage, eles adotam a tradição grega das
mulheres-pássaros. Assim, no livro V das Metamorfoses, Ovídio coloca a questão (v.552) “(...)
mas vocês, filhas de Aquiles, de onde vieram suas plumas e suas patas de pássaro se vocês m
um rosto de virgem?” (OVÍDIO, apud REHAGE, 1999, p. 75)
Rehage observa que ao Apollinaire afirmar no artigo de 1910 que os romanos se
representavam em mulheres-peixes, não teria ele lido, portanto, Ovídio? Contudo, Anne Hyde
Greet em Apollinaire et le livre de peintre (1979, p. 127) comenta que a citação que Apollinaire
faz para mostrar suas referências de origem latina é caminho não somente das Metamorfoses, mas
64
também de um outro mito: de Perseu e de Andrômeda. O herói Perseu salva a princesa
Andrômeda atacada numa rocha e a liberta de um monstro marinho.
Ora, esse monstro marinho é mais um grande peixe esfomeado do que uma sereia. Mas
Apollinaire cria um equilíbrio entre a mulher-pássaro e a mulher peixe atribuindo-lhes a cada
uma duas culturas clássicas. O jogo de palavras se terminer en queue de poissonprojetado por
Apollinaire na língua latina é possível apenas quando se refere ao mito de Perseu reportado por
Ovídio.
É necessário, portanto, se perguntar em qual época da história da arte a transição entre a
mulher-pássaro e a mulher-peixe é verdadeiramente efetuada. A descrição mais antiga de uma
sereia aquática remonta ao século VII d.C., em o Líber Monstrorum atribuída a Adhelmo,
evocada por Shelbourn: “As sereias são as filhas do mar que enganam os marinheiros pela beleza
de seus corpos e pelo charme de seu canto. E da cabeça até o umbigo elas estão muito próximas
do corpo virginal do gênero humano, mas elas m rabo de peixe escamoso, que deixam sempre
escondidos dentro da água. Desde a primeira metade do século VIII, as representações plásticas,
notadamente sobre os capitéis esculpidos das igrejas romanas, se multiplicaram. Às vezes, estas
sereias-peixes carregavam um espelho para simbolizar a vaidade e os prazeres carnais do mundo,
em outras, elas seguravam um pequeno peixe, signo da alma do cristão pronto a sucumbir aos
seus charmes. Em outras, ainda, elas são representadas com um rabo duplo.
Na Idade Média, a mulher-peixe adquire uma superação de representações sobre a
mulher-pássaro e Apollinaire, como estudioso da literatura da época, possivelmente deve ter lido
o bestiário do clérigo frans Richard de Fournival (1190-1260), Le Bestiaire d’Amour, obra de
importante valor que se utilizava das características animais para exprimir o amor cortês comum
em sua época. Ao descrever a natureza dos animais não há uma moral explícita, mas um
comentário em que julga a maneira como as mulheres se comportam com seus amantes. Em seu
bestiário a sereia aparece sob três formas, porém, todas têm em comum a mesma intenção e os
mesmos instintos perversos que são os de encantar os homens e depois matá-los, após adormecê-
los com o seu canto. Como não poderia faltar à tradição do bestiário, também imagens,
inclusive dos dois tipos de sereias que Dufy ilustra em Le Bestiaire como se fosse apenas uma.
Nesse estudo apresentamos uma tradução encontrada do original francês, escrita em prosa,
em que Fournival as descreve:
65
“Porque existem três espécies de sereias: duas delas são metade mulher e metade
peixe e a terceira é metade mulher e metade pássaro. As três cantam; umas com trompetas,
outras com harpa e a terceira com voz de mulher. E a sua melodia é tão agradável que
nada pode impedir o desejo do homem de se aproximar. Aquele que adormece, a sereia o
mata.” (FOURNIVAL, 1969, p. 16).
48
Em seguida, continua o seu discurso, mas insere o seu julgamento:
“Parece-me que a sereia é culpada ao matar por traição mas o homem também
comete um erro ao confiar nela. Estou morto por isso, tu e eu temos culpa.
(FOURNIVAL, 1969, p. 16)
E, finalmente, dirige-se à mulher amada:
“Não ouso acusar-te de traição, culpo-me a mim mesmo: eu mesmo matei-me.
Fui tomado pelo ouvido e pela vista, e não é de estranhar-se que tenha perdido a minha
inteligência” (FOURNIVAL, 1969, p. 16)
Richard de Fournival remete a uma tradição que, segundo Woensel (2001) “fez escola”,
escola da qual Apollinaire e Dufy aproveitaram alguns aspectos da obra medieval para comporem
o seu bestiário, inovando ao ilustrar a sereia como mulher-pássaro e mulher-peixe sob uma única
forma.
O poeta acrescenta a ela a série dos animais aquáticos, em que, possivelmente,
reencontrou um recurso divertido: algumas das novas criações da coletânea de 1911 emigraram
provavelmente de outros poemas como, por exemplo L’Émigrant de Landor Road”, um dos
poemas centrais d’Alcools, atitude comum em Apollinaire, como já elucidado nesse estudo.
Alguns trechos comparativos do poema permitem esta observação:
Em “L’Émigrant”, temos nos versos 7 e 8 :
Et des mains [...]
S’envolaient quelquefois comme des oiseaux blancs
Estes pássaros brancos a que se refere nos remetem a pombas, e em Le Bestiaire, os
encontraremos, portanto no poema “La colombe”:
Colombe, l´amour et l´esprit
Qui engendrâtes Jésus-Christ,
Comme vous j´aime une Marie.
Qu´avec elle je me marie
49
. (APOLLINAIRE, 2006, p. 170)
48
As tradões para o português basearam-se numa versão de 1980 publicada em castelhano.
49
Vide nota número 4.
66
Alguns destes mitos foram reaproveitados pelo poeta em diversos poemas e
publicados posteriormente em Le Bestiaire. O poema Zone é um dos exemplos mais
significativos, tendo sido publicado em 1913, na coletânea Alcools e também resgata o mito da
pomba que já aparecia na primeira coletânea poética, de 1911. No poema mais recente a pomba
aparece como um símbolo do espírito imaculado:
Puis voici la colombe esprit immaculé (APOLLINAIRE, 2006, p.9)
A pomba da quadra de Le Bestiaire também traz esta conotação imaculada e pura
remetendo, junto à imagem da xilogravura que a acompanha, à Santíssima Trindade (Pai, Filho e
Espírito Santo), ao divino e ao sagrado:
Colombe, l’amour et l’esprit
Qui engendrâtes Jesus Christ [...] (APOLLINAIRE, 2006, p.170)
O tempo verbal, le passé simple, é um tempo utilizado apenas em textos que contemplem
certo grau de erudição. Raramente aparece na língua falada usada predominantemente em textos
literários. Na quadra, o pronome pessoal que concorda com o verbo e está implícito é o vous, que
se refere à pomba. A colocação sintática não é aleatória e está ligada à irreverência do poeta em
atribuir a paternidade de Jesus ao pombo. Possivelmente o poeta espera de seu leitor um
conhecimento que vai além da apreciação de seus poemas. Ele exige um leitor atento que
compreenda o seu plano, a sua intenção e a capacidade de integrar em um único poema o
elemento textual e o pictórico, como já explanado anteriormente, a fim de estabelecer-se a
relação entre a pomba e Cristo, por exemplo.
La Colombe é um poema carregado de significados simbólicos, que suscita
ambigüidades principalmente quando observamos o triângulo que se vê no fundo da figura
central da pomba, cercado pelos raios de uma auréola, distintivo dos santos e de Deus e que
remete tanto à Santíssima Trindade quanto à imagem do delta de Vênus, símbolo da feminilidade.
A maioria das aves que compõem Zoneapareceu anteriormente em Le Bestiaire. Entre
elas temos o pavão, cuja simbologia se mantém nos dois poemas. Em “Zone”, temos:
67
[...]Qu’escortent l’oiseau-lyre et le paon ocellé
50
(APOLLINAIRE,
2006, p.9)
O pavão aparece dotado de uma beleza ostensiva, cheio de ornamentos assim como em Le
Bestiaire: En faisant la roue, cet oiseau[...] e [...]Apparaît encore plus beau [...]
51
, são dois
versos que alternadamente destacam a beleza do pavão, mas os versos que completam cada um
dos anteriores mostram que esta mesma beleza tem um preço alto : Dont le pennage traîne à
terre
52
, e “Mais se découvre le derrière
53
.
As outras aves que aparecem em “Zone” figuram ao lado dos aviões e estes, por sua vez,
são comparados a Cristo:
[...]qui monte au ciel mieux que les aviateurs
Il devient le record du monde pour la hauteur.
54
(APOLLINAIRE, 2006, p.9)
Dos animais voadores que configuram Le Bestiaire e que também aparecem em Zone
temos ainda: a sereia, Ibis (sem o artigo para definir se é uma ave ou o pronome latino) e a
coruja, completando o conjunto dos poemas dos animais conduzidos por Orphée. A figura da
coruja aparece nos poemas com simbologias quase opostas. Em “Zoneelas não aparecem com a
imagem negativa que carregam no bestiário de Apollinaire:
Le hibou
Mon pauvre coeur est un hibou
Qu’on cloue, qu’on décloue, qu’on recloue
De sang, d’ardeur, il est à bout
Tous ceux qui m’aiment, je les loue
55
(APOLLINAIRE, 2006, p.172)
O poeta alude, nos três primeiros versos, a um costume entre os camponeses da Europa
que era o de prender uma coruja e pregá-la no portão da granja; esperando, desse modo,
amedrontar e afastar outras corujas e a própria morte.
Por outro lado, ao analisarmos o conjunto do poema, ou seja, o título, a quadra e a
xilogravura, percebemos que a gravura
56
corresponde à sua imagem tradicional: com um olhar
50
Que acompanham o pássaro-lira e o pavão alado [...] (APOLLINAIRE, 2005, p.17. Tradução de Daniel Fresnot)
51
Abrindo a roda, esse pavão [...] admiramos o bonitão [...](APOLLINAIRE, 2006, p. 161. Trad. Woensel).
52
Arrasta as penas no terreiro (APOLLINAIRE, 2006, p. 161. Trad. Woensel))
53
Mas fica à mostra seu traseiro. (APOLLINAIRE, 2006, p. 161. Trad. Woensel)
54
É o Cristo que sobe ao céu melhor que os aviadores/ Ele detém o recorde do mundo para a altura.
(APOLLINAIRE, 2005, p. 16. Tradução de Daniel Fresnot).
55
Tal coruja, meu coração/ é pregado em um portão:/perdi meu sangue e meu ardor./Aos que me amam, meu louvor!
(APOLLINAIRE, 2006, p. 172. Trad. Woensel)
68
penetrante que sonda as profundezas negras da noite, parece absorta em reflexões profundas.
Diante disso, é comum associarmos sua imagem à de “padroeira dos filósofos e dos pensadores”.
(WOENSEL, 2001, p.163). Entretanto, no imaginário popular, essa ave não tem boa fama.
Devido à sua familiaridade com as noites escuras, sua mera presença representa um mau agouro e
ela era considerada mensageira da morte. No primeiro verso, o poeta da Chanson du mal-aimé
se compara à ave: mon pauvre coeur est um hibou tão útil, mas sacrificada, e em seguida
denota seu sofrimento e pessimismo ao revelar a condição do poeta “que perdeu seu sangue e seu
ardor”: como amante e artista da modernidade ele deu tudo de si, mas foi desprezado. No entanto,
no último verso predomina o otimismo: restam-lhe ainda amigos que o amam e que ele louva.
