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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
DIANA JUNKES MARTHA TONETO
CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA: POESIA E
SINCRONIA EM HAROLDO DE CAMPOS
ARARAQUARASÃO PAULO.
2008
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DIANA JUNKES MARTHA TONETO
CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA: POESIA E
SINCRONIA EM HAROLDO DE CAMPOS
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras, da
Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, para
obtenção do título de Doutor em Letras (Estudos Literários).
Linha de pesquisa: Teoria e Crítica da Poesia
Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz
Gandini Baldan
ARARAQUARASÃO PAULO.
2008
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Toneto, Diana Junkes Martha
Convergências em A Máquina do Mundo Repensada : poesia e sincronia
em Haroldo de Campos / Diana Junkes Martha Toneto – 2008
298 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara
Orientador: Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan
l. Literatura Brasileira -- Sec. XX. 2. Poesia brasileira -- Sec. XX
3. Campos, Haroldo de, 1929-2003. A Máquina do Mundo Repensada –
Crítica e interpretação. I. Título.
DIANA JUNKES MARTHA TONETO
CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA:
POESIA E SINCRONIA EM HAROLDO DE CAMPOS
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras,
da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, para
obtenção do título de Doutor em Letras (Estudos Literários).
Linha de pesquisa: Teoria e Crítica da Poesia
Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz
Gandini Baldan
Bolsa: CAPES – maio 2004 / outubro2006.
Data de aprovação: 04/03/2008
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Membro Titular: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. (Orientadora/ Presidente da
banca)
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara
Membro Titular: Prof. Dr. Donaldo Schüler. Professor titular.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Membro Titular: Prof. Dr. Marcos Antonio Siscar. Professor Associado.
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus São José do Rio Preto.
Membro Titular: Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente.
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara.
Membro Titular: Prof. Dr. Antonio Donizeti Pires.
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras .UNESP – Campus de Araraquara.
Para Rudinei, Rodrigo e Lígia,
constelações em céu noturno.
Para meu pai,
o engenheiro,
o enxadrista,
o primeiro a me mostrar o céu
o primeiro a me mostrar o mar.
(in memorian)
AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar meus agradecimentos:
À CAPES, pela concessão de bolsa de doutoramento entre maio de 2004 e outubro de 2006.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, com quem convivi
nesses anos em que estive ligada ao programa e ao Prof. Dr. Paulo Andrade pelas sugestões
apontadas na qualificação.
Aos funcionários da seção de pós-graduação, em especial, Clara Bombarda, por sua
inesgotável atenção.
Ao Prof. Dr.Antonio Donizeti Pires, pelas valiosas indicações bibliográficas e discussões
sobre a obra de Haroldo de Campos, além das importantes observações feitas na qualificação.
(Ao amigo Tom, agradeço o convívio e a poesia compartilhada).
Aos amigos, professores e funcionários, da UNAERP que colaboraram de diferentes maneiras
com este trabalho. Sou muito grata à Profa. Dra. Maria Suely Crocci de Souza, coordenadora
do Curso de Letras, com quem pude contar em diversos momentos e de quem recebi grande
apoio e incentivo, notadamente, na fase final da pesquisa. Agradeço também o apoio e a
amizade de Edna Beraldo.
É preciso mencionar aqueles que acompanharam a travessia. Gostaria de agradecer
especialmente:
À minha orientadora, Profa. Dra. Ude Baldan, por abraçar a causa haroldiana com seu
habitual entusiasmo acadêmico, tendo dedicado a este trabalho orientação precisa e generosa,
pautada pelo respeito às minhas opções teóricas e estimulando-me à reflexão contínua.
Agradeço-lhe, sobretudo, a amizade, fortalecida pela poesia, pelas palavras e lições
compartilhadas, entre livros, entre os textos da biblioteca imaginária, construída ao longo
desses anos, com alguma crítica, ilusões da modernidade e a sempre constante leitura do
intervalo, entre o som e o sentido de cada poema.
Ao Prof. Dr. João Alexandre Barbosa (in memorian) por sua disponibilidade em ajudar-me
neste trabalho. Quando o procurei para uma entrevista, ainda no início de minhas pesquisas,
seu entusiasmo foi de tal modo marcante que me senti realmente segura para enfrentar o
objeto “haroldiano”. Embora breve, a orientação do Prof. João Alexandre foi extremamente
profícua e resultou na escolha do poema com o qual trabalho. Devo a ele a compreensão da
importância de realização de uma pesquisa que valorizasse o pensamento sincrônico de
Haroldo de Campos, seu amigo, o Cosmonauta do Significante.
À minha família, por sua generosidade em permitir que nossa convivência impusesse a
condição de uma tese centro do mundo e por torcer para que este modelo tese-cêntrico
chegasse ao fim; agradeço, em especial, à minha mãe, âncora e barco, e ao meu irmão, grande
parceiro e interlocutor.
Por fim, estes tão próximos, ao de mim, que aceitaram minha não-presença e ouviram,
pacientemente, as haroldianas histórias quase convencidos de que tudo no mundo existe para
terminar em um livro: A Máquina do Mundo Repensada. Estes que reinventam, a cada dia,
não a poesia imprescindível em nossas vidas, porém a poesia humanamente possível, aquela
da linguagem-de-dia-de-semana, da ausência que se quis presença, dias e noites sem fim,
mesmo que por breve instante. Estes que admitiram o ruído de fundo, som dos dedos nas
teclas do computador, a romper o silêncio da madrugada, por acaso.
Obrigada Lili, Digo e Dinho.
A mais profunda emoção que podemos
experimentar é inspirada pelo senso de mistério.
Albert Einstein [sd]
Qohélet buscou
descobrir o prazer das palavras
E a escrita justa palavras verídicas
(Qohélet – Eclesiastes, Cap. XII, 10, 12
Trad. Haroldo de Campos, 2000)
Entre a linguagem da poesia e o leitor,
o poeta se instaura como o operador de enigmas,
fazendo remeter a linguagem do poema
a seu eminente domínio:
aquele onde o dizer produz reflexividade.
Parceiros de um mesmo jogo,
poeta e leitor aproximam-se ou afastam-se
conforme o grau de absorção da/na linguagem.
(João Alexandre Barbosa – As ilusões da modernidade, 1986)
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar o poema A Máquina do Mundo Repensada de
Haroldo de Campos, sob a perspectiva da abordagem sincrônica da literatura. O poema em
questão é um espaço dialógico por excelência. Nele, história e utopia, ciência e religião
apresentam-se inexoravelmente ligadas pela linguagem (em ão) do poema-palimpsesto:
máquina cuja engrenagem procura instituir convergências entre as diversas áreas do
conhecimento, rompendo fronteiras por meio da articulação entre o pensamento poético e
outras formas de pensamento.
A tese está dividida em três partes. Na primeira parte, são feitos comentários sobre a
tópica da máquina do mundo e seu caráter alegórico. Em seguida, apresenta-se uma leitura
analítica do poema. Esta parte está dividida em três capítulos, cada um correspondendo à
análise de um dos três cantos do poema, os quais revelam, segundo a perspectiva de leitura
aqui adotada, o caminho do poeta que repensa o mundo, a partir do ritual poético-
antropofágico que realiza com as obras de outros “pensadores do mundo”. Na última parte,
apresenta-se uma discussão teórica sobre poesia e pensamento, em que são retomados
aspectos mencionados ao longo da leitura do poema, vinculando-os ao estado das artes da
poesia haroldiana.
Palavras-chave: A Máquina do Mundo Repensada; Haroldo de Campos; poesia; tradição;
modernidade; sincronia.
ABSTRACT
The aim of this work is to analyze the poem A Máquina do Mundo Repensada de
Haroldo de Campos, by synchronic perspective of literature approach. This poem is a
dialogical space, by excellence. In it, history and utopia, science and religion are closely
related by the language in action that organizes the poem-palimpsest: machine which engines
constructs convergences between the different areas, above mentioned, and poetry, broking
frontiers by the articulation of poetic thought and other ways of knowledge.
The thesis is divided in three parts. At the first part, commentaries of the world
machine are presented in relation to its allegorical character. Then, at the second part, there is
an analytical reading of the whole poem. This part is divided in three chapters, each one
corresponding to one of the three parts of the poem, which reveals, since the perspective here
adopted, the way followed by the poet that thinks about the world, using his poetic words and
an “anthropophagical ritual” with other poets that has thought about the world. At the last
part, there is a theory discussion about the relations between poetry and thought, in which, the
aspects that has been analyzed in the poem reading are retaking to show the state of arts of
haroldian poetry.
Key-words: A Máquina do Mundo Repensada, Haroldo de Campos; poetry; tradition;
modernity; synchronic approach.
SUMÁRIO
CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA: POESIA E SINCRONIA EM
HAROLDO DE CAMPOS ..................................................................................................................................... 1
TONETO, DIANA JUNKES MARTHA ............................................................... .............................. 3
ORIENTADOR: MARIA DE LOURDES ORTIZ GANDINI BALDAN .......................................................................................... 3
DIANA JUNKES MARTHA TONETO ................................................................................................................ 4
CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA: ............................................................ 4
POESIA E SINCRONIA EM HAROLDO DE CAMPOS .................................................................................. 4
PALAVRAS INICIAIS .......................................................................................................................................... 12
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 16
................................................................................................................................................................................ 16
1. UNIVERSO HAROLDIANO: UM TRABALHO MOVIDO À POESIA EM ACORDES SINCRÔNICOS .................................................... 16
2. A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA: TEXTO-SÍNTESE .............................................................................................. 19
................................................................................................................................................................................ 24
PARTE I ................................................................................................................................................................. 25
O TEXTO-SÍNTESE E AS OBSESSÕES DO POETA ...................................................................................... 26
I.1 HELIOTROPISMO DO PASSADO: CONVERGÊNCIAS EM A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA ............................................. 26
I.2. A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA , O ESTILO E AS OBSESSÕES DO POETA ............................................................. 36
PARTE II: A MÁQUINA DO POEMA ............................................................................................................... 45
CAPÍTULO 1: O CICLO PTOLOMAICO ........................................................................................................ 45
II.1.1 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O CANTO I ............................................................................................................. 46
II.1.2. A MÁQUINA DO POEMA É COSMOGÔNICA E REGIDA POR UM MOVEDOR IMÓVEL: O POETA ......................................... 47
II.1.3. O SACRO MAGNO POETA E AS ESTROFES INICIAIS DE A MÁQUINA DO MUNDO REPENSADA ....................................... 49
II.1.4 O MAR E A FÁBULA PRIMEIRA .......................................................................................................................... 73
II.1.5 A MÁQUINA POÉTICA, O SERTÃO, O DURO MUNDO ................................................................................................ 93
CAPÍTULO 2: DEUS NÃO JOGA DADOS, NEM O POETA ....................................................................... 118
II. 2.1 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O CANTO II ....................................................................................................... 118
II. 2.2. O NADA E O ACASO, O POETA E A CIÊNCIA ..................................................................................................... 119
II. 2.3 LÍMEN DO MILÊNIO ..................................................................................................................................... 123
CAPÍTULO 3: O NEXO O NEXO ONEXO O NEXO O NEX ...................................................................... 171
II. 3.1 SOBRE O CANTO III ................................................................................................................................... 171
II. 3.2 AS LENTES DE UM GRANDE TELESCÓPIO .......................................................................................................... 173
PARTE III ............................................................................................................................................................ 219
POESIA E SINCRONIA OU O SUPLEMENTO ............................................................................................. 220
III.1 O PENSAMENTO DE HAROLDO DE CAMPOS ........................................................................................................ 220
III.1.1 POESIA E PENSAMENTO ......................................................................... ................... 220
III.2 NOVAS CONCEPÇÕES POÉTICAS ......................................................................................................................... 228
III.2.1 BAUDELAIRE E MALLARMÉ .............................................................. .......................... 228
III.2.2 FUTURISMO RUSSO E FORMALISMO: TEORIZAÇÃO VINCULADA À PRODUÇÃO POÉTICA .......................... 243
III.3 ROMAN JAKOBSON, POETA DA LINGÜÍSTICA, AMIGO DE HAROLDO DE CAMPOS ........................................................ 250
III.4.1 A HISTÓRIA LITERÁRIA SOB O PONTO DE VISTA DA PÓS-UTOPIA ........................................................................... 259
III.5 “TRANSCRIAR, TRANSLUCIFERAR, TRANSUMANAR”: ALGUNS ASPECTOS DA TEORIA DA TRADUÇÃO DE HAROLDO DE CAMPOS
.......................................................................................................................................................................... 267
III.6 POESIA CONCRETA: VANGUARDA CONSTELAR ..................................................................................................... 272
III.6.1 A POESIA CONCRETA ................................................................................................................................... 273
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................. 278
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - HAROLDO DE CAMPOS ............................................................. 282
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................................. 284
PALAVRAS INICIAIS
O presente trabalho está centrado na discussão de A Máquina do Mundo Repensada,
de Haroldo de Campos, poema publicado em 2000 e último texto criativo que o poeta
publicou em vida. Trata-se de um poema em que o eu-poético, simulacro do próprio Haroldo
de Campos, dialoga com a tradição literária, a religião, os mitos de criação e a moderna física
quântica em busca de respostas para a origem do Universo. Antes de qualquer coisa, é preciso
ressaltar que a discussão apresentada espelha a leitura do poema e, portanto, o leitor e o
movimento de leitura que ela instituiu.
O movimento de leitura e a análise do poema apresentados neste trabalho
desenvolvem-se em espiral e em elipse, ambas impostas pelo modus operandi da construção
de sentido do texto haroldiano. Espiral, porque as citações feitas ao longo das estrofes são
retomadas com freqüência e porque a própria estrutura da terzina, presente em todo poema,
obriga o retorno aos versos anteriores, ao mesmo tempo que faz engrenar a linguagem poética
em ação no corpo do texto.
De outro lado, os signos orbitantes em torno da mensagem poética, que atua como o
Sol do poema, não desenvolvem trajetórias circulares, as quais mostram mais do mesmo, isto
é, conduzem sempre a uma única significação, uma vez que o círculo é figura “perfeita”;
porém elípticas, ora velando, ora revelando uma multiplicidade de significados, que podem
ser atribuídos à mensagem, sem que seja possível ou desejável estabelecer a precisão do
sentido. O movimento de leitura é elíptico porque não se pretende totalizador (como um
círculo) e admite a mobilidade dos significados que vão surgindo pela análise, a partir do
deslizar dos significantes.
Há, por assim dizer, rotação dos signos, nos termos de Octavio Paz, sugerindo a auto-
reflexividade da mensagem e, no limite, da própria palavra poética e há, também, um
movimento de translação dos signos, que giram em torno de uma pergunta central, resumida
no seguinte: sigo o caminho? busco-me na busca? (150.3). Esse verso sintetiza, como se verá
ao longo da análise, a importância da jornada empreendida pelo poeta viajor em busca da
parte de si mesmo que vê refletida nos textos visitados, além de sua preocupação com grandes
dilemas religiosos e científicos, desde que esses sejam/estejam amalgamados à sua palavra.
A densidade da pergunta supracitada está no fato de que para ela converge uma outra
questão crucial: a explicação para a origem do Universo, a partir dos paradigmas religiosos e
científicos, o que ao poema um caráter cosmogônico, ou seja, atrela-o ao conjunto de
tentativas de explicações da gesta universal. Isso tudo seria o bastante para tornar
desafiadora a análise do texto haroldiano em questão, todavia um outro aspecto incita a
refazer-lhe o percurso: a palavra poética, tomada como mecanismo que engendra todos os
questionamentos, inclusive (e principalmente) aqueles concernentes a ela própria, é o cerne do
jogo que se estabelece entre o leitor e o poeta, presentificado no texto através do eu-poético.
O jogo simula o acaso à medida que o leitor constrói sua leitura e a reconstrói,
apropriando-se dos novos significados que surgem para iluminar as “jogadas passadas”,
dispostos pseudocasualmente no poema, em espiral ou elipticamente. O leitor descobre os
movimentos e as funções das peças-palavras depois de se deparar, inúmeras vezes, com a
mesma construção significante; enquanto isso, os significantes do poema se misturam à sua
própria linguagem, conforme este passa a falar sobre o poema. A parceria estabelecida não
minimiza o caráter árduo e, talvez, repetitivo do movimento de leitura ela reflete as jogadas
de um poeta-enxadrista, preocupado com a duração da partida, o fazer do poema palimpsesto,
tanto quanto reflete as jogadas de seu parceiro de jogo, o leitor, preocupado em
entender/estender a duração da travessia do eu-poético e suas especificidades, enquanto
passeia pelos labirintos do texto.
O poema equivale, portanto, à caminhada do eu-poético e, conseqüentemente, do
leitor, seu parceiro; condensa todas as jogadas que abriga no espaço das páginas (o tabuleiro),
aqui entendido como o próprio palimpsesto, em que se arquivam os legados da tradição, que a
leitura traz à luz. Ao se tornar parceiro do poeta, o leitor refaz o seu percurso e passa a
entender que a compreensão é a própria busca, materializada pelo poema: travessia.
Essa lição é de João Alexandre Barbosa e está em um artigo sobre Haroldo de Campos
chamado O cosmonauta do significante: navegar é preciso, publicado em 1979, pela primeira
vez. Ela norteou a análise do poema A Máquina do Mundo Repensada, pedra angular deste
trabalho. Assim sendo, é importante levar em consideração que não se procurou, aqui,
desvendar os significados do poema, explicá-lo, mas, principalmente, mostrar suas
articulações. O que pode parecer explicação de significado não deve ser confundido com a
explicitação de teorias científicas, de significados míticos e diálogos com o cânone,
estabelecidos com a função de mostrar não o que o poema quis dizer, mas como disse.
Cada parte do poema engendra e é engendrada pelas demais. Entende-se, neste
trabalho, o poema como máquina do mundo, refletor do cosmos de que trata e da cosmogonia
poética haroldiana. A mensagem poética que ele veicula é móvel e se oferta diante dos olhos
do leitor, convidando-o a auscultar-lhe os segredos, desafiando-lhe a jogar com o poeta-
criador desse universo poético.
A vitória da partida não significa, em hipótese alguma, a totalidade da compreensão e
a permanência do poeta como autor consagrado a vitória da partida significa, outrossim, a
percepção da fundamental contribuição do poema e sua necessária pregnância na tradição
literária, como objeto estético que organiza, sincronicamente, tempos e espaços muito
distintos, por meio da palavra poética, instrumento de pensar o mundo.
A leitura do poema de Haroldo de Campos, aqui proposta, pressupõe a leitura de um
Haroldo de Campos muito específico, que não é o concretista, porque isso significaria reduzir
sua obra a uma fase, tampouco o Haroldo dos últimos anos, pela mesma razão; mas de um
poeta dono de um projeto de poesia, orientado pela concretude da palavra poética, vivenciada
por ele, famelicamente e em compasso síncrono, como poeta, crítico e tradutor. Ao contrário
de alguns trabalhos sobre o poeta paulista, este se volta para leitura de A Máquina do Mundo
Repensada, procurando mostrar de que maneira o poema é construído e como tal construção
reflete o pensamento poético de seu autor, seu estilo, suas obsessões e mitologias.
A tese está dividida em três partes, além da Introdução, em que se delineiam linhas
gerais do pensamento poético haroldiano, aqui privilegiado. Na primeira parte, são feitos
comentários sobre a tópica da máquina do mundo e seu caráter alegórico, com o intuito de
articular esse aspecto à obra do poeta de um modo geral, para defender a hipótese de que o
repensar do mundo, a partir de seus precursores, e a partir da invenção da palavra poética,
sempre esteve presente em suas obsessões de poeta.
Em seguida, apresenta-se uma leitura analítica do poema, que privilegia a
consideração do plano significante como mecanismo que engendra o sentido e estabelece
vínculos entre o poema analisado e o percurso do poeta, pois se entende que o mesmo
sintetiza a obra haroldiana. Esta parte está dividida divida em três capítulos, cada um
correspondendo à análise de um dos três cantos do poema, os quais revelam, segundo a
perspectiva de leitura aqui adotada, o caminho do poeta que repensa o mundo, a partir do
ritual poético-antropofágico que realiza com as obras de outros “pensadores do mundo”.
Na última parte, apresenta-se uma discussão teórica sobre poesia e pensamento, em
que são retomados aspectos mencionados ao longo da leitura do poema, vinculando-os ao
estado das artes da poesia haroldiana. Foi tentadora a idéia de iniciar o trabalho pela leitura
do poema; uma tese tem suas amarras e subvertê-las nem sempre pode ser o melhor caminho,
mas não foi possível pensar outra forma de apresentar o pensamento poético de Haroldo de
Campos, senão pelo poema.
Por fim, cabe destacar que a leitura do poema tem horizontalidades e verticalidades: ao
mesmo tempo que o texto é acompanhado, estrofe a estrofe, o movimento de leitura busca, em
profundidade, as razões de alguns diálogos ou, melhor ainda, as razões que levam a máquina
antropofágica a devorar, culturalmente, autores, pesadores, realidades diversas,
sincronizando-as no texto.
Em nenhum momento, o poema coloca-se como pretexto para a discussão das
verticalidades; antes, a compreensão destas últimas tornou-se crucial para que as peças e as
engrenagens do poema-máquina se abrissem como a máquina do mundo. A Máquina do
Mundo Repensada (AMMR, daqui para frente) revela o pensamento poético de Haroldo de
Campos uma vez que obriga o repensar da história literária, da ciência, da religião, do mito,
como se a leitura apresentada nesta tese fosse, também, um elo síncrono entre o poeta e o seu
mundo; extensivamente, o trabalho estabelece alguns parâmetros para a reflexão acerca do
lugar da poesia na modernidade como espaço-tempo catalisador de experiências poético-
históricas. Esta, a mais importante lição haroldiana.
INTRODUÇÃO
“Cada leitor procura algo no poema.
E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si.”
Octavio Paz
1
1. Universo haroldiano: um trabalho movido à poesia em acordes
sincrônicos
Conforme apontam os críticos
2
, é imprescindível ler a obra de Haroldo de Campos em
sua totalidade, ou seja, é imprescindível não esquecer de que o crítico e o tradutor são, ao
mesmo tempo e, principalmente, o poeta. Quem melhor situa a importância dessa abordagem
em relação à obra haroldiana é João Alexandre Barbosa, no prefácio que escreveu para o livro
do poeta intitulado Signantia quasi coelum – singnancia quase céu:
[...] [ ] uma relação básica muitas vezes deixada à margem pelos
críticos de Haroldo de Campos: a relação entre a linguagem da poesia
(freqüentemente transformada em linguagem do poema por força da
reflexão metalingüística) e a leitura pelo poeta da tradição [...] que está
permeada pela tensão entre criação e consciência poética que, muito
naturalmente, se desdobra em criação e crítica [...]Poesia, tradução e crítica
para mim, neste caso, não são senão personae de um criador empenhado em
buscar limites (ou as ilimitações?) de uma inserção na história de seu
tempo, quer dizer, na linguagem de seu tempo. História e linguagem:
passagens (BARBOSA In: CAMPOS, H., 1979, p.20).
Essa busca, ou ainda, o estabelecimento de parâmetros definidores da história e da
linguagem dá-se, no caso de Haroldo de Campos, pela adoção de uma forma sincrônica de
conceber a arte ao longo do tempo. Como pontua o próprio Haroldo, a sincronicidade
corresponde: “a uma poética situada, necessariamente engajada no fazer de uma determinada
época, e que constitui o seu presente em função de uma escolha ou construção do passado”
(CAMPOS, H. 1997, p.243
3
); em termos benjaminianos, a poética proposta pelo poeta paulista
pode articular historicamente o passado, não para conhecê-lo como ele foi, mas para
“apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja” (BENJAMIN, 1996). A sincronia
1
PAZ, O. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 29.
2
Destacam-se, entre eles, as diferentes críticas feitas por Donaldo Schüler, João Alexandre Barbosa, Leyla
Perrone-Moisés, Luís Costa Lima, Trajano Vieira, entre outros.
3
Neste trabalho será indicada a referência a Haroldo de Campos, por CAMPOS, H; a referência a Augusto de
Campos por CAMPOS, A., e a referência a Roland de Azeredo Campos, por CAMPOS, R.
haroldiana pode ser vista, portanto, como meio para chegar à gramática poética de sua obra;
meio sustentado pela tríade: poesia, tradução e crítica.
Na obra haroldiana, as escolhas sincrônicas do passado não são aleatórias; pautam-se
pela identificação da invenção e da ruptura, a partir da retomada do passado literário, atuando
como mecanismo instaurador e restaurador deste passado. Ao se preocupar com o resgate de
autores deixados à margem do processo de construção do cânone e /ou autores do cânone
lidos, segundo esta perspectiva, “ingenuamente”, o poeta Haroldo de Campos revitaliza a
própria história literária, desestruturando a concepção cronológica da evolução dos estilos
literários ao longo do tempo, pela defesa de uma abordagem sistêmica, de modo análogo ao
proposto por Jakobson, no artigo À procura da essência da linguagem (1999, p. 98-117).
Trata-se, portanto, de revisitar permanentemente a tradição, pelo valor seu valor intrínseco, e,
ao mesmo tempo, resgatá-la da cristalização, colocando-a em estado de estar-no-mundo.
É importante destacar que, se por um lado, a perspectiva sincrônica é o ritmo e a
melodia da obra haroldiana, orquestrando o eco de tantas vozes presentes em tudo o que o
poeta inventou, recriou, ou sobre o que refletiu, acentuando a tensão existente entre o romper
da tradição e sua permanência, por outro lado, a diacronia é o acorde: não é possível ignorar o
fato de que Haroldo de Campos leu a tradição, da forma como o fez, a partir da experiência
histórica que vivenciou, marcada por acentuadas revoluções e inovações na técnica e na
ciência.
A abordagem literária proposta pelo poeta paulista prevê a leitura das obras
sincronicamente, atribuindo-lhes importância no presente; também as reorganiza através do
tempo, porque a perspectiva haroldiana desloca-se ao passado e projeta-se para o futuro, a fim
de garantir o dinamismo sincrônico da leitura empreendida – para conhecer sincronicamente o
passado literário, é importante que o poeta situe-se diacronicamente em relação às obras lidas;
se assim não fosse, não poderia fazer, do presente, escolha em função do passado; tampouco
poderia almejar a projeção futura das obras do cânone que revitaliza.
Ensina João Alexandre Barbosa (2002, p.15) que uma ampla diacronia sustentando
cortes sincrônicos sucessivos; desse modo, para o poeta Haroldo de Campos, a ruptura tem o
dedo indicador apontado para o futuro enquanto três outros a fazem voltar-se para o passado.
Em outras palavras, os movimentos literários fundam-se na tensão entre a medida do que
guardam (passado) e o alcance do que profetizam (futuro), mediados pelo presente de sua
ocorrência: memória e invenção; história e make it new.
A relação entre passado e presente e surgimento da invenção artística foi assinalada por
diversos autores na modernidade; alguns associam a invenção e a relação passado-presente ao
ato de descobrir como se a palavra poética estivesse aguardando para ser revelada e o
escritor, ao penetrar suavemente neste mundo dicionário, “trouxesse consigo a chave”. É o
caso, por exemplo, de Valéry e Rosa, distanciados pelo tempo e pelo espaço, mas pontos de
referência para a leitura do poema de Haroldo de Campos, que os aproxima.
Valéry propõe que toda invenção é uma descoberta, pois se inventa aquilo que quer
ser descoberto, como se a essência da invenção pulsasse latentemente, sem ser notada, até que
o poeta, com os olhos voltados para o passado e o pensamento crivado das perspectivas
futuras que o presente anuncia, pudesse descobri-la, ou seja, segundo ele, a novidade e a
inventividade marcam-se pela possibilidade de articulação entre passado e presente
descoberta da ancestralidade (VALÉRY, apud: GENETE, 1972, p.250). Guimarães Rosa, em
entrevista a Günter Lorenz, também defende a idéia de que o escritor é descobridor: aquele
que é capaz de resgatar, na ancestralidade, as palavras mais vivas; “o bem-estar do homem
depende que ele devolva à palavra seu sentido original”
4
.
Conhecer o posicionamento de Haroldo de Campos diante dos estudos literários, sua
obra poética, crítica e tradutória é fundamental para a compreensão desse papel
“descobridor”, posto que por meio de suas grandes incursões-navegações pela história
literária, revela-se o estado das artes da poesia: para ele, o poema é sempre concreto (não
necessariamente concretista), à medida que opera a partir da materialidade da palavra - idéia
jakobsoniana do caráter palpável dos signos poéticos, que o orienta sempre.
Na poesia, as palavras usadas e as construções sintático-semânticas são fim e não
meio; por isso, nela, a linguagem é performática. Diz Valéry: “a poesia reconhece-se por esta
propriedade: tende a se fazer reproduzir em sua forma, excita-nos a reconstituí-la
identicamente”, como desafio ao pensamento (VALÉRY, 1999, p.203). Porque desafia o
pensamento, a leitura de poesia impõe, necessariamente, uma re-visão de perspectivas da
realidade, uma vez que desencadeia metamorfoses no leitor, na sua forma de se relacionar
com o mundo, obrigando-o a reconsiderar códigos, possibilidades lingüísticas e verdades
adquiridas; o texto poético repensa o mundo e mostra que a organização existente na
“realidade” não é definitiva. (ECO, U. 1997, p.232).
Em perspectiva semelhante, Costa Lima (2000, p.25) diz que as obras literárias têm
uma vocação para a verossimilhança, porque absorvem o que vem da realidade, surgem a
partir da realidade e, simultaneamente, são capazes de modificar nossa maneira de concebê-la;
é nesse sentido que as obras atuam como via de mão dupla. No caso de Haroldo de Campos, a
4
Cf. COUTINHO, E. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. Coleção Fortuna Crítica, p.
62-97.
mudança da visão da realidade impõe uma transformação no papel atribuído ao passado, pelas
obras do presente; a via de mão dupla não vai da realidade ao texto e do texto à realidade,
mas subsiste pela tensão entre o presente e o passado, intra e extra textualmente.
Um estudo sobre a obra de Haroldo de Campos deve privilegiar, por conseguinte, o
modo pelo qual a abordagem sincrônica das épocas, estilos e obras norteia as experimentações
do poeta e se reflete em seus trabalhos de crítico e tradutor, estabelecendo sua incansável
busca da invenção na criação poética, não apenas nas vanguardas históricas, porém na história
da literatura de um modo geral: dos antigos aos modernos, passando pelos orientais e pelos
textos bíblicos.
2. A Máquina do Mundo Repensada: texto-síntese
Diante dessas especificidades e depois de realizada a leitura da obra do poeta, é possível
dizer que o poema que mais profundamente ilumina essa tensão entre a novidade e a tradição
e que talvez melhor elucide a perspectiva sincrônica da obra haroldiana é A Máquina do
Mundo Repensada (AMMR). Por situar-se como espaço dialógico, história, utopia, ciência e
religião apresentam-se inexoravelmente ligadas pela linguagem (em ação) do poema-
palimpsesto: máquina cuja engrenagem procura instituir convergências entre as diversas áreas
do conhecimento, rompendo fronteiras, por meio da articulação entre o pensamento poético e
outras formas de pensamento
5
.
Ao atribuir aos textos com que trabalhou suas idiossincrasias, enquanto marcava os
textos poéticos que criou com as múltiplas características daqueles estudados, de modo a
assegurar um diálogo entre o seu fazer artístico e o de seus precursores, Haroldo de Campos
construiu uma obra modelar para a discussão da invenção e da tradição, não apenas na poesia
contemporânea, mas na arte de um modo geral. Nessa visada, inserem-se sua poética
“mallarmaica” e caleidoscópica, suas propostas vanguardistas e revolucionárias, sua re-
significação do make it new poundiano, a qual, no caso de Haroldo, é sempre de inspiração
oswaldiana: tendo Oswald de Andrade como parâmetro, o poeta paulista admite a metáfora do
canibalismo como um modo de inserir o homem em determinada cultura, absorvida através de
5
Crisantempo é considerado, por parcela da fortuna crítica da obra haroldiana, como texto-síntese, entretanto, é
preciso ressaltar que ele guarda diferenças profundas em relação ao poema A máquina do mundo repensada.
Crisantempo pode ser síntese, à medida que Haroldo reúne, nele, várias produções de diferentes períodos e
diferentes dicções; entretanto, em A máquina do mundo repensada, seu percurso é refeito no próprio poema, este
sim, responsável pela reunião de sua produção criativa, crítica e tradutória: ler o poema é ler a história “poetária”
(expressão cunhada pelo próprio poeta) de Haroldo de Campos.
“devoração crítica”
6
. (BITARÃES NETTO, 2004, p.55). Portanto, a abordagem sincrônica
haroldiana é apropriação cultural do universo dos autores que compõem o seu paideuma e não
apenas a devoração de seus procedimentos lingüísticos, estéticos e criativos. De acordo com
essa perspectiva é que se pode dizer que o poeta-leitor, Haroldo de Campos, criava seus
precursores.
Dentre os diálogos estabelecidos, talvez seja a apreensão daquele mantido com a
história (literária, científica, religiosa, humana) o que mais favoreça a compreensão do poema,
tanto no plano do conteúdo quanto no da expressão. Em percurso cosmogônico, à procura da
origem do universo e/ou de sua própria origem, o poeta, Ulisses pós-moderno
7
, parte, em
linhas gerais, do pensamento medieval de Dante, atravessa o classicismo/maneirismo de
Camões, a metafísica de Drummond, e a história da física, de Newton a Einstein, construindo
um plano de conteúdo que se a conhecer a partir de uma organização significante em que
materializam, entre outros aspectos, a terza rima dantesca, o decassílabo camoniano, uma
certa dicção barroca e a modernidade mallarmeana.
O poema tem acento épico, se lido como a trajetória do poeta, aedo que conta e canta
para viver, para voltar para casa e revelar as respostas aprendidas com a máquina do mundo;
nesse sentido, inclusive, o eu-poético é Ulisses e não Aquiles, porque este último quer a
glória, quer ser cantado e não cantar. Ao mesmo tempo, o poema tem acento confessional, se
for lido como espelho do percurso de Haroldo de Campos. É dividido em três cantos: 152
estrofes, uniformes e isométricas, mais uma coda de verso único; ao todo 457 versos
decassílabos (40 estrofes no Canto I; 39 no Canto II e 73 no Canto III).
A retomada da tradição literária e os diálogos com outras áreas do conhecimento
acentuam a historicidade do texto haroldiano, porque indicam que o poeta situa-se em relação
ao passado, para construir sua leitura a partir das escolhas do presente; tendo o presente como
alicerce, Haroldo de Campos dispõe as sincronicidades eleitas para a configuração do poema.
Quando analisado em AMMR, esse processo sincrônico-diacrônico, ou seja, o retorno ao
passado (diacronia) e sua atualização (sincronia) é que permite, nos termos de João Alexandre
6
Ezra Pound propunha uma renovação da tradição, make it new, a partir da construção de um paideuma.
Segundo escreveu em seu ABC da Literatura, traduzido pelos irmãos Campos e Decio Pignatari, paideuma é: “a
ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente
possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”. (POUND, 1970, p.161).
7
São grandes as associações feitas, por alguns críticos entre o eu-poético de vários poemas de Haroldo de
Campos e Ulisses. Merece destaque o Ulisses pós-moderno criado pelo poeta em Finismundo: a última viagem,
publicado em 1990. É a perspectiva sincrônica aqui adotada que autoriza nomear o eu-poético de AMMR de
Ulisses pós-moderno, entendendo este termo não como categoria estética, mas (trans)histórica, isto é, um Ulisses
cujos dilemas são os do homem da pós-modernidade; também usamos o termo pela sua permanência na obra
haroldiana, tanto tradutória quanto poética, atendendo aos preceitos de seu paideuma pessoal.
Barbosa (1979), situar a experimentação poética haroldiana como síntese de múltiplas
culturas e epistemes históricas, unificadas pela arte poética: poesia, catarse.
O que importa a Haroldo de Campos, em AMMR, não é o estabelecimento da origem
da tradição em si, mas, em percurso épico e, ao mesmo tempo, com acentos barrocos,
ancorados em suas experiências de vanguarda, mostrar que a busca da origem (da poesia, do
seu percurso poético, dos autores que o precederam) é uma busca rasurada, como colocaria
Derrida; e labiríntica, nos moldes da biblioteca borgiana. É uma busca que se configura como
uma eterna partida de xadrez: depois de começada, não permite o estabelecimento de sua
origem.
Se pensarmos em Haroldo de Campos como o grande enxadrista, veremos que a
articulação que estabelece em seus textos diz respeito ao jogo em si (poema), à articulação das
palavras, signos palpáveis, peças do poema posicionadas em constante tensão, prontas a
avançar ou recuar para garantir a duração da partida: reinvenção da tradição. A máquina do
mundo repensada é o próprio poema, como diz Pires:
A expressão figurada máquina do poema é aqui utilizada para abarcar tanto
a especificidade da poesia (objeto construído de linguagem) quanto a
consciência crítico-construtiva do poeta. [...] é uma concepção de mundo,
uma cosmovisão, uma forma específica (subjetiva e objetiva) de
conhecimento: seja da própria matéria poética; seja das relações da poesia
com outros sistemas artísticos e culturais; seja das experiências de mundo e
da vida plasmadas pelo eu-poético (PIRES In: FERNANDES, et.al., 2006,
p.109, 110)
8
.
No jogo entre o poeta e a tradição que o acompanha, e o mundo que se abre para
afrontá-lo, com as certezas religiosas ou científicas, o poema delineia-se como viagem e como
busca; o poeta faz uso de sua poesia como forma de superação (e reinvenção) dos dilemas a
que está sujeito. Sem embargo, mais do que dizer que a poesia é a máquina, ou o jogo do
enxadrista, pode-se pensar que a tradição é, ela mesma, a máquina engrenagem que se
movimenta para conduzir o poeta em sua jornada até o fim (e não podemos esquecer de que o
texto em questão é o último texto criativo publicado por Haroldo).
Esse fim é, porém, marcado pela própria incerteza de sua finitude, que o final do
poema (engrenagem, máquina), impulsiona a leitura para o início, estimulando o leitor a
refazer-lhe o percurso: “O nexo o nexo o nexo o nexo o nex”, último verso que não põe fim ao
8
Essa idéia é orientadora da leitura deste trabalho, que considerará a máquina do poema a partir da perspectiva
de Pires apontada acima, acrescentando algumas variações.
poema e marca-se pela necessidade de preenchimento do sentido, que parece vago, efêmero,
ou, talvez, volátil ao obrigar o leitor a refazer-lhe o percurso. O poema não morre por ter
vivido, diz Valéry; como a fênix, o poema renasce das cinzas e incita o leitor a repetir a leitura
tão logo esta chegue ao final, “é um vir a ser indefinidamente o que acabou de ser” (VALÉRY,
1999, p.205).
AMMR é, nesse espectro, um poema-partida; as jogadas, os movimentos das peças-
palavras, a dança deslizante dos tipos negros entre os espaços brancos das páginas, poema-
tabuleiro, acontecem em articulação sincrônica, no sentido de que uma jogada-verso retoma,
por meio do enjambement, o movimento anterior. O passado é revisitado não apenas em
termos de conteúdo, mas também sob a perspectiva da expressão. Por isso, se o poema é um
jogo de xadrez, o poeta é o enxadrista:
AMADA
Ouve:
Agora, junto ao mar,
Um enxadrista joga
[ ]
O ENXADRISTA
Modera, ó bispo noturno,
a faina em meu tabuleiro
e atende: um poeta nasce
nos bulbos do mês de agosto
9
(Auto do Possesso, 1950)
Como uma partida, cuja refacção das jogadas em sua totalidade é inapreensível, a poesia
é um para...alguma coisa; sua ubiqüidade orienta para determinado fim - no limite, um re-
tornar à imprecisão inicial (VALÉRY, op.cit.), diferençada a cada incursão leitora, a qual,
segundo a perspectiva de Haroldo de Campos, pode sempre ser entendida como viagem-
partida que tem como aporte o livro. O seguinte fragmento de Galáxias, dentre os muitos
fragmentos da obra do poeta que poderiam ser selecionados para mostrar essa concepção,
mostra exatamente isso:
9
Vale notar que o tema do jogo de xadrez surge sempre na obra haroldiana; além disso, o fragmento acima
parece referir-se ao próprio poeta, já que ele é nascido em agosto.
umumbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
[...]mas o livro me salva me
alegra me alaga pois o livro é viagem é mensagem de aragem é plumapaisagem
é viagemviragem o livro é visagem no infernalário onde suo o salário
O leitor viajante procura refazer os caminhos do poeta viajor e volta dos textos
transformado pelo que lê, incorporando à leitura sua própria experiência, o que transforma
essa viagem de volta em releitura, de modo que:
[...] procura integrar na leitura de obras do passado a experiência do
presente em que se situa o leitor. Experiência do presente não apenas dos
significados, por onde a leitura seria não apenas tautológica, mas
anacrônica, mas dos significantes a que outras obras deram acesso [...] [o
leitor] é capaz de apreender nas obras do passado aquilo que estava ali
em termos de construção [...] que para o leitor do presente funciona como
operador responsável pela perenidade dela [...] [ ] instaurando os
deslizamentos de apreensão, que precisamente repele as tautologias e requer
a tensão entre as experiências, aquelas incorporadas à obra e as do leitor
(BARBOSA, 1990, p.16).
Qualquer retorno, depois da leitura de um poema, é marcado pela metamorfose, que
talvez seja o imperativo categórico do mundo das coisas tangíveis e intangíveis:
“transformando, pela leitura, o poema que lê, o leitor é transformado pela leitura do poema;
[...] por um lado, o leitor busca a compreensão, por outro a compreensão está na própria busca
que é o início de uma viagem” (BARBOSA In: CAMPOS,H. 1979, p.11). E a busca, é claro,
define-se a partir dos horizontes de contemplação/ compreensão que o leitor estabelece para o
que lê ao descobrir que a poesia é violência sobre a linguagem (PAZ), e ao reconhecer que “as
coisas perfeitas em poesia são inevitáveis” (BORGES).
A cosmogonia dialógica do poema de Haroldo de Campos faz-nos compreender porque
Calvino chama os clássicos de talismã, colocando-os em equivalência ao universo (CALVINO,
2005, p.13). O clássico é um texto que tem vocação para o diálogo e permanece, justamente,
pelo fato de esta vocação projetá-lo para o futuro. Como diz Brandão:
[...] uma obra clássica não é aquela que sustenta uma verdade absoluta e
única e faz calar outros discursos, mas sim aquela que logra dizer de tal
modo sua verdade que impulsiona o surgimento de novos discursos,
tornando-se um ponto de referência em torno do qual se instaura o diálogo
(BRANDÃO, in: APPEL; GOETTEMS, 1992, p. 42)
Os clássicos reatualizam-se a cada leitura, aceitam o diálogo e diferenciações de pontos
de vista. Tal caráter dialógico faz com que voltemos a ele para reafirmar/ reconstruir nossa
identidade, nossa humanidade, nossa descendência de Ulisses, leituras pulsantes, viagens e
travessias; silêncio em versos ou reversos do acaso, da sorte, da vida: ocaso, história, poesia.
A historicidade do poema de Haroldo de Campos não cumpre importante papel dentro de
nossa cultura, pois antropofagicamente revitaliza a literariedade dos textos, como também
(re)significa a própria experiência histórica da humanidade e sua busca de compreensão e/ou
fusão de dois mundos aparentemente distintos, a religião e a ciência; para dar conta disso,
apóia-se no dialogismo que os clássicos, com sua vocação para o futuro, legaram-nos.
As engrenagens históricas de AMMR convidam a estabelecer o lugar da poesia como
mediadora dos conflitos entre religião e ciência: o poeta, o homem de verdades outras, é capaz
de fazer brilhar, na cosmogonia do texto, constelações históricas que reluzem ora pela
religião, ora pela ciência e sempre pela linguagem em ação do poema. O poeta estabelece
fundamentais papéis para o re-pensar do mundo: a pedra-máquina no meio do caminho da
humanidade se movimenta e se faz poema, viagem.
PARTE I
O TEXTO-SÍNTESE E AS OBSESSÕES DO
POETA
O TEXTO-SÍNTESE E AS OBSESSÕES DO POETA
I.1 Heliotropismo do passado: convergências em A Máquina do
Mundo Repensada
Difícil imaginar as atitudes humanas sem pautá-las pela história: a escritura do poeta
também é produto dos determinismos de seu tempo. No caso do autor de AMMR, o tempo é
aquele em que se sabe (ou se deveria saber) que ciência e religião não precisam ser
excludentes. É ao longo dos diálogos estabelecidos com a poesia, que pressupõe a existência
do divino, e dos diálogos estabelecidos com as mais instigantes descobertas científicas, que o
poeta tece a historicidade de seu texto, procurando articular um percurso histórico-
cosmogônico. No poema, a máquina se abre e, máscara, (des)vela o mundo aos olhos do
leitor, trazendo à cena um poeta que narra sua viagem em busca de si mesmo (busco-me na
busca? Canto 3), passando pelos paradigmas da e da ciência, interpretando-os a partir do
engendramento da matéria (alegórica/ metafórica) do significante.
A alegoria da máquina do mundo é retomada, por Haroldo de Campos, pelo
estabelecimento de um prismático dialogismo cosmogônico. Essa alegoria, como se verá ao
longo da leitura do poema, pode ser compreendida tanto como aquilo que se convencionou
chamar “alegoria expressiva”, mimética, que opera por semelhança e tem o intuito de “ornar”
o discurso, como por “alegoria dos teólogos”, hermenêutica, que assume feitio figural,
simbólico e interpretativo; ou ainda, alegoria barroca, nos termos de Benjamim (2004). No
poema AMMR, a alegoria mistura-se à parábola, em especial no Canto III, quando a escritura
do autor vai sendo cifrada por intermédio de um discurso marcado pelo tom bíblico, trazendo
para o texto os dilemas do poeta de modo mais explícito do que nos cantos anteriores.
Em artigo de 1978, sobre Haroldo de Campos (e Galáxias), o poeta Severo Sarduy
analisa a escritura haroldiana, destacando a recorrência do trinômio
metáforas/mobilidade/parábolas, contrapondo o poeta ao cubano Lezama Lima, que
privilegia, em seu texto, imagem/fixidez/hipérboles. No que concerne às imagens e às
metáforas, a distinção parece clara: as imagens não deixam de ser fixas, impõem-se como
hipérboles, ou melhor, fixação hiperbólica do real, uma supra-realidade, “reino por
antonomásia do possível do homem, outorga um daqueles sucedâneos mediante os quais o
poeta pode “representar” aquilo que a realidade lhe lança como desafio misterioso” (SARDUY,
1978 in CAMPOS, H. 1979, p.120).
As metáforas, por sua vez, são móveis e, no caso de Haroldo, como aponta Sarduy,
condensam a matéria verbal por saturação e intensidade; implicam a mobilidade, os
deslocamentos contínuos, o rastreamento dos significados pelos múltiplos significantes
espalhados no tecido textual. Enquanto condensação e deslocamento, as metáforas
haroldianas são, também, metonímicas, pois sempre o “surgimento, numa dada cadeia
significante, de um significante procedente de outra cadeia” (SARDUY, op.cit.).
Para Sarduy, em Galáxias, esse processo metafórico faz emergir, não a hipérbole, que
revelaria os paradoxos individuais por meio dos exageros, constituindo-se em metáforas
ousadas (catacreses); porém a parábola, que mais do que revelar ou enfatizar um pensamento,
por meio do exagero e da ênfase, deixa entrever a própria história da escritura do autor, sua
biografia, seu telos geral. Segundo Sarduy, essas parábolas definem-se pela desmesura:
[...] a percepção macroscópica desse livro [Galáxias] desenharia uma
parábola desmesurada. [A parábola é] figura que abarca e define toda essa
produção, em seu progresso rumo à concretude, como um “mundo total de
objetiva atualidade”, apreendido num instante como se capta um
ideograma e, não uma série de leituras analíticas, próprias do tempo
discursivo e de sua equivalência na sintaxe tradicional. Parábola [em
Haroldo] que daria a entender o trabalho da escritura e da vida mesma do
autor, que este vai cifrando em seu corpo [do poema], um hieróglifo
invisível e paciente como uma gigantesca viagem [...] viagem homérica
ou joyceana, iniciática, lisérgica espacial, amazônica. [...] A obra de
Haroldo de Campos seria como a exaltação e o desdobramento de uma
região da dicção, de um espaço de fala vasto e barroco como o mapa de seu
país: sopro e articulação, alento e pronunciação: nascimento do discurso. O
poema como sílaba-germe que rebenta, expande-se no volume da página e
expande em direção à concretude. (SARDUY, op. cit., p.123,125).
Sarduy parece estabelecer uma distinção entre parábola e hipérbole no sentido
retórico. Segundo Lausberg (1993), a parábola é a expressão completa do pensamento,
exatamente como sugere a citação acima sobre Haroldo; a hipérbole, de outro lado, não é a
expressão completa do pensamento, mas o uso de imagens e signos, que ultrapassam a
realidade e expressam paradoxos; uma atitude artística que se compraz pelo exagero
10
. Tanto
uma quanto a outra oferecem um desafio ao entendimento: a parábola é uma mensagem
cifrada, hermética, acessível aos iniciados, é vizinha da alegoria e comunica uma lição, um
princípio por meios simbólicos
11
, portanto, para compreendê-la, o leitor precisa “entrar no
jogo” e refazer as jogadas cujo resultado final aparece no texto. O exagero na construção da
hipérbole também a torna hermética e desafiadora, pois a ousadia metafórica que apresenta a
distancia do referente inicial e impõe um jogo interpretativo.
10
Cf. LAUSBERG, H. Elementos de retórica literária. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
11
Cf. MOISÉS, M. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: [s.l.], p.385.
O que Sarduy demonstra é que o caráter biográfico, a escritura arqueográfica e a
pessoalidade dos poemas haroldianos, constroem uma parábola haroldiana com “suas
ressonâncias bíblicas e mitológicas” (SARDUY, op. cit., p. 120), por isso prefere dizer que
parábola desmesurada, e não hipérbole: a segunda acaba por submeter-se à primeira.
Entretanto essa distinção não se faz necessária, inclusive porque as hipérboles é que dão o
atributo de desmesura ao texto haroldiano ou seja, se as parábolas em Haroldo de Campos
são uma hybris, é devido ao uso das hipérboles. O caráter hermético da parábola acentua-se,
em Haroldo de Campos, pelo uso da hipérbole como instrumento de sua construção.
Mais do que separar essas duas instâncias, vale sublinhar que a riqueza do fazer artístico
de Haroldo de Campos consiste em fundi-las, fazendo-as parte de seu paideuma teórico e
estilístico. Em AMMR, a hipérbole reina na expressão dos paradoxos intelectuais e dos
dilemas, na expressão dos enigmas ou, pura e simplesmente, no gosto pelo exagero. A
parábola também prevalece, porque a escritura do poema revela a escritura de Haroldo de
Campos e os preceitos de seu pensamento poético. Aliás, esse processo é perceptível em seus
poemas, de um modo geral, haja vista que Sarduy refere-se a Galáxias; e nós, à AMMR. Isso
ocorre porque, como se discutirá mais adiante, mais do que fases, Haroldo apresenta a
construção de um projeto ao longo de sua atividade poetária.
Cada texto seu é o último texto; é o acervo de suas parábolas pessoais. Toda a sua obra é
um continuum em que se faz patente a preocupação com a materialidade da palavra e com a
abordagem sincrônica da literatura
12
. Para reforçar: o poema é sempre concreto, embora não
necessariamente concretista. Em AMMR, a parábola haroldiana é revelada pela voz do aedo,
que seduz pelos recursos retóricos utilizados para contar seu canto e sua palavra são seus
artifícios e sua licença poética, exatamente como ocorre com os textos antigos. A esse
respeito, diz Brandão:
No testemunho da palavra antiga podemos vislumbrar que a função de
composição está sendo obscurecida para salientar a sua função de
proferição [...] poderíamos dizer que, ao lançar sua voz, o aedo costura
cantos, ou, noutros termos, costura epéa, isto é, vozes (BRANDÃO In:
APPEL; GOETTEMS, 1992, p.45).
O que o eu-poético de vários poemas haroldianos faz, inclusive em AMMR, é organizar
seu canto e sua palavra como ruído de fundo, com acordes hiperbólicos, seduzindo pela
proferição de sua palavra; mas, ao contrário do que acontece na épica, a função de
12
Por isso, não faz sentido falar do Haroldo Concretista, do Haroldo de Galáxias, do Haroldo de A Máquina do
Mundo Repensada. um Haroldo e umpensamento poético, que vai sendo lapidado ao longo da vida do
poeta, justamente, pelo fato de ser projeto poético.
composição não se obscurece, pelo contrário, a característica auto-reflexiva da poesia na
modernidade, à qual se filia a obra haroldiana, e o “heliocentrismo” da mensagem verificado
na máquina do poema fazem com que as epéia (vozes) nos poemas de Haroldo seduzam,
também, pelo desafio da arquitetura dos textos, do seu maquinar, ao qual o leitor é submetido.
O jogo é estabelecido pela voz do eu-poético que, além de mostrar a costura das vozes,
incita o leitor a descobrir os meandros dessa cerzidura na própria escrita do texto: as vozes e a
escritura da tradição, seja ela literária ou não, são a linha do bordado de Penélope que o poeta
Haroldo de Campos usa para tecer, na página, a parábola de sua própria escritura. Essa página
é a colcha dos estilhaços da tradição e é o tabuleiro do enxadrista; porém, o que a torna
desafiadora, de fato, é que, entre uma e outra casa do jogo, um labirinto que o leitor deve
percorrer.
Como o tabuleiro é também bordado, o leitor segue o fio de Ariadne e se deixa tecer ao
texto pelos fios da habilidosa Aracne. Em AMMR, por exemplo, o leitor, parceiro de jogo,
vencido pelo texto, pára de se preocupar com a significação global do poema, com sua
finalidade, e passa a desfrutar o livre trânsito das palavras, que circulam pelo texto em
compassada travessia; passa a desfrutar cada instância, ou ainda, cada estância: bebe as
palavras, prova os seus significantes e partilha a hybris criativa que se abre, como a máquina
do mundo, deslumbrante, à sua frente.
Em AMMR, a retomada sincrônica da história literária e da história do homem à
procura de respostas aos enigmas de sua existência é, então, uma forma de parábola do mundo
e das histórias pessoais do próprio Haroldo, corresponde à valorização do passado como
instrumento de edificação do presente e projeção do futuro e ao poema um estatuto de
instrumento a partir do qual se vislumbra o cosmos passado, presente e futuro coexistem na
máquina do poema, pela historicidade que ela encena: mensagem poética telescópica.
Isso significa que o passado é marcado de novidade, já que a maneira como o poeta se
situa diante de seu próprio presente, atualizando-o em seus precursores, é análoga à que
propôs Borges no ensaio intitulado Kafka e seus precursores. Nesse trabalho, o escritor
argentino destaca que parecia reconhecer a voz e os hábitos kafkianos em autores que
antecederam o escritor e que foram lidos por ele (Kafka). Textos estes que apresentam as
marcas de um Kafka leitor e crítico, mas distanciados entre si; é a este ponto que o poeta
argentino dedica ênfase: em cada um dos textos, que brevemente analisa para sublinhar-lhes
uma existência kafkiana, está a idiossincrasia de Kafka, em maior ou menor grau, e que não
seria percebida se Kafka não houvesse se dedicado a escrever sobre eles. Diz Borges:
El hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifica
nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro. En esta
correlación nada importa la identidad o la pluralidad de los hombres. El
primer Kafka de Betrachtung es menos precursor de Kafka de los mitos
sombríos y de las instituciones atroces que Browning o Lord Dunsany.
(BORGES, 1982, p.228, grifos do autor).
No caso de Haroldo de Campos, a maneira como o poeta se situa diante do presente,
atualizando-o em seus precursores, (re)construindo-os e os colocando de novo em estado de
estar no mundo, engendra uma poética da agoridade, a qual, segundo ele pode ser entendida
como poética articuladora de uma poesia plural, crítica do futuro e de seus paraísos perdidos,
enquanto se presentifica e se projeta para o futuro toda uma apropriação crítica de passados
diversos (CAMPOS, 1997, p.268-269).
Não se trata, portanto, de dizer que o poeta Haroldo de Campos tenha feito uma leitura
histórica da poesia em AMMR, mas uma leitura crítica da poeticidade ao longo da história,
construindo, sobre este alicerce, seu posicionamento frente aos dilemas históricos que
colocaram o homem diante das (in)certezas da e da ciência. Dessa forma, o que legitima o
presente no texto haroldiano, como se verá, não é o passado tomado como um conjunto de
pontos de referência, ou mesmo como um simples mecanismo de duração (Dante, Camões,
Drummond ainda permanecem independentemente de o poema de Haroldo dialogar com
eles), mas como um processo de tornar tanto o passado literário (Canto I) quanto o científico
(Canto II), o presente. Assim sendo, a abordagem sincrônica é mecanismo de organização
dos questionamentos do poeta, que repensa o mundo como fim, nex, e como nexo (Canto III)
entre passado e futuro, de tal sorte que quanto mais se espera a ruptura, a mudança, ou, no
caso de Haroldo de Campos, a invenção poética, mais se torna essencial voltar-se para o
passado para descobrir como ela será.
Por isso pode-se reafirmar que Haroldo de Campos cria seus precursores: como o
narrador de O Aleph (BORGES, 2006), desce até o porão, vai ao passado do edifício literário,
para usar uma idéia do Victor Hugo exposta em do Grotesco e do Sublime (2004), movimenta-
se pelas prateleiras da ciência, a fim de resgatar a historicidade dos textos e dos
questionamentos sobre a gesta universal, colocando-se, agnosticamente, frente ao dilema
religioso-científico que se abre diante dele como algo estranho, fantástico, revelador como a
própria máquina do mundo. No caso de AMMR, esse questionamento é mediado pela
desestabilização do cânone e pela inclusão do discurso científico no discurso poético.
Se, na literatura, o tema da máquina do mundo representa, fundamentalmente,
revelação do futuro, de verdades insondáveis, ou do passado, em termos de física, a máquina
do mundo é uma máquina do tempo reversível, que permitiria que nos projetássemos ao
passado e ao futuro, simultaneamente; alguma coisa muito próxima do ideal de pensamento
de Haroldo de Campos e, aparentemente, de existência tão vaga quanto Inferno e Paraíso.
Assim é definida a máquina do tempo:
Uma máquina do tempo constitui uma estrutura capaz de permitir a
passagem de um corpo material (ou qualquer forma de energia) duas vezes
por um mesmo ponto do espaço-tempo. Em linguagem simples, isso
significa uma volta ao passado [...] determinada pelas forças gravitacionais,
cuja descrição é feita pela Teoria da Relatividade Geral. [Essa viagem se
torna impossível na Terra] devido à fraca intensidade do campo
gravitacional.
Os cientistas Nathan Rosen e Kurt Gödel foram os primeiros a produzir
modelos teóricos [ ] nos quais esses caminhos para o passado poderiam
existir [ ] uma das propriedades mais notáveis desses caminhos, e em total
contradição com o senso comum, consiste no fato de que, ao percorrermos
uma dessas trajetórias, estando a cada instante nos dirigindo para o futuro,
estamos igualmente nos aproximando do passado. [ ] o tempo não deve ser
representado por uma linha reta infinita como o senso comum faz, mas sim
por uma estrutura cíclica. (NOVELLO, 2000, p.114).
Entretanto, para que tal deslocamento acontecesse, seria preciso crer que o tempo
jamais se tornasse passado o que em termos de realidade objetiva é impossível. Os cálculos
desses cientistas foram feitos com base na hipótese einsteiniana de que o tempo poderia ser
reversível; o próprio Einstein, todavia, percebeu que a física desafiava o que podemos
apreender como realidade objetiva. Colocada a questão nesses termos, parece que a máquina
do mundo passa a ser permitida apenas na literatura, e, mais especificamente, no texto
poético, já que este é tempo e espaço de linguagem:
[A compreensão do poema está na busca] início de uma viagem. Início cujo
término previsível é dado pelos pametros da linguagem: bússola,
astrolábio, estrela.
Neste sentido, o espaço do poema é necessariamente um tempo. Espaço e
tempo da linguagem: o poema em que o leitor atua como um viajante para
quem os signos não são mais apenas signos, sinais, de alguma outra coisa
para fora da topologia cujos limites cartográficos estão dados na página que
os acolhe como um espaço privilegiado. Mapear, deste modo, significa
exibir as marcas de uma volta como quem, por um caminho
desconhecido, sem saber ao certo o retorno possível, vai deixando traços
que possam assegurar a volta. (BARBOSA In: CAMPOS, H., 1979, p. 11).
A volta é assegurada pelo caráter intertextual da obra poética (literária). O retorno é
possível porque os novos textos vão se somando aos antigos, como manuscritos sobre
manuscritos e desenham as possibilidades de re-atualização da tradição não em sentido de
repetição pura e simples, mas de retornar, tornar de novo ao antigo que se faz novo, que o
mapeamento, que exibe as marcas de uma volta, possibilita a criação dos precursores sob a
perspectiva borgiana já mencionada.
Assim sendo, o retorno é diferente, rasura o original; ao passado, como totalidade
temporal, é impossível voltar tanto na física, quanto na religião ou na literatura, porém, nesta
última, podemos revisitá-lo pela leitura e podemos, ainda, trazê-lo para dentro dos textos
reinventando-o, o que sem dúvida é muito interessante. Ao contrário dos “outros passados”, o
literário presta-se à modificação pelo diálogo. Em AMMR, os traços que asseguram a volta
não operam de outra forma senão da maneira apresentada pela máquina do tempo supracitada:
quanto mais o poeta se dirige ao futuro, em termos da renovação da linguagem da tradição,
mais se aproxima do passado, na mesma proporção – é a pulsão da ruptura e da renovação das
formas, arqueografia da inventividade, que projeta eu-poético haroldiano para o futuro e,
simultaneamente, coloca-o em sinergia com o passado, de onde ele apreende, como
paideuma, aquilo que é relevante para as gerações futuras. Mais uma vez, sincronia.
Nesse sentido, entender as relações entre a máquina do mundo e a máquina do poema
e toda a sincronicidade que estas relações revelam, implica marcar a viagem diacronicamente,
a partir de uma ótica de leitura convocada pela poesia moderna. Como pontua Pires:
[...] pode-se dizer que a metalinguagem, um dos fatores de apreciação,
valorização e valoração da poesia moderna, é a primeira das condições
necessárias à compreensão do poema como máquina, uma vez que esta se
alimenta também da poesia: pois a auto-reflexividade, a auto-
referencialidade, a consciência construtiva, o pensar sobre a linguagem;
enfim, o voltar-se sobre as próprias engrenagens, revelando a concepção
engenhosa que a norteia, é um dos movimentos preferidos da máquina do
poema. (PIRES In: FERNANDES et.al., 2006, p.111)
Quando essa máquina poética volta-se sobre as suas próprias engrenagens, acentua-
se a sua modernidade e passa a operar a partir do inusitado e do improvável, submetidos, é
verdade, a uma ordem, mas uma ordem que rompe com o padrão normalmente tido como
organizado, portanto, a máquina do poema não é como as máquinas convencionais e pode ser
compreendida, por exemplo, a partir da moderna Teoria do Caos, que mostra os sistemas
caóticos exatamente dessa maneira: a ordem, ao invés de limitar a surpresa, impõe-na pelo
potencial de inovação que sua aparente desordem revela. (CAMPOS, R., 2005, p. 176).
No caso da poesia moderna, a ruptura da sintaxe, por exemplo, revela-se caótica na
aparência, mas repleta de uma ordem que engendra a surpresa a cada minuto, como se verá ao
longo da leitura do poema, notadamente no Canto II, pela discussão das novas teorias da
física. A ordem presente nos sistemas caóticos é, em termos de poesia, a luta contra o acaso.
Desde os primeiros poemas, Haroldo experimentou essa luta contra o acaso, associando-a ao
Lance de Dados de Mallarmé. Segundo disse em Depoimentos de oficina (2002, p.35), o
conjunto de poemas O â mago do ô mega pretendia instaurar um caráter crítico e um trabalho
lúcido contra o acaso, recuperando Poe, Mallarmé e João Cabral em uma “Fenomenologia da
Composição”:
Impressos em branco sobre o fundo preto, esses poemas fazem reverter para
o céu noturno, salpicado de estrelas-palavras (Vieira), a página branca de
Mallarmé. Céu noturno, branco ao contrário. Propondo-se como uma
fenomenologia da composição. (ibid., id.) [...] Na série O â mago do ô
mega, através da desarticulação das palavras e da fratura fônica, propus-me
a chegar ao eidos do poema, à “coisa da coisa”, ao “zero ao zênite”: um
zero vazio e significante ao mesmo tempo, algo como o sujeito zerológico
(ibid., p.36).
Os jogos sonoros e a idéia cosmológica (o céu noturno), frutos de uma
fenomenologia da composição, que valoriza exatamente e mais argutamente o exercício
crítico e metalingüístico, sem abrir mão da invenção, são recriados em AMMR. Neste poema,
Haroldo de Campos intensifica as experimentações da linguagem porque cria,
ideogramaticamente, nas formas cristalizadas pela tradição, palavras compostas e as sujeita à
â mago do ô mega
um olho
um ouro
um osso
sob
essa pe ( vide de vácuo ) nsil
pétala p a r p a d e a n d o cílios
pálpebra
amêndoa do vazio pecíolo: a coisa
da coisa
da coisa
um duro
tão oco
um osso
tão centro
um corpo
cristalino a corpo
fechado em seu alvor
ero
Z ao
ênit nitescendo
ex
nihilo
ruptura sintática, às hipérboles, às perturbações e esfacelamentos semânticos, que se tornam,
no poema haroldiano, dinâmicas e “caóticas”, revelando, por isso, a surpresa da composição,
um zênite nitescente. Isso porque, para Haroldo de Campos:
A tradição é uma coisa aberta. [...] A vanguarda literária, tal como a
compreendo, envolve uma interpretação crítica do legado da tradição,
através de sua ótica integrada no presente e feito contemporâneo. Não
artefato para museu (para a contemplação), mas objeto lingüístico vivo,
para uso produtivo imediato (para a ação). (CAMPOS, H., 1998, p.24,25)
Tal projeto e a postura diante do que se poderia chamar “tradicional” não são fruto da
maturidade, mas uma invariante na obra haroldiana, que foi sendo matizada ao longo de
muitos anos, como um recurso de composição poética calcada no make it new e na visão de
modernidade que sua obra abarca. Por isso foi dito anteriormente que, na obra haroldiana, não
fases, mas construção articulada de um projeto através do meio século de trabalho
artístico, dedicado à poesia, em amplo sentido. Para que se tenha idéia dessa continuidade,
pode-se citar Lamento sobre o Lago Nemi, que está em o Auto do Possesso, de 1950; segundo
próprio Haroldo, este poema é representativo de seu percurso poético. Diz o poeta em
Depoimentos de oficina:
É o tema ritual do sacerdote-rei do Templo de Diana Nemorensis, ou Diana
do Bosque, junto ao lago Nemi, perto de Roma. Seu reinado, segundo a
regra do santuário, duraria até que um rival o vencesse e assumisse o posto
hierático [...] Procurei recriar o motivo à luz da dialética mallarmeana do
acaso, o azar (le hasard) jamais abolido. Se, de um lado, a forma fixa (três
quadras dodecassilábicas, rimando no segundo e no quarto verso de cada
uma) e o refinamento léxico poderiam aparentar alguma afinidade com a
postura anticoloquialista e antiprosaica dos poetas de 45, de outro a sintaxe
rítimo-permutatória que favorece, deliberadamente, a articulação e a
desarticulação das frases, engendra o paradoxo e a dissonância, cria um
espaço paralógico, desestabilizando de maneira irônica o modelo formal e
dando-lhe caráter móvel. (CAMPOS, H., 2002, p. 22 e 23).
Fica claro pela citação que a sincronia haroldiana funde a modernidade, sobretudo
aquela advinda de Mallarmé, e a tradição para criar o novo. É interessante notar o comentário
do poeta sobre a geração de 45. Segundo ele, a forma fixa era fôrma ortodoxa e, por
conseguinte, a tradição não era valorizada, mas desperdiçada. Não é objetivo entrar nessa
discussão, a não ser para sublinhar que, pela citação acima, Haroldo de Campos contrapõe a
sua maneira de conceber a permanência da tradição, como algo vivo e vivificado pela
modernidade, e a “cópia”da tradição pelos poetas de 45. O debate é amplo e controverso, mas,
sua rápida menção, indica a importância da poética sincrônica na obra haroldiana. Vejamos o
poema:
LAMENTO SOBRE O LAGO NEMI
O azar é um dançarino nu entre os alfanjes.
Na praia, além do rosto, a corda nas mãos.
Chama teu inimigo. O azar é dançarino.
Reúne os seus herdeiros e proclama o Talião.
A virgem que encontrei coroada de rainúnculos
Não era – assim o quis – a virgem que encontrei.
O azar é um dançarino; teme os seus alfanjes.
Amanhã serei morto, mas agora sou rei.
Nu entre os alfanjes, coroado de rainúnculos,
Chama o teu inimigo e a virgem que encontrei.
Na praia, além do rosto, eu agora estou morto.
O azar é um dançarino. Amanhã serás o rei.
Vê-se, portanto, que as formas fixas escolhidas pelo poeta em AMMR eram parte
de sua consciência acerca da renovação da linguagem e não significam a rejeição da tradição,
muitas vezes associada à experiência concretista, mas sim criação poética tensionada, pelo
fato de ser, quando dialoga com a tradição, novidade; e parte da tradição, quando esta é
incorporada aos poemas.
Ao recuperar a alegoria da máquina do mundo, pela via trilhada no poema dantesco,
Haroldo mantém a idéia cosmogônica, não mais na manifestação gráfica concretista do
poema, como acontecia em o âmago do ômega, porém na concretude do tema, engendrado
pela estrutura significante com que o poeta de campos e espaços presenteia (e presentifica) o
leitor, instaurando precursores: os do poeta-leitor e re-criador da tradição, tornando
precursores do leitor, os leitores antepassados desta mesma tradição. A experiência concreta
ensinou o poeta a ver a concretude da poesia, segundo o próprio Haroldo de Campos (1997),
tal experiência não o aprisionou, mas fundamentou seu olhar poético. Por isso, toda a
experimentação poética haroldiana retoma as bases da poesia concreta transcendendo-a.
Para Haroldo de Campos, o poema deveria instigar o esforço de compreensão do
trabalho laborioso e lúcido feito pelo poeta. A composição fenomenal depende da superação
do comum, da criatividade e da re-invenção das jogadas; depende que o jogador-poeta jogue o
inusitado, o inesperado. Portanto, no poema-máquina, no poema-jogo, pretende-se abolir o
acaso de um modo muito peculiar: tornando as palavras, ícones negros no branco da página,
surpresa engendrada pela argúcia e pela astúcia do poeta (re)criador: um não-acaso que se
forja acaso, “o poema acontece, o poema se medita”, como ele diz em Teoria e Prática do
Poema: signos palpáveis, palavras-peças posicionadas em constante tensão.
O poeta, ao re-pensar a máquina do mundo, deixa circunscritos, em seu poema,
arquitextos de vanguarda: novidade exposta a olho por olho a olho nu, que está em Teoria da
Poesia Concreta (1975), invenção marcada de tradição até o fim, que não é fim, mas nex. O
nex, em latim, fim abrupto, se lido como morte, ou passagem, no sentido religioso, ou
insondável, no sentido científico, sugere uma indeterminação que obriga o leitor a re-tornar ao
início de sua Odisséia, viagem-leitura, cosmofísica abissal, como sugere Leda Tenório da
Motta (2004, p.165). Elíptico percurso, pois o universo é in-finito, nonada : se nasce,
morrenasce, exatamente como nos é apresentada a tradição literária por Haroldo de Campos, e
exatamente como a tradição literária sobrevive aos séculos.
I.2. A Máquina do Mundo Repensada , o estilo e as obsessões do
poeta
Uma máquina do mundo, que como topos serve de ancoradouro para a máquina do
poema, não pode sugerir outra coisa senão universalidade a alegoria da máquina do mundo
é uma tentativa de apreensão do universo, a partir da relação mítica entre o homem e a
divindade desde a Antigüidade, permanecendo, como se verá pela leitura do poema, nos
paradigmas científicos.
Certamente, são multíplices os aspectos e os pontos de vista que poderiam ser
adotados na leitura do poema de Haroldo de Campos, que retoma tão instigante alegoria,
remanescente não na imaginação dos poetas, mas no imaginário da literatura e da ciência
13
13
Marcelo Gleiser destaca que desde os primórdios o céu era visto como manuscrito sagrado. A suas revelações
tinham acesso os feiticeiros eram capazes de ler, no universo celeste (ou na “máquina” que se mostrava diante
deles) mensagens escritas pelos deuses ou outras aparições. Cf. GLEISER, M. O fim da Terra e do céu. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.13-47.
como marca de um passado infinitamente perdido e de um futuro inatingível, como o livro de
Mallarmé, síntese da existência, justificativa estética para os males do mundo (BORGES, 1982,
p.229, 339).
Múltiplas são as possibilidades de leitura e muitos são os aspectos de Haroldo de
Campos que podem ser claroamostrados por meio dessa leitura. Diante de tantos “Haroldos”,
portanto, o crítico-leitor arrisca-se pensador e procura discutir a orquestração sincrônica do
poema, cujos acordes revelam características inerentes às criações haroldianas de um modo
geral. Como um espectro, o poema é fulcro de cristal em movimento: pensamento.
Para Paul Valéry (1999, p.193), o poeta é um pensador porque é por meio da sua
linguagem que pensa o mundo; a linguagem é o ponto de partida da organização do
pensamento. Como, para o poeta francês, “a poesia é uma arte da linguagem”, poesia é
pensamento. Mas essa forma de pensamento, adverte Valéry, não é a dos pensamentos puros e
sim daqueles desenvolvidos em terreno inóspito, porque coordena múltiplos aspectos: som,
sentido, historicidade, poesia, real e imaginário.
A apropriação da realidade pelo pensamento e sua tradução em ações é engendrada por
todos os sentidos da existência humana (físicos e sociais) em sua relação com o mundo; no
caso da poesia, esse pensamento se traduz em obras e cada poeta atribui plasticidade e
materialidade a esse pensamento, por meio de seu trabalho com a linguagem, revelando suas
mitologias pessoais ao voltar-se para algum ponto do passado. O poeta é, assim, tomado de
certa melancolia diante da inevitabilidade de traduzir o pensamento a que a linguagem poética
o obriga, como se estivesse sempre a baixar sobre ele certa luz crepuscular e lhe faltasse a
totalidade da linguagem – é o que o nex do último verso de AMMR pode sugerir.
Para estudar aspectos da obra de um poeta, por conseguinte, que se identificar os
matizes de seu pensamento, suas obsessões e suas buscas: “[...] cada poeta tem sua mitologia
particular, sua própria faixa espectroscópica ou formação de símbolos peculiar, [por isso], os
gêneros derivam do mito da busca” (FRYE, p.17, 23). O caso de Haroldo de Campos é muito
peculiar, pois sua maior obsessão é encontrar, por meio de sua palavra, mecanismos para
redescobrir e reinventar a poeticidade ao longo da história. O poema é a busca. Escreve o
poeta em O portet, publicado em Crisantempo:
preciso
é ter paciência
decantar os vinhos
reler um verso velho que o citrino
sumo dos limões
verdecendo acidula
preciso
é ter ciência
depurar do limo
a água que filtra na palavra luz
o hino do menino char a voz
a vólucre voz
o timbre sibilino
do melro de ouro que calusura a aurora
preciso
é ter ausência
sutileza
tactos
amor (o ato entre-atos)
dor prestimor querência
para fazer deste papel
poema
desta que mana do estilete azul
escura tinta esferográfica
preciso é ter
demência
obsessão
incerteza
certeza
escuridão gozoza
graça plena
fogo liquefeito
para fazer da tinta e da madeira
apisoada em polpa
que na cortiça antes portava
como brasão teu nome:
a coisa
o corpo
a coisa
em si
a dupla valva
o lacre sob as pubescentes sílabas
o preciso desenho
que como ao deus de adão de uma costela
dá-me fazer deste papel poema e da insinuada
tinta faz
mulher
Para fazer um poema, de acordo com o que nos apresenta o texto de Haroldo de
Campos acima, é necessário, portanto, paciência, ciência, sacralidade e pulsão erótica; é
urgente abrir-se à experiência extraordinária a que a escritura do poema acesso por isso,
fazer poesia, no caso de Haroldo de Campos, implica a obsessão: obsessão para criar e
obsessão para buscar a forma perfeita nas formas cristalizadas, fundi-las à sua escritura;
obsessão para buscar essas formas nas profundezas, como se fosse possível encontrar um
ponto abaixo do zero, acima do zênite. A obsessão haroldiana é de tal modo marcante que
acaba por definir seu próprio estilo. Sobre a importância do estilo de um autor, diz Augusto
Meyer:
[...] o estilo é mais que o homem a tentativa de superação do homem na
expressão do eu idealizado, em sentido abstrato [...] o Autor transcende o
Homem [...] com toda a vantagem de poder transformar-se em essência
transmissível por meio da leitura e renascer indefinidamente ao calor da
compreensão; ao nosso lamentável vício psicológico, pois, devemos a
tendência para cultivar a biografia do homem, em detrimento da biografia
do autor, que é a história da sua obra em sua projeção no tempo. (MEYER,
2007, p. 14).
O comentário de Meyer é importantíssimo, porque pontua a diferença entre a
biografia do autor, projeção de sua obra, e a do homem. Neste trabalho, o Haroldo de
Campos invocado é sempre o autor
14
, dono de um estilo marcante, engendrado por suas
obsessões e mitologias pessoais. É comum haver uma confusão quando se discute a obra de
Haroldo de Campos e seu estilo, porque sua personalidade intensa e polêmica e a paixão pela
poesia contagiam aqueles partidários de sua visão e aqueles contrários a ela.
14
Para uma biografia de Haroldo de Campos, cf. NÓBREGA, T.M. Sob o signo dos signos: uma biografia de
Haroldo de Campos. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica - PUC. Tese de doutoramento em
Comunicação e Semiótica, 2005.
Sua personalidade polêmica faz com que alguns críticos no lugar de entender o autor e
a riqueza de sua obra, cujo estilo é marcante, passem a analisar a obra como reflexo do
homem, relegando ao autor Haroldo de Campos, um papel secundário; ou se amplia o alcance
de suas produções pelo encanto que sua erudição provoca. Talvez seja por isso que a
experiência concretista seja tão discutida – ela guarda maiores afinidades com a personalidade
inflamada de Haroldo de Campos; entretanto, é preciso compreender as invariantes da obra
haroldiana como características de seu estilo, sem confundi-las com Haroldo de Campos. É,
inclusive, por isso, que não se pode separar o Haroldo poeta, do crítico e do tradutor como
autor, todas essas instâncias presentificam-se em sua obra. Mas o que será o estilo?
Pensamos no estilo como o modo próprio de dizer da enunciação,
depreensível de uma totalidade enunciada. Essa perspectiva faz com que as
relações de sentido convirjam recorrentemente para um centro que, longe de
mostrar um sujeito empírico, cria o próprio sujeito. Por isso afirmamos que
o ato singular do dizer emerge do dito, também em se tratando de
totalidade. O centro, o referencial interno, remete, porém, à exterioridade do
próprio estilo, pois por oposição ao externo, o interno significa. O que é,
por sinal, a exterioridade do estilo, senão o outro, pelo qual se constitui o
um? Esse outro, além do tu instituído intersubjetivamente, o que é, senão a
própria situação de comunicação? (DISCINI, 2003, p.17,18).
Como outro, o leitor de Haroldo de Campos vê-se diante de um estilo cujo centro
referencial interno sofre um apagamento de fronteiras, isto é, o centro não é um ponto, mas
um plano por onde passam vetores advindos das mais diferentes dicções: bíblicas, orientais,
greco-romanas, provençais, barrocas, modernas e vanguardistas, científicas, filosóficas,
enfim, o centro é impreciso. Em AMMR, o sentido do texto parece escapar, pela
multiplicidade dos diálogos; igualmente, e pela mesma razão, o estilo volatiliza: nunca haverá
um aporte definidor do estilo haroldiano; entretanto, mesmo volátil, o estilo deixa como
resíduo, ou ainda, fixa, como “ruído de fundo”, as vozes do épico, em especial da Odisséia, e
do barroco. Trajano Vieira assim nos fala sobre o poeta:
Os leitores das Galáxias, de Finismundo e de vários outros poemas seus [de
Haroldo] sabem o quanto a figura de Ulisses o fascinava, talvez por
encarnar o viajor inquieto de horizontes inéditos e imprevisíveis[...] coloco-
me entre os leitores que entrevêem em suas inúmeras peripécias
intelectuais, no complexo mosaico de sua trajetória, o significado maior do
texto homérico. Num certo sentido, Haroldo é o personagem central de sua
produção, o Ulisses de uma Odisséia transcultural vastíssima, com
múltiplas entradas e incontáveis saídas [...]. (VIEIRA In: CAMPOS,I. e
TÁPIA, 2006, p. 6, grifos meus).
Trajano Vieira toca em um ponto crucial “Haroldo é o personagem central de sua
produção”. A afirmação traz implicações fundamentais para a análise da obra haroldiana. A
fronteira entre o autor e o eu-poético, instituído nos textos, é vaga, imprecisa, praticamente
indizível, de sorte que o crítico talvez não incorresse em erro se chamasse sempre o eu-
poético de Haroldo. Esse aspecto parece corroborar com o que disse Sarduy sobre a parábola
no texto de Haroldo de Campos: se a escritura é a parábola pessoal do autor, o eu instaurado
no texto poderia ser muito bem o próprio autor, equivaler-se-iam. Daí, mais uma vez, a
confusão entre ambos ser recorrente.
Tomando emprestado o raciocínio de Meyer, podemos dizer que se o autor transcende
o homem, o eu-poético transcende o autor, não porque a identidade não seja possível, pelo
contrário, é absolutamente pertinente; o que se narrado nos versos de AMMR coincide com
a trajetória do poeta, principalmente, pelo resgate que ele faz de seus próprios textos. Mesmo
assim, o eu-poético parece mais denso, porque reúne fragmentos de outros eus, criados por
outros autores e/ou pensadores do mundo. Preferiu-se, portanto, pensar que o eu-poético
espelha o Haroldo-Odisseu, mas é maior do que ele: é o poeta-Odisseu, convergência de
tantos outros poetas, que extrapola os limites de Haroldo de Campos. Se assim não fosse,
deveríamos dizer que todos os eus criados por Haroldo são equivalentes a ele; mesmo que
tênues, há distinção entre cada eu-poético revelado em seus poemas, cada um parece equivaler
ao autor, ao mesmo tempo que é maior do que ele, porque dissolve-se nos recolhos dos textos
náufragos, ou heróicos sobreviventes o cânone –, a partir dos quais o poeta Haroldo de
Campos faz seu paideuma: make it new.
A precisão da imagem poderia conduzir ao abismo, como aconteceu com Narciso;
porém, na leitura que será apresentada a seguir, a precisão da imagem serve como bússola,
astrolábio, Cruzeiro do Sul é a referência que não permite que o leitor se afaste da estreita
via, pois que, ao acompanhar o eu-poético, cujo rosto reflete o de Haroldo, acompanha a obra
haroldiana, a sincronia, e segue os precursores de Haroldo, os outros eus, não como eles são,
de fato, apenas a partir das idiossincrasias que Haroldo de Campos neles cravou.
Em AMMR, o poeta-Odisseu manifesta-se plenamente, narra sua viagem, sua busca,
tecendo os fios da novidade junto aos novelos da tradição que em profusão faíscam pelo
poema e refletem a orientação poético-sincrônica de Haroldo de Campos. Dado o caráter
épico do texto, a viagem é sempre um convite à refacção do percurso do eu-poético, espelho
de Haroldo,arrolado pelo texto; portanto, um convite à imortalidade, não necessariamente nos
moldes dantescos. Em caráter homérico, o poema permanece como espaço privilegiado da
narrativa épica que, entre outras coisas, encena os cinqüenta anos de “atividade poetária” de
seu autor, transculturalmente, antropofagicamente. Não leva ao Paraíso, mas sustenta-se num
eterno regresso à Ítaca.
Quando resgata os autores da tradição literária, quando reconfigura as personae de
grandes nomes da História Sagrada, da ciência, da filosofia, Haroldo de Campos devolve-lhes
à luz. Mais do que deixar seus companheiros de viagem a salvo, ao resgatá-los do passado,
como procuraria fazer Ulisses, Haroldo de Campos mostra-se um Orfeu bem-sucedido, pois
que os traz, de novo, à vida. Sobre isso, comenta Donaldo Schüler:
A epopéia seduz Haroldo de Campos como tradutor e como criador [...] A
sedução que a epopéia exerce sobre Haroldo de Campos não pára em
Signancia quase céu. É o que se no Odisseu reinventado de Finismundo
a última viagem. [ ] Haroldo tira os poetas do esquecimento. Sem o
trabalho dele, alguns deles ainda viveriam na sombra. Não contente com a
busca de informações entre os mortos à maneira de Ulisses, Haroldo mostra
a eleitos o caminho da luz, devolvendo-os, mais exitoso que Orfeu, ao
congresso dos vivos.(SCHÜLER, 1997, p.23,32).
Haroldo-Odisseu, para não perder companheiros pelo caminho, terá que os
reinventar, mostrando-lhes “o caminho da luz” e ao mostrar-lhes o caminho da luz,
atualizando-os, terá que criá-los; terá que criar seus precursores: esta, a sua missão, sua
epopéia, o imperativo categórico de seu olhar e de seu fazer poético. Em AMMR, o eu-poético
reproduz esse comportamento, caminha entoando seu canto e não olha para trás conta o
passado, o que os poetas e heróis viram, mas não volta a cabeça para saber se estes o
acompanham. Esse procedimento de Haroldo, reproduzido na viagem do eu-poético em busca
da explicação para a gesta universal, recupera a ida de Odisseu ao Hades como um rito de
passagem, o poeta vai ao mundo dos mortos, ao porão, porque encontrará as revelações de
que precisa: o aleph, o passado e as profecias. Desse modo, a cada texto, Haroldo de Campos
ritualiza sua viagem e se converte, novamente, no Cosmonauta do Significante.
Como espelho de Haroldo de Campos, o eu-poético segue sempre em frente, em
busca do novo e da novidade; carrega, com seu canto, seu ur-canto, como se verá, aqueles que
o seguem, não por opção pessoal de cada um, mas porque foram convocados para compor o
paideuma haroldiano. Amiúde, o eu-poético se confundirá com seu autor e a essa
ambigüidade pode-se atribuir o caráter paradoxal do poema, com o qual se defronta o leitor:
paradoxo no sentido de experiência extraordinária, paradóxa, que é marcada, na epopéia, pelo
desejo de aventura (BRANDÃO, 2005, p.34) . Em outras palavras: o desejo de aventura pelo
mundo da palavra e pela materialidade do signo poético, que sempre marcou a obra
haroldiana, reflete-se no eu poético de AMMR.
A mitologia haroldiana, contudo, não se resume apenas ao aspecto épico, embora
este seja orientador que direciona a percepção da realidade por parte de Haroldo de Campos,
mas funda-se também na modernidade mallarmeana, na busca do livro como síntese, como
fim e, a essa modernidade poderíamos chamar de anti-epopéia, entendendo anti como estar
em face de, em posição de diálogo (SCHÜLER, apud BRANDÃO, 1992, p.43); ou seja, a
modernidade em Haroldo não se opõe à epopéia, porém conversa com ela, absorve o que ela
tem de mais poético e palpável.
Moderna é a busca do infinito, moderno é o mar que sepulta Odisseu sem
outra lembrança que o sulco rasgado nas ondas pela quilha [...] A exemplo
de um lance de dados mallarmaico, o poema de Haroldo traz as marcas do
naufrágio. Finismundo reúne fragmentos de cantos estilhaçados. O nada
devora os elos construídos outrora pelos rigorosos hexâmetros homéricos. O
vazio [mallarmaico] que mina os alicerces do poema não lembra o efeito
devastador do niilismo contemporâneo, reflete também o naufrágio de
nossas ilusões de grandeza. Conscientes de faltas e falhas cabe-nos
construir o que ainda não existe. A decisão nos faz poetas (SCHÜLER,
1997,33, 37).
Assim, a decisão fez Haroldo poeta, munido de suas mitologias (clássicas) e de
suas obsessões (modernas). Não apenas em Finismundo, mas também em AMMR é preciso
construir o que ainda não existe. Sua busca não poderia ser outra que não fosse barroca o
suficiente para colocá-lo, sempre, diante da cisão de mundos, de jogos de luz e opacidade, de
metáforas tensas e corpóreas, ora tendendo às hipérboles, ora aos hipérbatos, ora a ambos.
Nos textos de Haroldo de Campos, o cultismo e conceptismo fazem-se presentes como
produto do trabalho de um artífice que artificializa a linguagem; como um ourives, vida a
formas mortas, mantém vivas matérias-primas brilhantes, sem perder de vista que o “diamante
industrial” é que mostra o labor do poeta.
Augusto de Campos, em um dos primeiros textos poéticos sobre o Movimento da
Poesia Concreta, afirma acerca das características da poesia do irmão:
Haroldo de Campos é por assim dizer um “concreto” barroco, o que o leva a
trabalhar preferentemente com imagens e metáforas, que dispões em
verdadeiros blocos sonoros. Nos fragmentos de “Ciropédia ou a Educação
do Príncipe” (1952) merece menção o uso especial das palavras compostas,
procurando converter a idéia em ideogramas verbais de som. (apud
CAMPOS, H. 2002, p.34).
Como ressalta o trecho de Augusto de Campos, a leitura de Haroldo exige,
normalmente, a apreensão de um jogo sonoro, metafórico e barroco, que procura capturar nas
palavras compostas e na idéia ideogramática a essência do poeta. Esse é o caso de AMMR,
assim como era o caso de Galáxias, que recupera o barroquismo da poesia haroldiana anteiror
à sua publicação.
Se o épico é característica bastante peculiar de Haroldo de Campos, o mesmo não se
pode dizer do barroco. O barroco é uma marca da literatura na América Latina e consiste
numa tentativa de conciliar mundos, experiências culturais, de produzir uma arte da contra-
conquista, que valore a mestiçagem e a devoração cultural crítica. Como diz Chiampi:
A reapropriação do barroco nos últimos 20 anos deste século, por um setor
significativo da literatura latino-americana, tem o valor de uma experiência
poética que inscreve o passado na dinâmica do presente para que uma
cultura avalie suas próprias contradições na produção da modernidade
(CHIAMPI, 1998, p.3).
Haroldo de Campos, em O Seqüestro do barroco na literatura brasileira, aborda esta
questão de modo instigante, mostrando que ignorar o barroco em nossa literatura é tirar-nos o
rastro de origem, pois nascemos barrocos, ocos de origem e de passado, formados,
sangüineamente, por diversas experiências culturais. Os textos marcados de barroquismo
revelam essa aglutinação. Em AMMR, o que vemos é o fusionismo barroco, seu dualismo e
relativismo operando numa tentativa de conciliar, pelo menos, duas “verdades” distintas: a
científica e a religiosa.
Tanto a épica quanto o barroquismo haroldiano, permeados que são pela modernidade,
serão apresentados ao longo da leitura do poema. É possível que ambos merecessem um
destaque maior neste momento, porém, estender-se neles significaria adiar, ainda mais, a
leitura do poema, por meio da qual, tanto um quanto outro aspecto serão recuperados com
freqüência. A despeito de ambos, muitas outras marcas definem o estilo, as mitologias e
disparam as obsessões do poeta Haroldo de Campos, delineando sua obra constelar. E porque
é constelar e galáctica, não é possível aprofundar-se nela sem causar acentuados desvios de
rota. Por isso, a partir de agora será o percurso do poeta de AMMR que norteará este trabalho,
para evitar que a sua jornada se dissolva.
PARTE II: A MÁQUINA DO POEMA
CAPÍTULO 1: O CICLO PTOLOMAICO
II.1.1 Algumas palavras sobre o Canto I
O presente capítulo refere-se ao Canto I do poema AMMR. Neste Canto, o poeta
estabelece diálogos com a tradição literária, sobretudo com Dante, Camões e Drummond.
Também ecoam, pelo texto, Homero, Guimarães Rosa, Jorge Luis Borges, dentre outros. Os
diálogos não são lineares, surgem simultaneamente no texto; quer dizer, um mesmo
significante, ou uma mesma metáfora podem remeter tanto a Dante quanto a Drummond, por
exemplo. A linearidade da linguagem, porém, impede que se trate de todos ao mesmo tempo.
Assim sendo, a leitura analítica do Canto I é apresentada por etapas: em primeiro
lugar, os diálogos com Dante; depois, com Camões e Homero, em seguida, m Rosa e
Drummond; os outros autores do cânone surgem pontualmente e são comentados conforme
aparecem no texto. Essa advertência em relação à leitura é importante, pois o leitor deste
trabalho, certamente verá, logo nos primeiros versos, as marcas da tradição literária brasileira:
adiar os comentários sobre ela tem a função de mostrar o caráter palimpséstico do texto
haroldiano, ressaltando que as diferentes obras do cânone vão se sobrepondo ao texto,
primeiro em camadas, depois, amalgamando-se, para se tornarem um elemento a
linguagem poética haroldiana.
A cada momento é preciso retomar o caminho para apontar paisagens que
“aparentemente” não foram percebidas. Além disso, ao se mencionar a tradição literária
brasileira apenas ao final do capítulo, indicando que, desde os primeiros versos, ela esteve
presente, sinaliza-se que a referência do eu-poético é a sua tradição, como disse Sarduy, a
parábola haroldiana retrata um espaço vasto e barroco como o mapa de nosso país (SARDUY,
in: CAMPOS, H. 1979, p.125) .
Mais do que na leitura dos outros cantos, apresentada nos capítulos seguintes,
procurou-se sublinhar, neste capítulo, a grande importância da organização significante,
inclusive porque, ao que parece, no Canto I, o poeta começa sua jornada mergulhado na
poeticidade que recupera da história literária. Nos demais cantos, a ela somam-se os jogos
intelectuais e temas da física, que obliteram, parcialmente, a exacerbação significante, porque
desafiam a erudição do leitor.
O Canto I é a dura passagem pelo Inferno. Os diálogos são difíceis, as hipérboles
transbordam densas e viscosas, violentas, como se para o eu-poético viajor fosse necessário
reviver o enfrentamento das feras dantescas, do mar tenebroso de Vasco da Gama, do sertão
de veredas como lugar de encontro consigo mesmo e acabasse, por fim, contagiado pela
acídia drummondiana. O movimento de leitura do Canto I reflete, possivelmente, o
desassossego que acompanha o eu-poético, ansioso para encontrar o seu caminho.
Quisera como dante, quisera como o gama, quisera como o itabirano são os desejos
manifestados por ele; à medida que caminha, percebe que sua travessia se constrói com as
pedras e o sal do mar que Dante, Camões, Drummond e os outros deixaram remanescer.
Como Dante buscou Virgílio, há, no Canto I, uma tentativa de encontrar guias de viagem. No
caso de AMMR, encontrá-los significa refazer os percursos poéticos desses mentores, não
como estes os fizeram, apenas como um eu-poético haroldiano poderia fazer: fundindo-os à
sua linguagem labiríntica.
II.1.2. A máquina do poema é cosmogônica e regida por um
Movedor Imóvel: o poeta
O poema AMMR é um poema cosmogônico
15
, ou seja, entrevê-se, ao longo da
estrutura textual, uma preocupação em explicar a origem do Universo. No Canto I,
prevalecem as explicações relacionadas à religiosidade, por meio da retomada sincrônica de A
Divina Comédia e de Os Lusíadas, principalmente, uma vez que a outra forte presença, que é
a drummondiana, retoma ambas. A visão dantesca e a camoniana apóiam-se em uma
concepção de mundo ptlomaica, que advém, por sua vez, das idéias aristotélicas, amplamente
usadas pela Igreja. Antes de Aristóteles e Ptolomeu, porém, Platão (428-347 a.C.) foi o
primeiro a propor um mundo regido por um demiurgo.
Platão preocupava-se em descrever, racionalmente, a complexidade dos fenômenos
planetários por meio de movimentos circulares simples; o círculo é uma figura geométrica
perfeita e os movimentos circulares só poderiam, portanto, ser obra de uma inteligência divina
perfeita. O deus platoniano era bem distinto dos deuses antropomórficos dos gregos antigos e
sua ação organizaria o mundo, de modo que o Universo refletisse essa mente divina
(GLEISER, 2006, p. 65). Um outro aspecto interessante na obra platoniana diz respeito às
considerações feitas sobre o Hades, onde as almas se defrontam, segundo Platão e outros
pensadores gregos, com o juízo final. Esse aspecto encontra-se no Timeu e no Livro X de A
República.
15
Entende-se aqui cosmogonia comoestudo da origem do Universo”; e cosmologia como “estudo da evolução
das propriedades físicas do Universo”. (Cf. GLEISER, M. A Dança do Universo. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2006, p.386).
A descrição da “máquina do mundo” feita por Platão fala de um grande fuso, oito
rocas ocas, sobrepostas, seguras por uma Sereia, que entoa um canto de uma nota. Trata
também das três filhas da Necessidade, que cantam o passado, o presente e o futuro e do ritual
pelo qual as almas passam, sendo julgadas de acordo com suas ações. Algumas m o direito
de escolher o que querem ser na outra vida (pois Platão acreditava nisso). Podem escolher ser
qualquer coisa, animal, ser humano, enfim, o que desejarem, segundo seus méritos. Depois de
feita a escolha, passam pelas rocas do passado, presente e futuro, para tornarem irrevogável o
destino escolhido. Em seguida, atravessam a planície do Letes, bebem a água do rio e perdem
a memória. Duas coisas são importantes nessa descrição: em primeiro lugar, as ações dos
homens são julgadas e o comportamento correto é bem sancionado; em segundo lugar, a alma
é imortal. (PLATÃO, 1999, p. 345 –352).
Depois de Platão, outros filósofos e astrônomos estudaram o sistema planetário, mas
foram as idéias aristotélicas que ganharam o maior reconhecimento e aceitação. Segundo
Gleiser (2006, p.65), as concepções de mundo de Aristóteles (384 -322 a.C.) mantiveram-se
por um longo período (do sec. IV a.C. sec. XVII), devido a sua abrangência, lógica e
simplicidade e, fundamentalmente, pela apropriação de suas idéias pela Igreja Católica, a
partir do século XIII. Para Aristóteles, o mundo era regido por um Movedor Imóvel,
responsável por comandar os movimentos dos corpos celestes do exterior, ou seja, do ponto
mais distante em relação à Terra, a qual permanecia imóvel no centro.
Depois de Aristóteles, Hiparco (190-126 a.C.) aprimorou um modelo de epiciclos
16
,
que havia sido estudado antes do surgimento das idéias aristotélicas e, por fim, Ptolomeu
(85-165 d.C.), com base nas contribuições de seus antecessores para o pensamento
astronômico, desenvolveu uma proposta em que complexa maquinaria, rodas e mais rodas,
regidas pelo Movedor Imóvel, colocariam o Universo em movimento ao redor da Terra, que
estaria no centro. Para Ptolomeu, estudar os céus era uma forma de transcendência, pois o céu,
segundo a visão ptlomaica, espelhava a inteligência divina (GLEISER, 2006, p. 80). Como se
sabe, a visão de mundo de Ptolomeu dominou o pensamento da humanidade por um longo
período, notadamente do século II d.C., quando foi proposto, até o final do século XVI,
introduzidas apenas algumas modificações pelos árabes (GLEISER, 2006, p.72) e
desconsiderando-se um espaço de tempo em que ficaram mais ou menos “adormecidas”
(ibid.,id).
16
O melhor modo para visualizarmos um epiciclo é por intermédio de uma analogia com uma roda gigante [...]
ao invés de balançarem suavemente, as cadeiras podem girar completamente, de modo que a cabeça do
passageiro descreva um círculo completo[...]. Com a roda principal e a cadeira girando, a cabeça do passageiro
descreverá uma curva espiral”. (GLEISER, M., op.cit., p.77).
No poema dantesco, são essas as idéias prevalecentes, acrescentando-se apenas que o
Universo aristotélico dividia-se em duas partes, uma, sublunar, composta por ar, fogo e água;
e outra, celestial, composta por éter, em relação ao qual o movimento mais natural é o
circular. Tal divisão de mundos, certamente, foi bastante útil para a Igreja na Idade Média,
pois servia de parâmetro para o claro estabelecimento do lugar de Deus e dos homens. É
importante pensar, em termos da Comédia
17
de Dante, como exatamente se distribuíam os
elementos por esse Universo, que essa distribuição irá delinear a viagem do poeta italiano
pelo Inferno, Purgatório e Paraíso.
A cosmologia dos tempos de Dante, tirando proveito das idéias de Aristóteles e
Ptolomeu, descrevia o globo terrestre como uma esfera imóvel no espaço, constituída de uma
parte sólida (setentrional) e outra marinha (austral), em cujo centro estaria a montanha do
Purgatório. O Inferno ficaria abaixo da crosta. O hemisfério superior ia do Rio Ganges, na
Índia, ao rio Ebra, na Espanha o que correspondia ao arco solar dos equinócios, da aurora e
do ocaso. Ao centro, na posição do Sol ao meio-dia, estava a cidade de Jerusalém, à qual
correspondia, no hemisfério inferior, a montanha do Purgatório. Em volta da Terra circulavam
as estrelas móveis (a lua e os planetas) e, acima delas, o céu de estrelas fixas, o éter e Deus.
A viagem dantesca
18
está, portanto, assentada sobre as bases do pensamento
aristotélico, como mostra Mauro (In: ALIGHIERI, 1998, p.18), mas também se refere à visão
platoniana, porque, em seu texto, Dante dialoga com Virgílio e este retoma o modelo de
Platão. Tal sobreposição de visões de mundo, por si só, indica a complexa rede de relações
sobre a qual o texto haroldiano se apóia: não são apenas os poetas do cânone que surgem,
apresentados pelo eu-poético, mas os poetas que os poetas do cânone leram precursores dos
precursores.
O Canto I do poema de Haroldo de Campos é chamado de Ciclo Ptolomaico. No
primeiro verso do poema, é estabelecido o diálogo com Dante, “quisera como dante em via
estreita” e, a partir daí, num jogo paronomástico, permeado de palavras compostas, como
ideogramas, o poeta laboriosamente articula a linguagem. AMMR, ou a máquina que repensa
o mundo, para usar expressão de Pires (2006), põe-se a funcionar, invocando a tradição do
sacro magno poeta.
II.1.3. O sacro magno poeta e as estrofes iniciais de A Máquina do
Mundo Repensada
17
O termo “divina” não foi atribuído à Comédia por Dante, mas por Bocaccio.
18
Dante Alighieri viveu entre 1265 -1321 d. C. A Divina Comédia foi escrita, provavelmente, entre 1307 e 1321
d. C.
AMMR é um poema dividido em três cantos, composto de 152 estrofes mais uma
coda de um verso único. As estrofes são uniformes e isométricas, e, praticamente,
isorrítmicas, que os ictos apresentam pouca variação, recaindo, na maioria das vezes, na
e na 10ª sílabas, com algumas variações de versos em que os ictos recaem na ou na
sílabas. São ao todo 457 versos decassílabos: 40 estrofes no Canto I; 39 no Canto II e 73 no
Canto III. As rimas finais são preponderantemente perfeitas, embora as toantes também
ocorram, em especial, nos Cantos II e III.
Todo o poema é composto em terza rima, exatamente a mesma estrutura utilizada
por Dante em A Divina Comédia: aba/bcb/...nxn/n, e assim sucessivamente, o que remete ao
mistério da Trindade, ou à escalada ascensional de Dante rumo ao Paradiso, passando por
Inferno-Purgatório-Paraíso (OLIVEIRA, 2004, p.46). Como bem pontua Pécora, em seu ensaio
Big Bang: Sublime e Ruína:
esses versos têm como principal virtude o transporte contínuo da rima – que
cria, sucessivamente, expectativas para o seu remate na estrofe seguinte – e,
ainda, a forte pontuação lógica de cada uma delas (...); terza rima é uma
forma eminentemente técnica que funciona com craques; e Haroldo de
Campos, evidentemente, é um deles”. (PÉCORA In: MOTTA, 2005, p.103).
Além disso, a terza rima atua como suporte da informação estética e cumpre função
de lastro; o poeta caminha por um labirinto e o suporte contínuo da rima parece assegurar que
ele não se perca, atuando, de fato, como um fio de Ariadne. Não se deve, entretanto, criar a
ilusão de que a forma fixa serve aqui como “lirismo comedido”; é antes um mote para deixar
vir à tona, hiperbólica e barrocamente, “o lirismo desvairado”, “difícil alvorada”
19
.
Mais fortemente ainda do que em Lamento Sobre o Lago Nemi, a ordem
decassilábica e a estrutura isostrófica do poema são, segundo o próprio Haroldo de Campos,
perturbadas pelo hipérbato, que corrompe a fluência normal dos versos, ao enfatizar alguns
aspectos que depois são trabalhados fonicamente: “sintaxe de abismo que margeia o
indecidível” (CAMPOS, H. 2002., p.64). O hipérbato pode ser observado em suas diferentes
manifestações, tais como o uso de sinais parentéticos que intercalam expressões, anacolutos,
sínquise, inversão violenta também utilizada por Camões em Os Lusíadas. Por fim, deve-se
destacar que são freqüentes as elipses e as bruscas interrupções dos versos.
O trabalho fônico, nos versos polirrimos, desenha uma multiplicidade de rimas que
parecem combinar-se de forma diferente, porém com a sutileza das combinações de um
caleidoscópio: o novo a partir do existente, rotacionando signos palpáveis pelo corpo do
19
Cf. HOLANDA, S. B. Difícil Alvorada in: O Espírito e a Letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
poema-máquina. Os olhos e os ouvidos do leitor precisam estar atentos, pois a apreensão do
poema não dependerá unicamente da disposição das palavras nos versos e jogos conceptistas,
ancorados na terza rima, mas também na profusão cultista das “imagens sonoras”: aliterações,
assonâncias, rimas em eco, leoninas, amiúde, opulentas, que delineiam mosaicos sonoros.
Quisera como Dante: estas as palavras iniciais do poema de Haroldo de Campos.
Dante é, sem dúvida, um marco para a jornada de um poeta que valoriza o passado como uma
das formas de escolha do presente, pelo que o poeta italiano representa em termos de
referência e aporte na história literária. Ao retomá-lo, o eu-poético de Haroldo de Campos
sinaliza ao leitor o que pela frente: que o caminhar do poeta, no poema dantesco, é a
questão central, ao invocar Dante, a travessia também se transforma na pedra angular do
poema haroldiano.
Para Dante, “homem-síntese” do pensamento medieval (FRANCO Jr., 2000), o
homem tem um lugar restrito em Universo criado por Deus, essência do bem, da verdade, da
justiça. A Comédia pode, por isso, ser vista como um livro que se propõe a salvar a
humanidade, à medida que mostra a árdua caminhada até o Paraíso, lugar a que todo cristão
aspira chegar e a deslumbrante experiência que tal chegada propicia. O sentido primeiro da
palavra comédia é derivado do grego, komós e significa comunidade assim, ao escrever
komós, Dante pretende dirigir-se aos homens para lhes indicar que a salvação se processa
pela graça divina
20
. A beleza da Comédia é mostrar que, ao contrário de julgar os homens, o
poeta, guiado por Virgílio, compadece-se deles e, simpático à sua dor, entende que, talvez,
pudesse incorrer nos mesmos erros o eu-poético dantesco é humano, demasiado humano
(DISTANTE In: ALIGHIERI, 1998, p.13).
A caminhada do eu-poético, que está no limiar do século XXI em AMMR, não se
restringe ao resgate da concepção de mundo dantesca, mas à reatualização, em termos
sincrônicos, de sua visão de mundo, considerando-a no espaço palimpsesto de seu texto, como
possível chave para sua própria procura: o nexo, o nex.
Muitas são as convergências da obra haroldiana em direção à obra de Dante. Em
Signancia quasi coelum, signancia quase céu, de 1979, o poeta traz a pirâmide dantesca para
o seu texto, dialogando com ela e, ao mesmo tempo, subvertendo-a, invertendo-a, como
mostra João Alexandre Barbosa no prefácio do livro; mas a forma usada na composição do
poema não é fixa. Em AMMR, o diálogo é estabelecido também no que concerne à forma, a
20
“[o] título deve-se ao fato de a comédia, explica o próprio Dante numa carta a um de seus mecenas, ser um
gênero em que a estória começa dura, áspera, e termina bem, ao contrário da tragédia”. (FRANCO Jr. Dante
Alighieri: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p.64).
terzina. Além disso, assim como Dante evoca Virgílio, o eu-poético evoca toda uma tradição
literária para acompanhá-lo nessa jornada, em que procura estabelecer os limites, ou ainda, os
parâmetros de uma viagem. Ao voltar aos textos da tradição em seu poema, Haroldo de
Campos reencontra e recria uma imagem poética do mundo, ancorada na história do
pensamento humano, que o pensamento poético recria e transfigura. Ao começar por Dante,
Haroldo começa como Dante. Diz-nos João Alexandre Barbosa:
A esperteza de Dante é ter feito Virgílio o seu guia: o florentino começa
sob a égide da linguagem de uma tradição cujos destroços ele agora
consolida [ ] A Comédia é Divina porque foi possível fazer do discurso
poético um limite extremo, entre doutrina e crônica, para onde é levado o
leitor sem perda de sua consciência crítica. [ ] Dante não somente narra a
sua viagem mas transforma-a num espaço em que, lendo a tradição greco-
latina, produz uma reflexão sobre o seu modo de deslocamento/
transposição: a sua linguagem. Viagem e linguagem, portanto, não são mais
do que instâncias de uma única operação extrema, aquela que se estende
entre Inferno e Paraíso. (BARBOSA, 1979, p.12).
AMMR impõe ao leitor a consciência crítica mencionada, que acompanhamos o
poeta em sua viagem-leitura da tradição-travessia, e, portanto, somos também leitores dessa
tradição, de sua linguagem; não apenas daquela presente no poema haroldiano, mas daquela
pregnante e desveladora de múltiplos significados, acumulados ao longo do tempo, de modo
que a História aparece, no texto haroldiano, não apenas como referência e baliza, mas como
aparato do próprio tempo da linguagem poética, inesgotável palimpsesto.
O poema de Dante
21
é rico nos jogos sonoros. As traduções de Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Ítalo Eugênio Mauro procuram contemplar esse aspecto. Em
AMMR, tais os jogos sonoros especulares estão presentes, em dança paronomástica. Desde as
estrofes iniciais, a preocupação em articular os significantes e o significado faz-se presente.
Assim inicia o poema de Haroldo de Campos:
1) quisera como dante em via estreita
21
Haroldo de Campos dialoga, especificamente, com os seguintes fragmentos do texto de Dante: Inferno,
original e tradução de Augusto de Campos (I, 1-60); Purgatório, XXIX, 106-120; XXX, 22-27; 55-81; Paradiso,
XXXIII, original e transcriação de Haroldo de Campos. Sobre esses fragmentos da Comédia:
Cf. CAMPOS, A. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: ARX, 2003, p. 189 -223.
Cf. CAMPOS, H. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 67 – 160.
Cf. ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Trad. MAURO, I.E. Edição Bilíngüe. São Paulo: Ed. 34, 2004.
extraviar-me no meio da floresta
entre a gaia pantera e a loba à espreita
O primeiro verso revela, logo de início, o desejo do eu-poético de trilhar um caminho
como Dante trilhou, ainda que este caminho seja inóspito, pois é sabido que a viagem
dantesca tem um início ruim, mas um final deslumbrante. Entretanto, ao que tudo indica, não
é exatamente o que ocorrerá: quisera - este é o orientador de leitura que mostra que a jornada
do poeta em AMMR será diferente, afinal, não se trata do caminho dantesco, mas da travessia
do eu-poético haroldiano.
A sonoridade do poema explode em opulências, fazendo ecoar os passos do poeta,
ouvidos (estreita, extraviar-me, floresta, espreita) em festa sibilante. As rimas internas e as
finais garantem esse jogo paronomástico que inclui, também, as rimas toantes em
quisera/floresta e floresta/pantera; o parentesco sonoro entre DANTE e pANTEra. Impossível
não pensar no efeito visual da Loba dentro de fLOresta, o mesmo valeria para pantERA e
floREstA, porém com inversões.
É preciso ressaltar a heterofonia entre estreita e floresta, que são toantes, mas com
uma diferença quanto à pronúncia aberta ou fechada da vogal /e/. Além disso, assonância
do /a/ e do /e/; a sonoridade de gaia, em especial, indica abertura e fechamento e pode sugerir
o próprio rugido da pantera. Toda a estrofe, enfim, é compostas de rimas graves, masculinas e
interpoladas, sob os andaimes dos decassílabos, orquestrados por enjambement, como a
própria história da tradição, espiral-movente, proposta pelo poeta. Com pequenas variações
das rimas, que poderão se femininas e agudas em alguns momentos, os decassílabos e o
enjambement manter-se-ão ao longo do poema. A máquina do mundo põe-se a girar,
engrenada (engendrada) pela matéria significante do poema. Os sons da terza rima precisam
ser solidários para garantir certo equilíbrio, ou ainda, o lastro.
A segunda estrofe, a seguir destacada, não difere muito da primeira no que concerne à
estrutura das rimas masculinas, interpoladas e graves e reitera alguns jogos sonoros da
primeira estrofe:
2) (antes onça pintada aquela e esta
de lupinas pupilas amarelas)
neste sertão - mais árduo que floresta
Observe-se a heterofonia de antes/esta, neste/floresta. A abertura da vogal /e/ que
estava em quisEra, pantEra, florEsta está em aquEla e amarEla, que rimam consoantemente
entre si e toantemente com floresta e pantera, por exemplo. Vale ressaltar o espelhamento de
nESTe Ser/Tão, indicando que o sertão pode estar dentro do próprio sujeito poético,
intensamente.O som sibilante continua a ser percebido, mas é invadido pela construção
barroca de lupinas pupilas amarelas, cujo surgimento repentino é reforçado no plano
significante, porque aparece como um hipérbato, entre parênteses, a perturbar a caminhada do
poeta.
Todo o diálogo com Dante pressupõe o exercício de leitura do texto barroco. E o
termo barroco é aqui empregado, não no sentido de pérola deformada, embora as metáforas
deformadas e demais procedimentos sugiram isso, mas segundo a acepção desse termo
conforme o utiliza Sarduy ([s.d.], p. 30), ao indicar que a palavra barroco compõe o léxico do
joalheiro, sugerindo não mais o natural imperfeito, mas o artificial, o elaborado com rigor e
paciência de ourives.
A paciência de ourives, certamente, lapidou a imagem da loba, belíssima e repleta de
significado sonoro; o /i/ em lupinas e pupilas descreve o próprio olhar arguto da loba que
explode no amaRElAs, espetáculo toante que recupera pantERA e alude à fERA; nesse
conjunto, além da sonoridade, impera a plasticidade, visível, também, na cor amarela da pele
da onça. Esta é introduzida no verso anterior, em substituição à pantera, com o intuito de
trazer, para o topos brasileiro, a fera dantesca
22
. Sobre as feras, explica Alcir Pécora:
No início da primeira parte, Inferno, Dante postou três animais a impedi-lo
de seguir pelo reto caminho (Vera vereda) e obrigando-o a meter-se na
brenha escura: a pantera ([...] sensualidade e lascívia); o leão ([...] soberba);
e a loba ([...] avareza e cobiça). (PÉCORA, 2005, p.103)
A apresentação das feras está profundamente ligada ao trabalho de arquitetura do
poema, como aponta Mauro:
[...] a arquitetura da Comédia se assemelha perfeitamente a de uma catedral
gótica traçada com absoluta racionalidade geométrico-matemática, como de
resto ocorre sempre quando se trata de arte simbólica. Tudo na Comédia é
subdividido e organizado com lógica conseqüência [...]. (MAURO, In:
ALIGHIERI,1998, p.12).
22
Tanto a onça quanto o sertão “lançam a suspeita” de que o eu-poético gostaria de caminhar como Dante, mas
caminha como simulacro de Haroldo, levando consigo as referências brasileiras. Esse aspecto, conforme a
advertência feita no início do capítulo, será retomado, mais adiante.
Como explica Franco Jr, “sua arquitetura literária é simples nas grandes linhas,
complexa nos detalhes, rigorosa na composição ( 2000, p.64); a tríade das feras ecoa a
estrutura triádica do poema. Deve-se dizer que o texto haroldiano é análogo ao dantesco,
porque reproduz as características acima citadas. Ao final da segunda estrofe, o deserto
presente no Inferno (I, 29), transcriado por Augusto de Campos, apresenta-se, no poema
haroldiano como sertão mais árduo que floresta. A terceira estrofe inicia-se pela continuidade
à brusca interrupção do verso anterior (aposiopese) e configura também uma exacerbação do
hipérbato, pelo uso da sínquese, ou seja, confusão causada na fluência sintática: o sertão é
mais árduo que floresta ao trato e é sertão de veredas.
3) ao trato – de veredas como se elas
se entreverando em nós de labirinto
desatinassem feras sentinelas
As mais instigantes paronomásias da terceira estrofe são as vibrantes em trato e
entreverando e, mais suavemente, em veredas, labirinto e feras. De início, as vibrantes
sugerem mesmo o árido sertão, são as pedras no meio do caminho do poeta, nas quais ele,
embora tropece, sôfrego, tenta prosseguir. Embora as pedras estivessem presentes nas
estrofes iniciais, a introdução do sema /sertão/ é que faz com que o leitor se atente a elas e
retome o estreita, extraviar-me e espreita da primeira estrofe e percebendo, pela redundância
da repetição, a aridez do caminho. Como ensina o próprio Haroldo de Campos: “realmente, a
extrema redundância (repetição), fugindo à normalidade da expectativa, acaba se convertendo
em fator surpresa e gerando informação original” (1998, p.22), ou ainda, alegórica, porque:
A alegoria serve para demonstrar (ad demonstrandum), pois evidencia uma
ubiqüidade do significado ausente, que vai se presentificando nas partes e no
seu encadeamento no enunciado [...] O que aproxima a alegoria da metáfora
é [ ] a estrutura comum das operações com tropos no enunciado (HANSEN,
2006, p. 31)
23
23
Para alguns críticos, uma diferença entre alegoria e metáfora dada, principalmente, pela dificuldade de
entendimento da primeira, pelo distanciamento que pode ter do significado; e da facilidade de entendimento da
segunda, por ser mais simples e estar mais próxima do referente. Eliot diz que “a metáfora não convive bem com
a alegoria” (apud: CAMPOS, A. 1997, p.179) e que as imagens dantescas são visuais e metafóricas, muito mais
do que alegóricas. Aqui não se entrano mérito dessa questão. O que importa, neste trabalho, é a discussão do
poema haroldiano, que é metafórico, alegórico, artificializado, como revela o barroquismo de lupinas pupilas
amarelas, por exemplo. Em AMMR, ainda que não sejam parte da composição da alegoria do texto, as metáforas
não são simples.
Por isso, não se pode deixar de considerar a profusão de aliterações em /p/, não
em lupinas, pupilas, mas em variopinto e pêlo, em /t/ em floresta, pantera, estreita, neste,
sertão, desatinassem, labirinto, sentinela, variopinto, tinto e em /b/, com menos intensidade,
como um processo de alegorização, pela redundância e porque evidencia a ubiqüidade do
significado ausente. Tudo isso revela o trabalho criativo, medido, pensado de Haroldo de
Campos e traz à tona um outro aspecto muito importante para a compreensão da alegoria: a
presença obliterada da sinédoque, pois os ruídos aliterantes são parte das feras. Explica
Hansen:
Estatisticamente, o tropo consiste no emprego de um termo estranho à
significação do contexto verbal imediato [...] Isso não deveria significar
hoje, que o tropo seja um no lugar de um 1º, como pensaram os clássicos
perspectivizando a linguagem como se ela tivesse profundidade. No texto
que opera com tropos, ocorre uma correlação de campos semânticos
simultâneos: não nenhuma profundidade ou perspectiva profunda no
discurso da poesia moderna [...] A alegoria põe em funcionamento duas
operações simultâneas. Como nomeação particularizante de um sensível ou
visível, opera por partes encadeadas num contínuo, como referência a um
significado ausente opera por analogia, através da alusão ou substituição.
Isso é possível desde que uma sinédoque [...] tem a extensão de seu campo
nocional diminuída ou mesmo apagada (HANSEN, op. cit, p.36).
Ou seja, mais do que metáforas, os ruídos são alegorias. A citação acima lembra, de
imediato, a função poética jakobsoniana e o princípio de projeção do eixo paradigmático sobre
o eixo sintagmático, fazendo com que toda metáfora e metonímia amalgamem-se no discurso
poético. Em um discurso poético barroco como é o de AMMR, em que a artificialização e os
jogos de linguagem (cultistas e conceptistas) prevalecem, esse aspecto fica ainda mais
evidente, como revelam as estrofes mencionadas e a 4ª estrofe a seguir apresentada:
4) barrando-me hybris-leoa e o variopinto
animal de gaiato pelo e a escura
loba – um era lascívia e a outra (tinto
Assim como acontece com a aliteração destacada, forte assonância que vem
crescendo desde o início do poema e se intensifica na 4ª estrofe entre /os/ e /as/ como se fosse
o ruído assustador das feras sentinelas. Feras sentinelas soltas pelas sibilantes de
desatinassem, feras, sentinelas, escura. Para que o eu-poético possa extraviar-se como Dante,
afastando-se da vera vereda, terá de passar pelas feras sentinelas, pelo jogo sonoro que invade
o caminho que ele percorre, não entre sibilantes e assonâncias, mas pelas laterais: leoa,
loba, pêlo, lascívia, índices de que o caminhar será marcado por novo ritmo.
O eu-poético vai adentrando o árduo sertão, tropeçando nos significantes do meio do
caminho até chegar (1º verso da estrofe) à hybris leoa. No texto de Dante é o leão,
simbolizando a soberba, que aparece diante do poeta; em AMMR, surge a leoa e entre ela e o
leão parece haver uma diferença: é a pulsão erótico-criativa que a leoa evoca. A figura da leoa
aparece em outros poemas de Haroldo de Campos, sempre em sentido de hybris, exacerbação,
e sempre relacionada à linguagem ou ao poema. É o caso, por exemplo, de Thálassa,
Thálassa, de 1951:
6.
- Tu, Deusa-Leoa
Ó morte de esporões de bronze
- Morte marítima, não essa de Sete Palmos de terra...-
Ergue o tridente de ouro, favorece
Também os alísios do Poema.
Virgem barroca, figura
Na proa dos navios
Sacode a cabeleira abissal perfumada de pólipos
Quando o Mar almirante te empolga e o tatuas no peito
Com o esqueleto de coral de todos os seus mortos.
Sustém a andança do Poema, ó Favorita,
De fúnebre nudez sitiada por eunucos
Enquanto sobre Ti os dátilos claros como digitális
Se abrem
E nada à Tua ilharga o cardume aguerrido dos delfins.
- E Tu, Árvore da Linguagem
Mãe do verbo
Cujas raízes se prendem no umbigo do Mar
Ergue tua copa incendiada de dialetos
Onde a Ave-do-Paraíso é um Íris de Aliança
E a Fênix devora os rubis de si mesma.
Recebe este idioma castiço como um ouro votivo
E as primícias do poema, novilhas não juguladas
Te sejam agradáveis!
Tu, Mãe do Verbo cercada de hespérides desnudas,
Cuja fala é sinistra qual a voz dos Oráculos,
E bífida como a língua dos Dragões.
A Deusa-Leoa surge aqui como protetora dos navios (na proa dos navios /sacode a
cabeleira), portanto, da travessia dos poetas e, ao mesmo tempo, como copas de árvores,
grande e densa, é sua juba incendiada. Essa deusa-linguagem nasce do umbigo do mar e
parece cruel, sua fala é sinistra e a ela devem ser oferecidos sacrifícios. Na mitologia grega,
relatos de leoas aladas, com cabeças de mulher; são monstros cruéis e temíveis. Também a
figura da esfinge está associada à leoa: um monstro meio-mulher e meio-leão devora aqueles
que não descobrem seus enigmas
24
. Lembremo-nos aqui da aproximação entre enigma e
alegoria, entendida esta, como foi dito, tanto como ornamento, pelos jogos sonoros que
reforçam a ubiqüidade do significado ausente, quanto como sinédoque do pensamento que
surge para desafiar o leitor (LAUSBERG, 1993). Essa leoa cruel e enigmática, alegórica,
pode ser vencida pela sagacidade intelectual, que a linguagem é capaz de revelar parece que
é possível associar esta fera à Deusa da Linguagem do poema acima e, também, à hybris-leoa
de AMMR.
No poema acima, a alegoria do mar e dos navios, discutida, surge com força
hiperbólica e não devemos nos esquecer de que o mar é uma das mitologias de Haroldo de
Campos. O poeta oferece as primícias do poema/ novilhas não juguladas para essa deusa-
leoa. Essa oferenda bíblica é exatamente o que permite a Sarduy falar em parábola
desmesurada em Haroldo de Campos. A leoa também aparece, em associação com a
linguagem, no poema abaixo, que está em Signancia, livro de 1979:
crisântemos
24
Cf. as informações sobre o significado simbólico da leoa podem ser verificadas no verbete esfinge” em
CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. A
esfinge grega é a criatura monstruosa e alada, metade mulher, metade leão, difere, parcialmente da esfinge
egípcia.
escritura solar
na sala
in)
o bloco de cristal
ex)
vaso
animal
leonáceo
o corpo da
cor
ex/
im/
plode
em curvos
ganchos
grifos
amarelos
rufos/jubas
surda-
muda
grafia alumiando
Talvez seja possível associar essa imagem da leoa, recorrente na obra haroldiana, à
deusa egípcia Sekhmet, que tinha cabeça de leoa e foi convocada pelo deus para castigar a
humanidade por sua desobediência. A deusa, muito cruel e sangrenta, acabou por exterminar
várias pessoas e teve que ser embebedada pelo próprio deus a fim de que parasse com a
mortal batalha, ou seja, as atitudes da deusa estão sempre na desmedida (HAMILTON, 2005,
p.247). O poema abaixo, publicado em Signancia quasi coelum signancia quase céu poderia
corroborar essa sugestão
25
:
o olho de Ra
diante dele
as coisas
o aspecto
cintilado
das
tira com a mão essa nuvem
catarata azul
de tão
branca
e ele provê:
seu pólen
afogueia
o não das
coisas
aguardas
coxiaberta
brunida leoa
de basalto
o aguilhão
libélulas
eletrizam
25
Neste poema, como se verá a seguir, a menção de “ruiva” e “verde” e “branca” não deixa de sugerir
as mulheres representantes das virtudes teologais dantescas (fé, esperança e caridade), ainda mais
porque João Alexandre Barbosa aproxima os textos de Signancia quase coelum à Divina Comédia, ou
seja, reforça-se, nesse sentido, não somente a presença da imagem da leoa na obra haroldiana, mas a
forte presença dantesca, conforme se mencionou. Signancia foi publicado em 1979 e reúne textos
anteriores a esse período.
o ar
citrino
as asas
do arcanjo
sete
se fecham:
cláusulas
no orbe
ruivo
das formigas
impera
formicaleão
nervuras
de folha
o escudo
ágata
do inseto
o lápis tudo
colitera
exfoliando letras
no papel
erecção de signos
natura naturante
aqui se
tinge um
verde de
pupila
animal
Essa deusa, entretanto, representa também pulsão de sexualidade, paixão e é protetora
dos médicos, trazendo a cura pelos males que causou. Diante da erudição do poeta e da
reiteração desta imagem como fera, que precisa ser domada, e como o mal que traz a própria
cura, a idéia de que a deusa representa a linguagem vem à tona, ainda mais se for recuperado o
fragmento de Thálassa, Thálassa, acima mencionado. O poeta é, portanto, escravo da
linguagem e é por ela libertado, a linguagem escrita é grafia alumiando seu caminho.
Sob a perspectiva da imagem da leoa e de seu significado alegórico, os poemas
apresentados estão em relação dialógica com a AMMR; reitera-se, destarte, além do cânone, a
obra haroldiana e ela se funde aos precursores recriados ao longo da jornada. Não parece
difícil perceber o caráter metalingüístico que une os textos: poema, grafia, escritura solar,
papel. O enfrentamento dos males que se colocam diante do poeta, em AMMR, passa pelo
enfrentamento da linguagem; para avançar em sua busca, o poeta terá que domar a hybris
leoa, mãe do verbo. Essa leoa surge nos poemas haroldianos marcada de erotismo, como
atestam, por exemplo, os seguintes versos: coxiaberta/ aguarda o aguilhão, ereção de signos,
entre outros aspectos. Para Haroldo, o erotismo é pulsão criativa, a linguagem-leoa é a mulher
que se oferece e, ao mesmo tempo, resiste às investidas do poeta. O erotismo associado à leoa
reafirma a fertilidade da criação e a forte presença do sexo feminino em toda a obra
haroldiana (SISCAR, 2006, p.173).
A multiplicidade e a corporalidade que a leoa assume, em AMMR, quando considerada
em relação à obra haroldiana, configura, por assim dizer, mais um aspecto barroco desse
poema. Para Sarduy, os textos barrocos requerem um esforço interpretativo; o desafio da
compreensão do que ele chama, em primeira instância, de substituição (metáfora) e, em
segunda instância, de proliferação (metonímia):
Outro mecanismo de artificialização do barroco é o que consiste em
obliterar o significante de um significado dado, substituindo-o não por
outro, por distante que este se encontre do primeiro, mas por uma cadeia de
significantes que progride metonimicamente e que termina circunscrevendo
o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita cuja leitura
que chamaríamos leitura radial podemos inferi-lo [...] No nível do signo
a proliferação poderia ser esquematizada do seguinte modo:
(SARDUY, 1979, p.62)
Ou ainda, nos termos de Genette:
[...] o que distingue a poesia barroca [e este parece ser o caso de AMMR] é o
crédito que ela concede às ligações laterais que unem, isto é, opõem, em
figuras paralelas, às palavras às palavras e por meio delas às coisas às
coisas, sendo que a relação das palavras às coisas se estabelece ou pelo
menos opera por homologia, de figura a figura: a palavra safira não
corresponde ao objeto safira, da mesma forma que a palavra rosa não
corresponde ao objeto rosa[...]. (GENETTE, 1932, p.39)
O barroquismo de AMMR requer que os significantes sejam enfrentados como peças
que se deslocam no tabuleiro de xadrez, sempre ameaçando o final da partida com um xeque-
mate ao leitor, que depende da astúcia de suas próprias jogadas para perceber que a palavra
leoa, por exemplo, não corresponde ao objeto leoa.
Como metáforas e metonímias, tais significantes deixam rastros, à medida que passam
pelo branco da página, rasurando o poema; perseguir suas marcas pelo labirinto do texto,
assegura, ao leitor, que sua parceria com o poeta subsista na incontornável hesitação entre o
jogo e o lance, porque os gestos de leitura nunca encontrarão, de fato, as jogadas do
enxadrista; isso garante, de certa forma, a duração do jogo, o coup da poesia”. As palavras-
Sgante 3
Sgante 2 Sgante 4
Sgante1 Sgante 5
.
signficado
peças, como que dotadas de vida autônoma, superam poeta e leitor, e esta diferença é que faz
com que o poema-partida seja sempre partida: viagem
26
.
A viagem do eu-poético haroldiano é árdua, são pedras que marcam a sua caminhada
até a leoa. Esses significantes podem ser associados às rime petrose dantescas:
O Dante pétreo de Haroldo focaliza uma espécie de realismo das rimas,
realismo dos signos. “A dama empedernida se converte no poema pétreo; o
tema do poema passa ser a reificação, a coisificação do poema enquanto
sistema de signos [...] Esse interesse de Dante, que Haroldo de Campos
define como semiológico, podia se encontrado na Vita Nova [...].
Segundo especialistas, Dante é que introduz o adjetivo inefável na língua
italiana, e as Rimas Pedrosas, pela sua natureza áspera, obsessiva,
enigmática, testemunham essa ênfase na inefabilidade. A relevância desta
questão em Dante pode ser verificada no círculo dos traidores do Inferno,
onde a iconografia pétrea encontra ecos [...]. (LOMBARDI, In: CAMPOS,
H. 1998, p. 12).
Conforme a leitura que Haroldo de Campos faz das Rimas Pedrosas, as quais ele
chama “elaboradíssimas” (1998, p.35), pode-se dizer que existe uma fusão metamórfica entre
a mulher e a pedra, dama áspera de amor difícil (leoa?). Admitindo, como foi dito, o jogo
erótico que prevalece em vários poemas de Haroldo de Campos quando, em exercício
metalingüístico, o poeta se dirige ao poema como se este fosse uma mulher, o elemento pétreo
é o próprio poema, poesia-pedra, em que explodem “dissonância acústica e condensação
semântica” (CAMPOS,H. op. cit, p.21). Para domar essa pétrea fera, postada no meio de seu
caminho
27
, o poeta terá que enfrentar outras tantas, enveredando-se pelo sertão mais árduo
que floresta ao trato. Para Haroldo de Campos, a palavra é dama: pétrea, como revela outro
trecho de Signancia:
pedra
esta dama
que
zibelinas!
26
Sobre o “lance de xadrez” na obra de Haroldo de Campos, cf. SISCAR, M. Estrelas Extremas: sobre a poesia
de Haroldo de Campos In: FERNANDES, M.L.O. et. al. Estrelas Extremas: ensaios sobre poesia e poetas.
Araraquara: Laboratório Editorial da FCL, 2006.
27
Drummond ecoa nesse ponto, retornaremos a ele quando estivermos analisando as estrofes finais deste
primeiro canto.
palavras
palavras
palavras
cintilo o
céu
para um
esquilo
pedra
dama
papel
o
paraíso
em para-
fina
Retornando às considerações sobre a estrofe de AMMR, o poeta reúne, portanto, as
três feras: a leoa, o variopinto animal de gaiato pêlo e a loba, que surgem, um em seguida do
outro, no caminho do poeta, a julgar pela coordenação em: hybris-leoa, variopinto animal de
gaiato pêlo e a loba. Além dos efeitos sonoros já mencionados, o aspecto crucial dessa estrofe
é a aparição da loba e o medo do poeta, que pode ser entendido como susto, dadas as elipses
dos substantivos que designam as feras no verso, ou ainda pela interrupção brusca desse
mesmo verso, mais uma vez, marcada por sinais parentéticos: um era lascívia e a outra (tinto.
A forte sibilante em lascívia e o fechamento assonante de tinto trazem obscuridade à cena
descrita, ou ainda, surrealidade, apropriando-se da sugestão feita por Augusto de Campos,
acerca do poema italiano e que parece adequar-se ao poema haroldiano: “A caminhada tinge-
se, desde logo, de um toque de fantasia e de surpresa, dir-se-ia hoje uma paisagem surrealista,
com a súbita aparição das feras que aterrorizam o poeta” (CAMPOS, A. 2003, p.184).
Todo esse trecho, ou ainda, todo este primeiro canto é repleto de construções
hiperbólicas, aspecto reforça o ponto de vista apresentado na introdução deste trabalho,
segundo o qual, não faz muito sentido a dicotomia parábola/hipérbole em Haroldo de
Campos, porque ambas são, ao menos no caso haroldiano, não excludentes. A hipérbole
perturba as ligações naturais entre as coisas porque força a intrusão, aproxima realidades que
são naturalmente distantes e acentua, em AMMR, o caráter cifrado da parábola haroldiana
desenhada no texto. O uso da hipérbole reflete o caráter barroco do texto, sem deixar de
sublinhar que a mensagem poética da modernidade incorpora essa característica. Barroco e
modernidade aproximam-se pela capacidade de operarem tanto aspectos dilatadores quanto
condensadores na linguagem poética, fundindo semelhança e contigüidade, por correlação ou
conexão. A esse respeito, pontua Genette:
[A hipérbole] nos permite talvez sentir melhor uma das afinidades que unem
a poética do barroco e da poesia moderna: ambas fundamentam-se naquilo
que os marinistas chamavam de surpresa e que hoje definiríamos como
distância ou desvio que a linguagem obriga o pensamento a executar. [...] O
espaço que se abre e se fecha [...] mede, por assim dizer o poder hiperbólico
da linguagem que é mandar (ou ir buscar) tão longe quanto possível alguma
coisa que temos que chamar pensamento. Esse modo hiperbólico do espírito
não terá razões que o bom senso ignora e que a razão quer conhecer?
(GENETTE, 1972, p. 240).
A citação destaca a importância da concepção de poesia como operação do
pensamento, pois a apreensão do modo hiperbólico do texto requer a compreensão das razões
que o bom senso ignora. Em AMMR, o desafio, que a razão quer conhecer, e que ao senso
comum pode parecer não racional, é, justamente, o esforço da leitura como busca da
compreensão, pelo estabelecimento do lastro entre as hipérboles-parábolas e as obsessões,
escolhas e mitologias de Haroldo de Campos, figuradas no texto. E é também a percepção da
auto-reflexividade da máquina do poema, esfinge que lança o desafio da descoberta de que
busca e compreensão coincidem.
Na 5ª. Estrofe completa-se o sentido da estrofe anterior (o anacoluto): olho tinto de
sangue, metáfora fortíssima que atribui à loba, definitivamente, o estatuto de uma fera
terrível; assim como no original dantesco, é a loba que o poeta teme mais.
5) de sangue o olho) cupidez impura:
dante com trinta e cinco eu com setenta –
o sacro magno poeta de paúra
A loba surge, então assustadora; seu olho tinto de sangue, de cupidez impura e cobiça,
assaltam de medo o poeta que, aterrorizado, o olhar tinto de sangue. A despeito das muitas
aproximações entre Signancia e AMMR, o olhar descrito na estrofe difere daquele presente
em a Visão do paraíso, publicado em Signancia: o olho fosfóreo de Dante (se enubla em
licorosa luz néon.
O olhar do poeta, ao encontrar o olhar tinto de sangue da loba, vislumbra a miséria, a
danação: sANguE e DANntE são aproximados paronomasticamente. O caráter sombrio é
reforçado pela assonância do /u/ e do /i/ (este no segundo verso), suavizada apenas pelo
deslumbramento que o poeta maior desperta no eu-poético haroldiano: sacro magno. O jogo
intertextual mais bonito é que Dante inicia a comédia dizendo “na metade do caminho desta
vida” e é justamente a metade da idade de Haroldo quando escreve a máquina que o “sacro
magno poeta” tem ao entrar no Inferno: “Dante com 35 e eu com 70”, ao contrário de Dante,
em que certezas muitas o Paraíso, por exemplo; ao poeta, que passou do meio do
caminho, resta a dúvida e a angústia.
Segundo Bignotto (In: NOVAES, 2005, p.88), entretanto, a riqueza da Comédia está no
fato de que Dante permite-se a angústia; espera encontrar o caminho correto, está em busca
desse caminho, mas ao ser barrado pelas feras, não as enfrentou diretamente, não as derrotou
e, com isso, legou-nos um guia pelos caminhos acidentados de nossa existência; para além da
interpretação acalorada dos grandiosos significados do texto dantesco, “o primeiro item da
bagagem de Dante que devemos reter ao iniciar a viagem [é]: o poeta que nos fala e o faz de
um lugar que todos conhecemos: o da fraqueza e da fragilidade de nossa condição” (ibid.id.).
Nossa possibilidade de sentir amor e também cupidez.
A dúvida e a angústia manifestadas na estrofe obrigam a retomada de cupidez
impura, para atribuir à expressão um outro significado. Cupidez pode estar aqui fazendo
referência à inveja
28
que o eu-poético haroldiano, ou o próprio Haroldo, pois a identidade
entre ambos é aqui muito grande pela menção da idade (Dante com trinta e cinco e eu com
setenta), sente de Dante. Além da diferença da idade, Dante tem a que o orienta, ao passo
que o poeta de AMMR tem as incertezas do milênio, a agnose. Dante tem o medo e o
reconhecimento de sua pequenez diante do que é maior do que ele; o poeta de AMMR, a
acídia.
Se a loba representa a avareza, a cobiça, a inveja, conforme as interpretações dadas ao
texto de Dante, porém, que se considerar que, no imaginário do povo romano, é um mito
28
Esta acepção é possível segundo o dicionário latim-português. Cf. CRETELLA Jr.; CINTRA, G.U. Dicionário
Latino-Português. São Paulo: Companhia Editora Nacional, [s.d.].
de origem
29
e, nesse sentido, sugere o passado como busca de algo definidor do futuro. Se
pensarmos na Comédia como viagem além-túmulo, torna-se fácil perceber que o futuro das
almas depende de suas ações passadas; essa relação entre passado e futuro, Dante as percebe
na Eneida, no livro VI:
Nesse livro Enéias empreende sua viagem ao reino da morte. E em tal
viagem ele demonstra que o porvir é exemplificado no passado e, ligando o
passado e o porvir, demonstra que a unidade e a grandeza de Roma devem-
se à constante renovação, nela, de pai para filho, das virtudes características
de uma estirpe. (UNGARETTI, 1996, p.175).
Segundo Ungaretti, é provável que esse livro da Eneida tenha induzido Dante a
empreender sua viagem além-túmulo; todavia, esclarece o autor que os paradigmas que
orientam o pensamento dos dois magnos poetas é bem distinto. Virgílio apóia-se em um
modelo cosmogônico de Platão; o de Dante é ptolomaico e aristotélico. Se Haroldo de
Campos, ao recuperar Dante, recupera também a religiosidade cristã da Comédia, não
podemos deixar de pensar, dada a citação sobre Virgílio acima referida, que Haroldo, ao
recuperar Dante, recupera um Virgílio, cuja visão de mundo não estava presente de modo
explícito na obra dantesca; entretanto é a partir de Dante que ela, possivelmente, se coloca em
evidência, justamente pelo seu apagamento: o poeta paulista cria os precursores de seus
precursores e o passado e o porvir virgilianos não podem deixar de ser vistos sob a ótica da
poética sincrônica apregoada por Haroldo que, dentre as virtudes resgatadas dos grandes
mestres, exalta a inventividade. Aqui vale sublinhar a historicidade do texto haroldiano
comentada anteriormente, historicidade esta que é, literalmente, citada na sexta estrofe, que
o eu-poético haroldiano menciona o final do milênio, deixando subentendida a necessidade do
resgate da tradição:
6) transido e eu nesse quase – (que a tormenta
da dúvida angustia) – terço acidioso
milênio a me esfingir: que me alimenta
29
De fato, alguém que conheça minimamente a história romana, mas não saiba quem foi Dante, talvez não se dê
conta da alegoria das três feras e facilmente associará a Loba àquela que amamentou Rômulo e Remo.
7) a mesma – de saturno o acrimonioso
descendendo – estrela ázimo-esverdeada
a acídia: lume baço em céu nuvioso
Nas estrofes acima, acentua-se a grande instabilidade sintática causada pelas inversões
violentas, pela confusão dos hipérbatos, sempre recorrentes, pela interrupção brusca dos
versos entre uma e outra estrofe e que reforçam, no plano da expressão, a dúvida, a angústia e
a acídia sugerida no plano do conteúdo, inferno dantesco já visitado por Haroldo de Campos:
das aparas
(apsaras)
do meu paraíso
o inferno
avesso de fagulhas
queda
plúmbeo
cair
fundo de agulha
(CAMPOS, H., Signancia quasi coelum 1979, p.107)
. As estrofes 6 e 7 de AMMR apresentam-se como um quebra-cabeças, um desfio ao
pensamento que a linguagem manda resolver, como dissemos: e eu/ de saturno
acrimonioso descendendo/ a me esfingir/ nesse quase terço acidioso de milênio/ que me
alimenta a acídia/ que a tormenta da dúvida angustia/ lume baço em céu nuvioso /estrela
ázimo-esverdeada. Essa organização é uma das possibilidades, outras, que definiriam,
evidentemente, outra leitura. Chama a atenção a descendência de Saturno. Como se sabe,
Saturno (Cronos) foi derrotado por seu filho Júpiter (Zeus) que, dessa maneira, impediu-o de
continuar devorando seus próprios filhos; esse mito teria sido uma maneira encontrada para
falar da tentativa de pôr termo à nossa impotência diante da passagem do tempo. Depois
disso, diz a lenda, Saturno, resignado, vai para o Lácio e origem à formação de um novo
povo, os ítalos. Portanto, Dante é descendente de Saturno Acrimonioso (áspero) e o poeta em
A máquina do Mundo Repensada também o é.
Entretanto, somos levados a considerar esse fragmento do Canto I em intertextualidade
com um poema de Haroldo, publicado em Crisantempo e que se chama saturnum in aquário
ascendentem, inspirado, por sua vez, segundo o autor, no horóscopo do filósofo neoplatônico
renascentista Marsílio Fisino (CAMPOS, H. 1997, p.351). A ascendência saturnina é sombria e
marcada pela inevitabilidade de que o tempo corre, sem tempo de esconder-se nem mesmo de
si. Saturno devorador.
A jaça no diamante
O incêndio da caraça
O tempo que não passa
(ou passa e como
passa
o inferno de Dante
(ou melhor o limbo
dos lêmures nunca-vivos
a graça sem-graça
a falta de um chalaça
o trauerspiel
no ano 2000
de um pierrô senil
o ciclo
depressivo
o ciclo-
tímido
o tumor benigno
o rictus saturnino
a face de medusa
as graias de um só olho
a sorte madrasta
a puta absoluta
o ministro sem pasta
o quanto basta:
não mais não mais que
destrambelho ó
tu que vens soprar-me a tuba
(tu mais a tua cornamusa)
olhifofórea verbiconfusa
ó musa ó musa
Nesse poema, que alude explicitamente ao Inferno dantesco, assim como no fragmento
de AMMR analisado aqui, o eu-poético revela-se saturnino e sombrio, amargo e, por que não,
um tanto drummondiano, verbiconfuso. O terço do milênio esfinge o poeta; como enfrentá-lo,
como superar os enigmas da existência? De mãos pensas? Como enfrentar os mistérios - a
esfinge que também não deixa de ser uma hybris-leoa de pedra a propor enigmas àquele que
tem sede de conhecer?
Todas essas indagações que surgem a partir da dualidade saturnina, são, segundo o
olhar barroco dirigido a tal dualismo, da ordem da melancolia. É Walter Benjamim que
associará, a partir de Fisino e outros, a melancolia a Saturno em seu Origem do drama trágico
alemão (2004). A melancolia existe porque é o meio de expressão da dualidade de Cronos, ora
o senhor da Idade do Ouro, ora o rei destronado e humilhado, criando e devorando os filhos
ao mesmo tempo que está condenado a ser infértil, por um lado vencido com truques
simplórios; por outro, o velho deus da sabedoria. Segundo Benjamim:
É no contexto desta dialética que se desenrola a história do problema da
melancolia. Essa história alcança seu clímax com a magia do Renascimento.
Enquanto as idéias aristotélicas sobre a ambivalência da disposição anímica
melancólica, tal como as antíteses medievais da influência de Saturno,
abriam caminho a uma representação demonológica [...], para o
Renascimento, que a levou a cabo, com um radicalismo nunca atingido
pelos Antigos, a reinterpretação da melancolia saturnina feita] no sentido
de uma doutrina do gênio. (ibid, id.)
O gênio surgiria se houvesse a libertação da melancolia sublime, que usaria as energias
espirituais de Saturno, sem cair na loucura, o que parece ter sido feito pelos grandes nomes do
Renascimento, por exemplo. A obra de Dante antecipa muitos aspectos do barroco, embora,
em seu texto, a dualidade resolva-se pela subida ascensional e visão do Paraíso; o barroco,
que pelo ruminar dessa dupla possibilidade do devir humano, atribui à existência saturnina um
tom melancólico, que perpassa o poema haroldiano, desde a primeira palavra, do primeiro
verso: quisera.
Em termos da Comédia, pode-se ainda destacar que é a ascendência saturnina
responsável por gerar tanto homens presos aos aspectos materiais da existência, quanto a
valores religiosos e contemplativos. A dualidade leva à acídia, a qual ocupa o quinto elo dos
pecados capitais, num círculo em que prevalece o frio glacial, bem conivente com a atmosfera
sombria, recriada pelas assonâncias reinantes na estrofe 7ª de AMMR.
Nesse sentido, a leitura do poema impõe-nos pensar que a sonoridade sibilante da e
da estrofes de AMMR, que antes sugerira o rugido das feras, agora, diante da atmosfera
enigmática que esfinge o poeta, sugere o esvaecer do tempo: nesse, angustia, acidioso,
esfingir, saturno, descendendo, estrela, acídia, baço, céu; e, de certa forma, a efemeridade do
tempo, revelada pelo aspecto sibilante que esbarra, ricocheteia, como talvez dissesse Haroldo,
na sonoridade do /z/: transido, quase, acidioso, mesma, acrimonioso, ázimo, esverdeada,
nuvioso.
Na estrofe, o aspecto de “pão embolorado” da estrela (ázimo-esverdeada), a tristeza
e a aspereza, o brilho fosco e o céu cheio de nuvens marcam a caminhada pelo Inferno. Como
no texto de Dante, de repente surge Virgílio, para guiar o poeta; no texto de Haroldo,
justamente, a partir da estrofe, quando se tem a sensação de que uma certa dicção itabirana
está a se impor sobre eu-poético, surge Camões. Ele lhe servirá de guia por algum tempo e
fará amainar a pulsão “indagativa”; esta, todavia retornará, amiúde, que, como Benjamim
mostrou em Hamlet, o poeta de AMMR tem uma ascendência saturnina:
O mistério da sua personagem (Hamlet) está contido na travessia, lúdica,
mas por isso mesmo equilibrada, por todas as estações desse espaço
intencional, do mesmo modo que o mistério do seu destino está contido
numa ação totalmente em sintonia com o seu olhar [...] o que pode
satisfazê-lo é seu próprio destino. numa vida de príncipe como esta a
melancolia se resolve, encontrando-se consigo mesma. O resto é silêncio,
pois tudo o que não foi vivido está destinado à ruína neste espaço
assombrado pela palavra, meramente ilusória, da sabedoria [...] Hamlet
[tem] uma ascendência saturnina e traços de acídia. (BENJAMIM, 2004, p.
168).
Do fragmento acima, dois são os aspectos que merecem ser sublinhados, posto
dizerem muito da própria orquestração dialógica de AMMR: a travessia é vivência que pode
evitar a ruína. Em sua busca, o que vale ao poeta é a travessia é viver, pelo verbo, a
experiência vivida e vívida da tradição; assim a palavra deixará de ser assombração e peso
dos mortos, mas libertação e contemplação sincrônica do que para sempre permanece vivo,
como se a operação do poeta fosse a de um demiurgo que dá, aos textos envelhecidos, à luz,
ou a vida eterna, no espaço da página de seus próprios poemas. Ao encontrar Dante em sua
travessia, o eu-poético encontra, também, a visão de mundo dantesca, o medo, a sombra, o
desejo da ressurreição como prêmio ao cumprimento de uma vida terrena livre de pecados e
delitos, o que é bastante difícil. O caminhar dantesco pelo Inferno é soturno, pois revela,
como já foi dito, a fragilidade do homem.
É possível que o eu-poético haroldiano sinta, a esta altura de seu percurso, o desejo de
arriscar outros rumos. O enxadrista de campos e espaços parece mesmo jogar junto ao mar.
Navegar é preciso, mas as rotas são árduas; como seguir um poeta tão denso, tão intenso em
tabuleiro palimpsesto, palimp(incerto)?
II.1.4 O mar e a fábula primeira
Na Comedia, Dante sente muito medo da loba; e é quando sente que ela o persegue, e
que nada poderá fazer, que surge Virgilio e põe-se a guiá-lo, coisa que fará até o Paraíso,
quando surge Beatriz. Se pensarmos que após a descrição da cena com a loba ocorre um outro
“set” no poema AMMR, e o eu-poético, desiludido diante de tamanha paúra, volta-se em outra
direção (mas quisera também como... herói lusíada), convocando Vasco da Gama e,
conseqüentemente, Camões
30
. Com certa pertinência poderíamos dizer que esse desvio de rota
(8ª estrofe) coloca-o em outro caminho e ele é conduzido, então, pelo grande poeta lusitano,
que cumpriria, a partir desse ponto do poema, o papel de Virgílio, não apenas por ser um
grande poeta, mas o maior da língua portuguesa, o mestre, o que faz transformar o amador
(poeta que opera a linguagem) em coisa amada. O encontro com Camões não poderia dar-se
de outra forma, a não ser convergindo para o pensamento.
[...] a arte em Camões é mimética: sua liberdade de invenção é restrita pelos
preceitos retóricos que funcionam como limites convencionais de seu
30
Camões (1524 ou 1525 – 1580). A primeira edição de Os Lusíadas é de 1572.
arbítrio poético [entretanto] o ato da invenção poética de Camões fornece ao
destinatário e ao leitor os preceitos evidenciadores da construção e do
artifício, por isso lhes fornece também os meios de dissolver a ilusão do
efeito que congela a experiência poética na forma rígida de um fantasma.
Camões sempre pensa a poesia como o artifício que resulta de operações
técnicas: para ele, o poema é, literalmente poiema, produto, controlado
racionalmente por preceitos [ ] Como a pintura em Leonardo, a poesia em
Camões é cosa mentale [...] domínio intelectual das contingências pelo qual
o instante se eterniza na forma proporcionada para além do que a morte
determina. (HANSEN, In: NOVAES, 2005, p.165,171).
O desafio ao pensamento explica, portanto, o enigma e a esfinge da 7ª estrofe. A esfinge
é símbolo do inelutável, do enigma opressor; de outro lado, simboliza um marco definidor do
início de um destino, que é, simultaneamente, marcado pelo mistério e pela necessidade da
inquirição cosa mentale
31
. Não razão para o sentimento de cupidez impura em relação a
Dante, porque, ao contrário do eu-poético dantesco, o haroldiano é movido pelo desejo de
aventura; a esfinge desafia-o e o faz, por isso, voltar-se para outro lado, buscando um guia
mais ousado para poder continuar a sua viagem. O eu-poético haroldiano tem a sede do
conhecer; impelido por dilema fáustico, deixará um pouco apagadas as referências dantescas e
voltar-se-á para o mar.
N’ Os Lusíadas, o mar é lugar onde se inscreve (se escreve) a história do povo
português, que se a conhecer através do laborioso pensamento do poeta, demiurgo a
conceber o que Deus cria por meio do inteligível, do ato intelectual, da palavra, que é,
também, pulsão erótica. Na poesia camoniana, prevalece a força unitiva e intelectual de Eros,
que une todos os seres por seus laços de concórdia (HANSEN,op. cit., p.175).
Em Haroldo, as operações do pensamento são o mote; o poeta é pensador e quando o
pensamento poético vem recoberto, ou é revelado, pela imagem do mar, este é criação, berço
das metáforas representativas de seu pensamento, de suas obsessões poéticas, ancoradas no
estreito vínculo entre poesia e pensamento: mar polifônico, por onde ecoa Haroldo, criador de
seus precursores, também por meio da reelaboração do par poesia/pensamento desses
precursores, que a voz do eu-poético de AMMR faz ecoar.
No texto chamado Sobre finismundo: a última viagem, o poeta Haroldo de Campos
caracteriza melhor os caminhos dessa busca, ao dizer que o problema que está na raiz de seu
trabalho é justamente “o enfrentamento constante que o poeta acaba tendo com o fazer
poético” (CAMPOS, H. 1996, p.13). Haroldo não acredita em inspiração, mas pensa o poema
31
Para mais detalhes, cf. Dicionário de Símbolos (op. cit).
como construção, “confluência dialética entre racionalismo e sensibilidade” (ibid, p. 14) e essa
confluência precisa, também dialeticamente, enfrentar o desafio (a necessidade, a urgência) de
fazer o novo e compreender que a poesia engloba uma prática e uma história.
Não é à toa, portanto, que João Alexandre Barbosa, em Poesia e pensamento
concreto
32
aproxima a máquina haroldiana de Camões, e, por intermédio dessa aproximação,
une a máquina haroldiana ao maquinar do mundo camoniano. O poema é a máquina e é por
meio da poesia do poema que se estabelecem intersecções entre a obra haroldiana e aquelas
com as quais ele dialoga não apenas em AMMR, mas ao longo de toda a sua atividade de
poeta, através da orquestração das obras passadas, afinal, como diz Valéry, “o valor de uma
criação não está no seu aspecto de novidade, mas, ao contrário, na sua Antigüidade profunda:
o melhor dentro do novo está naquilo que corresponde a um desejo antigo” (apud. GENETTE,
1972, p.250). Por isso, ao reinventar Camões em seu poema, Haroldo revela mais uma de suas
mitologias, sua fábula primeira (ou uma delas), parábola cifrada na obra do poeta, presente,
também, em Galáxias:
Multitudinous seas: Esta celebração do mar-livro começa por um verso de
Shakespeare [e] termina com polüphloisbos (“polissonoro”) aplicado por
Homero[...], é também invocado de passagem da tradição épico-marinha da
língua portuguesa, que remonta a Camões, maneirista, pré-barroco.
(CAMPOS, H. 1994, p.118).
Se Camões é precursor de Haroldo, ao colocá-lo em AMMR o poeta propõe-se não
apenas a repensá-lo, mas como fez com Dante, propõe-se a repensar seu mundo. O universo
camoniano ancora-se, também, numa concepção cristã, fundamentada nas idéias de Ptolomeu,
pois, a despeito das inovações na ciência e na técnica, as idéias de Copérnico, de Kepler e
Galileu não estavam totalmente difundidas e nem eram universalmente aceitas. Esse universo
cristão, entretanto, divergia muito do universo cristão dantesco, que o Renascimento
cultural e artístico, o humanismo e as grandes navegações, marcam a obra do poeta magno da
língua portuguesa, a quem o poeta de AMMR se dirige a partir da 8ª estrofe do poema.
A estrofe deve, então ser, mais uma vez, relida. O tom saturnino dantesco deve ser
deixado para trás, porque a partir do encontro com Vasco da Gama, a mitologia grega, seus
heróis e audazes guerreiros surgirão. Um exemplo disso refere-se à própria figura de Saturno.
Sua menção na 7ª estrofe, se lida do ponto de vista do diálogo com Camões, antecipa a alusão
32
BARBOSA, J. A. Poesia e Pensamento Concreto. In: Revista Cult. São Paulo: Lemos Editorial, anoIV,
out/2000, p. 10-13.
à Ilíada. Como em Haroldo de Campos tudo é medido, tudo é sincronia e diálogo, o termo
saturno e o termo lume baço em céu nuvioso remetem, a despeito das referências
mencionadas, à sua tradução do Canto I, de a Ilíada, a ira de Aquiles, especificamente o
versos 397 e 398, em que Aquiles suplica à sua mãe que peça a Zeus para interceder por ele;
para isso, diz a ela que lembre ao poderoso deus os favores devidos: [...] pois te ouvi
freqüentes/ vezes dizer, no paço de meu pai, que a sós, /sozinha, ao filho de Saturno {Zeus},
nuvem-turvo/ poupaste a afronta (CAMPOS, 1994, p.59) . Impossível não pensar, portanto, em
Tróia, principalmente porque, no poema de Haroldo, é a alusão a Tróia que surgirá, em
uníssono, com os Lusíadas.
8) – mas quisera também como o de ousada
fronte vasco arrostando – herói lusíada –
a adamastor: gigântea levantada
9) pavorosa figura – e não descria da
sua força o nauta diante do titã
mas com ele entestava qual na ilíada
10) héctor ao colossal ájax no afã
de subjugá-lo em lide desigual
(e o mar açoita a nave capitã)
Se todo o encontro com Dante foi marcado pela aridez do caminho e pelas feras, o
encontro com Camões assume um feitio diferente. É diferente porque são historicamente
diversos os momentos em que cada um desses poetas viveu e, portanto, se Dante fica tomado
de paúra, Vasco da Gama, herói lusíada, enfrenta o gigante Adamastor destemidamente, já que
a posição camoniana é humanista e pressupõe que o homem é capaz de arrostar, sozinho, suas
dificuldades (LEITÃO, In: CAMÕES, 1980, p.27).
Chama a atenção na estrofe, além da inversão, a sonoridade de FRonte VaSco
aRRoSTanDo, que se destaca pela força dos sons fricativos, vibrantes e sibilantes, além dos
linguodentais; se observadas em relação ao final do verso anterior (como o de ousada),
marcado pela assonância fechada de /o/, as aliterações e assonâncias da estrofe implicam
uma mudança de “cenário” no poema. Vale lembrar que até a estrofe a atmosfera era
sombria; ao surgir o Gigante Adamastor, que poderia ser equiparado às feras, o eu-poético
haroldiano abandona a atitude dantesca de “contornar”as animálias para assumir a postura do
Gama diante da tenebrosa criatura: somente a ousada fronte vasco arrostando poderá
enfrentar o gigante, não pelo que é Vasco da Gama, mas também pela força que os
significantes do poema doam a ele. Diante de sua coragem, levanta-se o Gigante, prevalecem
as nasais e o tom fantasmagórico, monstruoso em gigANtea levANtada, além da sonoridade
seca das linguodentais /t/, /d/. O gigante ergue-se do mar BaTenDo na água
33
.