Os versos 41 e 42 de “L´Émigrant de Landor Road ” dizem:
Il aurait voulu[...]
Jouer dans d’autres mers parmi tous les dauphins.
57
E em Le Bestiaire temos , o poema “Le dauphin
Dauphins, vous jouez dans la mer,
Mais le flot est tourjours amer.
Parfois, ma joie éclate-t-elle?
La vie est encore cruelle.
58
(APOLLINAIRE, 2006, p. 163)
Nos versos de L’Émigrant:
Il se maria comme un doge
Aux cris d’une sirène moderne sans époux
59
E recorremos novamente ao poema de Le Bestiaire intitulado “Les sirènes”:
Saché-je d´où provient, Sirènes, votre ennui
Quand vous vous lamentez au large, dans la nuit?
Mer, je suis comme toi, plein de voix machinées
Et mes vaisseaux chantants se nomment les années
60
.(APOLLINAIRE, 2006, p.
169)
um possível diálogo entre as obras de Apollinaire em que se percebe a existência de
um bestiário interior no poeta rico em animais reais e fabulosos. As sereias da mitologia são
56
Figura 28 em Anexos.
57
Ele queria essas flores como a glória/Brincar em outros mares entre todos os golfinhos. (APOLLINAIRE, 2005,
p.80. Tradução de Daniel Fresnot)
58
tradução de Woensel inserir
59
Ele se casou como um Doge/ Aos gritos de uma sereia moderna sem esposo (APOLLINAIRE, 2005, p.80.
Tradução de Daniel Fresnot)
60
O que provoca, sereias, vossos tormentos/quando soltais, no alto mar, noturnos lamentos?/ Ó mar! Como a ti,
vozes sinistras me espantam/ o fio dos anos são minhas naus que cantam. (WOENSEL, 2001, p. 157)
69
revividas em diversos poemas do autor de Alcools e sempre assombram sua poesia, mesmo que
seja uma simples menção como ocorre também em “Les Fiançailles”:
Les dragues les ballots les sirènes mi-mortes
A l'horizon brumeux s'enfonçaient les trois-mâts
Les vents ont expiré couronnés d'anémones
61
(APOLLINAIRE, 2006, p.104)
Este trecho remete à paisagem portuária banhada por uma bruma indecisa e o poeta brinca
com a palavra sereia possivelmente numa alusão à já referida mulher-pássaro da Sicília e o
maremoto de Messina e a advertência sonora dos navios. Embora pareça arbitrária a aproximação
dos oiseaux blancs, presente neste poema com La colombe” do Le Bestiaire, não nos parece
arbitrária quando se verifica a presença da ave em Merlin et la vieille femme, de Alcools, em
que se vêem também as mãos subirem como um vôo de pomba:
Et leurs mains s'élevaient comme un vol de colombes
62
(APOLLINAIRE, 2006
p.65)
Em Le Bestiaire, o empréstimo de idéias e épocas diversas permite, de início, estreitar
duas partes disparatadas de uma história e ressurgir a partir da recriação d’Orphée a grandeza de
um personagem fundado em magia, em profecia e em poesia, ao qual Apollinaire se identificaria
cada vez mais. Prova disso é a repetição e o reaproveitamento de seus versos, mitos e lendas,
temas anteriores à sua coletânea de 1911.
63
Além disso, o reaproveitamento de mitos e lendas seria mote para o poeta de Alcools
proferir conferências em que enfatiza a importância de se valorizar o antigo e o novo. Campa
(1996) relembra que toda a atitude estética de Apollinaire tenta mostrar que as desavenças entre a
tradição e invenção da ordem e da aventura é vã. O poeta está ligado ao mesmo movimento,
abraça no mesmo plano o passado, o presente e o futuro.
As notas que Apollinaire escreveu a respeito de algumas quadras de Le Bestiaire deixa
claro o significado que atribui a Orfeu, pois nota-se que além de Hermes Trimegisto, têm-se
reunidos no mesmo plano Orfeu, Cristo e o poeta, considerados pelo autor mágicos, profetas e
61
As dragas os fardos as sereias semimortas/ No horizonte nublado se perdiam os navios de três mastros/ Os ventos
morreram coroados de anêmonas. (APOLLINAIRE, 2005, p.98. Tradução de Daniel Fresnot)
62
E suas mãos subiam como um vôo de pomba. (APOLLINAIRE, 2005, p.62. Tradução de Daniel Fresnot)
63
Em 1899, por exemplo, o mito de Orfeu se manifestou no poema “Le Larron” e ainda em Le poète Assassiné.
70
visionários, cujas vozes são capazes de transformar o mundo. A obra mostra, portanto, um novo
Apollinaire, não mais tenebroso, descendo simbolicamente aos infernos à procura de sua arte,
como aparece simbolizado em Le Poète Assassiné, amargo com relação ao amor das mulheres,
mas sim encarando a poesia e a arte em seus aspectos criadores como se fosse uma luz no meio
de sombras.
Guacira Marcondes Machado Leite, num artigo intitulado O mito de Orfeu na
modernidade poética francesa, reconhece nas obras de Apollinaire a proximidade com o
Romantismo e o Simbolismo que vê na figura de Orfeu o “tipo do poeta sagrado e visionário” em
que usa suas aventuras míticas como protótipo não apenas do conhecimento da diversidade com a
qual se identifica através do rito de iniciação, mas também como modelo no qual ele vê refletidas
sua existência de homem, de poeta e suas experiências poéticas. (LEITE, 1990)
Em Apollinaire entre deux mondes, Pierre Brunel (1997) afirma que a modernidade na
literatura de Apollinaire se sobressai principalmente sob a influência dos manifestos futuristas de
Marinetti. Os poemas que o autor de Bestiaire criou enaltecendo a modernidade de seu tempo se
fazem presentes a partir das figuras que descreve neles, tais como: os prédios, os automóveis, a
paisagem não a parisiense, mas também de lugares por onde passou durante a sua vida. O
poema Zoneé um exemplo dessa afirmação ao descrever o mundo moderno, colocar a Torre
Eiffel entre suas paisagens, e os automóveis assim como os aviões e a velocidade que estas
máquinas atingem, a realidade do homem e da sociedade em que vive. Em contrapartida, as
referências ao mundo antigo adquirem a mesma importância. Ao colocar o antigo e o moderno no
mesmo plano, podemos constatar que a antiguidade grega e romana é também o mundo moderno
de ontem. (BRUNEL, 1997). Os primeiros versos do referido poema podem confirmar as nossas
considerações:
A la fin tu es las de ce monde ancien
Bergère ô tour Eiffel le troupeau des pont bêle ce matin
Tu en assez de vivre dans l’antiquité grecque et romaine
64
.
(APOLLINAIRE, 2006, p.7)
Este trecho de Zone” é um dos exemplos que nos mostra o paradoxo que permeia a
maior parte da obra de Guillaume Apollinaire: o mundo antigo e o mundo moderno. Os versos
64
Por fim estás cansado deste mundo antigo/ pastora ó Torre Eiffel o rebanho das pontes esta manhã/Você está farto
de viver na antiguidade grega e romana. (APOLLINAIRE, 2005, p. 15. Tradução de Daniel Fresnot)
71
acima situam o mundo moderno e o antigo no mesmo plano, destinados a se completarem, pois o
mundo moderno, ao passar pelo mundo antigo nunca é tão moderno e ele envelhece e perece tão
rápido quanto torna antigo o que está ao seu redor. (BRUNEL, 1997). O poeta de “Zone
modifica esse mundo, recriando-o tanto dentro da esfera de seu tempo como resgatando mitos e
lendas da antiguidade, e é este resgate e a capacidade criadora do poeta que conduzem nossos
estudos até o seu Le Bestiaire.
A intervenção paradoxal da antiguidade grega e romana e mais amplamente do mundo
antigo na coletânea de 1913 - Alcools - permite o retorno dos mitos em um universo poético que
devia radicalmente excluí-los. Esta exclusão não se refere apenas ao conteúdo, mas também à
forma; nos poemas de Alcools a ausência de pontuação é evidente, assim como a irregularidade
dos versos, enquanto em Le Bestiaire a preocupação com a forma se faz notar nos versos
predominantemente octossílabos e distribuídos em quadras. Apollinaire mostra, mais uma vez em
suas obras, a capacidade de somar e equilibrar as contribuições modernas de seu tempo com as
leituras que realizou sobre o mundo antigo. (BRUNEL, 1997)
A capacidade criadora de Apollinaire em recriar os mitos em seus poemas implica
também num reaproveitamento destes últimos em outros versos. Como conseqüência, temos, por
exemplo, uma mesma expressão usada com sentidos diferentes: uma com o seu sentido real e a
outra em sentido figurado, tornando constante o jogo de palavras que permite ao leitor passar de
uma representação a outra:
J’aime une Marie
[...]je me marie. (APOLLINAIRE, 2006, p.170)
A homofonia causada pela palavra marieora remete ao nome de sua amada Marie -
ora ao verbo “se marier” que significa casar-se . Quando lemos as duas quadras iniciais:
Colombe, l’amour et l’esprit
Qui engendrâtes Jesus Christ
65
(APOLLINAIRE, 2006, p.170)
Percebemos que os versos acima são uma apóstrofe ao Divino Espírito Santo e seguem os
dados dos evangelhos e da teologia: Nossa Senhora concebeu Jesus por obra e graça do Espírito
Santo e na hora de João batizá-lo, “ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e vindo
65
Pomba, espírito, és amor,/geraste Jesus Salvador (WOENSEL, 2001, p. 159)
72
sobre ele”. E ao final com os supracitados versos, o poeta mostra, mais uma vez, a sua
irreverência ao atribuir sintaticamente a paternidade de Jesus ao pombo, e implica que Maria era
sua “amada” através do jogo das palavras em francês.
4.2.5 – Os animais de Apollinaire e Baudelaire
Charles Baudelaire (1821-1867), precursor da poesia moderna, inspirou Rimbaud,
Apollinaire, TS Elliot e outros poetas revolucionários. Sua poesia é a de um verdadeiro
visionário, a um só tempo místico e sensual. (WOENSEL, 2001). Os poemas que fez dedicados à
figura do gato, sejam sonetos ou versos organizados em quadra, foram sintetizados por
Apollinaire em Le Bestiaire quando este compôs uma quadra que, juntamente com a gravura de
Dufy, enriquecem o mundo felino revelando facetas do animal, seus hábitos e visão de mundo do
próprio poeta e seus anseios.
Baudelaire dedicou três poemas aos gatos, cada um descobrindo novos atributos da
personalidade dos gatos “poderosos e doces, orgulho da casa”, libertários e indomados,
semelhantes aos poetas: descreve-se o animal, seus costumes, seu perfil psicológico e mitológico
para dali inferir comparações com os animais racionais, em particular os amantes e os sábios:
Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires (BAUDELAIRE,
1985, p.272)
66
O fino humor de Baudelaire, nos dois quartetos e dois tercetos que compõem um dos três
poemas que fez sobre os gatos, pode ter inspirado Apollinaire, que apresentou em seu bestiário
um felino bem parecido com o do autor de Les Fleurs du Mal, além de desejoso do aconchego de
um lar e cercado pela mulher amada e amigos:
Je souhaite dans ma maison:
Une femme ayant sa raison,
Un chat passant parmi les livres,
66
Os amantes febris e os sábios solitários/ Amam de modo igual, na idade da razão,/ Os doces e orgulhosos gatos da
mansão,/ Que como eles têm frio e cismam sedentários. (BAUDELAIRE, 1985, p.272. Trad. Ivan Junqueira)
73
Des amis en toute saison
Sans lesquels je ne peux pas vivre.
67
(APOLLINAIRE, 2006, p. 150)
Os versos seguintes do gato de Baudelaire continuam restritos à figura do gato, ora
atribuindo-lhe poderes mágicos: Leurs reins féconds sont plein d'étincelles magiques” ora
dotados de atitudes nobres: Ils prennent en songeant les nobles attitudes”. Enquanto o gato de
Apollinaire está entre seus livros numa imagem correspondente à xilogravura
68
de Dufy, o gato
de Baudelaire contempla-o com seus olhos e o poeta vê a si mesmo no olhar do felino, que o mira
fixamente: “Et que je regarde en moi-même” .
O autor de Le Bestiaire demonstra certa carência ao revelar que não vive sem os amigos
aproximando a figura do gato de um ser companheiro que lhe traz o conforto de sentir-se
amparado nos momentos de solidão. Por isso a imagem que vemos no conjunto formado pelo
título, gravura e quadra compõem uma cena em que o seu gato é mbolo da intimidade do lar
feliz idealizado pelo poeta: uma mulher de bom senso, muitos livros e amigos o ano todo. A
xilogravura, com o gato ao centro encarando o leitor, seu abajur e vasos com flores, também
ilustram o aconchego do lar. o poeta de Les fleurs du mal, em outro poema sobre o gato,
também se desdobra em carinhos com o felino que lhe faz companhia, porém este mantém uma
postura ambígua, trazendo no olhar o misticismo que a sua figura naturalmente carrega,
mantendo-se sempre distante, com o olhar frio “Profond et froid, coupe et fend comme un dard
[...]Lorsque mes doigts caressent à loisir
Ta tête et ton dos élastique,
Et que ma main s'enivre du plaisir
De palper ton corps électrique
69
[...] (BAUDELAIRE, 1996, p.184)
Outro poema seguindo a tradição do bestiário refere-se às corujas. Apollinaire e
Baudelaire também retiveram a coruja em suas produções, mas cada poeta deu um retrato
diferente da notívaga. Baudelaire considera-a, tradicionalmente, modelo dos filósofos: um sábio
pensador alheio ao tumulto e à agitação; no bestiário apollinariano vem à tona o preconceito
67
Desejo na minha mansão/uma mulher com os pés no chão,/m gato que entre os livros passa,/amigos em toda
estação:/viver sem eles não tem graça. (APOLLINAIRE, 2006, p. 151. Trad. Woensel)
68
Gravura 6 em Anexos.
69
[...]Quando meus dedos cobrem de carícias/Tua cabeça e o dócil torso,/ E minha mão se embriaga nas delícias/ De
afagar-te o elétrico dorso[...](BAUDELAIRE, 1985, p. 185. Tradução de Ivan Junqueira)
74
contra a coruja, a ave da noite e da morte, sob a forma do costume dos camponeses europeus de
maltratar a ave de mau agouro:
qu’on cloue, qu’on décloue, qu’on recloue/ De sang, d’ardeur, il est à bout
(APOLLINAIRE, 2006, p. 172)
As corujas de Baudelaire meditam. Ils méditent”, e o poeta apresenta uma descrição
melancólica e acrescenta um fundo moral na sua última estrofe, em que adverte a respeito do
homem que, ao procurar sombras vãs, não escapa de punição. Ou seja, a possibilidade de o
homem escolher o caminho que quer seguir, e embora a coruja tenha o aspecto melancólico e
esteja dentro de um contexto e paisagem sombrios, ela pode ensinar os sábios a ter uma atitude
que os direcione para o caminho certo, ou ainda a evitar o tumulto e a agitação do mundo.
4.3 Tradição e modernidade em Le Bestiaire ou Cortège d’ Orphée
Qual é o plano de Apollinaire para a construção de seu Le Bestiaire? Assim como os
bestiários mais religiosos escondem um sentido esotérico em uma figuração acessível ao profano,
Apollinaire, apesar de sua clareza, talvez tenha tecido versos plenos de significações ou de
intenções que nos escapam. Segundo Poupon (1966), não se sabe nem como nem por que ele o
escreveu. Entretanto, no decorrer das análises, percebemos que o poeta possuía um plano para a
composição de sua coletânea que incluía além do seu texto e das gravuras de Dufy, possíveis
narrativas que depreendemos ao tomar a obra como um todo e não uma mera disposição de
versos aleatórios.
A narratividade encontra-se nos intratextos produzidos principalmente a partir das notas
incluídas no Le Bestiaire mostrando um conhecimento que vai além dos poucos versos compõem
cada poema como se notou com as análises de Le Dromadaireou La Mouche”, por exemplo.
As observações que o poeta faz brevemente nos pequenos poemas ampliam a nossa compreensão
na medida em que podemos divagar sobre o tema, sobre o jogo de palavras que, intencionalmente
ou não, contribui para tornar o texto engraçado, com certa dose de ironia, ou simplesmente para
dar aos versos a musicalidade metaforicamente impregnada pela lira de Orfeu-Apollinaire. Essa
junção dos nomes, encontrada em análises de estudiosos diversos, permite-nos aludir a uma
75
explanação a respeito do papel do poeta que traz em seus versos uma conotação de condução e
cortejo o qual condiz com a construção precisa dos poemas que, no caso, não se encontram numa
ordem aleatória, como uma simples coletânea. Retomando o mito, os animais seguem o canto da
lira entoada por Orfeu, personagem que tem, evidentemente, uma grande importância em Le
Bestiaire, tanto pela escolha do título definitivo quanto pela presença dos quatro poemas com o
seu nome em que, cada um, introduz uma espécie de animais.
Os poemas mostram os diferentes aspectos de Orphée: o primeiro que aparece, é um
Orphée poeta, louvando a pintura, o segundo Orphée canta os insetos e olha o cortejo destes
bichos, o terceiro aparece como um precursor que anuncia a chegada de Cristo e, por último
aparece Orphée cantor, rivalizando com as sereias na aventura dos Argonautas. O mito de Orfeu
liga, portanto, os temas da poesia, do amor e da morte.
Marie-Louise Lentengre em Apollinaire: le nouveau lyrisme (1996) afirma que Orfeu se
manifesta na obra de Apollinaire sob diversas modulações como se fosse um investimento de si
mesmo na figura desse personagem mítico em que desempenha o papel de uma “alegoria”
transparente como uma identificação do eu - poético ou através de si mesmo como uma
emergência do eu-profundo. Os traços que o caracterizam parecem redundantes no olhar da obra
em seu conjunto. No mito e na lenda, Orfeu forma uma estreita rede com temas universais, o
desejo do outro, à sua sublimação da descida ao inferno, ao retorno de uma nova identidade.
Logo, carrega todos os elementos com os quais Apollinaire exaltou como imagem perfeita de
todo o poder da poesia: o sacrifício do corpo fragmentado vai semear a todos os ventos o espírito
que fecundará o mundo. A expressão “semear a todos os ventos” mostra a visão cubista do poeta
que, futuramente, iria influenciar outros poetas, a continuarem sua trajetória, inovando-a. Sob
esse aspecto Campa retoma que, para Apollinaire, existe uma continuidade entre a arte do
passado e aquela do seu presente, e que a atitude estética de Apollinaire tenta mostrar que as
desavenças entre a tradição e invenção da ordem e da aventura são vãs. O poeta ligado a um
mesmo movimento abraça no mesmo plano o passado, o presente e o futuro.
Numa conferência proferida em Paris em 25 de abril de 1908, o poeta questiona:
“Quelle serait la caractéristique d’une tradition, sinon la continuité? Et, pour notre part,
jeunes poètes, nous savons que nous ne nous égarons pas; car les maîtres que nous aimons, que
nous voulons continuer en conservant notre personnalité, et que par un noble sentiment
76
d’émulation, nous voulons surpasser ils existent, ils vivent, ils sont en plein travail, en pleine
gloire.”
70
(APOLLINAIRE, apud CAMPA, 1996, p.149)
Confirma-se em relação aos gêneros literários, a combinação e a presença de mais de um
gênero na mesma obra, ou seja, o artigo que Apollinaire escreveu e publicou em 1906 na Revue
Littéraire de Paris et de Champagne, respondendo a um questionário que abordava esta questão
mostra que
“Vers libre et classique, poésie et prose, théâtre, poème et roman me paraîssent
des formes également excellentes. Je ne pense pas qu’aucune d’elles soit sacrifiée au
benefice des autres”
71
(APOLLINAIRE apud CAMPA, 1996, p. 168).
Os versos que compõem Le Bestiaire mostram que, dentro de um contexto poético
estruturalmente organizado em versos, possui elementos de narração significativos e que, com o
passar dos anos, não modificaria o modo do poeta de elucidar a mistura dos gêneros, e que suas
obras publicadas após 1911 integrariam-se mais aos movimentos de vanguardas. Contudo,
Apollinaire não se preocupa nem em prender-se aos gêneros tradicionais nem em sintetizá-los ou
aboli-los, mas em criar uma nova relação entre os já pré-existentes conforme a estética do espírito
novo. (CAMPA, 1996).
Os poemas de Le Bestiaire apresentam essa mescla de gêneros, reconhecidamente um
traço de modernidade, pois além da presença das imagens, carregam em seu conteúdo elementos
narrativos. Um desses elementos narrativos é marcado justamente pelo tempo. Não o tempo
discorrido como tema – a efemeridade do tempo ou o tempo roído, por exemplo – mas aquele que
implica numa representação de mudança ou simultaneidade de ações que podem ou não ser
evocadas pelo poema e pela imagem. (DEBON, 1998) Um dos poemas que apresenta a maior
marca temporal é “Le Dromadaire”, aqui já aventado:
Avec ses quatre dromadaires
Don Pedro d'Alfaroubeira
Courut le monde et l'admira.
70
Qual seria a característica de uma tradição, senão a continuidade? E, de nossa parte, jovens poetas, sabemos que
não nos perdemos: pois os mestres que apreciamos, queremos continuar conservando nossa personalidade, e que
por um nobre sentimento de imitação, nós queremos sobrepujar. Eles existem, eles vivem. Estão em pleno
trabalho, em plena glória. (Trad. Nossa)
71
Verso livre e clássico, poesia e prosa, teatro, poema e romance me parecem formas igualmente excelentes. Não
penso que nenhuma delas seja sacrificada em benefício de outras. (Trad. Nossa)
77
Il fit ce que je voudrais faire
Si j'avais quatre dromadaires. (APOLLINAIRE, 2006, p.154 )
É uma das poucas composições da coletânea composta em quintilha e mostra nos três
primeiros versos o quanto o conteúdo narrativo é denso. A história de Don Pedro d’Alfaroubeira
a que Apollinaire se refere em nota sobre seu décimo poema, relata que o Infante de Portugal
viajou com doze companheiros a fim de conhecer as sete partes do mundo. Esses viajantes
montaram em quatro dromedários, e, depois de terem passado pela Espanha, visitaram a Noruega
e, de lá, a Babilônia e a Terra Santa. O príncipe português voltou ao seu país após três anos e
quatro meses. Essa nota valoriza o poema tornando-o menos obscuro assim como o enriquece a
partir de si mesmo que mantém o caráter narrativo dado pelos verbos courute admira”, e em
seguida os dois últimos versos abordam o desejo do poeta de fazer o mesmo. Um único
dromedário ocupa o cenário criado por Dufy
72
e apresenta tonalidades sombrias, destacando-se
em um fundo mais claro, uma espécie de oásis saariano.(“WOENSEL, 2001)
Um outro caso que Debon considera “intéressant” é dado pelo poema “Le paon”. É
necessário escutar a boa inspiração e não se deixar levar pela vaidade. Em relação a isso,
Apollinaire dá uma advertência na seqüência de versos:
En faisant la roue, cet oiseau
Dont le pennage traîne à terre.