Como é ousado, Vasco da Gama não se intimida diante da pAvOrOsA fIgUrA, ainda
mais amedrontadora pela abertura de /a/ e /o/, seguida da sombra imposta pelo /i/ e pelo /u/ de
figura. O lusíada enfrenta o gigante destemidamente o herói humanista atualizando o
grande épico homérico) e explodem as aliterações sugerindo o embate do ousado herói
lusitano com o monstro (Descria, nauTa, DianTe, enTesTava) ilíaDa); tudo isso atualizado
pelo canto do aedo, ou seja, do eu-poético haroldiano. O final da estrofe introduz mais um
diálogo com a tradição; este, porém, não é apenas haroldiano, mas Haroldo recria o diálogo de
seu precursor Camões com o texto homérico, que um dos elementos dialógicos do Canto V
de Os Lusíadas é o episódio da luta de Heitor e Ájax na Ilíada
34
, que inicia com a derrota de
Heitor, mas é seguido pela vitória do troiano, destemido, protegido pelos deuses. Além de
recriar o diálogo camoniano, Haroldo de Campos, mais uma vez, em AMMR, retoma sua
própria atividade de poeta-crítico e poeta-tradutor dos textos homéricos.
Na 10ª estrofe, as assonâncias indicativas da luta persistem em héctor, colossal, ájax,
afã, subjugá-lo e mostram a intrepidez de Vasco da Gama; a bravura precisa resistir ao (mar
que açoita a nave capitã), não apenas pela matéria significante, cujas paronomásias indicam
ainda o embate, mas pelo caráter alegórico do mar como criação, segundo aponta Hansen: “É
lugar-comum muito usual [na retórica clássica] o da travessia por mar [...], também
significando o destino pessoal ou o ato mesmo de compor um poema”. (HANSEN, 2006 ,p. 32).
Mas o mar, ou sua travessia, quando tratados por Haroldo, vão alem do alegórico; articulam
dois momentos de viagem, a homérica e a camoniana, a história literária e seu nutrimento;
mar, navios e naufrágios podem ser entendidos, se retomarmos as idéias de Sarduy sobre as
parábolas em Haroldo de Campos, como mitologias pessoais, como resgate de sua escritura.
Ao comentar o poema Finismundo a última viagem, diz Haroldo de Campos:
33
Interessante notar que essa sonoridade é recorrente no Canto V de Os Lusíadas, que narra, justamente, o
surgimento do Gigante Adamastor.
34
Para um comentário detalhado dos diálogos de Os Lusíadas, cf. edição da obra camoniana organizada por
Emanuel Paulo Ramos, publicada pela Porto Editora (1980).
O risco da criação [precisa ser] pensado como um problema de viagem e
como um problema de enfrentamento com o impossível, uma empresa que,
se por um lado é punida com um naufrágio, por outro é compensada com os
destroços do naufrágio que constituem o próprio poema. (CAMPOS, 1997,
p.15).
Quando o mar açoita a nave capitã, o risco do naufrágio, o risco do poema. É o
que acontece em Finismundo, onde é narrada a última viagem de Ulisses. Em AMMR, o
poema é fruto de outros poemas-náufragos. Por isso, nele, o poeta procura a resistência ao
naufrágio, como maneira de fazer subsistirem os poemas legados pela tradição; procura tirá-
los da condição de náufragos, para colocá-los na condição de sobreviventes a todo tipo de
intempérie. Mas, ao salvar a linguagem dos poemas, pela superação do mar bravio, ou do
sertão que nele se entrevera, entendidos como alegoria da dificuldade da criação, não pode (e
não quer) impedir seu próprio naufragar.
Está amarrado ao mastro para ouvir o canto das sereias e seus companheiros de viagem
são os destroços do cânone que leva dentro de si, de sua poesia. Assim preso, não pode evitar
que o navio se parta; ainda bem, porque cada resto do casco é um pequeno espectro, que
permite ao leitor o repensar do mundo pelo poema haroldiano. AMMR é destroço, mosaico, ou
um coral onde se depositam alguns séculos da tradição, que o poeta viajor faz refletir no céu,
como novidade, invenção, explosão estelar. Entre o escafandrista que vai às profundezas e o
astronauta que vive em busca do devir, está a “errância reluzente”
35
do cosmonauta do
significante de AMMR e sua poesia da agoridade.
Da mesma forma que o Gama supera todos os óbices para garantir a glória maior da
nação lusitana, o eu-poético de AMMR, ao que parece, deseja essa coragem para seguir sua
jornada, colocando adiante a máquina poética, instrumento através do qual Haroldo de
Campos vai cifrando sua parábola. Desafio ao pensamento, a construção inteligível que se
sobrepõe ao sensível é um imperativo categórico, imposto pela concepção de poesia como
atividade intelectual na modernidade e também na reinvenção desse mecanismo, por meio do
diálogo estabelecido com Camões, outro poeta pensador, como o qualifica Hansen (In:
NOVAES, 2005, p. 172). Se Gama obedecia ao real mandato e enfrentava tudo pela glória de
Portugal, o eu-poético, herói épico, gostaria também de, mantendo-se fiel aos imperativos da
criação que o regem, e vários foram os aspectos metalingüísticos destacados, obter o prêmio
pelo enfretamento das dificuldades: gostaria de ver a máquina do mundo.
35
O termo está em SISCAR (2006, p. 171).
11) – quisera como o nauta fiel ao real
mandato no medonho oceano a rota
franqueando qual no breu brilha um fanal
Na 11ª estrofe, o Canto V de Os Lusíadas ainda é o mote do diálogo estabelecido com
Camões; não os feitos de Gama, mas sua incondicional obediência conduzem-no ao
sucesso nos mares “nunca d’antes navegados”. Nessa estrofe, são retomados os sons
vibrantes e fricativos, presentes também na estrofe, e que sugerem a maneira como o
capitão português conduzirá seu navio, abrindo vias no oceano: rota/ franqueando qual no
breu brilha um fanal. A sonoridade recria não apenas o marulho das águas do mar sob o
navio, mas também a imagem do sulco no oceano; o caminho que o navio vai deixando para
trás é associado ao brilho de um facho de luz em meio a escuridão. Imagem semelhante,
embora não idêntica, aparece em Galáxias, sob a luz do sol:
multitudinous seas incardinadine o oceano oco e regougo a proa abrindo um
sulco a popa deixando um sulco como uma lavra de lazúli uma cicatriz
contínua a polpa violeta do oceano se abrindo como uma vulva violeta
a turva vulva violeta do oceano óinopa pónton cor de vinho ou cor de
ferrugem conforme o sol batendo no refluxo de espumas o mar multitudinário
Percebe-se, no fragmento acima, o elemento erótico e feminino, associando o mar à
pulsão criadora (lembremo-nos de que as raízes da Mãe do Verbo prendem-se ao umbigo do
mar): brilho do fanal que singra a “vulva-oceano” e abre-a, rompe o himeneu, e faz brotar
linguagem. A criação haroldiana é busca da linguagem, uma pulsão erótica. O erotismo
presente em AMMR deve ser lido em perspectiva dialógica com as demais obras de Haroldo
de Campos, ou ainda, deve ser lido em perspectiva sincrônica, para resgatar da “tradição” do
próprio autor aquilo que deve permanecer: a cada momento, seus poemas vão incorporando
seus próprios textos e construindo significados subjacentes, que funcionam como uma pista
para a origem dessa busca. São ao mesmo tempo uma rasura nessa origem, uma vez que não
podemos determiná-la com precisão, porque suas origens remontam ao passado literário,
histórico, científico...
Seguindo sua jornada em companhia de Vasco da Gama, ou melhor, inserindo o seu
caminho no caminho de Vasco da Gama, é concedido, ao eu-poético, ver a quina do
mundo. A deusa Téthys
36
a mostrará para o nauta destemido e para ele. Nos primeiros versos
da 11ª estrofe, as paronomásias, assonâncias e laterais, nAutA, fiEL AO reAL, mandAto,
medOnho, oceAno, a rOta, sugerem uma circularidade que, se lida em conjunto com a estrofe
seguinte, parece corroborar a hipótese de que a máquina do mundo vem se aproximando, a
girar.
Mais uma vez, o espaço gráfico do poema, medido, quadriculado, parece abrigar as
jogadas de um jogo de xadrez, pois, a cada momento, uma jogada verso antecipa ou pré-
determina jogadas-verso posteriores, de modo que signos em rotação são retomados, não
apenas pelo enjambement freqüente, mas também pelos rastros dos significantes que parecem
deslizar de um verso a outro, ora linearmente como as torres, ora diagonalmente como os
bispos, ora aos saltos como os cavalos, ora como todos eles, ecoando aqui e ali, em mosaicos.
Eis a máquina:
12) – quisera tal ao gama no ar a ignota
(camões o narra) máquina do mundo
se abrira (e a mim quem dera!) por remota
13) mão comandada – um dom saído do fundo
e alto saber que aos seres todos rege:
a esfera a rodar no éter do ultramundo
Na estrofe 12, a abertura assonante vista nos dois versos da 1 estrofe, cede, aos
poucos, lugar para as nasais que também estavam presentes em mandato e medonho. Nesse
caso, a nasalização presente em gama, camões, mundo, mim, quem mão comandada, um dom
fundo ultramundo, e que circula pelo poema, evoca a própria imagem da máquina a girar: a
esfera a rodar no éter,que aliás, diga-se de passagem, está em Camões, Canto X, estância 80.
36
Em Os Lusíadas aparecem duas divindades com o nome Tétis; o autor grafa-as diferentemente. Uma delas é a
nereide Thetis, esposa de Peleu, mãe de Aquiles, filha de Dóris e Nereu (cf. Canto V, estância 55). A outra é a
deusa Tethys, esposa de Oceano, também linda divindade e protetora dos navegantes (cf. Canto X, estância 75).
É comum chamarem a nereide de ninfa; a outra é uma titânide, uma das divindades primeiras da mitologia grega.
De qualquer modo, ambas são favoráveis aos viajantes portugueses. Para a árvore genealógica dessas divindades
cf. edição de Os Lusíadas citada em nota anterior.
O final da 1 estrofe pode ser lido como o movimento da nau sobre o mar e pode, também,
ser o anúncio epifânico da máquina que irá surgir, a partir do verso seguinte.
O poeta de AMMR, que enfrentou as rimas pedrosas no início do poema, chega a um
momento de tranqüilidade assegurada pela reincidência dos significantes nasais e das
assonâncias, que, nesse trecho, não mais remetem às feras ou a Adamastor, mas são um
prenúncio do deslumbramento que está por vir
37
. Na 13ª estrofe, Haroldo de Campos retoma
Camões, Canto X, estância 76:
Faz-te mercê, barão, Sapiência
Suprema de, co’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Vemos aqui o surgimento de Deus, a “Sapiência Suprema”, que rege todos os seres.
Mas, há, ainda, um aspecto interessante a ser retomado, dessa mesma estância do Canto X,
que são os versos finais:
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu co’os mais.
Assim lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
Tais versos fazem-nos lembrar das estrofes 2 e 3 de AMMR, em que o poeta apresenta
o sertão mais árduo que floresta ao trato. Mais uma vez, o leitor tem a sensação de estar sendo
levado pelo enxadrista, que, ao retomar, por via da 13ª estrofe, o texto camoniano, depara-
se com um fragmento de AMMR que havia sido apresentado no início do poema. Se assim é,
poderíamos refazer a leitura apresentada, complementando-a. O eu-poético atravessa os
óbices necessários e, dada a abordagem sincrônica, prevalecente no poema, a floresta dantesca
é o árduo mato de Os Lusíadas.
37
“É sabido que qualquer signo pode equivaler a qualquer signo: o critério de substituição não se reduz ao
semântico referido a um “sentido próprio”, denotativo ou exterior, que o discurso refletisse. Diferenciais, os
signos se equivalem – haja vista a metáfora moderna, que é literal, ou seja, sem termo primeiro. Estatisticamente,
o tropo consiste no emprego de um termo estranho à significação do contexto verbal imediato”. (HANSEN,
2006, p. 34). Feitas essas considerações, sabemos que a cada momento, o plano de expressão pode, por meio dos
mesmos tropos, dos mesmos significantes, engendrar significados diferentes.
Dada a analogia com o xadrez, pode-se imaginar que o espaço da página é o tabuleiro
da tradição, onde foram inscritos os vários poemas ao longo dos séculos; elucida-se assim o
conceito de sincronia haroldiano, operante em AMMR: Camões, certamente, retoma Dante e
retoma Homero, que é retomado por Virgílio, com quem Dante dialoga explicitamente. A
disposição dos elementos da tradição em AMMR não é ingênua, tampouco aleatória, mas
revela a maquinaria do poema, suas engrenagens, como se as estrofes fossem etapas de uma
linha de montagem e cada etapa representasse uma parte da construção do produto final; o
produto final, conseqüentemente, engloba as etapas iniciais.
O que, entretanto, diferencia o poema dessa linha de montagem “fordista” é que as
peças não são originais, não são fabricadas pelo poeta, mas ele as negocia numa bolsa de
valores, que ele mesmo institui; a originalidade na arte é, retomando Valéry, fazer o novo
marcado de profunda ancestralidade. A novidade e a invenção do texto haroldiano residem no
fato de ele dar novos usos a essas peças ancestrais, atualizando-as, para o leitor, por meio de
sua poética engajada, sincronicamente articulada, como a esfera a rodar no éter do
ultramundo.
14) claro-amostrando os orbes e o que excede
na fábrica e no engenho a humana mente
(a cena se passando numa séde)
15) sidérea de esmeraldas e irrompente
chuveiro de rubis que a poderosa
mão divina ao redor – sumo- sapiente –
Nas estrofes 14 e 15, a máquina vem se abrindo ao Gama. Os orbes “são esferas ou
céus que, na concepção ptolomaica, se encontravam a seguir às esferas do Ar e do Fogo,
concêntricas, com a Terra no centro” (RAMOS in: CAMÕES, 1980, p.575), sua compreensão
absoluta vai além da compreensão humana, como diz Camões, Canto X, estância 80. A
máquina está além da compreensão humana porque é comandada por Deus; é, nesse sentido
uma dádiva.
Aqui cabem algumas considerações. Dado que o universo camoniano é o universo
cristão, essa divina visão assemelha-se à visão de Dante no Paraíso e equivale a uma dádiva.
O que significará a máquina para o poeta? Se o poema é máquina, como estamos admitindo,
que Deus o abrirá e mostrará para o poeta? Seu próprio ato criativo?
Pereira, em seu artigo Haroldo de Campos: a hybris de um viajante
38
mostra que ao
retomar a tradição, o poeta comete uma hybris, transgride o original, transcende-o, extrapola-
o; ao se tornar criador, o poeta ultrapassa a tragicidade do conceito de hybris posto que não
haverá dano pelos seus atos. Na posição de criador, sua hybris é relativizada:
A hýbris se apresenta materialmente no texto, na tentativa de ir além do que
existe, na ânsia do poeta de tornar-se, apesar de homem, Criador. Mas o
artista é aquele que cria. A tensão trágica [...] deixa de existir quando o
homem é também um artista, ou seja, quando cria, como os deuses, um
novo universo. A hýbris do artista não é trágica. Neste caso, o próprio
conceito de hýbris é relativizado, uma vez que a criatura é também o
Criador. (PEREIRA, [s.d.], p.2).
O poeta é, portanto, o criador da máquina do poema, alimentada, pela prática
intertextual, sob a dimensão já aqui apontada de crítica e recriação, metalingüisticamente:
Em suma, pode-se dizer que a metalinguagem, um dos fatores de
apreciação, valorização e valoração da poesia moderna, é a primeira das
condições necessárias à compreensão da máquina do poema, uma vez que
se alimenta também de poesia: pois a auto-reflexividade, a auto-
referencialidade, a consciência construtiva, o pensar sobre a linguagem;
enfim, o voltar-se sobre as próprias engrenagens, revelando a concepção
engenhosa que a norteia, é um dos movimentos preferidos da máquina do
poema. (PIRES, 2006, p.111).
Claro está que, nesse sentido, destaca-se o trabalho do poeta como artifício laborioso
do pensamento. Ao se dispor a repensar a máquina do mundo, Haroldo de Campos,
forçosamente, faz moverem-se as engrenagens da máquina do poema que articulam a poesia e
o pensamento do próprio poeta. E, para sublinhar, mais uma vez, chegando mesmo a correr o
risco da exaustão, esse pensamento é engendrado a partir da leitura que o poeta faz da
tradição, como atestam as estrofes a seguir:
38
Disponível em Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos
(www.filologia.br/ixcnlf/7/index.htm). Acesso – setembro de 2007.
16) fizera constelar: e qual a rosa
toda se abre ao rocio que a toca e qual
desfolhada alcachofra antes zelosa
17) o entrefólio desnuda tal-e-qual
ao bravo gama a máquina se oferta
do mundo – e expõe-se ao olho de um mortal
A máquina abre-se como uma rosa que vai desabrochando, aos poucos, à medida que
as assonâncias surgem nos versos da 16ª estrofe e permanecem menos intensas na 17ª estrofe:
qual, rosa toda se abre ao rocio que a toca e qual/ desfolhada alcachofra zelosa. Há, ainda, o
parentesco sonoro entre rocio e rosa e toda e toca, que rimam toantemente. Esses jogos
sonoros, a homofonia e a paronomásia, como no resto do poema, exacerbam: entrefÓLIO e
OLHO, gAMA A MÁquina. A sobreposição de sons e a metáfora da rosa remetem à
ubiqüidade da tradição no poema, que se vai abrindo e fazendo do texto um arquitexto. Como
a figura da rosa, a alcachofra, cujo centro e disposição das folhas lembra a descrição da
máquina feita em Os Lusíadas (no Canto X, 81 “este orbe que, primeiro, vai cercando/ os
outros mais pequenos que em si tem), remete, também, à analogia entre história literária e a
alcachofra feita por Calvino:
A realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa
[mato de árduo trato?], com estratos densamente sobrepostos. Como uma
alcachofra. O que conta para nós na obra literária é a possibilidade de
continuar a desfolhá-la como uma alcachofra infinita, descobrindo
dimensões de leituras sempre novas. (CALVINO, 2005, p.105).
Também Dias ([sd], p. 10), referindo-se ao poema de Haroldo de Campos, diz que, ao
oferecer a imagem da rosa e da alcachofra, o poeta reinveste de significado uma antiga
interpretação para a origem do universo dada pela filosofia chinesa: “o universo é um corpo
dotado de uma erótica [...] a natureza cósmica é movida por uma alquimia erótica em
permanente processo” e, além disso:
Ao ser tocada a “rosa”, metáfora de núcleo enigmático, é como se esse
toque se estendesse à própria linguagem, fabricadora dessa máquina poética
que se abre à leitura: um roçar criado concretamente entre os signos,
tocados por recorrências sonoras e paronomásias (rosa/zelosa, se abre ao
rocio, toca e qual// tal e qual, desfolhada/ entrefólio). Enfim: está deflagrado
o mistério do universo no poema, acionado pela operação com a palavra.
(ibid., p.10,11).
A pulsão erótica surge aqui, mais uma vez, associada à linguagem, à criação e com
força feminina; entretanto, a rosa-alcachofra abre-se porque se rende ao irrompente chuveiro
de rubis, que a mão divina faz constelar: o elemento masculino desencadeia a revelação, a
palavra, a rosa. E, para inverter a expressão drummondiana, rosa lâmina que atravessa o povo,
o homem, a história, e não ao contrário: rosa e lâmina; masculino e feminino: fonte motriz da
máquina poética. Como diz Octavio Paz o falo e a vagina são símbolos que emitem símbolos,
metáfora da comunicação. A linguagem que experimenta os limites da perfeição comunicativa
entre os corpos também é a linguagem de um modo geral, pois, se a linguagem, qualquer que
seja, é a forma mais perfeita de comunicação, “sua perfeição não pode ser outra coisa senão
erótica” (1979, p.21). A rosa que se abre diante do chuveiro de rubis é uma forma de
concepção da arte poética que se volta sobre suas próprias engrenagens, ou melhor, sobre seu
próprio corpo.
A essa altura do poema, o poeta passa a introduzir Drummond e o leitor tem a
sensação de que começará a caminhar por uma certa estrada de Minas; mas uma
interrupção, inicia-se uma digressão e volta-se a falar da máquina camoniana. Na verdade,
essa interrupção sugere uma concomitância da visão de Camões e da visão de Drummond
(que o retoma.); ao descrever a máquina apresentada por Tétis, de certa forma, o poeta de
AMMR descreve a máquina que se abre a Drummond. A beleza dos orbes do empíreo surge no
poema, ancorada em metáforas e jogos paronomásticos; essa exuberância reforçará, ainda
mais, o desconcerto de mundo de Drummond: diante de tão magnífica revelação, o poeta não
se deslumbra, mas segue de mãos pensas, levando consigo aquele orgulho, aquela cabeça
baixa. Não é tempo ainda da máquina itabirana; voltemos ao grande herói lusíada:
22) mas se o gama a esquadrinha e nela (a déia
tétis o guiando) a vista logo inflama
de espanto e fundo abisma e afina a idéia
23) com aquilo que se vê em cosmorama
o empíreo esplendoroso e os sucessivos
céus nele orbitando à lata luz que os flama
Vasco da Gama surge, na 22ª estrofe, guiado pela Deusa Tétis e observa atentamente
(esquadrinha) o espetáculo que lhe é apresentado: a grande máquina do mundo. Vê o empíreo,
o mais alto dos céus, morada de Deus; o empíreo é o Paraíso cristão; ao seu redor, posto que
ele é fixo, orbitam os outros céus. É exatamente o mesmo modelo de mundo de Dante, por sua
vez, inspirado na idéia dos epiciclos e do “grande movedor imóvel” aristotélico; as várias
esferas sucediam-se às esferas dos elementos Ar e Fogo, concêntricas com a do elemento
Terra.
Gama afina a idéia com aquilo que se em cosmorama. Cosmorama pode significar
tanto o lugar de onde se vê, como a série de vistas de vários países, observadas por meio de
aparelhos óticos. O texto camoniano não se refere a esse aparelho, mas remete-se a uma visão
do universo que possibilitava visão semelhante. Como ocorre ao longo de todo o poema
português, as divindades greco-latinas e as cristãs coexistem; porém, nas estâncias 82 e 85 do
Canto X ocorre a inevitável ruptura entre essas duas concepções (pagã e cristã), para que
vença a Divina Providência; os deuses greco-latinos servem para fazer versos, o Sumo Deus é
que tudo comanda:
24) e o móbile primeiro donde ativos
fazem-se o sol e os corpos sub-pendentes
do cristalino céu noveno – os vivos
25) estelantes luzeiros resplendentes
em áureo cinturão de esmalte vário
encadeando os sinais sempremoventes
26) do zodíaco (límpido bestiário
que a grupos constelantes dará nome:
grande ursa cinosura o lampadário
A descrição acima é do sistema ptolomaico: no primeiro móbile, a presença do Sol, e
por obra dele, o dia e a noite; depois, as estrelas e o áureo cinturão que faz referência ao
zodíaco e às constelações extrazodiacais
39
, que serão nomeadas nas estrofes abaixo. Os sinais
do zodíaco, sempremoventes, sugerem o movimento do Sol pelos signos, que são sua casa;
sempremoventes também são os sons de /s/ e /z/ e as leves assonâncias, em /u/ e /i/,
principalmente, que acompanham a idéia de móbile, melhor dizendo, a idéia de mobilidade
metafórica, atributo da poética haroldiana, segundo Sarduy, como destacado anteriormente.
No que concerne à construção do poema, a sonoridade, que entra em choque algumas
vezes, ou que chega à exaustão pela exacerbada repetição, cria a surpresa e faz com que o
leitor note tanto a harmonia fônica quanto a fratura fônica, como se, pelo choque os
significantes se anulassem reciprocamente (CAMPOS, H. 2002, p.36).
27) de carvões do feio drago – de renome
tendo ainda um gineceu: cassiopéia – a ela
mãe de Andrômeda – a morte não consome
28) que a turba das nereidas (por vencê-la
a bela) quis punir... à convidante
máquina atento ao nauta coube vê-la
29) por dentro acumulada num instante
e exultou: em geográfica cinese
iam-se as partes do mundo em desfilante
Vasco da Gama o mundo em desfile e, nesse desfile, as glórias da nação lusitana. A
retomada de Os Lusíadas é praticamente literal. Na estrofe 27, tal qual no texto de Camões,
surgem as constelações extrazodiacais
40
, e a máquina do mundo continua a abrir-se a Vasco da
39
Cf. LEITÃO in: CAMÕES, L. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1980.
40
As constelações são parte da narrativa mítica: Cassiopéia, rainha da Etiópia, mãe de Andrômeda, julgava ser a
mulher mais bela do mundo, mais bela do que as nereides. Estas, inconformadas com tamanha audácia, pediram
a Posseidon que castigasse todo o reino da Etiópia por tal afronta. O deus dos mares mandou então um feio
drago para assombrar o reino. Diante de tal ameaça, sugeriram ao rei que acorrentasse Andrômeda, sua filha, a
um rochedo e a oferecesse em sacrifício ao monstro. Perseu libertou Andrômeda, mas sua mãe, Cassiopéia, foi
transformada em uma constelação, para expiar a culpa por seu desmedido pronunciamento. Aqui vale notar um
aspecto interessante: tanto os feitos heróicos quanto as punições davam ao mito a oportunidade de transformar o
Gama, em geográfica cinese (agitação). A agitação pode ser acompanhada, no plano dos
significantes, pelas inversões sintáticas que continuam a ocorrer, porém aqui, ao contrário da
perturbação inicial, parece-nos que os hipérbatos sugerem a circularidade dos movimentos da
máquina do mundo, circularidade esta sugerida pela estrofe 30, que apresenta as terras
percorridas e conquistadas pelos portugueses.
Se a máquina do mundo dantesca (a visão do Paraíso), ou ainda, o próprio percurso
Inferno, Purgatório, Paraíso ecoam a descrição do universo aristotélica e o Hades do Canto X
de A República, a valorização de toda construção humana que em Camões, busca a
máquina do mundo na Ilíada. A máquina do mundo que aparece no poema homérico é obra de
um deus, é verdade, mas um deus ferreiro, criador.
A nereide Tétis (não a deusa, que mostra a máquina para Camões) era mãe de Aquiles.
Ao ver seu filho desolado e sabendo da invencibilidade de Heitor, também cantada pelo poeta
de AMMR, roga a Hefestos, o ferreiro dos deuses, o artesão laborioso, que faça armas
invencíveis para seu filho (Ilíada, Canto XVIII, p.257 a 265). Hefestos as fabrica com grande
habilidade; forjando e domando o ferro a força faz o escudo que protegerá Aquiles. Nesse
escudo, está a máquina do mundo; diante de suas armas, Aquiles se deslumbra, pois não são
elas factíveis por humanos e “nenhum ousa mirá-las de frente” (Ilíada, Canto XVIII, p.267).
No escudo de Aquiles vê-se o universo, as regiões do mundo, assim como na descrição
camoniana. Quando toma posse dele, o herói toma posse do Universo.
Não é à toa que Camões procure as referências de sua máquina na Ilíada. Segundo
Brandão (in: APPEL, M.B;GOETTEMS, M.B.,1992,p.53), ela pode ser considerada um poema
cósmico, à medida que os feitos descritos envolvem todas as esferas do universo (deuses,
homens, natureza), que se comportam de modos distintos, subjugados à ira de Aquiles. O
escudo de Aquiles não comporta só a descrição do cosmos, equivale a ele; assim, a habilidade
de Hefestos para forjar o escudo equivale à realização do poeta: o poema é o cosmos. A
evocação do escudo de Aquiles acentua o caráter épico do texto haroldiano e sua potencial
disposição para ordenar o cosmos “AMMR”, porque:
universo em representações desses mitos. As constelações que a ciência estuda carregam os mitos; mesmo que
estes se percam, resta o nome e essa nomenclatura une, inexoravelmente, o homem contemporâneo aos homens
primitivos. Mais ainda: a nomenclatura e os mitos que se escondem por trás das constelações fazem dos gregos
antigos nossos contemporâneos. É nossa necessidade de narrar que talvez preserve o nome das constelações
(BENJAMIM, 1986).
É nesse produto final [o poema], no canto cheio do poder divino da
ordenação do cosmos, que se instauram os elementos caracterizadores do
que entendemos por épico: na relação de Zeus com a memória, dos fios com
a trama, do mundo com o herói o que poderia ser perfeitamente resumido
na relação do epos que tece com os épea que urdem, ou no diálogo da voz
do poeta com outras vozes. (BRANDÃO, op. cit., p.54)
Como foi dito na introdução, o diálogo do poeta com outras vozes é reflexo da
vocação para o futuro que os clássicos têm. Em AMMR, não há limites de tempo e espaço para
a viagem do eu-poético, que salta, de uma a outra estrofe, para diferentes épocas: sua palavra
ordena o cosmos, marcando-o de simultaneidade. Só por isso é que consegue estar onde Gama
esteve. Cada parcela da tradição visitada pelo eu-poético corresponde a um fragmento do
escudo de Aquiles, que é, também, a máquina do mundo camoniana. O poema haroldiano é a
conciliação desses pedaços esparsos e dispersos no tempo, aparentemente distanciados uns
dos outros, de modo que AMMR repensa o mundo em termos de cosmologia e cosmogonia do
universo literário.
Das terras do mundo percorridas, o poeta em AMMR destaca, talvez por uma razão de
sonoridade mesmo, Benemotapa, termo que se refere ao soberano de terras africanas, hoje
situadas em Manica e Sofala, Moçambique, e Trapobana, que fica no Ceilão. A paronomásia
entre BeNemOTAPA e TrAPOBANA e a relação anagramática entre elas, ou mesmo o
deslocamento da ordem das consoantes, é circular todo o plano de expressão gira,
circunavega, conforme gira a máquina do mundo diante dos olhos de Vasco da Gama e do
poeta de AMMR.
30) rodízio ao olho expondo-lhe a geodese
patente e já mapeada: desde beno-
motapa à trapobana e à catequese
31) por tomé em narsinga e ao do sereno
santo miraculoso atroz martírio
e à glória que do céu ganhou em pleno –
Os feitos lusitanos acontecem por desejo de Deus, já que os portugueses são servidores
da fé e, como São Tomé, santo e mártir, levam a catequese às terras conquistadas. Camões é o
poeta do povo português e o poeta da epopéia moderna. De fato, como aponta Hansen:
O mito Camões tinha o carisma da heroicidade e da incompreensão e
significava a epopéia que engrandecia o povo português, dando uma
contribuição decisiva para a gênese da modernidade. Simbolizava tanto a
nação quanto a humanidade; permitia reivindicar para Portugal um papel
decisivo na construção do progresso humano, ao mesmo tempo que a
denúncia da apagada e da vil tristeza do seu mundo sugeria comparações
críticas com o presente. (HANSEN, In: NOVAES, 2005, p.168).
O poema camoniano retoma a missão do povo português, retoma as cruzadas, a
necessidade de levar a cristandade para o mundo pagão e, mais ainda, de fazer valer a
cristandade em solo lusitano. Muito mais do que da ordem da historiografia, a ritualização do
passado era uma invenção do poeta-gênio (HANSEN, op.cit., id) para enfrentar seu desconcerto
do mundo, por meio da fé, da invocação da sapiência divina; a apologia a São Tomé, santo e
mártir, diante de Vasco da Gama, mostra que a fé no Paraíso divino deve orientar as ações do
homem, devem ser meio para evitar seu desconcerto.
32) pois à máquina de astros que a seu giro
orbes sobre-regula o marinheiro
– almirante rendeu-se qual se um tiro
33) de mágico pelouro por inteiro
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro
O marinheiro-almirante rende-se à máquina do mundo que gira, orbita, diante do
navegante; a revelação é de tal modo epifânica que essa rendição acontece como se um
mágico pelouro (bala feita de pedra) disparasse um tiro, artifício interessantíssimo usado para
introduzir, novamente, o significante pedra no poema, mas, desta vez, para falar
explicitamente de Carlos Drummond de Andrade e de seu duro mundo. Duro mundo pedra,
sertão, presente também em Euclides, Graciliano Ramos, Cabral e, evidentemente, Rosa.
Na estrofe 33, o diálogo com a tradição brasileira parece ser estabelecido de fato e este
é um ponto muito importante para a leitura do Canto I do poema de Haroldo de Campos,
escritor sempre preocupado em ler o cânone pela adoção de um processo brasileiro de
produção e crítica literárias: do Brasil para o mundo. É nesse sentido, talvez, que a idéia
haroldiana do cânone pode parecer próxima daquela defendida por Fábio Lucas:
A missão do escritor, parece-nos, consiste em reconquistar seu lugar no
grande curso da cultura. A formação de um cânone moderno dependerá
muito da disposição entre os escritores de adotar um processo brasileiro de
literatura. Isso significa: primeiro conhecimento de nosso passado literário,
pois é na continuidade que o cânone se cristaliza; segundo, prática de
intercâmbio cultural com outras nações, de tal modo que as agregações
externas sejam enriquecimento e não servidão; terceiro, despojamento da
consciência ingênua, que se deslumbra com a presença do estrangeiro, a
ponto de atribuir qualidade àquilo que não passa de diferença (LUCAS,
199?, [ ] .).
Deve-se, entretanto, ressaltar que, para Haroldo de Campos, há que se ter cuidado com
essa continuidade e com a cristalização do cânone, não petrificar, mas tornar as experiências
passadas permeáveis de modernidade; além disso, para Campos, o despojamento da
ingenuidade significa tanto a aversão à servidão e à cópia, quanto o ufanismo romântico,
ultrapassado, que rejeita tudo o que é estrangeiro, e que possa significar invenção; a diferença
é, nesse sentido, qualidade, porque enriquecedora da experiência, justamente pelo hiato que
promove. Hiato que deve ser incorporado antropofagicamente. Essa devoração antropofágica
atua, segundo a ótica haroldiana, como assimilação de cultura, em termos valorativos:
A antropofagia é uma devoração cultural, é uma maneira de devorar os
outros valores, mas de uma perspectiva brasileira, modificando as relações,
dando novas ordens nas coisas. Isso é muito importante. Não é uma
transposição, mas é uma renovação das ligações entre os fatos. Você junta,
como dizia o Osvaldo na tese dele, Sócrates, Tarzan e as odaliscas de
Catumbi. São tipos de relação feitas num contexto totalmente diferente do
europeu. (CAMPOS, H. 2003, p. E3).
Por isso, não importa tanto a posição ideológica de um autor, mas a maneira como ele
pensa a literatura e como seu pensar sobre literatura pode servir ao princípio antropofágico e
sincrônico de Haroldo de Campos
41
. Princípio este que nascemorre na literatura brasileira, que
faz, também, papel de máquina do mundo. Esta visão do universo, este contato, é
experimentado pelo eu-poético de AMMR porque ele procura criar o contato que foi criado
pelos seus precursores:
O contato com o mundo significa a violação árdua [...] Desvendar o enigma
do universo [...] não é um ato que se faz de imediato e com facilidade. Eis o
que nos ensinam os poemas. que construí-lo como uma peregrinação
lenta e que envolve riscos, como o de ser enredado nos ardis fabulosos e
ceder ao feitiço feminino que amortece a consciência (Camões), o de não se
sentir preparado para acolher este saber (Drummond) ou de se reconhecer
devedor de caminhos trilhados por outros (Haroldo de Campos). (DIAS,
[sd], p.12).
Ao evocar a tradição literária brasileira, em AMMR, o poeta volta-se para seu umbigo,
umbigo do mar de onde brotam as raízes da árvore da linguagem, como no poema Thálassa,
Thálassa: deusa-leoa da sua linguagem, da sua linhagem, rosa, ou uma flor-palavra, como
ensina a Antiode cabralina:
[...]
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido
41
Nesse sentido, por exemplo, importa menos que Borges fosse reacionário, do que sua posição acerca do
escritor e seus precursores; importa menos que Maiakóvski fosse comunista, do que sua posição sobre arte
revolucionária; importa menos que Pound tivesse idéias controversas sobre os regimes de extrema direita, do que
sua posição acerca do paideuma. Para Haroldo de Campos, o verdadeiro enriquecimento vem pela incorporação
dos aspectos desse cânone que são ricos para a literatura nacional, ou ainda, universal, independentemente do
compromisso ideológico dos escritores. Diz Haroldo de Campos: “[...] é claro que eu tenho uma influência muito
definida, [...], do Pound. Mas há também diferenças, algumas vezes até bastante grandes. E não estou falando do
lado político, que isso é evidente. Falo do lado estético. Pound nunca compreendeu o barroco” (CAMPOS, H.
1998, p. 20). Por se que a antropofagia haroldiana não faz pré-julgamentos, e é capaz de reconhecer,
mesmo entre grandes distanciamentos ideológicos e estéticos, o valor da obra de determinado poeta para a
composição do seu próprio paideuma: “Então eu posso dizer que tenho um paideuma meu [...]”. (ibid., p.22).
se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina
uma jarra de flores.
(Cabral, 1997, p.69)
A flor que se abre é poesia, porque é palavra: palavra, “explosão posta a funcionar
como uma máquina”. A máquina do mundo repensada é a poesia-máquina do mundo
repensada a partir do paideuma haroldiano, que desde os primeiros versos revela o nonada
sertão, que é um nada “prenhe como um mar”, tanto quanto o canavial de João Cabral de
Melo Neto (ibid.,p.207). Prenhe de linguagem poética, em meio à qual o leitor pode se perder
ou se encontrar, posto que esta máquina equivale também ao Universo. É, como diria Rosa,
um elemento metafísico.
II.1.5 A máquina poética, o sertão, o duro mundo
II.1.5.1. – O sertão
A obra de Guimarães Rosa passou a definir novos rumos para a literatura brasileira, em
especial a partir da publicação de Grande sertão: veredas, embora toda sua obra seja marcada
pelo experimentalismo e por um profundo respeito às múltiplas possibilidades de uso da
língua: “incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais
possibilidade de expressão”
42
.
Para tentar compreender os diálogos com a tradição brasileira, é importante retomar a
primeira estrofe do poema e, talvez, ter em mente o que diz Guimarães Rosa: “o Brasil é um
cosmo, um universo em si”; desse modo não será difícil perceber que, pensando o Brasil
como um cosmo, os acentos rosianos preenchiam de sertão a máquina-poema de Haroldo
de Campos desde o início.
1) quisera como dante em via estreita
extraviar-me no meio da floresta
42
As citações de Guimarães Rosa, feitas nesta seção, dizem respeito à entrevista que ele concedeu a Günter
Lorenz in: COUTINHO, 1983.
entre a gaia pantera e a loba a espreita
2) ( antes onça pintada aquela e esta
de lupinas pupilas amarelas)
neste sertão mais árduo que floresta
3) ao trato – de veredas como se elas
se entreverando em nós de labirinto
desatinassem feras sentinelas
O que é árduo é o sertão de difícil trato, como as pedras drummondianas; se
entreverando em nós, como o sertão de veredas rosiano: “Rosa é invocado nas expressões
“neste sertão” (2.3) e “veredas se entreverando” (3.1 e 2), “a verdade não há” (CAMPOS, H.
2002, p.69). Retomando-se as rimas petrosas dantescas, mencionadas ao longo da leitura das
estrofes iniciais, é possível estabelecer uma mesma relação entre a pedra e a poesia em Carlos
Drummond, talvez mesmo seja a poesia no meio do caminho, pedra, a esgotar as fatigadas
retinas do poeta que, mais ou menos vinte e cinco anos depois da publicação de no meio do
caminho, debate-se em seu Claro Enigma. Mas, ainda que as rimas petrosas remontem a
Drummond, a imagem do sertão é por demais rosiana, segundo a indicação do próprio
Haroldo de Campos: como nós e labirintos, tal imagem parece fazer parte do pouco, ou muito,
de Riobaldo e de sertão que temos, já que “Rioboaldo é o sertão feito homem” (ROSA).
Do ponto de vista da literatura brasileira, e do imaginário brasileiro, o sertão tem um
significado muito marcado como lugar caracterizado pela aridez, em amplo sentido, e também
como um topos desconhecido, descomum, desmesurado, sentidos dados a ele por Guimarães
Rosa, como pontua Marchezan (2006, p.3). Esse autor também nos mostra a proximidade entre
esta idéia de sertão rosiano e a idéia do sertão como o “dificultoso”, apresentada por Camões
no Canto X de Os Lusíadas (134):
A gente do Sertão que as terras anda
Um rio diz que tem miraculoso,
Que, por onde ele só, sem outro, vai,
Converte em pedra o pau que nele cai
Mistério e dificuldade. O sertão rosiano que surge nos versos acima destacados,
retoma o sertão camoniano, mas é muito mais do que ele, pois equivale ao universo, ainda
que do ponto de vista da nossa tradição literária. Parece claro, então, o estabelecimento de um
diálogo entre uma tradição de poesia, espaço-temporalmente indefinido no longínquo da
tradição, e a delimitação de um espaço de onde este diálogo se estabelece (neste sertão)
marcado pelo demonstrativo este, que tanto aproxima o eu-poético do sertão como indica que
é do sertão que ele passará a falar logo adiante.
Conforme diz o próprio Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz, a
internalização do sertão é a possibilidade de “libertar o homem” e “devolver-lhe a vida” (In:
COUTINHO, 1983). O sertão deve ser entendido do ponto de vista metafísico como o terreno
“da eternidade e da solidão [...], onde o exterior e o interior não podem ser separados [...]
no sertão o homem é um eu que ainda não encontrou um tu, por isso ali os anjos e o diabo
manuseiam a língua [...] o sertanejo está ainda além do céu e do inferno” (ibid, p.86).
Há, nessa citação de Rosa, aspectos que elucidam bastante as escolhas do poeta em
AMMR. É certo que a estreita via, o mato denso e árduo ao trato, surgem na Comédia como
também em Os Lusíadas; mas, pelo que afirma Rosa, esse topos insólito e, ao mesmo tempo,
equivalente ao Universo, vale pelo seu sentido de travessia: o homem está em busca de; o tu a
que se refere Rosa pode assumir muitos significados e o sertanejo, que é aquele que vem do
sertão, ou ampliando, aquele que atravessa o sertão, está além do céu e do inferno, portanto,
está no eterno, no nada, nonada; uma vez que céu e inferno são entendidos como lugares
limítrofes na concepção de mundo ptolomaica, dominante no Canto I de AMMR, estar (ainda)
além dessas duas instâncias é estar em algo que não se define, ou que escapa à compreensão
exatamente como escapa a compreensão o infinito – o fim ou o nexo do universo:
Eu creio firmemente [na ressurreição do homem e no infinito]. Por isso
também espero uma literatura tão ilógica quanto a minha, que transforme o
cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável [...]. No
sertão cada homem pode se encontrar ou se perder, as duas coisas são
possíveis. (ROSA/ LORENZ, in: COUTINHO,1983, p.93,94).
Pires (2007) mostra, ao analisar Recado do Morro, de Guimarães Rosa que à idéia do
sertão vincula-se o tema da cosmogonia: “o sertão é o mundo” de Grande Sertão: Veredas e
surge em o Recado do Morro de modo que:
[Em] “O recado do morro” o escritor privilegia o sistema planetário antigo,
aristotélico-ptolomaico e teocêntrico (o mesmo explorado por Dante e
Camões), para configurar, no sertão mineiro, um mundo atemporal, bastante
particular, cuja construção revela, na argamassa, vários elementos de várias
tradições. Por outro lado, sua visão do homem que habita esse espaço é
claramente antropocêntrica e universal, ainda que esse homem seja apenas
parte de um mundo uno, essencial, perfeitamente idealizado. É como se o
autor, com a recusa do heliocentrismo de Copérnico, recusasse também os
dilemas advindos com a modernidade e suprimisse a História e o tempo
linear tão característico do Cristianismo e do conceito de progresso que
avassala o mundo ocidental pelo menos desde o século XVIII. Assim, sua
literatura revolucionária se insere na revolução às avessas preconizada por
Octavio Paz como típica da poesia da modernidade, sempre às voltas com a
magia e o tempo cíclico (PIRES, 2007, p.16).
Talvez seja este sertão de O Recado do Morro que coincida com a cosmogonia
ptolomaica do Canto I de AMMR. De qualquer maneira, o poeta de AMMR, ao revestir o
início do poema de uma aura mitológica, proporcionada pela presença do labirinto,
perceptível no plano significante, por exemplo, pelo espelhamento de veredas se
entreverando (DIAS,[sd], p.6) e por fazer do sertão esse labirinto, reitera a visão de Rosa;
nesse sentido, talvez haja mais encontro do que desencontro, já que as veredas (veras veredas)
se entreveram, como raízes, no eu-poético de AMMR, e parecem competencializá-lo a
desenvolver seu percurso, sua busca, que, por sinal, parece extremamente coincidente com
aquela presente na obra rosiana: não se trata de observar a quina do mundo abrir-se, nem
de recusar-se a vê-la, nem de admirá-la, mas de penetrá-la; como em Rosa, penetra-se no
mundo:
Em Guimarães Rosa o mundo se abre como problema. Ele é perplexidade e
mistério. Às vezes pode ele raiar numa “verdade extraordinária”: a alegria
cósmica, de que o amor é apenas uma das expressões. Outras vezes o
mundo se fecha no seu círculo de enganos. É assim que o mundo é aberto
por Guimarães Rosa como um leque de perspectivas. (COSTA LIMA, In:
COUTINHO, 1983, p.513)
A atitude diante do sertão em AMMR é, portanto, de dúvida investigativa. É o
mergulho em busca da compreensão, como diz o próprio Haroldo de Campos:
Minha perspectiva, não respondendo a uma inicial (como a de Dante e
Camões), nem a um ceticismo desilusionado e radical (como em
Drummond), é agnóstica, ou seja, em vez de “incuriosa”, animada pela
curiositas, pelo desejo de, na dúvida, explorar os possíveis que a
hermenêutica do enigma oferece: não crendo, nem descrendo, mas
duvidando e inquirindo, no sentido de buscar (até onde factível) o
conhecimento. (CAMPOS, H.2002, p.66)
Essa postura parece complementar a consideração feita por Guimarães Rosa,
segundo a qual, “no sertão um homem pode se perder ou se encontrar”, o que importa, na
verdade, é a travessia, é penetrar no mundo, na própria máquina do mundo que pode ser, para
o eu-poético de AMMR, a linguagem poética, o sertão que vai se entreverando nele. Para
Costa Lima é preciso entender o sertão rosiano sob duplo dimensionamento: um é o do sertão
como o território do medo, da desmedida, das interrogações irrespondíveis; o outro é a
dimensão libertadora do sertão, utópica, que inverte a imagem do que ele é de fato: ou seja, a
utopia é justamente o sertão e suas interrogações não tem resposta, respondê-las seria utopia;
esse irrespondível é marcado pelo sertão-noite, pelo sertão treva, pelo sertão linguagem
(LIMA 1972, p.54).
A compreensão do sertão coincidiria, para Costa Lima, com a busca de um núcleo
que unificasse a sociedade, como espaço geográfico, mas também como um insondável que
existe para ser revelado e é nesse sentido que se pode dizer que o sertão é a própria máquina
do mundo. Entender o sertão é entender a sua linguagem cifrada: “não são bem enigmas que
se propõem, mas sim irrespondíveis interrogações. [...] Os iniciados na linguagem cifrada do
sertão-noite serão os tradutores de sua mensagem para aqueles que restam circunscritos à
linguagem mediana e restrita da primeira dimensão”, (o sertão como lugar geográfico).
(LIMA, 1972, p.57)
A forma como o poeta em AMMR considera o sertão (se entreverando em nós) mostra
que ele está imerso nele: o sertão é a própria máquina do mundo, é a máquina do poema e,
conseqüentemente, a linguagem que o constrói, por vias pedregosas e labirínticas, o eu-
poético é conduzido pelo jogo de som e sentido dos significantes, reverberando as escolhas de
Rosa:
Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre
moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro.
Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua
obriga a crer. (ROSA, op. cit., p.88).
A preocupação com a construção do plano significante do poema é sempre uma
constante na obra haroldiana, desde a fase que antecede a experiência concretista e sua
orientação verbivocovisual. Vale, para AMMR, o que diz Donaldo Schüler (1983, p.370) sobre
Grande Sertão: veredas, ao ressaltar a maneira pela qual os significantes nascem e são
carregados de novos significados, como se a obra fosse se constituindo num significado único
ligado a um único significante.
Um exemplo muito interessante do uso da sonoridade e do caráter dialógico que essa
sonoridade assume em AMMR está nas seguintes estrofes:
1) quisera como dante em via estreita
extraviar-me no meio da floresta
entre a gaia pantera e a loba a espreita
2) ( antes onça pintada aquela e esta
de lupinas pupilas amarelas)
neste sertão mais árduo que floresta
3) ao trato – de veredas como se elas
se entreverando em nós de labirinto
desatinassem feras sentinelas
4) barrando-me hýbris-leoa e o variopinto
animal de gaiato pêlo e a escura
loba – um era lascívia e a outra (tinto
A análise da sonoridade foi destacada no início deste capítulo, mas é importante
retomar a idéia de que as sibilantes sugerem o ruído das feras. Essa sibilante está em sertão e
seu uso recorrente também ocorre em Grande sertão: veredas, em diversas passagens, mas
em uma, especificamente, aproxima o sertão de satã e, conseqüentemente, do Inferno, que é
justamente onde está o poeta em AMMR quando surgem as feras sentinelas. Diz Augusto de
Campos sobre o livro de Rosa:
O tema sertão, numa passagem que é um dos momentos ápices do livro, é
reduzido, fenomenologicamente, ao fonema S, ao mesmo tempo que se
estabelece uma associação reveladora: SERTÃO-SA (este último
vocábulo como que sotoposto àquele):
- e então, eu ia denunciar o nome, dar a cita... Satanão! Sujo! e dele disse
somentes – S... – Sertão... Sertão...
(CAMPOS, A. In: COUTINHO, 1983, p. 345).
As mesmas revelações ótico-acústicas e reverberações timbrísticas, apontadas por
Augusto de Campos, a propósito do livro de Rosa, podem ser encontradas nessa passagem de
AMMR, justamente quando o sertão e o Inferno são temas. Também nas estrofes de AMMR
destacadas acima, prevalecem os hipérbatos, analisados e que sugerem o próprio labirinto
em que se encontra o eu-poético. Esse recurso é usado por Rosa em Grande sertão: veredas e
muitos outros textos e cumpre uma função importante no estabelecimento do vínculo entre os
significantes e o significado.
As inversões, por violentas que sejam, não constituem mero capricho do
escritor. Desarticulam o discurso lógico, autonomizam a palavra,
visualizam. Os conjuntos seccionados são pequenos, interrompidos sempre
por vírgulas e pontos. [ ] É u m passo além no aproveitamento do anacoluto.
Pode corresponder à técnica da música de Webern: não desenvolvimento
melódico. Razão psicológica São os pensamentos que apenas se esboçam e
são cortados por outros. Estilisticamente é a aceitação do caos. (SCHÜLER,
In: COUTINHO, 1983, p.375).
É evidente que esses recursos estilísticos não são exclusivos dos textos rosianos ou
haroldianos, mas estão presentes em muitas obras, a maior parte delas, marcadas pelo
barroquismo. Entretanto, é interessante notar que Haroldo de Campos retoma seus
precursores em suas estéticas também. As peças vão deslizando pelo tabuleiro de xadrez,
diagonalmente, como os bispos; o que, aliás, vai muito bem neste primeiro Canto, tão
marcado pela lógica ptolomaica da Igreja Católica. As peças vão deslizando pelo tabuleiro de
xadrez, aos saltos, como os cavalos, levando o leitor a um ou outro ponto da tradição, como
se articulasse flash backs e travelings para incursões em tempos e espaços diversos daquele
em que se situa” o poeta. (CAMPOS, A. In: COUTINHO, 1983, p.327).
Captar, pela melopéia e logopéia, os rastros deixados pelo poeta em AMMR, não é
tarefa simples, mas causa entusiasmo a descoberta dos diálogos e as marcas da tradição no
texto haroldiano, complexo xadrez de estrelas, de constelações, xadrez de galáxias em aura
mítica. Trata-se, aqui, de entender o sertão como espaço de convergências de linguagem. Não
é à toa que é a hybris leoa da linguagem que barra o poeta. Toda a referência ao sertão é
metalingüística, no caso de AMMR, assim como parece ser em Dante e em Camões (é preciso
decifrar o mato de duro trato); assim como é em Rosa, conforme aponta Costa Lima (1972,
p.59):
Conviver com as possibilidades da linguagem/ reduzir-se à linguagem da
comunidade. Não que o autor houvesse recuado a uma variante do culto
romântico da natureza. É sim que ele a comunidade humana como
núcleo formado por uma rede protetora, que, de tanto defender o homem,
termina por torná-lo incapaz de distinguir as vozes da natureza-sertão, isto
é, do sertão-noite. Com isto, como dissemos, recupera a idéia da linguagem
como nomeação, declaradora tanto do cristalino como do opaco, tanto da
pergunta em situação de conversa, quanto da indagação sem possibilidade
de resposta.
Ora, esse tratamento dado à linguagem corresponde a uma renovação das formas,
uma maneira de ensinar ao homem a linguagem dos poetas, ao invés de fazer o poeta falar a
linguagem comum. O leitor de AMMR não é um leitor qualquer; talvez isso aconteça porque o
leitor comum, dada a prisão imposta pelas formas canonizadas, vê-se impossibilitado de ouvir
as vozes do sertão-noite; é incapaz de aceitar a convivência com a opacidade da linguagem,
como o indecifrável. Claro que parece aqui que o poeta é um iniciado, a poesia é a linguagem
iniciática por excelência, porque sua palavra é fundadora de uma realidade: a poética. Daí
poder-se falar na aura mítica que perpassa todo esse canto e que parece engendrar não apenas
uma mitopoética, mas uma cosmopoética. Repensar a máquina do mundo, é repensar os mitos
fundadores do Universo e a compreensão do Universo é acessível àqueles que aceitam seus
desafios.
Essa aura, típica das narrativas míticas, tem como peculiaridade o sertão (não apenas
o dantesco ou camoniano, mas o rosiano, principalmente); e a onça, fera sentinela, que nele
habita. Como destaca Leda Tenório da Motta:
Tudo nessa dicção introduz próprio significante, trazendo-o para perto de
nossa cultura: onça pintada envelhecida (mas não velha, e confundir uma
coisa com a outra redundaria num palpite tão infeliz quanto pensar que as
telas de Van Gogh são sobre girassóis e não sobre o amarelo [...]) (o poema)
pede para ser percebido como uma outra forma, senão como a suprema
forma o poema sendo deslumbrante de reflexão estética e de
provocação. (MOTTA, 2004, p. 167).
Essa reflexão estética, a que alude Motta, é vista por alguns críticos como
“preciosismo forçado e abstrato” (FRANCHETI, 2000, D3), mas, sem dúvida, esta é uma
leitura ingênua, ou centrada na biografia pessoal de Haroldo e não na do autor, conforme se
comentou na introdução. A provocação e a ironia refletem-se na “pomposidade” proposital do
léxico. O preciosismo é intencional e tensional visa à tensão da leitura ao dirigir-se para um
leitor-parceiro-de-jogo que perceba (ainda que não apreenda na totalidade) a profundidade dos
diálogos estabelecidos por Campos em AMMR; um leitor capaz de captar os jogos cifrados no
plano de expressão do poema.
É como se essa metalinguagem, menos que oferta, se fizesse como um
repositório de um saber que se abre a leitores especiais, convocados
também a uma espécie de percurso iniciático por esse texto singular.
Noutros termos: a engenhosidade dessa máquina-poema se oferece a
quem puder dominar o projeto mais íntimo da sua engenharia (DIAS, op.
cit., p.2).
Dominar o projeto mais íntimo é captar os jogos cifrados, ou no caso específico do
sertão e das feras, talvez seja seguir os rastros dessa onça pintada. Desde que é o sertão
rosiano que se entrevera também no leitor, a onça pintada parece sugerir a onça de Meu tio o
Iauaretê por dois aspectos fundamentais: o da transformação do onceiro em pantera, e que em
AMMR surge como a transformação da pantera em onça pintada, aproximando-se das nossas
referências; e o outro aspecto é a linguagem do Iauaretê que reproduz em onomatopéias e
expressões cunhadas do tupi a “linguagem das onças”:
Então se percebe que, neste texto de Rosa, além de suas costumeiras
práticas de deformação oral e renovação do acervo da língua [...], um
procedimento prevalece, com função não apenas estilística, mas fabulativa,
[...] que dará à própria fábula a sua fabulação, à história o seu ser mesmo.
Para ver como funciona o processo, basta atentar para o fato de que o
tigreiro [...], enquanto conta, para seu hóspede desconfiado e que reluta em
dormir, histórias de onça, está também falando uma linguagem de onça.
(CAMPOS, 1992, p.60)
Também em AMMR as assonâncias e as aliterações cumprem função onomatopaica e
sugerem os ruídos das feras, como já foi dito; porém, toda a construção do plano de expressão
do poema, analisada até aqui, e os meios pelos quais engendra o plano de conteúdo, mais do
que função estilística, parece também cumprir essa função fabulativa mencionada por
Campos, fornecendo à máquina poética “seu ser mesmo”. No caso especifico da linguagem
rosiana, é como se Haroldo adotasse, parcialmente, o mesmo procedimento que em
Grande sertão: veredas. Na obra rosiana, a linguagem “identifica-se, isomorficamente, às
cargas de conteúdo que carrega, e passa a valer, ao mesmo tempo, como texto e pretexto, em
si mesma, para a invenção estética” (CAMPOS, A. in: COUTINHO, 1983, p.321).
A análise do sertão faz perceber, parafraseando Borges, que mais do que bela, a poesia é
inevitável. Inevitável como o sertão é para Rosa. Quem repensa a máquina do mundo não é
apenas o poeta, mas também o leitor – é diante dele que a máquina se abre e gira, a cada volta,
novos significados são revelados, novas descobertas são feitas. Se numa primeira rotação são
Dante e Camões que vemos diante do poeta, na segunda rotação vemos Rosa e o sertão. Mas o
sertão não é apenas rosiano, está também em Cabral, o engenheiro o perseguidor da forma
perfeita e está em Graciliano e suas fortes imagens. Está em Euclides. Se a poesia em AMMR
equivale ao Universo, está nas entranhas do poeta tanto quanto o sertão “se entrevera em nós”,
ele mesmo, o Universo, a linguagem.
II.1.5.2 A máquina e o Relógio do Rosário
Neste ponto da leitura, não é mais possível adiar o encontro com a máquina do
mundo drummondiana. Mais uma vez, é crucial voltar ao início do poema para seguir
pegadas. O final do Canto I é drummondiano; as referências são explícitas. O que ocorre,
entretanto, é que este Drummond faz-se presente em todo o Canto I, desde o início. De fato,
parece que a atmosfera drummondiana invade as primeiras 40 estrofes de AMMR. Na estrofe
18, por exemplo, Drummond é retomado, entretanto, a “narrativa” é suspensa e volta-se a
falar de Vasco da Gama.
O adiamento não é tenso, mas tem efeito retardador. Em Mimeses, Auerbach (2004)
discute a Cicatriz de Ulisses. Trata-se do episódio da Odisséia em que Ulisses, chegando ao
palácio de Ítaca, é recebido para o lava-pés por Euricléia, a escrava. Penélope está no mesmo
aposento, mergulhado na penumbra. Euricléia apalpa a cicatriz e se enche de alegria, mas
Ulisses não deseja que Penélope saiba, ainda, de sua presença. Segura, então, a escrava pelo
pescoço e ela deixa cair seu na bacia. Entre o reconhecimento e a continuidade da cena,
estão interpostos fatos os quais, rememorados na cena narrativa, informam ao leitor o que
ocorreu, como foi que Ulisses se feriu e, mais do que isso, impedem o fim, a derradeira cena.
Auerbach ressalta que esta suspensão do tempo não é feita para provocar tensão, mas
para que nada seja deixado na obscuridade; é, pois, um retardamento. Ao que parece, esse
procedimento surge em AMMR, por diversas vezes; em relação a Drummond, é bastante
explícito. Não quer o poeta provocar tensão no leitor, mas ele mesmo, mnemonicamente,
parece reclamar e suspender a presença drummondiana, que se vai impondo aos poucos no
texto. O caminho é da circularidade, é a volta, o retorno, exatamente como na Odisséia e já se
mencionou aqui o quanto a épica seduz Haroldo de Campos e o quanto Ulisses é parte deste
cosmonauta do significante.
Há, ainda, um outro aspecto muito interessante desse retardamento. O retardamento
significa a manutenção da narrativa e, portanto, de Ulisses. Chegar a Ítaca e reassumir seu
lugar significa a morte de Ulisses, seu fim, que é, para se usar aqui um termo rosiano, a
travessia que importa. O que significaria para Odisseu a volta, o reconhecimento, o
enfrentamento do tempo que passou ausente? O que significa para o eu-poético de AMMR o
duro mundo drummondiano? A morte, no primeiro caso? A agnose depois dos diálogos
mantidos com Dante e Camões, no segundo caso?
Haroldo, muito perspicaz a esse aspecto, traça, em seu Finismundo a última viagem,
o panorama de uma última viagem de Ulisses; nela, retoma o encontro entre Ulisse e Dante
em a Comédia e dá ao herói a possibilidade de morrer por tentar, de certa maneira, ir além do
desmedido, o que é uma “hybris da hybirs”: O Ulisses de Haroldo quer ultrapassar as colunas
de Hércules e chegar ao Paraíso terrestre, por isso arrisca uma última viagem, mas fracassa ao
tentar, luciferinamente, ultrapassar o signo, os limites permitidos aos mortais.
No caso de AMMR, o leitor sabe que ao final estará Drummond (como se sabe
que Ulisses retornará). As primeiras palavras sugerem isso. Encontrar Drummond, e o
Drummond de Claro Enigma, é voltar para casa, depois de tanto navegar e trilhar as veredas
do sertão que se entreveram no eu-poético. Assim como Ulisses tinha a certeza de Ítaca, o
poeta de AMMR tem a certeza de Drummond, ao menos neste Canto I. Da mesma forma que
Ítaca, marcada pelos anos, não será a mesma, o Drummond (re)encontrado não será o mesmo,
mas aquele sombrio e desfeito do ímpeto das primeiras experiências poéticas: desfeito do
ímpeto, mas não da ironia, como se verá adiante.
O poeta de AMMR parece não se acomodar com esse (re)encontro entre ele e a
tradição, não é a velhice que manterá o eu-poético nos versos de métrica decassilábica, mas
seu impulso de navegante o obrigará a armar novamente o barco e sair, arriscar todas as
reinvenções (decassilábicas) possíveis. O impulso do eu-poético haroldiano é de vanguarda,
sempre, dos primeiros poemas ao último.
No final, Drummond. No início, Drummond. Ler o Drummond presente em AMMR
implica, pois, voltar às primeiras estrofes, recomeçar a viagem a partir de outra estrada, ou da
mesma, que o poeta mineiro também revisita Dante e Camões. Como aponta Haroldo de
Campos:
Assim como, no Canto X do poema camoniano, uma retomada
intertextual do Canto XXXIII (último) do “Paradiso” e de toda a
Commedia, Carlos Drummond de Andrade, no seu admirável poema A
máquina do mundo” (Claro enigma, 1951), dialoga com ambos esses textos
exemplares. Nesse dialogismo poético, não apenas comparecem o Dante e o
Camões cosmológicos, mas ainda a “Cantica Infernal” da Divina comédia
(a “estrada de Minas pedregosa”, replica à selva selvaggia e aspra e forte”,
em que Dante se de súbito perdido, que “la dritta via era smarrita”;
responde também, ao “percurso árduo, difícil, duro a humano trato” que, em
Camões, descreve a viagem aventurosa do Gama “por mares nunca dantes
navegados”; (C. 1 v.3; C. X, 76, v.8). (CAMPOS, H. 2002, p. 63)
Mais uma vez, assim inicia AMMR:
1) quisera como dante em via estreita
extraviar-me no meio da floresta
entre a gaia pantera e a loba à espreita
2) (antes onça pintada aquela e esta
de lupinas pupilas amarelas
neste sertão mais árduo que floresta
Ao que parece, o poeta vinha caminhando num sertão, neste sertão mais árduo que
floresta, ou era ele mesmo o ser, tão mais árduo que floresta. O uso do pretérito-mais-que-
perfeito em quisera reforça tanto o desejo quanto a impossibilidade de o poeta caminhar como
Dante, que no lugar da floresta, o sertão (rosiano, como vimos) que se entrevera; no
lugar da pantera, a onça pintada e a loba, cujas lupinas pupilas são amarelas como a pele da
onça. Parecem ecoar, nessas duas primeiras estrofes, o e como eu palmilhasse, primeiro verso
de A Máquina do Mundo de Drummond: a estrada de Minas é pedregosa e, ao ler os versos
inicias de AMMR, vê-se que o poeta também está em pedregoso terreno – o sertão.
É interessante notar que, fazendo novamente esse percurso em busca do Drummond,
lido por Haroldo em AMMR, tem-se a sensação de que o poeta vem andando e, ao mesmo
tempo, falando quisera como Dante...mas estou mesmo é no sertão
43
.
Em AMMR, os significantes da estrofe 3 podem sugerir, metonimicamente, o eco dos
passos do poeta em atrito com o áspero caminho, como faz Drummond (BOSI, 1988, p. 85).
Diz o poema haroldiano:
ao trato – de veredas como se elas
se entreverando em nós de labirinto
desatinassem feras sentinelas
Trato, entreverando, veredas, labirinto remetem à estrada pedregosa drummondiana,
principalmente se levarmos em conta os seguintes versos de Drummond, extraídos de A
máquina do mundo:
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som dos meus sapatos
que era pausado e seco; e as aves pairassem
no céu de chumbo e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
43
Faz lembrar, ainda, do retirante de Morte e Vida Severina: como o Severino, situa-se em relação ao seu lugar
no mundo, suas ascendências, sua casa, não a Serra da Costela, magra, mas o denso Sertão de Veredas. De fato, é
como se fosse mesmo um retirante da aridez da história literária diacrônica e buscasse, ao refazer uma parcela do
percurso da tradição, a fertilidade da abordagem sincrônica, anunciando ao leitor a quem se filia, sua casa;
desfiando as contas do rosário chegará ao fim, nex, ou nexo, cuja interrupção mais do que prova que é difícil
defender, com palavras, a vida, quiçá o mesmo valha para a obra, cuja existência e permanência depende do
leitor, dos leitores. AMMR é, de certo modo, talvez como vários poemas de Haroldo também o são, um auto de
natal, nasce um poeta das sementes (não das cinzas) da tradição e a partir delas se constrói o seu discurso.
Na escuridão maior, vinda dos montes
E de meu próprio ser desenganado
O som dos passos na estrada pedregosa revela a amplitude da retomada sincrônica feita
por Haroldo de Campos em seu texto, que revela, também, a lentidão pela matéria
significante, em cuja estrutura prevalecem os sons vibrantes, obrigando a lenta leitura. É
necessário destacar, em ambos os poemas, as sibilantes que contribuem para a construção
acústica dos passos pelo árduo caminho e o uso do mesmo tempo verbal, pretérito imperfeito
do subjuntivo, também em ambos os poemas, aprofundando a atmosfera de indecidibilidade.
Na sexta estrofe, o poeta de AMMR mostra estar imerso em circunspecção e é nesse
sentido que surge, pela primeira vez, de modo mais explícito, Drummond; enfrentar
Drummond é enfrentar o enigma, o duro mundo, a falência das utopias, ou, simplesmente, o
enfrentamento dos fatos. A Máquina do Mundo de Drummond é “circunspecta, espia, atenta
em todas as direções, e, como a Esfinge, reclusa na sua essência pétrea, é capaz de olhar e,
muda, significar”. (BOSI, 1988, p.88). No poema haroldiano, é a acídia que esfinge o eu-
poético:
transido e eu nesse quase – (que a tormenta
da dúvida angustia) – terço acidioso
milênio a me esfingir: que me alimenta
um quê de spleen nessa estrofe, um tom baudelaireano, que está também na
abertura de Claro Enigma, cuja epígrafe, apesar de ser de Valéry, remete ao mestre
Baudelaire: Les événements m’ennuient, como aponta Motta (2004). O que se em Claro
Enigma não é o tédio, mas a impossibilidade de ação pela frustração das utopias perdidas,
o que obriga o poeta a seguir com mãos pensas:
E também é em Baudelaire que o poeta assume a condição de sujeito
“esquerdo”, ou de pássaro de gigantescas asas que não pode caminhar na
terra. Restando-lhe, assim, um ideal [...] que inclui [...] principalmente o
paraíso artificial da técnica poética, que tem tudo a ver com Claro Enigma.
Novos recursos mais majestáticos ou emplumados com que ressaltar “o belo
mundo malgrado ele próprio”. (MOTTA, 2004, p. 158,159).
Na estrofe, o céu de chumbo presente no poema drummondiano também é
recuperado por Haroldo de Campos:
a mesma – de saturno o acrimonioso
descendendo – estrela ázimo esverdeada
a acídia: lume baço em céu nuvioso
A tristeza que pode ser apreendida nos versos de Drummond parece, também,
encontrar eco neste fragmento em que a acídia reflete-se no céu nuvioso, cuja coloração,
como se sabe, é plúmbea. Por ocasião da discussão dos diálogos com Dante e Camões, se
estabeleceram muitas intertextualidades a partir da imagem saturnina. Todavia, ao
enfrentarmos a “esfinge do Claro Enigma drummondiano, um outro Saturno vem à mente,
mais carregado de implicações sincrônicas, no que concerne à descendência e à tradição. Para
rememorá-lo, é necessário convocar outro poema do livro de Drummond, Morte nas casas de
Ouro Preto, do qual se destaca a estrofe final:
E dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.
O que chama a atenção na estrofe drummondiana (e no poema como um todo) e faz
com que se retorne à sétima estrofe de AMMR, não é apenas a colcha de neblina que equivale
ao lume baço em céu nuvioso, mas o fato de, sub-repticiamente, aparecer uma melancolia
histórica, um saudosismo de uma Minas próspera e conturbada; Minas dos inconfidentes. O
que evoca essa memória é a cambraia de Nize, ou seja, apenas o vestígio da musa do poeta
inconfidente, Cláudio Manoel da Costa, Glauceste Satúrnio. Como aponta Vagner Camilo:
[...] são reminiscências, vestígios, restos da amada e antiga cidade mineira
agora reduzida, enfim, a ruínas [...] Vestígios [...] também de sua história,
cultura e mitos (através da referência à peça íntima da musa do nosso não
menos melancólico árcade Glauceste Satúrnio, que viveu no período
mais próspero e conturbado). Mas, acima de tudo, são lembranças da
efemeridade, transitoriedade e insignificância das coisas, seres, memória e
história, todos sujeitos ao mesmo destino natural. Memento mori.
(CAMILO, 2005, p.298).
A leitura do poema haroldiano assume outra feição ao se incorporar a ela mais esta
rede de significação, agora pelo lado da tradição brasileira. De qualquer modo, é a melancolia
gris que prevalece sob todos os aspectos; um cenário em ruínas do qual o eu-poético
haroldiano evita tratar pelo retardamento. A estrofe introduz, assim como acontece na 18ª,
Vasco da Gama, o herói que enfrenta o mar. De novo, analogamente à Cicatriz de Ulisses, é
preciso rememorar os feitos heróicos, as lutas bem-sucedidas antes de enfrentar a acídia do
milênio, não por uma questão de tensão, mas pela necessidade de “ruminar nossas verdades”,
como sugere outro verso de Drummond em Claro Enigma
44
.
Este Drummond melancólico vive o luto das ilusões perdidas, principalmente porque a
própria poesia parece ser incapaz de veicular novos ideais; ao poeta em crise, caberia rever a
crise de versos e formas poéticas, para buscar na tradição maneiras de restaurar ou reinstaurar
o mundo
45
, ou, como diria o próprio Drummond sobre essa fase, reinstaurar a compreensão do
estar-no-mundo. Impossível não lembrar aqui de João Cabral de Melo Neto, Sobre o sentar/-
estar no mundo, a respeito do qual diz Wisnik:
[no poema] a atitude filosofante, sugerida pela expressão (sob cuja rubrica,
aliás “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo - ,
Drummond reuniu, em antologia pessoal, parte fundamental de sua poesia),
é enquadrada ironicamente na atitude de quem se senta na tábua-de-latrina,/
assento além de anatômico, ecumênico,/ exemplo único de concepção
universal,/ onde cabe qualquer homem e a contento. A poesia de João
Cabral não postula o “mundo” [...] com sua potência própria, visa, entre
outras coisas, a não se deixar emaranhar no emaranhado (do mundo)
(WISNIK, In: NOVAES, 2005, p.23).
44
Um boi vê os homens.
45
O ambiente da literatura brasileira dessa época era marcado por um retorno às formas clássicas. O livro de
Drummond não era um fato isolado, mas inseria-se num contexto maior em que prevalecia a mentalidade
classicizante; entretanto, esse fato não é suficiente para aproximar univocamente Drummond da Geração de 45
(CAMILO, op.cit, p.34), que sua aproximação com a tradição dá-se, como mostra Achcar (apud CAMILO,
ibid, id.), pelo desejo de reforçar a perpetuação da arte em relação à efemeridade da vida.
O mundo drummondiano, entretanto, vive em busca da apreensão daquilo que lhe
escapa; a apreensão da totalidade é sempre deslizante: “pelo compromisso inarredável da
totalidade que acusa continuamente a sua própria impossibilidade de cumprir-se,
fortalecendo-se, no entanto, disso mesmo” é que a poesia de Drummond se constrói (ibid., id.)
e se constrói o ceticismo do poeta, tão bem revelado pelo “recorte” que o poeta de AMMR
apresenta ao leitor.
18) ao capitâneo arrojo em prêmio aberta
– drummond também no clausurar do dia
por estrada de minas uma certa
19) vez a vagar a vira que se abria
circunspecta e sublime a convidá-lo
` no âmago a contemplasse ( e se morria
20) a tarde e se fechava no intervalo):
maravilha de pérola azulada
e madrepérola e nácar – de coral o
21) seu núcleo – primo anel – aléf do nada
de tudo razão ( que à teodicéia
e à glosa escapa e à não razão é dada)
havia sido feita a leitura da 18ª estrofe até o primeiro verso, devido ao diálogo
estabelecido entre este e Os Lusíadas. Interrompe-se a narrativa da visão de Vasco da Gama
para introduzir Drummond, porém, não é o momento ainda de enfrentar Drummond, e o tom
drummondiano é suspenso, novamente, na 22ª estrofe. Um aspecto interessante a ser notado
nessas interrupções é que elas atuam como flash-backs, um ir e vir, como cenas de um filme e
como se o poeta buscasse o fio narrativo, segundo uma lógica mnemônica, que o faz retomar
e avançar sua viagem, criando o efeito de travelings, como diz Augusto de Campos, a
propósito de Grande Sertão Veredas, para caracterizar o tom joyceano do romance de Rosa;
seu comentário parece encaixar-se bem em AMMR:
[...] poder-se-ia dizer que Guimarães Rosa se utiliza de flash-backs e
travelings para incursões em tempos e espaços diversos daqueles em que se
situa o personagem-narrador (Riobaldo). Este [...] “retoma o fio da
narração, “emenda, “desemenda”, “verte”, “reverte” num
“figurado”complexo, para o qual chama a atenção do interlocutor: esta
minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas
divagadas.(CAMPOS, A. In: COUTINHO, 1983, p.327 - grifos e destaques
do autor).
Embora o poeta de AMMR não se declare “falando fora de ordem”, as coisas surgem
divagadas, como assinala o uso de quisera e dos recorrentes hipérbatos: isso é como um jogo
de baralho, verte, reverte, diria Riobaldo. Em meio a essas divagações do poeta, é que a
máquina drummondiana surge entre a 18ª e 21ª estrofes. Vinha Drummond andando por uma
estrada de Minas certa/vez, como sugere a ambigüidade sintática criada pela ruptura no final
do verso da 18ª estrofe, ou uma estrada de Minas certa vez... ambas as coisas, de fato. A
estrada certamente é a mineira, Minas certa, para o eu-poético drummondiano, mas também é
aquela em que ele vinha, certa vez, quando se deparou com a máquina do mundo.
O tom sombrio é assegurado pelas assonâncias em /u/ Drummond, clausurar e,
sobretudo, em /i/, sugerindo, talvez, mais angústia, pela duração mesmo da vogal, como se
pode notar em dia, minas, vira, abria, sublime, circunspecta, convidá-lo, morria; a atmosfera
soturna é completada pela aliteração em vez, vagar, vira, que continua na estrofe seguinte em
fechava e intervalo. A sucessão de “ia” não deixa de sugerir a caminhada do poeta, que ia pela
estrada.
Enquanto a máquina convida o poeta à contemplação, a tarde se morria e se fechava.
A reflexividade dos verbos morrer e fechar complementa a gravidade da cena: a tarde morre-
se, a ela mesma; e se fecha, anoitece dentro e fora do poeta. Na 20ª estrofe, como acontece no
poema drummondiano, o surgimento da máquina impõe-se, o poeta a vê, ela se oferece (só
depois disso ele a recusa). Em AMMR, o poeta descreve o que enxerga: soberbas pontes,
monumentos erguidos à verdade. Também em AMMR, a visão é luminosa e a abertura dos
sons sobrepõe-se à dicção noturna anteriormente acentuada: maravilha, pérola, azulada,
madreperla, nácar, coral. Como em Drummond, no poema haroldiano, a máquina abre-se
gentil, em calma pura (sem a exacerbação de claro-amostrando, orbes, capitâneo arrojo, que
indicaram a máquina camoniana algumas estrofes antes).
Na 21ª estrofe, a descrição prossegue, eclara referência a Borges primo anel álef
do nada. Tal como no conto de Borges, o Aleph evocado pelo poeta, em AMMR, escapa à
glosa. Diz Borges (o narrador do conto):
Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a
via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, via a
aurora e a tarde, via as multidões da América, vi uma prateada teia de
aranha no centro de uma negra pirâmide [...] vi no Aleph a terra [...] senti
vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e
conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou:
o inconcebível universo (BORGES, 2006, p.170,171).
Francisco Achcar (2000, p. 86,87) também aproxima a visão drummondiana do conto
de Borges, ou melhor, destaca em ambos a negação da visão, embora por razões
aparentemente opostas. Borges nega o Aleph para vingar-se de Daneri (nome que guarda
relação anagramática com Dante Alighieri), um poeta que quer compor um poema
cosmogônico e era seu rival no amor de Beatriz. em Drummond, a negação parece vir pela
desilusão, pela “incuriosidade”. Entretanto, o Aleph borgiano parece, como diz Umberto Eco,
piscar para o leitor e na ironia à Comédia, o que Borges quer dizer que esquece, é algo de que
não se pode esquecer: a tradição. Mais do que uma provocação a Daneri (nome abreviado de
Dante, uma diminuição) é a afirmação de que não pôde resistir à descida ao Inferno que é, no
caso de seu conto, a descida metafórica ao porão da tradição literária, ou o acesso à visão do
Universo.
Em Dante, os caminhos para a máquina, para a revelação são pétreos, em Borges
também: “Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra?” (BORGES, op. cit, p.174). Que pedra
será essa senão o próprio poema; em seu centro, o universo, a pétrea palavra poética, que é
dantesca, é haroldiana, é borgiana e é, sem dúvida, alguma poesia no meio do caminho do
itabirano? Não é por acaso, inclusive, que em A Máquina do Mundo, Drummond retoma seu
famoso e polêmico poema de 1928, especialmente no verso 16: pelas pupilas gastas na
inspeção.
A retina fatigada flores pétreas hesitantes poesia que não mais nasce, como em A
flor e a náusea, mas que, reticente, abre-se e se fecha em si mesma e na tradição que, como
um sino rouco, precisa (e teima) em ecoar, ao longo de todo o poema drummondiano, que
nesse poema os diálogos com Dante e Camões são explícitos.
Depois da volatilização da aura drummondiana, entre a 22ª e a 33ª estrofes, induzida
pela retomada da visão de Vasco da Gama, em Os Lusíadas, o poeta em AMMR volta a falar
do itabirano, dessa vez de modo definitivo, até o final do Canto I.
33) de mágico pelouro por inteiro
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro
34) caminho seco sob o céu escuro
de chumbo – cético entre lobo e cão –
a ver por dentro o enigma do futuro
35) incurioso furtou-se e o canto-chão
do seu trem-do-viver foi ruminando
pela estrada de minas sóbrio chão
Sombrio e cinzento, o poeta narra, em AMMR, o percurso de Drummond. Nas estrofes
33, 34 e 35, a assonância /u/ faz baixar severa a luz crepuscular sobre o poema, talvez melhor
fosse dizer luz do crepúsculo, ou ainda, penumbra, céu escuro de chumbo. Entre o lobo e o
cão, entre fraga e sombra, o poeta não se reconhece, não é mais o mesmo, aprendeu,
calcado na estrada palmilhada, que não um tempo, mas um espaço (a estrada de Minas)
de homens partidos. O jogo entre a penumbra do /u/ e a secura do /k/, permeados pela nuance
da sibilante, reproduz o estado de alma do poeta, drummond duro; o fechamento da vogal
antecipa a recusa da visão da máquina, também anunciada por: escolado, cético, e, inclusive,
drummond duro.