Apparaît encore plus beau,
Mais se découvre le derrière.
73
(APOLLINAIRE, 2006, p. 171)
Querendo parecer mais belo, o pavão descobre seu traseiro e a vaidade origem ao
ridículo. Wittenberg questiona se Apollinaire teria pensado em certos poetas ao escrever esta
quadra, o que justificaria o tom irreverente que lhe dá. Ou, provavelmente, o artista teria em
mente a sublime tarefa do poeta, que muitas vezes contrasta com sua falta de adaptação às
prosaicas convenções da sociedade, ao apresentar a aparência majestosa da ave com detalhes
humilhantes. A quadra que acompanha a xilogravura
74
exalta a beleza do pavão, mas observa
também, ironicamente, elementos da sua desvantagem. Os quatro versos evocam, de forma
alternada, a beleza da ave e denigrem sua imagem com dois detalhes depreciativos: quando o
pavão desfila no terreiro, não pode impedir que sua longa cauda varra o chão sujo, e quando
72
Gravura10 em Anexos.
73
Abrindo a roda, esse pavão/arrasta as penas no terreiro:/admiramos o bonitão/mas fica à mostra seu
traseiro.(APOLLINAIRE, 2006, p. 171. Trad. Woensel)
74
Gravura 27 em Anexos.
78
mostra a cauda aberta em roda, “fica à mostra seu traseiro” indicando a simultaneidade dos,
acontecimentos. A xilogravura nos mostra um pavão exibindo altivo sua cauda esplêndida em
meio a uma paisagem aristocrática repleta de flores, folhas, colunas e uma escadaria: é uma ave
digna de seu simbolismo tradicional de realeza e de riqueza, de glória, de orgulho e de vaidade.
(WOENSEL, 2001).
O tema da própria poesia é uma das características da modernidade, mencionado na
seção anterior e é freqüente nos poemas de Le Bestiaire. Aparece no poema de abertura o
primeiro Orphée no qual o poeta faz uma alusão direta às gravuras que acompanham os textos, a
fim de incitar o leitor a admirá-las, essas “linhas nobres”. Essas duas técnicas de comunicação
humana, a pintura e a escrita são situadas no mesmo nível:
Admirez le pouvoir insigne
Et la noblesse de la ligne [...]
75
(APOLLINAIRE, 2006,p.145)
Orphée-Apollinaire toca sua lira, canta e encanta os animais que se reúnem em torno dele
tornando-se tema de seu canto e desfilando diante dos olhos do leitor, ao gosto das canções e das
gravuras:
La tortue
Du Thrace magique, ô delire!
Mes doigts sûrs font sonner la lyre.
Les animaux passent aux sons
De ma tortue, de mes chansons.
76
(APOLLINAIRE, 2006, p.146)
A tartaruga é atribuída ao deus grego Hermes que construiu a primeira lira a partir da sua
carapaça, o couro de um pequeno cavalo e as cordas feitas de tripas de ovelhas. Hermes deu uma
lira a Orfeu, a Trácia mágica. Tocando a lira, Orphée-Apollinaire cria um mundo de animais e
um cortejo, o cortejo d’ Orphée. Ele recorre à sua lira para atrair os bichos que serão testemunhas
de sua arte, mas também testemunhas de seu sofrimento e de sua alegria de viver.
(WITTEMBERG, 1985).
A partir de uma de suas notas que acrescenta a Le Bestiaire, Apollinaire espera que o
poeta domine bem a sua técnica e a inspiração poética a fim de que Pégaso, símbolo da
75
Sua arte é sublime, admirável/ seu traço é nobre, inimitável. (WOENSEL, 2001, p.109)
76
A mágica Trácia delira/em meus dedos tocando a lira./Os animais ouvem, passando,/a tartaruga e eu cantando. (
WOENSEL, 2001, p.111)
79
imaginação, da criatividade e da poesia seja conduzido pelo bom caminho. No terceiro poema de
Bestiaire, “Le cheval”, ele continua a narrar a história da luta de Bellérophon que foi o primeiro a
montar Pégaso para lutar contra a Quimera, cuja história mitológica se refere a ela como um ser
com cabeça de leão, torso de cabra e cauda de dragão e que soltava fogo pela boca, e a uma outra
Quimera, que representa uma fase de tédio e falta de inspiração. Se a falta de inspiração é
combatida com a ajuda de rédeas, e do trabalho, os poemas de Apollinaire tornariam-se modelos
de toda a poesia. Portanto, a criação dessa poesia exige, segundo Wittemberg, um trabalho muito
duro, (1985). É necessário, portanto, que se tenha sempre a cabeça cheia de idéias e de palavras,
como sugere o poema “Le lièvre”:
Ne soit pas lascif et peureux
Comme le lièvre et l'amoureux.
Mais que toujours ton cerveau soit
La hase pleine qui conçoit.
77
(APOLLINAIRE, 2006, p. 152)
Ou seja, a mente do poeta deve imitar, naturalmente, a fêmea da lebre, la hase, que
reproduz a cada quarenta dias. Nesse poema, Apollinaire parodia o tom moralizante dos
pregadores antigos ao condenar a lascívia e a pusilanimidade dos amantes, visto que,
tradicionalmente, a lebre é apresentada pelos pregadores medievais como um mau exemplo de
luxúria. Arnarld Zucker (2005), em uma tradução do Physiologos, afirma que a sexualidade
desenfreada da lebre não está de acordo com a sua carga simbólica mais conhecida, a de um ser
que possui o dom natural de defesa, capazes de fugir e de se esconder rapidamente de seus
predadores.
Para Woensel (2001) a sua “moral da história”, entretanto, parece dirigir-se em particular
aos colegas e artistas; seu cérebro deve estar “concebendo”,obras de arte ininterruptamente,
imitando assim a fertilidade da lebre cuja “superfetação” uma gravidez seguida de outra é
destacada na nota do poeta:
Chez la femelle du lièvre la superfetation est possible (APOLLINAIRE,
2006, p. 176)
77
Não sejas lascivo e poltrão/como o amante e o lebrão,/teu cérebro deve se encher/tal lebre prenhe ao conceber.
(WOENSEL, 2001, p.123)
80
A imagem da lagarta é próxima à da lebre. A lagarta carrega consigo, tradicionalmente, a
imagem de feiúra, devendo por metamorfose transformar-se numa borboleta, imagem da beleza.
Para Apollinaire, os poetas se parecem com a lagarta que, por seu solitário trabalho torna-se rica
como a borboleta; não rica no sentido material do termo, mas no sentido imaterial. Portanto a
promessa de riqueza para o poeta que trabalhar soa como um desabafo autobiográfico do autor.
(WOENSEL, 2001)
Le travail mène à la richesse.
Pauvres poètes, travaillons!
La chenille en peinant sans cesse
Devient le riche papillon.
78
(APOLLINAIRE, 2006, p. 158)
Assim no exemplo de La Chenille”, as duas formas de animal, a lagarta e a borboleta são
evocadas. Mas se o atributo da “riqueza” é comum ao homem e ao animal (“ Le travail mène à la
richesse”/ “Devient le riche papillon”) a metamorfose natural do animal é traduzida em termos de
“trabalho” pelo poeta. Essa “riqueza” não tem o mesmo significado para os dois protagonistas: há
um jogo sobre as palavras assinalado anteriormente. A riqueza da borboleta é a
superabundância de beleza, para o poeta, ela seria signo de abundância muito curta, como sugere
o “pauvres poètes”. A complementação visual da gravura
79
de Dufy contribui para que a
complexidade do tema seja inteiramente assumida: a lagarta e a borboleta são simultaneamente
representadas por Dufy, mas as borboletas aparecem no horizonte, alusivamente, e o poeta é
totalmente ausente. (DEBON) .
No que concerne à inspiração poética, Apollinaire nos informa no quarto e último poema
intitulado Orphée:
La femelle de l'alcyon
L'Amour, les volantes Sirènes,
Savent de mortelles chansons
Dangereuses et inhumaines.
N’oyez pas ces oiseaux maudits,
Mais les anges du paradis.
80
(APOLLINAIRE, 2006, p.168)
78
Ficar rico, trabalhando:/meu pobre poeta, te aplica!/A lagarta, sempre penando, /se torna borboleta rica.
(WOENSEL, 2001, p135)
79
Gravura 14 em Anexos.
80
As fêmeas dos belos anciões,/sereias volantes, Amor,/conhecem as fatais canções,/perigosas, de causar dor./Não
ouçam as aves malditas/ mas as santas vozes benditas. (WOENSEL, 2001, p.155)
81
Em um dos seus raros poemas em sextilha de Le Bestiaire, o poeta compara os pássaros
pagãos que conhecem canções mortais com os anjos do paraíso, em que os seres pertencem à
imagem cristã e o a materialização da inteligência divina. As asas dos anjos são
tradicionalmente o símbolo da inspiração positiva e divina. As canções são mortais, elas
conduzem à morte da alma pela impureza e o pecado. A nota que acompanha a coletânea também
nos dá uma alusão da advertência contida no poema:
Os navegantes, escutando cantar a fêmea do alcião, preparavam-se para
morrer, a não ser em meados de dezembro, quando essas aves fazem seus ninhos e
quando, pensava-se, o mar estava calmo. No que diz respeito ao amor e às sereias,
essas aves maravilhosas cantam tão harmoniosamente que a própria vida de quem
as escuta não é preço alto demais para pagar tal música. (WOENSEL, 2001,
p.154)
A gravura
81
que acompanha o poema apresenta Orfeu com vestimentas clássicas, em meio
a uma paisagem montanhosa, ladeado por uma sereia alada, com garras de ave de rapina.
No estilo de certos oradores sacros, as fêmeas são vistas como seres perigosos e, meio
sério, meio brincalhão, o poeta termina a sextilha na companhia dos anjos no paraíso, assim como
antigamente terminava o discurso de todos os sermões.
A crueldade da vida se exprime também no poema La Puce”. As pulgas são comparadas
aos amigos e aos amantes dos poetas que têm necessidade deles para viver. Os amigos sugam o
sangue e os poetas o dão voluntariamente, seu sangue flui por eles, por eles se sacrificam.
conhecemos a necessidade que Apollinaire tem de sempre ter os amigos ao seu redor, e em seu
Le Bestiaire, ele a exprime de forma intensa:
Puces, amis, amantes même,
Qu'ils sont cruels ceux qui nous aiment!
Tout notre sang coule pour eux.
Les bien-aimés sont malheureux
82
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 160)
Entretanto, para Woensel, esta quadra tem também um caráter misógino em que o poeta
expressa uma imagem bastante negativa da mulher. A pulga da xilogravura de Dufy aparece
dominando todo o cenário numa postura medonha, gigantesca e ameaçadora, dominando um
81
Figura 24 em Anexos.
82
Amigos, amantes e pulgas,/os que nos amam nos vitimam,/ são verdadeiras sanguessugas:/os bem-amados
lastimam. (APOLLINAIRE, 2006, p. 160. Trad. Woensel)
82
cenário de plantas e flores. Pode ser uma alegoria do amor feminino perverso, da mulher que
responde ao amor com ódio e, como a pulga, suga o sangue de seu amante.