O comportamento melancólico descrito pelas estrofes drummondianas de AMMR é
entrevisto pelo tom plúmbeo, dada a paisagem ao redor do eu-poético. Essa melancolia, como
mostra Benjamim (2004, p.156), é essencialmente associada a Saturno o mesmo saturno
acrimonioso que está presente ao longo do Canto I desde os versos iniciais, conforme
destacado; o mesmo Saturno que marca a dualidade, a tentativa barroca de conciliação de
estados de alma contrários.
Também o cão é símbolo da melancolia, pois de um lado a raiva, cuja mordedura
levaria à acídia, que poderia, por sua vez, causar sonos tenebrosos, é-lhe característica; de
outro, o faro e a resistência permitem associá-lo ao incansável inquiridor, ao pensador
meditativo (ibid, id, 161,168). A dicotomia entre lobo e cão sugere a duplicidade canina
apontada por Benjamim, que o lobo pode ser visto como o lado grotesco do cão; e o cão,
como o lado sublime do lobo.
Tal como a melancolia, também Saturno, esse demônio dos contrastes,
investe a alma, por um lado com a indolência e a apatia, por outro com a
força da inteligência e da contemplação [...] toda a sabedoria melancólica
obedece a uma lei das profundezas; a ela chega-se a partir do afundamento,
na vida, das coisas criaturais, a voz da revelação é-lhe desconhecida. Tudo o
que é saturnino remete para as profundezas da terra. (BENJAMIM, op. cit.,
p.158, 161).
O poema de Haroldo de Campos impõe um trabalho de leitura de texto barroco, em
que a resolução para a dualidade é buscada no fusionismo das imagens e jogos
paronomásticos do plano significante; dualidade Saturnina, diga-se de passagem, ou o
trabalho do poeta-ourives com suas formas fixas.
Em atmosfera grave, o poeta se encaminha para o final da primeira etapa de sua
jornada:
36) – e todos: camões dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso se estampando
37) minto: menos drummond que ao desengano
e repintar a neutra face agora
com crenças dessepultas do imo arcano
38) desapeteceu: ciente estando embora
que dante no regiro do íris no íris
viu – alcançando o topo e soada a hora –
39) na suprema figura subsumir-se
a sua (e no estupor se translumina)
e que camões um rosto a repetir-se
40) o mesmo em toda parte viu (consigna)
drummond minas pesando não cedeu
e o ciclo ptolomaico assim termina...
Na estrofe 36, o poeta inicia o fechamento do Canto ao dizer que todos, Dante,
Camões, Drummond e ele próprio, viram os rostos espelhados na máquina do mundo. Ou
seja, na 36ª estrofe, ele considera que participou da visão que Dante, Camões e Drummond
tiveram da máquina, pois estes viram nossos ROSTO”; nosso inclui, portanto, o rosto do
poeta de AMMR, uma vez que, ao revisitar a tradição, inventivamente, recria a visão da
máquina, e, ao fazer isso, imprime suas idiossincrasias na visão dos poetas evocados.
Na estrofe seguinte, corrige a presença de Drummond, afinal este nada viu e sua
recusa também não atrai o poeta de AMMR, movido pela curiosidade, pelo desejo do novo.
Encerra-se o ciclo ptolomaico e a primeira parte do percurso deste viajor-poeta em busca de
uma cosmogonia.
Benjamim (2004) destaca a tendência do melancólico para grandes viagens e relatos
de viagens; não deixa de ser este o caso do poeta de AMMR, como é o caso de Haroldo de
Campos, tantas vezes chamado de cosmonauta neste trabalho. No lugar de fugir ao canto-
chão, parece sugerir ao leitor que, mesmo em Drummond, lugar para o azul. São os versos
finais de o Relógio do Rosário, último poema de Claro Enigma que, afinal de contas,
sinalizam uma luminosidade para tudo aquilo que até então era sombra:
Mas, na dourada praça do Rosário,
Foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
Diz Vagner Camilo:
Em A máquina do mundo, o desvelar sublime dá-se sob a forma de um
clarão em meio à escuridão exterior e interior [...] Já em Relógio do Rosário
é o eu-lírico quem decifra a verdade maior, ao contrário do poema anterior,
onde ela se oferta gratuita [...]. Disso decorre uma diferença central entre os
dois poemas: enquanto a “máquina do Mundo encerra um ato de recusa,
Relógio do Rosário encerra um ato de aceitação, entrega e identificação[...]
numa dor universal que o indistingue e nivela aos demais homens bichos e
coisas (CAMILO, 2005, p. 300-301 – grifos do autor).
Ainda segundo Camilo, essa identificação é que faz a passagem da alegoria ao
símbolo. É a convergência que impera. A visão do relógio é oposta à da máquina nesse
sentido, pois que esta marca a entrada da alegoria, uma vez que: “[...] a percepção do intervalo
entre a máquina do mundo e o seu espectador é tão aguda que o silêncio pode significá-la.
O silêncio de ambos marca a entrada da alegoria no poema” (BOSI, 1988, p. 89).
Não parece ser este o caminho do poeta em AMMR, que pode perfeitamente ver em
Relógio do rosário um início, o aleph do eu-poético drummondiano e, portanto, a máquina. A
praça (dos convites) parece ser a máquina cuja mão movente conduz a existência, pela batida
ritmada do relógio a conduzir a cidade geração após geração, como diz o próprio Drummond
em A matriz desmoronada, texto de 1970. O relógio é o que a dimensão do tempo, é a
máquina que se abre na praça do Rosário e é nela que o poeta seu rosto e o mundo todo,
afinal, em atitude contemplativa.
O Canto I retoma as visões da máquina do mundo pelos poetas evocados, direta ou
indiretamente, retratando o ciclo ptolomaico, em que predomina uma visão de mundo que
centraliza não apenas a Terra, mas a consciência do poeta, pensador do mundo do exterior
para o interior, “da circunferência para o centro”. Se a Terra deve sua força à sua forma
esférica e posição central no universo (BENJAMIM, 2004, p. 163), as reflexões humanas
adotariam o mesmo percurso. O poeta de AMMR, entretanto, resolve ser excêntrico e parte, no
Canto II, para uma discussão que vai do centro para a circunferência, vai da ordem ao caos, e
é nesta atmosfera de desordem que procura identificar organizações outras e explicações
distintas para a cosmogonia que busca explicar, ou tão somente entender.
Recusando a acídia saturnina, mune-se de uma pulsão da descoberta. Abandona o
Saturno deposto de seu trono e tenta reencontrá-lo na Idade do Ouro, no caso do Canto II,
revivida pelo apelo à ciência como nova forma de “credo”. Ao optar pela excentricidade, o
poeta terá que resgatar um outro lado da tradição poética, inclusive a sua. A crise de verso
mallarmeana ganhará, pois, espaço no tempo do poema. Isso não significará a ruptura com a
forma fixa, posto que ela cumpre a função do repensar da máquina do poema. Ao contrário de
Drummond, que pelo uso das formas tradicionais pode buscar a identidade, o “ouro sobre o
azul”, a marca ritmada do relógio da praça matriz da infância, em Haroldo, o uso da forma
fixa não causa o mesmo espanto, já que ele sempre a utilizou como meio de repensar a própria
poesia – afastar o tédio, introduzindo no padrão, a variância.
Talvez seja necessário esclarecer, parcialmente, o enigma nada claro do surgimento de
Claro Enigma na obra drummondiana, inclusive porque AMMR, como “acervo” da forma
fixa, poderia estar para Haroldo assim como Claro Enigma está para Drummond. Identificar
as proximidades entre ambas é um meio de ampliar a compreensão, ou melhor, a percepção da
presença drummondiana na obra de Haroldo de Campos, analisada neste trabalho.
Drummond publica Claro Enigma em 1951. Depois de A rosa do povo e de todo o
lirismo participativo, parece surgir o poeta empobrecido de formas revolucionárias, o mesmo
que dissera que a poesia deveria evitar a nostalgia dos “moldes antigos” (DRUMMOND apud
CAMILO, 2005, p.52). Ocorre, porém, que, o tratamento dado ao verso em Claro Enigma não é
ingênuo; para além do impulso clássico, o livro todo é carregado de excelentes resoluções
poéticas, como aponta o mesmo Vagner Camilo:
Ora, há de se convir que um artista com tal grau de consciência diante dessa
ameaça [nostalgia dos moldes antigos] não incorreria [...] num
neoclassicismo ingênuo! Se o faz é porque incorpora, nesse fazer, a
consciência sempre alerta desse risco de reacionarismo, tematizando,
reiteradamente, sobretudo nos poemas da primeira seção de Claro Enigma,
que aludem à arte poética. (2005, p.52).
Também em Haroldo de Campos o uso da forma fixa não é reacionário, há, entretanto,
uma diferença entre o Drummond de Claro Enigma e o Haroldo de AMMR. Sobre o livro de
Drummond, diz o polêmico Haroldo de Campos, em artigo originalmente publicado em 1952:
[...] esta pausa [neoclassicizante] não fosse Drummond quem é – revelou-
se, porém, não como uma demissão das conquistas anteriores, mas como
uma tomada de impulso [...] para um novo arranjo qualitativo. Tudo isto
sem embargo de que, no próprio Claro Enigma, a guinada neoclassicista foi
às vezes, nos melhores poemas, pretexto para memoráveis excursos de
dicção [...] dentre os quais não pode ficar sem menção o “A Máquina do
Mundo”, ensaio de poesia metafísica (quem sabe até secreta teodicéia
laica), no qual se recorta o perfil dantesco (CAMPOS, H. 1992, p. 52).
Para Campos, portanto, Claro Enigma tem momentos epifânicos, mas, não representa
um marco da criação, pois o poeta paulista entende que o diálogo com a tradição se coloca
se houver “make it new”. Ainda que se discorde de Haroldo e se afirme, na direção que fazem
Camilo (2005) e Achcar (2000), que em Drummond uma profunda ironia estilística, ainda
que seja possível a aproximação dos dois poetas e se possa mostrar a presença drummondiana
em AMMR, a diferença fundamental é que, ao dialogar com a tradição, Haroldo subverte a
ordem canônica; não o faz para tentar reencontrar um caminho ou para negar qualquer
caminho depois da morte das utopias; mas o faz orientado pela agoridade, pela necessidade de
criar seus precursores, trazendo-os à luz de sua leitura, como sempre fez: é um projeto de
poesia que encerra com AMMR, não porque o poeta assim o tenha decidido, mas porque não
teve tempo para outros. Ao contrário de Drummond, a revisão da tradição não é uma
descontinuidade, e sim uma constância.
Há, sem dúvida, um tom solene perpassando todo o poema AMMR, que atua como
reprodução da atmosfera do cânone e da alegoria da máquina no Canto I, porém, talvez o que
mais profundamente diferencie Claro Enigma de AMMR seja o fato de que Drummond foi
mais radical, chocou mais porque vinha sempre numa trajetória crivada de modernismo, ainda
que o mundo, o existencialismo e a metafísica, como mostra Wisnik (2005), estivessem
sempre em sua obra. A piada, a ironia e o próprio tratamento do verso encontravam um meio
inventivo de tratar dessas questões. A valorização e o repensar da tradição apresentados pelo
poeta mineiro em 1951 rompem, portanto, com sua trajetória; isso não quer dizer que mereça
as árduas e, possivelmente, exageradas críticas haroldianas, com as quais, certamente,
Drummond não se importou.
Haroldo, por sua vez, nunca abandonou as formas fixas e a construção de seu
paideuma sempre passou pela reinvenção do cânone, ou seja, AMMR causa surpresa àqueles
que vêem apenas o Haroldo da Poesia Concreta e não conseguem, talvez impedidos mesmo
pela atitude haroldiana, vanguardista, perceber o quanto este poema sintetiza um conjunto de
práticas apregoadas por toda a sua vida de poeta, mesmo nas composições mais concretistas: a
busca da materialidade da palavra poética. Ou seja, a forma fixa em Haroldo tem também a
função de prestigiar a tradição e de pensar sobre ela, mas de modo distante daquele
encontrado em Drummond. Daí ser prematuro dizer que Claro Enigma está para Drummond
assim como AMMR está para Haroldo de Campos.
Mesmo no que concerne à recriação da atmosfera drummondiana no poema, não se
pode dizer que exista identidade; a identidade, essa relação unívoca, não atrai Haroldo de
Campos; o que o atrai é viver o universo de seus precursores, não da mesma maneira que
Drummond, mas somente pela recriação desses precursores. Haroldo é, então, um Ferrageiro
de Carmona, não põe a tradição na fôrma, mas doma-a à força, não até uma tradição já sabida,
mas ao que pode até ser tradição, se tradição parece a quem o diga. Navegar, ou melhor,
cosmonavegar, é preciso: afinal, ao final, haverá metro que sirva para medir-nos?
CAPÍTULO 2: DEUS NÃO JOGA DADOS, NEM O POETA
II. 2.1 Algumas palavras sobre o Canto II
O Canto II é, seguindo o parâmetro da Comédia, o Purgatório. Depois da aridez do
ciclo ptolomaico, do enfrentamento das feras, do mar bravio e do ceticismo drummondiano, o
poeta passará a questionamentos de outra ordem
46
. Movido por um profundo desejo de saber e
de conhecer, abandonará parcialmente o diálogo com o cânone; deste ficará, para o eu-
poético, aquilo que já internalizou e tornou seu.
No Canto I, a busca do poeta não fica muito clara, ele segue afirmando que quer
caminhar como Dante, Camões e Drummond, mas não diz, exatamente, por que. O leitor,
enredado pelo labirinto do texto, desenvolve um movimento de leitura que acompanha o poeta
e, dada a revelação da máquina do mundo, percebe que o intuito do eu-poético é repensar a
organização do cosmos.
Ocorre que, na primeira parte do poema, o eu-poético está mergulhado no universo
literário e este não lhe será suficiente, pois que o milênio que o esfinge exigirá mais; é preciso
relembrar aqui que a esfinge marca o início de uma jornada, misteriosa e instigante, que se
inicia no Canto I, a partir daquilo que o poeta (aedo) retoma mnemonicamente e continuará
no Canto II, movida pelo que ele quer saber. A primeira parte do poema representa o passado;
a segunda, o futuro; para a travessia do Canto II, será necessário ser absolutamente novo, será
necessário navegar outros mares, deixar-se levar pelo acaso e pela aventura e, possivelmente,
por outros poetas. Neste canto, a questão da origem ultrapassa o signo e vai do mar e do
sertão ao céu, por isso a jornada, a partir da estrofe 41, é ascensional: com os olhos postos no
céu e deixando acirrar a agnose que o movimenta, o poeta vence a lei da gravidade do seu
próprio texto, que talvez procure prendê-lo à literatura, e viaja para o espaço, levando o
cânone junto com a pulsão de perquirir e de desbravar fronteiras.
46
O fato de ter visto a Máquina do Mundo junto com os poetas, o que a rigor só ocorre na Comédia no Paraíso,
não muda o caráter de “Inferno” do Canto I, pois que se trata, nesse caso, da passagem do eu-poético haroldiano.
II. 2.2. O nada e o acaso, o poeta e a ciência
A jornada do Canto II talvez não seja a da melancolia gris, dantesca e drummondiana,
e sim a da melancolia-ousadia lusitana, que arrosta, valentemente, daqui para frente, não mais
o mar, porém o céu, seu espelho. Em atitude contemplativa, mas, ao mesmo tempo,
inquiridora, o eu-poético buscará a máquina do mundo; enquanto isso, a máquina do poema se
constrói também, afinal, é ela quem repensa a máquina do mundo.
Segundo Pécora (2005, p.104), a partir do Canto II, acentua-se a dicotomia entre o
“esfingir do eu” e a tentativa de dissolução do dilema da gesta do Universo; essa dicotomia,
entretanto, não se configura, segundo esse autor, como questão existencial:
[...] O poeta é sobretudo glosado como criador das analogias eloqüentes,
capaz de contar a origem do mundo segundo a “nova cosmofísica” e não
como alguém dotado de uma pessoalidade especial. De pessoal, quando
muito, apenas o agnosticismo anunciado e certo desejo de coragem e
valentia, diante do desafio comum do início e do fim. (PÉCORA, In:
MOTTA, 2005, p.104 – aspas do autor).
O distanciamento entre o eu-poético e o autor é, entretanto, um simulacro, pois,
como aponta Lucia Teixeira (2004), a mediação dos fatos pela percepção possibilita a
apreensão da realidade e sua transfiguração em termos de linguagem do poema, de modo que
o discurso do eu-poético reflete, como foi dito, a postura haroldiana. Dessa forma, o
esfingir do eu e a tentativa de dissolução da gesta do universo são, no fundo, bases das
mesmas perguntas: como tudo começou e/ou como comecei?de onde vem e para onde vai a
minha linguagem? Pode não haver uma questão existencial aparente, mas como explicar um
eu-poético que se permite voz, canto e angústias? João Cabral de Melo Neto assim explicaria
essa questão:
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre e impõe mesmo
impuramente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?
(CABRAL, 2007, p.9 Dúvidas apócrifas de Mariane Moore)
O tom de AMMR é, sim, confessional. Como evitar falar de si? Da poesia em si? É
fato que AMMR retrata questões que incomodam Haroldo de Campos; a cada estrofe, isso se
torna mais aparente. É movido por uma curiosidade e uma obsessão em fixar uma origem,
embora ele mesmo saiba que a origem é uma rasura, indefinível. Não se deve, contudo,
confundir o tom confessional com aquele presente em Drummond. O poeta vive porque
busca, na linguagem, ela mesma, e com ela repensa o mundo, incansavelmente, pela voz do
eu-poético instaurado no texto e que se confunde com o próprio Haroldo de Campos, mas
também é maior do que ele. Não há, portanto, o distanciamento apontado por Pécora, mas a
tensão entre ambos e é isso que sustenta a beleza poética poema. Nem o eu-poético se arrasta
pensando no que o esfinge, nem o eu-poético apaga sua voz em prol de questionamentos
maiores do que ele. Trata-se do que diz o poema de Cabral: o não falar é a forma de falar da
coisa.
É útil pensar aqui no jogo de claro/escuro do barroco. Imagine-se uma pintura de
Caravaggio ganhando vida, saltando de dentro da tela para representar a cena pintada diante
dos nossos olhos. Nesse caso, os jogos de claro e escuro ganhariam mobilidade. Pois bem, se
o poema fosse essa pintura, ao transformar-se em “realidade virtual”, poderíamos ver ora o
esfingir do eu, ora a tentativa de dissolução da gesta do universo, mas saberíamos,
forçosamente, que ambas fazem parte da “cena”. Talvez não seja interessante, do ponto de
vista da complexidade do poema haroldiano, separar o que deve ficar amalgamado; as
questões estão juntas por uma razão: é a palavra poética em ação no texto que assim as
funde e as mantêm inexoravelmente ligadas, tornando fluidas e impossíveis as categorizações
acerca da dicção do poema.
A transfiguração que a linguagem do poema estabelece permite a reapresentação do mundo:
pela união entre forma e conteúdo, torna espessos e palpáveis os signos; estes,
(re)inaugurados pela própria materialidade incandescente da poesia, marcada pela dupla face
da lírica na modernidade, aquela voltada para a mensagem em si e que, veladamente ou não,
inclui a persona poética, e aquela voltada para a evolução na técnica e na ciência são o
verdadeiro Sol da mensagem poética de AMMR.. Essa mensagem, entretanto, tem as cores das
explosões de supernovas é ímpar e distante do usual. Cabem aqui as mesmas considerações
que Genette faz para os sonetos de amor de Sponde (1557 1595), representante do barroco
francês:
[...] o trajeto normal da metáfora é ir sempre da cultura à natureza, do
mundo humano ao mundo cósmico: seus olhos são como estrelas, nosso
amor é como o céu azul. Os poemas de referência cósmica [de Sponde]
deveriam, então, produzir um efeito mais facilmente aceitável. Nada disso
acontece, simplesmente porque o cosmos evocado por Sponde não é a
Natureza definida em suas qualidades sensíveis, é o universo da Física e da
Astronomia, o mundo de Arquimedes e de Ptolomeu, isto é, um cosmos
também afastado, intelectualizado pelo conhecimento e pela teoria
científica. [...] (GENETTE, 1972, p.237).
O que se assiste a partir do Canto II do poema é essa exacerbação da intelectualização,
ou seja, aproximações, posto que comparações, mas, ao mesmo tempo, um
distanciamento tal entre o leitor e o universo apresentado, que parece acentuar-se a distância
intransponível que terá de ser enfrentada para que se dê conta das operações hermenêuticas do
texto.
Nesse ponto, talvez coubesse a crítica de Pécora, para quem o poema certamente revela
a primazia do conhecimento e da contemporaneidade e é “altamente técnico, alusivo, de modo
que o que se divulga é menos o saber que a dificuldade de acesso a ele. Numa frase: menos a
ciência que o mistério dos iluminados que a podem dominar” (PÉCORA, In: MOTTA, 2005, p.
106). Entretanto, é justamente esta a marca barroca do poema; sua intransponibilidade, seu
funcionamento elíptico. No caso de AMMR, é interessante ressaltar, como se verá ao longo da
leitura do Canto II, que o próprio barroco assume proporções cosmológicas, se o tomarmos no
sentido proposto por Sarduy a ser apresentado ao longo da leitura do poema. Apenas para que
se tenha uma idéia do que propõe o poeta cubano, o barroco é a passagem do círculo de
Galileu (1564-1642) à elipse de Kepler (1571-1630), ou seja, o barroco promove a
“deformação” da idéia de perfeição.
A ciência e os poetas são chamados ao texto “artificialmente”, pelo eu-poético, que
navega ou orbita por entre os signos tempestuosos, os quais, como se dotados de vida
autônoma, erguem-se diante dele. Essa busca, se mencionou aqui, é uma constante na obra
haroldiana, basta conferir, por exemplo, o comentário do próprio Haroldo sobre Signancia
quasi coellum, de 1979 e que se aplica, também, à AMMR: “Como Tirésias na Odisséia, eles
[os poetas da tradição] são invocados para profetizar sobre o destino que aguarda o poeta em
sua “viagem via linguagem”. A saída (exit) é o poema [...]”. (CAMPOS, H. 2002, p.47).
Mais adequado do que dizer que o poema é acessível apenas ao leitor erudito, o
“escolhido”, aquele capaz de “interpretar” as profecias de Tirésias, seria assumir que é o leitor
que, ao escolher o poema, precisa equipar-se, equiparar-se, minimamente, aos construtos
exigidos pelo texto, se quiser, evidentemente, assumi-lo como cosmos, sertão, enfim, universo
a ser (des)velado. Em meia frase: “quem está na chuva.”
Certamente, não se dominará a física contemporânea pela leitura do poema, embora,
certamente, ela seja apreendida por imposição, que o texto seu conhecimento evoca;
tampouco se dominarão os poemas do cânone com os quais o poeta dialoga, inclusive porque
surgem, barcos bêbados, embriagados pela euforia com que o poeta os marca de suas
idiossincrasias. O que o poema incita a fazer é o enfrentamento de sua linguagem, cifrada,
sim, e, por isso, desafiadora.
os escolhidos contemplam a máquina do poema? Provavelmente, os que a
escolhem a contemplam; claro está que o poema de Haroldo de Campos não se pretende à
decifração; como uma esfinge, seduz pelo encantamento labiríntico da supercifração, posto
que o novelo a ser desenrolado parece infinito. É sedutor arriscar/aceitar que a compreensão
do poema está na busca e não importa o Minotauro; para tanto, que se aderir ao texto e ao
que ele impõe: a barroquização dos signos, fio de Ariadne ou sertão que se entrevera.
Se a na vida após a morte, no Paraíso, pode parecer, aos homens da ciência, algo
impossível; ao homem comum, a no espaço-tempo da relatividade de Einstein, verdade tão
possível quanto (in)visível, oculta nos números, nos modelos teóricos de configurações
gravitacionais, parece igualmente marcada de impossibilidade e, mais ainda, a racionalidade
dessa idéia não deixa de parecer àqueles que não são cientistas, uma questão de fé.
Fidúcia: contrato entre partes. Do ponto de vista de seu “contrato fiduciário” com Deus,
o homem tem a certeza da continuidade da vida depois da morte, certeza do nexo que o
conduzirá à vida eterna. Do ponto de vista da ciência, tem a certeza de que nada sabe e que há
sempre um patamar de ignorância a ser superado; a busca pelas respostas é infinita e
sobrevive aos séculos, da mesma forma que é infinita, para os homens da religião, a existência
de Deus. As buscas religiosas e científicas procuram estabelecer alternativas para a finitude da
existência humana. De um lado, a religião quer a transcendência do homem, do indivíduo; de
outro, a ciência quer a permanência da espécie.
Tanto a ciência quanto a religião intentam transcender a dimensão humana, fazendo uso
de um ideal abstrato de perfeição (GLEISER, 2002, p. 33), orientando-se pela tentativa de
interpretação da palavra divina ou dos insondáveis mistérios do universo. O poeta, em
AMMR, acaba por se tornar também intérprete, mas de ambas as coisas, da ciência e da
religião, à medida que as faz dialogar no espaço do poema, que é, também, como vimos, um
tempo histórico (já que parte de Dante e vai além Teoria da Relatividade de Einstein); assim
procede porque negar a ciência ou a religião é “ignorar que o homem é tanto um ser espiritual
quanto racional”. (GLEISER, 2006, p.9) e é esse fusionismo barroco que Haroldo de Campos
procura construir em seu texto. Universo: esta a gesta do céufogoágua e da terra/ Enquanto
eram criados (CAMPOS, H. 2000a, p. 50).
O poema de Haroldo de Campos não nega o divino, é agnóstico; não transforma a
ciência em dogma, questiona-a com os recursos da materialidade da palavra poética. Diante
do instigante convite da máquina do mundo-poema repensada(o), cabe a não-resistência; a
caminhada é pedregosa, como atestam os significantes, nas primeiras estrofes. Quem não
acredita na vontade de anular a criatura, firma-se na certeza de que somos poeira (ou poesia?)
estelar e, portanto, dançamos, poeticamente, a dança do universo parece ser este o caso de
Haroldo de Campos.
Para o leitor não nada mais humano do que se curvar frente à maquinaria do poema,
que busca explicar, pela criação, a origem do universo, inclusive do universo poético. Tanto a
religião quanto a ciência e, é claro, a poesia, procuram, na instabilidade da vida, o que
consideram vital, a partir de seus específicos objetos ou pontos de vista: um ritmo; harmonia
de um universo que canta pelas vozes dos anjos, pelo trânsito das estrelas, pelas palavras
constelares do poema, por todas espécies de constelações significantes erigidas ao longo da
história. A partir deste canto, o poeta espera “desenigmar” o dilema.
II. 2.3 Límen do milênio
No Canto II, a melopéia, tão constante no Canto I cede lugar à logopéia; sobre ambas
está a fanopéia, “as coisas se mostram antes que a palavra incida sobre elas”, como diz
Schüler (1997, p. 14), ou seja, Haroldo de Campos usa, segundo as especificações de Pound,
os três modos possíveis de carregar as palavras de significado
47
:
41) já eu quisera no límen do milênio
número três testar noutro sistema
minha agnose firmado no convênio
42) que a nova cosmofísica por tema
estatuiu: a explosão primeva o big-
bang – quiçá desenigme-se o dilema!
É retomada aqui a estrofe do poema, quando o poeta menciona o terço acidioso
milênio a esfingir-lhe, porém, o tom é bastante outro; desvencilhando-se da atmosfera
sombria e saturnina, imposta pelo paralelismo com o inferno dantesco nas estrofes iniciais, os
primeiros versos do Canto II parecem marcar-se pela curiosidade, pois o poeta pretende testar
sua agnose em outro sistema. Outro aspecto que marca essa diferenciação entre o Canto I e o
II é o primeiro verso de ambos. No verso 1, diz o poeta: quisera com Dante e, a partir de
então vai trilhando, à sua maneira, os caminhos do sacro magno poeta; no verso 41, esse
percurso será feito de outra forma: eu quisera no límen do milênio. Parece, afinal, que ele
encontrou o caminho que deve percorrer.
Vale notar a menção do mero três, referente à trindade cristã, mas também trilogia
correspondente à imagem tradicional do conhecimento, a saber: Eu, Deus e o Mundo,
construída ao longo da história e estabelecida com fundamentação na racionalidade a partir de
Descartes: “o procedimento de conhecer envolve um sujeito conhecedor que, legitimado por
um Deus verossimilhante, apreende um objeto a ser conhecido” (OLIVEIRA, L.A., In:
NOVAES, 1996, p. 507). A atmosfera criada pelas paronomásias e aliterações é interessante,
pois, ao contrário do sertão se entreverando, árduo mais que floresta ao trato, o límen do
milênio parece abrir-se ao poeta de outra forma. Da entrada do milênio (límen é palavra latina
que quer dizer soleira da porta, ou a porta de entrada), o eu-poético vislumbra outro caminho;
pela proximidade anagramática entre límen e milênio pode-se pensar, inclusive, que o milênio
47
“[...] as palavras são ainda carregadas de significado principalmente por três modos: fanopéia, melopéia e
logopéia. Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um
som ou usamos grupos de palavras para obter esse efeito” (POUND, 1970, p.41).
é a própria entrada o fato de iniciar-se impõe outra forma de pensar. Também os
significantes que sugerem o caminho do poeta são um pouco diferentes daqueles encontrados
nas estrofes do Canto I, em especial nas iniciais.
A regularidade da aliteração em /t/, três, testar, noutro, sistema, tema, estatuiu,
distribuída pelas estrofes 41 e 42, de modo razoavelmente equilibrado, intercalando-se às
nasais, engendra o sentido dos versos
48
, pois, como afirma Brik, o ritmo é anterior ao verso
(BRIK In: TOLEDO, 1976, p.132): por instituir a repetição e a regularidade, antecipa, no caso
dessa estrofe, o discurso científico que vai ocupar as estrofes seguintes. Isso ocorre porque a
palavra poética é capaz de recriar o mundo: tudo cabe em palavras, embora, talvez, não caiba
na música, ou na pintura, pois:
No que se refere à perceptibilidade e à figuração, a poesia não pode
concorrer com a poesia e com a música. As imagens poéticas são
complementações subjetivas e mutáveis das representações verbais. Se, por
um lado, a palavra e a poesia, no que se refere à perceptibilidade da
representação, são mais pobres do que as artes plásticas, são mais ricas no
seu domínio próprio [porque] [...] O material da poesia não são as imagens
e emoções, mas a palavra (JIRMUNSKY In: LIMA, 1983, p.442).
É atravessado pela palavra poética que o texto haroldiano se estabelece e, por meio
dela, articula-se a sua dinamicidade, como diria Tinianov, “a unidade da obra não é um todo
simétrico e fechado, mas sim é uma integridade dinâmica, com desenvolvimento próprio”
(1983, p. 452). Ou seja, é pela correlação e pela integração que se constrói o poema AMMR, o
que significa que a história, o contexto e a ciência são componentes semânticos e não
determinações exógenas à obra. Naturalmente, essas considerações aplicam-se ao poema todo,
entretanto, no Canto II, ganham um significado ampliado, pois a estaticidade do universo
ptolomaico será substituída pelos modelos da cosmofísica: o dinamismo da poesia combina
com o dinamismo do assunto de que tratará o eu-poético.
Nesse espectro, a forma fixa, aparentemente estática, deve ser vista como fator
dinâmico, que o ritmo, os hipérbatos e demais “perturbações” daquilo que seria a ordem
poética são fatores constitutivos do verso - este se constitui a partir daqueles. Para dar
continuidade à metáfora do big-bang, que acompanhará o poeta em sua jornada daqui para
frente, poder-se ia dizer que o poema é o universo, o verso, suas galáxias, os fatores
48
Nesse ponto, está-se argumentando contrariamente ao que faz Tomachevski, para quem: “o ritmo, ao contrário
do metro, não é ativo, mas passivo, não engendra o metro, mas é engendrado por ele” (in: TOLEDO, 1976,
p.143). A nosso ver, e repetindo a pergunta drummondiana, são distintos os metros que servem para medir a
forma poética, entretanto, é sua essência que organiza o sentido, já que pode haver texto metrificado sem poesia.
O ritmo oscilante de AMMR tem relação especular com a trajetória do poeta, ou talvez, mais arrojadamente, é a
trajetória do poeta que espelha o ritmo, tão amalgamada é a forma em relação ao conteúdo.
constitutivos, a explosão primeva que lhe dá origem; mas de onde vem essa origem, saber alto
e supremo, ou, simplesmente Babel, talvez nem Deus nem a ciência compreendam e é em
torno dessa inquirição que se delineará a busca do eu-poético neste Canto II.
Na estrofe 42, firmado no convênio que a nova cosmofísica estatuiu, o poeta espera
encontrar as respostas para o dilema da origem; assim sendo, a compreensão do big-bang
poderá revelar-se útil ao poeta em sua jornada. A teoria do big-bang, como se verá ao longo
da leitura do Canto II, parte do princípio de que o universo está em constante expansão, ou
seja, seu volume aumenta com o passar do tempo, o que significa que um retorno no tempo
permitiria vislumbrar a diminuição progressiva deste volume até o zero, o nada.
A descoberta de que o universo está em constante expansão levou os cientistas, a partir
da década de 40 do século passado, a darem um passo importante para a compreensão da
totalidade do universo saber que o universo está em constante expansão permitiria
compreender como se originou e qual a trajetória percorrida. Até então, o homem
conseguia apreender alguns aspectos dessa totalidade (NOVELLO, In: NOVAES, 1996, p. 498).
Entretanto, a compreensão da origem em si não poderia ser circunscrita a experimentos e
observações científicas, pois:
Segundo esse modelo [big-bang], se voltarmos no tempo, chegaremos a
uma singularidade, um ponto que contém a totalidade da energia e da
matéria do universo. Ele associa, pois, a origem do universo a uma
singularidade. Mas não nos permite descrever essa singularidade, pois as
leis da física não podem ser aplicadas a um ponto que concentre uma
densidade infinita de matéria e de energia (PRIGOGINE, 1996, p. 170).
O que o modelo do big-bang sinaliza é que, depois de séculos de crenças na ordem
determinista, de um universo criado a partir de um demiurgo (inclusive para Newton, como se
verá), descobre-se o processo pelo qual foi criado, mas à sua compreensão não se tem acesso,
pois o universo é dinâmico e instável e é um espaço contínuo; dada essa geometria e a
orquestração contínua do cosmos, ainda não aportes da física suficientes para entendê-lo,
para entender a sua gesta. As dúvidas tornaram-se maiores com os avanços dos estudos;
descobriu-se que o processo de geração do universo é irreversível e está associado a um vácuo
quântico, que é o estado de menor energia de um sistema; nesse estado fundamental, no lugar
de uma singularidade, tem-se instabilidade (PRIGOGINE, 1996 p.187; GLEISER, p. 390),
engendrada pela grande explosão inicial.
43) quem à mundana máquina se ligue
já não há: o cosmólogo “ruído
de fundo”diz – irradiação repique
46) espaço afora centelhando irruentes:
ninguém fala hoje em dia em maquinaria
do mundo concentrando continentes
Nos primeiros versos da estrofe 43 e nos últimos versos da estrofe 46, o poeta indica
que, na atualidade, não mais espaço para a máquina do mundo (mundana máquina, em
latim, do mundo, do universo, celestial), pois, em seu lugar, em substituição ao seu brilho, o
que subsiste é o “ruído de fundo”, resultante da grande explosão, big-bang. O termo “ruído de
fundo” surgiu a partir de uma experimentação dos físicos Penzias e Wilson e pode ser, em
linhas gerais, compreendido como o resquício – como a permanência do big-bang. Na origem,
o excesso de calor produziu uma radiação (como um ruído) que permaneceu. Ou seja, a
origem “acabou”, mas seu “ruído de fundo”, como um rastro, permanece
49
(CAMPOS, R. 2003,
p.71).
Nesse ponto cabe lembrar de uma das atribuições das obras literárias clássicas,
segundo Ítalo Calvino:
[...] é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um
reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela
televisão a todo volume. Acrescentemos então: É clássico aquilo que tende
a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo
tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível. (CALVINO, 2005, p.15).
49
“A teoria da grande explosão começou a ganhar crédito com uma descoberta tão contingente quanto
extraordinária. Em 1965, quando pesquisavam antenas para satélites de comunicação, Penzias e Wilson
constataram que uma radiação de microondas chegava regularmente, de todas as direções [...] tal radiação
isotópica, na verdade, prevista por Gamow, não provinha de nenhuma fonte observável. Percebeu-se que a
explicação está nas origens do universo. A concentração da matéria, então a uma temperatura elevada, produziu
uma radiação de fundo que remanesceu, preenchendo o espaço, e perfazendo um signo indicial de detonação
longínqua. A irradiação cósmica ratificou o big-bang” (CAMPOS,R, op. cit, p.71).
A tensão apontada por Calvino sugere o dinamismo da obra literária, ou seja, tanto a
obra clássica permanece como ruído de fundo, e, nesse sentido, assemelha-se à radiação
decorrente do big-bang, quanto a novidade é que faz papel de ruído de fundo para as obras
clássicas. Uma vez admitida a perspectiva sincrônica da história literária, sabe-se que a
novidade recupera a ancestralidade; ou seja, se o clássico é rumor para o que é novo, isso se
deve menos à permanência do clássico do que à sua inevitável pregnância no que é novo. De
toda forma, a irradiação é repique do primogênio estrondo.
O que é cânone é big-bang; a reinvenção dele é big-crunch, um colapso que é ruptor
por trazer à tona, justamente, as explosões primevas. Em certa medida, ao ser sincronicamente
articulada a determinado paideuma, uma obra artística colapsa porque é desconstruída para
poder, como a fênix, renascer das próprias cinzas. Assim, big-bang e big-crunch alternam-se,
indefinidamente, como labirintos borgianos, dos quais os físicos são grandes admiradores:
[...] o fascínio muitas vezes se justifica pelos pontos de tangência entre as
sendas borgianas e as idéias científicas. Um destes pontos é a bifurcação no
tempo, subentendida n interpretação dos multiuniversos da física quântica.
Nela, se um sistema descrito num certo instante por uma função de estado
tem duas alternativas de percurso, então ele seguirá as duas, cada uma
compondo um mundo diferente! Assim, a desagradável compulsão de eleger
uma entre duas ou mais opções se desfaz docemente, com o passar do
tempo, pela instauração de uma série ilimitada de universos [...], um dos
quais nós, singularmente, habitamos.[...] o livro dos livros da “Biblioteca de
Babel” [...], a hipótese de uma biblioteca “ilimitada e periódica”[,] é a
mesma a circunscrever o modelo de universo que nasce e morre numa
região puntiforme, alternando ciclicamente big-bang e big-crunch,
explosões e colapsos. (CAMPOS, R. 2003, p. 70).
Mais do que dizer que a ciência e a literatura tomam emprestadas, uma da outra,
metáforas, conceitos, definições e até postulados, o que é interessante do ponto de vista deste
trabalho e é importante sublinhar, é que, em AMMR, o poeta segue duas alternativas de
percurso, não opta entre elas, funde-as; entretanto, no lugar de fundar mundos diferentes em
cada caminho, por fundir percursos, instaura o mundo a partir dos estilhaços, ou, melhor
ainda, das “subdivisões prismáticas da idéia” da tradição e da ciência que recolhe, pedras do
caminho, à sua maneira. De toda forma, quando se percebe o “ruído de fundo do cânone” tem-
se um signo indicial, o “ruído” é um rastro; mas quando a novidade reinventa o cânone, o
“ruído de fundo” é ícone do cânone. Este é o caso de AMMR.
Certamente, a tentativa de conciliação de mundos diversos, como a religião e a
ciência, sendo que a última não costuma aparecer como alegoria com a mesma força com que
a primeira aparece, remete ao barroquismo que marca o poema. Esse barroquismo encontra
em Severo Sarduy uma associação cosmogônica, exatamente no sentido de ruído de fundo.
Conforme se destacou, a hipótese do big-bang tem conexão com a idéia de que o universo
está em constante expansão; à medida que expande, aumentam os vazios, a densidade da
matéria torna-se esparsa e tende a zero: o que permanece é um ruído que é idêntico em
qualquer ponto.
É nesse sentido que Sarduy ([s.d], p.87) postula que o universo é um “significante
materialmente em expansão: não é apenas o seu sentido, a sua densidade significada”; uma
vez que vazios, os brancos e os silêncios do universo passam a significar, posto serem a
realidade do afastamento, como os brancos no final dos versos do poema. No caso específico
de AMMR, o enjambement e a terza rima parecem reafirmar a conexão entre a “matéria” e o
grau de afastamento, indicado pelo final de cada verso, que ao “ecoar” nos versos
subseqüentes, preenche os silêncios do texto. Além disso, é preciso completar a idéia de ruído
de fundo retomando a aliteração do /t/, indicada nas estrofes iniciais deste canto. Ao transitar
pelo texto, como se o estivesse tateando, o /t/ atua como o ruído de fundo, resquício da
primeva explosão, que permanece no cosmos até hoje.
Um outro aspecto importante, decorrente das modernas teorias da física, é que não
um centro do universo, mas um universo descentrado; a explosão inicial é um vestígio de
signos: vibração fonética de consoantes e ondulação das vogais. Mais do que significar
diferentemente ao longo do tempo, ou seja, mais do que o fato de corroborar para a
formulação de hipóteses de leitura do universo, o vestígio de signos é sempre ruído de fundo.
Se um poema é um universo, o rumor da língua que o perpassa dá-nos a idéia desse big-bang
criativo, cujos significantes vão sendo repetidos, embora assumam, em cada ponto da leitura,
um significado diferente. Não centralidade nos poemas, e sim descentramento,
excentricidade; não circularidade, mas órbitas elípticas. Do poema, como do big-bang,
“chega-nos uma irradiação materialvestígio arqueológico de uma explosão inicial, início da
expansão de signos” (SARDUY, op. cit., p.87).
No poema, o eu-poético procura mostrar que aquela máquina, tão deslumbrante, fica
esquecida diante desse “milagre” que a física explica até certo ponto. A impossibilidade de
totalização dessas explicações é que abre espaço para que, mais uma vez, o discurso mítico-
religioso, que sempre conta do insondável, volte ao corpo do texto, de maneira que big-
bang e Antigo Testamento espelham-se. Esse aspecto não é aleatório, posto que o próprio
Haroldo de Campos sugira a consulta de sua tradução do Livro I, do Gênesis (Bereshith),
acerca do tema da origem. Segundo Haroldo, o Gênesis é rico para entender o tema
cosmogônico porque coloca Deus como criador do Universo, portanto, poietés:
[Gênesis] Poesia da origem cósmica, cosmogônica, de genealogia telúrica.
Epos do homem e da linhagem do homem projetando-se na história. Assim
nesses versículos inaugurais do Bereshith, condensa-se, no seu todo e em
suas partes, a saga da criação. Como um Deus-Poiétis, metafórico e
metonímico – il Fattore dantesco, el Hacedor borgiano - , a fez e a nomeou,
e como o texto, no eu trabalho arquimemorial, insinuação permanente da
leitura e da recitação, a celebra. (CAMPOS, H. 2000a, p. 36).
O tom bíblico não deixa de ser ruído de fundo nas estrofes em que o poeta descreve o
big-bang, a enunciação desse fenômeno em si remete a um mito fundador. De fato, é como se
os questionamentos que surgem, à superfície do texto, impusessem tal aproximação; a própria
física é quem facilita a construção dessa proximidade, à medida que emprega metáforas como
“dança do universo”, “poeira estelar” e o próprio big-bang, onomatopaico, para tratar dos
temas a ela pertinentes. Nas estrofes 44 e 45, a dicção de Antigo Testamento surge
centelhando irruentes metáforas:
44) do primogênio estrondo do inouvido
explodir que arremessa pó de estrelas
fervente caldo cósmico expandido
45) feito de fogo líquido ou daquelas
cristalfluidas nonadas comburentes
a reslover-se em sopa de parcelas
A explosão pode apenas ser imaginada; o inouvido estrondo recria-a na imaginação do
poeta, que pressente o calor do fervente caldo cósmico a percorrer bilhões de anos. Notem-se
as aliterações e assonâncias, que antecipam a erupção e o escorrer do fervente caldo cósmico/
feito fogo líquido daquelas. A sinestesia da estrofe estimula não a visualidade e a
percepção, dada plasticidade dos versos, como também a audição, o paladar (sopa), o tato,
pois o calor da explosão chega aos sentidos do leitor de múltiplas maneiras, além, é claro, da
menção do fogo e palavras do mesmo campo semântico. O olfato é estimulado pela nonadas
comburentes que os gases presentes nessa explosão não são inodoros. forte presença
gongorina aqui, como em outros trechos do poema; da poesia do mestre espanhol, pode-se
identificar, em AMMR:
[...] agitación y retorcimiento de sus elementos constructivos; alteración de
estos en sus funciones; desbordamiento de lo ornamental, que, rotos sus
cauces, lo invade todo, dificultando y ocultando la trama o construcción
lógico argumental, apenas visible tras el brillo, color y musicalidad del
verso […] (DIAZ, 1953, p.11).
Uma das imagens mais belas da estrofe 44 é o arremesso do de estrelas, a partir do
inouvido estrondo, isso porque dessa poeira somos descendentes. Como explica Marcelo
Gleiser:
[...] as estrelas são verdadeiros laboratórios alquímicos. Entretanto qualquer
sistema capaz de gerar energia mais cedo ou mais tarde esgotará sua reserva
de combustível. Uma estrela se autoconsome para existir. Sua vida é uma
busca desesperada
50
de um equilíbrio entre duas tendências opostas, uma de
implosão e outra de explosão.[...] A estrela existirá enquanto as duas
tendências estiverem num dinâmico estado de equilíbrio[...] Para estrelas
até oito vezes mais pesadas que o Sol, o hidrogênio no coração
51
da estrela
se fundirá e se transformará em hélio, o hélio em carbono e o carbono em
oxigênio.[...] a enorme pressão da gravidade em seu coração provocará a
fusão de elementos ainda mais pesados [...] A estrela então explode com
uma fúria tremenda, num fenômeno conhecido como explosão do tipo
supernova. Portanto, o carbono, o oxigênio e outros elementos pesados, que
não fazem parte do nosso organismo como também são fundamentais
para nossa sobrevivência, forma sintetizados no interior de estrelas
moribundas antes de serem projetados através do espaço interestelar.Nós
somos filhos das estrelas. (GLEISER, 2006, p.364, grifos meus).
É como se as estrelas, de algum modo, tivessem que ter morrido para que nós
nascêssemos, tornando operante um poético e tenso nascemorre; bem retratado no poema
abaixo, pela irresolução do conflito nascer/ morrer, explicitado no texto como um processo
único, sem a distinção binária:
50
Observe-se como o autor toma o “ponto de vista” da estrela para descrever os processos de fusão de núcleos a
ela inerentes. Não temos como saber se a busca é desesperada, mas a imagem de que algo se autoconsome para
existir, impõe-nos o desespero. A rendição à palavra e às metáforas é uma forma, talvez mítica, usada para que se
possa humanizar o que está a nossa volta, como se esse apelo fosse inevitável.
51
Vale o comentário acima.
nascemorre – Haroldo de Campos In: fome de forma (Xadrez de Estrelas).
Cristalfluidas nonadas comburentes: mais uma vez, surge um acento rosiano,
remetendo ao vazio, ao nada, ao vácuo, porque o big-bang pode atuar como um sistema que
se expande até o infinito, nonada; eterno vestígio do zero: “sobre um fundo cinzento sombrio
mistura uniforme de todas as cores, saturação do prisma e sua anulação [...] fóssil do ylem
cromático”. (SARDUY, [s.d.], p. 88). O termo ylem foi criado por Gamow (1904-1968), um
dos “pais” (já que a origem é sempre uma urgência) do modelo do big-bang. Com certa
ironia, o físico faz uma brincadeira que não deixa de revelar a angústia remanescente pós-
instauração do paradigma da grande explosão – não é possível ter acesso a ela totalmente, dito
de outro modo, “fez-se” a explosão.
No início Deus criou a radiação e o ylem. E o ylem não tinha forma ou
número, e os núcleos [os prótons e os nêutrons] moviam-se livremente
sobre a face das profundezas. E Deus disse: “Faça-se a massa dois”. E a
massa dois apareceu[...] E Deus ficou satisfeito. [...] E Deus olhou para o
Hoyle [isótopo do hélio] e lhe disse para fazer os elementos pesados como
preferisse [...] Hoyle decidiu fazer os elementos pesados em estrelas, e
espalhá-los através do espaço [...] (GAMOW, apud: GLEISER, 2006, p.
367,368).
Em AMMR, cristalfluidas nonadas comburentes/ a resolver-se em sopa de parcelas/
espaço afora centelhando irruentes/ dissolvem-se no espaço, em nebulosas, que se
orquestram nesse fragmento do poema, a partir da reiteração das sibilantes. O cristal, em
Haroldo de Campos, representa também a fome de forma, dissolvida no branco da página:
cristal
cristal
fome
cristal
cristal
fome de forma
cristal
cristal
forma de fome
cristal
cristal
forma
O poeta revisita, mais uma vez, sua própria obra. O poema acima está em Xadrez de
Estrelas; nele, a palavra cristal, como parcelas de um todo, repete-se e centelha,
descendentemente, ou ascensionalmente, que um espelhamento das palavras. É esse
ponto, justamente, que parece estar em afinidade com os cristais irruentes de AMMR. Em
latim: Ruens, entis (adj. part), tem o sentido de alguma coisa que cai, ou ainda, que precipita
em tropel
52
. No caso do poema acima e em AMMR, irruentes seria, então, aquilo que se
espalha e centelha, como em AMMR, talvez em tropel, assegurado pela repetição da palavra
cris-tal, em fome de forma poeira estelar em constante deslocamento, faiscante pelo espaço
afora. Em ambos os casos, a presença do som fricativo /f/, cria um interessante efeito de
sentido que ajuda a construir tal quadro faiscante.
É possível indicar neste ponto, mais uma vez, o quanto a construção de AMMR, funda-
se na alegoria barroca. A partir do que se presentifica aos olhos do leitor, múltiplos
significados cintilam ou obscurecem o texto e indicam a “expressão eruptiva da alegorese
barroca”, porque, segundo Benjamin:
O caráter sagrado da escrita é inseparável da idéia da sua rigorosa
codificação, pois toda a escrita sagrada se fixa em complexos verbais que
são imutáveis ou procuram sê-lo. Por isso a escrita alfabética, enquanto
combinação de átomos da escrita, se afasta mais do que qualquer outra
dessa escrita sagrada. É nos hieróglifos que essa se manifesta. Se a escrita
quiser garantir o seu caráter sagrado e estará sempre presente o conflito
52
CRETELLA Jr, J. & CINTRA, G.U. Dicionário Latino- Português. (op. cit).
entre validade sagrada e inteligibilidade profana - , ela terá de se organizar
em complexos de sinais, em sistemas hieróglifos [ ]. Cada personagem,
cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa [ ] É o que
acontece no Barroco [...] fragmentação amorfa [...] escrita visual do
alegórico. (BENJAMIN, 2004, p. 189,190).
Além do caráter alegórico, a citação acima traz a imagem do átomo como unidade
primeiríssima e fundadora de uma realidade. Também houve um físico que pensou o big-bang
a partir da idéia de átomo primeiro. Chamava-se Lamâitre (1894-1966) e era um padre da
Companhia de Jesus. Por coincidência (do ponto de vista deste trabalho) suas idéias eram
carregadas de barroquismo: “gênese pontual, metáfora do verbo e da semente/ um estado de
crescimento, metáfora da multiplicação, estádio do núcleo original disseminado [...]
apocalíptico final, ausência de sentido” (SARDUY, op. cit., p.91).
As teorias físicas da explicação do universo acabam, cedo ou tarde, defrontando-se
com o dilema da criação, pois é difícil negar a existência de um ente que tudo organiza. O
físico moderno vê-se diante de alguns dilemas e de suas complicadas teorias, retorcidas,
agitadas, cravadas de metáforas, que determinam o ecoar do discurso barroco. Sobre o
tabuleiro de xadrez, quadrado renascentista, desfilam as peças em ir e vir: os bispos
continuam a atravessar diagonalmente o tabuleiro, porém, nesse momento em que o rei é rei
menos o reino, como diz o verso de Augusto de Campos, a ciência vai tomando seu lugar.
Para confirmar o que se está dizendo, talvez seja conveniente ler as estrofes seguintes
como um modo de reorganizar o que é exposto nas estrofes iniciais desse Canto II: ninguém
mais fala de máquina do mundo, mas como ela era mesmo? Da explosão surgem os cristais,
que fluidos deslizam pelo poema, como a mallarmeana subdivisão prismática da idéia.
Esse aspecto torna-se interessante se entendido à luz das estrofes 47, 48, 49 e 50, posto
que nelas se falará da perfeição, quer em termos ptolomaicos, quer em termos galileanos.
Acompanhemos, pois, mais essas jogadas do enxadrista que retoma, sempre no sentido de
rememoração, ou travelings mencionados, o modelo ptolomaico e, a partir dele, tenta
reorganizar cronologicamente o caminho do homem até a atual cosmofísica.
47) more geométrico evoluindo e varia-
mente distante no elemento etéreo
da sucessiva coorte caudatária
48) dos corpos que a secundam no sidéreo
dos quais tellus é o fulcro e monocentra
num véu (raro rompido) de mistério
A estrofe 46 termina com a constatação de que nos dias hodiernos ninguém admite
maquinária do mundo concentrando continentes”. Na 47ª estrofe, o hipérbato, mais uma
vez, perturba a organização sintática, o que pode sugerir a dificuldade do poeta em abandonar
o modelo totalmente geométrico (more, em latim, totalmente) e perfeito da cosmofísica
ptolomaica. Ao mencionar o elemento etéreo, a sucessiva corte caudatária, o poeta parece
retomar a idéia platônica de “salvar os fenômenos”, ou seja, buscar as complexas explicações
dos movimentos dos corpos celestes em termos de simples movimentos circulares (GLEISER,
2006, p.360).
O elemento etéreo parece referir-se aqui à acepção aristotélica de éter, que seria a
“substância material que compõe os objetos celestes situados acima da esfera sublunar” (ibid,
id. 388). E a coorte caudatária, que apresenta um movimento lento graças à epêntese,
aumento no interior da palavra corte, solenemente envolve a Terra. É o modelo ptolomaico
que volta à cena e recoloca, ao menos em termos mnemônicos, a Terra no centro do sistema
sideral, como fulcro, como alicerce. A sibilação presente na 48ª estrofe compõe o movimento
do véu misterioso raramente rompido. As rimas etéreo, sidéreo, mistério, lidas dessa maneira,
reforçam a concepção de mundo apresentada em ambas as estrofes e a limitação humana para
compreendê-las. O véu (raro rompido) de mistério pode ser entendido também como a própria
máquina do mundo, que se abre apenas aos eleitos. Propor soluções a seus enigmas é,
portanto, blasfêmia, como atesta a triste história de Galileu.
O primeiro a propor a possibilidade de o Sol estar no centro do sistema solar foi
Copérnico (1473-1543). Sua grande preocupação não era, entretanto, causar uma revolução; o
que queria era tão somente voltar ao passado e tentar reformular idéias para que se
adaptassem ao modelo de Platão, das esferas perfeitas, girando no éter harmonicamente.
Como era conservador, é provável que tivesse “odiado saber da ferida que causou na espécie
humana, ao tirá-la do centro do universo, ao procurar “salvar os fenômenos”, atribuindo-lhes
movimentos circulares e simples” (GLEISER, 2006, p. 95; GLEISER 2006a, p. 87).
Com base nos experimentos de Copérnico e de outros estudiosos, Galileu fez muitos
experimentos importantes, desde alguns que antecipavam a existência da força da gravidade, a
grandes observações astronômicas. Quando descobriu os satélites de Júpiter e, mais do que
isso, quando verificou que o fato de girarem em torno do planeta não significava que este
estava parado, pôde compreender que o movimento da lua em torno da Terra não significava
que esta fosse imóvel; além disso, definitivamente colocou o Sol no centro do sistema, porque
notou que os planetas giravam em torno dele, tanto quanto a Terra também deveria fazê-lo
(GLEISER, op. cit).
Essa descoberta causou imenso desconforto na sociedade da época e começaram as
perseguições a Galileu. A irônica verdade é que ele jamais duvidou da existência divina
regendo esse sistema ao redor do Sol. As órbitas circulares que propunha para os planetas
confirmavam, em sua opinião, tal existência. Conforme aponta Gleiser (ibid.), tão obstinado
era em suas idéias que jamais declarou que as escrituras estivessem erradas; pelo contrário,
afirmava que, se a ciência contradizia as escrituras e se os argumentos científicos são
fundamentados na verdade, então as escrituras estariam sendo mal interpretadas. Não houve
salvação possível para Galileu, ele teve que pedir perdão à Santa Inquisição pelas blasfêmias
proferidas. Diz a lenda que depois de prestar seu depoimento e de se declarar arrependido dos
males causados, ainda afirmava, baixinho: mas que ela se move, se move.
49) já Galileu – aquele que heliocentra
o sistema – chegou depondo a terra
do seu trono senil que só sustenta
50) uma ciência obsoleta: o sábio a exterra
e a faz descer na escala de grandeza:
ei-la – abatido o orgulho- feito perra
51) que lambe a hélios-sol (sem realeza)
o rastro de rei posto (subalterna)
e depois newton vem: a maçã reza
Para Affonso Romano de Sant’Anna (2000, p. 127), ao ser repreendido pela Igreja por
ferir as escrituras, o discurso de Galileu corporifica a metáfora barroca do claro-escuro: as
autoridades eclesiásticas seriam o lado sombrio e irracional; Galileu, a luminosidade e a
racionalidade. Parece ser esse movimento de claro enigma” que o eu-poético quer ressaltar,
em AMMR, quando sugere que Galileu heliocentra o sistema, porque depõe a Terra de seu
trono senil a imagem que surge diante do leitor é instigante e dimensiona o que fez Galileu
a Terra, como uma cadela banida, deixa seu trono, seu “lugar ao sol” De fato, é como se
Galileu a tivesse expulsado do Paraíso: viverá de joelhos, curvada, a lamber hélios-sol, sem
realeza e subalterna.
O esfacelamento do modelo anterior a Galileu se presentifica na sibilação, que termina
como um rastro de rei posto, cuja aliteração em /r/, não deixa de sugerir a profunda cicatriz
que será deixada por esse episódio, um rasgo; o rastro de rei retoma o raro rompido da estrofe
anterior, fazendo ecoar o rompimento, induzindo o leitor a compreender a corrosão das idéias
cristãs que se revelava definitiva. (Re)vela-se: esconde-se novamente a centralidade da
Terra
53
, exterrada pela fragilidade da ciência obsoleta.
O movimento circular das órbitas dos planetas é o cerne das formulações de Galileu,
que acreditava ser um “escolhido” e o “único” capaz de interpretar a mensagem das estrelas e
sua perfeição (GLEISER, 2006, p. 136). O círculo, como figura perfeita e indeformável,
também ocupa lugar de destaque na arte, na filosofia, na religião, e, é claro, no mito, no qual o
próprio tempo é tratado ciclicamente.
No caso da obra de Haroldo de Campos, um exemplo da busca da circularidade pode
ser apreciado em Teoria e Prática do Poema, manifesto da estética neobarroca, como diz o
próprio autor (CAMPOS, 2002, p. 25, 26), pois retoma o Xadrez de Estrelas de Antonio Vieira, a
partir do célebre Sermão da Sexagésima. Nesse texto, o poema é pássaro e, ao mesmo tempo,
ao voar em torno de sua própria órbita, impondo aos significantes que o circundem, é o Sol.
O poeta, mensageiro das estrelas, ou melhor, enxadrista das estrelas, heliocentra o
poema, por isso usa termos astronômicos dispostos em tensão, figurando o dilema entre o
more geométrico evoluindo, como se o poema fosse tellus, fulcro dos corpos celestes, rodeado
da coorte caudatária. O poema é Sol. De modo que entre a teoria (o que o poema é) e a
prática (como o poema se realiza enquanto poema) tensionam-se visões de mundo, o
barroquismo explode:
A poesia, mundo autônomo organizado pela razão permeada de emoção,
pende em equilíbrio instável sobre o abismo do azar, como, por um ato de
luciferina (de Lusbel) arrogância; a poesia pode ser vista como um virtual
xadrez sensível, de estrelas. Não por mera coincidência, a expressão se
converteu no título da antologia poética (Xadrez de Estrelas: Percurso
textual, 1949-1974) que publiquei em 1976. (CAMPOS, H. op.cit).
53
Aristarco, nascido em Samos, em torno do ano de 310 a. C. propôs um modelo heliocentrado; também supunha
que o universo era muito maior do que se pensava. Copérnico resgata as idéias de Aristarco e Galileu
definitivamente as reorganiza. (GLEISER, 2006, p.75).
TEORIA E PTICA DO POEMA
I
Pássaros de prata, o Poema
ilustra a teoria do seu vôo.
Filomela de azul metamorfoseado,
mensurado geômetra
o Poema se medita
como um círculo medita-se em seu centro
como os raios do circulo o meditam
fulcro de cristal do movimento.
II
Um pássaro se imita a cada vôo
zênite de marfim onde o crispado
anseio se arbitra
sobre as linhas de força do momento.
Um pássaro conhece-se em seu vôo,
espelho de si mesmo, órbita
madura,
tempo alcançado sobre o Tempo.
III
Equânime, o Poema se ignora.
Leopardo ponderando-se no salto,
que é da presa, pluma de som,
evasiva
gazela dos sentidos?
O poema propõe-se: sistema
de premissas rancorosas
evolução de figuras contra o vento
xadrez de estrelas. Salamandra de incêndios
que provoca, ileso dura,
Sol posto em seu centro
IV
E como é feito? Que teoria
rege os espaços de seu vôo?
Que lastros o retém? Que pesos
curvam, adunca, a tensão do seu alento?
Cítara da língua, como se ouve?
Corte de ouro, como se vislumbra,
proporcionando a ele o pensamento?
V
Vede: partido ao meio
o aéreo fuso do movimento
a bailarina resta. Acrobata,
ave de vôo ameno,
princesa plenilúnio desse reino
de véus alísios: o ar
Onde aprendeu o impulso que a soleva,
grata, ao fugaz cometimento?
Não como o pássaro
conforme a natureza
mas como um deus
contra naturam voa
VI
Assim o Poema. Nos campos do equilíbrio
elísios a que aspira
sustém-no sua destreza.
Ágil atleta alado
Iça os trapézios da aventura.
Os pássaros não se imaginam.
O poema premedita.
Aqueles cumprem o traçado da infinita
astronomia de que são órions de pena.
Este, árbitro e justiceiro de si mesmo,
Lusbel, libra-se sobre o abismo,
livre,
diante de um rei maior
rei mais pequeno.
A última estrofe leva-nos a pensar não apenas no poema como Lusbel, mas no próprio
Sol, astro-rei mais pequeno, como estrela dotada de luciferina pulsão. Quando Galileu
definitivamente centraliza o Sol, este passa a “concorrer” com Deus. A Igreja sabia de
antemão que teria um grande problema pela frente. Levaria alguns séculos até que essa
organização universal definitivamente desequilibrasse o sentido religioso. Antes disso,
Newton (1643-1727), movido pela e pela religiosidade, procurará mostrar a
magnanimidade do Criador; não é à toa, portanto, que o último verso da estrofe 51 de AMMR,
termine com a palavra reza. Deus tem papel crucial no universo newtoniano, pois, para ele,
este é uma manifestação do poder infinito daquele. Sua racionalidade foi o meio que
encontrou para sustentar uma ligação entre o humano e o divino (GLEISER, 2006, p. 158).
A grande inspiração newtoniana era espiritual. Seus grandiosos pensamentos,
luminosos, poder-se-ia dizer, entretanto, confrontavam-se com um lado sombrio e saturnino
desenvolvido ao longo de sua vida, por uma série de razões
54
. A matemática e a física eram
um meio de transcender uma existência marcada pela angústia. Ao colocar como prioridade
em sua vida a pulsão de descobrir e explicar o funcionamento daquilo que chamou “sistema
de mundo”, Newton conseguiu unificar idéias, aparentemente divergentes, de seus
precursores, Galileu e Kepler.
Galileu, como se disse, acreditava nas órbitas circulares e desprezava as hipóteses de
Kepler, de órbitas planetárias elípticas, desenvolvidas mais ou menos à mesma época. A
polêmica entre esses dois grandes pensadores, assim como aquela entre Galileu e a Igreja,
também corporifica o barroco, segundo Sant’Anna (2000, p. 127), que dessa vez Galileu é
que estará do “lado sombrio”. A passagem do esférico ao elíptico corresponde à passagem do
Renascimento ao Barroco. Para Galileu, Kepler era um maneirista e sua órbita elíptica uma
agressão ao equilíbrio. A elipse, por sua vez, pelo descentramento a que obriga, é a forma
barroca por excelência (ibid., id).
Basicamente, o que Kepler observou foi a órbita do planeta Marte em torno do Sol e
seu comportamento elíptico; assim como Newton, Kepler era movido por um profundo senso
religioso e sua curiosidade sobre Deus era mais forte do que seu temor. Dessa forma, por meio
de cálculos precisos, chegou à conclusão de que o movimento dos planetas era elíptico e tinha
o Sol em um dos focos
55
(GLEISER, 2006a, p.86). Para Kepler, o universo era uma
manifestação da Santíssima Trindade: Deus era representado pelo Sol, no centro; o Filho, pela
esfera das estrelas fixas e o Espírito Santo, pelo poder que emana do Sol (ibid, p.111).
54
Cf. GLEISER, M. A dança do universo. Op. cit., p. 158 e seguintes.
55
Em termos de geometria, a elipse é uma cônica e pode ser definida como um conjunto de pontos em torno de
dois focos, ao contrário do círculo, que tem um só.
Para Severo Sarduy ([s.d], p. 57 68), o movimento elíptico é dialético e dinâmico,
baseado no descentramento, porque tem dois focos, um visível e outro igualmente ativo, mas
não tão claramente visto. Esse é o sentido da figura retórica elipse, inclusive. Por isso, para o
poeta cubano, a elipse é a figura barroca por excelência, porque promove o descentramento, o
alargamento dos gestos e a não unicidade dois focos, o claro e o escuro; é barroca porque
essa duplicidade revela-se, por exemplo, no distanciamento do significante em relação ao
significado, conforme o esquema apresentado no Capítulo 1.
Em AMMR, nota-se o descentramento; ora o foco está na religião, ora está na ciência,
mas ambas coexistem no texto do poeta que escreve no limiar do milênio. Num jogo de luz e
sombra, tudo no poema induz-nos à elipse sempre um foco velado, cujo rastro o leitor
procura para encontrar a harmonia do universo poético, uma vez que a apreensão deste é
dependente da percepção das metáforas, metonímias e demais procedimentos do plano da
expressão, inscritos no périplo do poema, de modo a articular seu significado. Um exemplo
disso são as presenças rosiana e drummondiana no Canto I, desde o primeiro verso, e seu
apagamento diante dos diálogos com Dante; por outro lado, ao ressaltá-las, no processo de
refacção da leitura proposto, foi o mundo dantesco que passou a ser obliterado.
Esse movimento, obviamente, tem a ver com a linearidade da linguagem, mas,
principalmente, com o aspecto elíptico do poema. Para resolver a questão da linguagem, a
leitura poderia ter comentado um pouco de um poeta, um pouco de outro e, assim
sucessivamente; a opção por fazer um percurso e depois o outro enfatiza, justamente, a
duplicidade focal da elipse que agora, no Canto II, pode ser percebida com clareza, porque
aqui a voz do eu-poético ancora-se às dissonâncias da física e ao acesso a este saber.
Vale retomar as considerações de Pécora (2005), apontadas no início deste capítulo. O
descentramento elíptico serve para explicar, por exemplo, porque não se pode afirmar que no
Canto II o “esfingir do eu” cede lugar aos questionamentos sobre a origem do universo. Como
o poema obedece a um movimento elíptico, as duas perspectivas ocorrem simultaneamente,
ora o foco está em uma, ora em outra e o movimento de leitura deve dar conta de percebê-las,
ou ainda, de perceber que no falar das coisas um falar de mim. Aliás, o movimento de
leitura, como se destacou no início deste trabalho, é também elíptico, acompanhando a
organização do poema.
Ao heliocentrar o poema, como mostra sua Teoria e Prática do Poema, e como impõe
a leitura de AMMR, o poeta Haroldo de Campos define-o como centro, ou, em termos
jakobsonianos, torna a função poética dominante, descentralizando as demais funções da
linguagem. Nos dois poemas, a despeito da circularidade, ou ainda, da centralidade da
mensagem, prevalece um movimento elíptico, pois, em torno dela, eplipticamente, orbitam
significantes que se deslocam, assumindo duplas focalizações, múltiplos sentidos, como ficou
demonstrado no esquema de Severo Sarduy já mencionado neste trabalho (cf.p. 61).
Em AMMR, ao aproximar a religião e a ciência pela orquestração do discurso poético,
produzem-se novos acordes e hélios-poema exerce seu “poder de atração” sobre ambas, que
passam a girar em torno da mensagem poética - por isso é que o poema (e não a ciência e a
religião em si mesmas) impõe-se como discussão. Religião e ciência são discutidas em
AMMR, porque se manifestam como componentes semânticos e/ou expressivos do poema,
que as ilumina, inaugurando uma forma outra de repensá-las. A poesia é, portanto, a forma de
o poeta pensar o mundo, a partir dela estabelecem-se critérios para que o poeta o compreenda;
a partir da poesia o poeta define “leis” tão válidas para ele quanto as leis que Newton pôde
elaborar, como reza a lenda.
[...]
51) e depois Newton vem: a maçã (reza
52) a lenda) cai-lhe aos pés – maga lanterna
vermelha – da alta rama e ao intelecto
pronto lhe ensina a lei (à queda interna)
53) da gravidade inscrita no trajeto
dos corpos mais pesados do que o ar
por amor e atração sempre que o objeto
54) se precipite e tombe sem cessar
– lei universal seja aos mais pequenos
seja aos maiores corpos a ordenar
A palavra reza, mote para a apresentação da religiosidade de Newton, tem agora seu
sentido completado pela palavra lenda, que por sua vez se refere à conhecidíssima passagem
da vida de Newton. Segunda consta, Newton estava descansando sob as macieiras de
Woolsthorpe, quando uma das maçãs despencou. Ele então se perguntou se a força que atraíra
a maçã para o chão seria a mesma que explicaria a órbita da Lua, que poderia estar caindo,
mas devido a uma força centrífuga era colocada em órbita circular
56
.
Depois de vários estudos Newton conclui que os corpos materiais se atraem
gravitacionalmente: “Portanto, Terra, Lua, Sol e todos os objetos no sistema solar atraem-se
mutuamente numa dança coreografada pela força da gravidade” (GLEISER, 2006, p. 158 e
seguintes). É exatamente a esse aspecto que se referem as estrofes acima: por amor-atração,
uma lei universal rege os corpos, sejam eles grandes ou pequenos. Para Newton, essa ordem
suprema adviria de Deus, o que justifica o epíteto maga lanterna vermelha, atribuído à maçã
na estrofe 52. Como lanterna, a maçã ilumina a verdade da ordem suprema e divina; ao
contrário do que ocorre no mito cristão, a maçã não expulsa Newton do Paraíso, antes, nele o
faz ingressar. Abrem-se-lhe as portas do funcionamento do mundo: epifania
57
. As teorias
newtonianas comprovaram o funcionamento mecânico do universo, todavia, pressupunha-se
sempre a existência de Deus, gerindo, a cada instante, tal universo, ou seja, Deus precisaria
ser onipresente, para que tudo funcionasse.
A mecânica celeste não era novidade newtoniana. Antes dele, Kepler afirmava
acreditar que a “máquina celestial” não deveria ser comparada a um organismo vivo, mas ao
mecanismo de um relógio (GLEISER, 2006, p.121). Foi o matemático francês Laplace (1749-
1827) que, no final do século XVIII, chegou à conclusão de que o funcionamento do universo
é mecânico, porque Deus é mesmo um relojoeiro. Há, entretanto, uma diferença entre a
concepção newtoniana e a de Laplace. Para o matemático francês, depois de fazer o mundo,
Deus retirou-se de cena, confiando no funcionamento do “universo-relógio”.
De certa forma, o universo dos teístas, os seguidores de Newton, abalou-se com a
perspectiva de um Deus que depois de criar o universo, deixá-lo-ia funcionar sob o controle
das leis da física como um relógio funciona sob o controle de seus próprios mecanismos (ibid,
p.194); para os deístas
58
(Laplace e adeptos de suas idéias), o papel da ciência seria o de
desvendar os mistérios dos complicados mecanismos de funcionamento previsível do
universo.
De posse de dados como velocidade e posição inicial das partículas, seria possível
calcular a evolução do universo no passado ou no futuro. Laplace imaginou uma entidade
56
A força centrífuga é aquela que observamos na máquina de lavar roupas quando ocorre centrifugação. O tipo
de movimento feito empurra as roupas para a parede da máquina.
57
É claro que não apenas esse episódio levou Newton às conclusões que chegou, mas a maçã atuou, para ele,
como reza a lenda, como um desencadeador de isotopias, um operador de leitura, seu movimento de corpo
mais pesado do que o ar fez com que o cientista unisse asrias partes de um quebra-cabeça, cuja montagem
estava em elaboração há algum tempo.
58
Teísmo: A crença na existência de um Deus ou deuses cuja presença é imanente. Deísmo: Crença de que, após
criar o universo e suas leis naturais, Deus não interferiu mais no mundo. (GLEISER, 2006, p. 386, 390).
capaz de fazer isso, que ficou conhecida como o “demônio de Laplace”, previsor e
determinista
59
. Esse demônio, entretanto, no limite, extinguiria possibilidades de atuação
sobre a realidade, uma vez que tudo estaria sempre pré-determinado pela maneira de
funcionamento do “universo-relógio”.
Entre as estrofes 55 e 62 de AMMR, o poeta ressalta, como se verá a seguir, a
existência de um universo cujo controle nos escapa trata-se de um universo dado e
comandado em maior (Newton) ou menor (Laplace) grau por Deus. Quando se descobriu, no
século XX, que o universo estava em constante expansão, as idéias de um mundo orquestrado
ou um mundo regido por um Deus relojoeiro foram colocadas em xeque – surgia a hipótese de
que haveria uma supra-orquestração constante, sim, porém inusitada, não um espaço estático e
um tempo absoluto, cujo movimento mecânico poderia reproduzir os ponteiros de um relógio.
O universo, de acordo com as novas concepções, teria o dinamismo como característica; os
ponteiros do relógio tornavam-se, assim, enlouquecidos. Os avanços das pesquisas
substituiriam o apolíneo pelo dionisíaco, os objetos simples, passam a ser complexos, a
maquinaria do mundo era, sem dúvida, muito mais complicada do que se poderia supor,o
“estado das artes” da física tornava-se outro. Como aponta Luís Alberto Oliveira:
Firma-se [século XIX] o reducionismo como doutrina epistemológica,
atendendo eficientemente à necessidade, conforme a tradição cartesiana, de
introduzir-se na matéria dispersa do mundo a ordenação inequívoca do
pensamento matemático. Não admira que haja se instalado e difundido, na
cultura do Ocidente, uma cosmovisão qualitativa e reducionista segundo a
qual o universo físico seria o análogo de um vasto mecanismo,
rigorosamente concatenado, analisável com limitada precisão e, por
conseguinte, plenamente controlável e predizível, opondo a imagem de um
cosmos mecânico à de um caos concebido como limite da desordenação
espacial (carência de “forma”). Reflete-se aqui uma ambiciosa aspiração a
uma totalização maquínica da realidade fenomenal que, como se sabe, logo
virá a encontrar a sua hybris. (OLIVEIRA, L.A., In: NOVAES, 1996, p.509,
grifo do autor).
Não foram poucos os cientistas transgressores dessa ordem, mas, sem dúvida, Einstein
foi o responsável pelas maiores rupturas. Uma das verificações mais fantásticas, entre as
várias feitas por ele, foi a de que o espaço é curvo, ou seja, é deformado pela matéria que nele
59
É importante notar que Laplace não falou em demônios, mas seus biógrafos o fizeram. Para ele haveria um
intelecto previsor e determinista. Possivelmente, o nome foi atribuído pelo poder “divino” de fazer previsões por
uma entidade que não fosse Deus, pois este, para Laplace, não atuaria no Universo, uma vez que, depois de criá-
lo, deixá-lo-ia eternamente funcionando, sob o controle das leis da física. Laplace era um físico e matemático
que acreditava que a explicação da Natureza adviria da solução de problemas práticos.
existe. Como se esse encurvamento do espaço? Uma das primeiras verificações a provocar
o questionamento acerca do encurvamento do espaço foi a observação de que havia uma
deflexão na luz proveniente de estrelas, ou seja, os raios luminosos faziam uma “curva”.
Segundo Einstein, isso não acontecia devido à gravidade, mas por causa da própria curvatura
do espaço.
Depois de muitos experimentos, o que se descobriu foi que a matéria provoca uma
deformação no espaço de modo análogo ao que uma esfera pesada provoca deformação no
centro de uma cama elástica. Se jogarmos bolinhas de gude nessa cama elástica, elas farão
órbitas circulares ou elípticas em torno da esfera maior até seguirem uma espiral e dirigirem-
se ao centro do “buraco”. Esse movimento é mais ou menos parecido com o movimento da
água ao redor do ralo de uma banheira, por exemplo: a água e/ou pequenas substâncias vão
girando em torno do ralo até serem “devoradas” por ele – ralo abaixo...
O que ocorre no espaço é que a matéria encurva o espaço vizinho e cria um buraco. O
Sol, por ser grande, é responsável por um significativo encurvamento. Os planetas (como as
bolinhas de gude) giram ao redor dele, sabemos, em órbitas elípticas, mas por que não se
chocam com o Sol, por que não são “sugados” por ele como a água é pelo ralo? Porque,
devido à curvatura do espaço e da ausência de atrito no mesmo, tendem a permanecer
desenvolvendo suas órbitas indefinidamente. Em outras palavras: a gravitação é efeito da
curvatura do espaço-tempo
60
,
61
.
Einstein eliminou o demônio de Laplace e o Deus relojoeiro quando explicou que a
forma do espaço é que determina os movimentos dos corpos celestes ao redor do Sol. Longe
de causar danos à idéia de transcendência, o modelo einsteiniano faz migrar a transcendência
divina para a científica. Como ele mesmo diz:
60
Espaço absoluto: de acordo com a física newtoniana, espaço absoluto é a arena geométrica onde fenômenos
naturais ocorrem. Suas propriedades são independentes do estado de movimento de observadores. (GLEISER,
2006, p. 387).
Tempo absoluto: De acordo com a física newtoniana o tempo flui sempre à mesma razão, independentemente do
estão de movimento dos observadores (ibid., p. 390)
Espaço-tempo: de acordo com a teoria da relatividade, espaço tempo é a arena quadridimensional onde
fenômenos naturais ocorrem. Distâncias no espaço-tempo são independentes do estado de movimento dos
observadores (ibid., 387).
Em 1905, Einstein desenvolve a Teoria da Relatividade Restrita, trocando os conceitos de espaço e tempo
newtonianos pela noção de espaço-tempo como entidade geométrica quadridimensional. Em 1915, ampliando
essa teoria, surge a Relatividade Geral, segundo a qual a gravitação é um efeito da geometria do espaço-tempo.
(GLEISER, 2006, p. 253 e seguintes).
61
É devido a esse encurvamento que Kepler, por exemplo, sem o saber, notou que os planetas mais próximos do
Sol (do centro do “buraco”, do “ralo”) giram mais rapidamente; e os mais distantes, mais devagar. Além disso, os
planetas com órbitas maiores são mais lentos. A constância dos movimentos permitiu a enunciação da Lei
Harmônica de Kepler: quanto maior a distância do planeta, menor é a força exercida pelo Sol (GLEISER, 2006,
p.318-320; GLEISER, 2006, p. 87).
[...] fora está esse mundo imenso, existindo independentemente de nós,
seres humanos, enorme e eterno enigma, ao menos parcialmente acessível à
nossa razão. Eu entendi que a contemplação desse mundo era uma nova
forma de liberação [...] A possibilidade de compreendermos esse mundo
impessoal de modo racional tornou-se para mim, consciente ou
inconscientemente, o objetivo supremo [...] Talvez o caminho para esse
paraíso não fosse tão confortável e seguro como o caminho para o paraíso
religioso; mas ele provou ser confiável, e eu nunca me arrependi de minha
escolha. (EINSTEIN, [s.d] apud: GLEISER, 2006, p.251,252).
O “sistema de mundo” newtoniano predominou por muito tempo; Einstein seria
ousado o bastante para relativizar as idéias newtonianas, em todos os aspectos, inclusive
desestabilizando a fé propagada pela religiosidade:
55) einstein então encurva o espaço: menos
seguro fica o deus-relojoeiro
da clássica mecânica ou ao menos
56) desenha-se outro enredo sobranceiro
ao de Newton: do espaço – qual sensório
de deus – de um absoluto-verdadeiro
57) espaço que se quer não-ilusório
como de um tempo-vero (é em si só e
aparte por um sumo ordenatório
58) omni-poder que tudo rege e move)
– einstein encurva o espaçotempo e o demo
determinista e previsor remove –
59) o dâimon-sabe-tudo esse plusdemo
de laplace que vê antecipado
o futuro e o pretérito cinemo-
60) –graficamente em flash-back repassado
(aquele em flash-foward) súbito lê:
demiurgo matemático imutado
61) sobre-imposto ao perene balance
dos corpos orbitais (era a matese
universal o selo o “como se”
62) dum período onde a hipóteses a tese
previsível – hypothesis non fingo –
se prefere): mas há outra alegorese
A dimensão da descoberta einsteiniana de que o espaço é encurvado foi
revolucionária. Nesse trecho de AMMR, a desordenação provocada pelo encurvamento do
espaço se presentifica no uso dos hipérbatos, sempre perturbadores, e pela volta das longas
interrupções, colocadas entre os sinais parentéticos; interrupções estas que servem para
apontar a extinta onipotência divina para reger o universo, conforme defendia a mecânica
clássica; regência que, obsoleta, tornou-se, no espaço do poema, apenas algo entre parênteses.
Permanece entre parênteses também na física, pois que a relatividade não eliminou os
pressupostos newtonianos, fez deles paideuma no sentido de make it new.
A partir de Einstein, portanto, outro enredo se desenhará, sobrepondo-se ao de Newton
e em contrariedade ao o absoluto-verdadeiro espaço e o tempo vero, para destronar, com a
radicalidade das vanguardas, o sumo ordenatório omni poder. O espaço sensório em que se
transmitiam as sensações advindas de Deus ou, ainda, aquele que possibilitava a totalidade
das interpretações e recepções sensoriais do poder divino, desfaz-se não haverá mais
determinismos e previsões, mas a instabilidade e a incerteza. O plusdemo laplaciano, que
poderia estimar o passado (flash-back) e prever o futuro (flash-foward) com precisão, será
expulso; não mais imporá suas regras e regularidades ao eterno balanço dos corpos orbitais.
Condenado à sombra, permanecerá como reminiscência do que um dia se imaginou que
pudesse ser a maquinaria do universo, em seu perene balancê.
A introdução, mais uma vez, de termos latinos como matese e hypothesis non fingo,
hipótese não construída, não formada, fingida, garante o tom solene e erudito do poema e
recupera, especialmente, o tom do discurso religioso, que manteve por muito tempo o latim,
assegurando a gravidade e, por que não, a ininteligibilidade do que era proferido. No lugar das
hipóteses, a tese previsível, ou simplesmente, a alegorese.
Traçar analogias entre esses modelos apresentados e as hipóteses sobre as quais se
ancora a construção de AMMR é inevitável. A poesia moderna, sem dúvida, encurva o
espaçotempo, porque muda o centro de gravidade no que concerne ao fazer poético. Reforça o
estatuto primeiro da mensagem que passa a ser o Sol (centro do sistema): funda-se uma poesia
heliocêntrica; a mensagem poética torna-se o “herói”, não mais musas inspirando o poeta,
tudo é fruto de seu trabalho poético. Signos em rotação e em translação gravitam em torno da
mensagem que, por ser auto-reflexiva, aproxima-se do espaço curvo, quando este impõe as
órbitas dos planetas por sua especificidade, isto é, a auto-reflexividade e a metalinguagem da
mensagem poética parecem orbitar em torno da própria mensagem.
Explicando melhor: desde a organização do universo a partir do big-bang os planetas
giram ao redor do Sol, sempre foi assim; entretanto, entre não saber disso e saber um
abismo de séculos; quando a teoria da relatividade e a curvatura do espaço passam a ser
hipóteses plausíveis, toda visão de mundo é revista. Analogamente, a função poética sempre
foi dominante na mensagem poética, a Comédia e Os Lusíadas mostram esse fato claramente,
todavia, a consciência de que a função poética é dominante e que é fruto, exclusivamente, do
trabalho do poeta, modifica a concepção do fazer poético. Não se trata apenas de usar palavras
para escrever poemas, mas de transformar as palavras e o processo de escrever no plano
temático da hélios-poesia.
Ao colocar a cosmologia e a cosmogonia em seu poema, Haroldo de Campos
também mostra que a mudança na concepção poética correspondeu a uma mudança histórica
da forma de conceber o mundo e seu funcionamento maquínico. A busca da ordem no
funcionamento do cosmos, porém, é uma constante em todas as visões, desde os poetas mais
revolucionários a Einstein, para quem o universo é o mesmo em todas as direções e em todos
os lugares. Em 1948, foram feitas generalizações a esse princípio einsteiniano e chegou-se à
conclusão de que o universo é eterno (GLEISER, 2006, p. 388). Logicamente, esse universo
homogêneo e eterno remete aos mitos da Criação – é tão forte a busca da harmonia no homem
que ele parece não conseguir fugir dela:
Modelos científicos de criação, ou modelos cosmogônicos, necessariamente
repetem certas idéias presentes nos mitos de criação: ou o Universo existiu
para sempre, ou ele apareceu num determinado momento do passado, a
partir do Caos ou a partir do Nada, ou , quem sabe, é desde sempre criado e
destruído numa dança de fogo e gelo. Existe apenas um número finito de
respostas possíveis, que foram visitadas independentemente pela
imaginação científica e pela religiosa. Talvez ainda mais importante do que
as respostas sejam as perguntas, que revelam tão claramente o que seja o ser
humano. (GLEISER, 2006, p. 307).
A indagação e o mistério são os motores da humanidade; o abandono dos deuses é
algo bastante difícil. O caráter alegórico do texto haroldiano acentua-se pela tentativa de
conciliação dos paradigmas religioso e científico, à medida que o eu-poético não se desfaz das
visões da máquina do mundo do Canto I e aceita as explicações da física no Canto II. O que é
interessante notar nesse processo é que as explicações científicas são de tal modo
contundentes, que diante de tantos avanços científicos, parece não haver sacralização outra a
não ser a ciência per si; invertendo a lógica, a agnose do poema pode beirar não o ateísmo,
mas o paganismo, a “incivilidade”, pois a ciência assume aspectos de “religiosidade”. Sobre
esse modus operandi alegórico, diz Walter Benjamin:
[...] A alegorese nunca teria surgido se a Igreja tivesse conseguido eliminar
radicalmente os deuses da memória dos crentes. [...] A concepção alegórica
tem sua origem no confronto da physis carregada de culpa, instituída pelo
cristianismo, com uma natura deorum mais pura, encarnada no panteão
antigo. No processo de renovação do elemento do elemento pagão com o
Renascimento e do cristão com a Contra-Reforma, a alegoria, enquanto
forma desta confrontação, teria também de se renovar (BENJAMIN, 246,
250).
Analogamente, poder-se-ia dizer que renovação alegórica que parece ocorrer em
AMMR dá-se porque a ciência, conforme atesta o próprio fragmento de Marcelo Gleiser
mencionado, não conseguiu eliminar radicalmente Deus da memória dos crentes e, quiçá, da
memória dos cientistas. Talvez a modernidade imponha ao homem a culpa da não-crença
incondicional na ciência, contrapondo esse sentimento à libertação e à facilitação da crença
em uma máquina do mundo que tudo rege; o que é Deus, ninguém o entende e esta via, na
modernidade, deixa de ser estreita, posto ser tranqüilizadora. Se o homem moderno pouco
acredita na punição e no julgamento final, talvez seja porque a visão do Paraíso tenha
prevalecido como único caminho depois da morte; quando morremos, vamos para o céu.
Assim sendo, diante da possibilidade da vida celestial e da angústia de que o Sol está fadado a
explodir, fica-se com a primeira.
A profunda tragicidade dessa situação consiste no fato de que da mesma maneira que o
homem barroco não conseguia deixar de sentir a Contra-Reforma em sua totalidade, o homem
moderno não tem por onde negar a ciência ela é sua certeza. A ciência mostra que um
universo onipotente que se sobrepõe ao homem, pelos mistérios que encerra. Esta é a acídia
do milênio que esfinge o poeta, Odisseu pós-moderno, cujas reflexões fazem ampliar
arestas, espelho refletor de uma essência cindida. Por isso, o esfingir do eu e a tentativa de
dissolução dos enigmas da gesta universal convergem, são focos de uma mesma elipse.
Alternam-se pelo poema, com aura saturnina, considerando-se aqui a duplicidade de Saturno
já apontada e que vai da melancolia ao impulso criativo do gênio. Como aponta Ávila:
O homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem
agônico, perplexo, dilemático, dilacerado entre a consciência de um mundo
novo ontem revelado pelas grandes navegações e idéias do humanismo,
hoje pela conquista do espaço e os avanços da técnica [...] ontem a contra-
reforma, a inquisição, o absolutismo, hoje o risco da guerra nuclear [...]
vivendo aguda e angustiosamente sob a órbita do medo, da insegurança, da
instabilidade, tanto o artista barroco quanto o moderno exprimem
dramaticamente o seu instante social e existencial (ÁVILA, 1994, p.26).
Em AMMR, a construção da alegoria, tão comum na religião e na poesia impõe-se,
também, à ciência – são os demônios, os relógios, as explosões. Se no Canto I o poeta trata da
alegoria da máquina do mundo por meio da leitura que faz do cânone literário, no Canto II, é
o caráter alegórico da ciência (muito mais do que a ciência propriamente dita) que é evocado
e internalizado ao texto, engendrando a visão de mundo do poeta que emergirá a partir da
religião, da ciência e, sobretudo, da poesia. Como forma de pensamento e, portanto,
linguagem, a poesia traduzirá, no périplo do poema, a ubiqüidade dos signos poéticos na
representação da realidade do poeta ele o mundo a partir da poesia, que nasce no espaço
curvo do poema como um crisantempo. O poema é um espaço e é um tempo, como ensina
João Alexandre Barbosa:
Espaço e tempo da linguagem: o poema, em que o leitor atua como um
viajante para quem os signos não são mais apenas signos, sinais, de alguma
outra coisa para fora de uma topologia cujos limites cartográficos estão
dados na página que os acolhe como espaço privilegiado. Mapear, desse
modo, significa fixar as marcas de uma volta como quem, por caminho
desconhecido, sem saber ao certo o retorno possível, vai deixando traços
que possam assegurar a volta.[...] Do poema volta-se modificando, a cada
passo, os rastros antes conhecidos e fixados, signos que se transformam na
medida em que, dispostos à significação (= indicação) não traduzem um
mesmo espaço ou tempo.[...] Transformação: uma figura esboçada para
além daquela forma visível de cujos contornos a razão se apossara num ato
de previsibilidade (BARBOSA, 1979, p. 11).
Assim como a leitura que o homem faz do universo transforma ambos,
simultaneamente, quando o leitor, transformando pela leitura o poema, transforma-se a si
mesmo, estabelece um percurso de leitura, busca algumas leis dentro do poema, harmonias
que atuem como os rastros de que fala João Alexandre e que lhe permitam domar o acaso que
o poema procura forjar. Como ensina o próprio Haroldo de Campos em poema publicado em
Depoimentos de Oficina (2002):
a poesia é
um acaso domado
e abolido na ocasião
do poema:
um caso de
acaso que se põe em
ocaso
colapsa
capitula
nas sedes da ocasião
que faz o poema:
um caso de
ocaso provisório pois
nada
nenhum lance de
dados
abolirá
(a não ser pelo breve
instante –
pênsil de um tal
vez e/ou poema)
o acaso
Nada deveria ser por acaso no jogo da poesia, nem mesmo um lance de dados incapaz
de abolir o acaso. O poema é o lance; é o que lança linguagem em ação e construída pela luta
contra o acaso, corporificada no fazer do poema e em leis internas. Diz o físico-matemático
Poincaré (1954-1912) (1995, p.8) que as leis são a expressão da harmonia e uma conquista do
espírito humano; o mundo, para o autor, é divino porque não milagres a todo instante,
porque pode ser explicado por leis matemáticas. Em outras palavras, não um Deus que o
fique regendo por capricho e não o acaso, mas a harmonia apreensível pela inteligência
humana. A astronomia é, para ele, a grande conquista dessa compreensão harmônica do
universo o desvendar o cosmos amplia a compreensão que o homem tem de si e do
mundo, por mais difícil que seja para ele entender que o universo é eterno, finito e sem
fronteiras.
Como se ressaltou aqui, o universo está em constante expansão e tenderá a
permanecer assim eternamente; mas o universo também é finito. Dada a sua curvatura, se
caminharmos na mesma direção, chegaremos ao mesmo ponto e nessa caminhada não haverá
fronteiras
62
. A leitura de AMMR, por força, inclusive, dos vários aportes que evoca, faz-nos
pensar no poema como o espaço encurvado de Einstein encurvado pela densidade material
dos significantes que obrigam os significados a orbitarem em torno deles, quase sempre
percorrendo órbitas elípticas, difíceis de apreender. Como o universo, o poema haroldiano
sugere que um big-bang deve ter dado início a ele, mas chega ao leitor a radiação eterna
dos ruídos de fundo, os clássicos e os paradigmas científicos que ele revisita.
A leitura do poema é eterna, pois, certamente, a cada incursão leitora expandem-se os
significados pelo brilho e descoberta de novos significantes por serem vários e estarem
dispersos no corpo do poema, amiúde, o brilho de um ofusca os menores. É o que acontece
quando surge no céu uma lua linda e prateada, como aquela das Cosmicômicas de Calvino
(1992): tão intenso e anunciador da noite que está por vir é o seu clarão, que os demais astros
ficam, às vezes, esquecidos, mas haverá sempre uma noite outra em que voltem a brilhar,
assim como uma leitura que suceda a outra e que encontre significantes obscurecidos na/pela
leitura anterior.
Como o universo, o poema está sujeito à constante expansão. O poema, por outro lado
é finito, abriga múltiplas interpretações, não todas; finito porque restrito ao branco da página,
62
“Como um espaço finito não tem fronteiras? Lembre-se de que um círculo (um espaço finito de uma
dimensão) não tem começo ou fim. Um círculo não tem fronteiras e, no entanto, é finito. Agora imagine a
superfície de uma esfera. Ela também é um espaço finito sem fronteiras. Se colocássemos formigas andando
sobre a esfera, elas jamais encontrariam uma fronteira. Uma geometria fechada é finita e sem fronteiras”
(GLEISER, 2006, p. 322)
finito porque, como se verá, em AMMR, o último verso impõe a volta ao primeiro, o que
mostra o movimento do texto, sua (in)finitude. O poema não tem fronteiras, tem sincronias.
No espaçotempo curvado pela materialidade da palavra poética, passado e futuro não
podem ser determinados com precisão, não como estipular a origem primeira dos textos
convocados, da ciência convocada, e em que medida o novo impõe-se ao velho ou vice-versa,
não como definir em que medida outro enredo sobranceiro é articulado; não como
precisar os desdobramentos futuros das reflexões feitas em AMMR; talvez, por isso, a
agoridade seja tão importante, porque para ela convergem todos os signos, sua historicidade,
sua perspectiva de perenidade, seu jogo lúcido (luciferino) contra o acaso.
63) antes que einstein irrompa – um diavolino
ator – o demonúnculo de maxwell –
que à carreira do dono do destino
64) – o ente-mor de laplace (este que ao bel-
- prazer põe e dispõe) dá um final
termodinâmico: à ordem não-revel
65) volantim entre a causa e o casual -
à entropia (maré sempremontante
da desordem) suspende um demo tal
66) metaestável e o acaso num rompante
sobresta até quando ébrio de vertigem
cessa de agir e cai rodopiante
O trecho acima continua a glosa do poeta pelo mundo da física, mas nesse fragmento, em
particular, a aproximação entre esta e a poesia é explícita. A alegorese a que o poeta se refere
na estrofe 62 diz respeito ao demônio de Maxwell; para entendê-lo é preciso falar um pouco
das leis da termodinâmica. Mais uma vez, os grandes feitos da física não surgem
ordenadamente, mas sincronicamente, como se orquestrados pela memória do eu-poético que
menciona fatos e depois, em travelings, volta aos antecedentes desses fatos.
Neste Canto II, as grandes descobertas vão se revelando pelo desenrolar de um grande
novelo de conhecimentos; o cerne é, sem dúvida, Einstein e suas descobertas, teorias,
revelações e negações; tudo parece girar em torno dessa “personagem” cuja profissão de
era sua própria atividade (assim como a profissão de de Haroldo de Campos é a poesia,
como ele mesmo declara, várias vezes e como se mencionou aqui). Tentemos recolher,
então, alguns cacos termodinâmicos para chegarmos ao diabrete de Maxwell.
A termodinâmica é a parte da física “que estuda as propriedades térmicas de sistemas
físicos a partir de suas propriedades macroscópicas, como temperatura e pressão” (GLEISER,
2006, p. 390). três princípios básicos da termodinâmica. O primeiro diz respeito à
conservação de energia. Em termos muito genéricos, de acordo com esse princípio, a energia
de um sistema fechado não pode ser criada e nem destruída, mas transformada, daí a idéia de
conservação (como o cânone, por exemplo); o segundo princípio, ou lei da termodinâmica
postula que a entropia, de um sistema fechado nunca decresce, sendo a entropia “a medida do
grau de desordem de um sistema físico” (ibid, p. 387). Por fim, pela terceira lei da
termodinâmica, sabe-se que o zero absoluto (zero Kelvin) é inatingível. (IVANOV [s.d.], p. 118-
123).
Na estrofe 63, o poeta afirma que antes de Einstein, Maxwell rompera com a ordem
determinística de Laplace, pela pressuposição de uma entidade subversora do segundo
princípio da termodinâmica. O diavolino ator de Maxwell colocaria fim à carreira do dono
do destino; este que a bel-prazer põe e dispõe com um sentido demoníaco mesmo, a
entidade de Maxwell feriria um forte princípio, o de que a entropia sempre aumenta. O
diavolino ator de Maxwell, para usarmos a expressão, tomada do italiano, por Haroldo de
Campos, é um tipo de porteiro situado à porta de dois compartimentos com moléculas de gás:
[...] Seja este gás contido em um recipiente rígido atravessado por uma
parede, contendo uma abertura fechada por uma pequena porta, operada por
um porteiro, ou um demônio antropomórfico ou um mecanismo de precisão.
Quando uma partícula de velocidade maior que a média se aproxima da
porta pelo compartimento A, ou uma partícula menor que a média se
aproxima da porta pelo compartimento B, o porteiro abre a porta, e a
partícula a transpõe; mas quando uma partícula de velocidade menor do que
a média se aproxima pelo compartimento A ou uma partícula de velocidade
maior do que a média se aproxima pelo compartimento B, a porta é fechada.
Neste sentido, a concentração de partículas de alta velocidade aumenta no
compartimento B e decresce no compartimento A. Isso produz um aparente
decréscimo da entropia (WIENER, 1970, apud CAMPOS, H. In CAMPOS,
A et all, 2002, p. 197
63
)
63
CAMPOS, H. Caos e ordem: acaso e constelação. In: CAMPOS et. al. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,
2002. 3ª edição.
Por isso, o poeta irá dizer que o demônio porá fim à desordem, à entropia, cujo epíteto
de maré sempre montante da desordem bem a dimensão do caráter caótico que ela
representa. O acaso também será extinto, cessará: num rompante sobresta. O que é
interessante é que a ação do demonúnculo vai, aos poucos, se carregando de entropia.
Para agir, ele precisa armazenar as informações sobre o sistema, a fim de efetuar a
separação entre as moléculas, “até cair numa vertigem, e ficar incapacitado de claras
percepções (ibid.id), ou ainda: “Para fechar o ciclo termodinâmico a criatura maligna deve
esvaziar o reservatório de lembranças, liberando a informação armazenada, e provocando
desse modo um acréscimo na entropia das vizinhanças, fato que vem a confirmar, afinal, o
segundo princípio” (CAMPOS, R., 2003, p. 52).
Esse colapso da criaturinha de Maxwell surge nos versos finais da estrofe 66: sobresta
até quando ébrio de vertigem/ cessa de agir e cai rodopiante. duas considerações
importantes a serem feitas: a primeira é que a “desordem” acaba por prevalecer, “o preço do
novo é o declínio da ordem” (GLEISER, 2006, p. 212), ou seja, a entropia mostra que os
processos são irreversíveis, quando a novidade da vanguarda, por exemplo, é introduzida no
“sistema literário”, a agitação das “moléculas da tradição” que ela provoca é irreversível.
Porém, que se pensar também, como aponta Wiener (1969, p. 29 e seguintes), que o
demônio, por uma fração de segundos, pode existir, nesse instante, imperará a ordem e o
acaso sucumbirá.
Algumas considerações devem ser feitas sobre a poesia e a arte de um modo geral, nesse
caso. As vanguardas, sem dúvida, atestam que o preço do novo é o declínio da ordem,
portanto, na substituição dos estilos ao longo da história literária, as vanguardas
corresponderiam ao momento em que o demônio de Maxwell tem uma vertigem abissal,
aumenta a entropia do sistema, que vai crescendo e crescendo e até se estabiliza, mas jamais
decresce. A arte, depois dos momentos de ruptura, gerados, diga-se de passagem, em seu
próprio bojo, jamais volta a ser o que era – as mudanças parecem ser definitivas.
Para usarmos uma noção baudelaireana, as vanguardas são o transitório que passa a ser o
eterno porque garantem a entropia dos sistemas artísticos; elas levam o demoniozinho de
Maxwell ao colapso, até que surja um outro diabrete ecolocando ordem, vá apagando com
as ferramentas da diacronia a desordem. Mas, como vimos, a ação desse diabrete depende de
sua memória e tal é a infinidade de recriação de precursores e a invenção das obras literárias e
artísticas, que a criatura sucumbe, levando com ela a diacronia; feliz da vida, impera sincronia
que, por seu próprio caráter síncrono, sugere, em certa medida, desordenação.
Quando se pensa que o usual é a entropia, entende-se porque alguns críticos falam na
tradição da ruptura e da desordem como uma necessidade constante de renovação. É
importante ressaltar que os sistemas caóticos
64
são desordenados apenas na aparência, como
ressalta Roland de Azeredo Campos, ao citar Max Bense:
“Todo caos é fonte real, repertório real de possíveis inovações, no sentido
de criações. Isto pertence essencialmente à explicação do caos”. (BENSE)
E, segundo Haroldo de Campos, tal desenrolar se coaduna com a
persecução de Mallarmé: abolir o acaso por meio de um poema, lance de
dados supostamente capaz de converter o indeterminado no determinado.
Convém confrontar esse tipo de apreciação com a ciência do caos, de
desenvolvimento mais recente, e que estuda a classe de fenômenos
aparentemente caóticos, mas portadores de uma ordem oculta. (CAMPOS,
R. 2005, p. 177).
O fragmento acima nos leva a uma segunda consideração a partir do demônio de
Maxwell. Do ponto de vista da história literária, a vanguarda é a própria entropia do sistema;
do ponto de vista de cada obra em sua singularidade, entretanto, a luta contra o acaso é o
aspecto fundamental. É como se a obra dependesse do curto espaço de tempo em que o
diabinho conseguisse organizar a desordem. Segundo Roland Campos, a obra estética busca a
diminuição da entropia, ou seja, busca harmonias e ordenações, ao fazer isso, entretanto,
introduz a improbabilidade, o inusitado, o inesperado, isso porque o que se espera de um
sistema é que a desordem sempre aumente ou se estabilize; ao promover a ordem, um lance de
dados transforma o indeterminado em determinado. A obra é exatamente um sistema caótico
portador de uma ordem oculta.
O poema é uma luta contra o acaso; mas nada é capaz de eliminá-lo, nem o poema,
nem o lance de dados, a não ser por um ínfimo temporal, preso no espaço constelar da página,
como queria Mallarmé. que se destacar que o poema, como o universo, vem de uma
explosão de entropia (PRIGOGINE, 1996, p.189). Tenha sido gerada pelas vanguardas, ou tão
somente pelo processo criativo que busca a ordem, a agitação das informações, dos
significantes e tudo mais que envolve a criação é entrópica, porém não aleatória, afinal, o
64
A teoria do caos explica o funcionamento de sistemas complexos e dinâmicos; por essas características são
ditos caóticos, po não apresentarem “ordem”aparente.
poeta, como Deus, não joga dados. O triste poema de Haroldo de Campos dedicado a Mario
Faustino, faz refletir sobre isso:
O HOMEM E SUA HORA
(IN MEMORIAM: MÁRIO FAUSTINO)
é o demônio de Maxwell
deus termodinâmico?
é o diabo na garrafa
lançada no oceano?
é a bruxa solta no vento
ganhando no olho mecânico?
é o acaso todo de branco
na curva do meridiano?
é o anjo com seu archote?
é o demo com seu fragote?
é o homem com sua sorte?
é morte com seu serrote?
é a morte – serra de lima
é a morte – e serra de cima
Claro está que a seqüência de interrogações é imposta pelo inconformismo diante da
morte do amigo, diante do acaso e da imposição do destino. Como aceitar o acaso?
67) – mas volto ao dâimon e à questão da origem:
einstein dizia: “deus não joga dados”
– do aleatório (desse acaso-esfinge
68) chance zufall hasard) tinha cuidado
o seguidor de maxwell poincaré
posto no oblívion por antecipado
69) à física do tempo: mallarmé
sabia (seu cotâneo) que ao azar
jamais abolirá um coup de dés
70) vendo a constelação desenhar-se
presa ao fio de um “talvez” no céu noturno –
mas einstein que soubera decifrar
71) o enigma do espaçotempo e o turno
encurvado da quarta dimensão
ante o indeterminismo – taciturno –
72) recua em busca de uma explicação
que enfim desdiga essa heresia dos quanta –
no princípio-incerteza vê a ilusão
A frase de Einstein é famosa e emblemática, mas é preciso entender que uma série de
pesquisas, inclusive dele, levaram o homem a imaginar-se em um mundo dominado pela
probabilidade. O matemático francês Poincaré
65
, posto no oblívion, no esquecimento, por estar
à frente da física de seu tempo, previra que não é possível ter certezas sobre a descrição de
fenômenos físicos, apenas quase-certezas. Poincaré estava atento ao acaso-esfinge, cuja
linguagem é difícil decifrar, talvez, por isso, surja, no poema, em várias línguas (chance,
zufall, hasard). Mallarmé parecia ter semelhante percepção um lance de dados... Diz
Haroldo de Campos sobre Mallarmé:
De fato, na épica mallarmeana, desubicada (sem lugar) e sem conteúdo
diegético propriamente dito, a ação se concentra na “conjunção suprema
com a probabilidade”, na circunstância de jogo de dados, em que o
Humanus (Lê Maitre) enfrenta o Acaso no tabuleiro do Universo. Se o
acaso jamais pode ser abolido, poderá quem sabe? - suspender-se
repentinamente, deixando que dele se resgate uma ordem, ainda que fugaz,
o desenho de uma constelação ( a obra, culminação do ato extremo do
Humanus?). [...] o pêndulo [...] não se inclina para o determinismo [...];
65
Apenas a título de curiosidade, Gleiser não menciona Poincaré em seu livro. Parece mesmo que ele está
destinado ao oblívio.
oscila, por um momento, no sentido da probabilidade, de uma suspensão
provisória que enseja a surpresa de uma ordem, simbolizada na figura
constelar do final do poema. Insinua-se no texto mallarmaico uma suspeita
de indeterminismo. Tem razão Hyppolitte: o demônio que assombra o poeta
francês não é o de Laplace, mas o de Maxwell. (CAMPOS, H. In
CAMPOS, A. et all, 2002, p. 199).
Entre o acaso e o determinismo está o poema, ou ainda, a nossa percepção do
universo, não espaço para totalizações, pois “o acaso puro é tanto uma negação da
realidade e de nossa exigência de compreender o mundo, quanto o determinismo o é”
(PRIGOGINE, 1996 p. 197), o mundo é, portanto, o mundo das probabilidades
66
, e como diz
Mallarmé em Um lance de dados (tradução dos irmão Campos e Decio Pignatari):
legado na desaparição
a alguém
ambíguo
o ulterior demônio imemorial
tendo
de regiões nenhumas
induzido
o velho versus essa conjunção suprema com a probabilidade
Para Poincaré, uma forma de ampliar a nossa compreensão acerca da (in)totalidade de
tudo que nos rodeia é a ciência, embora ela não nos traga as certezas de que precisamos,
porque nem bem fazemos uma descoberta, outras infinitas perguntas se colocam. São
belíssimas as palavras de Poincaré, seria uma perda não reproduzi-las aqui:
66
Estamos aqui considerando que a probabilidade fica entre o acaso e o determinismo, mediando a ocorrência de
ambos. Assim, em um lance de dados, não o acaso, pois certamente uma das faces cairá voltada para cima.
Mas, um lance de dados e suas probabilidades não eliminam o fato de estarmos, querendo ou não, sujeitos ao
acaso para o qual não podemos sequer determinar probabilidades de ocorrência (rajada de vento, queda do dado,
tremor nas mãos do jogador, etc.). É em busca desse acaso, visto aqui como o desconhecido, que Einstein
esperava que a ciência fosse como se pudesse haver uma explicação para aquilo que julgamos acaso; é, talvez,
deste acaso que fale Mallarmé em seu poema. Um acaso que um lance de dados e suas probabilidades não
poderão eliminar, jamais.
Mas se temos medo da ciência, é sobretudo porque esta não pode nos dar a
felicidade. É evidente que não, isso ela não pode nos dar, e podemos nos
perguntar se o animal sofre menos que o homem. Mas podemos nós
deplorar a perda daquele paraíso terrestre onde o homem, semelhante ao
animal irracional, era realmente imortal porque não sabia que devíamos
morrer? Quando se provou a maçã, nenhum sofrimento pôde fazer esquecer
seu sabor, retornamos sempre a ele. Poderíamos agir de outro modo? É o
mesmo que perguntar se aquele que enxergou pode tornar-se cego e não
sentir saudade da luz. Assim, o homem pode não obter a felicidade através
da ciência, mas hoje pode bem menos ser feliz sem ela. (POINCARÉ, 1986,
p. 7).
Tanto quanto a religião, a ciência surge como redentora, mas, ao contrário daquela,
esta não promete a felicidade, talvez prometa algumas “verdades” sempre sujeitas a
reformulações e algumas respostas frágeis e desencadeadoras de novos questionamentos. A
ciência dá-nos apenas probabilidades, como nos probabilidades a leitura do poema; que
este pode abrigar várias, cada uma delas é tão somente um possibilidade. Diante da afirmação
de Poincaré, parece evidente o surgimento da ciência em AMMR. O ruído de fundo, outrora
comentado, nada mais é, então, do que o ruído do “silêncio saneando os sons” da incerteza
(CAMPOS, R., 2003, p. 86).
Também parece evidente aqui a presença de Mallarmé. Como se fosse um dos focos da
elipse e estivesse apagado, o poeta surge claroamostrando que a poesia haroldiana é grande
devedora da sua. Da mesma forma que ocorreu no Canto I, é preciso então refazer a leitura e
pensar que, desde o início, desde o big-bang, a dicção mallarmeana estava presente, pois,
Mallarmé, para Haroldo de Campos, significa o ápice da ruptura, explosão e, ao mesmo
tempo, como ele mesmo diz, épico. A luta contra o acaso, centrada na ciência, nada mais fazia
do que ocultar o poeta francês. Ao contrário do que se poderia pensar, então, neste segundo
Canto de AMMR, o eu-poético não caminha longe de seus lastros literários; Mallarmé é seu
guia, tanto quanto o é de Haroldo de Campos, em toda sua obra. Como diz Siscar:
Eu diria que Mallarmé, essa figura complexa, desempenha para Haroldo, a
função do barqueiro: é com ele que Haroldo inicia a passagem da margem
angustiada do enigma na direção de sua exploração jubilosa. Mallarmé é o
barqueiro, não apenas um ponto de chegada ou de partida [...]. Se o lance de
dados, em Mallarmé, não chega a abolir o acaso que o tortura, é por ser
inequivocamente problema que ele é também, por assim dizer, a passagem
para uma “solução”: a solução segundo a qual não existe solução (SISCAR,
2006, p. 170)
Conforme se aproxima do fim do Canto II, vai se tornado forte, para o eu-poético, a
questão acima apontada por Siscar os enigmas que esfingem o eu-poético não m solução;
por essa propriedade, haverá sempre o trilhar “acaso dependente” do poeta. Soluções não há,
mas buscá-las é instigante para o eu-poético inquiridor. Por isso, ele deixa que a face
mallarmeana se apague novamente e volta-se, mais uma vez, para as incertezas que a física
tenta explicar.
A incerteza está profundamente relacionada ao estudo da mecânica quântica. Os
experimentos e as pesquisas científicas desenvolvidos permitiram a descoberta do “caráter
quântico do mundo microfísico”; a principal conseqüência dessa descoberta foi, em primeiro
lugar, a averiguação da existência de um mundo muito, muito pequeno. Em segundo lugar,
mostra que o comportamento desse minúsculo universo não pode ser previsto com exatidão
confirma-se a hipótese de quase certeza de Poincaré e a (im)possibilidade de controle do
acaso de Maxwell. Como explica Luiz Alberto Oliveira:
Na perspectiva quântica, portanto, os objetos elementares sob consideração
quer sejam moléculas, átomos núcleos ou outros componentes não
possuirão propriedades definidas senão a posteriori depois do procedimento
experimental, depois do procedimento experimental; se poderá prever a
probabilidade de que uma dada configuração, dentre uma variedade de
potencialidades ou estados virtuais [...] A “realidade”quântica não exibe
objetos com atributos continuamente estáveis e definidos [...] Extingue-se,
no domínio quântico a mais bem testada teoria física elaborada - , a
utilidade de certas metáforas tradicionais; a contradição entre ser e não-ser
não mais poderá ser representada pela oposição cheio e vazio...
(OLIVEIRA, L.A., In: NOVAES, 1996, p. 510,511).
Para Einstein, a explicação da Natureza em termos probabilísticos colocava em risco,
de certa maneira, a própria evolução das pesquisas científicas. Se tudo pode ser explicado pela
incerteza, para que buscar verdades? A “religiosidade” de Einstein em relação à ciência fazia-
o crer que a teoria quântica estava inserida em uma teoria maior, sobre a qual pairava a
dúvida. A teoria quântica, segundo a visão de Einstein, implicaria a perda da reverência do ser
humano diante do mistério, diante das coisas que não podem ser penetradas e que, por isso
mesmo, impulsionam-nos à busca. Einstein provavelmente buscava a totalidade a incerteza
da mecânica quântica não servia ao seu espírito “religioso” de cientista (GLEISER, 2006, p.
297 – 299). Diz ele em carta dirigida a Born, um dos estudiosos da mecânica quântica:
A mecânica quântica demanda séria atenção. No entanto, uma voz interna
me diz que esse não é o verdadeiro Jacó. A teoria é sem dúvida muito bem
sucedida, mas ela não nos aproxima dos segredos do Velho Sábio. De
qualquer forma, estou convencido de que Ele não joga dados. (EINSTEIN,
1926, apud GLEISER, op. cit., p. 297).
Assim é que uma das maiores mentes do século XX, aquela responsável por coisas
incríveis como uma geometria quadridimensional e pelo encurvamento do espaçotempo,
taciturna, (ou saturnina?) recua diante da incerteza. Essa é mais uma história que o poeta narra
em AMMR. Como Odisseu, ele aporta em várias localidades e em cada uma aprende um
pouco sobre si mesmo, que a viagem organiza-se como um jogo em que a procura do
próprio poeta pelo eu-poético, ou ainda, é a construção da máquina do poema. Depois de ver
seu rosto, o de Dante e Camões na máquina do mundo, depois de encontrar-se com todos os
grandes autores do cânone no Canto I, o eu-poético transforma seu tabuleiro de xadrez em
mesa de jogos, lança os dados e fica a buscá-los pelo fio de um “talvez” no céu noturno. Entre
uma e outra jogada, o poema de Mallarmé é evocado:
EXCETO
à altitude
TALVEZ
tão longe que um local
se funde com o além
De fato, torna-se praticamente impossível não pensar em Um Lance de Dados diante
das considerações feitas pelo eu-poético de AMMR em seu percurso pela história da ciência. É
o próprio Haroldo de Campos quem pensará o poema de Mallarem termos de épica, como
se ressaltou; como uma viagem-naufrágio comandada pela probabilidade. Essa
aproximação também obriga o leitor do poema haroldiano a entender as estrofes do Canto II,
notadamente o trecho entre as estrofes 67 e 72, como uma reflexão sobre a consciência da
poesia moderna acerca do micro e do macrocosmo do universo da linguagem poética.
Como acontece com a física, o entendimento do macrocosmo é bem mais simples do
que o entendimento do microcosmo, embora isso possa soar quase como um paradoxo, que
o micro compõe o macro. Da mesma maneira que o céu noturno é muito mais do que
podemos supor em termos de quanta, o poema não é apenas o céu noturno desenhado na
página branca, mas é, fundamentalmente, cada estrela e cada constelação que o compõem,
suspensas por infindáveis “talvez”. O entendimento dessas estelares significações revela o
tamanho das lentes de aumento que usamos para contemplar o poema, reunião de galáxias
sempremoventes. Como um lance de dados, podem-se controlar apenas parcialmente as
probabilidades de leitura certamente, muitas faces do dado ficam obscuras e voltadas para
baixo. Se quisermos, muitas faces do dado existem como os focos da elipse barroca, porém
não são vistas ou entendidas pelo leitor.
Roman Jakobson fala-nos logo na primeira lição de Seis Lições Sobre o Som e o
Sentido (1977, p. 20), que um estudo das relações entre o som e o sentido no interior da
palavra, e da língua em geral, deveria ser feito pelo isolamento do “mais pequeno, o último
elemento fônico carregado de valor significativo, ou em termos metafóricos trata-se de
encontrar os quanta da língua”( ibid, id.). Ora, restringindo a discussão ao texto poético e
levando em consideração a própria definição de quanta, encontrar tais elementos fônicos e
estipular a multiplicidade de sentidos que a ele podem, eventualmente, estar relacionados, é
uma virtualidade, uma possibilidade, um lance de dados no qual o leitor crítico provavelmente
apostará toda sua história de leitor de poesia, mas cuja probabilidade de obter a compreensão
máxima, o número “6”, é de apenas “1/6”.
Retomando-se a leitura de AMMR feita até agora, pode-se, então, argumentar, que os
diferentes significados atribuídos a uma mesma matéria significante acontecem porque
uma distribuição probabilística desses significados, por isso eles escapam ao leitor em sua
totalidade e por isso sua determinação é uma quase-certeza. Assim sendo, a sibilação pode ser
(como de fato tem sido) interpretada de inúmeras maneiras. Mas eis que essas inúmeras
maneiras não são todas as maneiras. Pode haver a ilusão de que o poeta não controle o poema,
mas ele o faz, porque não joga dados.
O poeta é capaz de abolir o acaso do poema, a não ser por um “talvez” constelar em
que apareça um demônio da poesia, um pequenino diabos, capaz de distribuir átomos,
partículas e moléculas sonoras e sintáticas, controlando seu aparecimento no corpo do poema
de modo que esses escapem ao poeta como se a consciência da linguagem poética do poeta
viesse antes dele mesmo. O pequeno Mefisto seria o responsável pela explosão entrópica
inicial do poema, posteriormente controlada pelo poeta em seu labor estético que, como
vimos, é neguentrópico
67
, ou seja, tem entropia negativa e, por isso, ordena e torna inusitado o
texto, simultaneamente.
Pronta a obra, o poeta não resiste ao dilema fáustico que a poesia, máquina de pensar o
mundo lhe impõe, e faz um novo pacto, um novo big bang e um novo poema nasce.
Porém, o que é a novidade senão a ancestralidade? Essa explosão inicial, de onde virá?
Em AMMR, diante da incerteza, o eu-poético caminha para encontrar... encontrar-se?
Enquanto caminha, não consegue se livrar (e não o quer) do ruído de fundo da tradição
literária, da religião e da ciência esse ruído talvez seja o acaso não abolido que se impõe ao
texto, porque para o poema convergem, sincronicamente, a poeticidade construída ao longo da
história e, ao mesmo tempo, a historicidade lida pela poesia; ambas podem escapar, enquanto
totalidades, ao próprio fazer poético. Em outras palavras, é como se pudesse haver alguma
coisa no poema que fugisse ao controle do próprio autor à medida que procede dele para as
leituras possíveis de seu texto:
Os instrumentos agenciados por Haroldo de Campos desterritorializam o
texto. Este, reduzido a significantes [aos quanta], está exposto ao leque das
significações. A atenção se desloca do sentido para os sentidos, da unidade
para a disseminação, do autor para as leituras
68
. (SCHÜLER, 1997, p. 8)
Admitindo-se que o poema de Haroldo de Campos aqui analisado equivale à máquina
do mundo, pois, por meio dele, através dele, passado presente e futuro são revelados, bem
como a história do homem e sua relação com a ciência e com a religião: ao ler o poema, o
leitor vê-se diante de tal máquina. Ao contemplá-la, algumas coisas serão apreendidas e outras
não; dentre as que serão apreendidas, é provável que algumas tenham sido “vistas” pelo poeta
de AMMR e outras não, que a totalidade não existe - um demônio da poesia que
consegue agir por um átimo. É como se o poeta construísse um labirinto, soubesse guiar-se
dentro dele, mas alguns pontos continuassem obscuros, cegos, impenetráveis, devido à
exacerbação de significantes e disseminação de significados; mais uma vez, um duplo foco,
como o da elipse barroca.
67
Cf. o termo em CAMPOS, R. Arteciência. São Paulo: Perspectiva, 2003.
68
Comentário feito a propósito da tradução do Eclesiastes feita por Haroldo de Campos. Como se pode notar, os
procedimentos haroldianos persistem ao longo de toda sua obra e não se restringem a um único texto, daí
podermos afirmar que em AMMR o poeta parece sintetizar um conjunto de práticas que sempre nortearam seu
trabalho de poeta, tradutor e crítico.
A leitura, da mesma forma, torna-se um labirinto; ao seguir rastros, o leitor não
chegará ao vazio absoluto, não chegará ao zero, à origem, mas ao zênite - não ao ômega, mas
ao âmago. No labirinto poético de AMMR, parecem valer os comentários de Schüler (op. cit,
p. 11) para outras obras de Haroldo de Campos: um poema de haroldiano deve ser visto e
ouvido.
Como poderíamos interpretar transparências e objetos? Interpretam-se
discursos que escondem outros discursos. Intérpretes chamam ausências,
falam como iniciados. Atravessam o visível em busca do que não se vê. [...]
As constelações haroldianas não perguntam nem respondem. Aguardam
como os traços de um quadro. Ensaiamos visitas [...] Assinalamos em
itálico os lugares visitados. As visitas nos levam a outros endereços [...].
(SCHÜLER, 1997, p.11).
Esse caminho parece conduzir à origem, ao início, ao nada, ao estado inicial,
entretanto, o lance de nadas (ibid, p.8) do poema haroldiano não é a nulificação, mas um
labiríntico sertão que se entrevera no leitor, um nonada enredado - distante e próximo do fio
de Ariadne ao mesmo tempo. Essa perspectiva de leitura de AMMR encontra reflexo na
própria mecânica quântica que o poeta presentifica no Canto II do seu poema.
O vazio quântico, com efeito, se identificará menos com uma nulificação
por carência de acontecimentos, por privação de ser, do que com uma
matriz labiríntica em que subsistem todos os possíveis mundos
virtualidades singulares pré-individuais que um lance de dados converterá
em atualidades necessárias (OLIVEIRA, L.A., In: NOVAES, 1996, p. 510,
511).
Os labirintos quânticos remetem aos labirintos poéticos barrocos de AMMR; os
primeiros não deixam de assumir as configurações destes. Obrigam a multiplicidade de
interpretações: no caso do poema, devido ao percurso difícil da leitura que chega mesmo
sugerir um percurso iniciático; no caso da mecânica quântica, devido a um percurso árduo,
marcado pelos cálculos e soluções algébricas. Ambos têm característica enigmática e
desafiadora (HATHERLY, 1995, p.106). Em outras palavras, tanto a compreensão da
mecânica quântica, quanto dos labirintos poéticos implica um leitor não ingênuo um leitor
iniciado, ou disposto a enfrentar o texto que o esfinge.
Por tudo isso, o poema de Haroldo de Campos faz repensar o mundo à medida que
obriga o leitor a articular as distintas formas de conhecimento que o pensamento do poeta
organizou em seus versos, cujo movimento imita as vagas do mar vagas as interpretações
que podem surgir da densidade do texto-oceano, livro de viagem. O poema não é pretexto
para repensar o mundo, é o texto pelo qual o mundo pode ser repensado, e, por conseguinte,
nós mesmos podemos repensarmo-nos nesse mundo-poema máquina que se abre em
labirintos. Apreendê-lo não é tarefa fácil:
Os labirintos poéticos são, portanto, composições que implicam um
programa, que é estabelecido de acordo com um cânone, um conjunto de
regras fixas que devem ser conhecidas tanto do autor como do leitor, afim
de que este possa decifrar, além da mensagem fornecida pelas palavras do
texto, a mensagem implícita na correlação existente entre texto e estrutura,
onde a profunda mensagem simbólica reside.
Em suma, para se atingir a plena fruição das possibilidades totais deste tipo
de composição, tem de haver um perfeito acordo entre a escrita codificante
e uma leitura descodificadora. (HATHERLY, op. cit., p.107).
Seguramente, pode-se dizer que não se atinge a fruição absoluta do poema, por
restrições impostas pelo desconhecimento de muitas das relações dialógicas estabelecidas por
Haroldo em seu texto, mas também porque, modificando parcialmente a colocação de
Hatherly, um texto como AMMR não permite o perfeito acordo entre a escrita e a leitura e sim
acordos possíveis; se existissem os acordos perfeitos, acabar-se iam os labirintos poéticos:
perder-se neles faz parte do jogo de xadrez a que o poeta nos convida, a que o discurso do eu-
poético dá acesso; são as possibilidades de movimentação das peças de xadrez oferecidas pelo
lance de dados do poema que constituem a sua beleza. Admitir a possível derrota é aceitar que
um talvez suspenso no céu noturno do poema constele sobre nossas leituras-viagens. É
preciso, pois, voltar ao poema e à sua matéria significante, adensada nas estrofes finais deste
segundo canto.
73) do livre arbítrio do homem e levanta
a hipótese da lua: se dotada
de autoconsciência fosse a trívia Diana
74) lunescendo a cumprir na eterna estrada
seu circum-térreo curso estaria crente
de se mover por força própria guiada
75) como aos olhos de um plus-que-perfeito ente
ficaria risível a ilusória
hýbris sub-lunar: o homem ser agente
76) de suas obras ou ações! – ou: pseudo-história
de adão-cigano-cósmico que a força
omni-potente (a vis peremptória)
77) de um deus corregedor que tudo possa
submete a um matemático talante -
como o de newton que laplace endossa
As estrofes 73 e 74 apresentam uma hipótese de lua dotada de autoconsciência; não se
trata da lua dos cientistas, mas da lua dos poetas aquela que se move por força própria,
girando suavemente ao som da doce sibilação: autoconsciência, fosse, lunescendo, seu, curso,
estaria, se, força, deixando entrever em seu giro as crateras e irregularidades que se
contrapõem ao movimento de lunescer: trívia, cumprir, crente, própria e, mediando essas
duas aliterações, um possível rastro, um quanta que permite ao leitor estimar seu circum-
térreo curso. A repetição de alguns sons também contribui para a construção do movimento
circular da lua: cumprir, circum, curso; lunescendo. Também a relação anagramática entre
ETeRnA, ESTRAdA e ESTaRiA e FOsse e FOrça revela o girar elíptico da lua.
O eu-poético ressalta a lua vista pelos olhos da poesia. As alusões intertextuais são
inúmeras, inclusive no que concerne à própria obra haroldiana. Pode-se destacar alguns
poemas cujos versos parecem ter sido retomados por Haroldo de Campos em AMMR, como
lua lunescente de Litai Poema: Transa Chim, ou ainda, a trivial diana, de vidapoesia: figura
de palavras. Cabe notar que, em AMMR a lua, Diana, surge trívia trívia é uma espécie de
equinodermo, estrela do mar. Essa informação é interessante, pois a fanopéia obrigaria o leitor
a imaginar a lua, refletida no mar como uma estrela, ou ainda, caracterizaria o adjetivo
“científico” para lua; por outro lado, trívia pode ser, levando em conta o poema vidapoesia,
trivial, a Diana comum, a lua dos poemas e dos poetas. Por fim, Trívia, em latim, é a própria
Diana, adorada nas encruzilhadas.
Como se vê, a indeterminação é o que prevalece. Trata-se de seguir a sugestão de
Jakobson, buscar os quanta das palavras; pensar também que trívia sugere um fechamento: a
lua lunescendo na encruzilhada entre a poesia e a ciência, porém (ou ainda bem) que um lance
de crítica jamais abolirá o acaso trivial do poema. assim o nada assume o papel de vazio
quântico e é reforçado o caráter labiríntico do texto, a significação eterna do universo poético,
já mencionada.
Menos poética e não menos apropriada é a leitura da estrofe a partir dos pressupostos
da ciência, ou do ponto de vista einsteiniano, como vimos, ou mesmo do ponto de vista
newtoniano. Para Newton, a órbita da lua era semelhante a de um projétil lançado de uma alta
montanha. Se não houvesse gravidade ou resistência do ar, o movimento do projétil teria
velocidade constante e seria uma linha reta, dado o princípio de inércia. Mas, como
gravidade e força centrípeta, que age na direção do centro do movimento, o projétil tende para
o centro e “cai”. Se sua velocidade for pequena, cairá ao sopé da montanha; se for alta, entrará
em órbita e continuará caindo eternamente; à medida que cai, dada a curvatura da Terra,
nunca vai bater no chão. A Lua seria, então, como esse projétil e seu movimento comandado
pela força da gravidade: criação divina (GLEISER, 2006, p.178). Nesse espectro, não seria
possível admitir a hybris de um homem senhor de suas ações. A Deus, soberana mente, é que
caberia o controle do mundo ele poderia dotar o homem de sabedoria para desvendar os
mistérios da Natureza.
Newton seria o homem criado por Deus, à sua imagem e semelhança, um adão-
cósmico, cigano por conseguir “prever” os movimentos dos corpos celestes; sua inteligência
matemática, dom concedido pelo Deus, corregedor e poderoso, atuaria como instrumento de
revelação do divino. “Para Newton, a razão era a única ponte possível até o divino”
(GLEISER, 2006, p. 185).
O grande impasse apontado pelo eu-poético é que justamente Einstein, que teria
apregoado a importância da ciência como a “religiosidade” possível e a necessidade de
revisão da mecânica clássica, parece recuar diante dos quanta e da aparente negação da
existência de uma força ordenadora. Uma vez que para a mecânica quântica, os fenômenos,
grosso modo, seriam explicados por ocorrências probabilísticas e virtualidades, qual seria o
lugar da verdade? De fato, a teoria dos quanta, ao incorporar a incerteza, questiona a própria
existência da verdade absoluta, de realidade objetiva. Como aponta Luiz Alberto Oliveira:
A “realidade” quântica não exibe objetos com atributos continuamente
estáveis e definidos [...]; as formas tornam-se precárias, as essências
imprecisas assim, convém aposentar o conceito, venerandamente
aristotélico, de substância como substrato básico de que são compostas as
coisas do mundo.
O que chamamos de “mundo objetivo” seria então expressão macroscópica
de uma trama de relações microscópicas quânticas que não padecem, elas
mesmas, de “objetividade”. Uma vez que as leis quânticas incidem sobre as
possibilidades de uma dada configuração vir a ser efetivada, verifica-se
como que um espessamento do presente, pois a passagem da potência ao ato
não será imediata nem autônoma com respeito ao observador. (OLIVEIRA,
L.A., In: NOVAES, 1996, p. 511).
Ora, o espessamento do presente é a própria agoridade haroldiana, como tempo
fundamental da experiência, nos termos apontados no início deste trabalho. Configura-se uma
dialética do agora, pois a partir dele se constroem as possibilidades de leitura do mundo. Não
deixa de fazer sentido, portanto, a preocupação sincrônica de atualização da história defendida
por Haroldo de Campos. A obra em si não faz sentido, a observação da mesma é esparsa,
subjetiva, relativa, mas, quando presentificada em obras de outros poetas, torna-se agora; a
diferença não mensurável entre o que é a tradição de fato e o make it new a que a sujeitam é
sempre uma virtualidade que um lance de dados converte em atualidade necessária. Colocada
dessa forma, não importa a tradição em si, outrossim, o uso dela feito no presente suas
possibilidades de conversão em paideuma e a criação poética original que surge a partir dela.
Haroldo de Campos aproxima a poética de Mallarmé das descobertas da física do final
do século XIX; em AMMR, na trilha do grande mestre francês, ele mesmo permeia sua
poética do mundo e das visões de mundo que o cercam não como determinantes de sua
poesia, mas como componentes semânticos, colocados em tensão com outros, rasurando o
sentido primeiro da mensagem poética que está sendo veiculada. A interpretação última do
poema tende ao vazio quântico, que como se disse, não é a nulificação absoluta, porém uma
construção labiríntica e especular em que se refratam e refletem múltiplas tendências, as
quais, por atuarem em uníssono, contribuem para a construção alegórica do poema.
Nesse sentido, a matriz alegórica pode ser percebida como fragmentária: “Extingue-se
a falsa aparência da totalidade, porque se apaga o eidos, dissolve-se omile, seca o cosmos
interior” (BENJAMIN, 2004, p. 191). Ainda segundo Benjamin, a alegoria traz uma perturbação
da ordem e da paz, atua como intrusa e, mesmo assim, os artistas a ela não resistem. A
intromissão dos quanta, do mundo muito pequeno, também parece, nesse sentido, se é que se
pode explicar a ciência pelas lentes da arte, assumir um caráter alegórico, pela perturbação da
ordem que impõe, pelo apagamento do eidos que ocasiona e pela necessária fragmentação
microcósmica que lhe é peculiar. É, por conseguinte, sob todas as perspectivas, o jogo de luz e
sombra barroco e o homem cindido entre a ciência e a que se corporalizam na palavra-
escritura do eu-poético de AMMR.
Apesar de todos os avanços, duas questões continuam sem resposta; o eu-poético não
as consegue resolver: a origem da matéria que compõe o universo e a origem do universo em
si. Conforme assinala Marcelo Gleiser (2006, p.. 248), tudo pode ser explicado segundo as leis
físicas e matemáticas, mas de onde vieram essas leis? Se surgiram junto com o universo, de
onde surgiu o universo? A regressão é infinita.
Talvez Einstein estivesse preocupado com isso, com certa dose de conformismos que a
união da relatividade geral e da mecânica quântica pudessem trazer, a partir do momento que
fossem julgadas respostas satisfatórias, porque se apóiam na própria admissão de que nada é
certo, ou melhor, na incerteza.
78) e aperfeiçoa: eis o dilema agora
de einstein – gênio pioneiro contribuiu
à teoria dos quanta mas a hora
79) advertindo quando ela se insurgiu
contra o sumo fautor – pois a espinoza
o último einstein se inclina - divergiu
A mente ruptora que introduziu a teoria da relatividade, o gênio pioneiro que
contribuiu com a teoria dos quanta, retrocede. O eu-poético de AMMR coloca-lhe a face
voltada para Espinoza e sua visão de mundo, pautada pelo racionalismo, ou pela aceitação de
uma causalidade (determinismo) operando na natureza. Para Einstein, havia um senso de
causalidade na Natureza e essa crença ia contra tudo o que a mecânica quântica propunha.
Não se trata de associar, em seu caso, a causalidade a Deus, como fazem Espinoza, Newton,
Laplace, embora o próprio Einstein tenha dito “Ele não joga dados”, porém, é ele que adverte
os físicos do “perigo”, quando a teoria dos quanta se insurge contra o sumo fautor.
A visão de Einstein sobre a humanidade é pessimista, conforme aponta Prigogine
(1996, p. 195), e só a física, triunfo humano sobre a violência do mundo seria capaz de vencer
o as barbáries que se desenhavam à sua frente. Não por acaso, Einstein surge como a figura
saturnina voltada tanto para a luz da sabedoria quanto para a sombra da dúvida, marcada pela
acídia. Prigogine o aproxima de Descartes; a leitura de AMMR permite aproxima-lo de
Drummond, sublinhando que o primeiro e o segundo cantos do poema são concluídos em
atmosfera melancólica. Certamente, o Einstein apresentado em AMMR é mais um homem
barroco buscando a conciliação possível para o caminho do homem, pelas órbitas elípticas
que a própria realidade obriga a percorrer.
De qualquer forma, seu desejo de buscar respostas, chamado por ele mesmo de
“sentimento cósmico religioso”, malgrado sua posição diante das descobertas quânticas de
Planck e Bohr, acabou por desencadear hipóteses diante das quais ele mesmo recuou. Depois
de Einstein, não havia mais como negar que o universo era imenso e dinâmico. Depois da
teoria dos quanta, o homem deve admitir que coisas que estão em desacordo com a
intuição; infelizmente não interpretante final. Roland de Azeredo (2003, p. 66) diz que “o
homem é um só, é um signo, afinal” suas verdades são camuflagens, por trás de um signo,
outros signos, indefinidamente, sem que a verdade seja apreendida, de fato.
CAPÍTULO 3: O NEXO O NEXO ONEXO O NEXO O NEX
II. 3.1 Sobre o Canto III
No Canto III, o poeta encerra relato iniciado nos Cantos I e II e passa a meditar sobre
as visões de mundo com as quais se defrontou. Apesar de ser mais extensa que os cantos
anteriores, pode-se dizer que a terceira parte de AMMR resume-se nas indagações do poeta
diante do mundo observado e de seus mistérios. Se o Canto I correspondia ao Inferno e o
Canto II ao Purgatório, o Canto III não necessariamente corresponderá ao Paraíso.
O eu-poético chega, aparentemente, ao final de sua caminhada. Ergue-se a um
mirante imaginário para observar a gesta do universo que se abrirá, deslumbrante, diante dos
seus olhos. Desse ponto em diante, sua voz ganha mais autonomia; suas indagações, feitas a
partir da experiência vivenciada ao longo dos dois cantos anteriores, buscam respostas para as
suas próprias dúvidas, pois os grandes poetas e pensadores dos Cantos I e II têm, eles
próprios, as suas respostas para o enigma da Criação. O enigma do eu-poético de AMMR é o
processo criativo, nexo e nex, simultaneamente, que ele espelha e funde à alegoria da máquina
do mundo e ao big-bang.
Acentua-se, no Canto III, o caráter metalingüístico do poema; as indagações feitas
levam-nos a repensar a poesia como força motriz do poema-máquina: o poeta busca a
compreensão da origem do universo talvez porque, a partir dela, compreenda, enfim, a origem
da palavra poética, explosão primeva do cosmos poético. Como no Canto III esclarece-se que
a gesta do universo, cuja compreensão o poeta busca, é a gesta da poesia, a palavra bíblica
surgirá com grande forçao poeta quer entender por que no princípio era o verbo, para tanto,
invoca os midrashistas, intérpretes criativos das palavras sagradas.
Analogamente ao que ocorre no universo, as galáxias, constelações e corpos celestes
revelados no poema não têm como pressuposição uma estrutura determinada ex ant, porém
surgem da tensão dos signos (significantes e significados a que se remetem) que o engendram
e que não manifestam ascendência uns sobres os outros, significam juntos. Pensado em
termos da teoria das catástrofes de Thom
69
, esse big-bang não pressupõe a existência de uma
estrutura, mas nasce do conflito:
No domínio da linguagem, a palavra constitui um mecanismo elementar
[...]. Assim, o significado de uma forma-palavra se manifesta, para Thom,
nas catástrofes que a produzem ou aniquilam. Em suma: a significação de
um vocábulo se verifica no seu uso, que não dispensa toda uma constelação
vocabular sincrônica [...] uma partícula é completamente definida pelas
interações nas quais toma parte [...]. Em vez de se imaginar a constituição
da matéria [do poema, da palavra, composta pelos quanta da língua como
queria Jakobson] como uma sucessão hierárquica de caixas chinesas, em
que nunca se chega ao tijolo fundamental, supõe-se a existência de um
conjunto mínimo de partículas, no qual todas se legitimam nas relações
mútuas, nenhuma delas reivindicando ascendência sobre as demais. Isto
parece exprimir a capacidade de emergir [...] de uma base simples
(CAMPOS, R. 2003, p. 89).
A palavra, pois, não significa se não estiver em interação com outras palavras; isto é,
inclusive, um pressuposto para a definição de texto. No poema, essa dependência existente
entre as palavras torna-se ampla, pois se estende aos outros elementos do plano de expressão,
e tensiva, posto que ao mesmo tempo que significam em relação umas com as outras, têm
valor autônomo o suficiente para impedir que sejam excluídas do sistema, como estrelas que
compõem uma constelação que existe em função do conjunto. Na morte de uma das
69
“[...] a teoria das catástrofes elegeu as [transições] radicais: as que se dão súbitas, por saltos [...] e descrevem
os efeitos descontínuos provenientes das variações externas suaves [...]. [as quais] embora seguindo caminhos
suaves, podem adquirir, nos mapeamentos, desvios bruscos, configurando bicos ou arestas” (CAMPOS, R.,
2003, p. 87). No caso da poesia, os desvios bruscos que configuram bicos ou arestas são o inusitado, causado
pela redução da entropia, conforme destacado ao longo da leitura dos Cantos I e II.
estrelas, a constelação não será a mesma. Na exclusão de qualquer elemento do plano
significante, o poema não será o mesmo. Com uma sucessão de interrogações, o eu-poético
procura, então, encontrar entre as palavras e seu universo, um nexo; entre o Universo e o
homem, o nex.
II. 3.2 As lentes de um grande telescópio
80) com esse paradoxo encerro a glosa
que entreteci à borda do caminho
da física evoluindo: deixo a prosa
81) ou relação desse meu descaminho
para tentar erguer-me até o mirante
de onde a gesta do cosmos descortino:
82) no imaginar me finjo e na gigante
lente de um telescópio o olho colando
abismo – apto a observar o cosmorante
83) berçário do universo se gestando:
recorre aqui o big-bang – o começo(?)
de tudo – borborigma esse ur-canto
84) ou pranto primordial: primeiro nexo
radiocaptado por humano ouvido
da explosão parturiente – seu reflexo
85) espelhado em rumor prévio estampido
fôra o que? Por ventura um tempo-zero
de cósmea densidade ensandecido
Com a postura paradoxal de Einstein, o poeta encerra a glosa alinhavada em seu texto,
bordado de Penélope. Depois de longa jornada, Ulisses está quase de volta a casa o fim do
poema é o limiar da existência desse poeta, construído da linguagem no límen–hímen do
milênio. A glosa encerra-se e dela é preciso manter um dado importante: o mundo é só o que o
observador observa, nada mais e nada menos do que o percebido. A teoria dos quanta mostra-
nos que o observador tem um papel extremamente ativo na descrição dos fenômenos naturais,
de modo que a realidade objetiva deixa de existir no mundo muito pequeno, pois, neste, o
observado é resultado da escolha do observador (GLEISER, 2006, p. 288). É diante desse
paradoxo que Einstein perturbou-se: a realidade é dependente das escolhas do observador.
O percebido, amiúde, extrapola o que a linguagem expressa, porque esta é linear,
enquanto aquele é multidimensional. Não podemos falar dos átomos em linguagem ordinária,
dizem os físicos, no entanto, que linguagem usar senão àquela a que temos acesso? Haverá,
nesse sentido, uma defasagem entre o que a linguagem expressa pela língua e o que existe de
fato. Também à poesia parece escapar a representação absoluta entre as coisas e sua
designação, a despeito de toda singularidade do signo palpável discutida, porque não
ubiqüidade na língua. A diferença entre o que é expresso pelo signo poético e os outros signos
é que, no caso dos primeiros, por sua materialidade e multiplicidade, por seu dinamismo
parecem guardar a memória da supra-realidade, de algo que escapa à leitura, pelo
deslizamento dos significantes, como se houvesse a percepção do que escapa, embora não
definida e, portanto, não passível de verbalização. O poema, mais do que qualquer outro
objeto de linguagem, é o reino do muito pequeno em que o observador-leitor desempenha
papel fundamental no que é observado-lido. A leitura é resultado da escolha, já que o processo
de geração de sentido do poema pode ser percorrido a partir de distintos referenciais,
estabelecidos pelos diferentes leitores-observadores.
O poema pode ser compreendido como fruto de um processo que se manifesta nas
figuras, nas coberturas lexicais, nas paronomásias, enfim, em todos os elementos constitutivos
do texto, porque “a figura como ornamento deixa de fazer sentido, dando lugar ao
estabelecimento de uma linguagem em que qualquer elemento se converte numa
possibilidade” de metaforização (BALDAN, 1994, p.236,237). As possibilidades são
estabelecidas pelo observador-leitor. Ressalte-se, aqui, o uso da palavra possibilidades,
configurando, exatamente, o que a teoria quântica assevera não totalidades: um lance de
dados jamais abolirá... Ressalte-se, também, que essa configuração probabilística coloca-se
do ponto de vista da leitura e não da confecção do poema; esta última, como vimos no Canto
II, não é obra do acaso (a não ser por um átimo, um talvez no céu noturno...).
Em textos como os de Haroldo de Campos, como insistentemente tem sido dito neste
trabalho, o distanciamento entre o significante e significado é ampliado, fazendo com que se
ampliem as possibilidades de leitura pela presença da mobilidade, inerente às metáforas do
texto, que são também metonímias melhor dizendo as metonímias e demais elementos
constitutivos surgem como parte desse processo em que se vêem na linguagem multíplices
formas de metaforização. De um modo geral, podemos entender o poema AMMR, seu caráter
alegórico e sua significação global a partir desse processo, o qual, se entendido em termos da
física quântica, indica que os quanta assinalados na leitura compõem a “máquina” metafórica
geral do texto, cuja apreensão não se na totalidade, mas apenas em decorrência da
percepção do leitor e de sua participação na construção do “jogo” probabilístico/ labiríntico
apresentado no corpo do poema.
Para o eu-poético de AMMR, que é leitor da tradição literária e, simultaneamente,
estudioso da física, essas explicações também parecem desafiar o sumo fautor do universo
poemático mais do que eventos aleatórios, o poeta busca a origem da poesia em ação do
poema, o começo de tudo. O eu-poético quer se abismar, por isso, ao erguer-se até o mirante,
cola as lentes num gigante telescópio e se diz apto a ver o berçário do universo se gerando:
no imaginar, finge-se. O telescópio faz-nos ver mais. Como os óculos do personagem
Miguilim de Guimarães Rosa, o poeta-viajante, no final de sua jornada, parece munir-se de
instrumentos que lhe permitam vislumbrar o cosmorante berçário, porém, mais do que
visual, sua experiência é auditiva e plena de significados.
Porque rememora o big-bang é capaz de ouvir o ruído de fundo. O barulho advindo da
explosão inicial não é um amontoado de sons distanciado de sentido, mas o borborigmar do
ur-canto/ ou pranto primordial: primeiro nexo. Em primeiro lugar, deve-se destacar que
borborigma é um ruído que vem do aparelho gastrintestinal, portanto, um ruído que sai das
vísceras, das entranhas, mas que no poema não ecoa com um ruído esquisito, antes,
melodiosamente soa como o canto de Ur: um nascimento, um vir à luz (daí o pranto
primordial) em um tempo impreciso, de cósmea densidade ensandecido. Aqui, mais uma vez,
o texto haroldiano evoca o texto bíblico e, em abismo, leva-nos a Abraão.
Ur refere-se, provavelmente, à saída de Abraão da cidade de Ur, localizada às margens
do rio Eufrates, na Mesopotâmia. Deus o faz sair da terra politeísta e o guia para outro lugar.
Segundo algumas interpretações bíblicas, sair para é um movimento de libertação tanto para
o indivíduo quanto para o povo é um caminhar para a vida. Abraão simboliza o homem
escolhido por Deus, predestinado a um papel universal
70
; contra todas as expectativas de
malogro, ele acredita na esperança. Abraão também se torna personagem central de AMMR no
Canto III porque está presente nas três grandes religiões existentes: cristianismo, judaísmo e
70
Cf. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Gênesis 12 – 15.
islamismo; é, por assim dizer, um mito fundador. No poema, entretanto, o surgimento de Ur
não parece tão eufórico: vem das entranhas, um canto como um pranto primordial. Admitir os
quanta é romper com explicações da origem. E Abraão é o início.
A partir de Abraão a história sagrada vai se delineando. É necessária a saída de Ur para
que sua missão se inicie. Como lenda fundante, a história de Abraão não deixa de fazer o
papel de ruído de fundo, que é reiterada muitas vezes, por isso, provavelmente, surge, em
AMMR, associada a um primeiro nexo, à explosão parturiente. Por fim, ao trazer o ur-canto
para o poema, o poeta não deixa de nos fazer pensar que a busca de Abraão é marcada pela
“aventura e riso que caracterizam todos os grandes destinos. A em Deus é capaz de mover
montanhas. A sabedoria de Abraão inspirou-lhe a loucura de ser o aventureiro de Deus”.
(CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.7). O Abraão aventureiro equipara-se a Odisseu, a
Vasco da Gama, aos portadores de destinos fabulosos, pois enfrentará o tempo-zero/ de
cósmea densidade ensandecido, ou seja, o próprio caos, se o entendermos como os gregos:
vazio primordial, anterior à criação em que a ordem não havia sido imposta (ibid., p. 182).
Do ponto de vista do plano de expressão, as estrofes iniciais do terceiro canto são
bastante interessantes, vale a pena destacar alguns aspectos. um bonito jogo entre
caminho, descaminho, descortino, como se o poeta, nessa “tríade”, refizesse o poema:
caminha pelo ciclo ptolomaico, descaminha pelo mundo da ciência, que o faz questionar as
verdades da e, por fim, do alto do mirante, que parece ser o topo da montanha do
Purgatório, men do Paraíso, descortina a gesta. Na estrofe 83, a aliteração de /b/ ecoa o
próprio big bang; nas estrofes 84 e 85, o canto-pranto é ouvido em pequenas explosões:
pranto, primordial, primeiro que se dissipam em radiocaptado, por, parturiente, espelhado,
estampido, porventura, tempo. As paronomásias especulares refletem-se, portanto, diante das
lentes do telescópio usado pelo poeta que ouve o ruído de fundo enquanto o “esfervilhar”
da explosão:
86) ao mais extremo? ensimesmado em mero
zerar-se o enigma – esfinge naticega –
sem perguntar-se cala o seu mistério
87) lasciate... o que ao saber porém se entrega
o que após um centésimo milésimo
de segundo a partir daquele mega
88) estrondejar passou – o abre-te-sésamo
desse proscênio – tem-no esfervilhando
o caldo turbinoso: eu (septuagésimo
89) ano de minha idade) vou cantando
e no contar tresvairo: explode o ovo
cósmico e o grande bangue está ecoando
dois caminhos apontados pelo poeta nas estrofes 86 e 87: um deles é aceitar que o
enigma zera, pois, a explicação da origem é a explosão inicial. Se assim for, o enigma-esfinge
que marcava de acídia o poeta diluiu-se. A esfinge naticega não pergunta, cala, lasciate, deixa
estar. Se retomada a estrofe do poema, lembrar-se-á do o olho tinto de sangue, cupidez
impura, afinal Dante tinha trinta e cinco e ele setenta.
Dante tinha o medo; e o poeta de AMMR, a acídia. Nas estrofes 88/89, entretanto, tudo
indica que o poeta não se entrega à crença em explicações para a origem do mundo que o
conduzam a julgamentos finais, não se deixa conduzir por um esfingir naticego que zera o
enigma pela resolução (aceitação/negação) do mistério; ao contrário, por ter setenta anos e
muito ter vivido, o poeta segue cantando, que o saber adquirido pela experiência é o seu
guia. Mesmo mergulhado numa atmosfera melancólica e saturnina (Dante, Drummond,
Newton, Einstein), o eu-poético procura resistir.
O outro caminho é, por conseguinte, o entregar-se, audaciosamente, ao saber, ao
“desenigmar” daquilo que se vence pela atividade intelectual. A perturbação na ordem
sintática aponta esse caminho do eu-poético que segue cantando e contando, como um aedo
que é, também, epopoiós, fazedor de epéa, vozes, discursos e narrativas que se misturam à sua
para engendrar epopéia. No poema palimpsesto, experiência e memória
71
projetam-se para o
futuro. A interface entre esses dois momentos, quais sejam, passado e futuro, é assegurada
pelo canto que tudo presentifica. Mais uma vez, a agoridade haroldiana emerge do texto e se
adensa na materialidade da palavra poética, canto.
71
O ur-canto parece distinguir-se do canto bíblico, pois, enquanto o canto divino judaico-cristão trata da
verdade, o cantar do poeta aqui parece remeter-se à matéria épica de AMMR. Considerando as observações feitas
a respeito de Abraão, como o gosto pela aventura e o espírito destemido, pode-se supor que o ur-canto é menos
um canto bíblico do que parte da epopéia do eu-poético.
Como aponta Brandão (1990, p.10), na epopéia, o canto é realizador. Os fatos cantados
deixam de ser apenas memória e passam a se tornar ação o canto é que engendra os fatos;
sem ele, estes seriam apenas possibilidades. Ao cantar, o eu-poético de AMMR transforma
seus atos em palavra: o que era domínio do vivido, e que estava guardado na memória, passa a
ser o épos. Em outras palavras: ao narrar sua experiência ao longo dos três cantos, o eu-
poético faz com que passem da memória ao poético, revelando suas múltiplas índoles
(polýtropos), seus ardis fabulistas, engenho e arte.
O seu canto guia o leitor pelos labirintos da memória e de sua ruptura em relação a ela,
uma vez que na epopéia a memória não é passiva, mas ativa ainda segundo Brandão (ibid,
id.), “a voz é que inaugura o mundo” e se costura, alinhava, a outras vozes, não como elas
são de fato, mas, repetindo o Benjamin citado na introdução, como elas relampejam no
bordado de Penélope que é o espaço-tempo do poema, cuja trama é feita e desfeita. O eu-
poético/ o poeta Haroldo de Campos segue construindo e desconstruindo sua travessia
labirinto sem fim, abissal:
Efeito de abismo, sem dúvida: o herói canta o próprio canto do poeta que
canta o canto da Musa que canta a Memória que guarda os feitos do herói
que canta. Efeito de espelho e labirinto igualmente, pois o canto do herói
objeto do canto do poeta [...] é o mesmo poema que, assim, repete na sua
estrutura gerativa a relação polifônica observável [...] o épico o] gênero
em que o poeta fala e faz falar suas personagens (BRANDÃO, op. cit., p.9).
Novamente, o labirinto surge. De qualquer ângulo que o tomemos, quer da perspectiva
figurativa, como ocorre com o sertão no primeiro canto, quer da perspectiva barroco-científica
do segundo canto, ou como agora, epicamente, o poeta vai levando o leitor, amiúde, por
caminhos que trilhou ao longo da leitura, mas recobertos por novos sentidos. Os labirintos
são uma das formas de manifestação da poética sincrônica de Haroldo de Campos, porque
dizem respeito ao modus operandi dessa poética, espiralar e elíptica que emite sua onda de
radiação em ruídos de fundo, apreendidos aqui e ali, nas vozes do poeta e da tradição (em
amplo sentido), recolhidos no canto do eu-poético: canto, aoidé, ou ainda, o visceral ur-
canto
72
.
Talvez, por isso, desde a segunda parte do poema, o eu-poético insista na imagem do
big-bang, afinal ele é, ainda que com vários graus de indeterminação, a vaga origem desse
72
Devido a essas características, o movimento de leitura do poema é, como foi dito na apresentação deste
trabalho, espiralar e elíptico.
ruído, desse canto-bordado à borda do caminho, como sugerem os versos iniciais da estrofe
80; desse canto galáctico ou, pura e simplesmente, constelar, entoado pelo eu-poético, que
muitas vezes parece surgir, no tecido do texto, amalgamado ao poeta Haroldo de Campos.
Nas estrofes 88 e 89, o big-bang é visto como o abre-te-sésamo desse proscênio, o
desencadeador da encenação da gesta do universo: explode o ovo cósmico e se ouve o
ecoar, misturado às vozes orquestradas pelo poeta, do grande bangue. A hipótese do ovo
cósmico aproxima-se muito dos mitos de criação. O ovo cósmico é uma metáfora para tratar
da hipótese do átomo primordial, proposta em 1931, por Lamâitre. Segundo essa hipótese,
teria havido um átomo primeiro que após um centésimo de milésimo de segundo se desfez em
muitos fragmentos, que se desfizeram em mais fragmentos e, assim sucessivamente, até que o
raio do universo foi sendo preenchido por esses estilhaços todos e expandiu-se.
Durante muito tempo, Lamâitre, que era padre, tentou conciliar a visão da e da
ciência, mas, em 1951, afirmou que a teoria científica era imune aos questionamentos
metafísicos; no máximo o Deus existente, seria o de Isaías, invisível, escondido no início da
Criação (LAMÂITRE apud GLEISER, 2006, p. 355). A religiosidade do cientista reverenciava a
Natureza; como muitos outros físicos, Lamâitre tinha plena na razão enquanto instrumento
a ser utilizado para desvendar os mistérios do universo. Ao que tudo indica, o poeta de
AMMR, ao saber (também) se entrega, fia-se na razão e se permite ouvir o abre-te-sésamo de
modo que tem acesso ao espetáculo do caldo turbinoso e aos “fogos de artifício cósmicos”
(ibid. id). A partir da evocação do ovo cósmico, entretanto, o poeta unirá a razão aos mitos de
origem e, em mais um traveling, levará o leitor ao texto bíblico, cuja descrição da origem é,
metaforicamente, próxima da descrição do big-bang, segundo a maneira como ambas são
apresentadas no poema:
90) há quinze bilhões de anos qual renôvo
fantasma em retrospecto índice enfim
do ejacular de estilhaços de fogo
91) da primeva pulsão: também assim
no bereshith – no livro cabalístico
(no começar/ no encabeçar) esh máym
92) shmáyn/ “fogoágua”- lê-se: do céu mítico
nome – do céu à terra sobre-assente
(glosa de ráshi atento para o vívido
93) étimo da palavra) ou comburente
cristal em torno fluindo do sublime
trono-divino – pré visão do quente
94) big-bang cuja presença se define
à rádio escuta humana e configura
ao olho-mente quase um telefilme
Como geração divina, o poeta passa a descrever a gesta do universo; inicia a estrofe 90
apontando para o caráter indicial do ruído de fundo rastro fantasmagórico da explosão
primeva, como se esta, disseminando luz, fosse carregada de erotismo, ejacular de estilhaços
de fogo. Daí para frente retoma o Gênesis (bereshit)
73
e as metáforas de fusão do fogo (esh) à
água (máym), que se aglutinam em shamáyin fogoágua. Ambas componentes, ígnea e
líquida, pertencem ao mito bíblico e remetem à origem de um cosmo supraterrestre; a
“combustão” primeva é ocasionada pela ão do comburente cristal, que flui do sublime
trono-divino e contagia o ambiente em torno dele.
O comburente cristal pode ser apreendido como o próprio sopro divino, oxigênio-
comburente, desencadeador da gesta do universo: sopro-esperma divino que espalha
estilhaços (cristais) de fogo. A densidade das imagens apresentadas nesse trecho, e sua reunião
no oxímoro fogo/água são a pré-visão de uma origem que nasce da fusão, do tensionamento
dos contrários e da ambigüidade, expressos pela exacerbação metafórica barroca de ejacular
de estilhaços de fogo.
Haroldo de Campos, em sua transcriação do Gênesis, Bere’shit: a cena de origem
(2000), vale-se das preciosas contribuições de Ráshi (1040-1105) no que concerne à leitura do
Talmude e da Bíblia. Sua admiração pelo grande estudioso deve-se, provavelmente, ao fato de
aquele ser um incansável leitor dos textos sagrados, aos quais voltava sempre, pois,
modestamente, acreditava que vários sentidos escapavam à leitura. Por isso, ao surgir a
descrição da cena original, como fusão fogoágua, referência à glosa: ráshi, atento para o
vívido/étimo da palavra). Também o eu-poético parece espelhar a atitude haroldiana de
reverência aos textos clássicos e a reverência aos grandes leitores da tradição. A incansável
73
Cf. CAMPOS, H. Bere’shith: a cena de origem. São Paulo: Perspectiva, 2000.
busca dos significados mais profundos, encobertos pela materialidade dos significantes, ou
como diz o próprio Haroldo, significantes que são “pictogramas etimológicos” é um dos
traços distintivos da “aléfica” e poética sincronia haroldiana.
O céu mítico, descrito no poema pelo eu-poético, espelha o fazer artístico de Haroldo
de Campos e sua cosmogonia, retratada por atividades criativas (incluem-se aqui a tradução e
a crítica) sempre voltadas para a busca da origem, das origens: do homem, do universo, da
poesia, da palavra vívido étimo. No caso de AMMR, em especial no Canto III, Campos
orienta-se pelo mito e procura construir uma maneira de pensar o mundo, transformando em
“verbo o vivido”.