Apollinaire tinha vivido algum tempo deprimido por causa de uma decepção amorosa: foi
quando escreveu sua famosa Chanson du mal-aimé”, na qual retrata uma imagem muito
negativa das mulheres considerando-as amantes ingratas. Mais tarde, quando conheceu Marie
Laurencin, confessou que foi ele mesmo quem não tinha sabido amar. Possivelmente o poema
deve datar da época de seus amores infelizes.
Em contrapartida, no poema seguinte, o poeta suga o sangue de seus amores, de suas
mulheres e de seus amigos. Ele se delicia com isso, mas ele não é amado, ele é mal-amado como
mostra o poema Le poulpe, sendo um dos poucos em que o nome do animal não aparece
escrito. O poeta se refere a ele como ce monstre inhumain” e acaba por admitir que está falando
de si mesmo:
Jetant son encre vers les cieux,
Suçant le sang de ce qu'il aime
Et le trouvant délicieux,
Ce monstre inhumain, c'est moi-même
83
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 164)
O polvo é o elemento masculino do casal formado também pela medusa, que o sucede na
quadra seguinte: na gravura é mais musculoso do que a companheira e as vorazes ventosas de
seus tentáculos revelam suas intenções nada pacíficas. Ele parece simbolizar as tendências para o
mal que o ser humano possui em si: a tinta preta com que polui a água e o sangue que suga dos
seres que ama revelam seu caráter anti-social, e até mesmo sádico.
Os poemas desta série de animais aquáticos não vêm com a conhecida aplicação moral e
sim com uma confissão do poeta no final: o seu comportamento amoroso é egoísta e monstruoso
como o do polvo.
Seu par, a medusa, possui uma interpretação análoga a do poema do golfinho: a paixão do
poeta pelas tempestades da vida presentes nos dois últimos versos do poema:
Méduses, malheureuses têtes
Aux chevelures violettes
83
N’água sua tinta largando, /sugando o sangue de quem ama/com tudo isso se deliciando:/sou eu mesmo, monstro
sem fama. ( WOENSEL, 2001, p. 147)
83
Vous vous plaisez dans les tempêtes,
Et je m'y plais comme vous faites
84
.(APOLLINAIRE, 2006,p. 165)
A medusa aparece como a cara-metade do polvo monstruoso. Se ele se apresenta como
um machão sádico, a medusa é uma criatura sofrida com tendências masoquistas. Na xilogravura
aparece com traços delicados, com tentáculos finos e ondeantes: parece conviver em paz com
seus vizinhos marítimos. Da mesma forma, o poema evoca a melancólica elegância da medusa,
sua cabeleira roxa e seu suposto prazer em sofrer com a violência das tempestades. Nessa quadra,
como nas duas anteriores da sua série, não uma moral e sim uma confissão do poeta: como a
medusa, o poeta afirma que sente uma atração pelas tempestades da vida.
O poeta mantém o tom melancólico que caracteriza esta série de seres aquáticos ao tratar
também da brevidade da vida nos poemas L’écrevissee La carpe”. A gravura do primeiro
mostra o lagostim com as pinças fechadas, parecendo absorto em meditação e possui uma
aparência de um animal estilizado em brasão de armas, ladeado por ramagens simétricas. Sem o
texto de Apollinaire dificilmente se identificaria a figura do lagostim. O parentesco homem-
animal está prestes a se perder. Além disso, para Debon (1998) a comparação do lagostim com o
poeta carrega um atributo do animal a marcha, a recuar. Mas no poema, metaforiza um elemento
humano, a incerteza. Essa incerteza retomada negativamente é muito valorizada: ô mes
délices”. Soluções originais foram encontradas para figurar simultaneamente o homem (o poeta
em ocorrência), o lagostim, a marcha para trás.
As incertezas que agradam ao poeta se referem à sua vida amorosa. Ele parece duvidar
da constância de sua amada e até da sua própria: os dias vão passando sem que chegue a uma
decisão:
L’Écrevise
Incertitude, ô mes délices
Vous et moi nous nous en allons
Comme s'en vont les écrevisses,
À reculons, à reculons.
85
(APOLLINAIRE, 2006, p. 166)
84
Medusa, da triste cabeça/coroa roxa te adereça;/tua alegria é o temporal:/e meu prazer nele é igual.
(APOLLINAIRE, Trad. Woensel)
85
Incertezas me satisfazem,/elas e eu vamos andando,/como os lagostins sempre fazem/vou recuando, recuando.
(APOLLINAIRE, 2006, Trad. Woensel)
84
O lagostim serve de comparação ao poeta para retomar e ilustrar o tema da fugacidade do
tempo e dos amores: ele tem a percepção de andar recuando em vez de avançar rumo a um amor
feliz. Assim como mostra no poema Le pont Mirabeauda coletânea Alcools - o poeta se
imagina parado, enquanto águas e amores passam em versos que soam como refrão de um dos
poemas mais conhecidos de Apollinaire (WOENSEL, 2001):
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
86
(APOLLINAIRE, 2006, p. 15)
La carpe” também traz uma reflexão metafísica ao invés da lição moral ou advertência:
La Carpe
Dans vos viviers, dans vos étangs,
Carpes, que vous vivez longtemps!
Est-ce que la mort vous oublie,
Poissons de la mélancolie.
O último poema da série de animais aquáticos se completa com uma gravura
87
que
representa a carpa fora de proporção em relação ao viveiro de onde emerge, e que integra uma
paisagem que nos remete à Versailles, um palácio de linhas clássicas com uma estátua eqüestre
no primeiro plano. Neste estranho habitat, o guloso peixe parece antes vegetar do que viver.
(WOENSEL, 2001).
A proverbial longevidade da carpa, presente na quadra e a alusão pictórica aos grandiosos
palácios que desafiam os séculos são imagens enganadoras: a morte é inelutável. uma ironia
no contraste entre as palavras viviers (viveiro) e vivez longtemps (vive anos sem fim): um viveiro
é um tanque destinado a criar peixes ou conservá-los vivos, mas não garante a imortalidade. A
resposta à pergunta retórica contida nos últimos versos, portanto, é negativa.
Em Le serpent”, o poeta brinca com o duplo sentido do pronome pessoal, tuque pode
se referir à serpente, ao poeta, ao leitor e mesmo ao membro viril. A serpente é tradicionalmente
um símbolo fálico. O golfinho é signo do sexo masculino, porém, quando brinca nas águas, torna-
se o símbolo arquétipo da feminilidade. Segundo Wittemberg (1985), Apollinaire nunca escondeu
o seu erotismo, refere-se a ele principalmente em seus romances eróticos e em edições de obras
libertinas que escreveu. O autor de Lettres a Lou não escondia a sua sexualidade em torno das
86
Que venha a noite soe a hora/Os dias vão embora (APOLLINAIRE, 2005, p. 21. Trad. Daniel Fresnot)
87
Gravura 23 em Anexos.
85
mulheres de quem gostava e isso se revela também em Le Bestiaire mostrando a combinação
entre o amor profano e o amor casto. Exemplo que se consolida no poema La Colombe” quando
o poeta brinca com o nome de Marie, aqui já aventado.
Na tradição simbólica a pomba refere-se ao amor e ao espírito: a ave serve de ponto de
referência biográfica, em que a menção ao nome de Marie concerne não somente à Virgem
Maria, mas também a uma mulher, a mulher da vida do poeta com quem ele tinha a intenção de
casar-se.
O tema da morte aparece sobretudo no fim da coletânea no poema Ibisem um jogo de
palavras que modifica todo o significado do poema e estabelece a relação da obra como um todo.
É um dos únicos que aborda a questão da morte. Em Le Bestiaire, o penúltimo poema, Íbisfaz
parte da série das aves. Como a ave era cultuada pelos egípcios antigos, tendo aparecido em
muitos bestiários medievais com a fama de inspirar medo às serpentes por comer os ovos desses
répteis. Além disso, era considerada uma ave suja que se alimentava de peixes mortos e
representava também, ainda segundo Woensel, o miserável pecador que cobiça os frutos da
carne ao invés de procurar os frutos do espírito. Contudo, a quadra moderna de Apollinaire não
explora seus aspectos negativos:
Íbis
Oui, j'irai dans l'ombre terreuse
Ô mort certaine, ainsi soit-il!
Latin mortel, parole affreuse,
Ibis, oiseau des bords du Nil.
88
(APOLLINAIRE, 2006, p. )
Segundo informa o último verso, a íbis vivia às margens do rio Nilo. E seguindo a
tradição do bestiário medieval, Apollinaire não deixou de incluir à guisa de conclusão sua obra,
considerada por muitos autores “didática”, um pequeno sermão sobre a morte e o paraíso. Por ser
o único poema em que o título não possui artigo ibis”, sem o artigo, pode referir-se tanto à ave
quanto à palavra latina que quer dizer “(vocês) irão”, Woensel exemplifica com uma anedota para
estudantes de latim que um general, partindo para a guerra, e consultando o oráculo para saber se
teria êxito, obteve esta resposa: Ibis peribis numquam redibis”, “(vocês) irão perecerão nunca
voltarão”. O general entendeu “irão, perecerão nunca,voltarão”, mas não voltou: tinha colocado
88
Irei um dia à sombra,sim,/ó morte certa, seja assim./Palavra atroz, latim mortal,/íbis, do Nilo ave agoural.
(Tradução de Wonsel)
86
mal as vírgulas e o sentido era “irão, perecerão, nunca voltarão”. Parece advir desta anedota o
sentido da “palavra atroz, latim mortal, íbis”.
Nos primeiros versos, o poeta, imitando o estilo dos bestiários devotos, aceita a morte
com resignação. Na segunda parte, porém, enfrenta a morte com um olhar de humanista
referindo-se à palavra latina do oráculo, lembra que toda vida humana é uma viagem sem volta,
uma expedição que leva à morte. É importante ressaltar que, nesse contexto, o latim é chamado
uma “língua morta”, o que pode nos dar uma outra conotação para o terceiro verso reafirmando a
questão da morte. A gravura
89
mostra a “ave do Nilo” cercada de flores e folhas de lótus, que nos
remetem à flora e fauna sagrada dos egípcios. Mas na tradição medieval, a íbis, tida por animal
nojento que se alimenta da carniça, é uma espécie de metáfora para o pecado e o pecador:
destarte é a imagem apropriada para esse momento “lembra-te que hás de morrer”.
A comparação com os modelos antigos força, assim, a mostrar que Apollinaire se
distancia de seus antecedentes. A íbis apollinairiana, por exemplo, não guarda nenhum dos traços
característicos do animal que figura nos bestiários antigos como o mbolo de uma vida
unicamente ligada aos alimentos carnais. Permanece do modelo antigo apenas a notação des
bordes du Nilmuito tradicional no sentido de que a íbis é um pássaro que não entra na água,
fica, portanto nas margens, mas que nem sempre é associada ao Nilo. Mas a associação íbis e
morte são novas e precisamente sobrepostas por aquele que era um detalhe secundário de
algumas descrições: O Egito. (DEBON, 1998)
Em Le Boeuf”, o último poema da coletânea, é a vez de a esperança prevalecer sobre a
morte e surge, portanto, como uma promessa de ressurreição:
Ce chérubin dit la louange
Du paradis, où, près des anges,
Nous revivrons, mes chers amis,
Quand le bon Dieu l’aura permis
90
.(APOLLINAIRE, 2006, p. 174)
Os querubins são bois alados, porém nada monstruosos. Distinguem-se entre as
hierarquias celestes, dedicadas ao serviço e à glória da divindade, seres de formas das mais
desconhecidas e de uma beleza deslumbrante. O boi pode ser também substituído pela figura do
89
Figura 29 em Anexos.