O saber poético que esta obra haroldiana veicula remete ao mito porque atua por meio
da ritualização da palavra: o poema de Haroldo de Campos abre-se como um ritual, cujo
senso de mistério grava-se nos sentidos dos espectadores-leitores. Para que experienciar o rito
poético haroldiano na totalidade, se é o seu movimento rítmico que engendra os significados a
que remetem os significantes? se é a sua forma e não o seu conteúdo que asseguram o
mistério deslizante pelo corpo constelar da máquina poética, de quem o eu-poético é o
operador?
Para que ler AMMR? Não para explicá-la, certamente, mas para dialogar, através da
leitura, com a estesia que ela desperta e que atravessa o texto: tessitura, travessia e viagem
equivalem ao movimento da leitura que, como as vagas do mar, também é marulho, também é
parte do poema, riocorrente, ir e vir. A cada estrofe, uma nova etapa do ritual poético da
construção da máquina se oferece - nada de compreensões absolutas, somente as diferenças
que o jogo leitor-poema-poeta admite. Conversar com AMMR é descobri-la e não descobri-la,
simultaneamente. A experiência é de abismo, ou é o canto das sereias. Amarrar-se ao mastro
da teoria literária, da física, da alegoria da máquina do mundo felizmente não impede o ruído
de fundo das idiossincrasias de Haroldo de Campos, depositadas no poema, que chegam até o
leitor pelo simulacro do poeta, o eu-poético. Sua caminhada movimenta o caminho de leitura
acusticamente: canto, ruído, marulho, sussurro, sibilação, silêncio – presença pela ausência.
O canto entoado em AMMR burla a memória porque a recria: Musa. Como aponta
Brandão (1990), a Musa/ Canto é filha de Zeus e da Memória, portanto, é memória, mas é
também poder, ou ainda, é fruto da ação do segundo sobre a primeira. O que o eu-poético
rememora é o que o leitor rememora pela leitura; porém, mais: a perspectiva sincrônica
garante que o “make it new” seja processado em AMMR – a memória ativa nada mais é do que
a agoridade do poema, citada anteriormente. Agoridade que se torna mais espessa à medida
que o poeta canta:
Cantando ele [o poeta] faz lembrar e esquecer, apropria-se dos feitos e os
transporta para a esfera do poético, regulada pelo poder da Musa e
organizada segundo critérios intrínsecos. Noutros termos, diria que não se
trata de fidelidade a uma memória passiva [pura diacronia], mas do uso de
uma memória ativa e, por isso mesmo, criadora [make it new], fruto da ação
do Poder sobre a Memória, o qual, misturado com ela, lhe rompe a
homogeneidade absoluta e cria espaço, no seu corpo [ejaculação de
estilhaços], para o outro, para o que não é apenas memória. O nascimento
da Musa/ do Canto supõe mesmo que o corpo da Memória seja violentado
pelo poder que introduz nele o elemento estranho que a fará fecundar. Nesse
exato momento em que se estilhaça a inteireza da Memória é que creio que
podemos situar a gênese da epopéia [...] (BRANDÃO, 1990, p. 8).
Há, em AMMR, muito da epopéia, porém, no Canto III, o estilhaçamento da memória é
mais contundente, as visões do eu-poético se fundem e se dissolvem, fulcro de cristal em
movimento, como sugere o poema haroldiano citado no Canto I. Da física a Abraão, do
Gênesis à Odisséia aglutinam-se as perguntas em torno do big-bang, sublime e ruína, como
aponta Pécora (2005). Do Canto III, a gênese da epopéia de AMMR ecoa em direção ao
caminho que ficou para trás, de Dante a Einstein; nos demais cantos, a epopéia talvez seja
radiação cósmica fundida ao barroquismo do texto, discutido. Será isso mesmo, ou é o
percurso de leitura aqui apresentado que engendra esse movimento e não outro?
Se for isso, depois da viagem pela linguagem do poema, em que o humano demasiado
humano se manifesta, chegamos ao Hades: daqui, do Canto III, vê-se o passado e o futuro (do
poema), vêem-se os rastros fantasmagóricos dos companheiros de viagem deixados para trás,
mas amalgamados à terceira parte do poema pela mobilidade das metáforas e pela
manutenção da dicção alegórica, épica, barroca, enfim, do eu-poético. No imaginar, um pouco
de rosa, um pouco de Rosa; um pouco de pedra (das calçadas de Itabira), um pouco de
Euclides; um pouco de Homero; um resquício do engenho de Camões e um Dante às avessas,
velho, agnóstico; com quantos quanta se desfez um Einstein? Hades, ou apenas o retrospecto
da leitura, que surge labirinticamente.
Como estamos em um labirinto, devemos voltar às estrofes 90 - 94, nas quais o mito
judaico-cristão é, nas palavras de Haroldo de Campos, também retomado pelo uso do infinito
substantivado (do ejacular, no começar, no encabeçar), como se fosse possível um flash-back
sintático (CAMPOS, 2000, p.27). Devemos também perceber que uma visão da física
coincidente com esse mito. A hipótese de dinamismo e expansão do universo pressupõe que
este, nos momentos iniciais, era extremamente denso (como as imagens de AMMR?) e quente.
À medida que se expandia, ia resfriando cristais. Essa é a visão que se configura/ ao olho
mente quase um telefilme para o eu-poético que no imaginar se finge finge e forja o mesmo
tom de infinito substantivado que citamos acima. Insiste no big-bang:
95) sem mais especular sigo: a figura
vermelho extrema de um (diz-se) desvio
espectral da luz surge da lonjura
96) de galáxias perdidas como envio
da memória estelar revivescente:
essa inflexão resulta do resfrio
97) da radiação primeira e da crescente
expansão do universo pós-big-bang
aval (em flash back) do íncipit fervente
98) do cosmos a partir de um ponto estanque
de um máximo adensar – instância aléfica
de cujo rebentar tudo se expande
99) – mas depois do depois que vem? uma épica?
desastre dos astros? lapso de gigântea
(super) estrela azul? dançante poética?
100) do universo? inestática vibrância?
ocaso de escarlate supernova
ora estrela de nêutrons em vacância
101) a esvanecer-se quando posta à prova
de resistência de gravidade e à negra
voragem sucumbindo? o que essa cova
102) famélica produz pronto encarcera
(até a mesma luz quando esta o invade
o furo opaco a deslumina anegra)
O poeta continua seu caminho. Sem especular, descreve apenas o que do alto do
mirante, como, por exemplo, a figura vermelho-extrema, desvio espectral da luz, resíduo da
explosão primeira. Nesse trecho, há referência a uma importante descoberta de Einstein, que o
levou, mais tarde, à formulação da teoria do encurvamento do espaço e da relatividade geral.
Trata-se do seguinte: as fontes de radiação eletromagnéticas têm seus cumprimentos de ondas
afetados em campos gravitacionais intensos, ou seja, a luz proveniente da superfície solar tem
cumprimento maior do que a luz gerada na Terra, porque o campo gravitacional do Sol é mais
intenso. Ocorre que a cor vermelha possui o maior cumprimento de onda, por isso, esse
fenômeno passou a ser conhecido como desvio gravitacional para o vermelho.
Mais do mesmo: a voz do poeta parece também, insistentemente, ser ruído de fundo da
grande explosão, pois é em torno do big-bang, instância aléfica, que se desenrolam as
estrofes 97 e 98. O eu-poético volta a falar do adensamento da matéria, do momento inicial,
“o ponto a partir do qual o espaço e o tempo apareceram e as leis da física deixam de
funcionar (o “aleph” de Jorge Luis Borges?)” (Gleiser, 2006, p.366), e, para tanto, relembra o
conto borgiano, também lembrado por Gleiser
74
. Por fim, o adensamento da matéria, citado
na estrofe 98, tanto pode estar se referindo à explosão inicial, quanto ao processo de formação
de estrelas, ou ao poema. A instância aléfica, de cujo rebentar tudo se expande, parece
também orquestrar as explosões estelares/ poemáticas.
Na estrofe 99, cansado do admirar do big-bang, o eu-poético instaura uma interessante
pergunta, que o faz refletir sobre outro instigante fenômeno astronômico: o nascemorre
estelar. Durou pouco o caminho sem especulações, como indicam as perguntas no início da
estrofe; como indica a conjunção adversativa mas”, sinalizadora da persistência da
curiosidade: mas depois do depois que vem? uma épica? desastre dos astros? Às duas
primeiras perguntas, pode-se tentar atribuir respostas depois do depois surge o universo em
constante expansão; quanto à épica, ela está no depois do depois da origem do poema,
entendido aqui como universo: corresponde ao próprio desenrolar, ou melhor, ao tecer do
74
Se depois do depois, como queriam Dante e Camões, Borges ainda existe em algum lugar. Desse lugar,
deve estar sorrindo ao ver-se em um labirinto, e, ao mesmo tempo, ao sentir-se, de certa maneira, o fio condutor.
Haroldo citaria o Aleph de qualquer forma, que a imagem descrita no conto borgiano corresponde
imensamente ao bang inicial; todavia, é interessante notar que Gleiser, outra referência usada por Haroldo em
seu poema, cita-o: todos os caminhos levam a Borges, ou melhor (ou pior?): ao labirinto. A consciência do
aspecto labiríntico de AMMR é mais uma vez sublinhada nessa passagem do texto.
poema-novelo-viagem, como mencionamos anteriormente. Resta o desastre dos astros que,
afinal, não é desastre, e sim geração contínua: nascimento de estrelas azuis.
Quando uma estrela nasce é azul. Nesse período de sua vida, a jovem estrela é muito
turbulenta e energética, pois possui muita massa. A estrela a que se refere o poeta, gigântea
(super) estrela azul, pertence a uma categoria de estrelas que possuem, em média, 10 a 50
vezes o tamanho do Sol e seu raio pode chegar a 25 vezes o tamanho do Sol
75
. Por causa de
tais características, o poeta menciona a dançante poética do universo e a inestática vibrância.
É muito poética e, ao mesmo tempo, avassaladora a vida das estrelas: ocaso de escarlate
supernova/ ora estrela de nêutrons em vacância.
Uma estrela vai se expandindo ao longo de sua vida, com o passar do tempo e devido a
reações físicas, por vezes, as expansões tornam-se bruscas. Quando isso acontece, a estrela
esfria rapidamente e a pressão gravitacional de seu núcleo torna-se maior do que a pressão
térmica. A estrela, então, se contrai muito e colapsa. No processo, perda do equilíbrio e,
pela explosão, a estrela ejacula sua matéria brilhante. A essa explosão dá-se o nome de
supernova; ela marca a morte de uma estrela muito maciça. A luminosidade dessa explosão é
um bilhão de vezes a luminosidade do Sol.
Depois da explosão, a massa estelar remanescente se concentra muito e elevação
acentuada da pressão no seu interior, o que faz com que os nêutrons dos átomos
constituintes sobrevivam. Há, então, um pulsar de nêutrons nos pólos da estrela, que vai
disparando matéria luminosa de nêutrons, ou seja, libera neutrinos. Essas estrelas são
nomeadas, então, estrelas de nêutrons. Voltemos ao poema.
As questões propostas pelo eu-poético entre as estrofes 99 e 102 referem-se à
existência das estrelas. Em primeiro lugar, a jovem e intempestiva estrela azul, que dança
poeticamente no universo; depois, o amadurecimento dessa estrela, que envelhece e explode
maravilhosamente: supernova. A supernova indica a morte da estrela, ou, poeticamente, seu
ocaso, palavra que faz figurar o céu tingido de escarlate pela grande explosão, irruptora das
estrelas de nêutron, as quais podem “esvanescer” se forem também colocadas à prova da
gravidade, uma vez que não podem resistir à negra voragem – famélica.
Negra voragem faz referência aos buracos negros que se formam quando uma estrela
morre e torna-se buraco negro, assim chamado porque passa a absorver toda a radiação que
nele incide nenhuma fonte de luz o atravessa. Por isso o eu-poético refere-se à cova
famélica seduz pronto encarcera.
75
A esse respeito, cf. referências bibliográficas, ao final deste trabalho. Notadamente, os sítios eletrônicos da
USP/ São Carlos, UFRGS, UFC.
A descrição da vida das estrelas é carregada de metáforas, como, por exemplo, o
ejacular de matéria brilhante, termo recorrente em mais de um texto científico relativo a esse
assunto. É também em tom patêmico que os cientistas descrevem a existência estelar lindo
espetáculo que acaba com uma imensa explosão de grandes proporções aspectos que
mostram como a arte da palavra invade as demais áreas do conhecimento. Tal dicção torna
tentadora a perspectiva de seguir caminho análogo e tomar emprestados termos da ciência
para pensar em alguns processos de nascemorre na literatura. Aliás, a AMMR é inspiradora
para isso. Pensemos, pois, nas estrelas e nas vanguardas.
As vanguardas começam com uma explosão do tipo supernova – arrebatam tudo o que
está ao redor, estilhaçando o centro do cânone, jorrando sêmen de novidade pelo espaço
artístico-criativo. Alguns elementos da tradição, todavia, resistem bravamente à explosão,
porque se deixam permear por ela, concentrando-se como os nêutrons da estrela moribunda
acima descrita. Esses nêutrons da tradição continuam a espalhar sua matéria brilhante
(neutrinos) em pulsantes vibrações, “ruído de fundo”: permanecem estrelas, frutos, é verdade,
da reconfiguração imposta pela explosão vanguarda-supernova. A atualização sincrônica da
tradição articula esse processo.
Dizendo melhor: da mesma maneira que a vanguarda seleciona do cânone elementos
que permanecerão, porém com nova roupagem, a estrela que explodiu ainda permanece nas
estrelas de nêutron, como ruído de fundo, como memória, se é que se pode arriscar essa
conclusão; pode-se dizer, seguramente, que a estrela envelhecida explodiu e que foi a
explosão que gerou a estrela de neutrinos. É o impulso ruptor da vanguarda que reorganiza o
cânone, cuja permanência é engendrada pela própria ruptura, que o restaura sincronicamente.
Também é importante ressaltar que, se mantida a analogia com a supernova, deve-se entender
que a vanguarda não “surge do nada”, mas em decorrência de um esgotamento das formas
cristalizadas, tanto quanto a explosão da supernova ocorre em decorrência do fim do
hidrogênio que, por deixar de existir, não transforma mais o hélio do interior do núcleo
estelar, ocasionando a explosão.
Outro aspecto interessante é imaginar que as vanguardas, como são supernovas, ao
irromperem já testemunham o início de sua “morte”é de um fôlego que desestabilizam o
universo a seu redor; este, aos poucos, passa a conviver com os buracos negros da parcela da
tradição que se dissipou, reorganiza-se nas estrelas de nêutrons nascentes e se reconfigura a
partir das novas estrelas que surgem, azuis e azougues: agitadas, intempestivas, mas fadadas a
envelhecer, a trocar a coloração azul por outras, até explodirem pelo esgotamento do
“hidrogênio”, novas supernovas, ad infinitum. Evidentemente, assim como nem todas as
explosões de estrelas são supernovas, nem todas as mortes de movimentos literários ou obras
desencadeiam movimentos de vanguarda. Algumas coisas simplesmente vão deixando de
importar; outras, como os textos evocados em AMMR, têm vocação solar serão sempre o
centro e acabarão quando o Sol, como estrela que é, também explodir, levando consigo a vida
na Terra. Mas, e se o homem, até a explosão solar, descobrir uma alternativa para salvá-lo?
Nesse caso, Homero, Dante, Camões, Rosa, Galileu, Kepler, Newton, Einstein durarão para
sempre.
É porque no imaginar se finge, ao colar o olho às lentes do telescópio, que o eu-
poético pode ver o grande universo científico e, primordialmente, literário: que as
constelações do poema são “poeira de estrelas-palavras”, tudo se torna, no texto, literatura,
inclusive a ciência. O grande e imaginário telescópio tira o aleph do porão e o projeta,
galáxias, no céu, revelando-o incrivelmente instigante, ou inevitável, como diria Borges. É,
também, incrivelmente belo, pois é sempre o céu do poeta que tem mais estrelas, ou o seu
sertão que tem mais veredas: o fragmento de céu visto pelas lentes do telescópio é espelho; ao
mirar-se nele, o poeta vê-se e revê a viagem, portanto, retorna. O leitor retorna com ele.
103) – retorno então à estreita via (quem há-de
esquecê-la e ao sertão de entreveredas
por onde ela se enfia? – faz-se tarde
104) no meu tempo terráqueo: três estrelas
(não mais as feras) anãs – a rubra a albina
a nigra – me vigiando: sentinelas
105) aziagas em esgares letais – sina-
sentença minha sendo o perseguir
a reflexão sem cura – dom? estigma?
O poeta retoma seu árduo caminho: a via é estreita, como sugere a assonância do /i/,
contundente e aguda, a esfingir, mais uma vez, o poeta no entardecer do seu tempo terráqueo
estreita, via, enfia, albina, nigra ,vigiando, sentinelas, aziagas, letais sina, perseguir,
estigma. O caminhar lento marca-se pela aliteração em /t/ que soa como o tic-tac de um
relógio: retorno, estreita, entreveredas, tarde, tempo, terráqueo, três, estrelas, sentinelas,
letais, sentença, estigma. É interessante pensar aqui que, como em Drummond, depois do que
avista, o eu-poético prossegue pela estreita via que pode muito bem equivaler ao sertão e/ou à
estrada de Minas, o som dos seus sapatos ecoam o /t/ de um quiçá relógio (do Rosário),
marcando seu tempo terrestre, vigiado por estrelas. Ecoam também as pedras no meio do
caminho, ou um resquício de vibração das explosões, em especial, em: entreveredas, três,
estrelas e nigras.
É natural que as estrelas não sejam as feras, pois as feras impedem a passagem, mas as
estrelas, anãs, conforme apontadas no poema, sugerem o fim da vida uma estrela anã
encaminha-se para a morte. As estrelas anãs representam a saturnina e aziaga melancolia de
quem está se sentindo em direção ao fim, sem condições de processar, no âmago, a energia
reatora que assegure o brilho. As estrelas anãs são pequeninas, sua energia esvai-se,
gradativamente, e elas vão se tornando vermelhas, marrons, e, posteriormente, negras. Tais
estrelas não formam explosões supernovas – não há energia para tanto.
Note-se aqui o tom saturnino; como fogo fátuo, o brilho estelar (do poeta) parece estar
se extinguindo pela sibilação em estreita, sertão, esquecê-la, se, faz-se, três, estrelas, mais,
feras, anãs, sentinelas, aziagas, esgares, letais, sina, sentença, sendo, perseguir, sem estigma.
A atmosfera melancólica aproxima mais as estrelas das virtudes teologais, que surgem no
Purgatório de Dante, do que das feras propriamente ditas, que se referem aos vícios. As
virtudes aparecem na forma de três mulheres: uma ruiva, uma verde e outra branca e
representam a fé, a esperança e a caridade. Como “faz-se” tarde no tempo terráqueo do poeta,
a esperança é trocada pela sombria anã negra, que absorve toda luz e não a refletirá mais; é
possível dizer também que as virtudes teologais místicas são trocadas por características
intelectuais, conforme aponta Pécora:
[...] em vez das três mulheres de Dante surgem-lhe “3 estrelas”(rubra, albina
e negra), que anunciam o “dom” ou o “estigma” da “reflexão sem cura”; de
modo que, é fácil perceber, as virtudes teologais, essencialmente místicas,
tornam-se aqui basicamente intelectuais, ainda que possam produzir
excessos como os que levem à busca de “pêlo em ovo” ou de “chifre na
cabeça/ do cavalo”. (PÉCORA, In: MOTTA, 2005, p. 105).
As virtudes marcadas de intelectualidade produzem excessos justamente porque são
marcadas pelo jogo da cosa mentale. Albina é uma brancura exacerbada; rubra é um vermelho
vivo e sangüíneo. Procurar pêlos em ovos ou chifres em cavalos é o sucumbir à reflexão, levá-
la à fronteira do absurdo, ou, simplesmente, do barroquismo, diante das aziagas em esgares
letais, carrancudas estrelas, soturnas sentinelas que dotam o poeta de uma curiosidade infinita.
106) – que me faz questionar e perquirir
o pêlo no ovo o chifre na cabeça
do cavalo e me impele ao ver-ouvir
107) de uma agônica estrela que esmaeça
quiçá uma estrela fênix ígnea bola
gestando um novo bangue de onde cresça
Quem é dotado de curiosidade infinita está, também, conseqüentemente, destinado a
ter esperanças de encontrar respostas. Assim, mais do que excessos, o pêlo em ovo e o chifre
na cabeça de cavalo são buscas impossíveis e, por isso, corajosas: impelem o poeta a acreditar
na possibilidade de uma estrela fênix que renasça das cinzas e se torne um novo bangue.
O renascimento do universo a que o eu-poético se refere parece estar relacionado à
poesia. Ao aproximar o universo da poesia
76
, como faz Mallarmé, Haroldo de Campos ensina,
em AMMR, que não esgotamento das formas poéticas. Haverá sempre uma supernova a
surgir, a desencadear um novo bangue; o pêlo no ovo e o chifre na cabeça do cavalo não
deixam de ser a busca rebuscada e barroca, na acepção da ouvesaria já discutida: “invertendo
sua conotação inicial a palavra [barroco] [...] designa o que é elaborado, minucioso, a
aplicação do ourives [...] o rigor, a construção paciente: barroco, figura do silogismo obra
de joalheira mental” (SARDUY, p. 25).
Pêlos em ovos e chifres em cavalos apenas a curiosidade, movida por espírito
inquiridor e minucioso, poderá encontrá-los. a curiosidade é capaz de ver, nas estrelas, a
flor e misturá-la ao acaso flor cadente, pólen que se espalha aleatoriamente pelo universo
poético.
108) renascente o universo: a mão esflora
a flor cadente multiplica-a o pólen
76
Para Mallarmé, a poesia é equivalente ao universo (MALLARMÉ, [s.d.], p.82). O eu-poético de AMMR neste
trecho como em vários outros deixa entrever a presença mallarmaica.
e a esfera de marfim no feltro rola
109) do bilhar: deus que joga os dados? – bem...
“viciados” dirá outro desdizendo
o dito de Einstein (sem deixar também
110) de redizê-lo – quase ao mesmo tempo)
à moira ambígua um tropo afaga: o oxímoro
concórdia discors não e sim contendo
A flor cadente equivale às estrelas nascentes das grandes explosões; entretanto, é
importante observar que na estrofe 108, a flor-estrela está ao alcance da mão do poeta, que a
esflora e multiplica pela disseminação do pólen (equivalente à matéria brilhante das estrelas).
O acesso à flor reforça ainda mais a proximidade entre o universo e a poesia a palavra, flor
ou estrela, flor e estrela, é matéria pulsante do universo poético, revelado no poema AMMR,
como se destacou ao longo da leitura do Canto I. Dessa vez, essa flor nascitura faz lembrar
o Manuel Bandeira, citado por Haroldo de Campos (2002, p.199), não por acaso, no ensaio
sobre Mallarmé, intitulado Caos e Ordem: Acaso e Constelação, temas mais do que
recorrentes em AMMR.
PREPARAÇÃO PARA A MORTE
A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
Como aponta Haroldo de Campos, boa dose de ironia no poema de Bandeira;
adiemos um pouco a discussão da morte, do fim, que surgirá no final deste Canto, para
concentrar a atenção especialmente na flor e na memória como milagres, afirmação da vida e
de sua continuidade, que a memória pereniza os acontecimentos. Tanto uma quanto a outra
permeiam a AMMR: a primeira como metáfora da poesia e da tradição por ela reinventada; a
segunda, como mecanismo que a engendra, ambas. Flor e memória, porém, estão sujeitas ao
acaso. O poeta parece não se esquecer disso e nas estrofes 108 e 109 além dos dados,
apresenta-nos a bola branca (esfera de marfim) do bilhar.
Mais uma vez a perturbação sintática filia-se ao significado do verso; a inversão da
ordem natural da frase parece indicar o movimento da bola branca sobre o feltro verde: caos e
ordem, acaso e constelação. A bola branca, como se sabe, não vale nada em si, mas é aquela
que deve atingir a bola visada, provocando o deslocamento desta até o local desejado, por
exemplo, a caçapa, ou ainda, deve fazer com que a bola visada atinja outra, enfim a esfera
de marfim, como uma estrela cadente, vai esbarrando nas outras estrelas e movimenta o
universo do jogo. É a bola branca quem o tom da partida e todos os seus movimentos
dependem da perícia do jogador, mas também do acaso, que tanto pode contribuir para que a
branca acerte as bolas adequadas, quanto pode representar o “suicídio”, que é o seu encaçapar
acidental, causador de perda de pontos.
Assim, a bola branca perfaz o movimento criativo da partida. Se o poema é jogo, e o
poeta é o jogador, a página é o feltro verde, e cada palavra é a bola branca, ou mais
poeticamente, esfera de marfim, que articula outras palavras, outras esferas, permitindo a
existência da partida: sua duração depende da luta contra o acaso (o poema é a luta contra o
acaso). Ainda na estrofe 109, o poeta retoma o aforismo de Einstein, para dizer que os dados
de Deus são viciados, ou seja, joga dados, mas abole o acaso e desdiz Einstein.
O fato é que o acaso ocorre regularmente, como se houvesse mesmo uma “lei” do
acaso (PEIRCE, 1972, p.77-78). A casualidade permite que toda singularidade aleatória
signifique, como acontece no universo, de acordo com o que foi dito sobre entropia,
geração de estrelas, nascemorre de diferentes processos, etc. Também Heráclito fala sobre
isso “das coisas lançadas ao acaso, o arranjo mais belo, o cosmo” (CAMPOS, H. In:
CAMPOS, A et alll, 2002, p.200). Em outras palavras é a desordem que provoca a beleza.
caleidocosmos, para usar expressão de Haroldo de Campos. A desordem, ao articular a beleza,
gera ordem. Este é o oxímoro que afaga a moira, não-e-sim contendo varredura do
acaso/belo/cosmos (ibid. id.).
111) o meu rumo desruma: evento síngulo?
(as leis da física ali não se aplicam)
reconcentrado no seu imo efêmero
112) e a repetir-se em sempiterno ciclo
de expansão e de nova contração?
em anos – trinta bilhões? – é o currículo...
113) mas se em vez de fechado aberto então
for o universo? Estrelas morituras
numa cadaverosa escuridão
114) frios rastros de astro e furos-sepultura
desconsolada a gesta assim termina?
no fim do fim o que há? o que futura
115) no ante-início do início e o ilumina?
– vou seguindo perplexo a minha senda
que de reolho o nada me escrutina...
O eu-poético mantém-se na estreita via, como sugere o fechamento das vogais na
estrofe 111, cuja persistência se verifica até a 115, acentuando a circularidade eterna das
explicações para a gesta universal que, nesse trecho, parecem delinear o próprio rumo do
poeta, ao fazê-lo avançar até alguma explicação que o faz retroceder à máxima positivista:
uma origem. Sua angústia é, justamente, marcada pelo desejo de esfacelar tanto a origem
quanto o fim ante-início do início e fim do fim. Dito de outro modo, o poeta sabe-se no
intervalo desse processo. O fechamento do universo, discutido antes, a partir do próprio
poema, acaba por estimular esse tipo de indagação, porque se é fechado, deve ter um início;
quanto ao fim, sabe-se que é vago, pois o universo, conforme já discutimos, é infinito.
Esses paradoxos reforçam a impossibilidade de certezas absolutas, apontada nesse
trecho pela pergunta: mas se em vez de fechado aberto então/ for o universo? A essa
indagação, imagens tenebrosas surgem no imaginar do eu-poético: estrelas morituras,
cadaverosa escuridão, frios rastros de astro, furos-sepultura. É a perplexidade diante de
tamanha impotência para achar as respostas que ao eu-poético a sensação de que é o nada
que o escrutina...
Talvez fosse possível associar o nada, mencionado pelo poeta de AMMR, na estrofe
115, ao vazio lucreciano. Segundo Wolff (2005, p.68), Lucrécio (99 5 aC) foi o maior poeta
materialista da Antigüidade e, como Epicuro (342/341 323), era um filósofo “médico”, isto
é, acreditava que a filosofia deveria trazer conforto para os sofrimentos. Nessa perspectiva, a
religião e sua idéia de imortalidade eram prejudiciais, posto que a promessa de vida eterna
legava à terrena o segundo plano. Para Lucrécio, o universo é infinito e nele, tudo se resume a
corpo e vazio; no vazio, os átomos vagueiam e podem associar-se compondo corpos.
As descrições lucrecianas são orientadas por uma visão de mundo é aquilo que se
que determina o pensamento sobre as coisas; é a percepção do mundo pela visão que atribui
sentido a ele (ibid, p.73,74). Para Lucrécio, o que existe, verdadeiramente, é matéria do acaso,
o qual, no tempo e no espaço, deu origem ao mundo ordenado. Acaso e ordem, mais uma vez.
Em Lucrécio, o nada e o acaso significam, a partir do momento que abrigam todas as
possibilidades de composição dos corpos materiais de qualquer espécie. Conforme aponta
Wolff (ibid., p.75), o mundo lucreciano poderia ser comparado à Biblioteca de Babel (de
novo, Borges!). E é em relação a esse ponto, especificamente, que o nada a escrutinar o eu-
poético haroldiano mais se “corporifica” como matéria composta da tradição literária.
As letras, como os átomos existentes no vazio, podem se combinar para formar todas
as palavras possíveis, de todas as línguas possíveis, desde que respeitem as leis da
composição. Essas palavras juntam-se e formam os livros, dispostos em uma imensa
biblioteca. Um leitor, ao acaso, percorrendo essa biblioteca, seleciona um livro e acha incrível
que o mesmo, sendo tão interessante, tenha sido obra do acaso. Não percebe que, ao atribuir
sentido, em determinado momento do tempo e do espaço, abole o acaso e organiza as
possibilidades, transformando um caos latente (o livro não lido), no cosmos potencial a que o
livro estava predestinado a se tornar.
Em AMMR, vagando pela sua estreita via, o poeta está na imensa Biblio-Babel, aqui
aproximada das considerações de Wolff (op.cit.), embora o universo lucreciano seja infinito; e
a “casa dos livros”, finita. Enquanto o eu-poético caminha, pela via pedregosa, tropeçando nos
significantes do sertão que se entreveram, ou perdendo-se ao seguir os ecos do ruído de fundo
da tradição, que ecoa desde o bang inicial, o nada o inspeciona: as perguntas sem respostas
mostram a dimensão do grande vazio a ser preenchido, ao acaso.
Talvez seja por isso que o eu-poético, logo após constatar a presença do nada, erga os
braços para uma das prateleiras da estante da Biblioteca labirinto de Borges e se apodere de
Dante e Camões, conforme mostram as estrofes subseqüentes o Dante que significa aqui,
em AMMR, é aquele que o eu-poético, ao acaso, passeando entre livros, seleciona e a ele
atribui sentido; mas atribui sentido a ele, paradoxalmente, porque algo nele deixa de ser acaso
e passa a ser uma coincidência controlada pela própria preferência do eu-poético-leitor. Daí a
idéia lucreciana de que não importam outros mundos a não ser este, que oferece corpos e
vazio. Dante e Camões só significam pelo valor atribuídos a eles pelas diferentes leituras.
À medida que caminha pelas estreitas vias da biblioteca (a esta altura do poema, o
próprio universo), ouve o ruído de fundo de tudo quanto (ou)viu ao longo de sua jornada
não nos esqueçamos do rugido das feras, do ruído das pedras, do rumor do big-bang , e sabe
que o eco é também sua própria voz, seu ur canto, borborigmando, diluído ao ruído de fundo.
Como Narciso, é sua imagem que quer (sempre) encontrar. Para o poeta de AMMR, o espelho
d’água está nos livros literários, científicos ou religiosos que procura; não procura ao acaso,
porque é o seu rosto que quer observar, conforme atestam os versos da estrofe 36, do Canto I,
os quais demonstram que o poeta vê seu rosto refletido na máquina do mundo:
- e todos: Camões Dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso se estampando
A visão do próprio rosto também está no Aleph: “[vi] na terra outra vez o Aleph, e no
Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto” (BORGES, 2001, p.171). Ver o rosto
do outro e procurar o seu próprio, ou ainda, ver o rosto do outro e encontrar o seu próprio:
esta é a recompensa que a tradição oferece ao poeta, por isso, ele se volta, mais uma vez a
Dante, Camões e Drummond:
116) - dante acedeu ao cosmos sem emenda
de beatrice sua musa teologal
que sabia ser doce e ser tremenda:
117) certo o exprobou ao surgir como um tal
porte e esplendor que envolta em chama ardente
parecia em seu carro triunfal
118) (um grifo de asas de ouro e alvinitente-
– fulvo corpo leonino o conduzia) –
mas grau a grau dispôs-se em ascendente
119) escala a guiá-lo céu acima (e ria
a luz no seu semblante) até a rosácea
e à trina-e-una visão que resplendia
Aqui o eu-poético retoma os cantos XXIX e XXX do Purgatório, ponto a partir do
qual Beatriz surgirá para guiar o Dante. A imagem do carro triunfal e do grifo são também
apresentadas por Dante e simbolizam a Igreja guiada por Cristo:
Havia, no espaço entre eles ajustado,
um carro de duas rodas, triunfal,
que do colo de um Grifo era puxado
(Purgatório, XXIX, 106).
O grifo tem corpo de leão, fulvo corpo leonino, e asas de águia, asas de ouro
alvinitente; o grifo é um ser em que prevalece a dualidade; segundo Chevalier e Gheerbrant
(1994), representa tanto o lado humano quanto o divino de Jesus Cristo. Ou seja, o grifo é a
tentativa de conciliação do humano e do divino. Um outro aspecto interessante a destacar é
que o carro triunfal puxado pelo grifo surge, em Dante, acompanhado das virtudes teologais
há pouco invocadas pelo poeta de AMMR, sob a forma das estrelas anãs.
O leitor do poema de Haroldo de Campos tem a sensação de que as imagens, as
metáforas, os jogos paronomásticos acabam por desencadear, no eu-poético, processos
mnemônicos que o levam de um a outro ponto do tabuleiro percorrido elipticamente, de modo
que ora um foco desse movimento elíptico é revelado; ora outro. A deformação elíptica
contribui para a significação.
Se as estrelas moribundas da estrofe 104 remetem a Dante, transformando a luz das
virtudes teologais em anúncio de morte, supernovas, simultaneamente, levam o poeta a
questionamentos e, também simultaneamente, os questionamentos levam-no a rememorar a
chegada de Dante às portas do Paraíso. Todo esse processo é concomitante, mas expresso
linearmente, como ensina o Borges narrador de O Aleph: “O que viram meus olhos foi
simultâneo; o que transcreverei sucessivo, pois a linguagem o é”. (BORGES, 2006, p. 169).
Aliás, essa concomitância é notadamente forte no Canto III, desde o momento em que
o eu-poético cola os olhos às lentes do gigante telescópio, como ao longo da estreita via, a
qual retorna, revendo sua jornada: o que e ouve, no Canto III parece não passar diante de
seus olhos sucessivamente, como quadros e flashes dos Cantos anteriores, mas como imagens
e sons sobrepostos e rotacionais. Por isso, enquanto vê Dante, vê Camões.
120) – camões ao bravo gama todo-audácia
a máquina do mundo fez abrir –
não desdenhou o nauta dessa graça
121) e seguiu deleitoso a descobrir
o que não pode ver a vã ciência
dos ínferos mortais: por um zefir
122) pôs-se a descortinar na transparência
o ptolomaico engenho de onze esferas
que na terra tem centro e pertinência
123) quem rodeia este centro e circunsfera
é deus mas o que é deus ninguém o entende
a fé inspira o bardo e ele assevera
124) que a tanto a mente do homem não se estende:
enquanto ao gama essa lição ensina
da fé ao arco tênsil curva e tende
125) gratificado o capitão fascina-se
– o peregrino dante e o almirante
extasiados à luz que os ilumina
Na estrofe 124 alusão, mais uma vez, ao texto bíblico: da que ao arco tênsil
curva e tende. São inúmeras as ocorrências da palavra arco na Bíblia, este elemento simboliza
a aliança com Deus, fundamentalmente. Como os demais diálogos estabelecidos encontram-se
no Gênesis, talvez o verso acima referido esteja fazendo menção à descrição da de José,
filho de Jacó: “os arqueiros o irritam, desafiam e atacam. Mas seu arco fica intacto e seus
braços se movem velozes, pelas mãos do Todo-Poderoso de Jacó, do Pastor e Pedra de Israel”
(Gen, 49:23-25). Há, ainda, um trecho do livro dos Reis, em que o profeta Eliseu ensina ao rei
como usar as armas que Deus dá a ele: “Segure o arco [...] Atire” (II Reis, 13:16-23).
Em qualquer um dos casos citados acima, o arco é a medida da fé, curva-se o homem
diante de Deus, mas não se curva diante das situações em que sua coragem é sustentada pela
sua fé: parece ser este também o caso de Vasco da Gama. A lição de ensinada a Vasco da
Gama vem pelas mãos do bardo Camões. A estrofe 125 reafirma o êxtase da revelação da luz
divina provocado no eu-poético da Comédia, o peregrino Dante, e em Vasco da Gama.
Por fim, vale destacar que nas estrofes 122 e 123, descreve-se o modelo ptolomaico,
centrado na Terra. O eu-poético retoma, mais uma vez, a visão da máquina por Vasco da
Gama e sublinha o fato de este não ter se recusado a contemplá-la; talvez esse aspecto seja
destacado porque, nas estrofes seguintes, surgirão Drummond e sua acídia, seu recalcitrar:
126) se deixam levar de ânimo radiante
só o itabirano recalcitra e embora
sabendo o que perdia segue adiante
127) a guardar na retina a pedra sóbria
que antes se atravessara na de minas
estrada pedregosa que ele outrora
Em seguida surgirá um outro aporte dialógico, neste ponto mencionado
explicitamente: Mario Schenberg (1914-1990), o grande físico brasileiro:
128) já percorrera – e afasta-se entre cinzas
difidente do prêmio intempestivo
– paro aqui: penso em mário – nessas mínimas
129) partículas neutrinas que o seu vivo
transfinito olho azulverde enfocara
pondo em relevo o impacto decisivo
130) que no processo têm de onde dispara
a perda da energia astral – enorme –
veloz como roleta que não pára
131) “urca” (ao processo é gamow que dá nome) –
pois se o neutrino dura outras instáveis
partículas se criam e se consomem
132) como os anjos que exsurgem e voláteis
por um instante (apólogo rabínico)
louvam a FACE e morrem de inefável
O eu-poético volta à física e às explicações da origem. Segundo alguns físicos, dentre
eles, Gamow, os vários elementos químicos devem ter se originado após o big-bang, a partir
da densidade da matéria e das altas temperaturas, pela organização de prótons e nêutrons,
formando novos elementos. Mario Schenberg trabalhou com Gamow, conforme relata Roland
Campos:
O físico brasileiro Mario Schenberg chegou a trabalhar com Gamow no
início dos anos de 1940. Certo mecanismo nuclear que estudaram alude ao
Cassino da Urca, pela analogia entre as vorazes e velozes perdas, no jogo e
no referido processo, onde neutrinos levam embora uma grande quantidade
de energia (Gamow e Schenberg, 1940). O efeito Urca tem aplicação nas
explosões de supernovas, geradas pelo esgotamento do combustível nucelar
em estrelas muito densas (Gamow e Schenberg, 1941). (CAMPOS, R.,
2003, p.70).
A citação acima, explica, portanto, o processo descrito pelo poeta de AMMR nas
estrofes 129, 130 e 131 e abre algumas vias para a compreensão da comparação feita pelo eu-
poético entre o processo “urca”, que leva à morte (explosões supernovas ou perda dos
recursos financeiros na mesa de jogo, que é impossível o domínio do acaso) e a visão da
FACE divina pelos anjos, mortos pelo deslumbre.
A menção a Mario Schenberg é, sem dúvida, fruto da admiração que Haroldo de
Campos devotava ao físico, para quem poesia e física andam unidas, pelo ritmo, conforme o
poeta paulista escreve em sua homenagem e que esta pulbicdo em Educação dos cinco
sentidos (1985, p.104):
HIERÓGLIFO PARA MÁRIO SCHENBERG
o olhar transfinito de Mário
nos ensina
a ponderar melhor a indecifrada
equação cósmica
cinzazul
semicerrando verdes
esse olhar
nos incita a tomar o sereno
pulso das coisas
a auscultar
o ritmo micro-
macrológico da matéria
a aceitar
o spavento della matéria (ungaretti)
onde kant viu a cintilante lei das estrelas
projetar-se no céu interno da ética
na estante de mário
física e poesia coexistem
como as asas de um pássaro –
espaço curvo –
colhidas pela têmpera absoluta de volpi
seu marxismo zen
é dialético
e dialógico
e deixa ver que a sabedoria
pode ser tocável como uma planta
que cresce das raízes e deita folhas
e viça
e logo se resolve numa flor de lótus
de onde
- só visível quando nos damos conta –
um bodisatva nos dirige seu olhar transfinito
Sem demorarmo-nos no poema acima, podemos mencionar que as imagens evocam a
harmonia entre o homem e a natureza, típica do budismo. Esse aspecto é reforçado pela
caracterização de Mário como um bodisatva que é, para os budistas, aquele que deseja ser
Buda e, para tanto, ultrapassa todas as limitações, realiza todo o seu potencial. Também surge
no poema a descrição do bonito olhar do físico, iluminado, cinzazul semicerrando verdes, ou,
simplesmente, azulverde como surge em AMMR. Nos dois poemas, o olhar é transfinito ou
seja, vai além do infinito, como se pudesse dele adivinhar os segredos. Um olhar que é capaz
de ver a FACE do desconhecido que a ciência revela. Isso também é inefável deslumbre.
133) deslumbre: é o que se lê num benjamíneo
midrash (se bem recordo) – aquela vez
no templo de palenque onde no ecrínio
134) da rocha penetrada por través
– jacente o maia em posição fetal
de estranhos (quando o túnel todo-fezes
135) de morcego e fuligem no final
do descenso a luz se abre) o contemplar
permite: eu – pela escada parietal
136) voltando ao sol de fora e a respirar
desopresso – já pronto quase tinha
o poema que ofertei ao sábio (o ar
137) tropical afogueado endemoninha
e inspira com seu sopro de ouro – eu via
como um maia – um astrólogo – avizinha-se
138) e na mirada azul do Mario ia
dissolvendo-se e logo um pintor chim
– topázio em flor! a mesma travessia
139) refaz estrelas pondo em céu setíneo
mas um tremor de terra na região
(fraco embora) me fez voltar a mim
140) e imaginar-me em plena escuridão
do túnel onde a lápide do rei
guardava seu segredo – e ao repelão
141) do tremor submetido me aterrei
(pós-fato como em transe): cessa o excurso
e torno agora ao ponto em que parei
A estrofe 133 continuidade ao deslumbramento dos anjos e introduz novos
elementos ao texto. O cerne da estrofe é a palavra midrash. Palavra do hebraico que significa
interpretação ou indagação e que se aplica à atividade hermenêutica desenvolvida em torno da
Bíblia; os midrashistas podem, também, ser compreendidos como aqueles que buscam captar
os jogos de palavras, a elucidação de um texto por meio de outros procurando:
[...] captar os ecos recíprocos dos vocábulos nas Escrituras, desenvolvendo,
assim, uma surpreendente “interpretação dialógica”, no entrejogar
fonossemântico das palavras bíblicas, à busca de “novas fontes de
entendimento” [..] Se é assim, se tudo é citação tecer e entretecer - na
literatura bíblica, então como novos midrashistas leigos, não falta
cabimento aos tradutores e comentadores modernos do Eclesiastes, quando,
com uma visada sincrônico-retrospectiva, comparam o Qohélet [com outros
textos]. (CAMPOS, 2000, p.109, 110).
O eu-poético destaca na estrofe 132 a importância do trabalho interpretativo em
relação dialógica; também o leitor de AMMR deve ser um tanto midashista para dar conta de
perceber os “ecos” “os ruídos de fundo”, o “entrejogar fonossemântico” de todos os autores e
obras evocados no poema haroldiano. Além disso, a lição tradutória de Haroldo de Campos,
acima mencionada, encoraja o leitor a comparar AMMR a outros poemas e obras, sempre com
visada sincrônico-retrospectiva.
A presença da palavra midrash e os inúmeros aportes ao texto bíblico dão ao Canto III
o caráter de reorganizador do discurso do poema, pois indicam que esse texto cifrado,
marcado pela parábola, como se discutiu, requer um trabalho interpretativo que parta do
exercício hermenêutico, que leve à revelação da escritura da tradição pelo poeta e leve à
revelação da escritura do poema pelo leitor.
É claro que esse exercício interpretativo foi considerado diversas vezes neste
trabalho, porém, associá-lo ao trabalho dos midrashistas é orientar-se por um modo de leitura
que visa à decifração, de um lado; de outro, à recriação, uma vez que a leitura dos
midrashistas propunha-se, também, à apreensão dos aspectos estéticos criativos dos textos. A
crítica criativa, mais do que explicar, cria novos significados. De certo modo, o hermetismo
de AMMR pode ser rompido por esse tipo de leitura que se configura não como
“interpretação”, mas como o prazer da palavra: no midrash, a compreensão também está na
própria busca.
Talvez, por isso, pelo prazer da busca, o poeta desloque-se para outra grande
civilização, a Maia, e visite o sarcófago de Pakal, rei maia. O acesso a sua tumba é árduo.
Trata-se de uma escada descendente, levando a um túnel que cheira a fezes de morcego
depois vem a tumba, propriamente dita, com as imagens que simbolizam o mundo dos
mortos: uma árvore, o universo e um pássaro celestial. O importante é ressaltar a descida do
eu-poético à tumba do rei, sua passagem: no final do descenso à luz se abre; o túnel que leva à
luz é o nascimento.
O tom desse trecho ecoa um certo Huidobro e lembra algumas passagens do Guesa e
das Harpas Selvagens de Sousândrade, notadamente a viagem pela América e a alusão ao
topázio em flor, presente também em Sousândrade: rascunho para uma urna de Xadrez de
Estrelas:
signição
de signos
hino! discorde
harpiscórdio
topazion-flor!
sinos
desacordes
sina
inciso
sinal
Sugerindo travessia semelhante à travessia do Guesa sousandradino, o poeta,
incansável, não pára de trazer ao seu texto outros pares, outros poetas com quem possa
dialogar, outros espelhos em que sua imagem possa estar refletida. O fragmento acima,
marcado pela sibilação, ecoa em dissolvendo-se, travessia, refaz, estrelas, céu setíneo, fez,
escuridão, segredo, submetido, cessa, excurso. Nesse trecho de AMMR, a sibilação mescla-se
ao tremor de terra, típico do México, e atua como sina, inciso, sinal. Topázio em flor é o Sol
a quem Mario Schenberg dirige o olhar, e leva o eu-poético a fazer o mesmo, para que receba
o influxo divino: voltando ao sol de fora (PÉCORA, 2005, p.106).
No Canto III, Mario Schenberg guia o eu-poético e faz as vezes de Beatriz; mostra o
caminho correto não o da religião e talvez não o da ciência, mas o caminho do constante
inquirir, que é, afinal de contas, a força espiral-movente da travessia do eu-poético em
AMMR. Subitamente, um tremor de terra, o repelão do tremor, trará o eu-poético à realidade e
o ar tropical que inspira com seu sopro de ouro será substituído pelo medo do tremor, por
imaginária que seja a possibilidade de o eu-poético estar na tumba do rei.
O tímido tremer da terra, (fraco embora) é, portanto, para o eu-poético, muito mais do
que um terremoto, mas um movimento sísmico intenso vindo do âmago da terra, ou do
poema, ou de si próprioque o fará parar; é chegada a hora de pôr termo ao maquinar, faz-se
tarde no tempo terráqueo do poeta e estudo demais entristece a carne, como se pode ler em
Qohélet.
De fato, a partir da estrofe 141, acentua-se o caráter de ritual iniciático empreendido
pelo eu-poético. Depois de deslumbrar-se com o cânone e depois de investigar os dilemas da
física, ou seja, depois de ter experimentado as experiências alheias, fazendo-as também dele,
em ritual sincrônico e antropofágico, o eu-poético atinge um estágio de conhecimento
(místico, poético, científico) que o aproxima da revelação: desce ao túnel e depois vem à luz.
As mais diferentes culturas usam essa simbologia para representar a passagem, a travessia, a
transcendência. Pode-se retomar aqui, mais uma vez, o sentido do aleph borgiano, que o poeta
hiper-reconstrói, a partir de múltiplas referências. Talvez não seja tanto o conto borgiano que
venha à tona a todo o momento, mas o “aleph”, a letra fundadora, dona de um poder cósmico.
Para a cabala hebraica, as explicações cosmogônicas podem ser estruturadas a partir
das letras do alfabeto
77
. No caso do aleph, a ponta para cima indica a sabedoria e a ponta para
baixo a mãe que amamenta o filho; ou ainda, a parte superior, o começo, a sabedoria; e a parte
inferior, a ciência, filha do intelecto, fim da evolução o aleph é a origem e o fim de toda
vida superior, é o caminho para a transcendência, ou, em termos rosianos, para o infinito, para
o vazio quântico – nonada, que aqui pode ser entendido como o espaço-tempo em que este eu-
poético de AMMR encontra-se com o que viveu antes
78
e, paradoxalmente, vive o vivido como
novidade.
Como os heróis do romance grego antigo, o destino do eu-poético é regido pelo acaso
e pela busca de aventura, a busca do novo – Týkhe philókainos; como Odisséia, o percurso de
AMMR é a síntese da personae do poeta, o poeta e sua busca coincidem.
A busca do eu-poético haroldiano assemelha-se muito àquela empreendida pelos
heróis dos romances antigos de viagem, derivados da Odisséia: “ é porque o traço principal da
personagem [do romance antigo] é sua curiosidade que ele, de certo modo se recolhe para se
entregar plenamente à tarefa de testemunhar paradóxa, isto é, coisas ou fatos extraordinários”.
(BRANDÃO, 2005, p.234).
O recolhimento do poeta de AMMR aproxima ainda mais sua jornada de um ritual
iniciático: é a em uma instância maior do que si mesmo, o verbo, a palavra, que
desencadeia a evocação de Abraão (o aventureiro), e do denso discurso bíblico, em especial
do Gênesis. Essa aproximação, além de desencadear uma tensão, dada a agnose do poeta,
77
Cf. CHEVALIER, GHEERBRANT (op.cit.).
78
“Vivo no infinito [...] creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João
Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para essas duas vidas um léxico apenas não me é
suficiente” (ROSA, entrevista a Lorenz, op. cit.)
explicitamente declarada, também demonstra que não apenas a palavra como representação
(mimese) importa, mas a palavra como criação ( poiésis) primeira; o discurso do eu-poético
reflete a postura haroldiana:
A idéia de estudar um idioma semítico responde, no meu caso, a uma
concepção de poesia que tem, na curiosidade permanente, um constante
motor de instigação, e na operação tradutora, um dispositivo privilegiado de
“nutrição do impulso” Estudar uma língua nova é estudar uma nova poesia
enquanto fazer diferenciado. Estudar o hebraico significou, ademais,
começar pelo começo: pela poesia bíblica e, nesta, pelo Gênese
(Bere’shith). (CAMPOS, 2000, p.17, grifo meu)
Depois de encerrar a glosa dos dois primeiros cantos, a experiência extraordinária irá
se acentuar, porque o poeta segue do ponto em que parou, sozinho e numa tentativa de
encontrar, de fato, a origem: cada “personagem” da tradição, visitado em sua jornada,
encontrou suas respostas nele, no eu-poético, a tormenta da dúvida persiste. Não desce ao
Inferno dantesco, mas sozinho, ao sarcófago de Pakal; não vislumbra o Paraíso de Dante, mas
guiado por Mario, o guia de sua escolha, deslumbra o céu setíneo de estrelas. A travessia do
eu-poético assumirá ares ainda mais transcendentes pela figuração de outros elementos da
cabala hebraica; não foi por acaso, portanto, o surgimento do midrash.
142) nem ao antes pré-antes o percurso
nem a névoa que o após-do-fim esfria
me conduziu: estou qual no ante-curso
143) na véspera de entrar na estreita via
do meu desígnio estava – duas panteras
aquela mais leopardo esta (eu diria)
144) mais lince em salto elíptico – duas feras
na ponta do ultrafim e na do início
aquém-do-início as duas estatelam-se
145) retidas no ar bordando o precipício
da dúvida que nem sequer a dúbia
pergunta sabe pôr como exercício
O eu-poético está no vazio quântico; nem antes do antes, nem depois do depois, mas
no men de um caminho que não pode conduzi-lo nem início nem ao final, posto que ambos
estão unidos, delineando uma elipse: a ponta do ultrafim e na do início/ aquém do início.
Perfazendo o movimento elíptico, duas feras, um leopardo e um lince estatelam-se; entretanto,
retêm-se no ar bordando o precipício da dúvida. Segundo Pécora, o lince representa “a vista
arguta que visa a penetrar enigmas ainda mais altos” (PÉCORA, In: MOTTA, 2005, p.106).
Talvez pudéssemos dizer que não necessariamente mais altos, porém, mais profundos, porque
farão referência ao eu-poético, aliás, o próprio lince metaforiza a visão de longo alcance do
poeta, direcionada ao passado e ao futuro, a todas as áreas do conhecimento tudo é presa
prestes a ser antropofagicamente devorada.
A outra fera, o leopardo, surge em mais de um poema de Haroldo de Campos; um,
entretanto, que parece evocar, sutilmente, alguns dos elementos levantados ao longo desta
análise:
um
leopardo
um
leopedra
um
cactus-leão
comendo
pedra
O leopardo de AMMR pode ser lido a partir do poema acima, uma vez que se está
admitindo aqui que, a todo instante, o eu-poético retoma obras anteriores de Haroldo de
Campos. Assim, o leopardo é a imagem condensada do leão e da pedra um leão devorador
de pedra: esta, a própria poesia; e o leão, nesse contexto, pode ser o poeta
79
. A associação
entre leão e leopardo no poema é inevitável, não apenas pela aproximação ortográfica,
semântica, fonética, mas porque tal associação revela não apenas o caráter solar, de força e
pulsão criativa do leão, como o aspecto lunar, caçador e ativo do leopardo, marcadamente
79
O poeta Haroldo de Campos nasceu sob o signo de Leão, segundo a Astrologia. É claro que não se pode fazer
aqui uma avaliação astrológica do significado do leão para o poema, mas é preciso, sim, considerar, que o leão
pode significar para Haroldo de Campos muito mais do que conseguimos apreender.
voltado para a intelectualidade
80
. Portanto, essa imagem condensada do leopardo, cactus- leão,
que tem o sertão entreverado em si, ao surgir em AMMR, leva-nos a pensar na ambigüidade
das indagações do poeta voltadas tanto para a ciência quanto para a religiosidade.
Como aponta Gatto (1998), tais informações que se sobrepõem e sobrepõem signos
que se condensam e se dilatam, configurando metonímias que se entrelaçam, além de
metáforas, antíteses, paronomásias que se correlacionam, configuram a anamorfose barroca.
Mais uma vez pinceladas barrocas tingem de ambigüidade o texto haroldiano. Na anamorfose
predomina a instabilidade, a indecidibilidade, as probabilidades ou, se quisermos, o vazio
quântico que é o topos propício à proliferação dos sentidos. A anamorfose é o espaço da
dúvida que nem sequer a pergunta sabe pôr em exercício; como dúvida, tem em potência a
resposta, mais perguntas ou a intensificação da própria dúvida:
Anamorfose
[...]
sem dúvida
sombra
na sombra
dúvida
na dúvida
sem sombra
hora de dúvida
fora de sombra
[...]
O poema acima, publicado em Xadrez de Estrelas, reforça a idéia dos últimos versos
da estrofe 145 e prepara o leitor para a seqüência de interrogações que virá até o final do
poema.
146) do mero perguntar – tudo se turva!
é um zero nitescente no seu zênit?
na roda sefirótica é o que ofusca
80
A esse respeito cf. CHEVALIER & GHEERBRANT
147) sol-central a gloriar-se da perene
(kéter – áurea coroa) luz que o cinge?
ou é o bereshit – o primo gene –
148) imbuído em elohim e que se ex-tringe
manifesto e emanado? me enceguece
a ascese dessa agnose que me tinge
149) a razão de uma cor que entenebrece
um plúmbeo-fosco uma não-cor expulsa
do espectro em desespero de íris: desce
Nada parece solucionar a agnose do poeta, que pode ser aplicada tanto à religiosidade
quanto à ciência, que nenhuma das duas instâncias conseguiu resolver o turbilhão de
dúvidas que acabam por se tornar mero perguntar; não mais perguntas a fazer sem repetir
os mesmos questionamentos. Assim é que o poeta, preenchido do nada ou vazio quântico,
como se disse, o zero (que tem uma forma elíptica afinal) resplandecer no seu zênit ou
ainda, a refração entre o nadir, ponto que está mais profundo, abaixo dos pés do
observador da esfera celeste, e o zênite, ponto mais alto dessa esfera, situado sobre a cabeça
desse mesmo observador: nadir e zênite, inferno e céu “o primeiro metáfora retrocessiva do
segundo” (LOMBARDI in: CAMPOS, H. 1998).
Se no Paraíso explosão de luz, esta pode refletir-se no Inferno, ricocheteando
depois um é reverso do outro, o movimento da luz feito do zero ao zênite é um reflexo,
portanto. O que ofusca é o grande sol-central que aqui pode ser entendido tanto como Deus,
quanto como o Sol, centro do Sistema Solar, ou ainda, o poema. Roda sefirótica refere-se à
máquina do mundo; o termo é um elemento central da cabala hebraica, e surge associado à
árvore. Na árvore sefirótica são vistas várias regiões do universo, bem como a representação
da vida circulante em toda criação. Estende-se do alto para baixo e o sol a ilumina por inteiro
(CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994).
De um lado, a presença da árvore retoma a árvore encontrada no sarcófago de Pakal,
que a esta altura pode ser entendida como antecipação da imagem cabalística da sefirótica; de
outro, a permanência de símbolos cabalísticos merecem que se destaque o que afinal significa
a cabala e por que ela se entrelaça à postura do eu-poético diante do caminho que percorreu.
Cabala quer dizer transmissão e recepção de conhecimentos, simultaneamente. O
termo cabala pressupõe um sujeito diante do objeto que quer apreender e que, ao final dessa
conjugação, o objeto estará integrado ao ser desse sujeito. A árvore sefirótica representa o
Homem Cósmico e a sabedoria, mas, ao mesmo tempo, como símbolo do povo de Israel no
exílio, representa aquele que perdeu sua pátria celeste.
Desamparado, portanto, o eu-poético transforma a árvore (e suas supostas raízes)
numa roda, a máquina do mundo, a máquina do poema, que vagueia pelo éter,
resplandecendo, como apontam os significantes fechados de: ofusca luz; tudo-turva,
nitescente e zênit, que se espelham e abertos de roda – sefirótica; sol central a gloriar-se. De
fato, o zênite nitescente é uma questão central para Haroldo de Campos, desde a década de 50,
revelada nos poemas da série o â mago do ô mega, mencionados no início deste trabalho.
Assim sendo, a questão da origem do universo, tratada nos primeiros poemas constelares
(como foi dito) e em AMMR se reiteram de modo que podemos pensar no zero como “zero
significante” (CAMPOS, 2002, p.70), antecipador, talvez do big-bang em termos de criação
divina, científica e, fundamentalmente, poética.
Na estrofe 148, o poeta cogita ver o primo gene, impregnado do espírito divino,
elohim, que o toca levemente
81
, ou que o oprime, mas sua agnose ascética tinge-lhe a razão de
uma cor que entenebrece; o que era luz e ofuscava, tornou-se plúmbeo fosco, não cor (a
ausência, o nada?), espectro em desespero de íris.
A repetição dos fonemas /e/ e /s/, associados, espelhados ou em eco, transforma-se em
pictograma sonoro, representativo da ex-centricidade do eu-poético que não encontra a
origem, o ponto primeiro, o núcleo ou o centro: se, ex, manifesto, enceguece, entenebrece,
espectro, desespero. Essa paronomásia também assume função ideogramática, icônica, ao
indicar o esfacelamento das perguntas sem respostas, que vão se aglutinar nas estrofes
seguintes, refletindo a pulsão da conhecer por meio da palavra poética, que movimentou
sempre o poeta Haroldo de Campos, cosmonauta das velhas novas formas de pensar o mundo,
por meio de sua poesia, e que movimenta também o eu-poético de AMMR.
150) do sol incinerado a sombra e pulsa
– umbra e penumbra – em jogos de nanquim
sigo o caminho? busco-me na busca?
81
Do latim stringere, que pode significar tanto tocar de leve o ânimo, ferir levemente, ou comprimir, apertar.
151) finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim?
152) para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo do outrosssim
e do outro não discuto o anjo e o sexo?
As imagens da estrofe 149 atuam como ideogramas sintetizadores do estado de alma
do eu-poético: cor que entenebrece, plúmbeo-fosco, espectro em desespero de íris. Tais
ideogramas desenham-se em jogos de nanquim. Os hipérbatos continuam a perturbar a ordem,
porém, mais importante do isso, é perceber que o plano de expressão parece caligrafar, na
síntese ideogramática dos pictogramas sonoros, um triste haicai:
jogos de nanquim
do sol incinerado a
sombra desce e pulsa
À beira do indecidível e do inominável o poeta hesita e diz o que a nosso ver resume
magistralmente a tônica do poema: sigo o caminho? busco-me na busca? Era isso então, o
tempo todo? O que sugerimos ao longo da análise parece ser confirmado pela indagação:
busco-me na busca? O eu-poético surpreender-se, então, ao descobrir que o que talvez
estivesse buscando fosse a si próprio, ou ainda, a matriz de sua escritura: remiro-me no
espelho do perplexo? recolho-me por dentro? vou de mim? Da mesma maneira que o herói do
romance grego antigo, o poeta recolhe-se e, simultaneamente, sai de si para vivenciar a
experiência extraordinária da aventura a que se dispôs, navegando o mar da tradição e da
novidade com a poesia barco a rasgar galáxias ou com a poesia espaçonave, que singra
oceanos de inventividade e ancestralidade extremas.
Vale observar a ressonância, ou rumor dos pronomes oblíquos me e mim em:
nanquim, caminho, finjo, sim, remiro-me, recolho-me, mim, outrossim, que sugerem a
dissolução do eu-poético ao longo do caminho percorrido, pois se misturou a Dante, Camões,
Drummond, Rosa, Homero, Borges, Calvino, Mallarmé, Cabral, Newton, Einstein, Mario
Schenberg, Maxwell, Abraão, Midrashistas. Enfim, dissolveu-se como se tivesse se misturado
definitivamente à historicidade e poeticidade construídas no texto e, nesse ponto, deve-se
sublinhar, mais uma vez e insistentemente, que o eu-poético e sua busca estão amalgamados
ao poeta Haroldo de Campos e ao seu processo criativo em AMMR.
A dissolução aqui está sendo entendida no sentido químico. Por exemplo, ao dissolver
açúcar em água, em quantidades corretas, sem exageros de uma ou outra substância, tem-se
uma solução doce. Depois de feita a solução, engendrada pela dissolução do açúcar em água,
não mais retorno a água será doce permanentemente, pois não reversão nos processos
entrópicos, ou seja, se houvesse necessidade de retirar o açúcar da água, seriam necessárias
novas substâncias, e, portanto, novos processos entrópicos. Dessa forma, o eu-poético
misturou-se à matéria da poesia presente em AMMR de modo que a escritura visitada passa a
ser a própria escritura sincrônica do poema e reflete as escolhas criativas de Haroldo de
Campos.
O ecoar do me e do mim, compreendido como ruído de fundo, também sugere um
outro tipo de transformação, a fusão. Cientificamente, a fusão faz referência à passagem de
uma substância em estado sólido para o estado líquido, pela ação do calor; nesse caso,
poderíamos dizer que o eu-poético, ao resgatar a tradição, cristalizada pelos anos, “aquece-as”
e as liquidifica. Em estado líquido, pode misturar-se a ela, dando origem a uma nova
substância esta é outra maneira de ver a poética sincrônica, ao resgatar a tradição em seu
texto, Haroldo de Campos, reaquece-a e a coloca em condições de misturar-se à novidade.
Uma outra forma de fusão é a nuclear, em que os núcleos de substâncias leves reagem
para formar outro mais pesado, com grande desprendimento de energia, processo que ocorre,
por exemplo, nas estrelas. Do ponto de vista de AMMR, talvez esse seja o aspecto mais
interessante: elementos nucelares da escritura haroldiana fundem-se a elementos nucleares da
tradição (selecionados por Haroldo de Campos, como paideuma) e dão origem a uma nova
matéria poética, que libera muita energia – como as estrelas.
As estrelas de AMMR aglomeram-se em constelações poéticas que são fruto, portanto,
das escolhas que o poeta faz e do modo como as incorpora em seu próprio paideuma, para
repensar a máquina do mundo que é a máquina do poema. Em qualquer uma das analogias
feitas, Haroldo de Campos cria seus precursores, por isso, o resultado da dissolução ou da
fusão caracteriza-se pelas idiossincrasias de mão dupla que surgem resplandecentes em sua
máquina: as suas e as de seus precursores.
As considerações acima parecem resolver alguns aspectos da leitura do poema, mas as
indagações do eu-poético extrapolam-nas, posto que prosseguem na estrofe 152. O fato é que
ao supor que se busca na busca e que se recolhe e se remira diante do espelho, o eu-poético
dá-se conta de que sua epopéia equivale à construção do poema vou de mim/ para fora de
mim tacteando o nexo é procurar, na imensa biblioteca da tradição mencionada, as
conexões entre si e tudo o que o espelha e espelha a sua palavra poética. Mas a busca também
era, não nos esqueçamos, uma tentativa de encontrar a origem para perceber que esse
encontro não se justifica, não se coloca como factível: observo o paradoxo do outrossim/ e do
outronão discuto o anjo e o sexo?
outra questão crucial configurada pelos questionamentos do eu-poético: se ele se
busca na busca e se a busca é, ao mesmo tempo, voltar-se ao passado e tentar, por meio das
teorias físicas, apreender o futuro, sua luta é contra o tempo, como se um paradoxal agora,
denso o suficiente para reunir tanto passado quanto futuro, impedisse o direcionamento da
flecha do tempo: o paradoxal agora pode ser um, o poema, A Máquina do Mundo
Repensada.
Como aponta Roland Campos (2003, p. 104), no poema AMMR, o oxímoro existente
entre forma poética antiga (terza rima) e terminologia cosmológica contemporânea resolve o
paradoxo do tempo. Esse oxímoro estrutura-se a partir da perspectiva sincrônica de
abordagem da história literária, estendida à abordagem da física e se transforma em
experiência extraordinária, possível no claro enigma da poética em ação operante no texto,
desconstrutora da linearidade temporal.
Ao duplicar a focalização das verdades religiosas e científicas, por meio do discurso
elíptico e barroco do eu-poético, Haroldo de Campos rompe com a totalização do tempo, da
religião, da ciência, determinando a ex-centricidade desse mesmo eu-poético e de sua palavra
épica diante da tradição; é porque sai de si que ele pode ver-se revelado nas inúmeras
“subdivisões prismáticas” dos temas apresentados, como se estes, ao desenvolverem sua
órbita elíptica em torno da linguagem do poema, formassem um caleidoscópio a partir dos
significantes. Vale aqui o que Derrida diz sobre a linguagem:
Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinidade de
um campo não pode ser mais coberta por um olhar ou um discurso finitos,
mas porque a natureza do campo a saber, a linguagem e uma linguagem
finita exclui a totalização: este campo é, com efeito, o de um jogo, isto é, de
substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito. Este campo
permite estas substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez
de ser demasiado grande, lhe falta algo, a saber, um centro que detenha e
fundamente o jogo das substituições [...] este movimento do jogo, permitido
pela falta, pela ausência de centro ou de origem, é o movimento da
suplementaridade. Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização
porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na
sua ausência, esse signo acrescenta-se, esse signo vem a mais, como
suplemento. (DERRIDA, 2002, p. 244,245; negrito meu, itálico do autor).
Substituindo o centro indefinidamente, revelando e velando, cada um dos focos da
elipse por meio da linguagem, o poeta faz com que, em AMMR, o barroco seja mais do que
um estilo de época para se tornar um método de escrita
82
em que são enfatizadas,
sobremaneira, a função poética e a metalingüística, dominantes e determinantes da construção
do poema. Diz Haroldo de Campos:
[No Barroco impera] a auto-reflexividade do texto e a autotematização
inter-e-intratextual do código ( [...] citação, paráfrase e tradução como
mecanismos plagiotrópicos de dialogismo literário e desfrute retórico de
estilemas codificados). Não cabe o Barroco, “estética da superabundância e
do desperdício”, como definiu Severo Sarduy [...] servir de veículo a uma
informação a linguagem barroca se compraz no suplemento, na demasia e
na perda parcial de seu objeto. (CAMPOS, H. 1989, p.33).
Se perda parcial do objeto, o qual, no caso de AMMR, é a compreensão da
alegoria da quina do mundo e sua transformação em máquina do poema, posto que este
equivale ao universo, é natural que as perguntas não se esgotem; haverá sempre algo
infinitamente perdido no espaço finito do poema, pois o acaso, subitamente, impõe-se. Entre o
zero e o zênite, em sua relação especular, não há identidade, mas diferença, não há origem, só
rasuras. Conforme repensa a máquina do poema (do mundo), o poeta mostra que a busca de
sua origem e de sua palavra não existem tanto quanto não existe uma origem definida para a
nossa literatura, sua matriz primeira:
Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não teve infância (in-fans, o
que não fala). Não teve origem “simples. Nunca foi in-forme. nasce
adulta, “formada”, no plano dos valores estéticos, falando o código mais
elaborado da época. Nele, no movimento de seus “signos em rotação”,
inscreveu-se desde logo, singularizando-se como diferença. O “movimento
da diferença” (Derrida) produz-se desde sempre: produz-se desde sempre:
não depende da “encarnação datada de um LOGOS auroral, que decida da
questão da origem como um sol num sistema heliocêntrico [...] Nossa
82
Cf. a interessante discussão do barroco na obra de Haroldo de Campos feita por GATTO, S.M.G.
Barroquização do signo: universo entrópico de Haroldo de Campos e a obra constelar. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica. Dissertação de Mestrado, 1996.
“origem”literária, portanto, não foi pontual, nem “simples” (numa acepção
organicista, genético-embrionária). Foi “vertiginosa” [...]. (CAMPOS, H.,
op. cit, p. 64).
Mais de uma vez foi comentado o caráter abissal do poema haroldiano ora analisado;
abismo este coincidente com o caráter vertiginoso que Haroldo de Campos atribui a nossa
própria literatura. É inevitável que ao chegar ao final do Canto III, a busca do poeta pela
origem do universo amalgame-se mais ainda à busca da origem da palavra poética original (e
isso reforça a evocação da bíblia, “no princípio era o verbo”) da nossa própria literatura vista
aqui como o sertão que se entrevera no poeta, como espaço infinito, vazio quântico, carregado
de potencialidades, nonada. Sertão equivalente ao universo, resumido na coda:
153. O nexo o nexo o nexo o nex
Como um enigma, este último verso assinala a rasura na origem e a indefinição, ao
mesmo tempo, seu final impulsiona a leitura para o início, como tentativa de completar-lhe
o sentido. Em latim nex é fim, morte violenta, interrupção súbita; nexus, que originou nexo,
em português e significa atadura, forte laço, elo de ligação, conexão – entre o que rompe e o
que conecta, situa-se o jogo empreendido pelo eu-poético no poema tabuleiro. Ao leitor
cabe o preenchimento dos significados, não pela necessidade da interpretação, mas pelo
prazer que o jogo poético do texto propicia; o prazer da palavra, a escrita justa, nada mais é
importante quando o que se busca, é a busca.
Antes de concluir a análise é preciso dar voz a algumas explicações para a
enigmática coda. Vejamos: para Roland de Azeredo Campos, o último verso significa:
Conforme se vê, é justamente o arremate que injeta o imprevisto, a surpresa
na regularidade anterior, desenhando uma ruptura imediata, resolutamente
icônica. O artigo o [...] evapora-se no final. E este “o” admite ser lido
alternativamente como “zero”, ou visto ainda como um pequeno círculo, a
sugerir um recomeço. estão expostas as opções terminais para o cosmos:
a expansão indefinida com o falecimento por dispersão, ou então o vaivém
cíclico das multividas e multimortes, em permutas sucessivas e conexas.
Resolve-se então, na recorrência do “fininício”, o conflito aparente entre o
velho e o novo nos horizontes do universo e da linguagem - , que se
reconciliam, por derradeiro. “Nexo radiocaptado”. (CAMPOS, R. 2003,
p.105).
Segundo o físico Roland Campos, “o nexo /nex o O” é o ruído de fundo da conexão
estabelecida ao longo de todo o poema entre o velho e o novo, para fazer a novidade
emergir da ancestralidade; o movimento sugerido pelo último verso espelha o processo de
nascemorre estelar e dispara o estopim da probabilidade da existência de uma grande
explosão, que é aguardada pela interrupção do verso. A coda é, então, o big-bang em
potência. Sobre seu próprio poema, diz Haroldo de Campos:
Parodiando Guimarães Rosa [...], o efeito grafemático do O (em maiúscula
e negrito) que inicia a incompleta (uma linha), “terzina” terminal,
recolhendo em modo retroativo o ‘o’ final, reiteradamente rasurado, da
palavra “nexo” (o nexo o nexo o nex), se superpõe, em meu percurso
textual, ao “Zero ao zênit/ nitescendo/ ex-nihilo” do poema final do ciclo
“O â mago do ô mega”, impresso em branco estelar sobre fundo negro
noturno, antecipatório do “zero significante” [que resume] o conceito
sânscrito-búdico de sunyata (vazio pleno). (CAMPOS, 2002, p. 69, 70).
O zero significante haroldiano é rosiano. Em Grande Sertão Veredas, Pedro Xisto nota
o O como referência ao diabo, o fim do fim, a negação absoluta, o máximo de significado
vinculado a um mínimo significante:
E neste sinal, que se fecha em si próprio, encerra-se uma atmosfera
rarefeita de denotações e conotações. Na simplicidade total e totalizadora
deste O ( o nada de “letrismo”) a concentração específica e suprema da
Poesia (Dichtung), a tragédia irremissível, o “círculo”derradeiro, no fundo,
no profundo, do vórtice infernal, o centro grave da terra [...].
E, aí, sob o peso de todo o Bem integrado pela Justiça, o Imperador do
Mal, preso em si mesmo. Veja-se ainda: Esse O pode ser simbólico: uma
letra, algebricamente; ou um zero. Pode ser alegórico: o último círculo do
Inferno dantesco; ou o círculo central, imóvel de Plotino [...]. Mas “o O”
vale só por si, como letra-palavra. Apresenta (e não apenas representa) algo,
quando sua presença demarca fazendo com que, reciprocamente, se
excluam o nominável e o inominável. Um ponto o O por onde a
Poesia, superando, igualmente, a tentação do inefável e a do nefando, cede
lugar ao silêncio que paira sobre os abismos [ para muitas coisas faltam
nomes].
A poesia, além do mais, é uma lição de humildade. Ou melhor, de tranqüila
coragem. Para o fim.
No fim, o herói luta consigo mesmo – a quem descobre e clama. O épico da
grande aventura humana. O homem dantesco que, em si, cruza o tempo e o
espaço, a criação e o destino, a vida e a poesia.
O verdadeiro poeta revela-se quando revela. Ele não joga nenhum véu sobre
a realidade. Ele não precisa disto, que lhe assiste a co-realidade poética.
(XISTO, in COUTINHO, 1983, p. 133).
A longa citação de Pedro Xisto deixa-nos sem fala, no nada, pois, ao que parece, ele já
disse tudo o que poderia ser dito sobre “o O” e quando um poeta fala de outro poeta, a poesia
eleva-se ao quadrado, resta ao crítico a reflexão silenciosa.. Sim, mas além do O, o nexo.
O herói de AMMR luta consigo mesmo, mas luta pela manutenção da sua viagem, não é o fim
do fim que encerra o poema, mas a possibilidade de que AMMR seja apenas a penúltima
viagem do eu-poético, que não descobriu suas respostas, ou que não se satisfez com as
respostas encontradas, porque para ele, assim como para Haroldo de Campos, a poesia é sem-
limites, é ilimitada pela urgência de ultrapassar o signo. Para um eu-poético viajor e
cosmonauta, movido pela curiosidade e pelo desejo de aventura, cada viagem é, no máximo, a
penúltima:
Penúltima
- é o máximo a que se aspira
tua penúria de última
Tule. Um postal do Éden
com isso te contentas.
Açuladas sirenes
cortam teu coração cotidiano.
(Sobre finismundo a última viagem)
O “O”, vazio e significante é apenas uma etapa na travessia do eu-poético de AMMR,
pois ele é movido pelo desejo fáustico do saber; é seduzido pelos mais profundos enigmas
relativos à origem, como Édipo – daí talvez sua tragicidade, revelada, em especial nos últimos
versos, feitos de perguntas sem respostas; busca a compreensão da sua existência [que é a
existência da palavra poética do poema, posto equivalerem-se] na permanência das palavras
da tradição. Para o eu-poético, as palavras, sejam proferidas pelos homens da fé, da ciência ou
pelos poetas, são o SOL que ele mesmo centra e descentra em sua busca incessante que se
basta a si mesma (e a ele).
Como objeto circulante nesse O, a palavra do eu-poético se transforma em nexO. O
último verso do poema é a última etapa do labirinto a que o leitor tem acesso; ao chegar à
coda, o leitor (des)cobre-se e retira de si as amarras que uma leitura canônica da poesia
poderia impor não referência absoluta para ler o poema de Haroldo de Campos,
multíplices são os caminhos que conduzem aos nexos ou ao nex do poema, isso porque o
derradeiro verso faz perceber que todo o fio de Ariadne que se acreditava ter percorrido era
fio de Ariacne. Numa belíssima teia, de fazer inveja aos deuses, o discurso-canto do eu-
poético enreda o leitor, porque este, como parceiro de jogo, assume também a postura
sincrônico-antropofágica do poeta. Lançando assim os seus dados, como um devorador
crítico, o leitor terá chance de enfrentar o Minotauro, ou quiçá, uma grande aranha de
tentáculos de cristal que pode estar esperando no nex, no fim do caminho, na Praça do
Rosário, talvez, quem sabe.
Mas não necessidade desse enfrentamento, não importa descobrir o caminho,
importa menos enfrentar as feras, elas são os óbices do poeta; não cabe ao leitor descer ao
Inferno, nem ascender ao Paraíso; a antropofagia apreendida ao longo da leitura sincrônica
serve para suprir de historicidade e de poeticidade a postura midrashista que este leitor urge
assumir diante da máquina do poema que se abre: rosa, alcachofra, O. Apoteótico, o último
verso é obscuro e parece estabelecer uma ruptura com as metáforas luminosas apresentadas
ao longo do poema: falta fulgor; como um fogo fátuo, evapora-se o “O”, disse Roland
Campos. Mas é na volatilidade do O evaporado que os rastros de noigandres exalam seu
perfume de flor, cujo olor afasta o tédio. Cabe, então, um repensar dos questionamentos e da
tragicidade apontada acima. Sim, tragicidade no eu-poético, mas, além dela, perceptível
em um primeiro nível de leitura, uma ironia profunda (discuto o anjo e o sexo?)
percorrendo todo o texto. O prazer deste eu-poético midrashista não está na resposta e sim no
perguntar daquele que ao saber porém se entrega. Como barroco que é, pela ironia e pelo
lúdico encanta-se, dá-se a chance do acontecimento extraordinário.
Não há, para Haroldo de Campos, uma fonte primeira de inspiração, a origem da
origem. O poema mostra, desde os versos iniciais, que predominam, nele e na obra haroldiana
que ele espelha, um jogo de différance e um movimento sincrônico, suplementar. O nex pode
ser entendido, então, como a iconização da sincronia haroldiana: ao mesmo tempo, a
imperfeição elíptica, o impulso para que o sentido seja sempre preenchido e,
conseqüentemente, o retorno, a volta. O nex é a poesia à espera que seu sentido seja
completado e a redução da entropia, porque o nexo fica reduzido ao nex; se é redução da
entropia, equivale ao inesperado.
Labiríntico, o nexo convertido em nex mostra que o “O” perfeito e indeformável,
equivalente ao universo, terá de ser continuamente procurado: no próprio verso, se a leitura
voltar ao seu início; no poema, pelos rastros e nexos cósmicos espalhados na matéria
significante, ou nos outros poemas da obra do poeta. Nesse último caso, AMMR é último elo
de uma ocorrente criativa que permanecerá, para além da vanguarda e da terzina, haroldiana,
sempre.
Longe de ler o nex como fim, embora isso seja possível, talvez ele mereça ser lido
como continuidade e simultaneidade. Em resumo: o nex mostra que a sincronia é meio e não
fim para entender o caráter intervalar da obra de Haroldo de Campos, sempre edificada pela
tensão entre o manter a tradição e garantir a inovação, sustentada pela travessia, não pela
chegada ou pela partida. É por compreender a sincronia como o grande orientador de leitura
de AMMR, que lhe serão dedicadas as considerações da terceira parte deste trabalho.