90
O boi-querubim elogia/o céu dos anjos que de ser/ um dia nossa moradia/ amigos, se Deus
conceder.(WOENSEL, 2001, p.167)
87
touro. Este é, tradicionalmente, não o símbolo do instinto e da animosidade, mas também a
imagem do poder genético e da força criadora. Esta força criadora está munida de asas (do
querubim) que sugerem a inspiração poética. Esse querubim criador e inspirador anuncia a glória
do paraíso onde o poeta ressuscitará após sua morte física ou intelectual. A morte intelectual será
a morte das velhas formas, dos antigos conteúdos; ela será seguida de um novo início, como o
próprio Apollinaire esclarece em uma nota:
Ceux qui s’exercent à la poèsie ne recherchent et n’aiment rien d’autre que la
perfection qui est Dieu lui-même. Et cette divine beauté, cette suprême perfection
abandonnerait ceux dont la vie n’a eu pour but que de les découvrir et de les
glorifier? Cela paraît impossible, et, à mon sens, les poètes ont le droit d’espérer
après leur mort le bonheur perdurable que procure l’entière connaissance de
Dieu, c’est-à-dire de la sublime beauté.(APOLLINAIRE, 2006, p. 177)
91
Na seqüência do poema Ibis” em é que expressa a consciência da morte, o poema Le
Boeuf”, por sua vez, verbaliza a esperança. Apollinaire não renuncia ao fim, nem à poesia e nem
ao amor. Para Wittemberg é o contrário, o poeta constata ironicamente que ele e seus amigos
ganharão o paraíso guardando sua identidade terrestre.
O poeta recria sua obra a partir do mito de Orfeu que representa todas as expressões do
desejo humano e de uma vida intelectual que triunfa sobre os traços primitivos do homem e que,
após a iniciação da viagem de descida ao inferno, retorna a uma vida de calma e de paz. Essa
viagem pode também simbolizar a morte do velho homem e o renascimento do novo, o que nos
remete ao último poema da coletânea, Le Boeuf”. Orfeu esconde seus poderes que, por
conseqüência, ampliam-se por meio do mistério. Apollinaire procede da mesma maneira ao
inventar uma poesia rica em trocadilhos, com alusões veladas e com surpresas. É uma poesia
destinada a uma certa elite, como constatamos neste estudo com o poema La sauterelle”: le
régal des meilleures gens”. (WITTENBERG, 1985).
Os personagens múltiplos atribuídos à Orphée legitimam a narratividade de Le Bestiaire
que ilustram e legitimam o percurso do poeta para colocar-se no plano terrestre como homem,
como figura mítica e por fim como Cristo. Apollinaire retoma diversas vezes o caráter divino da
91
Os que se dedicam à poesia nada mais procuram e amam do que a perfeição, que é Deus mesmo. E essa divina
bondade, essa suprema perfeição seria capaz de abandonar aqueles cuja vida tem por finalidade tão-somente
descobrir e glorificar as mesmas? Isto parece impossível, e, a meu ver, os poetas têm o direito de esperar depois de
sua morte a felicidade duradoura que propicia o pleno conhecimento de Deus, isto é, da sublime beleza.
(WOENSEL, 2001, p.166)
88
criação poética em que Wittemberg estabelece uma equação: Apollinaire=Orphée= Cristo=Deus.
O poeta é o criador de um mundo e está no mesmo plano de Deus. Ele aspira recriar o mundo à
sua própria imagem. Para Apollinaire, Orfeu revive em cada poeta.
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises e discussões apontadas até aqui estão longe de ser considerações finais.
A leitura das obras de Apollinaire podem suscitar constantes reflexões e análises ainda não
detalhadas neste estudo. Pudemos constatar aqui que Apollinaire vivencia em seu Le
Bestiaire a constante dualidade entre o antigo e o moderno, a narrativa e a poesia, o caráter
mítico e simbólico, assim como os elementos autobiográficos e os temas do dia a dia que se
harmonizam nessa obra, criada e reinventada por um dos mais importante autor de um
bestiário na versão moderna.
A presença de Orfeu torna possível uma relação de intratextualidade com os poemas
da coletânea e demonstra a permanência do personagem nas produções de Apollinaire;
além disso, comprova que Le Bestiaire ou cortège d'Orphée está além de um
divertissement poétique”, pois o esforço do poeta em construir uma obra coerente e
fragmentada, cujo entendimento não se limita à leitura dos versos, mas é somado às
gravuras de Raoul Dufy, permite a constante (re) criação de um verdadeiro “cortejo”.
Apollinaire ao basear-se nos exemplos dos bestiários tradicionais, fornece diversas
possibilidades de interpretação dos poemas e das gravuras, pois desenvolve um lirismo que
demonstra o quanto absorveu dos modelos antigos, retoma algumas práticas poéticas dos
autores de sua época e, finalmente, produz algo inédito, ainda não experimentado
anteriormente o que reforça o caráter inovador, pelo qual o poeta tornou-se notório em sua
curta vida literária.
Os animais escolhidos por Apollinaire para a coletânea são privilegiados por serem
ricos em significados, sendo alguns associados à nossa cultura popular, enquanto outros são
apresentados pelo poeta em suas notas a fim de esclarecer o leitor. Compartilha com o leitor
alguns aprendizados, como faziam os clérigos da Idade Média, contudo mostra-se muito
mais disposto a dar-lhe a liberdade de interpretação. O leão, por exemplo, poderia ter sido
enriquecido com uma simbologia correspondente ao senso comum, com características
elucidadas tanto pela fábula quanto pelos outros bestiários e até mesmo bíblicas, contudo
Apollinaire privilegiou a sua recriação direcionando-a para o seu interesse e para enfatizar a
coerência de sua obra, em que a condição do poeta é constantemente análoga a algumas
descrições dos animais.
90
O discurso de Apollinaire Le Bestiaire denota a sua preocupação em atribuir alguns
valores aos poetas
modernos, considerados “profetas e magos” sem deixar de criticá-los. O
comportamento dos animais descritos nos versos ora criticam, ora aconselham o homem.
Sob esse aspecto não se distancia, portanto dos modelos em que se baseou para produzir o
seu bestiário.
Le Bestiaire ou cortège d’Orphée é aqui apresentado como uma obra com presente
passado e futuro em seu sentido mais amplo, pois traçamos um histórico que revela as
possíveis relações que Apollinaire estabeleceu com os mitos antigos, já presentes nos
modelos antigos de bestiários definido como gênero literário distinguindo-se da fábula, por
exemplo. Além disso, a comparação com os modelos estruturais das primeiras produções
permite compreender a trajetória do poeta ao compor a sua produção, mesmo esta seguindo
uma estrutura recriada por ele. A lírica apollinariana se manifesta gradativamente em suas
obras em um processo que equilibra a ruptura com os modelos propostos pelos autores
ditos “precursores da modernidade” e, paradoxalmente, remetendo-se sempre a eles sem
negar a herança deixada por eles, mas com a inquietante preocupação em deixar aos poetas
que o sucederiam o seu próprio legado.
91
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97
APÊNDICES
98
Apêndice A –TRADUTORES DE LE BESTIAIRE OU CORTÈGE D’ORPHÉE
A tradução de um texto depende das escolhas que o tradutor faz e das prioridades que ele
estabelece a fim de manter uma relação de proximidade com o texto original e garantir maior
fidelidade ao texto. A tradução de Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée possui duas traduções
relevantes para a realização desse estudo. Contudo, foi necessário estabelecer alguns critérios
para a utilização de uma e de outra. A primeira obra com que tivemos contato é a de uma edição
brasileira que tem o mesmo nome da obra original, publicada em 1997, com tradução e
apresentação de Álvaro Faleiros. O segundo contato foi com o trabalho de Maurice Van Woensel
em que, com a colaboração da Universidade Federal da Paraíba, realizou um estudo sobre os
bestiários intitulado Simbolismo Animal Medieval, no qual consta uma reprodução traduzida de
Le Bestiaire de Apollinaire.
O trabalho de Woensel não se limitou apenas à tradução e estudo sobre Le bestiaire ou
cortège d’Orphée de Apollinaire, mas a um profundo estudo acerca do universo dos bestiários,
desde os primeiros de que se tem conhecimento, até os modernos, inclusive acrescentou
exemplos da poesia moderna brasileira. No prefáciode seu trabalho, Francisco José Gomes
Correa o considera um “intérprete literário e “um historiador erudito”.
As ilustrações de Dufy acompanham a tradução de ambas as edições brasileiras.
A tradução de Le Bestiaire feita por Faleiros contém dois textos - “Noticias do Bestiário”
e “Sobre a tradução” - que permitem a compreensão de suas escolhas de palavras nos poemas e
que são partes esclarecedoras para a compreensão do próprio Le Bestiaire de Apolliniare.
Faleiros conservou as rimas encontradas no original, salvo em poucos momentos, quando teve
que substituir rimas consoantes por toantes, para manter a “dinâmica do original”, como ele
próprio justifica. Cita os casos de infecto/inseto em Orphée II”, que Woensel igualmente
mantém, porém em La Sauterelle, os pares de rima de Faleiros são: de gafanhoto/solto,
João/pão e em Woensel a tradução privilegia outra escolha de palavras: manjar/deliciar e
João/educação sem, no entanto provocar grandes alterações semânticas. O mesmo ocorre em
Orphée IIIem que rimas com os pares de palavras sabor/salvador que se mantém nas duas
traduções, embora a preocupação com a rima mais próxima do original seja maior em Faleiros,
como mostra o exemplo abaixo com o poema original e as duas traduções:
99
Texto original:
Orphée
Que ton coeur soit l'appât et le ciel, la piscine !
Car, pêcheur, quel poisson d'eau douce ou bien marine
Egale-t-il, et par la forme et la saveur,
Ce beau poisson divin qu'est JÉSUS, Mon sauveur ?
Tradução de Álvaro Faleiros
Que teu coração seja isca e céu, piscina!
Pois pescador, peixe de água doce ou salina
Pode igualar-se por sua forma e sabor,
Ao peixe divino, JESUS, Meu Salvador?
Tradução de Maurice Van Woensel
Tua alma seja a isca, teu viveiro seja o céu!
Há peixe no mar ou rio, pecador réu,
Que possa igualar, por sua forma ou sabor,
O belo peixe santo, JESUS Salvador?
A tradução de Faleiros comprova a sua preocupação em manter a fidelidade ao texto e as
escolhas de palavras que mantivessem a rima. Contudo, a tradução de Woensel, embora tenha
mais liberdade, permite uma análise mais próxima de se associar à imagem e às pretensões de
Apollinaire, como verificamos neste estudo.
Faleiros chama de liberdades poéticas as mudanças nas quais teve a preocupação em rimar
um singular com um plural para conservar o sentido, como por exemplo, no poema Le
dromadaireem que rimou ideário/dromedários e beldades/acuidade/crueldade em Le Serpent”.
Acredita que essas modificações não prejudicaram a compreensão “e a estética da obra”. Porém,
ao deparar-se com o original ou mesmo com a tradução feita por Woensel, por exemplo, percebe-
se que as alterações não se limitaram a solucionar a questão das rimas. Em muitos versos,
Faleiros modifica bastante o original, como por exemplo em “La Tortue”:
Du Thrace magique, ô délire !
Mes doigts sûrs font sonner la lyre.
Les animaux passent aux sons
De ma tortue, de mes chansons.
Tradução de Álvaro Faleiros
Da Trácia mágica, encanto!
Toco sim minha lira enquanto
Bichos passam ao som veloz
De minha tartaruga e voz.
Tradução de Maurice Van Woensel
A Trácia mágica delira
Em meus dedos tocando a lira.
Os animais ouvem, passando,
A tartaruga e eu cantando.
100
No primeiro verso original, Faleiros substituiu a palavra délirepor “encanto”, o que faz
com que uma rima importante délire/lyre se perca que essa rima mostra uma das mais
importantes relações que a quadra estabelece e que é mantida na tradução de Woensel: o poeta
Orfeu que enfeitiça com a sua lira, bem como os dedos que a tocam; Faleiros acrescenta a palavra
“veloz” ao som, que aparece no singular e por último, mes chansons do original são
substituídas por “voz”. Woensel apesar de também substituí-las consegue manter mais fielmente
as pretensões de Apollinaire. m-se a impressão de que o tradutor, por também ser um poeta,
privilegiou realmente a forma, relegando a segundo plano as escolhas vocabulares de Apollinaire.
Entre outros exemplos, há “Le Lapin” em que Faleiros toma uma liberdade poética ainda maior:
Je connais un autre connin
Que tout vivant je voudrais prendre.
Sa garenne est parmi le thym
Des vallons du pays de Tendre.
Tradução de Álvaro Faleiros
No campo conheço uma caça
Que viva queria eu pegar.
Entre o tomilho ela se enlaça
Num vale onde o amor é lugar.
Tradução de Maurice Van Woensel
Um certo coelho eu conheço,
Prendê-lo é o que apeteço.
No timo fica sua toca,
E no Mapa de Amor se enloca.
Faleiros ao substituir pays du Tendre, por onde o “amor é lugar”, mostra, mais uma vez, a
sua preocupação com a rima (prendre/Tendre-pegar/lugar), porém a referência literária se perde,
o que empobrece o poema. Woensel também não menciona diretamente a palavra Tendre, mas ao
substituí-la por “Mapa do Amor” ele demonstra claramente que o poeta se refere à la carte de
Tendre (o mapa de amor) proveniente do romance Clélie de Madame de Scudéry produzida no
século XVII. É uma cartografia elaborada das terras do amor, um mapa em que figuram alegorias
como Sinceridade, Bondade, o Lago da Indiferença, o Mar Perigoso, acidentes geográficos e
sítios que se referem à temática de amores idealizados ou execrados. O coelho da gravura
92
que
acompanha os versos está quase escondido embaixo no quadro, bem camuflado na sua toca no
meio da mata, longe do mundo dos homens, com a igreja ao fundo. Nesta quadra, o símbolo é o
próprio coelho escondido, aludindo a um significado mais oculto.
92
Gravura 9 em Anexos.
101
Outro exemplo ainda no mesmo poema mostra que o poeta, numa linguagem metafórica,
solicita uma mulher que atenda aos seus desejos eróticos que se manifesta em um jogo de
palavras: connin é um termo erudito substituído pela palavra lapin porque a primeira laba de
connin, designa, em francês, o órgão sexual feminino. Esta quadra constitui uma sutil paródia das
“preciosas”, as matronas do século XVII, imortalizadas por Molière, um tanto pedantes, com uma
linguagem bombástica e maneiras afetadas. (WOENSEL, 2001). A elas alude também o termo
francês connin usado no poema para designar o coelho; este não passa de uma alegoria “preciosa”
da mulher. Woensel levanta a hipótese da substituição da palavra connin por lapin se dever a este
equívoco. Equívoco lingüístico do qual Apollinaire se aproveita para mostrar mais uma diversão
lingüística bem ao seu gosto. No entanto, a escolha de Faleiros por “caça” não permite essa
correspondência, o que reforça a escolha do tradutor dos poemas de Le Bestiaire para este estudo
recair sobre Woensel.
102
Apêndice B - POEMAS RECUSADOS PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO DE LE
BESTIAIRE OU CORTÉGE D’ORPHÉE, DE 1911
Le condor
Cet oiseau s’appelle condor
Et que les filles ne l’ont-elles”
Savez-vous quoi? Il n’est pas d’or
L’anneau merveilleux d’Hans Carvel.
Le morpion
Imitons la ténacité
De cet insecte qu'on méprise
Dames, messieurs qui vous grattez
Il ne lâchera jamais prise.
Le Singe
Lorsqu’a la cave as main serve
Porte la viande de conserve,
On peut sans fouler la méninge
Dire: l’homme descend du singe.
L’Araignée
On sait même chez le Papou
Que la trop crèdule Araignée
S’est avec un rasoir saignée
Pour les yeux enjôuleurs du Pou.
O condor
Condor quer dizer cona d’ouro
A das moças são de ouropeul!
Sbem mais o quê? Não é de ouro
O anel mago de Hans Carvel.
O chato
Imitemos a insistência
Deste inseto desprezado
O que se coça ante esta ardência
Está pra sempre aprisionado.
O macaco
Quando da cave com a mão
Ele arrebata a provisão.
Afirma-se sem empecilho
O homem é do macaco um filho.
A aranha
Sabe-se até lá em abrolhos
Que a tolíssima Aranha
Com uma gilete se arranha
Pelo quê do piolho, os olhos.
(APOLLINAIRE, 1997, p. 96-103. Trad. Álvaro Faleiros)
103
Apêndice C - POEMAS BASEADOS EM BESTIÁRIOS DE AUTORES
CONSAGRADOS NA LITERATURA
Apollinaire não foi o único leitor interessado em bestiários. Não foram poucos os
escritores de épocas e nacionalidades variadas que dedicaram um ou mais poemas em que
os bichos serviam como pretexto para se falar da conduta humana. Neste apêndice
incluímos algumas produções criadas por autores mencionados na primeira seção deste,
estudo, privilegiando os textos de poetas da língua portuguesa..
Manuel Bandeira (1886-1968) publicou um poema intitulado “A aranha” em
As cinzas das horas em que se verificam algumas características dos tradicionais bestiários.
Evoca o mito de Aracne, uma artista tecelã, que provocou a inveja na deusa Minerva que a
castigou transformando a mortal em uma aranha. Na terceira e penúltima estrofe do soneto,
percebe-se uma moral da história.
A aranha
Não te afastes de mim, temendo a minha sanha
E o meu veneno... Escuta a minha triste história:
Aracne foi meu nome e na trama ilusória
Das rendas florescia a minha graça estranha,
Um dia desafiei Minerva. De tamanha
Ousadia hoje espio a incomparável glória...
Venci a deusa. Então ficou ciumenta da vitória,
Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha!
Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura.
Inspiro horror... Ó tu que espias a urdidura
Da minha teia, atenta ao que meu palpo fia:
Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis,
Sob os quais incessante e vária a fantasia
Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis....(BANDEIRA,1993, p.126)
Olavo Bilac (1865-1918), por sua vez, traz em seu soneto com o mesmo título:
Com o veludo do ventre a palpitar hirsuto
E os oito olhos de brasa ardendo em febre estranha,
Vede-a: chega ao portal do intrincado reduto,
104
E na glória nupcial do sol se aquece e banha.
Moscas! podeis revoar, sem medo à sua sanha:
Mole e tonta de amor, pendente o palpo astuto,
E recolhido o anzol da mandíbula, a aranha
Ansiosa espera e atrai o amante de um minuto...
E ei-lo corre, ei-lo acode à festa e à morte! Um hino
Curto e louco, um momento, abala e inflama o fausto
Do aranhol de ouro e seda... E o aguilhão assassino
Da esposa satisfeita abate o noivo exausto,
Que cai, sentindo a um tempo, - invejável destino!
A tortura do espasmo e o gozo do holocausto. (BILAC, O, Os amores da Aranha: in
Livro dos Bichos, 2004, p. 52)
É a mesma aranha, mas não alude ao mito e sim à fama da aranha, de matar o
macho após o ato sexual - a “glória nupcial do sol” e embora não tenha uma moral, faz uma
alusão indireta ao comportamento amoroso da mulher que traz sofrimento ao homem, o que
nos remete a várias fases melancólicas do autor do Le Bestiaire que também vai possuir
uma quadra dedicada à aranha, mas que não fez parte da publicação de 1911. Todavia, a
aranha de Apollinaire possui um significado distinto, que numa tradução de Álvaro Faleiros
apresenta-se da seguinte maneira:
Sabe-se até lá em abrolhos
Que a tolíssima Aranha
Com uma gilete se arranha
Pelo quê do piolho, os olhos (APOLLINAIRE, 1997, p. 103)
Vinicius de Moraes (1913-1980) tem vários exemplos de poemas baseados nos
modelos de bestiário medieval. O primeiro exemplo faz parte da obra Nossa Senhora de
Los Angeles, “Crocodilo” é um poema distribuído em nove quadras em que o poeta adora o
caráter “científico” dos bestiários da cristandade: “Chamam ao pequeno
crocodilo/Paleosuchus palpebrosus”. A referência inversa a um expressão popular
conhecida em nossa cultura, “lágrimas de crocodilo”, figurava no Physiologos, e no
poema brasileiro, o poeta não deixa de acrescentar nos versos finais um tom moralizante
ou o que Woensel considera “chave de ouro” do poema: “Nunca verei um
crocodilo/Chorando lágrimas de homem”.
105
O crocodilo que do Nilo
Ainda apavora a cristandade
Pode ser dócil como o filho
Que chora ao ver-se desamado.
Mas nunca como ele injusto
Que se ergue hediondo de manhã
E vai e espeta um grampo justo
No umbigo de sua própria mãe.
O crocodilo espreita a garça
Sim, mas por fome, e se restringe
Mas e o filho, que à pobre ave
Acompanha no Y do estilingue?
A lama pode ser um berço
Para um crocodiliano
No entanto o filho come o esterco
Apenas porque a mãe diz não.
Tem o crocodilo um amigo
Num pássaro que lhe palita
Os dentes e o alerta ao perigo:
Mas no filho, quem acredita?
O filho sai e esquece a mãe
E insulta o outro e o outro o insulta
É ver o simples caimão
Que nunca diz: filho da puta!
O crocodilo tem um sestro
De cio: guia-se pelo olfato
Mas o filho pratica o incesto
Absolutamente ipso-facto.
Chamam ao pequeno crocodilo
Paleosuchus palpebrosus
Porém o que me admira é o filho
Que vive em pálpebras de ócio.
O filho é um monstro. E uma vos digo
Ainda por píssico me tomem:
Nunca verei um crocodilo
Chorando lágrimas de homem. (MORAES, 1986, p. 369)
O segundo exemplo faz parte da Arca de Noé, transformada em disco em 1980 e
que fez muito sucesso principalmente entre as crianças. Nesse bestiário ele descreve os
animais, acrescentando uma leve lição ou moral. Seguindo a tradição medieval, o poeta
106
inclui o leão cujo subtítulo faz uma alusão a um poema de William Blake, intitulado “The
tyger”:
O leão
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como um trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação!
Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto.
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus que te fez ou não?
O salto do tigre é rápido
Como o raio; mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o Leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte.
Pois bem, se ele vê o Leão
Foge como um furacão.
Leão se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fera . . .