Pode-se dizer que Haroldo de Campos é um poeta herdeiro da modernidade, à
medida que incorpora, em suas atividades de poeta, crítico e tradutor, uma concepção de arte
que nasce em meados do século XIX, embora estivesse em processamento desde os
românticos alemães (e, infinitamente, naqueles que os antecederam) e que culmina em
Mallarmé, o Mestre haroldiano, seu barqueiro, o que o leva a atravessar a ponte da máquina
do tempo; aquela em que um passo em direção ao passado equivale a um outro em direção ao
futuro. A abordagem haroldiana incorpora a necessidade de um re-pensar da história da
literatura, da ciência, da religião, da palavra em termos estético-criativos.
Nesse sentido, ou seja, em termos do re-penar da palavra estética e criativamente,
poder-se-ia dizer que o nex é um fractal. Um fractal é uma estrutura caótica que apresenta
uma organização interna, ou seja, é um sistema que apresenta ordem, embora sugira
desordem; suas perturbações têm um sentido intrínseco e significam. A coda do poema sugere
uma desorganização, uma ruptura e uma desordem na repetição da palavra nexo; por outro
lado, o fato de haver interrupção reforça ainda mais a idéia de que uma organização que
deve ser preenchida pelo leitor.
Por sua recursividade e multidimensionalidade, o nex, que se repete ao longo do
verso, atua como os quanta: sua repetição causa tanto a surpresa quanto a dominação das
probabilidades e, portanto, incerteza. O nex é um fractal porque torna visível uma terceira
dimensão da palavra e do sentido, nem o antes e nem o depois, mas o intervalo que a
interrupção final do verso assegura A densidade do nex é dada não apenas por seu valor
significante no poema, mas por seu significado como elemento que reúne as idéias de resgate
à tradição e impulso à novidade, tensão motriz da palavra poética de Haroldo de Campos.
.
PARTE III
POESIA E SINCRONIA OU O SUPLEMENTO
POESIA E SINCRONIA OU O SUPLEMENTO
III.1 O pensamento de Haroldo de Campos
Os livros nascem, quando a pessoa pensa;
o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras
Guimarães Rosa
83
O objetivo específico desta parte do trabalho é tecer considerações sobre o
pensamento de Haroldo de Campos, situando-o como poeta e, a partir disso, procura-se
mostrar alguns alicerces que sustentam sua atividade de poeta, crítico e tradutor. Para tanto,
discutem-se, de um modo geral, com o intuito de situar Haroldo de Campos dentro de um
modelo de pensamento poético, as relações entre poesia e pensamento, a poesia na
modernidade, sincronia na abordagem da história literária, aspectos da teoria da tradução e
apresentam-se, muito sucintamente, as linhas gerais da poesia concreta.
III.1.1 Poesia e pensamento
83
Entrevista a Günter Lorenz, In: COUTINHO, 1983, p.81 (op. cit.).
A elucidação de alguns aspectos da relação entre poesia e pensamento e a definição
de poesia propriamente dita, considerando a emergência de novas concepções poéticas desde
o final do século XIX e início do século XX, são cruciais para o entendimento da postura
sincrônica adotada pelo poeta Haroldo de Campos, postura esta que permite situá-lo entre os
“herdeiros da modernidade”. Os comentários teóricos a seguir encontram respaldo nos
diálogos elucidados pela leitura do poema e foram feitos com o intuito de formalizar,
sucintamente, as bases do pensamento de Haroldo de Campos.
Defendeu-se na introdução a idéia de que uma diacronia sustentando as escolhas
sincrônicas do poeta Haroldo de Campos; isso ocorre porque o poeta, como foi dito, a
tradição do modo como apresentado em AMMR, condicionado pelas mudanças de concepção
poética da modernidade, que definem seu pensamento e suas atitudes diante da poesia. Assim
sendo, entre a discussão do fazer haroldiano apresentada na Parte II deste trabalho e o pensar
do poeta revelado, em certa medida, pela discussão deste fazer, encontra-se um certo pêndulo
poético, para usar um termo de Valéry, que oscila entre sua poesia e seu pensamento, cujas
bases pretende-se discutir aqui, relacionando-as aos aspectos elencados ao longo da leitura de
AMMR.
III.1.1.2 Poesia e pensamento: movimento pendular
Haroldo de Campos foi um grande poeta; portanto, um grande pensador. O que isso
significa? Nos termos de Paul Valéry
84
(1999, p.193), significa que não se pode separar poesia
e pensamento abstrato; ou seja, implica que o poeta tem uma forma de pensar o mundo e que
é a partir de sua relação com a poesia que podemos tentar definir sua obra. No caso de
Haroldo de Campos, essa forma de pensar o mundo situa a poesia como ponto de partida e
também de chegada. Poesia como porto que abriga os navios criativos, tradutórios e críticos;
poesia como o oceano que obriga o rumo desses navios, seu percurso-pensamento.
84
A primeira publicação de Poesia e Pensamento abstrato é de 1945.
Para Haroldo de Campos, a poesia é o mundo: nele cabem sertões, constelações,
galáxias, máquinas: “o prazer da palavra e a escrita justa”
85
, marcados pela materialidade da
palavra e pela reflexão que resgata a poeticidade ao longo da história, por meio dos diálogos
entre o passado e o presente, sincronicamente articulados, como se discutiu na segunda parte
deste trabalho. Esse aspecto é fundamental para a compreensão do alcance das contribuições
haroldianas como exercício rigoroso de pensamento (poético) presente em todas as atividades
que desenvolveu. Portanto, a discussão sobre a obra de Haroldo de Campos deve ancorar-se
no estabelecimento das relações entre poesia e pensamento e, por conseguinte, no
estabelecimento dos determinantes do pensamento do poeta. Diz Valéry sobre as relações
entre poesia e pensamento:
Freqüentemente opõe-se a idéia de Poesia à de Pensamento e,
principalmente, de “Pensamento Abstrato”. Fala-se em “Poesia e
Pensamento Abstrato” como se fala no Bem e no Mal, Vício e Virtude,
Calor e Frio. [...] Se encontramos profundidade em um poeta, essa
profundidade parece ter uma natureza completamente diferente da de um
filósofo ou de um sábio.[ ] Pois bem, observei com a mesma freqüência
com que trabalhei como poeta que meu trabalho exigia de mim não apenas
aquela presença do universo poético do qual falei, mas também uma
quantidade de reflexões, de decisões, escolhas e de combinações sem as
quais todos os dons possíveis da Musa ou do Acaso continuariam sendo
materiais preciosos em um canteiro de obras sem arquiteto. [...] O poema é
uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras.
(VALÉRY, 1999, p.193, 208, 209).
Se o poema é uma espécie de máquina e o poeta um arquiteto de poemas, é porque
um trabalho construtor responsável pela articulação das palavras marcadas de poeticidade. Ao
longo da leitura do poema AMMR, diversas vezes chamou-se atenção para o fato de o poeta
ser o enxadrista, articulador de jogadas-verso. Ora, a metáfora do xadrez parece ser bem
adequada às operações de racionalização do trabalho poético de Haroldo de Campos, marcado
por certo hermetismo cultista e conceptista, indicado, também, na Parte II. Fazendo uso de um
termo de Affonso Romano Santana (2000), dir-se-ia que o poema de Haroldo de Campos (e
sua obra de um modo geral) vai do quadrado (renascentista) à elipse (barroca), e abre-se,
como a máquina do mundo, ao leitor que se dispuser, também como um pensador, a enfrentar
sua obra.
85
O prazer da palavra e a escrita justa é o nome de artigo de Celso Lafer sobre Haroldo de Campos. Pode ser lido
em Motta, L. T. Céu Acima. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 113. Corresponde também a um verso do
Eclesiastes, na tradução de Haroldo de Campos (2004).
Adauto Novaes (2005, p.9), ao comentar o artigo de Valéry sobre poesia e
pensamento, pontua que a rivalidade entre ambos vem da maneira errônea com que é
interpretada a poesia, como se o fazer poético implicasse, necessariamente, a ruína do
pensamento, e não fosse senão uma forma de interrogar o mundo por meio das palavras, de
sua materialidade: a das palavras que pensam o mundo. O compromisso da poesia não é com
uma verdade absoluta, nem com a verdade específica; não é com a construção lógica do
pensamento por hipóteses, mas é com uma organização outra que faz com que “o pensamento
desconfie do pensamento”, como diz Adauto Novaes (ibid, id.).
A poesia não é a resposta, mas a indagação do poeta diante de sua própria (e frágil)
humanidade. Portanto, a relação entre a poesia e o pensamento não reside na proposição de
idéias por parte dos poetas, mas na apresentação de matrizes (ou matizes?) de idéias, cuja
reconstrução o leitor pode buscar em seu percurso pelo poema. O poema é o lugar por
excelência de encontro entre a poesia e o pensamento
86
e, justamente por isso, “as articulações
entre poesia e pensamento se dão no concreto da própria composição poética”. (BARBOSA,
2000, p.11).
Isso significa que a composição poética revela o desafio da articulação que o
pensamento engendra e faz palavra; mais: palavra poética. Essa instância da palavra não é
aquela dos usos práticos, que para Valéry desfaz-se rapidamente, porque “vive” e exerce sua
função, ao possibilitar compreensão. A palavra poética é aquela que oferece resistência, “que
se vinga” e que não se deixa definir, desafiando o leitor (e seu pensamento) a reconstituir-lhe
o percurso, fazendo, por meio dessa reconstituição, oscilar um pêndulo entre poesia e
pensamento. Essa resistência da palavra poética é intensa em AMMR, que a refacção de seu
percurso exigiu não seguir os rastros deixados por Haroldo de Campos, como também
significou o abandono de muitas veredas, cuja apreensão fugiu da percepção e do pensamento
desta leitora. De qualquer modo, mais do que refletir sobre a recepção da máquina do poema,
vale a reflexão sobre as operações de pensamento que a ela deram “origem”:
[...] Suponham que uma dessas posições extremas representa a forma, as
características sensíveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonações, o
timbre, o movimento em uma palavra, a VOZ em ação. Associem, por
outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado ao primeiro, todos os
valores significativos, as imagens, as idéias; as excitações do sentimento e
86
O poema pode ser compreendido aqui como o lugar, por excelência, da manifestação da poesia; sabemos,
entretanto que, admitindo as funções da linguagem postuladas por Jakobson (as quais serão discutidas mais
adiante, neste capítulo), a poesia não está no poema, mas em qualquer texto (compreendido em amplo
sentido) em que a função poética seja dominante.
da memória, os impulsos virtuais e as formações de compreensão – em uma
palavra tudo o que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso [...]. Entre
a Voz e o Pensamento, entre o Pensamento e a Voz, entre a Presença e a
Ausência, oscila o pêndulo poético (VALÉRY, op. cit.).
Entre um movimento e outro, é possível que a leitura como busca da compreensão
perca alguma coisa, entretanto, a suposição de que a compreensão está na busca (BARBOSA,
1979, p.11) reforça o fato de que o poeta é um pensador, porque é por meio de seu fazer que
pode mediar as articulações entre a poesia e o pensamento; a articulação é, ao mesmo tempo,
um jogo de perguntas e respostas, perguntas sem respostas – a busca em si. Por exemplo: qual
é o lugar do poeta e de sua palavra no mundo? O que engendram os significantes que
deslizam pelo poema em termos de significado? A palavra poética é intransitiva, um fim em si
mesma.
Para explicar a diferença dos usos da linguagem na poesia e na comunicação
corriqueira, Valéry (1999, p.203) estabelece uma comparação entre o andar comum e a dança.
Usa-se para dançar os mesmos músculos, articulações, ossos, pernas, enfim, tudo aquilo que
serve de meio para locomoção; entretanto, a dança possui um efeito diferente, é um fim em si
mesma. Quando se anda de um lugar para outro, este deslocamento tem um objetivo; quando
se dança, o objetivo é a própria dança.
O que mais contundentemente transforma o poeta em pensador é sua capacidade de
debruçar-se sobre a materialidade das palavras para torná-las perguntas cujas respostas são
inapreensíveis na totalidade; são enigmas, assim como as grandes verdades filosóficas,
possivelmente apreendidas apenas na relação que guardam com outras verdades, por isso o
terço acidioso do milênio a esfingir o poeta em AMMR (Canto I, 6). Ao escrever, o poeta põe-
se a criar algo que não estava nominável e esta operação não vem da intuição, mas de uma
rigorosa atividade do pensamento; por conseguinte, não se pode separar poesia e pensamento
como se a primeira surgisse por orientação das musas conforme acreditavam os antigos
gregos.
Desde a seleção das palavras até a organização textual, a poesia configura-se como
operação do pensamento do poeta em busca da arquitetura/arquitextura de sua visão de
mundo, a partir das palavras: forma (manifestação do plano da expressão) que é também
fundo (pensamento), como diz Valéry (apud NOVAES, 20005, p.14), mas de tal forma
amalgamados que não é possível saber se a forma é fundo e articula o pensamento; ou se o
pensamento é forma, articulado pelo plano de expressão: “compreende-se que a forma (ou
deve dar) tanto pensamento quanto fundo” (VALÉRY, apud NOVAES, 2005, p.14).
Retomando: a linguagem é um percurso do pensamento para que nos façamos entender,
e se desfaz após o uso; no poema, entretanto, a linguagem deixa de ser meio e se torna fim
(poema = dança), fundam-se as coisas pelas palavras. Ora, “não é essa também a essência do
pensamento, a de fundar mundos, tornar-se fundamento das coisas e da realidade humana?”
(NOVAES, op. cit., p.14 grifo meu). Se no poema as coisas são fundadas pela palavra; se o
pensamento também é fundante, a linguagem do poema é pensamento.
Quando, por exemplo, o poeta constrói uma metáfora, forma básica de estabelecer um
vínculo entre a linguagem e a realidade, está fazendo uma operação do pensamento. Escolhe
figuras do mundo e as transporta para as palavras. Ou ainda, como diz Adauto Novaes:
[...] é a linguagem que funda a realidade humana e o universo e é nisso que
consiste o enigma e mesmo o paradoxo da poesia: lidar com a realidade e
com o segredo, com o visível e com o invisível do mundo. Os enigmas do
universo são enigmas do nosso espírito. A essência da obra do poeta e da
obra do pensador e, portanto, a mesma: ela é menos a descrição e a análise
do que está diante de nós e mais o olhar daquilo que, na criação, se oculta
de si mesmo [...] Que diferença pode haver, portanto, entre pensamento e
poesia quando pensamento se define pela busca permanente do “jamais
pensado ainda” e poesia por aquilo que Valéry chama de “infinito estético”?
(NOVAES, 2005, p.14, aspas do autor ).
Esse indizível poético, que é dito e fundado pela palavra poética palpável, portanto,
coincidente com o pensamento, não é senão a linguagem como fundo (pensamento) e forma
(forma poética, fôrma), como se essas duas instâncias pudessem ser amalgamadas e a
manifestação da expressão se tornasse, “conteúdo manifesto”, não apenas forma, mas forma-
fundo, ao mesmo tempo que o fundo (conteúdo, pensamento) é, ele mesmo, forma-fôrma. Em
cada poema prevalece, dessa maneira, a relação poesia e pensamento; ou como diz João
Alexandre Barbosa referindo-se especificamente à Máquina do Mundo Repensada, poesia e
pensamento concreto. (BARBOSA, 2000, p.9-12). O pensamento concreto e a poesia são o
“infinito estético”, o “jamais pensado ainda”, o nada mallarmeano, o zero zênit haroldiano – o
próprio nex e sua carga de infinitude discutida na Parte II deste trabalho.
Há, entretanto, poemas que se propõem a tratar especificamente dessa relação, ou
ainda, da relação entre poesia e pensamento filosófico, como uma forma mesmo de
teorização, ou reflexão sistemática, por meio do próprio espaço do texto poético - desenho
gráfico do poema. É o caso de Aisthesis, Kharis: Iki – koan (glosa para Benedito Nunes), de
Haroldo de Campos e que está no livro A Educação dos Cinco Sentidos:
se heidegger tivesse olhado
para o ideograma
enquanto escutava o discípulo
japonês
(como Pound olhou para ming ( ) sollua
com o olho cubista de gaudier-brzesca
depois de dar ouvido a fenollosa)
teria visto a cerejeira cereja koto ba ( )
das ding dingt
florchameja
no espaço indecidível
da palavra
i k i
Benedito Nunes (2005, p.107-112)
87
, a quem o poema foi dedicado, discute exatamente
a preocupação do poeta com o tema poesia e pensamento. O poema trata do diálogo
estabelecido por Heidegger e o professor Tezuka, da Universidade Imperial de Tóquio, por
ocasião da visita deste último ao filósofo, na década de 1950. Ironicamente, o poema ressalta
que o famoso filósofo, preocupado em ouvir, como atitude tomada relativamente ao dizer da
linguagem, deixou de ver o que lhe mostrava, ideogramaticamente, o discípulo japonês; por
isso, não percebeu que a Graça, iki, em japonês (equivalente ao grego kharis), está justamente
no olhar para a palavra como materialização do pensamento. Por esse deslize, o filósofo não
viu que a cerejeira cereja em koto ba, palavra japonesa que designa a linguagem e que
significa pétalas de flores surgidas do exultante esplendor da graça, iki. Em koto ba, a
linguagem da arte é independente da Estética, que nos deu, para designar a mesma coisa,
Sprach - sem pétalas.
No poema, Haroldo, poeta-pensador, ilumina uma verdade poética (não
necessariamente filosófica): “a linguagem diz mostrando o que mostra dizendo” (NUNES, op.
cit., p.108). É preciso ver, penetrar no reino das palavras, auscultá-las; isso fez, por exemplo,
87
Este artigo encontra-se no livro feito em homenagem a Haroldo de Campos, organizado por MOTTA, L.T.
Céu Acima: para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005.
o poeta Ezra Pound, ao entrar em contato com a escrita ideogramática chinesa (ming, no
poema acima), por intermédio de Fenollosa
88
. Segundo Nunes, o poema indica de onde
floresce, na obra de Haroldo de Campos, a relação entre poesia e pensamento:
Do chão verbal dos significados ao subsolo dos componentes rítmico-
semânticos, dos acordes de som e sentido, ao relevo gráfico da palavra
escrita [...]. Ensinou o poeta a descer ao pré-categorial e ao pré-reflexivo, a
esse ínfero, a esse limbo do pensamento, oscilante entre a língua e a
palavra, entre o semiótico e o semântico. (ibid., p.111).
Em Haroldo de Campos, o vínculo entre poesia e pensamento se faz pelo jogo da
linguagem: “a poesia do pensamento complementa-se pelo pensamento da poesia” (ibid.,
p.112). Toda obra do poeta orienta-se nesse sentido, desde os primeiros textos até AMMR; e,
se assim é, retoma-se a afirmação inicial deste capítulo: Haroldo de Campos é um poeta,
portanto, um pensador. E um poeta-pensador herdeiro da modernidade, o que traz outras
implicações para sua obra e para a construção de AMMR, especificamente.
É sobretudo na poesia moderna que a idéia de materialidade dos signos e a
preocupação com o aspecto reflexivo da linguagem poética tornam-se mais contundentes,
que não a palavra ganha força per si, como também os temas de que tratam os poetas em
sua poesia impõem uma inovação das formas, radicalização da criação poética. Não é à toa,
portanto, que Mallarmé seja o guia do eu-poético no Segundo Canto, a física quântica e a
poesia da modernidade afinam-se pela radicalidade do tratamento de seus objetos, ao
incorporarem aos seus respectivos “paradigmas” as possibilidades e a não-certeza.
Essa compreensão de que a poesia é pensamento está relacionada à concepção poética
inaugurada em fins do século XIX e começo do século XX. Evidentemente isso não quer
dizer que antes não existisse tal vínculo (a leitura de AMMR apresentada mostrou que os
poetas são sempre concretos, porque operam a partir da materialidade da linguagem).
Contudo, a consciência dessa operação poesia-pensamento amplia-se grandemente no fazer
dos poetas-críticos da modernidade.
88
A presença da obra poundiana como paideuma para os poetas concretos e para Haroldo de Campos,
especificamente, é indiscutível. A importância dos trabalhos de Pound sobre a escrita/poesia ideogramática
chinesa pode ser mais bem compreendida pela consulta a CAMPOS, H. Ideograma. São Paulo: Perspectiva,
2000).
III.2 Novas concepções poéticas
III.2.1 Baudelaire e Mallarmé
O conceito de modernidade
89
, como ressalta Octavio Paz, é ambíguo, no sentido de
que nenhuma outra época chamou-se de moderna exceto a nossa, o que significa uma
urgência de superação do antigo e imposição do progresso, a cada instante, para que a
modernidade (em sua fugacidade) permaneça sempre modernidade.
Para o poeta mexicano, a poesia moderna começou com os românticos, ingleses e
alemães e, a partir daí, numa história de rupturas e acomodamentos, passou por metamorfoses
no simbolismo francês, no modernismo hispano-americano e teve seu apogeu e fim nas
vanguardas do século XX (PAZ, 1974, p. 11-13).
O autor, todavia, não está preocupado em delinear uma linha cronológica da
modernidade, tampouco em pontuar os momentos, ao longo da história literária, em que tenha
aparecido o termo moderno, como faz Jauss, seguindo uma abordagem historiográfica
(JAUSS apud CAMPOS, H. 1997, p.243, 256). Para Octavio Paz, o relevante é perceber que a
reconstrução do passado não se segundo quadros epocais, dispostos linearmente no tempo,
mas como explica Haroldo de Campos:
[reconstrução do passado] enquanto tentativa de suscitar uma “imagem
dialética” (W. Benjamim), capaz de recuperar, para utilidade imediata de
um fazer poético situado na “agoridade”, o momento de ruptura em que um
determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleição de
um determinado passado. Descoberta (invenção) de um particípio passado
que se comensure ao nosso particípio presente (ibid, p.249).
Essa visada em relação à modernidade é característica de muitos poetas modernos,
que são também críticos. Discuti-la e colocá-la em contraposição a uma concepção linear e
histórico-evolutiva da história literária foi o objetivo da segunda parte deste trabalho, por
meio da leitura do poema AMMR. Nesta seção e nas seções seguintes, pretende-se ressaltar,
89
Nosso objetivo não é discutir a modernidade, mas situá-la em termos histórico-literários para que se amplie a
compreensão dos diálogos estabelecidos por Haroldo de Campos. Para ele, a modernidade, instaura-se, de fato,
com Mallarmé e desdobra-se (CAMPOS et alll, 2002). Por isso, serão comentados brevemente os antecessores
de Mallarmé e alguns sucessores também.
em termos teóricos, as matrizes desta maneira crítico-inventiva de organização do
pensamento poético na modernidade, praticada pelo poeta Haroldo de Campos. O mais
importante destes aspectos é, sem dúvida, a relativização do ideal de perfeição do passado,
concomitantemente à introdução de uma valoração do futuro, mediados pelo presente.
A modernidade, para Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Decio Pignatari é
iniciada com Mallarmé: “limiar da nova poesia [...] inventor de um processo de organização
poética” (CAMPOS, A. in: CAMPOS et alll, 2002, p.23). Segundo Compagnon (2003, p. 20); a
estética do novo sempre existiu, o termo moderno, por exemplo, encontra suas primeiras
aplicações no século V (ibid, p.17). Entretanto, a partir do século XVIII e início do XIX, o
vocábulo moderno é usado para designar não apenas mudança estética no sentido do belo e do
inesperado, como também no sentido de ruptura e negação.
No final do século XVII, fruto da chamada querela entre os modernos e os antigos,
surge a idéia de progresso do gosto; em outras palavras, afirmava-se uma superioridade dos
modernos em relação aos antigos, não apenas na ciência e na filosofia, como nas artes em
geral. Isso significava uma suposição linear do tempo, orientado para o futuro, este sendo
sempre tomado como eufórico relativamente ao passado e ao presente. Todavia, como se
percebe com facilidade, tal orientação para o futuro não se configura linearmente, mas
ciclicamente, ou se quisermos, elipticamente (porque o retorno nunca é perfeito), quando se
trata da arte. Se de um lado, o progresso implica caminhar para frente; de outro, pelo menos
em termos de arte (e da máquina do tempo da física), significa retomar, a cada instante,
aspectos da tradição para romper com o existente, gerando o que se poderia chamar de
“tradição da ruptura”, ou, para usarmos a leitura de AMMR, a tradição como retificadora de
um processo ruptor em que novidade e tradição são inseparáveis.
De qualquer forma, a tradição da ruptura ou a tradição como ruptura, inaugurou, em
amplo sentido, entre o final do século XVIII e o século XIX, a Era das Revoluções
(HOBSBAWM, 1989). Segundo Octavio Paz (op. cit.), o termo revolução assume, nesse caso,
um modo de existir paradoxal: em seu sentido primeiro, a idéia de revolução estava ligada
(está ainda) ao girar do mundo e dos astros; na modernidade, representa a mudança da história
e o progresso, ruptura. Por outro lado, seu sentido cíclico inicial não se perdeu, de modo que,
ao que parece, a modernidade precisa recorrentemente das revoluções para manter-se
moderna. A modernidade depende das explosões supernovas. Diz Octavio Paz:
[...] A idéia de revolução, em seu significado moderno, representa com a
máxima coerência a concepção da história como mudança e como
progresso ineludível: se a sociedade não evolui e se estanca, rompe uma
revolução. No entanto, se as revoluções são necessárias, a história tem
necessidade do tempo cíclico. Mistério insolúvel [...]. A grande mudança
revolucionária, a grande conversão, foi a do futuro. [Na modernidade
invertem-se termos comparativamente à lógica cristã do juízo final]: se o
homem é a história e na história se realiza; se a história é tempo lançado
para o futuro e o futuro é o lugar da eleição da perfeição; se a perfeição é
relativa ao futuro e absoluta diante do passado... então o futuro se
transforma no centro da tríade temporal: é o í do presente e a pedra de
toque do passado (PAZ, op.cit.,p.51).
Esse paradoxo “revolucionário” é engendrado, inclusive, por duas características
marcantes da lírica na modernidade: a analogia e a ironia. A primeira, fruto e fundamento do
mito; a segunda, marca do tempo histórico, consciência e conseqüência da história (PAZ,
ibid.). Em AMMR essa visão fica bem elucidada. Tanto a ironia quanto a analogia (e em
grande medida a alegoria) fazem-se presentes no texto haroldiano e marcam a distância entre
o poeta-leitor contemporâneo e a tradição, ou ainda, “as sobras da tradição esfacelada”
(PIRES, 2006, p.131), com a qual dialoga, ironicamente.
se assinalou, no final da leitura do Canto I, que a ironia faz-se presente, no caso de
AMMR, pelo uso das formas fixas, como modo de subverter a ordem pelo uso da ordem a
grande ironia é mostrar que a revolução das formas, a crise do verso deve estar no próprio uso
do verso (SISCAR, 2007), é, portanto, uma crise de verso. Ressalta Lafetá (apud: CAMILO,
2001, p.60) que a técnica é engajamento e desalienação, e reflete a postura de constante
pesquisa do poeta (lembremo-nos de que o poeta é “descobridor”): ao usar o verso
metrificado em AMMR, Haroldo, como o Drummond de Claro Enigma, ironicamente,
sublinha a desordem da contemporaneidade, vestindo-a de ordem e, nesse intento subversivo,
explodem as analogias, as metáforas e a carga alegórica do texto, que tem maximizada a sua
“agoridade”.
A idéia prospectiva, de uma poesia para o tempo futuro, pode ter seu início marcado em
diferentes momentos, segundo a visada da história admitida para seu estudo. A religião do
futuro a que se refere Octavio Paz talvez não seja característica da modernidade como um
todo, mas das vanguardas, e, sob este prisma, é importante diferenciá-las, conforme ressalta
Compagnon (2003, p. 38). Apregoada em manifestos extremistas, identificando-se mesmo com
o militarismo, as vanguardas são o aspecto mais radical e mais dogmático da modernidade, ou
ainda, a dramatização de certos elementos constitutivos da modernidade
90
.
90
VICENTE, A. Poesia e vanguarda: anotações de aula. Araraquara: UNESP, mimeo, 2004.
Antes da eclosão das vanguardas, porém, os primeiros modernos, como Baudelaire,
pensavam a ruptura de outro modo. Apesar do discurso vanguardista da poesia concreta e do
tom de manifesto do Plano Piloto, por exemplo, identifica-se, em Haroldo de Campos, mais
do que em Augusto de Campos e Decio Pignatari, uma postura bem mais coerente em relação
à inovação das formas e retomada da tradição, no sentido destacado em AMMR,
possivelmente causada pela importância que Ezra Pound e a idéia de um paideuma
revigorador dos “clássicos” assume em sua obra. Haroldo atua, portanto, como os primeiros
modernos. Diz Compagnon:
Os primeiros modernos não procuravam o novo num presente voltado para
o futuro e que carregara consigo a lei de seu próprio desaparecimento, mas
no presente, enquanto presente. Essa distinção é capital. Eles não
acreditavam, como disse, no dogma do progresso, do desenvolvimento e da
superação. Não depositavam sua confiança no desenvolvimento e na
superação. Não depositavam sua confiança no tempo nem na história, onde
não esperavam obter revanche. O seu heroísmo era bem o heroísmo do
presente, não do futuro, pois a utopia e o messianismo lhes eram
desconhecidos. Não pensavam que a arte de hoje fosse necessariamente
decadente amanhã; não negava a arte de ontem, e o esquecimento que
tinham da história não se confundia com a vontade de fazer tábua rasa do
passado; não se condenavam, pois, a serem, eles próprios, logo renegados,
pois a crença no progresso exige também, paradoxalmente, que a arte
progressista aceite ser instantaneamente perecível e logo decadente.
(COMPAGNON, op.cit, p.37)
Baudelaire via a modernidade sob este prisma. Em Le peintre de la vie moderne
escrito em 1859, publicado em 1863, o poeta defende a idéia de que o belo é simultaneamente
eterno e transitório, pontuando que esta dualidade é fruto da própria dualidade do homem
(BAUDELAIRE In: CHIPP, H.B., 1996, p.104). Nesse sentido é que faz considerações sobre o
“império do transitório” e reflete sobre a obra de Guys e sobre a moda, primordialmente.
Para Baudelaire, o objetivo da moda é extrair o eterno do transitório; mais ainda: a
modernidade em si, para o poeta, é transitória, fugaz, contingente, “metade da arte, cuja
metade restante é eterna e imutável” (ibid, p.109). Esse raciocínio leva-o a uma idéia curiosa
acerca da importância de relativização do olhar dirigido ao passado e ao presente, este dotado
de qualidade essencial de presente, o que talvez permitisse dizer que o poeta francês fundava
o conceito de “agoridade”, tão usado por Haroldo de Campos, como tempo primordial da
poesia.
No caso da arte poética, o poema torna-se, em Baudelaire, um objeto oferecido à
sociedade não porque falasse dela em seu conteúdo, mas porque a sua forma dizia respeito a
essa sociedade; era o poema em si, como objeto estético, a palavra enquanto tal, que tinha
valor - não representava o real, dialogava com ele, deformando-o, metonimizando-o. No caso
de Baudelaire, de um modo muito peculiar.
O poeta colocava-se como o flâneur, que vagando pela cidade passa pela multidão e
filtra, em meio ao sentimento de solidão que o acompanha, a importância da modernização,
ao mesmo tempo que a repudia, deixando em tensão as forças inovadoras e as arcaicas. Nesse
ponto, marca-se a poética baudelaireana, pêndulo oscilante entre o transitório e o perene, “na
medida em que se sabe vítima da modernidade, esta pesa sobre ele como excomunhão”.
(FRIEDRICH, 1978, p.36).
Resta ao poeta a sua linguagem: “o ato que conduz à poesia pura chama-se
linguagem” e implica o trabalho do poeta (ibid, p.39); essa afirmação faz-nos retomar as
considerações feitas anteriormente sobre poesia e pensamento e o ofício de fazer poesia
91
,
inegavelmente comprovados pela própria análise do percurso textual haroldiano, revisitada ao
longo da leitura de AMMR.
Antes de Baudelaire, Edgar Allan Poe
92
tinha em mente a necessidade de uma
revisão do papel do poeta, situando-o como aquele que deve desenvolver seu ofício com
rigor, sistematização, buscando sempre uma proximidade entre som e sentido, com vistas a
ampliar a própria materialidade do signo poético; portanto, uma poesia marcada pelo rigoroso
exercício do pensamento e, também, pela urgência da originalidade:
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versificação. Meu primeiro
objetivo, como de costume, era a originalidade. A amplitude com que esta
tem sido negligenciada na versificação é uma das coisas mais inexplicáveis
do mundo. Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no
ritmo, permanece claro, porém, que as variedades possíveis do metro e da
estância são absolutamente infinitas, e, contudo, durante séculos, nenhum
homem, em verso, jamais fez ou jamais parece pensar em fazer uma coisa
original. A verdade é que a originalidade de modo algum é uma questão,
como muitos supõem, de impulso ou de intuição[...] [a originalidade] tem
de ser procurada trabalhosamente. (POE, 1985, p. 108, grifos do autor).
91
Como diria Valéry: “Portanto, se me interrogarem, se se inquietarem (como acontece, e às vezes intensamente)
sobre o que eu “quis dizer” em tal poema, respondo que não quis dizer, e sim quis fazer, e que foi a intenção de
fazer que quis o que eu disse.... (VALÉRY, 1999, p. 165)
92
1809-1849
É claro que Poe, “precursor do modernismo” e dotado de radicalidade de espírito,
pode ter exagerado ao dizer que homem algum jamais pensou na originalidade. Apenas para
ficar no âmbito dos diálogos estabelecidos com a obra de Dante, em AMMR, essa observação
pode ser refutada, que é impossível negar a originalidade e a ruptura que a obra dantesca
causou à época de sua publicação; entretanto, o que deve ser sublinhado sempre é que a
consciência do trabalho, a posição crítica em relação à poesia e sua criação e a relativização
dos ideais de beleza trouxeram a possibilidade de inclusão de outros temas na poesia; temas
estes que se tornam belos pela estesia que despertam, esta sim, fruto do trabalho do poeta
93
.
Baudelaire foi assíduo leitor de Edgar Poe e a ele dedicou ensaios; muitos críticos
apontam a extrema coincidência de traços poéticos entre ambos (por exemplo, Friedrich),
situando o poeta francês como herdeiro do americano. Ivan Junqueira essa “descendência”
com certa reserva (JUNQUEIRA, 2000, p.49) e defende que, amiúde, os versos de Baudelaire
têm raízes mais fundas nos escritores latinos e nos franceses. Ainda assim, não se pode deixar
de registrar os comentários de Baudelaire à obra de Poe:
Sua poesia, profunda e gemente, é, não obstante, trabalhada, pura, correta e
brilhante, como uma jóia de cristal. [ ] Poe é sempre correto. [...] Tão
amoroso das regras, e capaz de análises estudiosas e pacientes pesquisas.
(BAUDELAIRE In: POE, 1985, p. 14).
É inegável que Poe teve papel importante no modo como Baudelaire encarava o
fazer artístico. Se considerarmos a perspectiva sincrônica da história literária e a idéia de
paideuma, apresentada, veremos que o que Baudelaire faz é tomar emprestado de Poe
aquilo que julga mais conveniente e, dessa forma, projeta seu precursor, a partir de suas
leituras, para as próximas gerações.
Baudelaire tinha um projeto de poesia. Esse projeto de poesia, apreensível pela
leitura de seus poemas, revela a própria idéia de modernidade lírica, seguida por outros poetas
depois dele (BARBOSA,1986, p.40). É nesse sentido que se pode dizer que a leitura de
93
“Hoje, todas as janelas são igualmente poéticas aos olhos do poeta, desde a imensa vitrina de uma grande loja
até a lucarna, suja pelas moscas, de um pequeno café de povoado. E as janelas dos poetas deixam entrever em
nossos dias toda a sorte de coisas” (JAKOBSON, in: TOLEDO, 1975, p.167). Bem antes de Jakobson, Victor
Hugo em Do grotesco e do sublime - Prefácio a Cromwell, indicava que tanto belo e feio eram matéria de
poesia e apontava para o fato de era o trabalho do poeta que faria o texto feio ou belo esteticamente: “A
divisão do belo e do feio na arte não está em simetria com a da natureza. Nada é belo ou feio nas artes senão pela
execução” (HUGO, 2004, p.27).
Baudelaire trouxe marcas indeléveis. Além disso, como aponta Ivan Junqueira (2000, p.22), a
poesia baudelaireana é plástica e visual, assim como o é o agudo senso estético do poeta, o
qual lhe possibilitou ocupar importante papel como crítico de arte. Seu olhar para a obra de
outros artistas e as considerações que faz a respeito delas é depoimento de sua forma de olhar
para mundo moderno, assolado (um termo spleen) por galopante mudança. Destacam-se,
nesse sentido, as considerações feitas sobre a obra de Guys, retratadas no citado Pintor da
vida moderna (1996).
muita subjetividade nas considerações de Baudelaire. Apesar do rigor com que
são construídas, prevalece uma aura de mistério e indefinição, em que elementos mnemônicos
caminham para a consciência como mecanismo de “controle de estímulos” (BENJAMIM,
2000, p. 108 114): o rigor da conscientização do trabalho do poeta é capaz de sublimar os
caracteres mnemônicos transformando-os em pulsão para criação.
Pelo caráter reflexivo de seus poemas e pela força que atribui à criação em termos
de magia da linguagem e fantasia, é possível percebermos o quanto as tentativas de evasão
reiteram-se ao longo de Les Fleurs du Mal (1845), reunião de poemas fundamentais para
entender a obra de Baudelaire, inclusive porque representam, nas palavras de Benjamim, a
última obra lírica a exercer influência no âmbito europeu, síntese do esforço criativo do poeta
que se dedicou quase que inteiramente a este livro e, por fim, o fato de que alguns dentre os
temas da obra colocam em questão o desconcerto do poeta para com a modernidade
(BENJAMIM, 2000, p.143). Sobre isso, assinala Friedrich:
O desconcertante de tal modernidade é que está atormentada até a neurose
pelo impulso de fugir do real, mas se sente impotente para crer ou criar uma
transcendência de conteúdo definido, dotada de sentido. Isto conduz os
poetas da modernidade a uma dinâmica de tensão sem solução a um
mistério até para si mesmos. Baudelaire fala muitas vezes do sobrenatural e
do mistério [...] A idealidade vazia, o “outro” indefinido que, no caso de
Rimbaud é mais indefinido ainda e no de Mallarmé se converterá no Nada,
e o mistério que gira em torno de si mesmo, próprio da lírica moderna, são
correspondentes. (FRIEDRICH, 1978, p.49).
Esse desconcerto do mundo em relação à modernidade, como se disse na Parte II
deste trabalho, é a marca de Claro Enigma de Drummond, e mostra o tédio assumindo a
proporção de um grande mal que não pode ser enfrentado pelo poeta. Mais do que os diálogos
explicitados por Haroldo de Campos em A máquina do mundo repensada, encontra-se
sincronicamente marcada sua experiência de leitor da tradição, tradição esta que (re)atualiza e
(re)significa pela sua leitura, inclusive ao sublinhar o mesmo tom irônico baudelaireano que
Drummond lê, à medida que, entre outros aspectos, usa a forma fixa como meio de
manifestação dessa ironia, como também faz Haroldo de Campos.
O uso da forma fixa permite dizer da capacidade de Drummond de freqüentar todas as
formas, todos os metros (MOTTA, 2004, p.160), ironizando-os; entretanto, é possível que a
ironia haroldiana no uso das formas esteja voltada para um outro aspecto o de mostrar, de
certa maneira, a permanência do verso, a busca da perfeição, do eterno, ou ainda, do âmago
do ômega: o nada e a luta contra o acaso, bem ao estilo de Mallarmé, herdeiro de Baudelaire.
Sobre os dois poetas franceses, destaca João Alexandre Barbosa:
Entre prostitutas e santos, Baudelaire escolheu a “porta estreita”: aquela que
não leva a lugar nenhum (nem ao êxtase do sexo nem aos céus), mas a si
mesma: o poema. Antes e melhor do que qualquer outro, Baudelaire, o
“flâneur”, o esgrimista, o dândi, sabia que homem nenhum é uma ilha, a
não ser o poeta: o seu ancoradouro chama-se linguagem. [...] Exílio,
ausência: um salto para o nada mallarmeano. (BARBOSA, 1986, p.62,63).
Mallarmé situa-se, assim, como um divisor de águas: amparado pela historicidade da
poesia que o antecedeu, brilha e desestrutura a superfície do mundo poético, como um lance
de dados sobre o pano verde de uma mesa de carteado altera a vida dos jogadores em volta
dela. A ruptura mallarmeana e sua sintaxe subversiva e inovadora transformaram-no no Dante
da Era Industrial (BENJAMIM, apud CAMPOS, H. 2002, p.193).
Admitindo-se que o poeta italiano foi, ao mesmo tempo, o último poeta da Idade Média
e o primeiro dos tempos modernos
94
, produzindo uma obra que causou grande ruptura com os
padrões vigentes até então, pode-se pensar (e se mencionou isso ao longo da leitura do
Canto II) que o mesmo papel teve Mallarmé, cuja produção poética foi-se modificando aos
poucos, à medida que a consciência da linguagem e a necessidade de incorporar na poesia as
grandes mudanças de seu tempo vão se tornando latentes.
Desse modo é que o Mallarmé parnaso-simbolista (CAMPOS et all, 2002) e aquele que
resgata a tradição da língua francesa presente, por exemplo, em Racine, arquiteta a
linguagem-tijolo para construir a casa-poesia de um Mallarmé da maturidade, cuja reflexão
poética passa a ser inseparável, em todos os sentidos, da criação. De um lado, Mallarmé é
devedor da tradição; de outro, avança em direção a rupturas definitivas com a organização
94
Marx e Engels apud CAMPOS, H. Caos e Ordem: Acaso e Constelação In: CAMPOS, A. et all Mallarmé. São
Paulo: Perspectiva, 2002.
espacial do poema, esfacelando a sintaxe, ou, melhor dizendo, introduzindo a instabilidade
dos quanta na criação poética:
22 mai. 1870. Avignon; à Catulle Mendes.
... Le Parnasse est une invention três amusante. Vouz avez vu que j’ai tenu
à envoyer d’anciens vers, plutôt que rien, pour la date. Villiers a fait
irruption au Théatre ; je prépare quelque chose de tel pour la Sorbonne, une
thèse, dediée à la mémoire de Baudelaire et à celle de Poe, quón ne pourra
pas refuser, si, comme je le crois, ce que je entrevois est just [...].
4 mai 1889. Paris ; à André Fontainas.
[...] Vous avez si fort raison, du moment que vous ne recherchez pas, en
pleine crise du vers nous sommes, les harmonies suprêmes à inventer et
dangereuses, de ressusciter tous les rythmes, glorieux tant de fois et encore :
telle, je crois, la tâche égale ou double de maintenant[...]
Septembre 1897. Valvins; `a Alfred Jarry
... Ma surprise devant cette imagerie mrveilleuse et exacte fut complète : les
tons sont posés vifs et frais, puis tout se transpose infiniment dans le rêve.
Une géométrie de phases, droites ou courbes, elle toujours nette, invente
une langue définitive ou litteráire stricte, qui má charmé.
(MALLARMÉ, 1953, p. 105,165,217)
Essa transformação, ou ainda, consolidação da idéia de poesia em Mallarmé, mostra que
em seu trabalho de poeta, gradativamente, passa a acontecer uma fusão de fundo e forma,
inexoravelmente ligados, sinalizando que a poesia nasce do “impulso da linguagem”
(FRIEDRICH), ou das cinzas (VALÉRY), ou pelo trabalho do poeta que desenraiza as palavras
e as devolve ao mundo carregadas de significados (PAZ), mas, principalmente, pelo trabalho
de “descobridor” de ancestralidade que é capaz de harmonizar ambas as coisas. Mais uma
vez, o pêndulo valeriano:
Pensem em um pêndulo oscilando entre dois pontos simétricos. Suponham
que uma dessas posições extremas representa a forma, as características
sensíveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonações, o timbre, o
movimento em uma palavra, a Voz em ação. Associem, por outro lado, a
outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores
significativos, as idéias; as excitações do sentimento e da memória, os
impulsos virtuais e as formações de compreensão – em uma palavra, tudo o
que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso. Observem, então, os
efeitos da poesia em vocês mesmos. Acharão que, em cada verso, o
significado produzido em vocês, longe de destruir a forma musical
comunicada, reclama essa forma [...] Assim, entre a forma e o conteúdo,
entre o som e o sentido, entre o poema e o estado de poesia, manifesta-se
uma simetria, uma igualdade de importância [...] (VALÉRY, 1999, p.205).
. No mesmo ensaio, Poesia e pensamento abstrato, o poeta Valéry diz que seu poema
Cemitério Marinho começou por um ritmo (ibid. 210), característico do verso francês de dez
sílabas. Esse comentário reforça ainda mais a idéia de que expressão e conteúdo não se
separam em poesia e permite, ainda, duas outras considerações: a primeira é que se a forma e
o conteúdo estão inexoravelmente ligados, é como se fossem coincidentes e, portanto, o poeta
pensa por meio de “formas”; não é à toa que o poema de Valéry tenha se iniciado com o
ritmo. Em segundo lugar, todo trabalho poético, é engendrado, como se disse, pela forma
busca a harmonização dessa forma em um espaço peculiar ao poema: o verso, cuja
importância não passou despercebida a Mallarmé.
O verso é o nome do entrelugar poético que executa a operação quase
mágica de remotivar o signo lingüístico. Entendido neste contexto, o
interesse de Mallar não é o de desbravar um espaço além do verso, um
fora do verso. O fora do verso não é um lugar habitável para a poesia. E sua
orquestração, pelo menos em Mallarmé, “permanece verbal”, embora
acrescente a ela alguns momentos de silêncio, pelo modo como deixa ver os
brancos da página. De certo modo, a operação histórica de Mallar pode
ser vista como o inverso das vanguardas: não o de romper com o verso, mas
de estender a questão do verso [...]. A crise da qual fala Mallarmé localiza o
efeito de hesitação no limite das formas, trabalhadas por uma técnica que
ele continua chamando de hesitação. (SISCAR, 2007, p.8).
Esse parece ser um ponto crucial e permite retomar a questão do uso da forma fixa em
AMMR, mais uma vez, para realçar seu sentido mesmo de reinvenção. Na obra de Haroldo de
Campos, a subversão do verso em Galáxias corresponde ao uso dos decassílabos e da terza
rima em AMMR, porque, de todo modo, sempre o verso, a crise não é, como ressalta
Siscar, dos versos, mas de versos.. Há, portanto, dois aspectos complementares que devem ser
considerados nos comentários sobre a estrutura de terzina e dos decassílabos de AMMR: um é
o papel irônico que assume o poeta ao fazer uso desse procedimento, para mostrar as
múltiplas capacidades dessa forma, as possibilidades de invenção e de perturbação da ordem,
como bem diz o próprio Haroldo sobre seu poema.
Outro aspecto, entretanto, é que a discussão em torno da guinada clássica do poeta,
feita, entre outros, por Franchetti, perde sentido, pois, no limite, como ensina Mallarmé, é
sempre o verso o que “remunera o defeito das línguas”: “Seulement, sachons n’existerait pas
le vers : lui, philosophiquement rémunère le défaut des langues, complément supérieur”
(MALLARMÉ, p.4
95
). O jogo da terza rima, que implica o transporte da rima, o decassílabo e
o enjambement, o qual, como pontuou Pécora, “só funciona com craques” (PÉCORA in
MOTTA, 2005, p. 102), equivale aos magníficos jogos paronomásticos, aos processos
metafóricos e metonímicos, ao uso abusivo dos hipérbatos, ao gongorismo, enfim, são partes
da criação do poema que se apóia no verso, qualquer que seja ele. Entre os decassílabos de
AMMR e os versos de Galáxias diferenças estruturais, porém, conceitualmente, ambos são
versos. Só uma leitura ingênua veria, em AMMR, apenas tentativas de mostrar a erudição ou a
capacidade de versejar. Como “vanguardista”, Haroldo de Campos corrompe a tradição
impondo-lhe suas idiossincrasias.
A forma fixa revela muito do labor e da grande inventividade de Haroldo, pois, no final
das contas, pela própria história da poesia haroldiana, a forma fixa sempre encontrou lugar de
destaque; é seu fascínio pela tradição que o faz incorporá-la e recriá-la. De um lado a ironia;
de outro a maestria. Em ambos os casos, nascemorrenasce sempre o poeta em meio à
máquina do poema, cujo objetivo maior é renovação da linguagem e jamais sua extinção:
“Toute la langue, ajustée à la métrique, y recouvrant ses coupes vitales” (MALLARMÉ, op.cit.,
p.2 ). Questionar o verso não significa seu fim. O uso da forma fixa por Campos é sua
maneira pessoal de lidar com a crise de versos, inclusive por todas as “transgressões” que ele
impõe à forma utilizada em AMMR.
A idéia de que o verso não existira mais é, amiúde, relacionada a Mallarmé e às
vanguardas. Em Mallarmé, o processo culmina com a publicação de Um Lance de Dados
(1897), que é feito em versos (SISCAR, 2007). Entretanto, o que faz Mallarmé não é abolir o
acaso (será o verso o acaso, cujo lance de dados, trabalho poético, jamais conseguirá abolir do
poema?), mas, por meio de seu fazer poético, percebe que a “historia do verso está abalada
internamente” (ibid., p.5), o que não significa que a história do verso esteja abolida a partir
daquele momento histórico (final do século XIX). Augusto de Campos diz o seguinte
referindo-se a Mallarmé:
[o poeta] começa a denunciar a falácia e as limitações da linguagem
discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e
possibilidades do uso da linguagem, para o qual convergem a experiência
da música, da pintura, dos modernos meios de comunicação [...] a
95
MALLARMÉ, S. Crise de vers. Disponível em : www.mallarme.net/index.php?title- crise de vers. Acesso em
16/10/2007.
contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que
encerra um capítulo, abre ou entreabre toda uma era para a poesia,
acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do
próprio livro como suporte instrumental do poema.(CAMPOS, A. In:
CAMPOS, A. et all. , 2002, p.27).
Mallarmé lança mão de uma escrita icônica; num manifesto de revisão do verso,
essa escrita icônica tem trânsito universal, posto que incorpora técnicas modernas da
imprensa e da publicidade, abrindo possibilidades para uma renovação poética sem
precedentes. Como diz Augusto de Campos ao comentar o poema (ibid.) “o Lance de Dados
é um grande poema cosmogônico, uma equação poética que vale pos si todo o vozerio de
vanguardas transformadoras”. Parece que o mesmo efeito tiveram as teorias físicas abordadas
pelo eu-poético de AMMR, no Canto II.
O poema de Mallarmé inaugura um dinamismo no processo de associação de
imagens, inserindo, como diz o próprio poeta francês na introdução de seu texto, “subdivisões
prismáticas da idéia”. A riqueza e a originalidade do poema estão, entre outros aspectos, no
emprego de tipos diversos para compor a tipografia, na posição das linhas tipográficas na
página, nos brancos, no uso do léxico de forma significante, nas rimas, na construção da
realidade e não na sua imitação.
[na poesia de Mallarmé predominam] os jogos vocabulares – paronomásias,
assonâncias, aliterações nas quais a rima tem papel de destaque. As rimas
mallarmeanas rimas equívocas, rimas homófonas, rimas leoninas, que se
ecoam, se devoram e se entreespelham contribuem decisivamente para
romper, com suas associações verticais, o encadeamento linear do verso.
(CAMPOS, H. 1977, p.29)
96
Ao romper com a sintaxe (triturá-la, como afirma Augusto de Campos), Mallarmé
torna-se a consciência extrema do poeta que vive a crise de verso e, para além do verso livre,
caminha para o verso ideograma. Ideograma este em que a junção de duas idéias não é uma
terceira apenas, mas acentua as relações estabelecidas entre as duas primeiras, subdividas
prismaticamente. Se considerada, então, do ponto de vista gestaltiano, essa organização
96
Esse processo de construção pode ser amplamente encontrado em AMMR, como se destacou. Portanto, a
dicção barroca que essas construções apresentam, diluem-se no poema de Haroldo de Campos, com a herança
mallarmaica. Texto, palimpsesto.
ideogramática em Mallarmé mostra que o todo é mais do que a soma das partes justamente
porque o todo é, além da soma das partes, a relação entre elas
97
.
O estilo mallarmeano de lidar com o verso foi muito praticado pelos poetas concretos.
No caso específico de Haroldo de Campos em ô âmago do ômega, em Galáxias e em vários
dos poemas verbivocovisuais concretistas. Cabe aqui ressaltar que a violência contra o metro
transforma-se em lei métrica, ou seja, quando tal violência vira uma constante, ela passa a ser,
ela mesma, o metro (BRIK apud JAKOBSON, 1999, p.149). Por isso Mallarmé fala em crise e
não em superação do verso, e, conseqüentemente do metro.
Não se pode deixar de pensar que, se a poética mallarmeana acompanhava a
evolução da técnica e da ciência e as modificações do pensamento filosófico, não
conseguindo escapar de uma contestação das leis newtonianas e de sua exatidão, da idéia da
probabilidade, que despertava crescente interesse, Haroldo de Campos lança também um
dado e traz o momento histórico mallarmeano para seu poema, marcando-o, além disso, com
os questionamentos de seu tempo. Um lance de dados é um evento probabilístico: nexo ou
nex ou, simplesmente, O.
É interessante notar, porém, que, em AMMR, as idéias mallarmeanas estão presentes
não apenas como fundo, mas, possivelmente, como superação da forma, uma vez que Haroldo
de Campos consegue, na forma fixa, triturar a sintaxe (hipérbatos, sínqueses, aposiopeses),
cria palavras ideogramas, enriquece o texto com os mais diferentes jogos paronomásticos,
pelo entre espelhamento das rimas, entre outros procedimentos. Em AMMR, como vimos, a
linearidade do verso se esfacela, pois o enjambement (característico da terzina), dado o seu
caráter triádico força a circularidade da leitura. As associações verticais existem, todavia se
confundem com as associações horizontais, como vimos na leitura do poema.
Além de todos esses aspectos, parece que AMMR reitera uma característica muito
interessante do poema mallarmaico. Em Um lance de dados, é possível dizer que existe uma
dimensão mnemônica, como se o ulterior e o originário dialogassem no espaço da página,
pela dispersão dos tipos espalhados nos espaços brancos, aparentemente em caráter aleatório,
porque é como se as leis de atração dos corpos celestes movimentassem os tipos, acentuando,
destarte, a cosmogonia do poema mallarmeano. Nas palavras de Haroldo de Campos:
97
Em termos marxistas, na produção de um bem, também o todo é mais do que a soma das partes, porque
transformação. As reflexões propostas em O capital atestam isso. Quando se fala que o poema (assim como as
mercadorias) é um todo que supera a soma das partes que o compuseram, está-se querendo dizer que o poeta, em
consonância com o que assiste em seu tempo, passa mesmo a considerar a sua arte um ofício: os meios de
produção orientam-se para a produção do produto final.
Mallarmé sempre Mallarmé! foi ainda o pioneiro e continua o mestre.
Preocupado com o controle do acaso, ao mesmo tempo que afirmava a
abolição deste, insinuava dialeticamente sob a chancela relativa de um
talvez a viabilidade da própria possibilidade negada, através de um obra-
constelação, evento e momento humano (“UM COUP DE DÉS JAMAIS
N’ABOLIRA LE HASARD/ Excepté peut-être pour une Constellation”).
Isto no seu poema-partitura, de 1897, poema circular, que gira
semanticamente sobre si mesmo, que está sempre recomeçando como o mar
no verso de Valéry. (CAMPOS, H. 1977, p.17,).
Para concluir essa discussão acerca de Mallarmé, é necessário lembrar que o poeta
francês é o instaurador do papel do poeta em greve, que se recusa a vender sua força de
trabalho poética, ajoelhando-se diante das imposições da linguagem comum
98
, esperada. O
poeta-grevista de Mallarmé não vive de sua poesia e sim de outras fontes de remuneração; a
poesia para ele não era meio de trabalho, mas, em termos mallarmarxistas (CAMPOS et all,
2002, p.27) um fim em si. Esse aspecto não quer em absoluto dizer que o poeta não seja
engajado e que a linguagem da poesia seja despretensiosa; a linguagem do poeta jamais é
passiva porque o grande engajamento é dado a partir da relação do poeta com sua linguagem
le langage l’engage” (TARDIEU, apud CAMPOS, A., op. cit. 28).
Não é à toa que surgem, no início do século, os livros-objeto, os poemas cartazes e
muitas outras formas de expressão afinadas com as modernas tecnologias e o
desenvolvimento da imprensa, fazendo soar, em uníssono, progresso técnico, circulação de
poesia. Isso significava um passo adiante de Mallarmé. A palavra poética, como já se disse no
Canto II, passava a encenar signos em rotação e também signos em translação, girando em
torno de si mesma e de sua matéria significante, ao mesmo tempo que circunda a estrutura
social, justamente porque Mallarmé consolidou as bases para o estabelecimento da função
social da poesia como “valor de uso
99
”. Segundo Leyla-Perrone-Moisés:
Não por acaso Mallarmé comparou a palavra à moeda que passa de mão em
mão e se gasta, perdendo o relevo e o brilho. Banalizada e desgastada no
manuseio cotidiano, a linguagem perde seu valor-ouro e adquire um mero
98
Usar a linguagem imposta significaria, para o poeta que deseja fazer greve, aceitar que houvesse apropriação
de mais-valia sobre seu trabalho. Ao transformar a linguagem em um fim em si, incorporando em seu valor todo
o trabalho gasto para produzi-la e nada mais, o poeta rompe com a lógica perversa da acumulação e lança a
poesia para um futuro ideal: sem mais-valia, onde o trabalho socialmente útil será capaz de manter o
funcionamento da sociedade. Vale ressaltar que, em termos da teoria marxista, é socialmente útil aquilo que
passa por transformação, esta garantida pelo uso de força de trabalho. Portanto, ao pontuar o trabalho do poeta,
os poetas críticos da modernidade de fato cumprem seu papel atribuindo à poesia uma função social.
99
Para a teoria econômica, os bens têm valor de uso e a moeda tem valor de troca, que ela, em si, tem
serventia na troca dela mesma por bens. Em Mallarmé, se a palavra poética assume valor de uso no lugar de
valor de troca, isso significa que ela não mais vai intermediar a troca, mas vai ter um valor per si, exatamente
como o ouro se guardado como riqueza. Ou como a dança de Valéry.
valor venal. Contaminadas pelas relações econômicas, todas as relações
humanas, trocadas no miúdo da fala, se corrompem e se desgastam. A
função do poeta moderno, assumida exemplarmente por Mallarmé, é opor-
se a esse comércio aviltante, e propor a utopia das trocas linguageiras. Seu
trabalho consiste em “dar sentido mais puro à palavras da tribo”, fazer com
que elas, em vez de funcionar apenas como valores de representação da
realidade, instaurem uma realidade de valor. (PERRONE-MOISÉS, 2000,
p. 32).
Não basta, entretanto, mencionar o desgaste causado pelas relações econômicas,
inclusive na poesia. Ainda que a palavra deva superar esses usos comuns, e na poesia, esse é
seu precípuo papel, é importante pensar também na linguagem do poema como instrumento
de transformação dessas relações econômicas e sociais. Além de a palavra recuperar seu valor
de palavra (valor de uso), é preciso que esta recuperação esteja inserida em um projeto social;
é preciso que haja um fortalecimento desta “moeda palavra” como valor de troca mesmo,
como instrumento de mbio entre a obsolescência das potencialidades de um país e sua
renovação em todos os sentidos, a começar pela linguagem. As vanguardas procuraram criar
meios para que este duplo papel da palavra fosse cumprido. Os manifestos futuristas russos
recorrentemente apontam para essa dupla necessidade de revigoramento da palavra.
A obra de Haroldo de Campos retoma, amiúde, muitos aspectos formais do
movimento futurista russo e, também, de Roman Jakobson, cuja ligação com os poetas russos
foi intensa. A literatura russa foi incorporada ao paideuma concretista tardiamente, na
década de 60, entretanto, os estudos realizados pelos poetas paulistas acerca da literatura
russa, foram muitos: tornaram-se tradutores de importantes poetas, como Maiakóvski e outros
representantes da poesia russa moderna.
Os futuristas russos defendiam que a revolução social passasse, obrigatoriamente, por
uma revolução na linguagem. “Só arte revolucionária se houver forma revolucionária” é o
célebre aforismo de Maiakóvski. Haroldo de Campos experimentou esta revolução das formas
de muitas maneiras, tendo em mente que linguagem é um agente de mudanças sociais
(CAMPOS, H. 1996). Assim, também o uso da forma fixa significa um tipo de engajamento
(CAMILO, 2002, p.56) como se discutiu no final da leitura do Canto I. Retomar o velho para
criar o “absolutamente novo” significava, como se verá a seguir, do ponto de vista dos poetas
russos do início do século XX, dar à palavra a chance de “desbanalização” e, em
conseqüência, dar à sociedade, a chance de operar mudanças significativas.
Se a palavra tem esse duplo papel, qual seja, o de materialidade poética e o de
mudança social; se a palavra é simultaneamente ambos, ora tendendo mais para um aspecto,
ora para outro, não é possível pensar na linguagem poética como desvio. Isso significa que, as
funções da linguagem, aquela dos usos comuns e aquela que vale como fim, o caminhar e a
dança, fazem parte de um mesmo sistema comunicativo, predominando de acordo com as
intenções do ato comunicativo. Na Rússia do final do século XIX e início do século XX, um
jovem lingüista, amigo de poetas, já refletia sobre isso – Roman Jakobson. Sua posição diante
dos estudos da linguagem poética é crucial para a compreensão do tratamento dado por
Haroldo de Campos à poesia enquanto tal.
III.2.2 Futurismo russo e formalismo: teorização vinculada à
produção poética
Leitores de Mallarmé, em maior ou menor grau, os futuristas sublinharam muitos dos
aspectos de renovação da linguagem apontados pelo poeta francês, além de colocarem de
forma mais veemente o compromisso da arte em termos de engajamento social, notadamente,
nos termos da revolução iniciada na linguagem, que romperia os automatismos e faria imperar
a velocidade e a mudança, conforme apontado por Octavio Paz, em Os filhos do Barro (p.
54)
100
.
Vale notar que o fato de serem ou não leitores assíduos de Mallarmé não é tão
importante quanto o fato de que havia uma mudança de mentalidade, de concepção da arte,
que se espalhava pelo mundo, ainda que não houvesse contato direto entre os artistas; como
se determinadas questões se manifestassem de maneira imperiosa num dado momento
histórico, deduzindo-se quase automaticamente das pesquisas em curso”
101
. A ruptura na
estrutura poética afirmou-se de maneira definitiva com o futurismo. Como assinala Stempel:
[...] O aspecto absoluto não da palavra, mas também com
freqüência do som, das letras, da forma gramatical, em suma, do
material verbal, e também das imagens verbais, não podia deixar
qualquer dúvida de que se tinha chegado a um ponto do
desenvolvimento da técnica poética onde as concepções
tradicionais tinham de falhar. (STEMPEL, In: LIMA, 1983, p.391).
100
Essa preocupação dos futuristas russos explica-se pelo envolvimento de toda sociedade russa com os ideais da
Revolução de 1917, e com o momento que a antecedeu. Infelizmente, muitos dos poetas que sonhavam com essa
mudança morreram desiludidos com sua utopia. A esse respeito cf. CAMPOS, H. A margem da margem. São
Paulo: Companhia das Letras, 1984 e JAKOBSON, R. My futurist year. New York: Penguim.
101
ECO, U. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968. No prefácio à edição brasileira Umberto Eco comenta o
fato de Haroldo de Campos, antes dele, ter discutido a idéia de obra de arte aberta. Ele, sem ter conhecimento do
texto, acaba por dedicar-se à mesma pesquisa, justamente porque sempre essa mudança de mentalidade em
curso.
Para os futuristas russos
102
, cujo protesto tentava atingir toda a tradição literária do
século XIX (especialmente de seu país), a sonoridade da palavra era o principal tema e
material da poesia; pensavam o elemento sonoro como se fosse pictórico. Queriam encontrar,
na linguagem verbal, os mesmos elementos que os cubistas propunham em seus trabalhos. A
base da teoria futurista era o conceito cubista das artes visuais, como se o som pudesse ser
tratado da mesma forma que figuras e linhas geométricas.
Vale lembrar que o cubismo significou um questionamento da idéia da mimese. O
pintor cubista, ao contrário do realista, por exemplo, não tinha como intento que seu
observador acreditasse estar diante de algo real; a natureza não seria mais imitada pela
descrição de seus objetos. Marcadamente intelectualizado, o movimento cubista era um
profundo exercício cerebral e crítico; denunciava o bom gosto e a idéia de que um padrão
socialmente estabelecido para atribuir critérios positivos ou negativos a uma manifestação
estética (de novo o belo relativo baudelaireano?).
A pintura cubista apresentava inúmeras perspectivas da obra de arte, que começou a
ser observada de diferentes ângulos. A multiplicidade de pontos de vista permitia, por um
lado, a inclusão de novas formas de concepção do objeto; por outro, sublinhava o próprio
caráter contraditório da realidade, dada a ausência de ligação analítica (em termos cartesianos)
proposta pelas obras. (LOPES, 2001, p.23-25).
No manifesto intitulado A palavra enquanto tal (Slovo kak takovóie), de 1913, pode-se
notar o aproveitamento da estética cubista para a literatura. Krutchônikh e Khliébnikov
propõem a teoria da relatividade da palavra, semelhante ao conceito de objeto dos cubistas:
imagens deslocadas, forma difícil, percepção difícil. Isso explica, em parte, porque a conexão
entre desenho e poesia foi estreita nos trabalhos futuristas. Suas coletâneas apresentavam não
apenas poemas, mas, inclusive, desenhos, que eram parte integral da poesia - fazia sentido a
poesia ter uma orientação gráfica, que o signo gráfico era parte da palavra registrada
103
. Da
mesma maneira que Georges Braque costumava pregar, os futuristas “não acreditavam em
coisas, mas nas relações mútuas entre elas”.
102
Voltamos a frisar que vamos aqui tratar do futurismo russo por seu estreito laço com os poetas concretos, que
ao movimento dedicaram ensaios, traduções e análises. De modo algum há intenção de minimizar a importância
do futurismo italiano e de outros movimentos de vanguarda, como o surrealismo. Há, ainda, outra razão especial
para dedicar algumas páginas à vanguarda russa: a ligação desta com Roman Jakobson, referência obrigatória
quando se pretende falar da concepção de poesia de Haroldo de Campos, foi estreita e determinante para o
percurso do lingüista.
103
Esse aspecto faz-se presente também em manifestações de outros artistas oriundos de diferentes países. É o
caso, por exemplo, de La prose du Transsibérien et la petite Jehanne de France, de Blaise Cendrars (1913),
conforme aponta Marjorie Perloff (1993).
Hugo Friedrich em seu trabalho A estrutura da lírica moderna (1978, p.15-34)
destaca que a preocupação do poeta pós-Baudelaire com a forma é exacerbada, a ponto de ele
concentrar-se na sonoridade, na distribuição espacial do poema, na dissonância e tensão
causadas por um texto que não mais poderá ser compreendido por seu conteúdo apenas. O
poema é marcado pela auto-reflexividade e, mais do que em outros momentos históricos,
passa a ser criação auto-suficiente, cuja significação é determinada pelo aspecto multifacetado
de seus significantes. Em AMMR, o caráter caleidoscópico foi enfatizado mais de uma vez: o
significado do poema é esvaziado de sentido se não se considerar a arquitetura dos
significantes, inclusive sua distribuição espacial. Também para os primeiros modernos, a
preocupação preponderante com a sonoridade não significou “despreocupação” com a
espacialidade. Diz Haroldo de Campos sobre a marca de Mallarmé em Maiakóvski:
Nessa vertente, pode-se dizer que Maiakovski fez com a dialética espacial
de Mallarmé, instrumento para pura especulação abstrata, o que Marx fizera
com a dialética hegeliana: colocou-a de pés sobre a terra, reverteu-a em
técnicas de marcação elocutória, apta à linguagem do comício e da
agitação. [ ] Assim, Maiakóvski é um poeta espacial, no sentido de que
concebe o poema como partitura de leitura [Mallarmé], em que os ictos da
emoção são escandidos graficamente no branco do papel. (CAMPOS, H.
1976, p.50, 51).
Haroldo de Campos revela aqui a própria necessidade de compreensão exata do que
significa para Mallarmé crise de vers”, discutida na seção anterior. Ao mencionar que
Maiakóvski transforma o poema em partitura de leitura, indica que verso e que o que
Mallarmé propunha não era, definitivamente, seu fim. Como crítico de Maiakóvski, Haroldo
de Campos elucidava um princípio usado em sua própria criação poética (verso = partitura de
leitura).
Deve-se notar que, além das leituras dialógicas da obra poética haroldiana, a
compreensão de AMMR amplia-se quando é observada a produção crítica do autor. O verso-
partitura é um exemplo: a orquestração de AMMR, os acordes melódicos de assonâncias e
aliterações são, de fato, “os ictos da emoção escandidos graficamente no branco do papel”,
pelo poeta. Mas não é apenas de Maiakóvski que advêm muitas das concepções de renovação
da linguagem em Haroldo de Campos traços do movimento futurista de um modo geral
podem ser encontrados em sua obra, como, por exemplo, a preocupação com a renovação da
linguagem.
A maneira encontrada pelos futuristas para colocar a palavra como enfoque de seus
trabalhos artísticos foi a poesia transracional (zaumniki, ou zaum, simplesmente), concentrada,
especialmente, na experimentação lingüística, na desautomatização da linguagem e, por
conseguinte, em sua renovação por meio, principalmente, da criação de neologismos. A língua
transracional deveria assumir a linguagem das ruas, uma verdadeira bofetada no gosto
público, nome de um dos manifestos futuristas, cujo tom panfletário (e autoritário) assemelha-
se ao dos futuristas italianos: unicamente nós somos a face do nosso tempo, como diriam os
futuristas italianos.
Explicando melhor: o leitor dessa nova poesia deveria se concentrar, em especial, na
mensagem poética em si; não apenas nos significados que se escondiam por trás das palavras,
porém, primordialmente, naqueles que elas mesmas desnudavam frente aos olhos e aos
ouvidos deste leitor. Sua leitura seria não leitura-interpretação (alma, sentimentos), mas
essencialmente, leitura-busca (palavra, imagem, som).
A leitura da poesia dependeria, por isso, da argúcia do leitor em perceber
organizações da linguagem que apontassem um mundo e seus significados, ou seja, uma
leitura que pudesse ser convidativamente transcriadora, que apreendesse a instabilidade dos
próprios significados das palavras, atadas por laços que não as deixariam dissociar-se umas
das outras. Dizia Khliébnikov:
Tendo substituído na velha palavra um som por outro, imediatamente
criamos um caminho de um vale da linguagem para outro e, como abridores
de caminhos, estabelecemos vias de comunicação no país das palavras,
através das cordilheiras do silêncio idiomático. (apud POMORSKA, 1972,
P. 129)
Os futuristas não queriam somente renovar a linguagem, inseriam-na em um
programa social. Para eles, a zaum tinha um valor democrático e social, era a língua da ação
pública, cujo ritmo frenético superaria a lentidão do discurso habitual. Tinham como objetivo
o desenvolvimento de um dialeto social, que conforme emergisse, cada vez mais, da
linguagem diária, proporcionaria o triunfo da língua transracional. Vários manifestos trataram
desse assunto e ele foi amplamente discutido na Revista Lef, que embora tenha surgido na fase
final do movimento, quando este se aproximava do construtivismo e se autodenominava
comunista-futurista, foi uma das mais representativas revistas desenvolvidas pelo grupo. Se as
necessidades de mudanças sociais eram pungentes, a mudança da linguagem também o era; o
artista estava à frente do sábio e do industrial, pois era capaz de ver e criar o futuro.
De um modo geral, desde o início do movimento, em sua ambição de renovação da
linguagem, os poetas futuristas acreditavam que poderiam ensinar ao povo a linguagem da
poesia. Da mesma forma que a revolução social conscientizaria a massa sobre uma nova fase
de desenvolvimento econômico que romperia com a estrutura agrária do país, a revolução da
linguagem seria ensinada ao homem da rua que, ao apreendê-la, silenciaria os noturnos e
antigos valores para dar voz ao amanhecer dos novos, mediados linguagem renovada. Os
versos abaixo são de Maiakóvski (uma nuvem de calças) e demonstram a necessidade das
mudanças:
enquanto a referver, vão pipilando rimas
de amor e rouxinol guisados em seresta,
a rua se contrai, desprovida de língua –
sem ter com que gritar, com que puxar conversa
(apud POMORSKA, op. cit: 120)
Interessante notar a proposta de ensinar ao povo a linguagem da poesia Essa é uma
proposta de formação de leitores, mas não no sentido pedagógico e sim sócio-político e
cultural. Daí a idéia de que só há arte revolucionária se a forma for revolucionária. A arte para
os futuristas não deveria ser panfletária, carregada das marcas da linguagem corrente, mas
uma nova linguagem, realmente transformadora. Pode-se, neste ponto, retomar a leitura de
AMMR, resgatando a discussão do leitor a quem o poema está dirigido. Não se trata de um
leitor comum, evidentemente, mas é importante sublinhar que o que talvez esteja em jogo não
seja o desejo do poeta de ser ininteligível; seu desejo de renovação da linguagem obrigaria,
também, uma renovação dos gostos e das habilidades de leitura dos leitores, pois, ao se
sentirem responsáveis pelas palavras, os escritores podem ajudar a sociedade a superar seus
males (ROSA/ LORENZ in: COUTINHO, 1983, p.84). O verdadeiro desejo do escritor é a
invenção, mesmo que seus textos sejam considerados difíceis:
[...] quero voltar a cada dia à origem da língua, onde a palavra está nas
entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem.[...]
Como escritor, não posso seguir a receita de Holywood, segunda a qual é
preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento (ibid.,
p.85)
Rosa também é tido como um escritor difícil, não é o homem da rua que seus
livros. Naturalmente, essa discussão envolve políticas culturais e sociais e é justamente esse
aspecto que era o cerne do projeto de vanguarda russo e é o cerne do projeto de qualquer
escritor que entende que a poesia tem uma função social (ELIOT), ou seja, o de manter viva a
língua para as gerações futuras, mas isso depende da leitura e dos leitores:
Os lugares vazios [do texto literário], em suma, apresentam a estrutura do
texto literário como uma articulação com furos, que exige do leitor mais do
que a capacidade de decodificação. A decodificação diz respeito ao domínio
da língua. O vazio exige do leitor uma participação ativa. No campo da
experiência estética, a interpretação não está a serviço do domínio do
objeto, mas sim da complexidade que por ele se atinja do objeto (o poema,
o romance, o quadro, a peça musical). O que vale dizer, a experiencia
estética não visa ao domínio das coisas, mas contribuir para o pensamento
sobre a relação entre o pensável e o figurável. (LIMA, 2002, 26,28)
Um projeto de contestação dos usos correntes da linguagem, como o anunciado em
uma nuvem de calças de Maiakóvski, não quer atribuir à literatura uma função pedagógica
104
,
ainda que extremamente engajado com a Revolução Russa, mas quer atribuir aos falantes a
condição de “pensadores”. Se os vínculos entre poesia e pensamento são estreitos, como se
discutiu no início deste capítulo, e como se demonstrou ao longo de toda a leitura de AMMR,
naturalmente a produção poética configura-se como máquina que aciona o pensamento do
leitor, colocando-o em movimento e que, portanto, deve ser sempre renovada, repensada.
A grande ironia, entretanto, é que não será qualquer leitor capaz de repensar essa
máquina do poema, em parte porque, como assinala Perloff (1993, p.345), existe uma
tentativa, na arte contemporânea, de proteger a produção artística do vulgar e do popular. É
interessante refletir sobre como toda a tentativa do avant-guerre de romper as barreiras entre o
erudito e o não erudito para promover mudanças malogrou. A arte produzida para as massas
tornou-se inacessível, enquanto a acadêmica passou, aos poucos, a tornar-se acessível (ibid.,
id.).
Maiakóvski, possivelmente, notou essa falência dos ideais futuristas. Como mostra
Augusto de Campos, sua decepção com o regime comunista foi profunda e levou-o,
infelizmente, ao suicídio (CAMPOS, A. 1989, p. 73). Roman Jakobson também dedica um
ensaio a Maiakóvski (A geração que desperdiçou seus poetas), em que mostra como, de fato,
não se soube, naquela sociedade, valorizar a grandeza das idéias de reestruturação social,
política e econômica que começavam por uma renovação da linguagem.
104
Para Iser o texto literário não tem função pedagógica, pois sua peculiaridade “está em uma oscilação singular
entre o mundo dos objetos reais e o leitor” (ISER apud: LIMA, op. cit., p. 27).
Assim como outros poetas, Maiakóvski fixava-se na idéia da poesia como trabalho,
como ofício; e esse aspecto não deve gerar estranhamento depois da discussão acerca dos
vínculos entre poesia e pensamento e depois de apresentadas algumas das idéias centrais de
Poe, Baudelaire e Mallarmé. O programa futurista pressupunha o trabalho do poeta como
profissão; ao ser intensificado, poderia tornar a poesia ciência experimental (nesse caso,
formalizar-se-ia sua utilidade social). De fato, nesse período e não apenas para os futuristas, a
arte é menos beleza e mais um produto; tal aspecto, que poderia contribuir para a
acessibilidade da arte, acabou tornando-se, de certo modo, o algoz das propostas de mudança,
pois a preocupação de que a arte virasse sinônimo de uma indústria que produzia o ordinário,
acabou forçando um caminho de afastamento entre a arte e a massa.
A criação poética e sua análise andariam de mãos dadas. Não era por acaso que
Maiakóvski fazia leituras no Círculo Lingüístico de Moscou, grupo dedicado aos estudos
lingüísticos. E não era por acaso que os jovens estudiosos deste mesmo círculo lingüístico e
da OPOIAZ, esta dedicada aos estudos literários, conhecidos todos como formalistas,
buscaram explicações para a invenção da palavra poética junto a seus amigos poetas; quando
não eram, eles mesmos, os poetas. Na Rússia dos futuristas, estabeleceu-se uma correlação
permanente entre o estudo da criação artística e o da linguagem.
Entendiam que o procedimento verbal era a principal chave para a compreensão do
alcance da linguagem poética. Todas essas reflexões vinham na trilha de uma profunda
tradição de estudos lingüísticos e folclóricos, mas que jamais estiveram tão próximos da
própria criação literária; proximidade esta fundamental para que Roman Jakobson
desenvolvesse aquilo que Umberto Eco chama de a mais operativa definição formulada sobre
o texto estético (ECO, 1997, p. 223): a função poética. Tal definição é ruptora porque
pressupõe a necessidade de confluência dos saberes lingüísticos e literários para a realização
de leituras que busquem a apreensão das especificidades do texto estético. Diz Jakobson:
Todos nós que aqui estamos, todavia, compreendemos que um lingüista
surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura
indiferente aos problemas lingüísticos e ignorante dos métodos lingüísticos
são, um e outro, flagrantes anacronismos (JAKOBSON, 1999 , p. 162).
Sem transformar as idéias jakobsonianas em amarras para compreender o texto
poético, o que causaria espanto ao próprio poeta da lingüística, serão discutidas brevemente
suas idéias pela importância que possuem e pelo fundamental papel que exerceram nas
reflexões de Haroldo de Campos sobre poesia, seja no que concerne ao seu próprio fazer
poético, ou ainda, no que diz respeito a suas atividades críticas e tradutórias de um modo
geral
105
.
III.3 Roman Jakobson, poeta da lingüística, amigo de Haroldo de
Campos
vi roman jakobson em la jolla
califórnia ano 66
(a seu lado krystina pomorska loura cabeça altiva)
passei rápido pelo teste das palavras trocadas:
v zviózdi vriézivaias/ "entremeado às estrelas"
buraco negro na primeira estrofe
do poema de maiakóvski a sierguei iessiênin
(venha ouvir krystina um poeta brasileiro
que resolveu o problema da rima às avessas
na tradução dos versos de vladímir)
convidou-me então a comer comida árabe
e foram muitas as vezes e os lugares em que nos revimos
encontros marcados por luminosas doses de vodca
(albo lapide notari - diziam os romanos)
e até mesmo me destinou uma carta
aberta
depois de ter lido as coplas de martin codax
sobre o mar de vigo
(meninos eu vi, Haroldo de Campos, 1998)
105
Apenas para que se tenha uma idéia da amizade e das referências jakobsonianas na obra de Haroldo de
Campos citamos os seguintes excertos:
“As an admirer of that supreme flair for the innermost ties between sound and meaning, a flair which underlies
and sustains the daring poetic experiments and thrilling discoveries of Haroldo de Campos and which inspires
his extraordinary transpositions of seemingly untranslatable poems from quite divergent languages, I would like
to share with him my cursory observations on an exquisite specimen of thirteenth-century verbal jewels, the fifth
of the seven Cantigas d’amigo by Martin Codax”. (JAKOBSON, 1981, p.169).