Vem o tigre; como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranqüilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o Leão
Mata um com cada mão.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação! (MORAES, 1986, p. 269-70 )
Cecília Meireles dedicou três poemas aos animais, especificamente a um cavalo
branco, cada um com uma atmosfera e um modo de expressão diferente, mas com alguns
traços em comum, como, por exemplo, a crina dourada e a familiaridade com as flores e a
natureza segue abaixo um trecho que faz parte da coletânea Metal Rosicler, sem titulo:
107
Ficava o cavalo branco
De fluida crina dourada
Mirando na água do tanque
As rosas da madrugada
Ao ver o jardim celeste
Refletido na onda fria
Apenas curvava a testa,
Que de beber se esquecia (MEIRELES,1987, p.701)
Os outros dois aparecem na coletânea Canções, o primeiro com o título “O
Cavalinho branco” e o segundo sem título como na obra anterior:
O Cavalinho Branco
À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:
mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.
O cavalo sacode a crina
loura e comprida
e nas verdes ervas atira
sua branca vida.
Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos
a alegria de sentir livres
seus movimentos.
Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!
Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
O poema seguinte é uma espécie de balada, com algumas alusões à Idade Média
através de algumas palavras “donzela cavaleira” e de demonstrações de um outro tempo
“de terras perdidas”:
Cavalo branco
De crinas de ouro
Buscando o trevo
Entre as margaridas,
Que é da fortuna
108
Da donzelinha
Solta da sela
Em várzeas antigas?
E as velhas fontes
Contam histórias,
Tristes, risonhas,
De terras perdidas,
E as lavadeiras
Detrás dos muros
Cantam, muito alto
Chorosas cantigas.
Cavalo branco
De crinas de ouro
Mostra-me o trevo
Entre as margaridas.(MEIRELES, 1987, p. 570-1)
Para finalizar a citação dos diversos poetas brasileiros que produziram algo
semelhante a um bestiário, seja pela aproximação temática, seja pela estrutura baseada nos
modelos antigos, temos João Cabral de Melo Neto. Este poeta nordestino produziu poemas
variados em que mostrava sua admiração pela poética medieval e, ao mesmo tempo,
caracterizava seu discurso e ritmos semelhantes aos dos romanceiros ibéricos antigos e da
literatura de cordel. Sua coletânea Serial de 1961 contém quadras que se encaixam nos
moldes medievais em que descreve alguns animais até chegar ao homem:
FORMAS DO NU
I
A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado.
Jamais para velar-se:
e por isso são ralos.
Para enredar os outros
é que usa os enredados.
Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se, dela mesma,
o trama, autobiográfico.
E em muito menos tempo
109
que tomou em tramá-lo,
o véu que não a velou
aí deixa, abandonado.
III
Que animais prezam o nu
quanto o burro e o cavalo
(que aliás em Pernambuco
jamais andam calçados).
A sela e a cangalha
deixam-nos sufocados
como se respirassem
também pelos costados.
É vê-los se espojar
na escova má do pasto
quando lhes tiram o arreio
e os soltam no cercado:
se espojando, têm todos
os gestos de asfixiado:
espasmos, estertores
de asmático e afogado.
IV
O homem é o animal
mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro
se isola do ar abraço.
Depois, a pedra e cal,
de paredes trajado,
se defende do abismo
horizontal do espaço.
Para evitar a terra,
calça nos pés sapatos,
nos sapatos, tapetes,
e nos tapetes, soalhos.
Calça as ruas: e como
não pode todo o mato,
para andar nele estende
passadeiras de asfalto. (MELO NETO, 1994, p.322-4)
um outro longo poema de João Cabral que se insere na tradição do bestiário pela
métrica e pelo conteúdo no qual cada estrofe contém uma descrição dos costumes e
qualidades, sendo a cabra o animal escolhido para representar a figura do homem sertanejo,
110
acostumado às durezas da vida e aos sacrifícios que a natureza e o clima árido lhe impõem.
Os trechos do poema abaixo estão incluídos na obra Quaderna, publicada um ano antes de
Serial, em 1960:
V
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.
Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
VII
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
IX
O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
111
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.
Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.
E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.
A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento. (MELO NETO, 2004, p. 254-9)
T.S. Eliot (1881-1965) poeta norte-americano foi fascinado pelos versos dos autores
simbolistas e “decadentes” franceses. Woensel acredita que não é por acaso que em 1920
publicou um poema chamado The hippopotamus”, elaborado seguindo a mesma linha do
bestiário medieval de Apollinaire em sua obra de 1911. Nesse poema deparamos também
com a dualidade encontrada nos poemas de Le Bestiaire, ou seja, o cientificismo e
religiosidade didática do bestiário antigo e o tom falsamente sério com uma dose anedótica
e por vezes, crítica, como se verifica, por exemplo, nas estrofes III e IV que contém os
versos traduzidos do idioma inglês por Woensel a partir de uma obra publicada em 1927
intitulada Poems
93
:
O hipopótamo
I
O hipopótamo colossal
Deitando a barriga no lodo
Parece um sólido animal,
Mas é carne e sangue de todo.
II
Carne e sangue é pura fraqueza,
Conjunto de nervos falível,
Porém a Igreja é só certeza,
Firme pedra, indestrutível.
III
O hipo às vezes luta e falha
Procurando sobreviver;
93
ELIOT, T.S.Poems. London: Faber & Faber, 1927.
112
A igreja não mexe uma palha
E não pára de enriquecer.
IV
O hipo não consegue tirar
As frutas lá da mangueira alta
Mas a romã ou fino manjar
Para a Santa Igreja não falta.
V
Eis que a voz do hipo em cio zoa
Rouca, estranha, inibida,
Porém sempre o canto ressoa
Da santa igreja, a Deus unida.
VI
O hipopótamo passa o dia
Dormindo, a noite caçando;
Ó Deus, que misteriosa via:
A Igreja dorme, pastando!
VII
O hipopótamo alado,
Levantando vôo das savanas,
Cantando, aos anjos juntado,
Louvores a Deus com hosanas.
VIII
Sangue do Cordeiro o lavará
E, membro do celeste coro,
Entre os santos marchará,
Tocando uma harpa de ouro.
IX
Branco tal a neve estará,
Santas virgens o beijarão;
Mas a igreja aqui viverá
Entre miasma e cerração. (ELIOT, 1927 p. 43. Trad. Woensel)
Percebe-se nestas quadras a mesma irreverência que encontramos em algumas das
quadras de Le Bestiaire de Apollinaire, como Le Lion”, Le Paon”, e La Sauterellepor
exemplo, em que se tem o animal como pano de fundo para ilustrar o comportamento do
homem. No caso o hipopótamo representa o cristão comum “que luta e falha procurando
sobreviver” contrastando com a Igreja, “que não mexe uma palha e não pára de
enriquecer”. Contudo uma “moral da histórianas últimas estrofes em que, segundo
Woensel, o hipopótamo, ou seja, o cristão é levado ao paraíso, ao passo que a Igreja
continuará vagando pela terra e “viverá entre o miasma e cerração”, portanto, o humilhado
é exaltado e o exaltado humilhado. (WOENSEL, 2001)
113
Camões (1524-1580) também estabeleceu relações entre a arte medieval e a
renascentista em que usufruiu dos recursos de cada uma. No soneto LIV, intitulado “O
cisne” o poeta mantém a tradição medieval do “bestiário amoroso”, tal como Richard de
Fournival, em que a descrição do animal não possui uma moral, mas sim um discurso
amoroso e, no caso desse poema, traz, na penúltima estrofe, um recado para a dama não
identificada: “Assim, senhora minha...”. A figura do cisne alude a uma simbologia antiga
em que se acreditava que o animal era capaz de produzir um canto maravilhoso ao sentir a
chegada de sua morte, mesmo tendo uma natureza “pouco canora” . (WOENSEL, 2001).
O Cisne
O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo a sua vida,
Música com voz alta e mui subida
Levanta pela praia inabitada.
Deseja ter a vida prolongada
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.
Assim, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto já no extremo fio,
Com mais suave canto e harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fé y el amor mio. (CAMÕES, 1984, p.354)
Em Quadras ao gosto popular, obra produzida por Fernando Pessoa (1888-1935),
seis poemas classificados como “mini-bestiários” cada uma deles descreve uma ave e,
como em Camões, também se dirige a um “tu” feminino.
Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar.
E esperasse no outro dia.
Rouxinol que não cantaste,
Galo que não cantarás,
Qual de vós me empresta o canto
Para ver o que ela faz?
As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pro mar...
114
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.
O canário já não canta.
Não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
Talvez não me encantará.
Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?
O papagaio do paço
Não falava — assobiava.
Sabia bem que a verdade
Não é coisa de palavra.
94
também um outro poema que faz alusão à Íbis, porém livre de referências e
fontes, cujas estrofes foram publicadas na revista Veja
95
em uma matéria especial sobre a
republicação da obra do poeta.
Íbis, ave do Egito
O Íbis, ave do Egito,
Pousa sempre sobre um pé
(O que é
Esquisito).
É uma ave sossegada
Porque assim não anda nada.
Quando vejo esta Lisboa,
Digo sempre, Ah quem me dera
(E essa era
Boa)
Ser um íbis esquisito
Ou pelo menos estar no Egito.
O poema manifesta muito mais um desejo do poeta em viajar, pois não parecia feliz
no lugar onde vivia, Lisboa, do que provocar uma reflexão a respeito da morte como
Apollinaire em sua penúltima quadra de Le Bestiaire.
94
PESSOA, 1994, p.651, 652, 654, 657, 662, 665.
95
Veja, 11/11/1998
115
ANEXOS
116
GRAVURA 1 -ORPHÉE I
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 3
GRAVURA 2 -LA TORTUE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 4
GRAVURA 3 - LE CHEVAL
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 5
GRAVURA 4 - LA CHÈVRE DU THIBET
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 6
GRAVURA 5 - LE SERPENT
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 7
GRAVURA 6 -LE CHAT
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 8
117
GRAVURA 7 - LE LION
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 9
GRAVURA 8 - LE LIÈVRE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 10
GRAVURA 9 - LE LAPIN
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965. p. 11
GRAVURA 10 - LE DROMADAIRE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 12
GRAVURA 11 LA SOURIS
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 13
GRAVURA 12 - L’ELÉPHANT
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 14
118
GRAVURA 13 - ORPHÉE II
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 15
GRAVURA 14 - LA CHENILLE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 16
GRAVURA 15 - LA MOUCHE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 17
GRAVURA 16 - LA PUCE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 18
GRAVURA 17 - LA SAUTERELLE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 19
GRAVURA 18 - ORPHÉE III
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 20
119
GRAVURA 19 - LE DAUPHIN
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 21
GRAVURA 20 - LE POULPE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 22
GRAVURA 21 - LA MÉDUSE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 23
GRAVURA 22 - L’ÉCREVISSE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p.24
GRAVURA 23 - LA CARPE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 25
GRAVURA 24 - ORPHÉE IV
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 26
120
GRAVURA 25 - LES SIRÈNES
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 27
GRAVURA 26 - LA COLOMBE
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 28
GRAVURA 27 - LE PAON
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 29
GRAVURA 28 - LE HIBOU
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p.30
GRAVURA 29 - IBIS
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 31
GRAVURA 30 - LE BOEUF
APOLLINAIRE, OEuvres poétiques. 1965.p. 32
121
GRAVURA 31
APOLLINAIRE apud WITTENBERG, H. 1985, p
131.
ILUSTRAÇÃO 32
APOLLINAIRE apud FONGARO 2000, p.110.
ILUSTRAÇÃO 33
FONGARO, A. Apollinaire l’unicorne et la licorne.
Que vlo-ve. 2000, p. 112
ILUSTRAÇÃO 34
FONGARO, A. Apollinaire l’unicorne et la licorne.
Que vlo-ve?, 2000, p. 113
ILUSTRAÇÃO 35 LA DAME ET LA LICORNE
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