A função estética da linguagem dificilmente se presta à análise [...]. Tem cabido sobretudo a um lingüista,
Roman Jakobson, desafiar essa dificuldade [...] Dir-se-á que Jakobson não é bem um lingüista, ou antes, é mais
do que um lingüista: é um gênio [...] Por força dessa “inteligência excessiva”, o mestre russo-americano
projetaria sua personalidade sobre certos problemas ainda em formação, antecipando e por vezes
predeterminando seu desenvolvimento” (CAMPOS, H. 1976, p. 103, 104).
Stempel (op cit, p.97), em seu ensaio sobre a teoria formalista da linguagem poética,
ressalta que, no século XIX, as novas idéias teóricas sobre poesia não davam conta de uma
compreensão ampla do que se estava produzindo. A crítica não estava preparada para aceitar
Rimbaud e Mallarmé e o caráter emancipado e provocante de suas obras.
Talvez, dadas as contingências históricas, a crítica não pudesse mesmo perceber a
grande dimensão do que se afigurava; talvez não pudesse perceber a emergência de uma
poesia que vinha sendo gestada algum tempo: metonímica, fragmentada,
intelectualizada, um exercício de reflexão sobre o próprio labor do poeta e que tem, em
AMMR, um exemplo modelar, como se pôde notar pela análise do poema que destacou,
justamente, o caráter metonímico do texto, a metalinguagem e a intelectualização, o jogo.
No caso do grupo dos formalistas russos, as reflexões sobre a poesia não surgiram,
naquele momento, nas universidades, mas no seio da revolução da linguagem poética, de
grande alcance e determinante de várias das características da poesia moderna. Um dos
pressupostos básicos dos formalistas, e que estava totalmente atrelado à concepção futurista
de poesia, era que a teoria da literatura constituía-se numa generalização da prática literária, e,
na prática literária, a forma e o conteúdo não estariam dissociados: o efeito paronomástico, a
linguagem transracional, os jogos de palavras e a própria relação entre diversos pontos de
vista, herança do cubismo, sinalizavam a indivisibilidade da forma e do conteúdo, do
significante e do significado. Essa indivisibilidade também poderia (e deveria) ser tratada com
acuidade pela crítica.
A tradição russa no estudo da estilística sempre esteve centrada nos fatores cruciais
para o desenvolvimento da linguagem e das distinções entre as diferentes manifestações da
mesma. Jovens estudiosos russos, como Jakobson e Chklóvski, foram fortemente
influenciados por tendências como cubismo, futurismo italiano e as manifestações artísticas
que tinham lugar no interior da própria Rússia.
Roman Jakobson, nos trabalhos da juventude, mostrou que a mensagem poética é
orientada para a expressão e governada por leis imanentes. Posteriormente, Jakobson definiu
seis funções para a linguagem, cada uma centrada em um dos aspectos da comunicação.
Segundo Jakobson, podemos falar em poesia quando, numa obra literária, aparece
poeticidade: uma função poética, centrada na mensagem
106
e de alcance decisivo, permitindo-
lhe reger as demais funções da linguagem. O que organiza essa poeticidade dos textos
106
As funções para Jakobson são as seguintes: emotiva (centrada no remetente); conativa (centrada no
destinatário); fática (centrada no canal); metalingüística (código); referencial (centrada no contexto) e poética
(centrada na mensagem).
poéticos é o que chamou de dominante (JAKOBSON, In: LIMA, 1983, p. 485, 491).
Acreditava que as funções da obedecem a uma hierarquia; em outras palavras, estão
tensionadas no discurso, pois ocorrem ao mesmo tempo, embora uma predomine sobre as
outras.
Isso define qual é a função dominante em cada texto. Para Jakobson, não textos
"puros" no que concerne à função dominante, mas sim com graus de aproximação que tendem
mais para a função poética da linguagem ou mais para as outras funções, dependendo da
intenção da mensagem. Esse mesmo aspecto foi comentado neste trabalho quando se
discutia o duplo papel da palavra poética e, portanto, a impossibilidade de esta ser entendida
como desvio, que encerra tanto a poeticidade quanto a referencialidade, embora a primeira,
no seu caso, seja dominante. Essa dominância pressupõe, evidentemente uma hierarquização.
A hierarquização das funções é importante e deve ser sublinhada, pois não significa
que haja oscilação de uma para outra, em termos binários e/ou lineares
107
, mas há um processo
bem mais complexo de ocorrência das funções simultaneamente o que determina que esse
dominante não seja absoluto, mas relativo. A idéia de hierarquia das funções da linguagem
refuta, teoricamente, portanto, a noção de poesia como desvio da norma, para afirmá-la como
parte dos mecanismos de comunicação e que pode se manifestar de acordo com a ênfase à
mensagem e em processos comunicativos que não sejam exclusivamente literários. Como
pontua Waugh:
The poetic function can be found elsewhere and poetry includes other
functions; but poetry is that use of language par excellence in which the
dominant function is the orientation toward the message. Now, the
definition of poetic function should, as with all statements by Jakobson, be
taken as relational: in the poetic function, in relation to and as against the
five other functions of language, there is a dominance of a focus upon the
message […]. Dominance presumes a hierarchization of functions, not an
absolutization of functional differences. (WAUGH, In: POMORSKA E
RUDY, 1985, p.144).
107
Por isso acreditamos que não cabe aqui o termo gradiente, emprestado da física pelos semioticistas da linha
francesa. O gradiente, nesse caso, variaria de uma para outra função, apenas. Por exemplo, como se fôssemos do
extremo da linguagem referencial para a poética simplesmente. Dado que mais de uma função operando, o
fato de uma função tornar-se dominante não significa que as demais permaneçam com organização constante, e
sim, deve-se considerar que o modelo de funções de Jakobson é multivariado/ multifuncional e, portanto, o
conceito de gradiente não se aplica. Em outras palavras: Vamos supor que a função referencial seja dominante e
que seja seguida das funções conativa, fática, poética, metalingüística e emotiva. Se a função emotiva passar a
dominar a ordem anteriormente estabelecida não necessariamente se mantém (o que permitiria o tratamento de
gradiente), mas pode alterar-se completamente. A hierarquização importa se for admitida em termos relacionais.
O conceito de gradiente se aplica se tomarmos as funções duas a duas.
O processo que permite essa dominância da função poética e, pelo qual se manifesta
essa aproximação entre significante e significado, é o que a teoria jakobsoniana denomina
projeção do princípio da equivalência do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático. Como
se sabe, a construção da mensagem é baseada na complexa interação entre operações de
seleção (entre uma variedade de sinonímias, antinonímias, contraste, equivalência) e
combinação, em que a primeira normalmente precede a segunda. A projeção do princípio de
equivalência faz com que as semelhanças sejam majoritariamente usadas na construção de
toda a seqüência, de tal modo que:
Syllable is equated with syllable [...]. Or stress is equated with stress, thus
becoming a unit of measure […]; long vowels is equated with long vowels,
word boundary with word boundary […] The verbal material displays
overall a hierarchical structure symmetries, based on repetitions,
regularities, and systematizations of various kinds. There is, in other words,
radical parallelistic reorientation of all verbal materials it relates to the
building of the sequence. […] Moreover, such parallelisms create a network
of internal relations within the poem itself, making the poem into an
integrated whole and underlining the poem’s relative autonomy. [...] There
is also in poetry the projection of the principle of contrast […] this
projection of both equivalence and contrast is not only a way of giving an
internal, autonomous structure to the poem, but is also a way to
transcending the linearity proper to any linguistic text. (WAUGH, ibid., id.)
Ora, tal processo foi amplamente discutido na Parte II deste trabalho e as considerações
acima comprovam, por assim dizer, o quanto das idéias jakobsonianas estiveram presentes na
concepção de poesia de Haroldo de Campos. Isso se deve ao fato de Haroldo ser poeta, mas
também crítico e tradutor; sua poesia não é feita apenas como reinvenção da tradição, como se
disse até este ponto, mas a partir de aprofundados estudos de teoria literária. A obra
haroldiana revela como a poesia se faz poesia, em primeiro lugar, é claro, pela própria
poeticidade de seus textos, pelos procedimentos usados; em segundo lugar, porque estes
procedimentos são, no caso de Campos, pensados teórica e sistematicamente, por meio de seu
trabalho de crítico e tradutor, o que revela, de fato, sua atitude poético-investigativa.
Isso faz muita diferença para o estudioso de sua obra, que deve mostrar que a leitura de
sua poesia é crivada de atitude intelectual e gera sua própria gramática; apreender-lhe o
sentido é apreender a ambigüidade da mensagem poética construída com argúcia.
Quando se opera a projeção que origina a função poética, as relações de semelhança
(metafóricas) e de contigüidade (metonímicas) passam a se confundir ou a coincidir,
determinando a emergência de um dominante poético, por isso em AMMR a poesia é
definitiva, pela organização que o princípio de projeção engendra no texto. Pelo fato de ser
um poema moderno, em AMMR, esse procedimento se acentua como reflexão, porque o
poeta, cônscio de uma necessidade de ruptura das estruturas analógicas mais simples, passa a
estabelecer metáforas, cuja referencialidade apresenta-se ampliada, instaurando infinitas
possibilidades de leitura, conforme o esquema de Severo Sarduy citado na Parte II do
trabalho. Quanto mais as palavras tornam-se ícones, mais as relações analógicas se
estabelecem também por contigüidade e não apenas por semelhança, por isso as metáforas são
também metonímias, como já se verificou pela leitura de AMMR. Diz Jakobson:
Em poesia, não apenas a seqüência fonológica, mas, de igual maneira,
qualquer seqüência de unidades semânticas, tende a construir a equação. A
similaridade superposta à contigüidade comunica à poesia sua radical
existência simbólica, multíplice, polissêmica [...]. Em poesia, onde a
similaridade se superpõe à contigüidade, toda metonímia é ligeiramente
metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico. (JAKOBSON, op.
cit.,. 149,150)
Isso significa que a teoria poética não pode ser totalizadora, ou seja, nenhum conceito
pode ser pensado independentemente de outros. Não, há, portanto, uma organização
harmônica do plano metafórico e do plano metonímico, por exemplo, mas, “ao contrário dessa
absolutização idílica, o que há é um congestionamento de tensões dialéticas que adquirem seu
sentido e sua força precisamente no conflito” (BALDAN, 1994, p.204).
Essa situação é abundante em AMMR; a todo momento, tais aspectos podem ser
identificados, tanto como resultado do trabalho e do pensamento do poeta, como resultado do
trabalho e precisão do pensamento do crítico e do teórico que foi Haroldo de Campos. É por
meio desses aspectos que se identificam os elementos da gramática poética haroldiana, em
AMMR, e a magnitude de seu poema, que também pelo caráter crítico e tradutório sintetiza a
obra do autor.
O paralelismo fonológico, sintático e semântico, os elementos marcados, como as
paronomásias predominantes, desempenhando funções diferentes, a organização sintática e a
metalinguagem permitem o estabelecimento de relações entre as várias partes do texto, como
fizemos ao longo da leitura; essa rede de relações dá espaço a uma hierarquização das mesmas
o que, por sua vez, permitiu-nos sublinhar, a todo momento, o caráter da busca empreendida
pelo poeta. Esses aspectos: o paralelismo, os elementos marcados e a hierarquização tornam
operante a função poética que percorre todo o texto
108
.
A idéia jakobsoniana das funções da linguagem, e mesmo a formulação do princípio da
projeção, recuperam alguns elementos da semiótica de Charles Peirce (1972), outra influência
significativa na obra de Haroldo de Campos
109
. Segundo Peirce, os signos podem ser
classificados em ícones, índices e símbolos. Os ícones são signos que guardam intensa relação
com o que representam, relação por semelhança. Os índices são signos que guardam uma
relação não de similaridade, mas de contigüidade, por exemplo, fumaça é indício de fogo;
pegadas são indícios da passagem de alguém, ou de algum animal. Os mbolos são signos
que também estabelecem relações de contigüidade com o que representam, mas relações ainda
mais distantes do que a dos índices como, por exemplo, as palavras.
Jakobson, seguindo as idéias peirceanas, contesta a arbitrariedade dos signos enunciada
por Saussure, à medida que mostra que não é a presença ou a ausência de similitude ou de
contigüidade entre o significante e o significado que constituem a divisão dos signos, mas a
predominância de um aspecto sobre os outros (JAKOBSON, 1981, p. 104). Ou seja, pode-se
notar aqui que a idéia de tensão entre as funções da linguagem deriva desses pressupostos
110
.
Da mesma forma que acontece com as funções da linguagem, a distribuição dos signos em
ícones, índices e símbolos não se manifesta de modo linear, mas, obedecendo a uma
hierarquia, os três aspectos encontram-se sempre tensionados e co-existem, dinamicamente,
prevalecendo um sobre o outro.
Jakobson, considerando os processos de organização da linguagem sugeridos por
Saussure (eixo paradigmático e sintagmático), incorporou a idéia peirceana de signos para
mostrar que na poesia, por conta do princípio de projeção, os símbolos (palavras) passam a
ser ícones (figuras) (PIGNATARI, 1983, p. 9 15), mas de tal sorte que não deixam de ser
símbolos; por isso, nesse caso, o aspecto icônico, o caráter indicial e simbólico estão
108
A respeito da Gramática Poética de Roman Jakobson, cf. BALDAN, 1994, p.211 – 220.
109
Para que se tenha uma idéia do respeito de Haroldo de Campos por Peirce: “O argumento não faz justiça à
ciência da linguagem, que fica assim reduzida à condição daquelas Universidades americanas, [...] que se
mostraram pequenas demais para conter a genialidade de um homem como Charles Sanders Peirce”. (CAMPOS,
H, 1976, p. 104).
110
A despeito das oposições binárias entre os fonemas das quais Jakobson trata em vários ensaios, em especial
em Seis Lições sobre o som e o sentido, não se pode dizer que o lingüista russo estivesse preso ao logocentrismo
estruturalista; pelo contrário, sua convivência com os poetas e pensadores russos e a influência peirceana foram
determinantes para suas reflexões acerca da linguagem poética colocando-a sempre sob perspectiva tensional e
relacional.
amalgamados, configurando o que Peirce chamou de signos perfeitos. Daí a idéia de
materialidade e palpabilidade das palavras na poesia.
As estrofes iniciais de AMMR, que apresentam as feras e o ingresso no sertão, servem de
exemplo para a percepção dessa união icônica, indicial e simbólica. De um lado, as sibilantes
e as fricativas levam ao limite icônico a representação das feras; de outro, o caráter simbólico
dessas aliterações é composto por imagens como da leoa, da onça e do sertão, estreitamente
vinculados à sonoridade do poema e que não deixam de ser índices (neste caso, rastros) dos
caminhos da tradição trilhados pelo poeta e do significado que têm para esta mesma tradição.
Mais do que a consciência dos efeitos de sentido do plano de expressão, asseguradas pelo
ofício do poeta pensador, a consciência do caráter triádico do signo postulado por Peirce,
cujos preceitos semióticos ocuparam, ao longo da carreira universitária de Haroldo de
Campos, ensaios, cursos de pós-graduação, orientação de trabalhos. Ou seja, a maquinaria do
poema é construída pelo poeta, mas o lubrificante, o que faz a engrenagem girar encaixando
peças e peças é o poeta-teórico e o poeta-crítico que amparado pelo suporte do saber literário,
instaura ainda outros diálogos, desta vez com os aportes teóricos da literatura, tornando a
leitura do texto abissal, já que os níveis de profundidade vão se ampliando e tendem a infinito,
posto que pautados pela suplementaridade derridiana, nexo-nex, discutida no final do Canto
III. Poder-se-ia fazer uma apropriação da consideração derridiana sobre a língua para tratar do
caleidoscópio poético, repensado por Haroldo de Campos em sua máquina-poema. Diz
Derrida:
Não haverá nem uma linha histórica nem um quadro imóvel das línguas.
Haverá um torno de linguagem. E esse movimento da cultura será ao
mesmo tempo ordenado e ritmado segundo o mais natural da natureza: a
terra e a estação do ano. As línguas são semeadas. E passam, elas mesmas,
de uma estação a outra. (DERRIDA, 2004, p.265, grifo do autor).
Na poesia de Haroldo de Campos e, em especial, em AMMR, não há também linha histórica
ou sequer um quadro imóvel para as obras consideradas cânones; o que há, em Haroldo de
Campos, é este torno da linguagem de que fala Derrida, um movimento ordenado e ritmado
ciclicamente, um ir e vir da linguagem e da dicção do poeta. No caso do poema AMMR, a
ordenação do verso, da volta, constantemente engendrada pela terzina e pelo enjambement.
As palavras do poema são semeadas (talvez assim dissesse Antonio Vieira sobre o sermão) e,
como sementes, impõem metamorfoses no corpo do texto, ou na corporalidade das diferentes
culturas que foram convocadas ao longo do poema, as quais, com impulso ruptor, esfacelaram
a linearidade histórica pelo próprio esfacelamento da linearidade do poema, que é, em certa
medida, a resolução pessoal do poeta para a crise de verso, ou para a sua própria cisão, cisão
da referência, cisão do leitor. Não se esgotam os diálogos do texto.
Para não deixar de continuar, portanto, nessa jornada abissal, que a organização do
palimpsesto AMMR representa, não se poderia deixar de comentar a leitura haroldiana de um
certo Saussure, cujas reflexões se aproximam bastante da idéia jakobsoniana de função
poética. Sempre preocupado em buscar a inventividade e a criação, Haroldo de Campos
(1976, p.118) nos apresenta um Saussure de vanguarda. Em seus Anagramas, Saussure parece
ter chegado ao “lance de dados” da leitura do texto poético. Um dos aspectos considerados na
leitura do mestre genebrino diz respeito a um tipo particular de anagrama concernente à figura
fônica. Depois de vários estudos sobre aliterações, rimas e assonâncias no verso latino,
Saussure teria chegado ao termo paragrama para designar o fenômeno geral em que um nome
simples desdobra-se de modo complexo nas sílabas de um mesmo verso (ibid, p.108), como o
sertão, o mar, as feras e o mundo de AMMR. Além dos paragramas, Ferdinand Saussure teria
estudado, entre outros aspectos, harmonias fônicas resultantes de repetições de alguns
elementos no verso.
O fato para o qual Haroldo de Campos chama a atenção é que, ao considerar tais
especificidades para o texto poético, Saussure rompe com um de seus mais rigorosos axiomas,
qual seja, o da linearidade, e chega muito próximo do princípio de projeção jakobsoniano, o
que torna este seu trabalho “um instrumento inestimável para a avaliação da poesia” (ibid,
p.114). Portanto, Saussure merece ser lido sincronicamente, sem que se considere que os
Anagramas sejam anteriores ao Cours, de modo que poderiam parecer abandonados pelo
lingüista. Pelo contrário, cabe aqui a retomada daquilo da obra que é relevante e revelador
para a compreensão da linguagem poética na modernidade, ou para as gerações futuras em
termos de paideuma. São muito mais fecundas as sementes de Saussure
111
.
De qualquer forma, em Jakobson ou em Saussure, a dupla natureza do signo poético
impõe ao poeta uma consciência crítica à medida que vai deixando de reconhecer
exterioridades à sua obra, estabelecendo, nela mesma seu próprio “manual de instrução”.
Entretanto, este manual de instrução não é autônomo. O grande mérito das
formulações de Roman Jakobson não se restringe apenas à discussão das funções da
linguagem e da função poética, especificamente, mas também ao estudo da substituição dos
estilos na história da literatura e das artes, a qual, segundo ele, ocorre de modo sistêmico e
111
Os comentários sobre Saussure são interessantes porque reforçam a idéia de que o paideuma haroldiano é
mais inclusor do que exclusor.
não apenas evolucionista como tendem a achar os estudos históricos. Essa preocupação é
conseqüência de sua própria experiência de vida, marcada por um momento de efervescência
dos questionamentos dos usos da linguagem poética e da consciência que tinha de que tais
questionamentos ruptores tinham começado bem antes do futurismo.
Para que se entenda o centro do enfoque de um trabalho artístico, de uma época ou de
um autor, é necessário resgatar a história da época e/ou do autor como componente
semântico, que articulado aos demais, garante o entendimento do processo que está sendo
vivenciado. Segundo Jakobson, há uma tensão entre poética e história: a essência da inovação
na arte é dada pela simultaneidade entre o manter da tradição e a ruptura com a tradição (o
eterno e o transitório baudelaireano?); não é possível desconsiderar a permanente
contribuição para a poesia daqueles elementos cristalizados pela tradição, que são
recuperados pela invenção lingüística e não se mantêm exclusivamente pela mudança, mas
também pelos fatores contínuos e duradouros, por conseguinte, dotados de um passado e de
um futuro, que representam indefinidamente.
A inseparabilidade dos elementos do sistema mostra que a questão da origem desse
sistema é discutível. A origem, conforme as considerações feitas ao final da leitura do Canto
III, nesse caso, é rasurada e sua determinação desnecessária, posto que a estrutura do discurso
poético (e artístico de um modo geral) merece ser estudada não do ponto de vista
logocêntrico, linear, mas da perspectiva de suas relações diferenciais.
Não há, nesse sentido, “influência” que predomine sobre determinado poeta, mas um
jogo de différance
112
. Levando isso em consideração é que se pode reafirmar a relevância da
abordagem sincrônica. Entretanto, deve-se admitir a necessidade de que essa abordagem não
despreze uma “dimensão histórica em que o toque de escolha [seja] dado pela pervivência dos
poemas” (CAMPOS, 1998, p.21), ou seja, um passado e um futuro, todavia, estes atuam de
modo sistêmico e não linear. A pura sincronia é um perigo tão grande quanto a pura diacronia.
A esse respeito advertem Jakobson e Tynianov:
The sharp opposition between synchronic and diachronic cross-sections has
recently become a fruitful working hypothesis, both for linguistic and for
history of literature […]At the present time, the achievements of the
synchronic concept force us to reconsider the principles of diachrony as
well. [Although][…] the history of a system is in turn a system. Pure
synchronism now proves to be an illusion: every synchronic system has its
112
Ao conceito de presença, ligado à identidade, Derrida articula a palavra différance, sonoramente igual à
palavra francesa différence (diferença), porém comportando um erro inaudível na pronúncia da palavra [...]
Derrida busca mostrar que a diferença em relação a si é constitutiva do pensamento e, mais do que isso, não
como refletir sobre essa diferença sem inscrevê-la na mesma lógica do desvio em relação ao sentido próprio, sem
duplicá-la incessantemente. (SISCAR, 2003, p.153)
past and its future as inseparable elements of the system. (JAKOBSON and
TYNIANOV, 1987, p. 48).
É preciso, então, distinguir, com maior precisão, a sincronia da diacronia, do ponto de
vista da história literária.
III.4.1 A história literária sob o ponto de vista da pós-utopia
O século XX foi marcado por fortes mudanças de mentalidade originadas,
sobretudo, pela velocidade dos avanços na técnica e na ciência, os quais, por sua vez,
impactaram na vida cotidiana, de um modo geral, e nas abordagens artísticas, em particular. A
rapidez e o progresso desestabilizaram, como foi dito, a concepção linear do tempo,
exigindo uma re-adequação da razão ordenadora
113
. Essa ruptura da linearidade não foi apenas
vista, como enunciada pelas vanguardas, fazendo prevalecer a relatividade entre as coisas, os
fatos, o tempo e o espaço, conforme o poeta em AMMR aponta no segundo Canto.
A historiografia passou a buscar menos as cronologias e mais as estruturas que
engendram os acontecimentos, ampliando as fronteiras da causalidade desses eventos. Nesse
sentido, as experiências do passado, diante dessa ordenação fragmentada e da linearidade que
foi (co)rompida, passam a significar a partir do momento que se colocam a serviço do
presente e, sob este prisma de utilidade presente, fecundando o futuro que advirá deste
presente (NIETZSCHE apud PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 24).
Sem dúvida, essas críticas à razão positivista refletiram-se também na literatura: no
fazer do poeta, como se viu na seção anterior e, também, na organização de uma história
literária. Esse reposicionamento obriga uma reflexão sobre a função desta história literária e,
em conseqüência, da própria literatura. Supondo que a literatura tem “a utilidade de alargar e
valorizar nossa experiência de mundo” (PERRONE-MOISÉS, op. cit. p.21), a elaboração de
uma história literária amplia o proveito (e o prazer) que se pode encontrar em cada obra
particular. Portanto, parece inevitável pensar que esta história literária será tanto melhor
quanto maior a fruição, em alta consideração, se atingir pela leitura das obras, a partir da
compreensão histórica que se tenha das mesmas, possibilitada pelo trabalho da crítica. Como
diz Guimarães Rosa:
113
Como diz Leyla Perrone-Moisés (ibid.), Essa preocupação reflete-se hoje, por exemplo, nos relatos históricos.
Estes preferem uma abordagem parcial, centrada nos “excluídos” ao invés dos (meta)relatos. Diante disso, não
um desenvolvimento da História, mas vários; a multiplicidade de pontos de vista articula simultaneamente
fatos, relatos e vivências.
A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, tem razão de
ser quando aspira a complementar, a preencher, em suma a permitir o
acesso à obra.[...] Deve ser um diálogo [...] uma conversa entre iguais que
apenas se servem de meios diferentes. Ela exerce uma função literária
indispensável. Em essência, deve ser produtiva e co-produtiva, mesmo no
ataque e até no aniquilamento. (ROSA/ LORENZ in: COUTINHO, 1983, p.
76).
O historiador da literatura também é crítico; é por sua contribuição, amiúde, que
determinadas obras passam a ser consideradas e têm, como diz Rosa, seu sentido preenchido.
Em termos derridianos, mais do que complemento, a crítica deve atuar como
suplementaridade, como jogo da presença e ausência, permeado pela escritura, no sentido
discutido ao final da leitura do Canto III (DERRIDA, 2004, p.275,276). Ou seja, a crítica, ao
invés de ser totalizadora e centralizadora, incorpora-se à obra, suprindo-a sem a pretensão de
querer apreendê-la na totalidade, sem ser da obra derivada, mas suplementar (ibid, p.383).
Em se tratando de literatura, essas considerações parecem quase desnecessárias,
pois, a suplementaridade da crítica e das obras entre si, como atesta o palimpsesto AMMR, ao
abandonarem a questão da origem, tornam simultâneas as obras, pela “agoridade” que
prevalece diante das infinitas substituições possíveis, um nex que é nexO, como bem indica a
coda do poema haroldiano.
Do ponto de vista da recepção da literatura, entretanto, a simultaneidade das obras
pareceu sempre a única maneira de organização das mesmas, inclusive, por exemplo, pela
organização dos livros em um biblioteca, seja ela pública ou pessoal. Sincronicamente, as
obras são ordenadas segundo critérios múltiplos, provisórios e não conflitantes; casuais, como
já dissemos na leitura de AMMR. Os leitores (inclusive os críticos e historiadores) de literatura
parecem também não se preocupar com a ordenação cronológica de suas leituras, mas as
fazem seguindo gostos, exigências profissionais ou um sem-número de fatores que rompem
com a imposição cronológica, mecanicista, “relojoeira”. Por isso:
Os escritores críticos chegam todos à mesma fundamental afirmação: a
história literária não é conhecida a partir de uma linha traçada e conhecida
de uma vez por todas, porque a Literatura (recepção e produção) é sempre
função da leitura, isto é, presentificação valorativa do passado. (PERRONE-
MOISÉS, op.cit, p.39).
Apesar dessa inevitável simultaneidade dos textos literários, estudos de história
literária que se organizam a partir de uma perspectiva cronológica e linear, segundo uma
abordagem diacrônica, a qual, de certo modo, empobrece justamente o caráter “eterno” das
obras, para usar uma idéia baudelaireana também discutida; eterno porque se atualiza
constantemente, como “um esboço perfeito”.
Em termos de Haroldo de Campos, poderíamos entender essa eternidade sob o ponto de
vista de sua poética da agoridade, mencionada neste trabalho, que resgata do passado a
inventividade para, re-inserida na obra de um poeta do presente, tornar-se engrenagem do
futuro, configurando-se eterna por sua infinita reatualização, nos diferentes momentos
presentes e é definida pela priorização da inventividade. A inventividade haroldiana é também
uma inventividade em termos de crítica. Diz Costa Lima (2005, p. 119):
Em qualquer cultura, por sua múltipla inventividade, Haroldo de Campos
seria um caso raro; o foi muito mais na nossa. O louvor não se pretende a
que tenha sido poeta, crítico e tradutor, senão que, em cada uma dessas
atividades, haja excedido a medida esperada. [ ]. Sem dúvida as três
frentes a que Haroldo de Campos se dedicou eram guiadas pelo princípio
da experimentação, [...] que partilhavam de uma mesma ótica: exceder o
esperado, i.e., romper o consolidado.
Costa Lima chama a atenção para o fato de Haroldo de Campos ter desenvolvido uma
crítica criativa (e pode-se retomar a citação de Rosa feita no início desta seção), modalidade
da crítica que permite formulações teóricas, inovações que consistem na interrogação além
daquilo que está assegurado como prática herdada. Ao comentar, especificamente, o caso de
Iracema: uma arqueografia da vanguarda, de Haroldo de Campos, publicada em
Metalinguagem e outras metas, Costa Lima mostra que, ao chamarem Haroldo de arbitrário
pela abordagem que ao texto alencariano, estão admitindo que o “clássico perdera as
aspas”. Portanto, a abordagem da crítica haroldiana seguirá o mesmo caminho percorrido por
sua poética, qual seja, o de valorizar e de sublinhar a criação em todas as atividades as quais
se dedicou. Isso apenas confirma o fato de o autor dizer que é sua atitude de poeta que orienta
se fazer de crítico e de tradutor.
Em sua obra crítica, assim como na poética, o presente é abordado como continuum
meta-histórico, para além da história linear, o que põe, de certa forma, em xeque a idéia de
ruptura e a afirmação de Octavio Paz, mencionadas, segundo a qual a idade moderna
precisa dessa ruptura. De fato, a ruptura não é necessária, mas inevitável, pela velocidade de
mudança na técnica, na ciência, em todas as esferas da vida moderna, conforme o poeta de
AMMR atesta, por suas incursões na física, guiadas por Mallar e Mario Schenberg.
Todavia, a ruptura, entendida como vanguarda, é apenas a ponta de um iceberg; uma
anterioridade e uma posteridade em relação a ela, não no sentido de orientação linear:
A Poética sincrônica, assim como a Lingüística sincrônica, não deve ser
confundida com a estática
114
; toda época distingue entre formas mais
conservadoras e mais inovadoras. Toda época contemporânea é vivida na
sua dinâmica temporal e, por outro lado, a abordagem histórica, na Poética
como na Lingüística, não se ocupa apenas de mudanças, mas de fatores
contínuos, duradouros, estáticos. Uma Poética histórica ou uma história da
linguagem verdadeiramente compreensiva é uma superestrutura a ser
edificada sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas.
(JAKOBSON, 1999, p.121).
Em outras palavras, uma tensão entre poética e história: a essência da inovação na
arte é dada pela simultaneidade entre o manter da tradição e a ruptura com a tradição; não é
possível desconsiderar a permanente contribuição, para a poesia, daqueles elementos
cristalizados pela tradição, recuperados pela invenção lingüística e que não se mantêm
exclusivamente pela mudança, mas também pelos fatores contínuos, duradouros que
representam. Poderíamos dizer, então, que a ruptura e a radicalização da vanguarda chocam
pela grande mudança que propõem; por outro lado, essa ruptura nada mais é do que a ponta
de um iceberg; por baixo da superfície da história literária e do contexto social está a
sustentação desse discurso ruptor
115
, que se edifica ao longo do tempo, cristaliza algumas
formas e abandona outras, mantém-nas vivas ou faz imperar a necessidade de se resgatá-las.
Na contemporaneidade, o que se observa é que a ruptura, ela mesma, torna-se uma
tradição, ou seja, não mais a ponta de um iceberg, mas o surgimento de várias pontas no
mesmo iceberg, de tal sorte que o caráter ruptor deixa de surtir o efeito esperado. É com base
nisso que talvez pudéssemos pensar que a forma clássica de Claro Enigma e, mais ainda, de
AMMR sejam mais ruptoras do que as composições em verso livre ou concretistas. Talvez
114
Jakobson “não admite a identificação entre sincronia e diacronia de um lado e estatismo e dinamismo de
outro, observando que ‘à imagem sincrônica de uma língua está tão longe dos quadros estáticos, que nela se
reúnem como a imagem cinematográfica, que aparece na tela num dado momento dado, está longe de ser cada
um dos quadros isolados e estáticos que formam o filme” (JAKOBSON, apud CAMPOS, H. , 1977, p. 221).
115
Por esse motivo, por exemplo, Gilberto Mendonça Teles (1986, p.34) não considera o concretismo tão
vanguardista como o modernismo de 22. Segundo ele: “consideramos os movimentos da poesia concreta,
neoconcreta e práxis como manifestações do modernismo, uma das suas últimas fases de evolução. Todas essas
tendências possuem seus ancestrais dentro do modernismo”.
esses poemas sejam a forma de o poeta responder às imposições da modernidade. Afinal: o
que será que significa ser absolutamente novo?
A forma fixa é um modo de o poeta Haroldo de Campos lidar com a crise de verso;
pode-se acrescentar aqui que é também uma forma de o poeta mostrar que a pós-modernidade
é uma armadilha, posto que não existe como estética que se diferencia do modernismo, já que,
depois das vanguardas, ao que parece, as rupturas constantes deixaram de ser rupturas para,
cada vez mais, (tentar)reafirmar o que os primeiros modernos propunham, ou no limite, o que
propunha Mallarmé, como técnica, e os futuristas russos, como mudança social.
Eu não aceito o termo pós-moderno. Acho que ainda estamos na
modernidade, a não ser que se entenda que Mallarmé é pós-moderno em
relação a Baudelaire. Nós estamos numa fase específica que eu chamo de
pós-utópica (CAMPOS, H.1998, p. 23).
Para Haroldo de Campos a fase é pós-utópica pela falência de possibilidades de
surgimento das utopias. As vanguardas orientam-se por um “princípio-esperança” capaz de
anular biografias individuais em prol de um projeto da coletividade, como a idéia de romper
as fronteiras da linguagem, defendida pelos futuristas russos (e não apenas por eles); como
forma de buscar uma identidade utópica. Sem esse “princípio-esperança,” a partir do qual a
vanguarda surge como movimento em prol de uma linguagem comum, como uma
reconciliação para a linguagem, como superação de Babel, não é possível haver utopia.
Derridianamente, a diferença sempre se coloca não como superá-la, mas, quando
não esperança de superar o impossível, não pode haver utopias. Sem as utopias, o presente
torna-se gigantesco e a poética sincrônica parece ser a forma de lhe atribuir sentido e
dinamismo, pois coloca em circulação valores passados e garante a projeção do futuro (como
continuidade meta-histórica do presente). Isso é o que se observa em AMMR, que pode ser
vista, então, como poesia pós-utópica, cujo fim, nex, não é fim, mas é nexo entre presente e
passado, infinito, nonada, “um lance de nadas” (SCHÜLER, 1997).
Sem perspectiva utópica o movimento de vanguarda perde o seu sentido.
Nessa acepção a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda,
não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica.
Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, a utopia redentora
pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-
esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio realidade, fundamento
ancorado no presente. (CAMPOS, H.op. cit, 268).
Arrojadamente, talvez fosse possível, neste ponto, unir uma idéia de Baudelaire ao
conceito de criação de precursores de Borges, discutido neste trabalho. Para o poeta
francês, as obras de arte da modernidade têm caráter não-acabado, ou como diria Haroldo de
Campos, tem caráter provisório, sendo esta a dimensão de seu ser
116
, (podemos ler essa
provisoriedade como agoridade, fugacidade do presente e, simultaneamente, absoluta
importância do presente) o que significa que, a cada instante do tempo, a obra revela-se como
pronta, embora não o seja de fato. Em uma sociedade que muda vertiginosamente, é
impossível para o artista produzir em ritmo frenético, portanto, a própria obra é transitória e
perfeita: ao mesmo tempo permanece porque o sentido de sua apreensão é mutável.
Em termos borgianos (BORGES, 1980, p.226), essa perfeição pode ser instaurada,
justamente, pelo leitor que preenche significados, re-atualizando aquilo que ao criar em sua
leitura seus próprios precursores. Ao se pensar em Borges, poeta-crítico e partidário da
abordagem sincrônica da história da literatura, criador de um Baudelaire precursor seu, talvez
fosse possível dizer que não a obra de arte da modernidade, mas todas as obras são um
esboço, pois a cada momento histórico, o leitor preenche de historicidade o seu sentido e a re-
instaura na história literária, fazendo-a significar, novamente. Como ensina João Alexandre
Barbosa:
[...] Não passado sem uma intervenção do presente e se o futuro do que
passou é nosso presente é porque a memória histórica, ela mesma, recusa o
puro
117
diacronismo e se afirma como presença sincrônica. (BARBOSA,
2002, p.13, grifo nosso).
Ou ainda, como diz Haroldo de Campos:
O descobrimento, ou, por assim dizer, a “invenção” de precursores
[memória histórica] é um dos corolários mais significativos da visada
sincrônica [...] Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo
movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o
passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. Nesse
sentido é que a literatura é o domínio do simultâneo, um simultâneo que se
reconfigura a cada nova intervenção criadora. Cada época nos dá o quadro
sincrônico graças ao qual podemos ler todo o espaço literário. (CAMPOS,
H. 1976, p.21 – grifos nossos).
116
CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.13.
117
Em citação anterior, do mesmo autor, se ressaltou que uma ampla diacronia sustentando as
sincronicidades; portanto, o que se quer frisar com a presente citação é que não deve haver extremismos: nem
puro diacronismo e nem puro sincronismo, mas um equilíbrio que permita a apreensão da poética em ação do
texto, sem arrancar-lhe a historicidade e a expressividade.
Contra a linearidade do pensamento positivista, a tradição incorpora-se à obra em
termos sintático-semânticos e se mescla ao presente que atua de modo revolucionário,
“arrancando a tradição ao inconformismo que quer apoderar-se dela” (BENJAMIM, 1996,
p.224). Essa revolução do presente, desejo de manutenção da tradição a partir de sua
(re)significação, tem menos o sentido de ruptura do que sentido de renovação cíclica, segundo
exposição de Paz em Os filhos do barro: revolução significa retorno e tempo cíclico. Se a
modernidade se organiza a partir de rupturas sucessivas impostas pelo progresso e pela
velocidade de circulação das inovações, portanto, se a modernidade caminha na trilha de
sucessivas revoluções, essas revoluções, que acontecem ciclicamente, são também revoluções
no sentido primitivo da palavra e estabelecem o que Benjamim (ibid., p.230) chamou de um
continuum da história
118
.
É nesse sentido, por exemplo, que Haroldo de Campos irá falar da poética da
agoridade, carregada de um dinamismo trazido justamente pela leitura da tradição, evolução
mais espiral e elíptica do que circular de modo que, como bem diz Octavio Paz, “o poema se
encarna na história e ao mesmo tempo a nega” (PAZ, 1982), porém isso, de modo algum,
possui valoração positiva ou negativa. Passado, presente e futuro não são valores em si, pois
a arte não evolui, como, por exemplo, evoluem as forças produtivas; a arte transforma-se.
Aqui devemos especificar o que estamos chamando de evolução. Normalmente, a
palavra evolução é empregada no sentido de uma valoração positiva, ou seja, determinada
coisa evolui de um estado A, para um B, que é melhor, mais evoluído do que A. No caso da
poesia e da arte em geral, tomadas do ponto de vista sincrônico, a evolução trata de uma
orientação para determinado fim, um processo que incorpora e mantém a tradição, projetando
para o futuro novos alicerces e novas bases do fazer criativo. Para citar novamente Octavio
Paz: “o fuzil substitui o arco, mas a Eneida não substitui a Odisséia, embora, a leitura da
Odisséia não seja a mesma depois de Eneida. (PAZ, 1982).
É dessa perspectiva que se pode afirmar que há, em termos de arte, uma evolução
qualitativa. Não no sentido que a Eneida, ou qualquer obra passada, seja melhor do que a
Odisséia, ou qualquer obra contemporânea, mas no sentido que a Odisséia ou as obras da
tradição tornam-se melhores, ampliam-se suas possibilidades de leitura a partir da
consideração da Eneida; tornam-se mais valorosas sob as lentes da novidade. A leitura que um
118
Benjamim (ibid., id.) usa o exemplo dos calendários para discutir esse retorno, lembrando que os dias feriados
são a volta da revolução ou do acontecimento que os justifica, portanto, o tempo dos calendários não é como o
dos relógios. Dir-se-á, então, que o calendário, ao recuperar as datas comemorativas atualiza, sincronicamente,
os fatos, mas não do ponto de vista passado; outrossim, da leitura do passado que se faz no presente.
poeta-crítico faz de seus precursores faz com que suas obras tornem-se maiores, ao mesmo
tempo que sua própria obra é melhor, porque dialoga com aqueles que o precederam.
Haroldo de Campos, no ensaio Poesia e Paraíso Perdido, que está na Teoria da Poesia
Concreta (1975), afirma:
A arte da poesia, embora não tenha uma vivência função da história, mas se
apóie num “continuum” meta-histórico que contemporaniza Homero e
Pound, Dante e Eliot, Góngora e Mallarmé, implica a idéia de progresso,
não no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose vetoriada, de
transformação qualitativa, de culturmorfologia, de: “make it new”.
(CAMPOS, H.,1975, p.26)
Restringindo as presentes considerações ao universo poético e ao poema, mais
especificamente, que este é o objeto da análise deste trabalho, pode-se perceber que é pela
linguagem do poema que o poeta, eterno leitor-produtor e não mero produtor-leitor refaz o
percurso da tradição e o faz conscientemente, de modo que sua atividade criativa é, ao mesmo
tempo, crítica e ambas inserem-se em um determinado “presente cultural”; nesse sentido,
talvez, a existência permanente da vanguarda, no caso de Haroldo de Campos, talvez seja
possível. Diz o poeta:
Entre o “presente da criação” e o “presente da cultura” uma correlação
dialética: se o primeiro é alimentado pelo segundo, o segundo é
redimensionado pelo primeiro. Vanguarda como atitude produtora no
presente da criação e visada sincrônica como atitude revisora no presente da
cultura. (CAMPOS, H., 1976, p.22)
Ou ainda:
Veja-se, pois, como a perspectiva sincrônica é afetada pela resposta do
homem concreto, situado num momento definido da evolução literária
(diacrônica) de seu país e de sua língua [...]. [Entretanto] a verificação da
existência de uma relação dialética, de integração e complementaridade,
entre sincronia e diacronia, não deve, porém servir para obscurecer ou aguar
o alcance prático, metodológico do corte sincrônico. (CAMPOS, H. 1977,
p. 218).
Segundo Perrone-Moisés (op.cit. ,p.37), essa postura valoriza, em Haroldo de Campos,
a importância da leitura e seu valor heurético para a construção da história literária; o poeta-
leitor dinamiza a produção presente, fazendo o passado habitá-la; e se é leitura-dependente, a
história literária não é concebível linearmente, mas sincronicamente. É nesse sentido que a
prática de tradução incorpora-se ao fazer artístico e crítico de Haroldo de Campos, por meio
dela é que o poeta, leitor, passará, especificamente, a operar os textos, antropofagicamente.
A antropofagia, como foi dito ao longo da leitura do poema, é a incorporação de
padrões da arte e da cultura internacionais na arte e cultura brasileiras, de modo a colocar o
Brasil em posição de igualdade em relação às culturas ditas centrais, revelando nossa
alteridade. A idéia de evolução nas artes não se coloca da mesma maneira que em termos
sócio-econômicos, que os valores artísticos têm livre trânsito entre os diferentes lugares do
mundo.
Em AMMR, essa apropriação antropofágica é ritualizada a cada verso, pois são
multíplices as novas significações atribuídas por Haroldo de Campos a todos os textos e
autores que se põe a “devorar”, hybris-leão, por meio da linguagem do poema, da
metalinguagem, da auto-reflexividade da mensagem poética. Tudo em AMMR é crítica: a
criação e a tradução que dela advém, posto que Haroldo de Campos evoca suas transcriações
(Homero, Dante, Joyce, Mallarmé, Goethe e outros) para fazer funcionar a máquina do
poema, ou para dar início à partida de xadrez, que toma lugar no poema-tabuleiro, pelo
repensar do mundo.
III.5 “Transcriar, transluciferar, transumanar: alguns aspectos da
teoria da tradução de Haroldo de Campos
“A poesia encerra verdades primeiras cujo sentido pode
ser descoberto e compreendido pela tradução (Ungaretti)”
119
O percurso feito por Haroldo de Campos foi norteado por uma busca: a busca da
invenção. Para Haroldo de Campos, a novidade e a redescoberta da tradição viriam, também,
por meio da tradução e da incorporação de um universo traduzido, levando em conta o caráter
de patrimônio cultural da humanidade que se pode atribuir à literatura e considerando a
tradução como instância da crítica.
119
Apud BERNARDINI, A.F. –Giuseppe Ungaretti e a tradução de Serguei Essiênin in WATAGHIN, L. (org.)
Ungaretti daquela estrela à outra. Ateliê Editorial: São Paulo, 2003 p.212.
O importante do ato de tradução é que é uma operação feita no intervalo; o traduzir não
diz respeito nem ao original nem ao traduzido, mas se concretiza na tradução ao tomar
emprestado ora do texto-cultura de origem, ora do texto-cultura de chegada aspectos, signos,
significados e significantes (LARANJEIRA, 2003). Há, portanto, uma constante tensão, um ir
e vir, sem origem definida; o trabalho do tradutor constitui-se num eterno desconstruir, pois
as possibilidades de reproposição dos signos do poema original são múltiplas e infinitas,
constantes invenções, reinvenções. A tradução, nesse sentido, é uma transcriação e (re)atualiza
a literatura de todos os tempos.
Na poesia, a aproximação sonora é aproximação semântica; a aproximação semântica na
tradução se configura quando as figuras e os efeitos paronomásticos (que podem também
ser figurativos) tornam-se transfiguras. Quando são transcriados, os poemas tornam-se
acessíveis, uma nova possibilidade de contemplação. Verter textos criativos é, ao mesmo
tempo, um exercício de crítica e criação paralela, autônoma e recíproca, concomitantemente.
Assim sendo, traduzir poesia é, antes de qualquer coisa, perceber o dominante poético
do texto de origem e recriá-lo na língua-cultura de chegada e isso inclui não apenas a tradução
dos significados, mas, fundamentalmente, dos significantes. O Haroldo de Campos tradutor
está muito presente em AMMR, não apenas por utilizar suas traduções, mas porque, como
fidelidade ao universo dos textos que traduziu, incorpora-os ao poema, mais uma vez, como
um modo de criar seus precursores. Ou seja, as possibilidades de reproposição dos signos dos
originais são maximizadas porque o poeta, para além da transcriação, passa a uma
supratranscriação: como atitude metalingüística parece transcriar o que já havia transcriado. É
nesse sentido que se pode fazer uso da expressão transluciferar, que cabe não apenas para a
tradução que Haroldo fez da Comédia, mas qualquer outra tradução:
A partir da explosão de luz no Paraíso, a tradução de Haroldo oferece uma
possibilidade de inversão radical, um efeito da operação de tradução como
caminho iluminador. A culpa de Lúcifer, segundo a leitura de Haroldo, foi il
traspassar del segno, ultrapassar o limite, o signo. A tradução sugere uma
superação do texto original, sendo uma “empresa luciferina”. Ela aponta
para uma leitura retrocessiva do Inferno, agora como inverso simétrico da
metáfora da luz. (LOMBARDI in: CAMPOS, 1998, p. 12).
Em AMMR, a sensação que se tem é de que, a cada verso, o poeta ultrapassa o signo;
seu processo criativo é, como as traduções que faz, uma empresa luciferina. Para ultrapassar o
signo, o poeta precisa enfrentar o sertão, a aspereza dos significantes do poema, o diabo na
rua no meio do redemoinho; faz isso na certeza de um caminho iluminador que afinal é o
próprio poema, cujo sentido de busca, após o percurso feito pelo poeta nos três cantos, é
enriquecido pelo empreendedorismo do trabalho sistemático de indagação: “ao cabo do
percurso indagador, a “agnose” não se transformou em ‘gnose’ (CAMPOS, 2002, p.69, aspas do
autor). Ou seja, o sentido definitivo escapa ao leitor e, como indica o comentário de Haroldo
de Campos, ao poeta, ou ainda, ao autor do texto, como escapa à tradução a totalidade do
texto traduzido.
Derrida diz, em Torres de Babel, que a “tradução é uma transformação regulada de uma
língua em outra metáfora da desconstrução”. Inevitavelmente, a tradução leva as marcas de
quem a executa, sujeito social e histórico, com suas preocupações e deve considerar vários
níveis de leitura, conforme aponta Laranjeira (2003): o semântico, o lingüístico-estrutural, ou
seja, reiterações fonéticas e sintáticas, anomalias e agramaticalidades, recuperando e
compensando possíveis perdas do trajeto. A tradução, por conseguinte, é um ato criativo que
aponta para a indecidibilidade, uma perda das marcas originais uma vez que o texto
traduzido trará remarcas, des-marcas que asseguram as duas existências, sem a redução de
identidades preconcebidas.
Haroldo de Campos (1976, p.39) ressalta que:
Na tradução de poesia vige lei da compensação: vale dizer, onde um efeito
não pode ser exatamente obtido pelo tradutor em seu idioma, cumpre-lhe
compensá-lo com outro, no lugar onde couber (...).
A tradução é suplementar, integra o original e joga, em termos derridianos, o jogo da
diferença. Sob este prisma, é uma substituição (recriação) de significantes que não se apagam
frente aos significantes do original. Um corpo verbal não se deixa traduzir ou transportar para
outra língua; o corpo traduzido não é transportado pela tradução, mas reinstituído. O tradutor
procura justamente a corporalidade da escritura.
A motivação da tradução de poesia deve levar em conta o caráter isomórfico do texto
poético, daí a necessidade de transcriação, pois a transposição da paronomásia e da aliteração,
além dos esquemas rímicos (internos e finais) será possível dessa forma. O caráter sonoro
aproxima a tradução levando a semelhança onde antes havia diferença; o efeito de
estranhamento deve-se, muitas vezes, não à preocupação de transpor o significado, mas ao
trabalho de manutenção dos significantes.
A novidade e a redescoberta da tradição, para Haroldo de Campos podem surgir a
partir da tradução e da incorporação de um universo traduzido. Nesse espectro, a tradução é
também uma instância da crítica. Para Haroldo, a tradução poética é uma vivência do mundo
do traduzido e de sua técnica, além de uma operação de transculturação, antropofágico. Esses
aspectos parecem fundamentais para entender a obra de Haroldo de Campos: criação, crítica e
tradução faziam parte de um projeto vetoriado por impulso criador, que pôde ser apreendido
pela leitura de AMMR.
Quando o poeta escreve sua poesia, está traduzindo em signos verbais sentimentos,
imagens, ações, símbolos, sonhos; está criando significantes equivalentes a esses significados,
está tornando a palavra palpável. A verdadeira revolução da poesia (ou a violência sobre a
linguagem que ela opera) está não apenas no conteúdo que revela, mas na forma pela qual este
conteúdo é revelado. A tradução é uma operação complexa, cheia de desafios e mistérios,
porque busca a revelação do que é velado por meio da palavra poética. Octavio Paz (1990 p.9)
inicia seu belíssimo ensaio intitulado Traduccion: Literatura e literaridad dizendo que
aprender a falar é aprender a traduzir; a linguagem, segundo ele, é, em sua essência, “tradução
do mundo não-verbal, cada signo é tradução de um outro signo. Ele nos diz que:
O ponto de partida do tradutor não é a linguagem em movimento do poema,
mas a linguagem fixa do poema, sua operação é de certa forma inversa a do
poeta não se trata de construir com signos móveis um texto imóvel, mas
desmontar os elementos desse texto, por de novo em circulação e devolvê-
los à linguagem. Por isso a tradução poética é dinâmica. (PAZ, op. cit. p. 21)
Esse dinamismo não é peculiar apenas à tradução, a menos que se a considere, como
sugere Paz, algo muito mais amplo do que a operação de passar um texto de uma língua para
outra; ao escrever seu poema, o poeta traduz sua experiência de vida, sua poética, traduz suas
próprias traduções; por isso a poesia é rara e por isso é tão difícil recriá-la, traduzi-la. Ela
própria é a tradução de um universo lingüístico e humano; ela é fruto de um trabalho de
lapidação da palavra bruta, porque a palavra, mesmo bruta, guarda em essência toda a sua
poeticidade.
Nesse sentido, a criação poética será sempre tradução do indizível, do inominável em
materialidade sígnica, de tal modo que, como a tradução, a criação seja suscetível de “uma
vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la [...] à luz num corpo
lingüístico” (CAMPOS, 1992 p.43), não necessariamente diverso, porém cravado de diversidade.
Para muitos teóricos, a tradução não é uma técnica a ser dominada por critérios científicos,
que imporiam ao tradutor uma obrigação de fidelidade; o que está em jogo na tradução é algo
que vai muito além; é uma operação dupla entre o texto de partida e o texto de chegada, um
jogo que não terá vitoriosos, mas se sustentará na sua tensão, porque a tradução jamais se
igualará (e nem deve ser esta a intenção) ao original. Da mesma forma, pode-se pensar que a
criação de AMMR não oblitera os textos a partir dos quais o poeta estabelece seu caminho,
pelo contrário, um double bind os manterá ligados.
Quando se consideram todos os diálogos estabelecidos por Haroldo de Campos em
AMMR, e a via de mão dupla que se estabelece entre os “originais” com que o poeta dialoga e
seu próprio texto, pode-se dizer, em complementação a todas as considerações a respeito
dessas instâncias dialógicas apresentadas neste trabalho, que a criação de AMMR não é a
morte dos textos que o originaram, mas sim a construção de um elo de ligação que faz com
que, ao criar seus precursores, o poeta mantenha-se a eles inexoravelmente ligado, pelo
double bind, como se pela desconstrução do cânone se produzisse o sentido de AMMR,
ancorado pela singularidade do ato da leitura do poeta, luceferinamente, transleitura,
transcriação. Conforme aponta Siscar:
[...] a desconstrução é um gesto produtor de sentido, mas uma produção que
tem como particularidade a ativação ou a aceleração do movimento
conflitante no qual o próprio texto e sua leitura estão implicados. A esse
movimento, Derrida preferiria mais tarde dar o nome de duplo gesto ou
duble bind, usando a expressão inglesa. A desconstrução interpreta o texto
como um duble bind no qual está em jogo a própria impossibilidade de
sentido (SISCAR, 2003, p.153).
Se assim é, a leitura de AMMR não se reduz a referentes exteriores a ele como a
história, a história literária ou a física. Tais instâncias fazem parte do texto como componente
semântico; tampouco o poema pode ser reduzido às operações lingüísticas e metalingüísticas
que se abrem diante dos olhos do leitor. Tensionadas, estas forças engendram o sentido, o
qual, por sua vez, nos escapa: toda vez que se imagina ter dado conta da intencionalidade ou
da engenharia do poema, estas, como pontos-cegos, revelam e velam o significado; como o
hímen, o sentido é um lugar intermediário (DERRIDA). Por isso, o suplemento discutido no
final do Canto III preenche lacunas, como se fosse reabilitado “sub-repticiamente como
estratégia para reapropriar aquilo que a experiência perdeu” (SISCAR, op. cit., id). O poema
haroldiano é, ele mesmo, uma lacuna, cujo hiato a presente leitura procura suplementar. Como
diria Nascimento:
Não se pode dizer que escrita e leitura co-incidam, pois não existe um ponto
absoluto que faça incidir uma sobre a outra [...] uma suplementa a outra:
apenas se pode ler o que em algum momento foi escrito, e somente se pode
escrever porque de algum modo se foi treinado para leitura [por isso] [...] o
signo é coisa que se inscreve, rastro escrito de um aparelho nem finito, nem
infinito, indecidível [ ]. Enquanto jogo permanente do indecidível, o
movimento supletivo do rastro faz com que um traço possa de novo
retornar, porém na diferença. (NASCIMENTO, 1999, p.173-187).
Não é senão a diferença que se estabelece em: /O nexo o nexo o nexo o nexo o nex/.
Indecidível, sim, mas também infinito pela interrupção final do verso. Ultrapassar o signo e
vencer a empresa luciferina, superar o pacto com o diabo pelo enfrentamento do sertão-
poema-máquina, rodamoinho de signos, acontece, porque, como diria Rosa, o homem
existe; o nex, nexo interrompido, impulsiona a travessia - travessia para a solidão ou para o
solilóquio, também para o futuro e para o diálogo. Resta, no fundo, o mais profundo verso do
poema, a síntese da máquina, da viagem e da operação de tradução-transcriação. Afinal:
busco-me na busca? Que concreta estrada é esta que, ao poema que repensa a máquina do
mundo, conduz o poeta?
III.6 Poesia Concreta: vanguarda constelar
É importante situar Haroldo de Campos dentro do projeto da poesia concreta como
fechamento desse percurso às avessas por sua obra. A concretude e a materialidade da palavra
poética foram uma invariante na obra haroldiana, como inúmeras vezes se mencionou neste
trabalho. Quase sempre, é o Haroldo concretista, e não o concreto, o cerne dos estudos; ou
ainda, o Haroldo de Galáxias, texto visto como exacerbação das propostas concretistas. Ao
trazer AMMR para o centro desta pesquisa, o intuito era promover o descentramento,
amalgamar o início e o fim da obra do poeta, já que em AMMR uma arqueologia textual do
próprio Haroldo de Campos.
Transformar a poesia concreta em desfecho, no lugar de mantê-la no início significa
que a obra do poeta a supera, e muito; ao contrário do que se poderia pensar (e normalmente
se faz, associando-o apenas ao movimento da Poesia Concreta), o conjunto de sua obra
suplementa os anos iniciais no que concerne à novidade, à experimentação, à invenção, à
renovação da linguagem como formas de revolucionar a arte. Até o último texto, a obra
haroldiana foi, sincronicamente, como ele gostava de dizer, da ordem da radicalidade.
Diferentemente de Cronos, que devorava os filhos, a poética sincrônica haroldiana
devora a tradição em termos de espacialidade poemática antropofagicamente ritualiza a
tradição-refeição no espaço branco da página, a-temporaliza e des-cronologiza períodos,
revitaliza poetas inventivos por meio de permanentes travessias entre - textos.
O Movimento da Poesia Concreta é um marco, de certa forma, a origem (ainda que
esparsa e indecidível) da idéia de agoridade, tantas vezes sublinhada aqui. Como pontua o
próprio Haroldo de Campos:
Esta poesia da presentidade, no meu modo de ver, não deve ensejar uma
poética da abdicação [...] Ao invés de uma “história plural” nos incita à
apropriação crítica de uma “pluralidade de passados”, sem uma prévia
determinação exclusivista do futuro. Tenho dito, em mais de uma
oportunidade, que a “poesia concreta”[...] como experiência de limites, não
clausurou nem me enclausurou. Ao contrário, ensinou-me a ver o concreto
na poesia; a transcender o “ismo”particularizante, para encarar a poesia
transtemporalmente, como um processo global e aberto de concreção
sígnica, atualizado de modo diferente nas várias épocas da história literária
e nas várias ocasiões materializáveis da linguagem (das linguagens)[...].
(CAMPOS, H. 2002, p.269, grifos meus).
III.6.1 A poesia concreta
Na década de 50, surgem, em São Paulo, três jovens poetas, estudantes de direito do
Largo de São Francisco, preocupados em renovar as idéias de poesia vigentes e objetivando
romper o que chamavam de inércia da geração de 45. São eles: Haroldo de Campos, Augusto
de Campos e Décio Pignatari.
Os poetas paulistas colocavam-se contra a chamada Geração de 45 para retomar as
propostas dos modernistas de 22, prolongadas até a década de 30, por Carlos Drummond de
Andrade e Murilo Mendes, entre outros, a fim de recolocar a poesia brasileira na rota da
invenção, como se estivesse para ser restaurado um ciclo de práticas de vanguarda
120
, iniciado
com as sintaxes subversivas de Mallarmé, que inspiraram os futuristas russos, James Joyce,
e.e.cummings, os modernistas brasileiros, além da idéia de paideuma emprestada de Pound.
120
AGUILAR, G. Poesia Concreta Brasileira. São Paulo, Edusp, 2005, p.43.
Trataram, portanto, de reencontrar o fio de Ariadne da vanguarda experimental dos anos
20; para isso, era preciso coragem para afastar o tédio. Em 1952, fundaram o Grupo
Noigandres, expressão provençal que provavelmente designa “a flor cujo perfume afasta o
tédio”, fonemas talismânicos que serviram de emblemas de busca e de pesquisa poética
(CAMPOS, H. 2002, p.17).
As propostas poéticas, desde Noigandres eram: a linguagem multifacetada e em
sintonia com os avanços tecnológicos e científicos, a preocupação com a valorização da
palavra e com a necessidade de renovação da linguagem poética, da forma que fugiria da
fôrma, pura e simples, da forma que não fosse um meio de o poeta pensar o mundo, como
assinalado ao longo deste trabalho, em diversas ocasiões.
Os primeiros manifestos da poesia concreta são de novembro de 1956
121
, ano marcante
para a literatura brasileira (publicação de Grande Sertão Veredas e Corpo de Baile, de
Guimarães Rosa) e também para a história do Brasil, que elegera um presidente (Juscelino
Kubtschek) disposto a fazer com que o país crescesse e progredisse cinqüenta anos em
apenas cinco de governo. É no contexto de (re)posicionamento do Brasil diante da ordem
econômica mundial que o Plano Piloto da construção de Brasília faz deslocar o centro
decisório da nação para o Planalto Central. Nesse ambiente, a atmosfera de mudança vai se
instalando no país.
Haroldo de Campos (1997) assinala, em Poesia e Modernidade: o poema pós-utópico,
que a poesia concreta, ainda que distante das decisões políticas e “marginal” em relação ao
cânone literário nacional, não poderia deixar de refletir, quando surgiu, o auspicioso contexto
de “otimismo projetual” que dominava o Brasil, em plena Era Jusceliniana, momento em que
o Plano de Metas e a construção de Brasília apontavam o futuro como referência para a ação
governamental.
Refratária, portanto, às mudanças e às transformações pelas quais passava o país (em
consonância com uma nova ordem mundial), a vanguarda concretista lançava o Plano Piloto
da Poesia Concreta, orientado pela necessidade de um novo estado das artes da poesia:
ecumênico, repensado a partir da leitura, como gostava de dizer Haroldo de Campos, que os
“novos bárbaros de um país periférico” fariam da tradição, sustentados pelo tripé criação,
tradução e crítica.
Nesse momento, os museus, em especial em São Paulo, desempenharam um papel
cultural importante à medida que impuseram a necessidade da pesquisa sistemática do arquivo
121
Antes dessa data, os poetas paulistas já haviam publicado artigos e textos artísticos, é o caso de O Auto do
Possesso, de Haroldo de Campos, publicado em 1950 pelo Clube de Poesia.
e uma orientação didática. Exposições e bienais tomavam conta da cidade de São Paulo e a
poesia, como objeto artístico, ocupava também os museus; em conseqüência, despertava, nos
jovens poetas, a necessidade de imprimir marca teorizante a seus trabalhos, esta, portanto,
atrelada ao próprio dinamismo cultural que culminava no país
122
(AGUILAR, op.cit, p.62). Seus
manifestos e programas coletivos de mudança não foram orientados pelo escândalo (embora o
tom seja de deboche em vários textos), mas por uma crítica sistematizadora, que tinha amparo
na utopia das mudanças propostas ao país: a partir de sua posição poética, o concretismo
fez parte do périplo que percorreu o Brasil e teve seu momento culminante na fundação de
Brasília” (ibid, p.63).
O próprio Estado construía seu paideuma; o próprio Estado era vanguardista. Brasília
foi uma cidade feita para não ter ruas, assim como os poemas concretos não queriam mais os
versos de costume é o questionamento da ordem: uma mudança discursiva no poema, uma
mudança discursiva na enunciação do texto cidade, uma mudança discursiva da enunciação do
texto poético.
Ideologicamente engajado, como os movimentos de vanguarda, o projeto concretista
voltava-se para sincronicidade da história da literatura, buscando uma linguagem comum que
partisse da re-construção de dupla e coincidente tradição: a universal e a brasileira. Como
pontua Paulo Franchetti:
[...] pode-se pensar que uma das obras mais importantes da poesia concreta
seja justamente o fato de ela se propor como vanguarda num país
subdesenvolvido, agitar aqui questões que dizem respeito às relações da
literatura brasileira com a literatura européia e americana, da literatura com
a sociedade industrial, da cultura de massas com a cultura européia
(FRANCHETTI, 1992, p.25).
Todas essas atitudes magnificam-se quando se considera que a poesia concreta teve
alcance internacional, ou seja, repensou a cultura brasileira e a tirou da clausura imposta pelo
rótulo de literatura de “país subdesenvolvido”, comprovando, com isso, a tese de Marx e
Engels de que não existe subdesenvolvimento em termos de arte (CAMPOS, 1992, p.232).
Assim, não se pode concordar com o argumento de Gilberto Mendonça Teles (1986, p.34),
segundo o qual o concretismo não é tão vanguardista como o modernismo de 22:
“consideramos os movimentos da poesia concreta, neoconcreta e práxis como manifestações
122
Essa característica é não apenas verificável no Brasil, como no mundo de uma forma geral. A teorização é
característica das neovanguardas que sinalizam, mais do que as vanguardas históricas, a necessidade de
aproximação dos trabalhos de crítica e criação.
do modernismo, uma das suas últimas fases de evolução. Todas essas tendências possuem
seus ancestrais dentro do modernismo” (ibid.,id).
De um lado, não deixa de ter razão o autor, as práticas continuam o modernismo, mas
seu alcance internacional, a ruptura sintática, a valorização dos aspectos verbivocovisuais não
encontram precedentes na literatura brasileira e estavam adormecidos na literatura
internacional, esmagada que fora pela discussão do entre guerras. Talvez não seja exagero
dizer que a relação estabelecida é inversa: o concretismo leva a cabo as propostas que os
modernistas de 22 esboçaram, configurando-se, portanto, como vanguarda em relação a estes
últimos, inclusive pela associação estreita não apenas com as artes visuais, mas com os meios
pelos quais essas artes visuais eram veiculadas: os museus.
Havia, na década de 50, possibilidade de utopia para os jovens poetas. Nesse mesmo período,
Drummond apresentava os claros enigmas da existência e sua máquina do mundo o
desconcerto de quem experimentou e necessita da revigoração das velhas formas para lidar
não com a crise de verso, como também para mostrar que a crise de verso é uma forma de
lidar com a crise do mundo, de mundos tão distantes e marcados pela tragicidade dos fatos da
década de 40.
Lado a lado, naquele momento, Drummond e Haroldo viviam a duplicidade da
radicalidade. O primeiro, pela revisão das formas; o segundo, pelo seu questionamento, por
sua reinvenção. Em ambos, o verso é o lugar por excelência da palavra, do protesto, dos restos
do mundo e da tradição. No caso dos poetas concretistas, a ruptura das formas apregoadas
inicialmente, passa a ser gradualmente utilizada em paralelo com o que Aguilar chama de
paradigma sincrônico-retrospectivo (AGUILAR, 2005, p.. 113) disposto em constelações.
Essa idéia retrospectiva é muito importante, em especial porque é um dos orientadores
de leitura de AMMR, como se mencionou no final do Canto I e no Canto III. Para Haroldo de
Campos, notadamente a partir dessa época, que se (re)construir a história da poesia
brasileira de invenção; não apenas retomar sincronicamente os autores nacionais, mas trazê-
los à luz pelas lentes prismáticas e poliédricas da modernidade concretista.
A essa fase seguiu-se a instabilidade vivida pelo país na década de 60, por conta do
regime militar, e com ela veio o surgimento de uma poesia engajada. No caso do movimento
da poesia concreta, esse aspecto foi muito benéfico, pois se acentuaram as preocupações com
o resgate da poesia brasileira, relegada a plano secundário (Kilkerry e Sousândrade). Depois
do concretismo, as experiências poéticas não voltaram a ser as mesmas. Some-se a isso o fato
de que as condições sociais para a emergência da vanguarda concretista eram talvez mais
contundentes do que aquelas encontradas pelos poetas de 22, em plena República Velha.
Havia, no Brasil, na década de 50, uma atmosfera de mudança e de renovação, que encontrava
eco no mundo pós-guerra que se encaminhava para a superação de fronteiras.
Na década de 60, Haroldo de Campos começou a escrever Galáxias (1963), grande
livro, grande viagem e divisor de águas: Galáxias e antes; Galáxias e depois. Neste livro
estão presentes, como em todos os outros, os grandes temas de Haroldo, porém a linguagem
do poema se materializa como um barco diante do leitor, levado pelos versos longos e
praticamente ininterruptos, ritmados pela urgência ou paciência do leitor-viajante, à medida
que é conduzido pelo poeta, que narra sua viagem. Vieram depois outros textos fundantes
como A educação dos cinco sentidos, Finismundo, Crisantempo até chegar à AMMR.
Vanguarda constelar, este poema é um antes (avant garde) e um depois (destroços,
palimpsesto), pois funde o tempo na escritura e não se pode (ou deve) delimitar a origem do
texto; sozinhos, os rastros da tradição e o xadrez inventivo das palavras-estrelas deslizam os
enigmas do terço acidioso do milênio a esfingir o poeta que se busca em sua busca no périplo
do poema. O poema alegoriza o poeta e sua busca infinita, inominável uróboro, cobra que
devora o próprio rabo. Vanguarda constelar de estrelas e manhãs, o poeta em AMMR sabe que
um galo sozinho não tece uma manhã
123
, mas como se converter no outro, como se fundir a
ele? O nex é o grito que um galo antes e... depois outro; distante cantar se desfia entre os fios
dos passos largos da tradição, bruscamente imposta e disposta nas finas seivas, veias do sertão
texto: como o urogalo, o poeta resiste à morte apenas porque canta e, sim, o fim interrompe o
verso, porém a operação de leitura é retrocesso, nexO, Afinal, a poesia é flor de
ornamento, não sabida, rosa: se rosa parece a quem
123
Aqui se está fazendo referência a três poemas, especificamente: Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo
Neto; Urogalo de Ruy Belo e Galo de Marcos Siscar. Os dois últimos estão publicados In: Inimigo Rumor.
Rio de Janeiro: Sette Letras, 20 semestre de 2003, n.15.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da densidade do poema, de tantas e divergentes formas de pensar o mundo, a
sensação que se tem é de que ainda faltaria muito para ler. Diálogos deixaram de ser
considerados, alguns não foram sequer notados. Isso significa que o poema é grandioso o
suficiente para continuar instigando a pesquisa, mesmo depois de todo o movimento de
leitura que ele impôs e que foi se construindo dos rastros deixados pela voz do eu-poético,
nos labirintos poéticos do texto, aqui e ali: ur-canto, ruído de fundo.
uma sensação de vazio preenchendo o que antes eram caminhos de pesquisa; mas
de vazio significante, quântico. Não o zero, e sim o reflexo do zênite. O movimento
deste trabalho foi de suplementaridade, tanto em relação ao poema de Haroldo de Campos
aqui analisado, AMMR, quanto na maneira de abordagem dessa obra pelo estabelecimento das
infinitas substituições, em termos derridianos, que ela opera em textos anteriores a si, teóricos
ou críticos, e também pelo estabelecimento das infinitas substituições desses textos. Percorrer
o poema ao lado do eu-poético significou ceder à palavra; buscar a escrita justa, inatingível
para o poeta, que dirá para o leitor.
Por isso, fazer algumas considerações finais sobre a leitura de AMMR não é simples,
haverá sempre, no signo poético, algo que nos escapa, que antecede, inclusive, a escolha do
poeta e sua consciência da linguagem. Não ubiqüidade na língua e o signo poético guarda,
portanto, a memória da não-escolha, do acaso preso ao talvez do céu noturno mallarmeano.
A dimensão do que ainda poderia ter sido dito sobre o poema advém dele próprio; a
cada verso, uma pétala da rosa se abre, uma estrela nascemorre, algum grande pensador é
trazido à luz pelo eu-poético, Orfeu, ou ainda, Odisseu em constante retorno ao Hades, em
busca de espelhos e cantos que refratem sua imagem cindida e ecoem sua voz nas vozes dos
companheiros de viagem. A leitura do poema A Máquina do Mundo Repensada é também,
como o próprio poema, um ritual de passagem, a descida aos infernos à procura de Tirésias,
do passado e do futuro para garantir a perenidade do presente no corpo da escritura, máquina,
jogo, partida: poema.
A cada verso, um dilema esfinge o eu-poético e o leitor, seu parceiro, ambos
permanentemente regidos pela atmosfera saturnina dúbia: do zero ao zênite, das mãos pensas
à coragem para arrostar o mar bravio, da acídia ao desejo de inquirir. Não há palavra limítrofe
para dar conta das fronteiras da poesia sincrônica que Haroldo de Campos construiu em A
Máquina do Mundo Repesada. Como um universo em expansão, o poema é fechado, mas in -
finito, tempo para tudo e, no poema, tudo é tempo, porque é também o espaço da
conversão da linguagem em medida do tempo poético, histórico, científico, humano. É pela
travessia da linguagem poética em ação no texto, é por sua corporalidade, que a palavra pode
dizer o indizível e percorrer os labirintos do sertão entreverado tanto no eu-poético quanto no
leitor, ainda que seu significado escape na totalidade. A palavra poética de AMMR é sempre
um depois que sugere um antes e, portanto, é prenhe de significados (quanta) possíveis: como
um dado lançado, flutua no feltro-página do poema e é acaso e não acaso, xadrez de estrelas.
O movimento de leitura desenvolvido, diante desse jogo e da elíptica rede de significações do
texto, procurou converter, acompanhando o texto, o passado em presente; e este, em futuro
pulsante, de modo a garantir que a análise apresentada possa ancorar novas viagens pelo
mesmo poema e pela obra haroldiana.
A tradição é viva em Haroldo de Campos, sua voracidade para descobrir e pulsão para
criar revelam-se, em AMMR, de modo contundente, sintetizando suas experiências poéticas
passadas e abrindo frentes para múltiplos estudos de sua obra. O poema termina com
interrogações; de fato, não termina, posto ser ele inteiro uma interrogação acerca da origem
do universo e do universo poético, ambas desnecessariamente apreensíveis, uma vez que esta
compreensão da origem é a própria busca, como tanto se assinalou ao longo da leitura e como
o eu-poético, apesar de suas indagações, ou por meio delas, faz perceber.
O nex é dissolução do sentido e, ao mesmo tempo, sua condensação. Pode ser a
reafirmação de Saturno acrimonioso, mas vejo-o promissor e desafiador pela imposição da
continuidade da busca, sinalizada pela interrupção da palavra nex - o. O último verso do
poema indica que sempre preenchimento de sentido possível, quando se trata da poesia
constelar de um poeta que a cada poema vai reunindo sua própria história. Em outras
palavras, a leitura de AMMR realizada pressupôs uma leitura da obra do poeta e de como ele
criava seus precursores; por meio dessa leitura suplementar à leitura do poema é que se
pôde concluir que o nex é um impulso, é um adiante e um retorno, jamais um ponto final.
A consideração da obra haroldiana como um todo, permite colocar o poema AMMR no
lugar merecido: mais do que se situar no límen do milênio, o poema situa-se no límen dos
signos e no límen da experimentação poética de Haroldo de Campos, que não deve ser mais
associada apenas à fase concretista. Ultrapassar os signos pela leitura de AMMR é impossível,
mas aceitar o convite da máquina do poema haroldiana para fazê-lo, torna a leitura alguma
coisa regida por khe philókainos, acaso e busca de aventura. Desse modo, o mundo revelado
pelo poema é espetáculo, marcado pela potencialidade da ocorrência de acontecimentos
extraordinários, os quais, dada a auto-reflexividade da mensagem poética haroldiana são
frutos da exacerbação dos signos, palpáveis e autônomos lastreados pela escritura do poeta,
parábola.
E essa é uma grande lição de AMMR. A obra haroldiana não é feita, a meu ver, de
fases, mas é um projeto de poesia que reflete o pensamento e as convicções do poeta no que
concerne ao fazer poético, sempre reunião de poesia, tradução e crítica. uma lógica
paradoxalmente cartesiana na postura desconstrutora de Haroldo de Campos; ele é fiel ao
projeto que se inicia com Noigandres e se propõe a afastar o tédio das concepções diacrônicas
da história literária, fazendo o absolutamente novo e reinventado permanentemente a tradição,
segundo um mesmo projeto inicial da sua poesia, nascido em 1950.
O que a leitura de AMMR faz perceber, à medida que o percurso de análise estrofe a
estrofe é feito, é que esse projeto sistematiza-se ao longo do tempo, amadurece a cada obra,
sempre marcado de novidade pela incorporação de novos elementos ao sistema, e emerge do
poema em metáforas, associações, travelings, configurando, por isso mesmo, a parábola da
escritura haroldiana. O poema é síntese porque é em sua linguagem que a convergência de
diferentes perspectivas de trabalho de um poeta que foi sempre o mesmo “pesquisador do
prazer da palavra e da escrita justa” pode ser estabelecida. Ou seja, a síntese da obra
haroldiana precisa, como tudo o que se refere a seu respeito, convergir para concretude da
palavra poética, valorizada pela perspectiva sincrônica de abordagem da história literária.
Dessa forma, é que se pode diferenciar, por exemplo, a reunião de textos apresentada
em Crisantempo, lindo mosaico de uma obra constelar, e a reunião de textos numa dicção,
a do poema A Máquina do Mundo Repensada. Ao contrário do mosaico de Crisantempo,
AMMR é um caleidoscópio dotado da mobilidade típica dos grandes textos haroldianos como
Galáxias e Finismundo: é o velho fazendo o novo, continuamente, em movimentos
espiralares, mas condensados a um só corpo, um só poema.
No limite da hybris experienciada por uma palavra poética que é vanguarda e é
ancestralidade, situa-se o poeta viajor de AMMR. Confunde o leitor com a mistura de guias,
mas, ao final, pode-se perceber que é o saber alto e profundo dos insondáveis mistérios da
física e a palavra bíblica cifrada que estimulam sua busca, que o fazem revisitar a tradição e
sua obra, incorporando a elas os novos aportes que Mario Schenberg e os midrashistas
emprestam-lhe, como seus guias.
Estudo demais entristece a carne, diz o texto de Qohélet e eu diria que ela se
entristece, agora, porque é preciso estabelecer alguns parâmetros para a conclusão desta etapa
da viagem, que o estudo, não necessariamente seu excesso, mostrou ser impossível, pois o
texto joga a diferença e não se presta aos portos e às marinas, mas ao mar e às estrelas, aos
barcos e às espaço(tempo)naves.
Se o poema termina com o indecidível, ou seja, se não fim, porém infinitas
possibilidades de nexos a serem estabelecidos, a leitura de A Máquina do Mundo Repensada
acompanha essa indecidibilidade; termina quando poderia continuar, mas não continua porque
a viagem exige seus regressos para que não se perca a memória do vivido e porque é preciso
parar, colar os olhos às grandes lentes do telescópio e observar o universo do poema não na
totalidade, mas na medida exata do que os olhos e os ouvidos podem radiocaptar. Continuar é
preciso. Sempre. E, nesse caso, terminar a leitura é fixar os mecanismos da continuidade,
regressar à estreita via. Prosseguir significa considerar, de agora em diante, o poema porto,
memória e bagagem; a própria obra haroldiana impõe o desafio de novas viagens, tendo
sempre em mente que essas viagens são a visita ao projeto de poesia haroldiano.
Haroldo de Campos é fiel às suas propostas da juventude até o seu último verso
criativo. Como um rochedo se curva diante da erosão, também o poeta de campos e espaços
experimentou a ação do tempo, mas sua palavra não fossiliza, antes, vive resplandecente,
porque é a mesma e infinitamente outra, sempre. Não fossiliza, porque não é apenas dele, é
nossa, de seus leitores, é também minha, ao menos neste momento.
Pelo sim, pelo não, entre o outronão e o outrossim, volto ao verso 1 e de novo sigo o
percurso do poeta, quisera como Haroldo em via estreita extraviar-me nas constelares
explosões supernovas que cada canto-origem, tríplice empreita revela; no límen do poema, às
margens do texto, vou de mim, para fora de mim consigo tactear o nexo porque os
significantes são palpáveis e ruído de fundo; na volta, naufragam minhas hipóteses de
leitura. Felizmente, cada estilhaço do naufrágio pode nitescer, do zero ao zênite se houver luar
trívia diana - sobre o poema oceano, afinal os estilhaços refletem nosso rosto, o meu, o do
poeta. João Alexandre Barbosa tinha razão: diante de um texto de Haroldo, navegar é preciso.
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